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REVISTA OPINIÃO PÚBLICA ISSN 1807-0191 (online)

Revista publicada pelo Centro de Estudos de Opinião Pública Coordenadoria dos Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa

Universidade Estadual de Campinas

Editora: Rachel Meneguello Departamento de Ciência Política

Universidade Estadual de Campinas

Editora Assistente: Fabíola Brigante Del Porto Revisora: Juliana Bôa Estagiária: Annelise Estrella Galeazzi

CONSELHO EDITORIAL

André Blais Département de Science Politique

Université de Montréal

Aníbal Pérez-Liñán Department of Political Science

University of Pittsburgh

Catalina Romero Departamento de Ciencias Sociales

Pontificia Universidad Católica del Perú

Charles Pessanha Departamento de Ciência Política

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Fábio Wanderley Reis Departamento de Ciência Política

Universidade Federal de Minas Gerais

Ingrid van Biezen Department of Political Science

Leiden University

Leôncio Martins Rodrigues Netto Departamento de Ciência Política

Universidade Estadual de Campinas e Universidade de São Paulo

Lúcia Mercês de Avelar Instituto de Ciência Política

Universidade de Brasília e Universidade Estadual de Campinas

Marcello Baquero Departamento de Ciência Política

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Maria Laura Tagina

Escuela de Política y Gobierno Universidad Nacional de San Martín

Marina Costa Lobo

Instituto de Ciências Sociais Universidade de Lisboa

Marcus Faria Figueiredo Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (in memoriam)

Mitchell Seligson Department of Political Science

Vanderbilt University

Mônica Mata Machado de Castro Departamento de Ciência Política

Universidade Federal de Minas Gerais

Peter Birle Ibero-Amerikanisches Institut

Ulises Beltrán Centro de Investigación y Docencia

Económicas

Víctor Manuel Durand Ponte Instituto de Investigaciones Sociales

Universidad Nacional Autónoma de México

Publicação indexada no Sociological Abstracts; HAPI (Hispanic American Periodicals Index); IBSS (International Bibliography of the Social Sciences); HLAS (Handbook of Latin American Studies); SciELO; RedALyC; EBSCO; CLASE – Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades; DOAJ – Directory of Open Access; LATINDEX, Pro Quest

ROP é publicada pelo CESOP desde 1993 e está aberta à submissão de artigos científicos. Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores, não expressando a opinião dos membros do Conselho Editorial ou dos órgãos que compõem o CESOP. As normas para submissão de artigos estão em http://www.cesop.unicamp.br/site/htm/revistas.php

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Abril 2015 Vol. 21, nº 1

OPINIÃO PÚBLICA

Campinas

Vol. 21, nº 1 p. 1-237

Abril de 2015

ISSN 1807-0191

ISSN 1807-0191

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OPINIÃO PÚBLICA/ CESOP/ Universidade Estadual de Campinas – vol. 21, nº 1, Abril de 2015 – Campinas: CESOP, 2015. Revista do Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas. Quadrimestral ISSN 1807-0191 (versão online) 1. Ciências Sociais 2. Ciência Política 3. Sociologia 4. Opinião Pública I. Universidade de Campinas II. CESOP

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 1–32

Reforma política no Brasil: indagações sobre

o impacto no sistema partidário e na representação

Patrick Silva Centro de Estudos da Metrópole

Universidade de São Paulo

Andreza Davidian Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Núcleo de Estudos Comparados e Internacionais

Universidade de São Paulo

Andréa Freitas Departamento de Ciência Política

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Estadual da Campinas

José Donizete Cazzolato Centro de Estudos da Metrópole

Universidade de São Paulo

Resumo: Os efeitos produzidos pelo método de converter votos em cadeiras têm estado no centro do debate brasileiro desde a

Constituição de 1988 e a reforma política nunca deixou a agenda do debate político, dentro e fora da academia. Os argumentos,

no geral, dizem respeito ao fortalecimento dos partidos e ao aumento da accountability eleitoral. Este artigo se propõe a analisar

os efeitos de mudanças dos distritos eleitorais. Essas questões estão inscritas em uma discussão mais ampla sobre os impactos

do sistema eleitoral no sistema político, bem como sobre o equilíbrio delicado entre governabilidade e representação.

Consequentemente, estão diretamente relacionadas à qualidade do sistema democrático.

Palavras-chave: reforma política; partidos políticos; sistema eleitoral; distrito uninominal; lista fechada

Abstract: The effects produced by the method to convert votes into legislative seats have been at the center of the debate in Brazil

since the 1988 Constitution, and since then political reform has never left the agenda of the political debate, both inside and

outside of the university. The arguments are, in general, the strengthening of parties and the increase of electoral accountability.

This article proposes to analyze the effects of changing the electoral districts. These issues are inscribed in a larger discussion

about the impacts of the electoral system on the political system, as well as about the delicate balance between governability and

representation. Consequently, they are directly related to the quality of the democratic system.

Keywords: political reform; political parties; electoral systems; uninominal voting; closed list

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Introdução

Em cinco de outubro de 1988 era promulgada, em Brasília, a nova Constituição do Brasil.

Considerada por muitos como o marco final de uma longa transição democrática, a nova Carta

constitucional passou, rapidamente, a ser alvo de análises de acadêmicos e especialistas a respeito do

funcionamento das instituições políticas erigidas pela Assembleia Nacional Constituinte.

Esses autores (LAMOUNIER, 1994; MAINWARING, 1991; 1999) destacavam que a combinação entre

o presidencialismo (de caráter plebiscitário) e a representação proporcional (RP) de lista aberta levaria o

sistema político brasileiro ao colapso. Entre as possíveis soluções apresentadas para evitar esse

resultado estavam a mudança do sistema de governo e do método de seleção dos deputados federais

para um que proporcionasse aos partidos maior controle sobre seus membros, tanto na arena eleitoral

quanto na arena legislativa. Quanto à primeira proposta, as pretensões se esgotaram após o plebiscito

de 1993, quando, com 69,2% dos votos válidos, a opção pelo sistema presidencialista saiu vencedora do

plebiscito de 19931.

Todavia, se a opção de mudança do sistema de governo deixou de ser pauta entre os políticos e

acadêmicos brasileiros, o mesmo não ocorreu com o sistema eleitoral. As críticas à RP e às demais

características das eleições legislativas se tornaram mais ríspidas, e a reforma das regras eleitorais

permanece central na agenda da reforma política debatida tanto no Legislativo como pela opinião

pública em geral. Os escândalos de corrupção somados a outras “disfunções” do poder público

alimentam um consenso de que os métodos de seleção de representantes precisam ser alterados, no

anseio de que se altere, em última instância, a qualidade da representação.

É possível apontar dois objetivos comuns desses anseios de mudança: tornar o sistema

partidário menos aberto à entrada de pequenos partidos e fortalecer os partidos políticos. Quanto às

propostas feitas visando a tais efeitos, podemos listar a troca da lista aberta para a fechada, o fim das

coligações, a criação de um sistema majoritário de distrito uninominal ou um sistema proporcional misto

como o utilizado na Alemanha.

Não obstante o número de propostas de alteração do sistema eleitoral, nenhuma dessas

sugestões saiu do papel. Os possíveis efeitos dessas alterações são deduzidos, de maneira geral, por

inferência teórica ou pelo conhecimento que se tem da experiência de outros países. Neste artigo

buscou-se ir além na indagação sobre os impactos que uma dessas transformações traria ao jogo político

brasileiro. Nominalmente, simulou-se o resultado das eleições nos estados de São Paulo e Pernambuco,

caso fossem criados distritos menores com magnitude variando de três a oito. Nossos resultados

apontam que, em ambos os casos, os maiores partidos seriam beneficiados e o número de partidos

efetivos apresentaria uma redução em mais da metade do valor verificado hoje nesses estados.

Além desta Introdução, este artigo está organizado em três seções. Na primeira seção

apresentamos uma síntese das críticas às regras eleitorais brasileiras no pós-Constituinte que embasam

os argumentos reformistas, focando em alguns aspectos centrais: a RP, a magnitude dos distritos, a lista

1 Após o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo de 1993, apenas duas propostas de reforma do sistema de governo

foram protocoladas: a PEC 20/1995 de Eduardo Jorge (PT-SP) e a PEC 282/2004 de Roberto Jefferson (PTB-RJ).

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aberta e as coligações. Depois apresentamos a metodologia e os resultados dos exercícios. Por fim,

realizamos algumas considerações sobre os resultados e sobre as propostas de reforma em geral.

As críticas ao sistema eleitoral: uma breve revisão da literatura

Grosso modo, o debate pioneiro que tratou da consolidação de nossas instituições desde a

última redemocratização trouxe diagnósticos pessimistas sobre o funcionamento do sistema político

brasileiro. As razões apontadas para isso são diversas, sobrepondo-se questões históricas, estruturais,

culturais e, sobretudo, institucionais. Quanto a essa última espécie de argumentos, boa parte de nossas

mazelas seria atribuída ao arranjo eleitoral. As regras empregadas para traduzir votos em cadeiras no

Congresso são alvo de constantes críticas pela permissividade e pelo suposto incentivo ao individualismo

dos políticos em detrimento dos partidos. Consequentemente, a reforma eleitoral vem sendo pautada

desde então.

O aspecto mais geral das eleições para o Legislativo, o método proporcional, é problematizado

por conta de seus impactos serem considerados especialmente nocivos no caso brasileiro. É sabido que

as duas “grandes famílias” do sistema eleitoral – majoritário e proporcional – atendem a princípios

distintos e produzem efeitos específicos sobre o sistema político quanto à governabilidade e à

representatividade. Sobre o sistema partidário, esses efeitos são amplamente difundidos pela literatura

desde o seminal estudo de Duverger (1987), dispensando maior detalhamento aqui. Quanto aos demais,

resumiremos o debate que perpassa a literatura de ciência política.

O principal ponto dos defensores do sistema majoritário é que a RP fraciona o poder em muitas

unidades diferentes, posto que um número grande de partidos conquista representação no parlamento,

tendo como contrapartida uma maior dificuldade na produção de maiorias estáveis para governar.

Haveria então necessidade constante de negociação do Executivo com os demais partidos, o que poderia

levar o sistema político a crises de paralisia (LAMOUNIER, 1994). Outra crítica pontua que sistemas

proporcionais dificultariam a accountability do sistema político (ARATO, 2002; SHUGART; CAREY, 1992;

POWELL JR.; WHITTEN, 1993). O motivo seria que a necessidade do governo de realizar coalizões faria da

atribuição de responsabilidades por parte do eleitor uma tarefa complicada. Não sendo clara a

associação das ações do poder público com os seus responsáveis, a faceta retrospectiva do voto seria

drasticamente dificultada.

Por sua vez, o principal argumento dos que defendem a RP é que a representação, antes de ser

uma questão de governabilidade, seria uma questão de justiça (URBINATI, 2006; SANTOS, 1987; AMY,

2002). O sistema de RP seria o único capaz de dar voz a grupos minoritários da população, por não

adotar um critério puramente territorial para definir o distrito eleitoral, possibilitando assim a

representação de grupos espacialmente dispersos. Um ponto central é que a representação não é vista

por esses autores como uma concessão de benefício das maiorias às minorias, mas como uma condição

que, se não cumprida, torna o sistema político injusto. Nesse sentido, alguns deles apontam que

determinados sistemas eleitorais são mais adequados que outros, tendo em vista o contexto político-

institucional. Elster (2008), por exemplo, afirma que a RP é desejável como mecanismo de seleção para

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membros de Assembleias Constituintes devido ao fato de atuar como um espelho da diversidade social,

possibilitando a formação de crenças racionais por meio da maior quantidade de informação trazida pela

heterogeneidade dos constituintes. Por sua vez, Amy (2002) sustenta, contra a noção de instabilidade da

RP, que sistemas majoritários podem levar a mudanças radicais da política, a depender de quem vence

as eleições. Outro argumento levantado pelo autor é que a RP “politiza” a população ao adicionar

substância às campanhas políticas, ao introduzir pontos de vista diversos na arena política visando à

representação no parlamento.

De maneira abrangente, portanto, é possível assinalar o sistema majoritário como o método

que mais facilita a governabilidade, enquanto a RP é identificada como modo de garantir maior

representatividade. Naturalmente, dado o temor da literatura desenvolvida nos anos 1990 de que a

recém-instaurada ordem democrática fosse mais uma vez rompida no Brasil, a preocupação com a

governabilidade assumiu premência. A RP passou então a ser acusada de contribuir com a fragmentação

partidária brasileira, gerando, de um lado, altos custos para a produção de governo, de outro,

comprometendo a inteligibilidade do sistema partidário e dificultando o controle por parte do eleitorado

sobre os políticos (LAMOUNIER, 1994; AMES, 1995; MAINWARING, 1991; 1999).

Quanto à questão da governabilidade e da estabilidade democrática, no cerne das referidas

análises, houve significativo avanço com o trabalho de Figueiredo e Limongi (1999). Ao examinarem a

estrutura do processo decisório no Congresso, os autores confrontaram as afirmações tradicionais sobre

o conflito entre os poderes, a fragmentação excessiva e a indisciplina dos parlamentares, desconstruindo

a premissa de que a arena legislativa seria reflexo direto da arena eleitoral. Com esse deslocamento

analítico constatam justamente o contrário dos diagnósticos recorrentes: são altos os índices de

disciplina e o padrão de organização dos trabalhos legislativos é fortemente centralizado em torno dos

partidos.

Todavia, outros elementos devem ser acrescentados ao debate para compor a crítica mais geral

que é feita às eleições legislativas. As consequências associadas ao modelo de lista aberta, por exemplo,

aprofundam a crítica perene quanto à fragilidade dos partidos. Kinzo (2004) sustenta que, a despeito da

estabilidade do funcionamento do sistema democrático brasileiro, a fragmentação propiciada pelo

método proporcional mantém-se como problema na medida em que afeta a inteligibilidade do processo

eleitoral pelo excesso de candidaturas. Ademais, a influência dos eleitores na seleção de candidatos se

daria em detrimento do controle das lideranças partidárias sobre o processo de indicação. A lista aberta

incentivaria, portanto, a formação de lideranças personalistas e a criação de lealdades extrapartidárias

dos políticos com suas clientelas, de modo que as disputas para o Legislativo seriam antes entre

candidatos individuais do que entre siglas, não contribuindo assim para a criação de identidades

políticas sólidas. Mais do que isso, a lista aberta incentivaria a competição entre candidatos de um

mesmo partido. Consequência lógica desse raciocínio seria o esvaziamento do papel dos partidos

enquanto agentes relevantes na estruturação da competição eleitoral para o Legislativo.

De outro lado, trabalhos vêm apontando para a limitação da discussão a respeito da lista

aberta. Nicolau (2006), por exemplo, crítico ao corte dedutivo que predomina nesses estudos, aponta

que uma série de outros elementos poderia incidir na configuração dos partidos, incluindo a escolha de

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determinadas regras internas à sua organização, que deve produzir variações importantes na estrutura

partidária, matizando os efeitos do sistema eleitoral. Braga (2008), por sua vez, propõe que a lista seja

vista como produto da atuação deliberada do partido, que construiria estratégias e alteraria seu

comportamento de uma eleição para outra, de acordo com as variações da conjuntura eleitoral. Ao

analisar a composição das listas partidárias em São Paulo, a autora argumenta que os partidos, ao

controlarem recursos vitais do fundo partidário e do tempo no horário gratuito no rádio e na TV, acabam

praticando uma ordenação informal da lista. Esses mecanismos organizativos funcionariam inclusive

como controle da competição intrapartidária, revelando o papel fundamental desempenhado pelos

partidos enquanto operadores da representação política. Conforme aponta Santos (1999), já que são

pouquíssimos os candidatos a se eleger contando apenas com seus votos, não há de se descartar os

incentivos no sentido de um comportamento coletivo, que reduza as incertezas eleitorais dos candidatos

em um sistema tão competitivo quanto o brasileiro.

A crítica às coligações, por sua vez, ocorre no mesmo sentido da lista aberta: não seriam os

partidos as unidades diferenciadoras na competição eleitoral, mas uma miríade de candidatos dentro de

coligações compostas por diversos partidos indistintos ideologicamente. Para Kinzo (2004), a prática

das coligações seria uma necessidade em virtude da fragmentação do sistema partidário e, ao mesmo

tempo, a causa da entrada de pequenos partidos. A contrapartida do recurso estratégico às coligações

por parte dos partidos seria a falta de nitidez do sistema partidário para o eleitorado, que não raro

perderia a clareza de qual sigla seu voto beneficia. Resultaria daí outra consequência negativa das

coligações: a transferência de votos dentro da coligação acarretaria a distorção entre o número de votos

e o número de cadeiras, notadamente para os pequenos partidos, que obteriam espaço não

correspondente ao seu lastro eleitoral (FLEISCHER, 1997). O conjunto desses fatores comprometeria

diretamente a accountability vertical efetiva, aumentando a disparidade entre o sistema partidário

eleitoral e o sistema partidário nas arenas decisórias.

Também quanto à capacidade do sistema de propiciar um vínculo de representação entre

políticos e eleitores, é recorrente o debate sobre a magnitude dos distritos eleitorais brasileiros – mais

ainda que o debate sobre a incorporação de elementos majoritários nas eleições legislativas, segundo

Cintra (2005). O argumento mais geral é que a grande extensão das circunscrições eleitorais tornaria

mais difícil a prestação de contas. Na ausência de bases eleitorais definidas, os deputados desfrutariam

de grande autonomia em sua atividade parlamentar. Cheibub (2007) aponta ainda para outro aspecto do

tamanho dos distritos: o alto nível de competitividade das eleições legislativas. Na contramão do

argumento corrente sobre o voto pessoal, o autor afirma que os parlamentares não teriam garantias

suficientes de que seriam premiados pelo bom mandato em uma próxima eleição, em razão da excessiva

competitividade e dos altos custos de campanha envolvidos nessas disputas – o que pressionaria os

candidatos na angariação de financiamento privado. Nesse mesmo sentido, Cintra argumenta que as

vantagens da lista aberta quanto à aproximação direta entre político e eleitores com accountability não

se manifestariam, dada a magnitude dos distritos eleitorais brasileiros.

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Metodologia e resultados

Conforme apresentado na Introdução, foi realizado um exercício de simulação de reforma

eleitoral com o objetivo de refletir sobre o impacto do redesenho dos distritos eleitorais em duas

unidades da federação: São Paulo, o maior colégio eleitoral brasileiro, e Pernambuco, o segundo maior

do Nordeste, utilizando distritos eleitorais de magnitude de três a oito.

Optamos por esses valores baseados no argumento de Cheibub (2007) e Carey e Hix (2011).

Cheibub argumenta que o sistema eleitoral brasileiro, RP com lista aberta, proporciona ao eleitor a

opção de votar tanto no candidato e no partido como apenas no partido. Por conta da liberdade que isso

confere ao eleitor, afirma que a configuração mais geral do sistema eleitoral deve ser mantida. Aponta,

contudo, que nem por isso o sistema não poderia sofrer alterações incrementais, e sugere então uma

mudança: a diminuição da magnitude dos distritos brasileiros para um número que variasse de três a

seis cadeiras. Os motivos para a mudança seriam: diminuir o custo das campanhas, estimular os

políticos a criar laços com seus eleitores e aumentar o grau de institucionalização do Congresso

(CHEIBUB, 2007).

Por sua vez, Carey e Hix (2011) realizam um estudo comparado visando determinar qual seria a

magnitude ideal para maximizar tanto a representação como a accountability de um sistema político,

chegando ao valor mínimo de três e ao máximo de oito cadeiras. Utilizando dados para 81 países no

período de 1946 a 2006, os autores apontam que a partir de oito cadeiras o acréscimo de

representação, entendido como o aumento de partidos representados no parlamento, não é suficiente

para justificar um incremento na magnitude do distrito. Se, por um lado, a magnitude entre três e oito

cadeiras maximizaria a representatividade, por outro, também maximizaria a accountability. Carey e Hix,

apoiados em estudos do campo da psicologia, sustentam que pessoas conseguem escolher

estrategicamente com, no máximo, sete opções. Em cenários com um número de opções superior a sete,

pessoas tenderiam a agir “honestamente” e a escolher de modo não estratégico, pois não saberiam

calcular as chances de cada uma das possibilidades sair vencedora. De um lado, em sistemas em que o

número de candidatos viáveis é maior do que sete a accountability seria prejudicada. De outro, em

distritos com magnitude baixa, os eleitores tenderiam a agir de modo semelhante a como agiriam em

distritos uninominais. Portanto, nossa opção por uma magnitude de três a oito foi amparada tanto na

sugestão de Cheibub, como nos resultados de Carey e Hix.

Não obstante, antes de apresentarmos o método empregado, cabe um comentário sobre o

estudo de Amorim Neto, Cortez e Pessoa (2011), que objetivou o redesenho dos distritos eleitorais de 12

estados brasileiros. Para a definição dos distritos, os autores utilizaram o software Skater (Spatial

‘K’luster Analisys Through Edge Removal), que “define áreas homogêneas e contíguas a partir do

agrupamento de áreas menores, segundo variáveis de homogeneidade” (AMORIM NETO; CORTEZ; PESSOA,

2011, p. 56). As variáveis de homogeneidade utilizadas foram o Índice de Desenvolvimento Humano

Educacional (IDH-E) e o IDH geral calculados com base no Censo de 2000. Após o uso do software, o

número de distritos gerados para cada um dos estados variou de oito (São Paulo) a dois (Santa Catarina,

Ceará, Maranhão e Goiás). Os autores destacam que “o Skater não busca maximizar o número de áreas

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criadas, mas, sim, homogeneizá-las de acordo com as variáveis de controle” (AMORIM NETO; CORTEZ;

PESSOA, 2011, p. 57). Contudo, é no que tange ao uso de indicadores sociais que nossa crítica ao

trabalho dos autores incide.

Ao usar variáveis como o IDH e o IDH-E para criar distritos homogêneos, é gerado um efeito não

desejável de criar distritos com composições sociais opostas entre si: distritos de municípios com IDH

elevado e distritos com municípios de IDH baixo. Esse processo de separação de tipos de municípios

pode ser danoso para o sistema político, pois, no limite, são separados os municípios mais

desenvolvidos dos menos desenvolvidos, o que pode acarretar problemas para a criação e a manutenção

de programas de redistribuição de bens e riquezas.

Objetivando evitar um efeito semelhante, optamos por desenhar os distritos eleitorais a partir

de recortes territoriais já estabelecidos, guardando a coerência geográfica com base tanto na

contiguidade territorial como no respeito à coesão regional das unidades, reforçada pelo fato de esses

recortes serem empregados também no desenho de políticas públicas (CAZZOLATO, 2009). Os critérios de

delimitação dos novos distritos, para ambos os casos, encontram-se expostos em detalhe no Anexo 2.

Por ora cabe reforçar que, aceitando que a representação se dá também sobre bases territoriais, a

coesão das unidades territoriais foi o critério utilizado para a criação dos novos distritos eleitorais.

Exercício 1

Redesenhando o mapa eleitoral de São Paulo

Para São Paulo, utilizamos como base as Regiões Administrativas (RAs), as Regiões de Governo

(RGs) e as Regiões Metropolitanas (RMs). O uso dessas regiões nos proporcionou três vantagens – uma

técnica e duas substantivas. A vantagem técnica foi que, apesar de terem sido realizados alguns ajustes

no desenho das regiões para utilizá-las como distritos eleitorais, apenas o município de São Paulo

precisou ser dividido por conta do tamanho de sua população. Por sua vez, as substantivas foram que

como as regiões têm, no mínimo, 30 anos e são utilizadas amplamente para o planejamento e a

execução das políticas do governo do estado, eliminamos a possibilidade de empregarmos um critério

que a priori favorecesse algum partido.

Essa divisão resultou em 16 novos distritos eleitorais, sendo quatro originários da divisão do

município de São Paulo, três da divisão do restante da Região Metropolitana (RM) de São Paulo, oito da

fusão de RAs e dois mantendo as RMs de Campinas e da Baixada Santista. O menor distrito, Marília,

ficou com aproximadamente 1,8 milhão de habitantes e o maior, Campinas, com 4 milhões2. A Figura 1

apresenta os 16 distritos eleitorais, enquanto a Tabela 1 traz a distribuição da população paulista entre

os distritos e a respectiva magnitude de cada um dentro da nova configuração:

2 Ver os Anexos para detalhes sobre o processo de desenho dos distritos eleitorais.

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Figura 1

Estado de São Paulo dividido em 16 distritos eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

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Tabela 1

População e magnitude dos distritos eleitorais de São Paulo

Distrito eleitoral População (%) Magnitude

Campinas 4.0491.44 9,8 7

São Paulo Central 3.386.339 8,2 6

Osasco 3.134.460 7,6 5

São Paulo Leste 2.861.157 6,9 5

Sorocaba 2.804.662 6,8 5

São Paulo Sul 2.782.341 6,7 5

Guarulhos 2.744.618 6,7 5

Piracicaba 2.584.169 6,3 4

São Bernardo do Campo 2.549.135 6,2 4

Ribeirão Preto 2.374.217 5,8 4

São José dos Campos 2.262.723 5,5 4

São Paulo Norte 2.214.532 5,4 4

São José do Rio Preto 2.007.942 4,9 3

Santos 1.932.406 4,7 3

Bauru 1.789.945 4,3 3

Marília 1.774.370 4,3 3

Fonte: Elaboração própria com base em dados do IBGE.

Após desenharmos os distritos, realizamos duas simulações com base nos resultados da

eleição de 2010 para a Câmara dos Deputados. Na primeira simulação utilizamos as coligações

eleitorais e comparamos os resultados obtidos com os oficiais. Nossa opção por utilizar a coligação se

deu pela inviabilidade de distribuir as cadeiras entre os partidos coligados. Conforme pontuado, no

Brasil a ordenação dos candidatos na lista partidária não é prévia e dependerá da votação nominal de

cada um deles. Dada a impossibilidade de saber em qual dos distritos cada partido da coligação lançaria

candidatos, optamos por apresentar os resultados por coligação. O Gráfico 1 apresenta o comparativo

entre o resultado oficial e a simulação:

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Gráfico 1

Simulação com coligações (São Paulo, 2010)

Fonte: Elaboração própria com base em dados do TSE.

Observa-se que as coligações que sairiam beneficiadas pela mudança proposta seriam as

coligações dos dois partidos que hoje polarizam a disputa eleitoral no Brasil: PT e PSDB. A coligação

petista ganharia dez cadeiras, enquanto a peessedebista, oito. Todas as demais coligações e partidos

que concorressem sozinhos perderiam cadeiras.

Já no segundo exercício com os distritos eleitorais, simulamos os resultados desconsiderando

as coligações. Com esse cenário buscamos observar o efeito de uma mudança caso fossem utilizados os

novos distritos e também proibidas as coligações. A fim de comparação, apresentamos os resultados da

simulação juntamente com o resultado oficial, ou seja, com o número de cadeiras conquistadas por cada

partido após a distribuição ter sido realizada dentro das coligações. Também apresentamos uma

comparação com o resultado para a simulação por partido mantendo o desenho do distrito atual (M =

70) sem coligações.

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Gráfico 2

Simulações por partido sem coligação (São Paulo, 2010)

Fonte: Elaboração própria com base em dados do TSE.

O exame do Gráfico 2 revela que a diferença entre o número de cadeiras obtidas no sistema

atual e em cenário no qual as coligações fossem proibidas não seria grande. Grosso modo, o número de

cadeiras varia em uma unidade, seja para mais ou para menos; a exceção é o PR, que teria um aumento

de duas cadeiras em sua bancada, caso os partidos fossem proibidos de competir coligados.

Por sua vez, a simulação utilizando distritos de menor magnitude aponta que, de modo muito

mais pronunciado, os maiores partidos seriam beneficiados no caso de uma reforma política que

desenhasse distritos semelhantes aos propostos neste artigo. O número de partidos efetivos no estado

passaria de 8,5 para quatro. PT e PSDB receberiam um incremento de nove e dez cadeiras,

respectivamente, enquanto todos os demais partidos teriam suas bancadas diminuídas – sendo que sete

partidos deixariam de figurar na composição da bancada paulista. As exceções seriam o PSB e o PR, que

receberiam mais duas cadeiras cada, e o PMDB, que conservaria suas cadeiras em todos os casos.

É importante observar que, no caso de uma mudança para distritos semelhantes aos

apresentados, um efeito esperado seria que a polarização PT x PSDB – que rege a disputa presidencial e

que alguns autores têm apontado como os polos nas disputas de prefeituras no estado de São Paulo

(LIMONGI; DAVIDIAN; MESQUITA, 2009) – tornar-se-ia aguda também nas eleições para a Câmara dos

Deputados, de modo que a vantagem desses dois partidos aumentaria ainda mais. A título de

exemplificação desse efeito, no Gráfico 3 podemos observar a distribuição das cadeiras entre PT, PSDB e

os demais partidos:

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Gráfico 3

Partidos nos novos distritos (São Paulo, 2010)

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do TSE.

É notável que PT e PSDB seriam os únicos partidos que conseguiriam cadeiras em todos os 16

distritos. A polarização se acentuando com a adoção de um sistema de distritos com magnitude baixa, é

factível supor que as campanhas de um menor número de candidatos tornar-se-iam mais centradas no

partido3. Ou seja, a despeito da representação de lista aberta, o efeito da reputação pessoal seria

diminuído vis-à-vis o efeito da reputação partidária4. De outro lado, a relação político-eleitor estreitar-se-

ia. Isso ocorreria também em função da redução do número de concorrentes, o que poderia acarretar na

redução da incerteza da continuidade da carreira política – um dos argumentos levantados por Cheibub

(2007). Isto é, dado o menor número de candidaturas, e dado que a disputa aconteceria em uma área de

3 Cabe destacar que esse argumento pode ser aplicado mesmo se as coligações não fossem proibidas. Todavia, nesse caso, a

polarização poderia dar-se entre dois blocos de partidos, os de “centro-esquerda” e os de “centro-direita”. 4 Shugart e Carey (1992) argumentam que, em sistemas de representação proporcional, a magnitude opera como um condutor

para a importância da reputação pessoal. Isto é, em sistemas de RP, quanto maior a magnitude mais importante torna-se a

reputação pessoal para a eleição. Ao discutir esse argumento, Cheibub (2008) aponta que, mesmo em sistemas em que a

reputação pessoal é teoricamente importante, eleitores tendem a votar com base na sigla partidária. Como evidência a esse

argumento, Cheibub aponta autores que afirmam que, ao mudar de partido, o parlamentar não carrega seus votos. Ao

argumentarmos que, com distritos menores, a reputação partidária passaria a ser mais importante para a eleição, não estamos

desconsiderando nenhuma das ponderações; nosso argumento reside no fato de a eleição proporcional se aproximar da lógica do

sistema majoritário.

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menor circunscrição, um efeito esperado é a aproximação entre o candidato e o eleitor, favorecendo a

accountability vertical do sistema político.

Outro efeito possível é o da perpetuação das elites políticas. Cabe ressaltar que esse ponto

relaciona-se com o anterior (diminuição da incerteza da eleição), no entanto, outra consideração diz

respeito à dimensão geográfica desigual dos distritos eleitorais. É esperado que, em distritos com áreas

maiores, a campanha seja mais cara, em razão do deslocamento que os candidatos têm que fazer, do

que em distritos com área menor. Ou seja, o custo para competir em distritos do interior seria mais

elevado do que nos distritos com maior grau de urbanização. Assim, candidatos advindos de famílias

tradicionais poderiam se beneficiar de uma mudança como a apresentada5.

Exercício 2

Redesenhando o mapa eleitoral: o caso de Pernambuco

Para Pernambuco, partimos dos recortes mais tradicionais de regionalização dos estados do

Nordeste oriental, que se embasa na conformação macroambiental da Zona da Mata, Agreste e Sertão.

Havendo, contudo, uma grande concentração demográfica no entorno metropolitano do Recife, optamos

por uma adaptação dos recortes tradicionais, atentando para os critérios de conformação da rede

urbana.

No caso de Pernambuco, obtivemos seis distritos eleitorais, sendo três no litoral (Região

Metropolitana de Recife, Zona da Mata Norte e Sul) e três nos domínios do Agreste e Sertão, conforme

exibe a Figura 2. A Tabela 2, por sua vez, traz a distribuição da população pelos distritos e a magnitude

correspondente de cada um:

5 Agradecemos a Ricardo Ceneviva por nos ter apontado esse efeito.

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Figura 2

Estado de Pernambuco dividido em seis distritos eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Tabela 2

População e magnitude

dos distritos eleitorais de Pernambuco

Distrito eleitoral População (%) Magnitude

Recife 2.363.045 26,9 7

Mata Sul 1.644.749 18,7 5

Agreste de

Caruaru 1.230.196 14,0 4

Sertão de

Petrolina 1.193.700 13,6 3

Agreste do Sertão 1.188.420 13,5 3

Mata Norte 1.176.338 13,4 3

Fonte: Elaboração própria com base em dados do IBGE.

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Assim como para São Paulo, realizamos duas simulações com base nos resultados da eleição

de 2010 para a Câmara dos Deputados. O Gráfico 4 apresenta o comparativo entre o resultado oficial e a

simulação para os votos por coligação:

Gráfico 4

Simulação com coligações (Pernambuco, 2010)

Fonte: Elaboração própria com base em dados do TSE.

Apenas duas coligações conquistam cadeiras em 2010. A vencedora, cujo partido com melhor

desempenho é o PSB, se beneficiaria passando de 20 a 21 cadeiras, enquanto a liderada pelo PSDB

perderia uma cadeira, passando a ocupar quatro cadeiras na Câmara. Em termos substantivos, o

resultado da simulação revela que, tal como para o caso de São Paulo, a maior coligação seria

beneficiada caso o estado fosse dividido em distritos; o uso de distritos também favorece o(s) maior(es)

partido(s) no estado, como se evidenciará a seguir.

O segundo exercício, por sua vez, simulou os resultados desconsiderando as coligações, tanto

para os distritos criados, como para o distrito atual, cuja magnitude é 25. O exame do Gráfico 5 revela

que o PSB, maior partido do estado, seria o maior beneficiado em ambos os cenários simulados. Na

ausência de coligações, o partido seria favorecido de ambas as formas, seja no distrito eleitoral atual,

seja no redesenho proposto – beneficiando-se, sobremaneira, no segundo caso, no qual mais do que

duplicaria seu total de cadeiras. Em sentido inverso ao do PSB, o PTB teria a maior perda de cadeiras,

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passando de quatro (no modelo atual) para uma (no distrito atual sem coligação). Já considerando os

novos distritos, o partido tem sua bancada reduzida pela metade.

Gráfico 5

Simulações por partido sem coligação (Pernambuco, 2010)

Fonte: Elaboração própria com base em dados do TSE.

Para os demais partidos, assim como em São Paulo, as variações seriam menos acentuadas

nos dois novos cenários, com variações de uma unidade no total de cadeiras conquistadas. Dos partidos

a lançar candidato no estado, três não teriam seus resultados impactados em nenhum dos cenários

propostos. Eliminando-se as coligações no distrito atual, dois partidos perderiam sua representação na

bancada pernambucana na Câmara. Abolindo-se as coligações e redesenhando os distritos, outros dois

ficariam sem cadeiras, de modo que o número de partidos efetivos passaria de 8,1 a 3,5. Ou seja, a

criação dos distritos eleitorais impactaria de maneira mais pronunciada o cenário político

pernambucano, tanto na diminuição do número de siglas como em benefício do maior partido, o PSB,

que seria o único a eleger representante em todos os distritos criados, conforme revela o Gráfico 6:

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Gráfico 6

Partidos nos novos distritos (Pernambuco, 2010)

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do TSE.

Considerações Finais

Neste artigo buscamos trabalhar com alguns aspectos da crítica feita às regras eleitorais para

as disputas legislativas no Brasil. O único aspecto que não foi possível explorar com as simulações,

evidentemente, foi a lista fechada. A esse respeito, contudo, conforme pontuado nessa revisão, uma série

de trabalhos tem buscado mitigar as asserções tradicionais em torno do emprego da lista aberta,

identificando as respostas estratégicas de que os partidos lançam mão diante dos incentivos do arranjo

institucional.

O fim das coligações, por sua vez, não alterou radicalmente a distribuição de cadeiras entre os

partidos. O argumento de que as coligações favorecem em demasia os partidos menores, tornando a

representação desproporcional e contribuindo com a fragmentação partidária, não encontra muito

suporte nos dados. Supõe-se, entretanto, que no longo prazo esses efeitos seriam cumulativos, o que

poderia acarretar a eliminação dos competidores que têm suas bancadas enfraquecidas

progressivamente na Câmara – mas isso é algo que o exercício não nos permite captar, já que a

simulação parte de resultados dados, pressupondo assim condições constantes.

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Nesse sentido, merece destaque o fato de que, como em toda simulação que utiliza dados do

passado para desenhos institucionais hipotéticos, os resultados não permitem afirmar qual seria o

comportamento real dos agentes em resposta a uma mudança. Como observamos nos exercícios em que

utilizamos os novos distritos tanto com as coligações quanto com os partidos como unidade de

agregação dos votos, os maiores competidores se beneficiam. Entretanto, assumindo que os partidos

têm algum papel na organização da lista e, mais do que isso, levam em conta tanto a dimensão

territorial como a diversidade social dos candidatos, conforme sugere Nicolau (2006), há de se supor

que eles redesenhariam suas estratégias diante da nova configuração. Por exemplo, é razoável supor

que, com a reforma proposta, partidos de menor relevo no estado priorizariam lançar candidaturas nos

distritos onde calculam ter maior viabilidade eleitoral, ao passo que partidos com votos distribuídos por

todo o estado – como o PT e o PSDB para o caso paulista e o PSB para o pernambucano – poderiam ter

como estratégia lançar candidatos em todos os distritos.

Por ora, a simulação que utiliza distritos eleitorais de menor magnitude revelou que as maiores

chapas seriam beneficiadas no caso de uma reforma semelhante à proposta neste artigo, e a

configuração das disputas se aproximaria à dos cargos majoritários. Se há quem defenda a diminuição

do número de partidos por conta da maior inteligibilidade do sistema, a diminuição da magnitude dos

distritos somada à eliminação das coligações contemplaria esse anseio. À exceção de quatro partidos,

todos os demais perderiam cadeiras em São Paulo, cuja bancada passaria a ser composta por

praticamente metade dos partidos representados atualmente. Em Pernambuco, 4 dos 11 partidos

deixariam de estar representados na bancada do estado.

Nesse mesmo sentido, se a competitividade se atenua nesse contexto pela diminuição do

número de candidatos, conforme aponta Cheibub, imagina-se que a contrapartida seria a maior

austeridade dos partidos no que diz respeito à entrada de candidatos na lista. A lista aberta assumiria

um aspecto mais “fechado”, por assim dizer. Em uma palavra, maior poder aos líderes partidários. A

questão é até onde a ampliação desse poder vai ao encontro das alterações aspiradas.

Cabe indagar, por fim, o quanto essas mudanças incentivariam o fortalecimento dos partidos –

isso se aceitarmos que estes já não são suficientemente fortes – ou o quanto simplesmente acirrariam o

fechamento das disputas, aumentando ainda mais o poder das mesmas elites que já dominam

atualmente o jogo político. Antes, ainda, cabe indagar o que se entende – ou se espera – por força dos

partidos políticos.

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Anexo 1

Tabela 3

Lista dos partidos

Registro Sigla Nome

Registro

definitivo

no TSE

Transições da sigla

25 DEM Democratas 2007 PFL>DEM

Nova denominação do

PFL (Partido da Frente

Liberal).

10 PRB Partido Republicano

Brasileiro 2005 PMR>PRB

Nova denominação do

PMR (Partido

Municipalista

Renovador).

11 PP Partido Progressista 2003 PDS>PPR>PPB>PP

Nova denominação do

PPB (Partido

Progressista Brasileiro),

cuja origem é o PDS

(Partido Democrático

Social).

12 PDT Partido Democrático

Trabalhista 1981

13 PT Partido dos

Trabalhadores 1982

14 PTB Partido Trabalhista

Brasileiro 1981

15 PMDB Partido do Movimento

Democrático Brasileiro 1981

16 PSTU

Partido Socialista dos

Trabalhadores

Unificados

1995

17 PSL Partido Social Liberal 1998

19 PTN Partido Trabalhista

Nacional 1997

20 PSC Partido Social Cristão 1990

21 PCB Partido Comunista

Brasileiro 1994

22 PR Partido da República 2006 PL+Prona>PR

Fruto da fusão do PL

(Partido Liberal) com o

Prona (Partido de

Reedificação da Ordem

Nacional).

23 PPS Partido Popular

Socialista 1992 PCB>PPS

O partido é produto da

dissolução do antigo

PCB. Mantém o número

23, enquanto o novo PCB

é registrado com número

21.

27 PSDC Partido Social

Democrata Cristão 1997

28 PRTB Partido Renovador

Trabalhista Brasileiro 1997

29 PCO Partido da Causa

Operária 1997

31 PHS Partido Humanista da

Solidariedade 2000 PSN>PHS

Nova denominação do

PSN (Partido Solidarista

Nacional).

33 PMN Partido da Mobilização

Nacional 1990

Histórico

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36 PTC Partido Trabalhista

Cristão 2001 PJ>PRN>PTC

Nova denominação do

PRN (Partido da

Reconstrução Nacional),

antigo PJ (Partido da

Juventude).

40 PSB Partido Socialista

Brasileiro 1988

43 PV Partido Verde 1993

44 PRP Partido Republicano

Progressista 1991

45 PSDB Partido da Social

Democracia Brasileira 1989

50 PSOL Partido Socialismo e

Liberdade 2005

65 PCdoB Partido Comunista do

Brasil 1989

70 PTdoB Partido Trabalhista do

Brasil 1994

Anexo 2

Distritos eleitorais no estado de São Paulo: um ensaio de distritalização

O estado de São Paulo é representado na Câmara por 70 deputados federais, em uma proporção ideal de

590 mil habitantes para cada parlamentar. Apresentamos aqui uma proposta de recorte do território por aglutinação de

municípios em novas unidades territoriais que chamamos de distritos eleitorais (DEs).

A divisão foi feita levando em consideração que a organização do espaço se dá a partir de fatores diversos,

como a distribuição dos centros urbanos, sua hierarquia combinada à rede viária, os fluxos de pessoas, serviços e

mercadorias, os processos históricos e identitários, e, em muitos casos, a geomorfologia ou o ecossistema

predominante que definem os nódulos e tramas regionais. Em uma linha, buscou-se a coerência geográfica dos recortes

espaciais, com base na contiguidade territorial e respeito às identidades locais.

A atenção à questão regional pode ser o diferencial entre uma divisão geograficamente consistente e uma

repartição por mera aglutinação de unidades municipais. Vale insistir na própria conceituação corrente adotada pelos

geógrafos para território: porção espacial denominada, delimitada e apropriada, onde florescem ou reforçam-se os laços

identitários. A observância a esse preceito geográfico é bastante pertinente na medida em que se busca trabalhar não

com porções territoriais aleatórias, mas com um recorte factível baseado em critérios técnicos consistentes. Cremos

que, caso uma reforma eleitoral desse tipo fosse aprovada, a operacionalização se daria nesse sentido. Isso colocado,

será exposto como chegamos a essa divisão.

Regionalização paulista

Tomamos como ponto de partida as divisões regionais praticadas historicamente no estado. Na passagem

das décadas 1960/1970, no entanto, quando o modo ferroviário já perdera a hegemonia, instituiu-se, no âmbito do

executivo estadual, uma compartimentação regional calcada nos principais polos urbanos do estado. Denominadas

Regiões Administrativas, totalizavam 9 e, pouco tempo depois, passaram a 11. Subdividiam-se em unidades

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denominadas Sub-Regiões Administrativas, mas esse segundo recorte acabou não sendo assimilado. Na década de

1980, surgiu um novo desenho regional, composto de 43 unidades, na dimensão escalar aproximada das referidas sub-

regiões. Utilizada por todas as secretarias de estado, acabaram perdendo a força nas gestões seguintes, mas

permaneceram como referência técnica. Adequados os perímetros, as RGs (Regiões de Governo) passaram a ser

utilizadas como subdivisões das RAs.

Desde o início dos anos 1990, porém, o número de RAs passou para 15, com o desmembramento de

Ribeirão Preto (que resultou nas novas RAs de Franca, Barretos e Central) e a criação da RA de Registro. As RGs, por

sua vez, mantêm-se com o mesmo número de unidades, como demonstra o mapa da Figura 3:

Figura 3

Estado de São Paulo dividido em RAs e RGs

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Dada sua utilização no âmbito do planejamento, entre outras esferas da gestão estadual, as RAs e as RGs

seguem reforçando as identidades dos grandes e médios polos urbanos do estado após quatro décadas de utilização.

Assim, empregar as RAs como ponto de partida, ou, em alguns casos, as RGs, garantiria o lastro geográfico dos

distritos eleitorais propostos.

Uma segunda unidade de regionalização utilizada foi a Região Metropolitana (RM). A RM de São Paulo,

instituída no início dos anos 1970, por legislação federal, consagrou o que se conhecia, na época, como Grande São

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Paulo. Seu desenho, inclusive, foi integralmente contemplado pela estrutura regional acima referida: há uma RG e uma

RA coincidentes com a RMSP. O mesmo ocorre com a RM da Baixada Santista.

Distritos eleitorais

A primeira formatação de divisão do estado de São Paulo em distritos eleitorais foi o próprio desenho das

divisões acima expostas. Consideradas as RGs, obtém-se um total de 43 distritos eleitorais, variando o número de

habitantes entre 108 mil e 19,6 milhões. Todavia, tais recortes não atenderiam à demanda da pesquisa, pelo número de

unidades e pela defasagem existente entre os valores de população. Partiu-se, então, para o recorte das RAs, que

resultam no seguinte quadro: 15 unidades, variando entre 269 mil (Registro) e 19,6 milhões de habitantes (São Paulo),

com a mediana em 1,0 milhão (Bauru), como se vê na Figura 4:

Figura 4

Distribuição da população nos distritos

eleitorais coincidentes com os perímetros das RAs (São Paulo)

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Observou-se, todavia, que o desenho obtido compunha-se de unidades ainda bastante díspares, embora mais

equânimes do que na primeira situação. Assim, aglutinaram-se as unidades de menor contingente populacional e

dividiram-se algumas RAs. Foram mantidas as RAs de Sorocaba e São José dos Campos, fundindo-se Presidente

Prudente a Marília, Araçatuba a Bauru, Central a São José do Rio Preto, Barretos e Franca a Ribeirão Preto e, no litoral,

Registro a Santos, chegando-se a nove unidades. Com a divisão da RA Campinas em dois DEs (distritos eleitorais), tem-

se, assim, dez unidades, das quais a menor totaliza 1,8 milhão (Marília) e a mediana 2,3 milhões de habitantes

(Ribeirão Preto), mantendo-se a RMSP como a maior unidade, como apresentado na Figura 5:

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 1–32

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Figura 5

Distribuição da população nos distritos eleitorais

criados após aglutinação e subdivisão de Regiões Administrativas (São Paulo)

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Os últimos passos da elaboração cartográfica para a compartimentação do território paulista em DEs

focaram na RMSP, aglutinando-se os municípios no entorno da capital e dividindo-se o município de São Paulo. Para o

entorno da capital, chegou-se ao total de três DEs: Oeste (Osasco, de Francisco Morato a Juquitiba), Nordeste

(Guarulhos/Mogi das Cruzes) e Sudeste (região do ABC).

Para o município de São Paulo, apresentaram-se dois recortes válidos para compartimentação, os distritos

(96) e as subprefeituras (31). A opção recaiu sobre as segundas, por conta de eventual associação da logística eleitoral

aos equipamentos de organização da gestão municipal. Dentro do possível, aglutinaram-se os territórios das

subprefeituras conforme as tradicionais Zonas Cardeais, obtendo-se quatro distritos eleitorais: Norte (sete

subprefeituras ao norte do rio Tietê – de Perus a Vila Maria), Leste (sete subprefeituras a leste do rio Aricanduva – de

Penha a Cidade Tiradentes, mais São Mateus, num total de oito unidades), Sul (de Jabaquara a Campo Limpo e demais

subprefeituras até o extremo do município, num total de sete unidades) e Central, composta pelos territórios das nove

subprefeituras do arco sudoeste-sudeste (de Butantã a Aricanduva). Dessa forma, da compartimentação do território da

RMSP resultaram sete distritos eleitorais, como se demonstra na Figura 6:

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Figura 6

RMSP com municípios agrupados e o município de São Paulo subdividido em distritos eleitorais

subdividido em Distritos Eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Finalizada a definição dos DEs na RMSP, chegou-se ao desenho final do ensaio regional proposto, num total

de 16 unidades territoriais. Seus extremos demográficos são 1,8 milhão (DE de Marília) e 4,0 milhões (DE de

Campinas), posicionando-se a mediana em 2,55 milhões (Piracicaba/São Bernardo do Campo), como se pode conferir

na Figura 7. Percebe-se o equilíbrio demográfico obtido, conforme exibido na Figura 8, apesar das significativas

diferenças no tocante à extensão territorial das unidades:

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Figura 7

Estado de São Paulo dividido em novos distritos eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

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Figura 8

Distribuição da população de São Paulo nos novos distritos eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Distritos eleitorais no estado de Pernambuco: um ensaio de distritalização

A bancada pernambucana totaliza 25 representantes na Câmara Federal, numa proporção ideal de 352 mil

habitantes para cada deputado. Com território de dimensões 2,5 vezes menor que o paulista, Pernambuco também

concentra mais de 40% de sua população em sua maior RM, a do Recife.

Do mesmo modo que no caso de São Paulo, a divisão aqui proposta leva em consideração os diversos fatores

e elementos da organização do espaço, como distribuição e dimensão dos centros urbanos, rede v iária, processos de

ocupação, identidades historicamente construídas etc., sem perder de vista a contiguidade territorial e o possível

equilíbrio entre as partes. Diferentemente de São Paulo, porém, para Pernambuco levamos em conta a geomorfologia e

os grandes ecossistemas a ela associados, que se impõem na organização da economia e da cultura nordestinas.

Conforme já destacado, buscou-se aqui que os recortes tivessem consistência geográfica. Seguem os passos utilizados

na elaboração da divisão do estado em seis distritos eleitorais.

Regionalização pernambucana

A tradição acadêmica e a percepção popular do Nordeste oriental (do Rio Grande do Norte à Bahia) são

unânimes na compartimentação do espaço em Zona da Mata (a porção litorânea), Agreste (faixa intermediária) e Sertão

(a porção mais interiorana). A prática do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na divisão das micro e

mesorregiões geográficas consagrou essa terminologia, como demonstrado na Figura 9:

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Figura 9

Estado de Pernambuco dividido em micro e mesorregiões do IBGE

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Estudos mais recentes da organização geoeconômica nordestina, porém, apontam a importância dos centros

urbanos que se reforçaram nas últimas décadas, condição que levou, em muitos locais, à ruptura dos arranjos regionais

tradicionais. Exemplos são os projetos Regiões de Influência das Cidades, cuja última edição é de 2007, e Divisão

Urbano-Regional, de 2013, ambos publicados pela Coordenação de Geografia do IBGE.

O agrupamento de alguns municípios formando RMs também é uma prática relativamente nova. A RM do

Recife, instituída em 1973, tem sido bastante utilizada nos estudos de geografia, sociologia, economia etc., assim como

no planejamento das ações de governo. Reúne 14 municípios, totalizando 3,7 milhões de habitantes.

Em 2001, uma segunda RM foi instituída no estado, mas com terminologia distinta: por agrupar também

unidades municipais do estado da Bahia, foi denominada Região Administrativa Integrada de Desenvolvimento do Polo

Petrolina/PE e Juazeiro/BA, com sede em Petrolina. Contudo, nenhuma das duas RMs foi utilizada diretamente neste

estudo, como se detalha a seguir.

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Distritos eleitorais

Por questões demográficas e pelo critério de equilíbrio entre os DEs, decidiu-se por utilizar, como DE, apenas

a porção mais central e de conurbação mais densa da RM do Recife, nominalmente, os municípios de Recife, Olinda,

Paulista e Camaragibe. Os demais municípios somaram-se aos extrametropolitanos na composição dos outros dois DEs

litorâneos: Mata Sul e Mata Norte, como se pode conferir na Figura 10:

Figura 10

Região Metropolitana do Recife e entorno

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Observe-se que o DE de Mata Norte incluiu a microrregião Médio Capibaribe (Limoeiro), que faz parte dos

domínios do Agreste. No entanto, faz parte da área intermediária de influência do Recife, conforme o citado estudo do

IBGE de 2013, ou seja, mantém fortes laços com o território ao qual foi inserida.

Acertadas as unidades territoriais para a porção mais densa do estado, passamos ao Agreste e ao Sertão,

regiões de baixa densidade populacional e de importantes contingentes rurais. Os polos principais do interior

pernambucano são Caruaru, Garanhuns e Petrolina, e, em segundo nível, Arcoverde, Afogados da Ingazeira, Serra

Talhada e Araripina. A localização desses polos (Figura 11) consolidou o contorno dos distritos eleitorais aqui

propostos:

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Figura 11

Estado de Pernambuco e grandes polos do interior

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Caruaru e Garanhuns são centros urbanos do Agreste, Arcoverde fica na interface com o Sertão e os demais

são sertanejos. Na distritalização eleitoral proposta, Caruaru e seu entorno agrestino compõem um DE, Garanhuns se

junta a Arcoverde e Afogados da Ingazeira, e os demais – Serra Talhada, Araripina e Petrolina – formam o sexto distrito

eleitoral pernambucano. Dessa forma, obtivemos três DEs interioranos e três metropolitanos (ou macrometropolitanos),

como representado na Figura 12. Os valores demográficos dos DEs pernambucanos estão ordenados na Figura 13, que

expõe o equilíbrio entre as unidades:

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Figura 12

Estado de Pernambuco dividido em novos distritos eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

Figura 13

Distribuição da população de Pernambucano em novos distritos eleitorais

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE.

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Comparando-se com a divisão proposta para o estado de São Paulo, observa-se que os resultados são similares.

Entre os DEs paulistas, o menos populoso equivale à metade do segundo colocado, e em Pernambuco essa relação se

dá entre os dois extremos, com a particularidade de os quatro menores terem praticamente a mesma população. No

tocante à extensão territorial das unidades, resultaram grandes diferenças no estado de São Paulo, por conta da

extrema concentração demográfica da RMSP. Em Pernambuco, essa situação ocorreu apenas com o DE de Recife, cuja

extensão equivale aos DEs originários da divisão do município de São Paulo.

Patrick Silva - [email protected]

Andreza Davidian - [email protected]

Andréa Freitas - [email protected]

José Donizete Cazzolato - [email protected]

Submetido à publicação em junho de 2013.

Versão final aprovada em agosto de 2014.

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Financiamento de campanha e apoio parlamentar à

Agenda Legislativa da Indústria na

Câmara dos Deputados

Manoel Leonardo Santos Departamento de Ciência Política

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Federal de Minas Gerais

Mariana Batista da Silva

Dalson Britto Figueiredo Filho

Enivaldo Carvalho da Rocha Departamento de Ciência Política

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Federal de Pernambuco

Resumo: Qual é o efeito do financiamento de campanha sobre o comportamento do parlamentar? Este artigo analisa a votação dos

deputados federais brasileiros (1999-2007) em relação aos projetos de interesse da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Metodologicamente, o artigo combina estatística descritiva e multivariada para testar a hipótese de que quanto maior é o

financiamento de campanha pela indústria, maior é a cooperação do parlamentar com os interesses desse setor. Foram utilizados

análise de cluster e modelos de regressão logístico e de Poisson para estimar o efeito do financiamento de campanha sobre a

cooperação do parlamentar com o setor da indústria. Os resultados confirmam parcialmente a hipótese. Não foi encontrada relação

entre o financiamento da indústria e a cooperação dos parlamentares, mas confirma-se que a proporção de recursos corporativos

influencia positivamente a cooperação dos parlamentares brasileiros com os interesses da CNI, controlando por diferentes variáveis.

Esses resultados se alinham à literatura internacional sobre o tema, que encontra uma relação positiva entre contribuições de

campanha e comportamento congressual.

Palavras-chave: financiamento de campanha; comportamento legislativo; indústria; CNI

Abstract: What is the effect of campaign financing on the behavior of congressman? This article analyzes the vote of Brazilian federal

deputies (1999-2007) in relation to the projects of interest to the National Confederation of Industry (CNI). Methodologically, the

article combines descriptive statistics and multivariate analysis to test the hypothesis that, the higher the campaign financing by

industry, greater parliamentary cooperation with the interests of this sector. We use cluster analysis, logistic regression models and

Poisson to estimate the effect of campaign financing on cooperation. The results confirm the hypothesis partially. Relationship

between industry funding and cooperation of parliamentarians was not found, but it is confirmed that the proportion of corporate

resources influences positively the cooperation of Brazilian parliamentarians with the interests of the CNI, controlling by different

variables. These results align to the international literature about the subject that finds a positive relationship between campaign

contributions and Congressional behavior.

Keywords: campaign finance; legislative behavior; industry; National Confederation of Industry

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Introdução

A pressão de interesses privados sobre instituições governamentais para influenciar as decisões

públicas é um tema canônico na ciência política. No que diz respeito aos estudos sobre o Congresso e os

grupos de interesse, muitos trabalhos conferem atenção ao impacto das atividades desses grupos sobre o

comportamento parlamentar. Grande parte da literatura procura responder às seguintes questões: 1) como e

em que medida as doações de campanha influenciam as decisões dos congressistas? e 2) como e em que

medida as atividades de lobby influenciam as ações dos parlamentares? (SMITH, 1995). Isso quer dizer que

tanto o financiamento de campanha quanto a atividade de lobby são operacionalizados como variáveis

independentes, tendo o comportamento do parlamentar como variável dependente.

Especificamente em relação ao efeito do financiamento de campanha, alguns autores encontram

que as contribuições, principalmente aquelas feitas pelos PACs1, influenciam o comportamento dos

congressistas2. Em contrapartida, alguns especialistas argumentam que, quando devidamente elaborados,

os modelos explicativos mostram que as contribuições de campanha não influenciam o comportamento, ou

seja, não exercem efeito significativo sobre os votos dos parlamentares3. Entre esses dois extremos, há

trabalhos que encontram resultados menos conclusivos, argumentando que há dependência entre as

variáveis apenas sob determinadas condições específicas, como, por exemplo, o efeito do financiamento

sobre o comportamento seria condicional à ideologia moderada do parlamentar4.

Comparativamente, seja em bases teóricas ou empíricas, o Brasil carece de estudos sobre o efeito

do financiamento de campanha no comportamento parlamentar. A literatura nacional se limita a analisar o

efeito do financiamento sobre o desempenho eleitoral dos candidatos (PEIXOTO, 2004; 2008; 2014; LEMOS;

MARCELINO; PEDERIVA, 2010; PORTUGAL; BUGARIN, 2003; CERVI, 2009). Na arena legislativa, Mancuso

(2007) foi pioneiro em investigar sistematicamente o sucesso de um grupo de interesse no Congresso

Nacional. Por sua vez, Santos (2011) analisou a influência do lobby do setor industrial nos resultados

políticos que emergem da Câmara dos Deputados. Mas nenhum desses trabalhos considera o efeito do

financiamento de campanha sobre o comportamento do parlamentar, que é exatamente o objeto deste

artigo.

Para enfrentar a tarefa, foram analisadas as votações nominais em 13 matérias legislativas na

Câmara dos Deputados. As votações foram realizadas entre 1999 e 2007, e todas as matérias selecionadas

fazem parte da Agenda Legislativa da Indústria, por meio da qual a CNI (Confederação Nacional da

Indústria) torna público seu posicionamento sobre matérias prioritárias de interesse do setor.

1 Political Action Commitee. Em 1974, com base no Feca (Federal Election Campaign Act de 1971), a Suprema Corte norte-americana

regulamentou a formação desses Comitês como forma de legalizar as contribuições de grupos de interesse. Para uma detalhada

evolução da legislação eleitoral, ver Corrado (2005). Para uma discussão aplicada, ver Grier e Munger (1993). 2 Para alguns trabalhos que identificam efeito positivo do financiamento sobre o comportamento parlamentar, ver: Silberman e

Durden (1976), Feldstein e Melnick (1984), Frendreis e Waterman (1985), Coughlin (1985), Schroedel (1986), Langbein (1986),

Wilhite e Theilmann (1986; 1987), Tosini e Tower (1987), Saltzman (1987), Jones e Kaiser (1987), Masters e Zardkoohi (1988),

Wilhite e Paul (1989), Langbein e Lotwis (1990), Neustadtl (1990), Hall e Wayman (1990), Davis (1993), Stratmann (1991; 1995;

1998; 2002), Durden, Shogren e Silberman (1991) e Holian e Krebs (1997). 3 Para exemplos de trabalhos que não identificam efeito do financiamento sobre a atuação parlamentar, ver: Kau e Rubin (1978),

Welch (1982), Chappell (1982), Wright (1985), Grenzke (1989), Dow e Endersby (1994), Bronars e Lott (1997) e Wawro (2001). 4 Para exemplos de efeito condicional do financiamento, ver: Chappell (1981), Johnson (1985), Hersch e McDougall (1988), Wright

(1990), Abler (1991) e Langbein (1993).

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SANTOS, M. L. et al. Financiamento de campanha e apoio parlamentar à Agenda...

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Metodologicamente, o artigo combina estatística descritiva e multivariada para testar a hipótese de que

quanto maior o financiamento de campanha pela indústria, maior a cooperação do parlamentar com os

interesses desse grupo. Para tanto foram utilizadas as seguintes técnicas: análise de cluster para identificar

a “bancada da indústria” (grupo de deputados que apresentam maior cooperação com os interesses da

indústria), regressão logística para identificar sob quais condições os deputados cooperam e regressão de

Poisson para identificar os fatores explicativos do grau de cooperação com os interesses da indústria.

Os resultados não confirmam que o financiamento específico da indústria influencia positivamente

a cooperação dos deputados com os interesses do setor, mas as análises apresentam um importante

resultado que mostra que o financiamento corporativo (predominantemente de empresas) exerce sim

influência positiva sobre a cooperação dos parlamentares em relação à agenda do setor. Esses resultados se

alinham à literatura internacional sobre o tema que encontra uma relação positiva entre contribuições de

campanha e comportamento congressual, controlando por fatores como a ideologia do parlamentar e o seu

background.

O artigo está assim dividido: a próxima seção fundamenta teoricamente a hipótese de trabalho. A

terceira seção resume o debate empírico sobre a influência do financiamento de campanha no

comportamento parlamentar. A quarta seção apresenta a metodologia e especifica o modelo explicativo e o

desenho de pesquisa. Em seguida apresentam-se os resultados. Por último, a conclusão sumariza a

discussão e aponta para as limitações e desafios da agenda de pesquisa sobre o tema.

Mercado de políticas: criação de renda ou extração de renda?

Existe uma vasta literatura que trata da relação entre Estado e interesses privados via regulação

(BUCHANAN; TULLOCK, 1967; PINCUS, 1975; STIGLER, 1971; POSNER, 1975; PELTZMAN, 1984; MCCHESNEY,

1997). Os principais objetivos dessa literatura são: mostrar que a regulação não é neutra e explicar quem

receberá os seus benefícios ou seus custos, que forma ela tomará e quais os seus efeitos sobre a alocação

de recursos. Para Stigler (1971), “regulation may be active sought by an industry, or it may be thrust upon

it. [...] as a rule, regulation is acquired by the industry and is designed and operated primarily for its benefit”

(STIGLER, 1971, p. 23). A Figura 1 ilustra o funcionamento do modelo de Stigler (1971)5:

5 Figura compatível pode ser encontrada originalmente em Tullock (1967).

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Figura 1

Teoria econômica da regulação

Fonte: Stigler (1971) e Olson (1965).

Na exposição clássica, D representa a demanda por um determinado bem ou serviço. No eixo vertical,

tem-se o preço $ e, no eixo horizontal, tem-se a quantidade Q. Se todas as empresas apresentarem os

mesmos custos marginais de produção C, a competição entre as firmas produzirá o resultado Qc ao preço

Pc. Logicamente, nenhuma firma terá interesse em vender seu produto a um preço maior, por exemplo, Pm,

já que sua lucratividade será negativamente influenciada. Todavia, é possível que um preço mais elevado

(Pm) do que o preço de equilíbrio (Pc) seja estabelecido por meio de uma regulação fixada pelo Estado,

através, por exemplo, de barreiras à entrada de novos competidores. A diferença no preço em relação à

quantidade vendida, representada pela área do retângulo PcPmBA, é renda artificialmente criada para os

produtores através da regulação.

O argumento de Stigler tem dois pressupostos básicos. Primeiro, o Estado como entidade coercitiva

suprema se constitui numa fonte potencial de recursos ou ameaças a toda atividade econômica. Segundo,

admite-se que os sistemas políticos, responsáveis pela disponibilização desses recursos e ameaças, são

racionalmente constituídos. Resumindo, “the industry which seeks political power must go to the appropriate

seller, the political party” (STIGLER, 1971, p. 12).

Assim, é estabelecida uma relação de troca. Os políticos, para se manterem no poder, necessitam de

recursos que vão de votos a contribuições financeiras. O grupo interessado na regulação necessita, para dar

um exemplo, de barreiras à entrada de novos competidores. A relação de oferta e demanda está modelada.

Como a regulação favorável prevê uma intervenção no processo político, e esta é bastante custosa, a

regulação tende a favorecer os grupos mais diretamente interessados, desde que possuam recursos e

estejam dispostos a pagar os custos6. Landes e Posner (1975) apresentam uma síntese da abordagem

econômica sobre os grupos de interesse. Para os autores,

6 Argumento baseado na teoria dos grupos sociais desenvolvida por Olson (1965).

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In the economists' version of the interest-group theory of government, legislation is supplied to

groups or coalitions that outbid rival seekers of favorable legislation. The price that the winning

group bids is determined both by the value of legislative protection to the group's members and

the group's ability to overcome the free-rider problems that plague coalitions. Payment takes

the form of campaign contributions, votes, implicit promises of future favors, and sometimes

outright bribes. In short, legislation is "sold" by the legislature and "bought" by the beneficiaries

of the legislation (LANDES; POSNER, 1975, p. 877).

Em síntese, na medida em que o Estado pode legalmente tributar seus cidadãos, e assim gerar

renda, ele se torna alvo dos interesses de diferentes grupos. Esses grupos buscam elevar a quantidade de

benefícios auferidos da ação estatal e, para isso, podem se engajar nas mais diversas formas de influenciar

as decisões governamentais. Esse é o modelo de criação de renda (rent creation model). Na terminologia de

Olson, esses grupos têm um claro incentivo seletivo positivo para influenciar as decisões públicas. Tem-se

aqui a primeira motivação econômica dos grupos de interesse para financiar campanhas eleitorais.

Uma importante contribuição a esse debate foi feita por McChesney (1997) ao demonstrar que os

interesses privados não pagam apenas por favores políticos, mas principalmente para evitar desfavores

dessa natureza. A Figura 2 ilustra a essência do modelo de extração de renda:

Figura 2

Modelo de extração de renda (rent extraction model)7

O principal foco do modelo de extração de renda é que “não legislação” e “não regulação” são

vendidas no mercado político. Essa noção é simples: visto que o governo pode legalmente tributar e, dessa

forma, expropriar riqueza da sociedade, os políticos podem extorquir dinheiro de indivíduos e/ou grupos

privados sob a ameaça de expropriar os seus rendimentos. No original,

The rent-extraction model […] is essentially a model of extortion by politicians. They are paid

not to legislate. Status as a legislator confers property right not only to create rents but also to

7 Originalmente, em um dos seus trabalhos, McChesney (1997) utilizou tirinhas para ilustrar o funcionamento do seu modelo. Optou-

se por empregar neste artigo o mesmo recurso. A tirinha aqui reproduzida é da série Calvin and Hobbes (no Brasil, Calvin e Haroldo)

de autoria de Bill Watterson, que criou a série em 1985 e teve seu trabalho publicado em mais de 2 mil jornais no mundo inteiro

durante mais de dez anos.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 33-59

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impose costs that would destroy private rents. In order to protect these returns, private owners

have an incentive to strike bargains with legislators, as long as the side payments to politicians

are lower than the losses expected from the law threatened (MCCHESNEY, 1997, p. 41).

Por exemplo, o governo pode anunciar o aumento de uma alíquota específica. No modelo de

extração de renda, os produtores que seriam prejudicados pela regulação pagarão para evitar a expropriação

de seus rendimentos8. A Figura 3 ilustra o funcionamento desse modelo:

Figura 3

Modelo de extração de renda para bens substitutos9

Fonte: McChesney (1997).

Fonte: McChesney (1997).

Na Figura 3, P1 e Q1 representam o mercado em equilíbrio. Com a imposição de novos custos

(regulação) sobre o bem X, o custo marginal de produção é positivamente afetado, influenciando

negativamente a oferta S1 que passa a ser S2. O efeito desse procedimento é o aumento do preço. Em um

segundo momento, caso o aumento seja repassado para os consumidores, a demanda pelo bem ou serviço

sofrerá decremento (Q1 Q2). Como X e Y são bens substitutos, os compradores consumirão mais de Y. A

conclusão lógica do modelo de rent extraction é que os produtores que serão prejudicados pela regulação

pagarão para evitar a expropriação de seus rendimentos10.

8 McChesney (1997) afirma que “no one would be so naive as to think that the contributions and tax relief are mere coincidences,

causally unrelated. The cash pours in as long as taxation is on the legislative agenda, with money being matched by forbearance in

taxing” (MCCHESNEY, 1997, p. 64). 9 Dois bens para os quais, tudo o mais mantido constante, o aumento no preço de um deles aumenta a demanda pelo outro. Por

exemplo, manteiga e margarina; álcool e gasolina etc. 10 Para Olson (1965), uma empresa de determinado setor industrial quererá evitar que novas empresas venham compartilhar de seu

mercado e desejará que o maior número possível de empresas já no setor saia dele. Ela quererá que o grupo de empresas de seu

setor industrial se reduza até que sobre de preferência apenas uma empresa: ela. Esse é o ideal de monopólio (OLSON, 1965, p. 49).

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Além disso, para que os políticos sejam pagos para não legislar, as ameaças devem ser críveis,

pois, caso contrário, haveria poucos incentivos para dissuadir a ação do rent extractor. Nas palavras de

Shavell (1993),

a person making a threat faces a double problem. On one hand, his threat must be credible.

The intended victim must believe there to be a significant chance that the threat will be carried

out if and only if he does not accede to it; otherwise, he may have insufficient reason to bow to

the will of the threatener. On the other hand, the victim must believe that if he does reward the

threatener, he, the victim, will gain thereby and not merely set himself up for further threats

[…]. Difficulties in making threats combined with possibilities of miscalculation lead to the risk

that demands will be rejected and threats actually executed (SHAVELL, 1993, p. 1878).

Tem-se aqui a segunda motivação econômica dos grupos de interesse para financiar campanhas

eleitorais. O financiamento buscaria uma não ação ou não intervenção. Para usar os termos do autor, seria

money for nothing (MCCHESNEY, 1997). Em vez de buscar a compra de um benefício, o financiamento de

campanhas buscaria apenas livrar a indústria de uma intervenção negativa.

Em síntese, seja para se beneficiar das decisões públicas (modelo de criação de renda), seja para

evitar desfavores políticos (modelo de extração de renda), os grupos de interesse procurarão influenciar as

decisões governamentais. Teoricamente, o primeiro modelo prevê que grupos de interesse trocam

financiamento de campanha por legislação favorável. O segundo modelo prevê que os grupos trocam

financiamento de campanha por “não ação”. Este artigo analisa a relação entre o financiamento de

campanha e o comportamento dos parlamentares na votação de matérias de interesse da indústria. A

cooperação com a indústria é observada tanto quando o parlamentar vota a favor de uma matéria que é

favorável à indústria como quando o parlamentar vota contra uma matéria que é desfavorável a ela. Dessa

forma, adota-se uma estratégia metodológica capaz de avaliar, simultaneamente, as previsões dos dois

modelos, pois a hipótese testada é de que o financiamento de campanha influencia positivamente a

cooperação do parlamentar, seja através da aprovação de políticas favoráveis à indústria, seja através da

rejeição de políticas que prejudiquem o setor.

Contudo, antes da análise, é importante reportar os resultados encontrados na literatura empírica

sobre a relação entre financiamento de campanha e comportamento parlamentar. Esses resultados nos

oferecem fundamentos teóricos que ajudarão a entender as motivações e os limites da hipótese aqui testada.

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Financiamento de campanha e comportamento parlamentar: resultados controversos

A influência de grupos de interesse sobre o comportamento dos parlamentares mobiliza uma vasta

literatura e muitas questões. Quais grupos são bem-sucedidos na tentativa de influenciar os legisladores?

Por quê? Quais são as estratégias de influência? Que outros fatores determinam o comportamento dos

parlamentares além da influência? A breve revisão a seguir busca mapear as principais variáveis explicativas

do enigma da influência dos grupos de pressão sobre o comportamento dos parlamentares, com a finalidade

de fundamentar teoricamente o modelo explicativo proposto e testado empiricamente neste artigo.

O argumento central da literatura sobre a influência de grupos de pressão no comportamento dos

parlamentares está numa relação de troca (STIGLER, 1971): os políticos, para se manterem no poder,

precisam de apoio. O grupo demanda políticas favoráveis. Dessa forma, são duas as principais variáveis

explicativas para acesso e influência dos grupos de interesse. A primeira procura estimar, com base no

financiamento de campanha, em que medida as contribuições financeiras determinam o comportamento dos

deputados. Já a segunda foca especificamente nas atividades de lobby.

No que diz respeito ao financiamento de campanha, que nos interessa mais de perto neste artigo, o

senso comum costuma aceitar o argumento que sugere que o financiamento de campanha influencia

fortemente as decisões legislativas dos membros do Congresso e que isso contribui para a

sobrerrepresentação de interesses especiais e a sub-representação dos interesses dos grupos com menos

recursos. Contudo, a revisão dos resultados mais relevantes mostra um campo bastante controverso.

Segundo Wawro (2001), a razão de ser desses resultados é que “correlação” é diferente de “relação de

causa e feito”. Isso porque é natural que as contribuições sejam dadas a linked-mind parlamentares, o que

explica a correlação. O problema é, portanto, identificar a presença e, principalmente, a direção da

causalidade. De acordo com o autor,

one of the most vexing problems is that it is difficult to untangle the effect of contributions from

the effect of a member’s predisposition to vote one way or another. That is, PACs contribute to

members of Congress who are likely to vote the way PACs favor even in the absence of

contributions. A PAC donation to a friendly member might be misconstrued as causing her to

vote a particular way, when in fact she would have voted that way to begin with (WAWRO, 2001,

p. 563-564).

Segundo levantamento de Figueiredo Filho (2009), 60,5% da produção encontra efeitos

estatisticamente significativos das contribuições de campanha sobre o comportamento legislativo,

totalizando 23 artigos. No outro oposto, destaca-se que cerca de 23,7% da produção não encontra

resultados significativos de que as doações de campanha feitas por grupos de interesse influenciam o

comportamento parlamentar. Finalmente, observa-se que em 15,8% dos casos as inferências oferecidas

sugerem resultados mistos (mixed results) em que o efeito do financiamento de campanha é condicional,

isto é, o efeito do financiamento depende de características da matéria ou do parlamentar. Alguns fatores

condicionantes podem ser ressaltados.

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O primeiro conjunto de estudos sugere que contribuições de campanha garantem demasiado

acesso aos congressistas só quando o tema tem pouca visibilidade (SABATO, 1985; LANGBEIN, 1986;

NEUSTADTL, 1990; CLAWSON, 1999), quando a opinião pública é indiferente ao tema ou se posiciona na

mesma direção da demanda do grupo de interesse que efetuou a doação (WELCH, 1982; MALBIN, 1984;

DENZAU; MUNGER, 1986; WILHITE, 1988) e, ainda, quando o público estiver dividido, indiferente ou ignorante

sobre o assunto (WELCH, 1982; MALBIN, 1984; DENZAU; MUNGER, 1986; FRENDREIS; WATERMAN, 1985;

LANGBEIN; LOTWIS, 1990; MAGLEBY; NELSON, 1990; SCHLOZMAN; TIERNEY, 1986; WILHITE, 1988; CONWAY,

1991). De maneira bastante resumida, os autores sustentam que a exposição do tema na opinião pública

relativiza a influência do financiamento de campanha sobre as ações dos parlamentares porque, sob o

escrutínio do grande público, a matéria desperta o interesse de múltiplos grupos, que são afetados direta ou

indiretamente pela decisão. No limite, esses múltiplos interesses aumentam os custos de o parlamentar

apoiar uma matéria que porventura desagrade à sua constituency.

O segundo conjunto de estudos defende que doações mudam a direção do voto do parlamentar

(persuasão), principalmente em temas técnicos e especializados (SABATO, 1985; GODWIN, 1988; CHOATE,

1990). O argumento é relativamente simples: temas técnicos e especializados geralmente passam ao largo

do interesse público. Além disso, a complexidade torna muito mais difícil o escrutínio por parte de grupos

menos informados. Nesse sentido, a assimetria de informação garantiria maior influência aos grupos com

mais recursos.

O terceiro sugere que demandas particulares são atendidas em detrimento do interesse público

quando os benefícios são concentrados para os grupos de interesse e os custos são difusos pelo eleitorado

como um todo (STRATMANN, 1991; FLEISHER, 1993; CLAWSON, 1999). O fundamento por trás do argumento

encontra raiz no clássico problema de ação coletiva que, segundo Olson (1965), está fortemente relacionado

ao tamanho do grupo. Grupos maiores têm mais dificuldades para resolver problemas de ação coletiva do

que os grupos menores. Nesse sentido, os grupos menores e mais organizados estão em condições de

perceber claramente o que lhes afeta, e ensejar ações coletivas para defender seus interesses particulares.

O quarto grupo de trabalhos defende que o financiamento de campanha vai influenciar o

comportamento dos parlamentares apenas quando se trata de uma issue com pouca clivagem. Em geral,

uma questão não partidária e não ideológica (CONWAY, 1991; FRENDREIS; WATERMAN, 1985; MAGLEBY;

NELSON, 1990; MALBIN, 1984; MUTCH, 1988; SCHLOZMAN; TIERNEY, 1986; WELCH, 1982; WRIGHT, 1985).

Esse argumento leva em consideração que o partido importa para o parlamentar e, mais que isso, que ele

age segundo princípios ideológicos que orientam suas posições. Nesse sentido, somam-se ao financiamento

de campanha outros determinantes a orientar o comportamento parlamentar.

O quinto e último argumento condiciona a influência do financiamento de campanha a outras ações

por parte do grupo. O argumento é de que o financiamento de campanha só gerará os efeitos esperados

quando o grupo de interesse, além de fazer doações de campanha, também fizer lobby (SABATO, 1985;

EVANS, 1986). Em termos resumidos, o financiamento de campanha per se não garante influência, pois ele

depende do reforço do lobby.

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Como se vê, a literatura mostra uma série de condições para que se configure a influência do

financiamento de campanha sobre o comportamento do parlamentar, minimizando a sua capacidade de se

traduzir diretamente em apoio parlamentar. Não é possível incluir como variáveis de controle todos os

condicionantes elencados pela literatura, principalmente os que identificam as características da matéria,

por ainda não termos esse tipo de informação disponibilizada na literatura brasileira. Sendo assim,

incluímos dois fatores que influenciariam o comportamento parlamentar: a ideologia do deputado e seu

background. O objetivo é identificar o efeito do financiamento de campanha, dissociando fatores que os

tornariam já “predispostos” a cooperar com a indústria, como a sua ideologia e o background.

Além dessas três variáveis independentes, outras variáveis de controle também foram incluídas no

modelo. As relações esperadas, as hipóteses e as formas de operacionalização desses conceitos encontram-

se na próxima seção.

Metodologia

Para testar a hipótese da influência do financiamento de campanha sobre o comportamento

parlamentar, foram analisados os deputados federais brasileiros nas 51ª (1999-2002) e 52ª (2003-2007)

legislaturas. A cooperação com a indústria é observada pela votação do parlamentar de acordo com a

posição da CNI11, tendo como referência as informações do Legisdata12. No processo legislativo brasileiro

nem todas as matérias são votadas nominalmente, portanto, as proposições selecionadas correspondem a

dois critérios: 1) às matérias identificadas nas Agendas Legislativas da Indústria, a partir das quais se

verifica se ela é de interesse do setor e qual seu posicionamento sobre ela; e 2) às matérias que foram objeto

de votação nominal no Plenário da Câmara dos Deputados.

Em geral, o parlamentar vota a matéria, mas, sob certas circunstâncias, as votações nominais são

sobre requerimentos procedimentais e sobre artigos ou até mesmo termos específicos via “destaque para

votação em separado”. Como não é possível identificar a posição da CNI nessas situações, optou-se por

manter apenas as votações substanciais. A análise foca 13 matérias que obedecem a tais critérios nas duas

legislaturas em questão, perfazendo um total de 6.669 observações13.

Das 13 matérias, 1 é medida provisória, 3 são projetos de emenda à Constituição, 3 são projetos

de lei e 6 são projetos de lei complementar. Como exemplo dos temas envolvidos nessas matérias de

interesse da indústria podemos citar a Medida Provisória 107/2003, que altera a legislação tributária,

mudando a base de cálculo do Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do

Servidor Público (PIS/Pasep); o Projeto de Emenda à Constituição 407/2001, que prorroga a vigência da

11 Criada em 1938, a CNI reúne 27 federações de indústrias nos estados e no Distrito Federal e cerca de 1.300 sindicatos da

indústria. A capacidade de coordenação da CNI tem por catalisador um objetivo comum: o aumento da competitividade da indústria

nacional através da redução do Custo Brasil (MANCUSO, 2007). A demanda coletiva com vistas ao aumento da competitividade é

construída através de um processo articulado e de constante troca de informações, que tem por resultado final a Agenda Legislativa

produzida pela RedIndústria. A RedIndústria acompanha todas as iniciativas de interesse da indústria no Congresso e orienta a

atuação política da CNI. A Agenda Legislativa lista as proposições de interesse para garantir a competitividade da indústria,

promovendo o acompanhamento das propostas e divulgando o posicionamento e as sugestões da CNI (SANTOS, 2011). 12 Sistema de acompanhamento de proposições legislativas que a CNI utiliza para monitorar as atividades legislativas no Congresso

Nacional. Agradecemos à CNI que, numa atitude de transparência e de postura colaborativa, disponibilizou os dados, concedeu-nos

entrevistas e permitiu o acesso ao Legisdata. 13 Lista com as matérias aqui analisadas e os critérios de seleção pode ser encontrada no Anexo 1.

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Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF); e o Projeto de Lei de Conversão 72/2003,

que acrescenta dispositivos ao Código Tributário Nacional (CTN).

A posição da indústria quanto à matéria é classificada no Legisdata como convergente, convergente

com ressalvas, divergente com ressalvas e divergente. Para fins analíticos agrupamos as posições em

convergente e divergente. A cooperação com os interesses da indústria é identificada quando o deputado

vota de acordo com a demanda da CNI. Isto é, vota a favor quando a posição da indústria é convergente e

vota contra quando a posição da indústria é divergente.

O Quadro 1 sumariza as principais características do desenho de pesquisa com o objetivo de

garantir a replicabilidade dos resultados14:

Quadro 1

Desenho de pesquisa

População Deputados federais das 51ª (1999-2002) e 52ª (2003-2007) legislaturas, num total 1.171

parlamentares, totalizando 9.903 votos em plenário.

Técnicas Estatística descritiva, análise de cluster, regressão logística binária e regressão de Poisson.

Variáveis

Dependente (três especificações):

- Cooperação: assume valor 1 quando o deputado vota a favor do interesse da indústria e 0

quando vota contra. Unidade de análise: deputado i na matéria j.

- Bancada indústria: assume valor 1 para o cluster de maior cooperação com os interesses

da indústria e 0 para os demais clusters. Unidade de análise deputado i na legislatura j.

- Grau de cooperação: número de vezes que o deputado i votou a favor dos interesses da

indústria na legislatura j.

Variáveis Independentes:

- Financiamento da indústria: proporção do financiamento de campanha do deputado i na

legislatura j oriundo da indústria (SAMUELS, 2001a).

- Financiamento corporativo: proporção do financiamento de campanha do deputado i na

legislatura j oriundo das empresas em geral (SAMUELS, 2001a).

- Ideologia: posicionamento ideológico dos deputados na escala esquerda-direita (POWER;

ZUCCO, 2009).

- Background: variável dummy que assume valor 1 quando o deputado é classificado como

empresário da indústria e 0 em caso contrário (SANTOS, 2011).

Fonte: Elaboração dos autores.

14 Para King (1995), o padrão de replicabilidade requer a disponibilização de informação suficiente para compreender, avaliar e

replicar os resultados de um determinado trabalho sem informação adicional do autor do estudo. O componente básico do padrão de

replicabilidade é que o pesquisador deixe claro o passo a passo de como os dados foram coletados e analisados.

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Como mostra o Quadro 1, foram combinadas diferentes técnicas estatísticas: estatística descritiva,

análise de cluster, regressão logística e regressão de Poisson. Visando captar diferentes níveis de análise,

optou-se pela utilização de três especificações diferentes para a variável dependente (cooperação do

parlamentar com a indústria). Na primeira, a matéria é a unidade de análise, e é observado se o deputado

coopera ou não coopera com os interesses da indústria. Nesse caso, trata-se de uma variável qualitativa

binária que assume valor 1 quando o parlamentar vota a favor dos interesses da indústria e 0 quando vota

contra.

Na segunda especificação, a unidade de análise é o parlamentar. Trata-se de uma variável qualitativa

binária criada a partir da análise de cluster tendo como referência o número total de vezes que o deputado

cooperou com os interesses da indústria15. Inicialmente, foi utilizado o método de agrupamento hierárquico

e o quadrado da distância euclidiana como medida de distância. Posteriormente, foi utilizado o método de k-

means clustering e definimos k = 4 (número de clusters). Depois disso, os clusters foram classificados de

acordo com o nível de cooperação com as demandas da CNI: muito forte, forte, médio e fraco. O último

procedimento foi criar uma variável dummy que assume valor 1 para os deputados classificados no grupo de

maior cooperação (muito forte), denominados como pertencentes à bancada da indústria, e valor 0 para os

deputados classificados nos demais clusters.

Por fim, é utilizado o próprio grau de cooperação, ou seja, o número absoluto de vezes que o

deputado votou a favor dos interesses da indústria. Aqui se trata de uma variável de contagem. O uso de três

especificações da variável dependente tem por objetivo explicar a cooperação do parlamentar com a

indústria, controlando por características tanto da matéria quanto do parlamentar.

Para o caso das duas primeiras variáveis dependentes, o modelo de regressão logística é adequado

para estimar a probabilidade de o deputado cooperar com a indústria. Já a terceira especificação da variável

dependente, o grau de cooperação, constitui-se no número de vezes que o deputado votou com a indústria e

por isso se trata de uma contagem. Como essa variável apresenta somente valores positivos inteiros, o

modelo de regressão linear de mínimos quadrados ordinários não se mostra adequado, sendo o modelo de

regressão de Poisson mais apropriado (LONG; FREESE, 2001).

Duas especificações foram utilizadas para operacionalizar a principal variável independente (o

financiamento de campanha). A primeira especificação é a proporção do financiamento de campanha do

deputado i na legislatura j oriundo da indústria. No modelo, essa variável denomina-se proporção da

indústria. A segunda especificação é a proporção do financiamento de campanha do deputado i na

legislatura j oriundo do setor corporativo como um todo (todas as doações de pessoa jurídica). No modelo,

essa variável denomina-se proporção corporativo. A opção por duas especificações para a variável

independente se justifica porque não se conhece a fundo os mecanismos de financiamento de campanha no

Brasil, mesmo em se tratando de dados oficiais de financiamento. Nesse sentido, as duas especificações

ajudam a explorar mais amplamente o fenômeno. Os dados de financiamento de campanha foram

15 O processo para identificação da “bancada da indústria” de acordo com o grau de cooperação com a indústria por meio da análise

de cluster é apresentado no Anexo 2.

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gentilmente cedidos por Samuels (2001b)16. Como afirmado anteriormente, espera-se que, quanto maior for

a proporção de financiamento da indústria e do financiamento corporativo na receita do candidato, maior

será sua cooperação com o setor.

Duas outras variáveis independentes compõem o modelo explicativo: a ideologia e o background do

parlamentar. O posicionamento ideológico dos deputados na escala esquerda-direita foi atribuído com base

nos dados de Power e Zucco (2009). A escala vai de 1 a 10, sendo totalmente de esquerda o parlamentar na

posição 1 e totalmente de direita o parlamentar na posição 10. Já a variável background está especificada

como uma dummy, que assume valor 1 quando o deputado é classificado como empresário da indústria e 0

em caso contrário (SANTOS, 2011)17. Quanto mais à direita no espectro ideológico, maior será a cooperação

do deputado com o setor. E ser empresário da indústria deve estar positivamente relacionado com a

cooperação desse deputado com o setor.

Dadas as características do sistema político brasileiro, marcado pelo papel preponderante do Poder

Executivo no processo legislativo e a alta disciplina partidária, algumas variáveis de controle precisaram ser

consideradas. No caso do modelo logístico em que a unidade de análise é o voto do deputado na matéria,

foram incluídas variáveis de controle sobre a matéria: “Origem” assume valor 1 quando o projeto é de

inciativa do Executivo e 0 quando é do Legislativo e “concordância” assume valor 1 quando a CNI e o

Executivo têm o mesmo posicionamento e 0 quando o Executivo e a CNI discordam quanto à matéria.

Quanto à disciplina, “Disciplinado” indica que o deputado segue a indicação do seu líder partidário. No caso

do modelo Poisson, é incluído um controle adicional que indica o número de vezes que o deputado votou

naquela legislatura (para controlar pelo fato de os parlamentares votarem em números diferentes de

matérias ao longo da Legislatura). A próxima seção apresenta os resultados. Foram incluídos em todos os

modelos os controles da legislatura.

Resultados

Como discutido, o presente artigo analisa a relação entre financiamento de campanha e

comportamento parlamentar. Três especificações diferentes da variável dependente são utilizadas: i) a

cooperação do parlamentar, tendo a votação na matéria como unidade de análise; ii) a classificação de

acordo com a cooperação com as demandas da CNI, sendo o grupo de maior cooperação classificado como

a bancada da indústria; e, por último, iii) o grau de cooperação, com base no número de vezes que o

parlamentar votou com os interesses da indústria. O Gráfico 1 apresenta a distribuição das três

especificações da variável dependente:

16 Agradecemos ao professor David Samuels, da Universidade de Minnesota (EUA), pela colaboração. Não há exagero em afirmar que

sem sua cooperação este artigo não seria possível. 17 Agradecemos ao professor Fabiano Santos (Núcleo de Estudos Congressuais – Necon – do Iesp-Uerj) e ao professor Renato Boschi

(Iesp-Uerj). O acesso ao banco de dados sobre as carreiras parlamentares no Brasil foi de extrema importância para a

operacionalização dessa variável.

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Gráfico 1

Distribuição das três especificações da variável dependente

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da Câmara dos Deputados.

O primeiro gráfico, no lado esquerdo, mostra que, considerando a votação dos parlamentares nas

matérias analisadas, 64% não cooperam e 36% cooperam com o setor. Quando considerada a participação

no grupo que coopera mais fortemente, a bancada da indústria, 13% podem ser classificados como

altamente cooperativos e 87% como não cooperativos. Por último, o terceiro gráfico mostra a distribuição do

número de votos a favor dos interesses da indústria. Os valores variam entre 0 e 8 votos com a indústria no

período de uma legislatura e o centro da distribuição está em 3 votos a favor. Mesmo apresentando

estrutura de contagem, a distribuição aproxima-se da normal. A ausência de sobredispersão indica que o

modelo de Poisson é o mais apropriado18. A Tabela 1 apresenta os resultados dos modelos de regressão:

18 A regressão de Poisson é usada em dados de contagem em que a média e a variância são iguais. Quando sobredispersão é

identificada, o modelo binomial negativo deve ser usado. O Stata 12 apresenta o teste para sobredispersão juntamente com o modelo

binomial negativo (LONG; FREESE, 2001).

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Tabela 1

Financiamento de campanha e comportamento parlamentar

Regressão logística

VD = Cooperação

Regressão logística

VD = Bancada19

Poisson

VD = N cooperação

Variável Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3 Modelo 4 Modelo 5 Modelo 6 Modelo 7

Constante 0,001*** (0,219)

0,000*** (0,220)

0,020*** (0,128)

0,020*** (0,487)

0,018*** (0,496)

– 0,658*** (0,103)

– 0,685*** (0,105)

Proporção indústria

0,886 (0,133)

– – 0,962

(0,583) –

– 0,055 (0,068)

Proporção corporativo

– 1,307*** (0,118)

1,198*** (0,081)

– 1,488

(0,292) –

0,117* (0,062)

Ideologia 1,603*** (0,026)

1,582*** (0,026)

1,201*** (0,017)

1,807*** (0,092)

1,774*** (0,094)

0,118*** (0,012)

0,112*** (0,012)

Background 1,393*** (0,163)

1,358* (0,163)

1,128 (0,106)

0,866 (0,421)

0,836 (0,422)

0,024 (0,075)

0,015 (0,075)

Origem (Exec.)

6,282*** (0,123)

6,244*** (0,123)

11,530*** (0,085)

– – – –

Concordância CNI/Exec.

86,692*** (0,099)

86,793*** (0,099)

– – – – –

Disciplinado 0,086*** (0,140)

0,086*** (0,140)

0,264*** (0,120)

0,065** (1,314)

0,065** (1,341)

– 0,869*** (0,167)

– 0,870*** (. 167)

Legislatura 52 2,777*** (0,103)

2,303*** (0,114)

3,675*** (0,079)

0,005*** (1,032)

0,004*** (1,020)

0,287*** (0,054)

0,209*** (0,059)

No de votos – – – – – 0,124*** (0,006)

0,123*** (0,006)

LogLikelihood 5192,72 5188,39 9299,59 55,85 554,00 – 1.680,17 – 1.678,72

LRChi2 – – – – – 567,76*** 570,67***

Pseudo R2 Cox e Snell

0,488 0,488 0,146 0,211 0,212 – –

Pseudo R2 Nagelkerke 0,667 0,667 0,199 0,378 0,381 – –

% Predito 86,8 88,0 68,8 85,0 85,2 – –

Pseudo R2 – – – – – 0,144 0,145

N1 8.037 8.037 8.037 960 960 960 960

Fonte: Santos (2011).

Modelo Logit: exp(b) reportado, erro-padrão entre parênteses.

Modelo Poisson: coeficiente reportado, erro-padrão entre parênteses.

*** significância P < 0,01; ** significância P < 0,05; significância *P < 0,10.

1 Conforme o Quadro 1, no total foram 9.903 votos em plenário e 1.171 parlamentares incluídos na análise. Os números ligeiramente

inferiores constantes nos modelos de regressão se devem à falta de informações sobre o financiamento de campanha de alguns

parlamentares.

19 Como a proporção de fracassos (0) é muito maior do que a proporção de sucessos (1), como visto no Gráfico 1, o modelo de

regressão logística pode ser problemático uma vez que superestima o fracasso e subestima o sucesso (KING; ZENG, 2001). Para

identificar se esse problema existe em nossas estimativas, um modelo de regressão logística para eventos raros foi estimado.

Contudo, os resultados apresentados foram os mesmos do modelo clássico aqui reportado.

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A proporção de recursos de campanha do parlamentar oriunda de contribuições da indústria

(proporção indústria) não foi estatisticamente significativa em nenhum dos modelos. Embora o sentido da

relação esperada tenha se confirmado como positivo nos modelos 1 e 4 (regressões logísticas), a variável

apresentou sinal contrário ao esperado teoricamente (β = –) no modelo 6 (de Poisson). Nesse sentido, o

resultado aqui encontrado está mais próximo da minoria (os 23,7% citados anteriormente) dos estudos que

não identificam efeito do financiamento de campanha sobre o comportamento parlamentar20. O resultado,

portanto, frustra a expectativa inicial.

O resultado, contudo, deve ser visto com cautela. É possível que esse resultado contraintuitivo seja

decorrente da presença de erros de mensuração sistemáticos21 e aleatórios22 da variável independente, que

são impossíveis de corrigir. O erro de mensuração sistemático sempre causa viés em estudos descritivos,

seja sobre-estimando seja subestimando o valor do parâmetro populacional. Por outro lado, ele não gera viés

nas estimativas do modelo de regressão. Por sua vez, o erro aleatório não produz viés em estudos

descritivos porque erros grandes são cancelados por erros pequenos. Logo, em média, tem-se uma

aproximação não viesada do parâmetro populacional. Em estudos de causa e efeito, a presença de erro

aleatório causa ineficiência, mas não há viés quando o erro é na variável dependente. Por fim, quando o erro

é na variável independente tem-se o pior cenário: viés e ineficiência das estimativas23. Ainda no que diz

respeito ao erro aleatório, é importante identificar onde ele ocorre. Quando o erro é na mensuração da

variável dependente, ocorrem problemas de ineficiência, mas as estimativas não são viesadas. Por outro

lado, quando o erro de mensuração é na variável independente, ocorrem problemas de ineficiência e viés nas

estimativas. Para Gerber (1994), "using an independent variable that is measured with random error will

certainly bias the estimated coefficients in a multiple linear regression and may even reverse the signs of the

coefficients" (GERBER, 1994, p. 1.107). King, Keohane e Verba (1994) afirmam que existe uma tendência a

subestimar o efeito da variável independente sobre a variável dependente.

Em relação ao erro sistemático, é conhecida a tendência ao sub-registro das contribuições de

campanha, mesmo não sendo esta de fato mensurada. Na medida em que todos os deputados têm, em

média, o mesmo incentivo para subestimar a quantidade de recursos recebidos, tem-se erro sistemático de

mensuração na variável independente. Estima-se que parte considerável dos recursos de campanha pode ser

feita pela via do caixa 2. Para piorar, é possível que tenhamos erros aleatórios na mensuração da variável

independente. No caso de contribuições corporativas, a classificação é feita simplesmente pela existência de

20 Para os estudos que não encontraram relação estatisticamente significativa entre contribuições de campanha e apoio parlamentar,

ver Kau e Rubin (1978); Welch (1982); Chappell (1982); Wright (1985); Grenzke (1989); Dow e Endersby (1994); Bronars e Lott

(1997) e Wawro (2001). 21 O erro sistemático ocorre quando existe algum padrão de erro na mensuração das variáveis dependentes e/ou independentes. Um

exemplo típico desse tipo de erro ocorre em pesquisas de survey quando os respondentes têm incentivos para subestimar ou

superestimar um padrão de resposta. Em uma pesquisa sobre comportamento sexual, o erro sistemático poderia ocorrer se existisse

a tendência de homens superestimarem a quantidade de parceiras e as mulheres subestimarem o número de parceiros. Em trabalhos

descritivos, erros sistemáticos de mensuração sempre produzem resultados viesados (KING; KEOHANE; VERBA, 1994). 22 Tecnicamente, o erro aleatório na variável dependente é absorvido pelo termo de erro da equação de regressão, aumentando a sua

variância. Um dos efeitos disso é a subestimação do coeficiente de determinação (r2). Ou seja, quando a variável dependente é

mensurada com erro aleatório, espera-se que a quantidade de variância explicada pelo modelo seja menor do que quando a variável

dependente é medida sem erro. As estimativas serão menos eficientes (maior variância), mas continuarão sendo não viesadas. 23 A preocupação em garantir medidas válidas e confiáveis deve ocorrer antes de estimar o modelo. Depois de estimar os coeficientes

é impossível avaliar se a presença de erros de mensuração afetou as estimativas. Para os interessados no assunto, ver Carmines e

Zeller (1979) e Sullivan e Feldman (1979).

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um CNPJ. No caso da contribuição pela indústria, é preciso identificar os ramos de atuação da empresa.

Dessa forma, a classificação se torna mais subjetiva e sujeita a erro. O principal efeito do erro aleatório é a

ineficiência e o viés nas estimativas.

Como dito acima, a variável financiamento de campanha foi operacionalizada de duas formas, na

intenção de explorar possíveis hipóteses sobre os mecanismos de financiamento de campanha no Brasil e

suas relações com o comportamento legislativo. Fenômeno desconhecido e ausente na literatura

especializada. A segunda especificação da variável independente é a proporção de recursos corporativos

recebidos pelo candidato (proporção corporativo). Essa nova variável ainda sofre com problemas de erro

sistemático, mas não de erro aleatório. Logo, as estimativas produzidas não são viesadas24. Os resultados

indicam que, controlando pelas demais variáveis, a proporção de recursos corporativos tem efeito positivo e

estatisticamente significativo sobre a probabilidade de cooperação (modelos 2 e 3). No modelo 2, cada

ponto percentual adicional do financiamento corporativo no total arrecadado pelo candidato resulta em

30,7% mais de chance de o deputado votar a favor da indústria. Já no modelo 3, cada ponto percentual

resulta em 19,8% mais de chance de o deputado cooperar com o setor. No modelo Poisson, o efeito

também é positivo e estatisticamente significativo (β = 0,117; erro-padrão = 0,062) (modelo 7). Por fim, no

modelo logístico da bancada, o efeito da proporção de recursos corporativos novamente foi positivo, mas

não significativo (Expβ = 1,488; erro-padrão = 0,292) (modelo 5). Em conjunto, esses resultados sugerem

que, mantendo diferentes variáveis constantes, a proporção de recursos corporativos influencia

positivamente a cooperação dos parlamentares brasileiros com os interesses da CNI. Em suma, é possível

afirmar que o dinheiro que vem das empresas influencia o apoio dos parlamentares à Agenda Legislativa da

Indústria.

Assim, embora de certa forma controversos, esses achados inéditos iniciam uma tentativa de superar

a lacuna na literatura nacional sobre comportamento parlamentar e devem ser colocados em testes tomando

como referência outras legislaturas e interesses.

No que diz respeito às demais variáveis independentes, o resultado foi, em parte, o esperado. A

ideologia, em todos os modelos, mostrou efeito positivo e estatisticamente significativo. Ou seja, quanto

mais à direita no espectro ideológico, maior é a cooperação com os interesses da CNI. O maior efeito

encontrado foi no modelo 4, que indica que a cada ponto mais à direita na escala de ideologia, que vai de 1

a 10, a chance de o deputado cooperar aumenta 80,7%. Esse resultado encontra reforço se pensado

conjuntamente com os achados de Santos (2011), que, no seu estudo sobre o efeito do lobby no

comportamento legislativo, demonstrou que a ideologia importa nas votações nominais relativas à Agenda

Legislativa da Indústria na Câmara dos Deputados.

Já no que diz respeito ao background do parlamentar, os resultados são menos conclusivos. Esse

background mostrou-se relevante apenas nos modelos 1 e 2 (regressão logística). No modelo 1, ser um

deputado empresário da indústria aumenta em 39,3% a chance de ele cooperar com o setor. No modelo 2,

24 Nas palavras de King, Keohane e Verba, "systematic measurement error which affects all units by the same constant amount causes

no bias in causal inference" (KING; KEOHANE; VERBA, 1994, p. 156).

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essa chance diminui para 35,8%. Muito embora não devamos ignorar que o sentido da relação foi o

esperado em todos os modelos (β = +).

No que diz respeito às variáveis de controle, os resultados são os esperados. A literatura de ciência

política no Brasil afirma que o Poder Executivo conta com poderes de agenda suficientes para aprovar sua

agenda legislativa (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2001; INÁCIO, 2006) e que a disciplina partidária é mais alta do que

em geral o senso comum defende (SILVA JUNIOR, 2008). Se considerarmos especialmente as duas variáveis

que controlam a participação do Poder Executivo no processo decisório (origem do Executivo e concordância

da CNI com o Executivo), o que se vê é que elas são estatisticamente significativas para os modelos 1, 2 e 3.

Ou seja, os deputados cooperam mais com o interesse da indústria quando o projeto é de autoria do

Executivo e quando o governo e o setor industrial estão alinhados sobre a proposição. Especial atenção deve

ser dada à magnitude dos efeitos dessas variáveis de controle sobre a variável dependente. Poder-se-ia

argumentar, mas sem razão, que a magnitude dos efeitos das variáveis de controle é mais expressiva do que

a dos efeitos das variáveis independentes e, portanto, que o modelo estaria mal especificado. Defendemos

aqui uma posição oposta. Defendemos que nossos achados, baseados nas variáveis independentes aqui

elencadas, têm relevância exatamente porque se mantêm mesmo controlando por essas variáveis

“consagradas” pela literatura, ainda que os erros sistemáticos e aleatórios anteriormente citados

comprometam sobremaneira sua estimação exata.

Em nosso favor temos, ainda, que tecnicamente as estatísticas de ajuste dos modelos sugerem

Pseudo R2 Cox e Snell de 0,488 e Pseudo R2 Nagelkerke de 0,667, que estão muito acima dos indicadores

de ajuste usualmente reportados em modelos de ciência política. Em particular, o modelo 2 apresentou

percentual de predição correta geral de 88%.

Para facilitar a interpretação substantiva dos resultados, optamos por reportar graficamente a

magnitude do efeito da variável de interesse nos diferentes modelos. O Gráfico 2 ilustra as informações25:

25 Estimações obtidas com o comando “margins” e gráficos com o comando “marginsplot” do Stata 12.

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Gráfico 2

Efeito do financiamento de campanha sobre o comportamento parlamentar

Fonte: Elaboração própria com base em dados da Câmara dos Deputados e Samuels (2001a).

O painel esquerdo apresenta o efeito da variável proporção de financiamento da indústria com erros

sistemáticos e aleatórios de mensuração, e os resultados não são diferentes de zero. No painel direito

podemos ver o efeito da proporção de financiamento corporativo sobre o comportamento parlamentar. A

tendência é positiva, independentemente do tipo de especificação da variável dependente. Sob nenhuma

hipótese estamos defendendo que o financiamento de campanha é o único, nem o mais relevante, preditor

do comportamento parlamentar no Brasil. Mas os resultados nos deixam confiantes de que este artigo

identificou mais um fator explicativo para o comportamento dos deputados federais: o tipo de financiamento

de campanha que recebem.

Conclusão

A hipótese sobre a influência do financiamento específico da indústria sobre o comportamento

parlamentar em matérias de interesse do setor não se confirmou, mas muitos resultados substantivos foram

reportados. O principal deles é que a proporção de recursos corporativos influencia positivamente a

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cooperação dos parlamentares brasileiros com os interesses legislativos da CNI. O dinheiro vindo dos

empresários para as campanhas dos deputados federais no Brasil importa para explicar como eles se

comportam nas votações nominais no parlamento. Em suma, quanto maior a proporção de recursos vindos

de empresas, maior é a cooperação dos deputados em matérias de interesse do setor produtivo.

Outro resultado relevante é a força da ideologia como preditor do comportamento parlamentar. O

resultado confirma achado semelhante de Santos (2011) quando estudou a força do lobby da indústria no

parlamento. Ademais, esse achado soma o fator ideologia aos determinantes do comportamento legislativo

comumente tratados pela literatura nacional, baseados na ideia de que o parlamentar age sob o

constrangimento do Poder de Agenda do Presidente (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2001; INÁCIO, 2006) e que a

disciplina partidária é mais alta do que em geral se espera (SILVA JUNIOR, 2008). Nesse sentido, o

comportamento parlamentar no Brasil ganha fatores explicativos complementares.

Por outro lado, o achado se alinha parcialmente com a literatura internacional que sustenta que a

influência do financiamento se dá “em geral numa questão não partidária e não ideológica”26. Sabe-se,

contudo, que muitas outras condições são sustentadas como relevantes pela literatura internacional. Isso

leva a crer que a inclusão de mais uma peça é um passo importante, mas o quebra-cabeça mais amplo

sobre comportamento parlamentar no Brasil ainda está por ser montado.

Outro achado interessante, mas de menor relevância e um pouco mais controverso, diz respeito ao

background do parlamentar. Ser um deputado empresário da indústria se mostrou relevante para o apoio ao

setor em alguns modelos testados, mas não em todos. Esse achado sugere que o financiamento de

campanha pode ser visto como um mecanismo de reforço ou, ainda, um indicador de autofinanciamento, já

que no Brasil o deputado é responsável pela arrecadação dos recursos para a própria campanha. Essas

interpretações, entretanto, carecem de maiores investigações sobre o padrão de financiamento de campanha

e sobre os mecanismos relacionados aos efeitos desse financiamento sobre o comportamento parlamentar

entre os membros do próprio grupo.

Metodologicamente, é necessário destacar o esforço de Samuels (2001c) em elaborar o primeiro

banco de dados capaz de desagregar as fontes de financiamento político no Brasil. Mais importante, temos

que registrar a sua iniciativa em compartilhar a base de dados, o que permite não só a replicabilidade dos

seus resultados, mas também favorece que outros estudos sejam realizados utilizando a mesma base de

dados. O mesmo pode ser dito em relação aos dados de Power e Zucco (2009), Santos (2011), e aos dados

cedidos por Fabiano Santos (Iesp-Uerj) e Renato Boschi (Iesp-Uerj). Fundamentalmente, este artigo só foi

possível porque esses pesquisadores compartilharam seus dados, tendo como objetivo coletivo o

aprimoramento do conhecimento científico.

Blalock (1974) afirmou que um dos principais obstáculos ao avanço da ciência são os problemas de

conceitualização e mensuração. Em particular, esses problemas são especialmente presentes nas ciências

humanas que geralmente mensuram conceitos não diretamente observáveis e convivem com fontes limitadas

de dados. Ou seja, uma mistura potencialmente desastrosa pela quantidade de erros sistemáticos e/ou

aleatórios que podem contaminar as medidas de interesse. Nosso artigo demonstrou que variáveis mal

26 Ver Conway (1991); Frendreis e Waterman (1985); Magleby e Nelson (1990); Malbin (1984); Mutch (1988); Schlozman e Tierney

(1986); Welch (1982) e Wright (1985).

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medidas reduzem a consistência das estimativas e comprometem a interpretação substantiva dos

resultados. Mas isso não quer dizer que devemos, como se diz coloquialmente, “jogar fora o bebê com a

água do banho". Pelo contrário, é importante que os pesquisadores reportem de forma exata e transparente

as suas dificuldades metodológicas de mensuração para que outros pesquisadores possam aprender com

elas, contribuir com essa mensuração e aprimorá-la. Afinal, medidas confiáveis e válidas constituem um

elemento fundamental na construção do conhecimento científico. Esperamos com este artigo colaborar com

a literatura sobre financiamento de campanha e comportamento parlamentar e em especial suscitar o

debate sobre novas formas de observação e mensuração desses conceitos.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 33-59

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Anexo 1

Descrição das matérias analisadas

Matéria Posição da CNI Resultado Origem Legislatura

MPV - 0107-2003 Divergente Aprovado Executivo 52

PEC - 0040-2003 Convergente com ressalvas Aprovado Executivo 52

PEC - 0227-2004 Divergente Aprovado Legislativo 52

PEC - 0407-2001 Divergente com ressalvas Aprovado Executivo 51

PL - 1617-1999 Convergente Aprovado Executivo 51

PL - 2401-2003 Divergente com ressalvas Aprovado Executivo 52

PL - 3115-1997 Convergente com ressalvas Aprovado Legislativo 51

PLP - 0001-1991 Convergente com ressalvas Aprovado Legislativo 51

PLP - 0010-1999 Convergente Aprovado Executivo 51

PLP - 0072-2003 Convergente Aprovado Legislativo 52

PLP - 0077-1999 Divergente Aprovado Executivo 51

PLP - 0114-2000 Divergente Rejeitado Executivo 51

PLP - 0195-2001 Divergente Aprovado Executivo 51

A escolha das matérias obedeceu a quatro critérios: 1) a matéria constar na Agenda Legislativa da Indústria da

CNI; 2) a matéria ser objeto de votação nominal; 3) ser possível reconhecer a posição do setor naquela matéria; 4)

disponibilidade de dados quanto ao financiamento de campanha, background, ideologia e demais variáveis de controle.

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Anexo 2

Apresentação da análise de cluster

Tabela 2

Análise de cluster

Cluster n % média dp cv

Muito forte 154 13,2 6,39 0,564 0,088

Forte 298 25,4 4,34 0,475 0,109

Médio 445 38,0 2,52 0,500 0,198

Fraco 274 23,4 0,61 0,488 0,800

Total 1.171 100,0 3,05 1,91 0,626

dp = desvio-padrão; cv = coeficiente de variação.

O grupo que coopera muito fortemente é formado por 154 observações (13,2%), tem uma média de cooperação

de 6,39 votos e um desvio-padrão de 0,564. No outro oposto, o grupo que coopera de forma fraca é composto por 274

ocorrências (23,4%), tem uma média de votos de 0,61 e um desvio-padrão de 0,488. Comparativamente, no que diz

respeito à heterogeneidade dos grupos, o grupo fraco apresenta a distribuição mais assimétrica com um coeficiente de

variação de 0,800, enquanto o grupo muito forte é o mais homogêneo (0,088). Em termos substantivos, isso quer dizer que

os deputados agrupados no cluster muito forte são mais parecidos entre si quando comparados com os parlamentares

conglomerados no cluster de cooperação fraca.

Manoel Leonardo Santos - [email protected]

Mariana Batista da Silva - [email protected]

Dalson Britto Figueiredo Filho - [email protected]

Enivaldo Carvalho Rocha - [email protected]

Submetido à publicação em março de 2014.

Versão final aprovada em novembro de 2014.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 60-86

Competição partidária e voto

nas eleições presidenciais no Brasil

Fernando Limongi Departamento de Ciência Política

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Universidade de São Paulo

Fernando Guarnieri Departamento de Ciência Política

Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Palavras-chave: eleições presidenciais; competição eleitoral; partidos, coordenação eleitoral; PT; PSDB

Abstract: In this article we show that changes in the support base for Lula that become more evident in the 2006 elections are

best explained by political variables. For this we turn to an original database, aggregated at the ballot station level, and we extend

the analysis including other parties and elections preceding that election. On the one hand, an explanation of what happened in

2006 needs to explain what happened in 2002, which is when the PT reaches the presidency. On the other hand, given the

compositional character of the vote, the explanation of what happens to the votes of the PT should explain what happens to the

votes of his opponents. We note that the success of the PT and the expansion of its base from 2006 occur after the implosion of

the PSDB in 2002 and the absence of competitive opponents. Explanations based on the advantages brought by the coming of PT

to power do not give an accurate account of these dynamics. We suggest that a better explanation should focus on the pree-

election coordination strategies adopted by the parties.

Keywords: presidential elections; electoral competition; parties; electoral coordination; Worker’s Party; Brazilian Social Democracy

Party

Resumo: Neste artigo mostramos que as mudanças na base de apoio a Lula, que se tornam mais evidentes nas eleições de

2006, são mais bem explicadas por variáveis políticas. Para isso recorremos a uma base de dados original, agregada por seção

eleitoral, e estendemos a análise incluindo outros partidos e as eleições que precederam aquele pleito. Por um lado, uma

explicação do que houve em 2006 precisa dar conta do que ocorreu em 2002, quando o PT chega à presidência. Por outro lado,

dado o caráter composicional do voto, a razão do que ocorre com os votos do PT deve explicar o que acontece com os votos de

seus adversários. Observamos que o sucesso do PT e a ampliação de sua base a partir de 2006 acontecem após a implosão do

PSDB em 2002 e a ausência de adversários competitivos. As explicações que associam o novo padrão de voto em Lula com sua

chegada ao poder não dão conta dessas dinâmicas. Sugerimos que um melhor esclarecimento deve privilegiar as estratégias de

coordenação pré-eleitoral adotadas pelos partidos.

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Introdução

Desde que Hunter e Power (2007) notaram a inversão da associação entre o IDH estadual e as

votações em Lula nos segundos turnos de 2002 e 2006, a polêmica tomou conta da comunidade

acadêmica. Neste artigo, recorrendo a uma base de dados original, agregada por seção eleitoral,

procuramos acrescentar novas dimensões a esse debate. Até o momento, a controvérsia tem se

concentrado exclusivamente nesse par de eleições e no PT, deixando de lado as eleições anteriores e os

demais competidores. Além disso, esse debate não tem dado a devida atenção à heterogeneidade

estadual das relações examinadas. Neste artigo, ampliamos o escopo da análise, oferecendo uma

contextualização mais ampla das eleições de 2006 e das transformações ocorridas naquele pleito.

As razões para ampliar o escopo da análise nos parecem óbvias. A variação da votação no PT

tem que ser vista levando-se em conta a votação dos demais competidores. Se a votação no partido

cresce, necessariamente, a dos demais deve decrescer, isto é, o partido está ganhando votos que antes

eram dados a outros partidos. Além disso, a política de alianças eleitorais do PT e de seu adversário

mais direto, o PSDB, também deve ser considerada, uma vez que ela define o número de partidos

disputando o voto dos eleitores. As ausências de Garotinho e Ciro em 2006 levam necessariamente a

uma redistribuição de votos entre o PT e o PSDB que influencia a composição regional e social do voto

nesses dois partidos.

A necessidade da ampliação da série temporal também nos parece dispensar maiores

considerações. Afinal, o PT participou e foi derrotado em três eleições consecutivas antes de chegar ao

poder. Para vencer em 2002, necessariamente, Lula deve ter atraído eleitores que não o sufragaram nas

eleições anteriores. Logo, o PT não poderia ter chegado ao poder com o apoio de suas bases tradicionais,

quaisquer que sejam elas. Como Lula obteve praticamente a mesma proporção de votos nas duas vezes

em que foi eleito, segue que os votos ganhos anularam os perdidos. Portanto, se houve mudança das

bases sociais do PT, esta se deve ao duplo movimento de ganhos e retração em diferentes grupos.

A integração dos diferentes elementos que trazemos para a análise nos leva a dar maior peso

explicativo a variáveis de natureza política. Nosso objetivo é mostrar que a estrutura da competição –

quais são os candidatos e quais as alianças estaduais que os sustentam – influi no desempenho tanto do

PT quanto do PSDB. A base social do eleitorado de um e de outro é definida conjuntamente pela

competição pelo voto. Os retornos eleitorais das políticas públicas adotadas pelo governo, como, por

exemplo, o Programa Bolsa Família, também devem ser entendidos tomando por referência esse

contexto. O sucesso eleitoral desse programa, assim como o de outros, depende da incapacidade dos

competidores em conquistar esses eleitores com base em outros apelos.

O artigo está organizado conforme o que segue. A próxima seção visa justificar a adoção da

perspectiva apresentada acima a partir de uma análise exploratória da relação entre as votações do PT

em 2002 e 2006. Recorrendo a um modelo hierárquico, mostramos que a relação encontrada por Hunter

e Power (2007) e demais pesquisadores encobre uma significativa heterogeneidade estadual. Em

realidade, são poucos os estados em que se observa a relação negativa entre as votações do PT nas duas

eleições. Na maioria dos estados a relação que encontramos é positiva.

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A terceira seção procura qualificar a importância conferida ao Programa Bolsa Família para dar

conta do perfil da votação em Lula em 2006. A votação do PT na maioria dos estados das regiões Norte

e Nordeste foi excepcional, bem acima da média do restante do país. O Bolsa Família explica parte desse

desempenho, mas não tudo. Chamamos atenção para um aspecto óbvio e não observado no debate: a

recuperação do PSDB entre 2002 e 2006. Do ponto de vista regional, essa recuperação é a imagem

invertida do que se passa com o PT. O PSDB se recupera nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, mas

não na Nordeste. A distribuição regional do desempenho dos dois competidores diretos não se resume ao

Bolsa Família ou a qualquer outra política. Na realidade, é preciso tomar o Programa Bolsa Família e as

demais políticas sociais perseguidas pelo governo como uma faceta da competição por votos.

Armados com as indagações levantadas anteriormente, a quarta seção amplia o horizonte

temporal da análise, incluindo as mudanças ocorridas entre 1994 e 2002 no cenário. Basicamente, para

cada par de eleições, pode se construir uma matriz de transição de votos entre eleições consecutivas.

Obviamente, perdas e ganhos entre partidos se anulam. Assim, o sucesso do PT é o fracasso do PSDB e

assim por diante. Os candidatos presentes ou ausentes em pares de eleições influenciam o

comportamento desses agregados. O fato é que a estrutura da competição em 2002 e 2006 foi muito

distinta. No primeiro caso, PT e PSDB enfrentam competidores de peso, Garotinho do PSB e Ciro Gomes

do PPS, ausentes em 2006, quando a eleição se torna praticamente bipartidária. Na realidade, o aspecto

mais marcante da eleição de 2006 é a recuperação do PSDB, cuja votação no primeiro turno cresce 75%.

Se em 2002 Serra ficou apenas 5,3% acima de Garotinho, em 2006 a vantagem de 35% que Alckmin

obteve sobre Heloísa Helena pode ser tida como verdadeiramente astronômica. A distribuição regional e

social da votação de Lula e de Alckmin deve ser considerada de forma integrada. Por que o PSDB

reconquistou o voto de certos grupos de eleitores e não de outros?

A última seção recupera os diversos pontos deixados em aberto nas seções anteriores e oferece

as conclusões a que chegamos. As mudanças das bases de apoio ao PT entre 2002 e 2006 não podem

ser examinadas sem que se olhe para as mudanças ocorridas entre 1998 e 2002 e, além disso, sem que

se leve em conta a presença/ausência de outros candidatos e seus resultados. Sobretudo, é impossível

pensar no que ocorre com o PT sem considerar conjuntamente os resultados obtidos pelo PSDB. Em

última análise, essas conclusões beiram o óbvio, uma vez que se baseiam na premissa de que eleições

envolvem a competição pelas preferências dos eleitores. O que um ganha o outro perde.

A heterogeneidade entre e dentro dos estados: o PT em 2006 e 2002

Hunter e Power (2007, p. 3) registraram uma “mudança histórica no apoio eleitoral a Lula”.

Segundo os autores, a base social da votação no PT teria migrado em direção aos eleitores de mais baixa

renda e com menores níveis de escolaridade, localizados, sobretudo, nos estados nordestinos. Até então,

sustentam os mesmos autores, o apoio eleitoral ao PT estaria concentrado entre eleitores com maior

nível de escolaridade, residentes nos “estados urbanizados e industrializados do Sul e do Sudeste”. Para

comprovar o que chamaram de uma “enorme inversão geográfica”, os autores apresentam um gráfico

cruzando a variação da votação de Lula (swing) no segundo turno de 2006 em relação ao de 2002 com o

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IDH dos estados. A relação é negativa, isto é, o swing pró-Lula foi tanto maior quanto pior se apresentou

a condição social do estado. A pergunta que lançam ao final da sua análise – “Como dar conta dessa

mudança dramática?”, ou seja, “Como explicar que Lula tenha tido uma votação ancorada em estados

com “maiores tradições oligárquicas e com sistemas menos competitivos?” (2007, p. 6) – definiu a

agenda de pesquisas posteriores.

A constatação feita por Hunter e Power (2007) é mais limitada do que as questões lançadas

sugerem. Os dados apresentados por eles – variações nas proporções da votação obtida por estados –

são deveras limitados. A relação negativa entre a variação dos swings estaduais e o IDH não nos diz nada

da relação entre indicadores sociais e voto no interior de cada estado. Ainda que os achados dos autores

tenham apontado para a diversidade regional, nas análises subsequentes essa variação deixou de ser

objeto de tratamento sistemático.

A análise seminal de Hunter e Power indica que a especificação de um modelo estatístico deve

ser capaz de distinguir a variação média da votação do partido entre os estados. A nosso ver, os autores

que se dedicaram a responder às questões lançadas por Hunter e Power (NICOLAU; PEIXOTO, 2007;

CARRARO et al., 2007; ZUCCO, 2008; 2013; SOARES; TERRON, 2008) perderam o aspecto essencial da

contribuição desses autores1. Nosso objetivo, portanto, é integrar os achados de Hunter e Power (2007) à

literatura que se seguiu a eles. Para tanto, recorremos a um modelo hierárquico para estimar a relação

entre as votações em Lula naquele par de eleições. O modelo hierárquico (GELMAN; HILL, 2006) permite

que os valores dos interceptos e slopes (coeficientes) variem entre diferentes grupos, no nosso caso,

unidades da federação.

A especificação adotada permite que captemos as especificidades de cada uma das unidades

da federação2. Como queremos saber a relação entre a votação do PT em dois pontos no tempo,

simplificamos ao máximo o modelo, usando apenas a votação do PT em 2002 como variável

independente. Os interceptos e coeficientes nos dão a relação entre o voto em 2006 e o voto em 2002

para cada estado.

Nossa análise traz uma contribuição adicional à literatura, posto que nos baseamos em um

banco de dados agregados por seções eleitorais e não por municípios. Em média, em uma seção,

votaram 293 eleitores nesses dois pleitos. Assim, não apenas trabalhamos com dados mais

desagregados do que geralmente se faz, como também tiramos vantagens da maior homogeneidade de

nossas unidades de análise para a caracterização das bases sociais do voto3. Para que uma seção seja

incorporada à análise é preciso que tenhamos dados para esta nas duas eleições. Assim, analisamos a

relação entre as votações em 2002 e 2006 em 286.333 seções, o que representa 98% e 82% das seções

existentes em 2002 e em 2006 respectivamente.

1 Esses trabalhos são discutidos de forma mais aprofundada na seção seguinte. 2 A escolha do estado como unidade de análise permite dar continuidade à agenda inaugurada por Hunter e Power.

Adicionalmente, permite-nos também iniciar a construção de nosso argumento positivo, mostrando o impacto da estrutura da

competição sobre as opções partidárias dos eleitores. 3 Note-se que, no gráfico apresentado por Hunter e Power, Acre e São Paulo têm a mesma importância. Problemas similares

ocorrem quando se trabalha com municípios, ainda que controles possam minorar esses problemas.

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Para facilitar a exposição e a interpretação dos resultados, optamos por apresentá-los

graficamente. Os resultados completos do modelo se encontram no Anexo 1.

Distinguimos quatro grandes grupos de estados de acordo com o comportamento dos

coeficientes de interesse. Consultando os resultados e inspecionando os gráficos, os leitores poderão

notar que os agrupamentos que propomos estão cercados por algum grau de arbitrariedade; um ou

outro estado poderia ser movido de grupo, mas essas decisões não afetam o quadro geral traçado.

Gráfico 1.1

Relação entre proporção de votos em Lula em 2006 e 2002 nos estados

São Paulo, Rondônia, Acre, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná,

Rio Grande do Sul e Santa Catarina

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: Cada linha corresponde à relação estimada para um estado. Destacamos o estado de São Paulo.

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Gráfico 1.2

Relação entre proporção de votos em Lula em 2006 e 2002 no

Distrito Federal e nos estados Pará, Tocantins, Espírito Santo, Minas Gerais

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: Cada linha corresponde à relação estimada para um estado. Destacamos o Distrito Federal.

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Gráfico 1.3

Relação entre proporção de votos em Lula em 2006 e 2002 nos estados Ceará,

Amapá, Amazonas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Maranhão,

Sergipe e Rio Grande do Norte

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: Cada linha corresponde à relação estimada para um estado. Destacamos o estado do Ceará.

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Gráfico 1.4

Relação entre proporção de votos em Lula

em 2006 e 2002 nos estados Rio de Janeiro, Roraima e Alagoas

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: Cada linha corresponde à relação estimada para um estado. Destacamos o estado do Rio de Janeiro.

Os estados agrupados no Gráfico 1.1 (Acre, Rondônia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,

São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) são aqueles em que as diferenças (ganhos e

perdas) entre um e outro pleito foram modestas. O swing ou votação média no PT, expresso nos valores

dos interceptos, foi relativamente pequeno, variando entre um máximo de 22% (Mato Grosso) e um

mínimo de 6% negativos (São Paulo). O fato de a inclinação das curvas estar próxima ao ângulo de 45o

indica uma forte relação entre a votação obtida por Lula em 2002 e 2006 em cada uma das seções

eleitorais consideradas. A relação não é perfeita, mas é bem próxima disso, indicando que o voto de

2002 é um bom preditor do voto em 2006. Em resumo, nesses estados, que correspondem a 44% do

eleitorado brasileiro, há relativa estabilidade e uma relação positiva e forte entre as votações obtidas por

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Lula nos dois pleitos, ainda que em alguns deles (São Paulo e Mato Grosso do Sul4) a votação total tenha

caído5.

Os estados agrupados no Gráfico 1.2 (Pará, Tocantins, Espírito Santo, Minas Gerais, além do

Distrito Federal) representam 18% do eleitorado nacional. Observa-se nesse grupo a mesma relação

positiva entre as duas votações de Lula, contudo, a diferença em relação ao grupo anterior está no valor

dos interceptos, que são muito mais elevados. A interpretação é direta: nesses estados, a votação média

em Lula cresceu fortemente, de forma independente da votação anterior. Em outras palavras: o swing

pró-Lula foi acentuado, variando entre 30% e 40%. A relação entre as duas votações de Lula foi positiva,

mas a inclinação da curva é menor se comparada com o grupo anterior, ficando abaixo do ângulo de 45o.

A razão para tanto é fácil de entender: os avanços do PT decrescem à medida que seu desempenho

anterior melhora, e chegam mesmo a cair nos extremos da distribuição. Dito de outra forma, nesses

estados, nas seções eleitorais em que a votação do PT fora excepcionalmente boa em 2002, o partido

não cresceu tanto como nas demais, chegando mesmo a perder votos. O Distrito Federal é um caso

extremo dentro desse grupo, uma vez que praticamente inexiste relação entre as duas votações – a

inclinação da curva é praticamente nula – mas o PT cresce em média 30%. Tocantins está no outro

extremo, porque tanto o intercepto quanto o coeficiente da curva são altos6.

O terceiro grupo de estados (Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí,

Maranhão, Sergipe e Rio Grande do Norte), agrupados no Gráfico 1.3, compreende aqueles associados

de forma mais direta à nova base do voto petista. Fundamentalmente, esse grupo, em que estão 28%

dos eleitores brasileiros, é formado por estados da região Nordeste, onde os indicadores sociais são

muito ruins. A ausência de relação entre o desempenho em uma e outra eleição é evidente. Contudo,

deve-se observar que a inexistência de relação se deve à uniformidade do bom desempenho de Lula em

2006. A linha é reta, mas o intercepto é alto; isto é, em 2006 Lula obteve por volta de 60% dos votos nas

seções eleitorais desses estados e essa votação não dependeu do desempenho em 2002. A diferença

entre o pior e o melhor desempenho em 2006 é pequena, o que tira inclinação da curva. Nesses estados,

portanto, Lula não perdeu votos, só ganhou. Nas seções em que já estava perto do teto, cresceu menos,

nas que estava longe, cresceu mais.

Para referência futura é importante reter esse ponto: nos estados do Nordeste há pouca

variação na votação recebida por Lula em 2006. O contraste com os estados reunidos no primeiro grupo

é patente. Enquanto na região Sudeste a votação de Lula pode ir do céu ao inferno, no Nordeste ele está

sempre perto das nuvens. A consequência dessa observação é imediata para a relação entre a votação

em Lula e o Programa Bolsa Família. Mas essa análise será feita posteriormente.

Passemos então aos poucos estados (Rio de Janeiro, Alagoas e Roraima) reunidos no Gráfico

1.4. Heterogêneo do ponto de vista geográfico, esse grupo tem contribuição relativa modesta para os

4 O leitor deve notar que perder 6% dos votos em São Paulo significa muito mais que os 5% perdidos em Mato Grosso do Sul. O

eleitorado de São Paulo é 17 vezes maior que o do Mato Grosso do Sul. Perder 6% dos votos em São Paulo significa perder mais

do que 1,5 milhão de votos, isto é, mais do que todos os votos do Mato Grosso do Sul. 5 Os estados incluídos nesse primeiro grupo, porque têm swing baixo, deveriam ser encontrados na região intermediária do

gráfico de Hunter e Power. Há discrepâncias porque Hunter e Power usam os dados do segundo turno, enquanto trabalhamos

com os do primeiro. Por isso o uso do condicional que será empregado nas notas seguintes. 6 No gráfico de Hunter e Power esses estados deveriam ser encontrados no quadrante superior esquerdo.

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resultados eleitorais, posto que reúne apenas 10% dos eleitores brasileiros. No interior desses estados, e

apenas desses estados, observamos a relação negativa sugerida pela figura de Hunter e Power. Lula foi

bem votado nas seções em que havia ido mal e mal onde havia ido bem. Isto é, somente nesses estados

poderíamos pensar efetivamente em uma troca de bases do partido. A inversão das bases registradas

nesse último grupo, vale registrar, foi grande, como atestam os altos coeficientes negativos estimados

para as slopes, mostrados no gráfico. Contudo, como notado anteriormente, a participação relativa

desses estados no eleitorado nacional é pequena. Nos demais grupos que perfazem nada menos que

90% do eleitorado, a relação é positiva, negando que tenha ocorrido uma inversão de bases.

Vale explicar a singularidade desse grupo de estados. O caso do Rio de Janeiro talvez seja o

mais emblemático. Por que tamanha mudança? Basta olhar os resultados do estado nessas duas

oportunidades para ter uma ideia do que está por trás dessa alteração radical. No primeiro turno de

2002, Garotinho obteve 42% dos votos no Rio de Janeiro, sendo o candidato mais votado no estado. Já

em 2006, Heloísa Helena do PSOL teve nesse estado não menos que 17% dos votos. Não há como saber

como votaram os eleitores específicos nessas duas oportunidades. Mas nos parece plausível supor que o

gráfico seja a resultante de dois movimentos: o avanço de Lula sobre o eleitorado que votara em

Garotinho e o de Heloísa Helena sobre o que sufragara Lula. O sucesso relativo da candidata do PSOL em

Alagoas, seu estado natal, também explica por que esse estado também apresenta uma relação negativa

nas duas votações de Lula. Uma vez mais, basta olhar os números agregados do resultado dessas

eleições para supor um movimento duplo, Lula conquistando novos eleitores e perdendo velhos para a

candidata do PSOL.

Ainda que discrepantes e representando casos extremos, a interpretação do que passou no Rio

de Janeiro e Alagoas indica que o desempenho de Lula em 2006 deve ser visto como resultado líquido

dos movimentos ocorridos entre 1998 e 2002 e os que se dão entre 2002 e 2006. Para cada um dos

estados (ou agrupamentos feitos acima) é possível empreender uma análise análoga

A estrutura regional da competição partidária em cada uma das eleições é, em grande medida,

a responsável pela variação estadual da relação entre os dois pleitos. Para os estados em que a relação é

mais forte e praticamente linear, aqueles incluídos no primeiro grupo, há uma reprodução da disputa

bipartidária entre PT e PSDB nos dois pleitos. Muda apenas o sinal do swing, representado pelos valores

dos interceptos, favorável ao PT em 2002 e ao PSDB em 2006. Nos demais grupos, há diferentes

constelações em uma ou ambas as eleições. Nos estados incluídos no terceiro grupo, o swing pró-PT é

positivo nos dois pleitos, ainda que ele seja bem mais forte em 2006, o que se deve tanto

à presença/ausência dos demais competidores como também à fragilidade demonstrada pelo PSDB em

recuperar eleitores nesses estados.

A conclusão a que se chega é de que não há uma relação negativa entre a votação do PT em

2002 e 2006. Para os dois primeiros grupos de estados identificados por nossa análise, em que votam

62% dos eleitores, a relação é positiva. No terceiro grupo, os estados do Nordeste, aqueles com IDHs

mais baixos, a relação praticamente não existe, mas não existe porque em 2006 o PT teve uma votação

alta em quase todas as seções, independentemente de seu desempenho anterior. Em apenas três

estados, a relação da votação por seções encontrada foi negativa.

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Políticas sociais e a estrutura da competição

Parte considerável das análises que se debruçaram sobre a eleição de 2006 atribui o

crescimento da votação do PT entre os mais pobres ao seu controle sobre o governo. A vantagem do

exercício do poder teria se manifestado de forma mais patente nos resultados obtidos nas pequenas

cidades nordestinas, os chamados grotões. Diferentes fatores são citados em diferentes análises para dar

conta dessa nova realidade. Para alguns, o crescimento do voto petista entre os mais pobres se deveria

fundamentalmente ao cenário econômico (CARRARO et al., 2007), enquanto outros sublinham que o

candidato do governo sempre tem vantagens entre os mais pobres. No caso específico dessa eleição, a

maior parte dos analistas aponta o Programa Bolsa Família como o principal responsável pela votação

obtida por Lula entre esses eleitores (HUNTER; POWER, 2007; NICOLAU; PEIXOTO, 2007; SOARES; TERRON,

2008; ZUCCO, 2008; 2013).

Essa relação tem sido apreendida por meio de análises de regressão em que se relacionam a

cobertura municipal do PBF7 e a votação em Lula. Inúmeros trabalhos comprovam essa relação (ver,

sobretudo, Zucco, 2008; 2013). Não há dúvidas de que, quanto maior a proporção de famílias atendidas

pelo PBF no município, maior a proporção de votos em Lula8.

Obviamente, como é fartamente sabido, a relação positiva entre a cobertura do Programa Bolsa

Família e o voto para o PT não comprova que essa política seja o elemento determinante para explicar o

comportamento do eleitor. O ponto que queremos assinalar vai além do alerta tradicional de que

correlação não comprova causalidade. Queremos ressaltar que uma relação positiva não implica que, na

ausência do programa, aqueles que votaram em Lula teriam votado em outro partido. Sendo mais claros,

uma vez que a eleição de 2006 foi fundamentalmente uma eleição bipartidária, não se pode inferir

dessas análises que esses eleitores teriam necessariamente votado em Alckmin. A racionalidade da

explicação teria que ser estendida ao PSDB, isto é, tanto quanto o PT, o PSDB também teria que

mobilizar recursos para conquistar esses votos.

A relação entre voto no PT e o Bolsa Família, por mais forte que seja, não nos diz muito sobre

como votariam os eleitores na ausência do programa. Os beneficiados pelo programa poderiam votar em

Lula na sua ausência. Obviamente, não há como estimar a propensão dos eleitores a votar no PT ou no

PSDB em um mundo em que o programa não existisse. Estimativas baseadas nos dados disponíveis

serão necessariamente enviesadas, mas não por isso devem ser descartadas. Sobretudo, é possível

buscar uma melhor especificação do modelo e buscar uma melhor interpretação de seus resultados.

Seguindo a especificação proposta por Tomz, Tucker e Wittenberg (2002)9, estimamos conjuntamente os

7 Por cobertura se deve entender a proporção de famílias beneficiárias do PBF no município. 8 Nessa seção, trabalhamos com os dados agregados por município. Não há como estabelecer essa relação usando os dados por

seção eleitoral. Nossa estratégia é a de reproduzir tanto a especificação como a base de dados usados por outros autores para

mostrar o que essas análises deixam sem resposta. Agradecemos a Cesar Zucco por disponibilizar sua base de dados. 9 O modelo visa contornar dois problemas, o fato de as variáveis dependentes não serem contínuas e o fato de os erros das duas

regressões não serem independentes. Para resolver o primeiro problema, as proporções são transformadas em variáveis

contínuas, enquanto o segundo é atacado recorrendo-se a uma estimativa conjunta dos dois modelos, usando o método SUR (do

inglês Seemingly Unrelated Regression).

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votos no PT e no PSDB como uma função da cobertura municipal do Programa Bolsa Família10. Uma vez

mais optamos por um modelo simples (incluímos uma única variável independente, a cobertura do

Programa Bolsa Família) e pela apresentação gráfica, deixando os resultados completos para o anexo

(ver Anexo 2). O Gráfico 2 usa os coeficientes e demais parâmetros de cada uma das duas regressões

estimadas conjuntamente para simular os intervalos de confiança da votação do PT e do PSDB para cada

nível de cobertura do Programa Bolsa Família no Brasil11. Os resultados são claros e imediatos: há uma

forte relação positiva entre a cobertura do Programa e o voto em Lula. Como seria de esperar, a relação

para Alckmin é a inversa.

Gráfico 2

Relação entre votação de Lula e Alckmin em 2006 e

proporção de famílias incluídas no Programa Bolsa Família

Fonte: Elaboração própria a partir de dados gentilmente cedidos por Cesar Zucco.

Conforme visto na seção anterior, a heterogeneidade estadual deve ser considerada. Os Gráficos

3.1 e 3.2 mostram que os sinais dos coeficientes não se alteram quando essa heterogeneidade é levada

em conta. Contudo, vê-se que a magnitude dos efeitos é diversa em São Paulo e no Maranhão. Atenção

especial deve ser dada à variação nos valores dos interceptos, posto que seu valor indica a votação

esperada caso a variável independente assumisse o valor zero, isto é, se no município em questão

10 Zucco (2008) inclui em seus modelos a votação anterior do PT, cujos coeficientes são altos, positivos e significativos

estatisticamente. 11 Utilizamos o pacote Zelig conforme Imai, King e Lau (2009).

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ninguém fosse atendido pelo Programa Bolsa Família. Com os dados de que dispomos e com essa

especificação, essa é a forma de estimar qual teria sido o voto no PT caso o programa não existisse.

Gráfico 3.1

Relação entre votação para presidente em 2006 e

proporção de famílias incluídas no Programa Bolsa Família em São Paulo

Fonte: Elaboração própria a partir de dados gentilmente cedidos por Cesar Zucco.

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Gráfico 3.2

Relação entre votação para presidente em 2006

e proporção de famílias incluídas no Programa Bolsa Família no Maranhão

Fonte: Elaboração própria a partir de dados gentilmente cedidos por Cesar Zucco.

Como mostra o Gráfico 3.2, a votação de Lula no Maranhão é alta e independente da cobertura

do Programa Bolsa Família. O modelo estima que, em um hipotético município maranhense que não

tivesse uma família sequer inscrita no Programa, Lula teria recebido mais de 40% dos votos e Alckmin

menos de 20%. Nas cidades em que havia pouco mais de 20% de famílias recebendo benefícios do

programa, Lula teria algo como 50% dos votos e seu adversário pouco mais do que 15%.

Já em São Paulo, como pode ser visto no Gráfico 3.1, no que pode parecer um contrassenso,

encontramos uma relação mais direta entre a votação de Lula e a cobertura do Bolsa Família. Quanto

mais famílias no Programa, maior a votação em Lula. Nos municípios onde não há famílias cobertas pelo

Programa, a vantagem de Alckmin sobre Lula é superior a 30%.

O fato é que no Maranhão, assim como em quase todo o Nordeste, mesmo onde a proporção de

assistidos pelo Bolsa Família era mínima ou inexistente, Lula obteve boas votações, sempre muito

superiores às obtidas por Alckmin. Essa vantagem pede explicação e é preciso ir além dos programas

sociais do governo para explicá-la.

Para responder a essa questão, é preciso incluir o PSDB na análise. O fracasso do PSDB é a

outra face do sucesso do PT. O fato é que a gangorra entre os dois partidos não se movimentou da

mesma maneira em todo o Brasil. Para se concentrar nos casos extremos, observa-se que o PSDB

conseguiu recuperar mais votos na região Sudeste do que na Nordeste. Por quê? Por que essa

recuperação não foi uniforme?

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Como é sabido, o PSDB obteve forte votação nos pequenos municípios do Nordeste nas eleições

presidenciais de 1994 e 1998, mas não em 2002. O desempenho de Serra em 2002 no Nordeste é uma

imagem pálida do sucesso de Fernando Henrique Cardoso nas duas eleições anteriores. O candidato

tucano resiste mais nas pequenas cidades nordestinas do que nas grandes, mas a sua incapacidade de

assegurar os votos que haviam garantido a supremacia do partido nessa região nas duas eleições

anteriores é patente.

O contraste entre o sucesso de 1994 e 1998 e a derrocada de 2002 passa pelas diferentes

alianças políticas mobilizadas por Fernando Henrique Cardoso e por José Serra para viabilizar suas

candidaturas. Mesmo contando com o trunfo que o Plano Real lhe conferia, o ex-ministro da Fazenda de

Itamar Franco construiu uma aliança eleitoral com o PFL, o que garantiu uma “porta de entrada” na

região Nordeste, fugindo, assim, das dificuldades enfrentadas por Mário Covas cinco anos antes.

José Serra, de sua parte, sabendo das restrições a seu nome entre líderes do PFL, busca

construir uma aliança alternativa com setores do PMDB, aliança essa que começa a se formar em 2000,

nas eleições para a Mesa da Câmara e do Senado. As repercussões dessa estratégia são conhecidas: as

denúncias contra o senador Jader Barbalho e o bombardeamento da candidatura à presidência de

Roseana Sarney pelo PFL. As consequências eleitorais desse conflito para a candidatura presidencial

tucana são avassaladoras. Serra não passa de 20% dos votos válidos na região, enquanto Fernando

Henrique obtivera por volta de 45% desses votos. Seis dos dez estados onde o PSDB teve a maior perda

eleitoral em 2002 eram governados por políticos do PFL ou PPB. No Maranhão a perda foi de 36%, na

Bahia, reduto pefelista, o PSDB perdeu 34% dos votos. Em uma palavra: as elites políticas tradicionais

do Nordeste, aquelas cujas raízes datam do regime militar ou mesmo antes, abandonaram a opção pela

social-democracia à brasileira. Mais do que isso, parte significativa delas, nos anos seguintes, sob o

governo de Lula, não teria dificuldades em estabelecer uma espécie de enténte com os petistas.

Em 2002, Lula se beneficia dessa verdadeira débâcle tucana na região. Contudo, não é o único

beneficiário. Em 1998, Lula havia obtido 31,6% dos votos na região12. Sobe para 45,9% em 2002. Ciro e

Garotinho não deixam de marcar presença em estados específicos da região. Em 1998, a votação de Ciro

Gomes apresenta forte concentração no Ceará, seu estado de origem. Em 2002, sua votação mostra

maior capacidade de irradiação, penetrando em outros estados da região. Garotinho, cuja votação se

concentra fundamentalmente no Rio de Janeiro, não deixa de marcar presença em alguns poucos

estados da região Nordeste, mostrando força entre setores específicos da população nordestina em

função do apoio que recebe de igrejas protestantes.

O segundo turno de 2002 anuncia o que ocorrerá em 2006. Ciro e Garotinho não hesitam em

anunciar seu apoio a Lula. Mais do que isso, seus partidos se incorporam à campanha e ao próprio

governo. A movimentação de Ciro Gomes, deixando o PPS para se juntar ao PSB ao mesmo tempo que

assume o Ministério do Interior, pasta estratégica para os interesses da região Nordeste, é significativa e

exemplar. Em outras palavras, chegando à presidência, o PT reforça e alicerça sua antiga aliança com o

PSB, deitando assim raízes mais profundas na região.

12 A tese da inversão de bases sustentada por Hunter e Power (2007) se ampara na suposição de que, como afirma Zucco (2008),

o PT praticamente inexistiria na região Nordeste.

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Vale observar que as alianças do PT na região não se limitam ao PSB. No Maranhão, o PT

constrói uma sólida aliança com o clã Sarney, cuja incompatibilidade com o PSDB decorre diretamente

do torpedeamento da candidatura Roseana. Na Bahia, o PT abre espaço para a vertebração do PMDB de

Geddel Vieira Lima. A construção dessas alianças com políticos tradicionais da região diminuiu as opções

possíveis para o PSDB, que, a despeito da reconstituição de sua aliança com o PFL, não consegue

recuperar sua força na região. O PFL em 2006, como se sabe, já não era o mesmo que fora em 1994. Na

realidade, nem sequer manteve o nome, rebatizando-se de DEM em uma tentativa de redefinir suas

bases. Tendo perdido o controle sobre o governo dos estados mais importantes da região, como a Bahia,

sua principal base, o partido não se adapta à vida apartada das benesses oficiais. Assim, para entender

o que se passa na região Nordeste, é preciso tratar a ascensão do PSB e a queda do PFL (DEM) como as

faces de uma mesma moeda.

O sucesso do PT na região Nordeste não se resume aos efeitos do Programa Bolsa Família. Para

colocar o mesmo de forma ligeiramente diversa: os efeitos positivos do Programa e das demais políticas

sociais perseguidas pelo governo (como a elevação do salário mínimo e a ampliação do Benefício de

Prestação Continuada) têm componentes políticos. O rendimento eleitoral de programas de governo não

pode ser visto como automático.

Para concluir essa seção, cabe frisar que a erosão das bases eleitorais do PSDB na região

Nordeste se deu ao longo do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, isto é, enquanto o

partido controlava a máquina governamental. Assim, não apenas o controle do governo não garante os

votos dos eleitores mais pobres das pequenas cidades nordestinas, como também não é verdade que

partidos de oposição não tenham como avançar sobre esse eleitorado sem a máquina do Estado. Lula,

Ciro Gomes e Garotinho roubaram votos do governo em 2002. No segundo turno, Lula amplia essa

investida. Assim, do ponto de vista do PT, entre 2002 e 2006, a tarefa era dupla: manter os eleitores

conquistados e ampliar os avanços. Na região Nordeste, o partido foi capaz de fazer essas duas coisas.

No Sudeste, não.

As conclusões dessa discussão são relativamente triviais. O desempenho do PT e o do PSDB

devem ser analisados conjuntamente. Um e outro são verso e reverso de uma mesma medalha, ainda que

seja necessário notar que essa interdependência se acentua quando não há outras candidaturas

presidenciais fortes, o que foi o caso de 2006, mas não de 2002.

Não há dúvidas de que as políticas sociais implementadas pelo governo Lula estão associadas a

seu desempenho eleitoral e a sua reeleição. Contudo, não se deve tomar como estabelecido o fato de

que, na ausência dessas políticas, eleitores que votaram no PT teriam deixado de fazê-lo. Para que o

fizessem, o PSDB teria que recuperar os eleitores que perdera na região em 2002. A fragilidade de seu

tradicional aliado político na região, o PFL, indica os limites da empreitada.

Obviamente, pode-se contra-argumentar que o desmoronamento do PFL/DEM passa pelo

sucesso da coligação PT-PSB em construir pontes com a população mais pobre da região Nordeste,

incluindo a implementação exitosa dos programas sociais e o bom desempenho da economia. Mas esse

é precisamente o ponto. Investigar essas relações é se enredar em um mundo no qual as variáveis são

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endógenas. Políticas são desenhadas com base nas expectativas de seu retorno eleitoral. Mas os retornos

eleitorais dessas empreitadas não são automáticos ou garantidos.

Ampliando o horizonte temporal

Passemos a outro aspecto da proposição feita por Hunter e Power (2007), qual seja, a

caracterização da base social e regional do voto no PT pré-2006. Se o PT passou a ter suas bases entre

os menos escolarizados da região Nordeste, depreende-se que de 1989 a 2002 as suas bases estariam

localizadas entre os mais escolarizados nas regiões Sul e Sudeste. Seria essa realmente a base eleitoral

do PT? Samuels (2006) mostra que essa caracterização se aplica àqueles que se dizem petistas, isto é,

aos que se identificam com o partido. Contudo, o eleitorado de Lula nunca se reduziu socialmente ao

perfil dos identificados com o partido, muito menos a seus militantes. A primeira tarefa, portanto,

consiste em ter claro qual a composição social e regional do eleitorado do PT ao longo do tempo.

Essa caracterização pede o alargamento do horizonte temporal da análise. Não há razões para

tomar 2002 como parâmetro para definir a base tradicional do PT, afinal Lula vence após três derrotas

consecutivas. Necessariamente, ao ser eleito, Lula agregou apoios e sua votação cresceu. Em realidade, a

cada tentativa, a votação em Lula cresce, ainda que em ritmo diverso em cada uma delas.

Para traçar a evolução das bases sociais do voto no PT e no PSDB, recorremos uma vez mais a

nossa base de dados organizada por seções, lançando mão de uma informação adicional de que

dispomos, a saber, os dados de escolaridade do cadastro eleitoral. Com essas informações, podemos

relacionar o perfil de escolaridade de cada uma das seções eleitorais e a votação recebida por cada um

dos candidatos, ordenando as seções eleitorais de acordo com os anos médios de educação dos eleitores

e dividindo o eleitorado em centis. Dito de outra forma, para cada eleição presidencial, segmentamos o

eleitorado em cem grupos relativamente homogêneos do ponto de vista da escolaridade. Comecemos

pela eleição de 1998, cujas características centrais podem ser depreendidas consultando o Gráfico 413:

13 Dispomos de dados por seções para algo como 50% do eleitorado. Não há dados para estados importantes como Minas Gerais

e Rio de Janeiro. Ainda assim, essa amostra parece não sofrer de viés significativo. Ver Limongi e Guarnieri (2014), para uma

análise usando esses dados.

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Gráfico 4

Proporção de votos no PT e no PSDB por

nível de escolaridade nas urnas (1998, primeiro turno)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: No eixo horizontal indicamos a proporção de eleitores com mais de oito anos de escolaridade em cada

seção eleitoral. Os intervalos compreendem centis de eleitores.

Alguns pontos devem ser destacados. Em primeiro lugar, o PSDB bate o PT em todos os cem

grupos criados. A margem da vitória se estreita nas seções situadas no centro da distribuição,

ampliando-se nas extremidades. A vantagem do PSDB é mais acentuada entre as seções em que votam

eleitores menos escolarizados, nas quais seu desempenho é bem superior ao obtido pelo PT. Onde a

escolarização média dos eleitores é muito baixa, nas seções em que eleitores têm em média menos do

que três anos de escolaridade, que correspondem a 20% do eleitorado, Lula tem suas piores votações.

Dado o caráter fundamentalmente bipartidário dessa eleição, isso é o mesmo que dizer que é nesse

grupo que se registram as votações mais altas para o PSDB. Mesmo que se considere esse fato, seria

exagero afirmar que a votação no PSDB ou no PT tenha assumido um perfil social demarcado. Com

exceção desses primeiros grupos, o desempenho dos dois partidos pouco varia com a composição social

das seções eleitorais.

O Gráfico 5 permite analisar a evolução do perfil social do eleitorado do PT nas eleições de

1998 e de 2002. Para essa última, a fim de uma melhor caracterização, incluímos os resultados dos dois

turnos. A inspeção do gráfico revela de forma clara que o perfil social da votação no PT não se altera com

seu crescimento, obedecendo ao que King et al. (2008) identificam como uma norma, isto é, a

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homogeneidade do swing. Como se observa, a distância entre as três linhas é basicamente a mesma ao

longo de toda a distribuição, ou seja, o PT ganhou a mesma proporção de votos independentemente da

escolaridade média dos eleitores da seção. Para praticamente 70% do eleitorado, isto é, do 20º ao 90º

centil, a votação obtida pelo PT varia muito pouco nessas três oportunidades. A diferença entre o pior e o

melhor desempenho do partido no interior desse intervalo não excede 5%. Vale ainda enfatizar que, no

segundo turno de 2002, o PT só perde para o PSDB nos cinco primeiros decis. Em todos os demais,

passa da barreira dos 50%.

Gráfico 5

Proporção de votos no PT por nível de escolaridade nas urnas

(1998 – primeiro turno – e 2002 – primeiro e segundo turnos)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: No eixo horizontal indicamos a proporção de eleitores com mais de oito anos de escolaridade em cada

seção eleitoral. Os intervalos compreendem centis de eleitores.

Analisadas conjuntamente, as informações apresentadas para esse par de eleições permitem

uma caracterização mais clara da distribuição dos votos no PT de acordo com o perfil de escolaridade

dos eleitores entre 1998 e 2002. De fato, o desempenho do partido entre os grupos mais desfavorecidos

é pior que entre os demais. Sua votação nas seções com os piores indicadores está abaixo da obtida

entre os demais. Por significativa que seja essa diferença, ela não pode ser lida como uma ausência

absoluta e, muito menos, como uma incapacidade de obter votos entre esses eleitores. Mais do que isso,

de 1998 a 2002 o partido cresce entre esse grupo de eleitores na mesma razão em que o fez nos demais

grupos.

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O Gráfico 6 traz o mesmo tipo de informação com os dados para o primeiro turno das duas

eleições vencidas por Lula. Como se vê, as linhas se cruzam, formando dois triângulos, um à esquerda

da figura, que representa os votos ganhos entre os menos escolarizados, e outro à direita, que representa

os votos perdidos entre os mais escolarizados. Assim, a votação em 2006 ganha um contorno social

mais claramente delineado. A votação no PT ganha uma base social, isto é, o partido passa a ser

sobrevotado entre os menos escolarizados (leia-se “os de menor renda”) e subvotado entre os mais

escolarizados (leia-se “os de maior renda”). O perfil social do voto petista é a resultante desses dois

movimentos, o de ganho e o de perda de votos. Quanto ao primeiro, esse avanço não é propriamente

uma novidade. O leitor pode retornar aos gráficos anteriores e verificar que esse avanço similar ocorrera

entre 1998 e 2002. A penetração entre os mais pobres é, portanto, a continuidade de uma tendência.

Entre os mais escolarizados é que se verifica uma reversão da tendência. Em 2006, ao contrário do que

ocorrera nas eleições anteriores, o PT perde votos entre os mais escolarizados14.

Gráfico 6

Proporção de votos no PT por nível de

escolaridade nas urnas (2002, 2006 – primeiro turno)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: No eixo horizontal indicamos a proporção de eleitores com mais de oito anos de escolaridade em cada

seção eleitoral. Os intervalos compreendem centis de eleitores.

14 Para não cansar o leitor e facilitar a interpretação dos gráficos, não incluímos as linhas para os segundos turnos. Os mesmos

dois triângulos são formados, apenas um pouco mais acima no eixo y. Portanto, as inferências que essas informações

permitiriam não são diferentes das já feitas.

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O cenário completo pede análise similar para o PSDB. Contudo, pelo que foi dito anteriormente,

o desenho das figuras pode ser deduzido dos gráficos apresentados para o PT. As perdas do PSDB em

2002 tendem a ser uniformes em todos os grupos educacionais. Da mesma forma, em 2006, sua

recuperação é tanto maior quanto mais escolarizados os eleitores da seção. Assim, se o PT ganha uma

base social mais nítida em 2006, o mesmo ocorre com o PSDB.

Se analisarmos a evolução da votação do PT entre 1998 e 2006, o que pode ser feito

consultando o Gráfico 7, veremos que o crescimento da votação do partido entre os mais pobres é

constante, enquanto entre os mais ricos temos dois momentos distintos, ganhos entre 1998 e 2002 e

perdas entre 2002 e 2006. Contudo, as perdas no segundo período não fazem com que o apoio do

partido entre esses grupos caia abaixo do que fora em 1998. Obviamente, esses dados, porque

agregados, não nos permitem fazer inferências sobre o comportamento dos indivíduos. Ainda assim, do

ponto de vista da composição do voto petista, a indicação é clara. O PT perde parte do apoio entre os

mais escolarizados que havia ganhado em 2002. Dito de outra forma, entre 1998 e 2002, o PT rouba

eleitores genericamente do PSDB, avança sobre o eleitorado tucano em todos os grupos sociais, um

pouco menos entre os mais pobres do que entre os mais ricos. Entre 2002 e 2006, o PSDB recupera

parte desse eleitorado perdido, mas essa recuperação se concentra entre os mais escolarizados. No que

se refere aos menos escolarizados, o PT não apenas retém os eleitores conquistados, como ainda

mantém sua tendência de crescimento.

Gráfico 7

Proporção de votos no PT por nível de escolaridade

nas urnas (1998 – primeiro turno; 2002 e 2006 – segundo turno)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Observação: No eixo horizontal indicamos a proporção de eleitores com mais de oito anos de escolaridade em

cada seção eleitoral. Os intervalos compreendem centis de eleitores.

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Considerações Finais

Ulysses Guimarães, em uma de suas boutades, teria afirmado que a política rejeita o vácuo.

Espaços são sempre ocupados. Eleitores, de uma forma ou de outra, são levados a optar entre as ofertas

que as lideranças políticas lhes apresentam. Assim, a composição social e regional do voto nos diferentes

partidos opera como vasos comunicantes: o ganho de um partido se reflete, necessariamente, nas

perdas dos demais.

Mostramos ao longo deste artigo que privilegiar as mudanças ocorridas em um par de eleições

pode levar a interpretações equivocadas. Inicialmente, mostramos que, mesmo quando a análise se

concentra em um desses pares, 2002-2006, a relação entre indicadores sociais e votos é mais completa

quando se olha para o interior dos estados.

Mostramos, em um segundo momento, que o peso atribuído ao Programa Bolsa Família para

explicar o bom desempenho de Lula nas regiões Norte e Nordeste tem sido exagerado. O PT, pelo que

nossa análise indica, teria bom desempenho no Nordeste, mesmo sem esse Programa. A desarticulação

da aliança que garantiu a forte presença do PSDB na região Nordeste em 1994 e 1998 precede a

ascensão do PT nessa mesma região. Havia, digamos assim, uma relativa disponibilidade dos eleitores

nordestinos. O PT consegue ocupar esse espaço enquanto exerce o poder. Essa ocupação depende de

uma série de iniciativas que vão além ou completam políticas redistributivas como o Bolsa Família. Há

uma face política dessa presença que se espelha de forma exemplar com a entrada de Ciro Gomes para o

Ministério do Interior e para o PSB.

A composição social do voto petista, sem dúvida alguma, não é a mesma em 2002 e 2006.

Contudo, essa alteração é exagerada quando se toma o voto de 2002 como representando a base

tradicional do PT. Dado que o partido perdera as três eleições anteriores, segue que seu eleitorado na

vitória deve ser diferente e maior que aquele que o sufragou na derrota. Nem todos os convertidos em

2002 se manterão fiéis ao partido em 2006. Portanto, a nova face assumida pela votação no partido em

2006 é a resultante de dois movimentos, o de saída e o de entrada de eleitores. Os que votam no partido

em 2002 e não o fazem em 2006 não necessariamente eram eleitores fiéis ao partido. O mais provável é

que uma parte deles tenha votado no partido em 2002 e não antes.

Desconsiderando o movimento individual de eleitores e concentrando-nos na composição social

do eleitorado do PT, podemos afirmar que, tanto em 2002 como em 2006, verificou-se uma definição

mais clara da base social do eleitorado do PT. Ironicamente, diz-se que o partido abandona suas bases

tradicionais quando este passa a depender mais fortemente dos mais pobres, seu público-alvo desde a

fundação do partido.

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Anexo 1

Coeficientes de modelo mutinível

Conforme Barbosa (2001): “a incorporação da estrutura hierárquica dos dados permite uma utilização mais

eficiente dos dados”. Do ponto de vista da utilização eficiente dos dados, as vantagens de incorporar a estrutura

hierárquica dos dados são:

1. Obtenção de melhores estimativas para os parâmetros relativos a unidades específicas. Se a população em estudo é

heterogênea, sendo que alguns subgrupos representam um pequeno percentual dos dados, a equação de regressão

usual será determinada basicamente pelo grupo mais numeroso e pode ser imprópria para predizer e explicar o

desempenho do grupo minoritário. A estimação relativa ao grupo minoritário só é possível se agregarmos as

informações relativas a diversas escolas. Se empregarmos o modelo hierárquico para a estimação, é possível obter uma

equação para cada escola, utilizando toda a informação presente na amostra de forma eficiente.

2. Possibilidade de formular e testar hipóteses relativas a efeitos entre níveis. A abordagem via modelos hierárquicos

permite que se avalie a maneira como variáveis medidas em um nível afetam as relações que ocorrem em outro nível.

3. Partição da variância em componentes. O interesse do pesquisador muitas vezes não é a estimação dos efeitos dos

diversos fatores que atuam sobre a variável resposta, mas a determinação da importância dos diversos níveis na

explicação da variabilidade presente nos dados.

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Para estimar os parâmetros utilizamos a função lmer() no R que utiliza RMEL (Restricted ou Residual Maximum Likelihood) que aplica o princípio da máxima verossimilhança aos resíduos.

AIC BIC logLik deviance REMLdev

– 466676 – 466612 233344 – 466697 – 466688

Random effects

Grupo Nome Variância Desvio-padrão Correlação

UF Intercepto 0,05 0,22

Lula vs. 2002 0,12 0,34 – 0,81

Resíduo 0,01 0,11

Nota: nº obs.: 286333; nº grupos: 27

Fixed effects

Estimativa Erro-padrão Valor t

Lula vs. 2002 0,24 0,07 3.61

Correlação dos efeitos fixos

Intercepto Lula vs. 2002 – 0,809

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UF (Intercepto) Lula vs. 2002

AC 0,15 0,57

AL 0,54 – 0,47

AM 0,66 0,17

P 0,48 0,10

BA 0,48 0,25

CE 0,62 0,08

DF 0,30 0,09

ES 0,34 0,37

GO 0,21 0,41

MA 0,66 0,08

MG 0,38 0,18

MS – 0,05 1,02

MT 0,22 0,38

PA 0,38 0,30

PB 0,60 – 0,03

PE 0,59 0,11

PI 0,53 0,19

PR 0,14 0,48

RJ 0,58 – 0,37

RN 0,57 – 0,04

RO 0,18 0,55

RR 0,35 – 0,22

RS 0,09 0,55

SC 0,03 0,54

SE 0,47 – 0,08

SP – 0,06 0,91

TO 0,42 0,34

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE.

Anexo 2

Coeficientes Seemingly Unrelated Regression (SUR) com indicadores para estados

tlogit(lula_vs_2006) ~ alcance + lula_vs_2002 + AL + AM + AP + BA + CE + DF + ES + GO + MA + MG + MS +

MT + PA + PB + PE + PI + PR + RJ + RN + RO + RR + RS + SC + SE + SP + TO

tlogit(alckmin_vs_2006)~ alcance + serra_vs_2002 + AL + AM + AP + BA + CE + DF + ES + GO + MA + MG +

MS + MT + PA + PB + PE + PI + PR + RJ + RN + RO + RR + RS + SC + SE + SP + TO

Onde “tlogit” = ln(lula_vs_2006/(outros_vs_2006 - lula_vs_2006)) é uma transformação logística que faz com

que a variável dependente deixe de estar limitada entre 0 e 1, permitindo o uso de regressão linear. O mesmo vale para

o share de Alckmin.

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“alcance” é a proporção de famílias atendidas no Programa Bolsa Família.

Na SUR a variância é constante em cada equação/grupo e a covariância entre erros no mesmo grupo é zero.

No entanto, a covariância dos erros entre os diferentes grupos é diferente de zero. Para estimar os coeficientes, utiliza-

se dos mínimos quadrados em dois estágios em que no primeiro estágio se encontra a matriz de variância covariância

por meio de MQO e utiliza-se essa matriz para estimar a SUR.

Os dados foram compilados e cedidos por Cesar Zucco.

Equation Observations Parameters RMSE R-sq chi2 P

y1 5563 28 0,27 0,46 4839.87 0

y2 5563 28 0,35 0,69 12146.00 0

Coefficient Standard

Error Z P > z

y1

alcance 0,59 0,04 15,24 0,00 0,52 0,67

lula_vs_2002 1,16 0,04 32,51 0,00 1,09 1,23

AL 0,14 0,06 2,23 0,03 0,02 0,27

AM 0,54 0,07 8,03 0,00 0,41 0,68

AP 0,66 0,09 7,37 0,00 0,48 0,83

BA 0,16 0,06 2,67 0,01 0,04 0,28

CE 0,63 0,06 10,10 0,00 0,50 0,75

DF – 0,02 0,28 – 0,07 0,95 – 0,56 0,53

ES 0,37 0,07 5,65 0,00 0,24 0,50

GO 0,16 0,06 2,67 0,01 0,04 0,28

MA 0,52 0,06 8,42 0,00 0,40 0,64

MG 0,18 0,06 3,03 0,00 0,06 0,29

MS 0,13 0,07 1,94 0,05 0,00 0,26

MT – 0,08 0,06 – 1,35 0,18 – 0,21 0,04

PA 0,34 0,06 5,45 0,00 0,22 0,46

PB 0,46 0,06 7,49 0,00 0,34 0,58

PE 0,35 0,06 5,75 0,00 0,23 0,47

PI 0,51 0,06 8,41 0,00 0,39 0,63

PR 0,21 0,06 3,52 0,00 0,09 0,33

RJ 0,31 0,07 4,80 0,00 0,19 0,44

RN 0,54 0,06 8,73 0,00 0,42 0,66

RO 0,01 0,07 0,14 0,89 – 0,13 0,15

RR 0,15 0,09 1,66 0,10 – 0,03 0,33

RS 0,13 0,06 2,22 0,03 0,02 0,25

SC 0,03 0,06 0,50 0,62 – 0,09 0,15

SE 0,36 0,07 5,40 0,00 0,23 0,49

[95% confidence interval

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SP 0,04 0,06 0,62 0,53 – 0,08 0,15

TO 0,49 0,06 7,84 0,00 0,37 0,61

_cons – 0,70 0,06 – 11,24 0,00 – 0,82 – 0,58

y2

alcance – 1,21 0,05 – 23,73 0,00 – 1,31 – 1,11

serra_vs._2002 0,75 0,04 16,91 0,00 0,66 0,83

AL – 0,65 0,08 – 7,73 0,00 – 0,81 – 0,48

AM – 1,48 0,09 – 16,89 0,00 – 1,65 – 1,31

AP – 0,45 0,12 – 3,88 0,00 – 0,68 -0,22

BA – 0,71 0,08 – 9,15 0,00 – 0,86 – 0,56

CE – 0,50 0,08 – 6,28 0,00 – 0,66 – 0,35

DF – 0,43 0,36 – 1,20 0,23 – 1,14 0,27

ES – 0,34 0,09 – 4,03 0,00 – 0,51 – 0,18

GO – 0,12 0,08 – 1,47 0,14 – 0,27 0,04

MA – 0,98 0,08 – 12,33 0,00 – 1,14 – 0,83

MG – 0,36 0,08 – 4,74 0,00 – 0,51 – 0,21

MS 0,01 0,09 0,06 0,95 – 0,16 0,17

MT – 0,20 0,08 – 2,45 0,01 – 0,36 – 0,04

PA – 0,28 0,08 – 3,50 0,00 – 0,44 – 0,12

PB – 0,55 0,08 – 6,94 0,00 – 0,71 – 0,40

PE – 1,14 0,08 – 14,24 0,00 – 1,30 – 0,98

PI – 0,49 0,08 – 6,10 0,00 – 0,64 – 0,33

PR – 0,01 0,08 – 0,14 0,89 – 0,16 0,14

RJ – 0,64 0,08 – 7,61 0,00 – 0,81 – 0,48

RN – 0,53 0,08 – 6,63 0,00 – 0,69 – 0,37

RO – 0,12 0,09 – 1,32 0,19 – 0,29 0,06

RR 0,43 0,12 3,66 0,00 0,20 0,66

RS 0,07 0,08 0,94 0,35 – 0,08 0,23

SC 0,08 0,08 1,01 0,32 – 0,08 0,23

SE 0,06 0,09 0,64 0,52 – 0,11 0,22

SP – 0,05 0,08 – 0,62 0,54 – 0,20 0,10

TO – 0,31 0,08 – 3,83 0,00 – 0,47 – 0,15

_cons 0,44 0,08 5,62 0,00 0,28 0,59

Categoria base: AC

Nº simulações: 1.000

Fernando Limongi - [email protected]

Fernando Guarnieri - [email protected]

Submetido à publicação em junho de 2013.

Versão final aprovada em novembro de 2014.

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Vale a pena ser um bom prefeito?

Comportamento eleitoral e reeleição no Brasil

Pedro Cavalcante

Escola Nacional de Administração Pública

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

Resumo: Vale a pena ser um bom prefeito? Os eleitores premiam ou punem os atuais ocupantes da prefeitura com base na

gestão fiscal? De um lado, pesquisadores da escola de Michigan argumentam que eleitores são desinformados e com pouco

conhecimento político. Assim, os cidadãos tomam decisões eleitorais míopes. Por outro lado, a literatura de accountability

eleitoral, sobretudo do voto retrospectivo, defende que, embora eleitores possuam informações incompletas, suas decisões

eleitorais são competentes, logo, premiam ou punem políticos/partidos de acordo com o seu desempenho. No sentido de testar

essas hipóteses no caso brasileiro, o artigo mensura os efeitos do desempenho fiscal das prefeituras, caracterizado pelo Índice

Firjan de Gestão Fiscal, na probabilidade de reeleição em 2008. Os resultados dos modelos multivariados confirmam o voto

retrospectivo, na medida em que se observam efeitos expressivos da administração orçamentária e financeira sobre as chances

de reeleição dos prefeitos.

Palavras-chave: comportamento eleitoral; voto retrospectivo; reeleição; gestão fiscal; Brasil

Abstract: Is it worth to be a good mayor? Do voters reward or punish incumbent based on their fiscal outputs? On the one hand,

researchers of the school of Michigan claim that voters are uninformed and lack political knowledge. Hence they frequently make

myopic electoral decisions. On the other hand, the literature of electoral accountability, specially the retrospective voting, argues

that even though voters are not completely informed, they make competent electoral decisions. Ultimately, citizens vote

rewarding or punishing the incumbents based on their administration results. In order to test citizen competence and political

accountability assumptions, this article examines if voters reward better fiscal policy performance by reelecting incumbent

mayors, using indexes that reflect important aspects concerning fiscal outputs. The multivariate model results confirm the

retrospective voting since it is observed significant effects of budgetary and financial management on the chances of the

reelection of the mayors.

Keywords: electoral behavior; retrospective voting; fiscal management; Brazil

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Introdução

Vale a pena ser um bom prefeito? Como os eleitores avaliam os atuais ocupantes da prefeitura

com base na gestão fiscal? O objetivo deste artigo é responder a essas questões, ou seja, analisar se os

cidadãos premiam ou punem os políticos de acordo com o desempenho de seus governos e, por

conseguinte, geram incentivos para decisões de políticas públicas voltadas à boa gestão.

A pesquisa coloca em discussão alguns pressupostos das principais escolas de explicação do

voto: a psicossociológica e a econômica ou da escolha racional. Em termos gerais, na primeira prevalece,

desde os anos 1960, a perspectiva de que os eleitores, em sua grande maioria, carecem de informação,

conhecimento político e de um sistema de crenças estruturado, por isso, tomam decisões eleitorais

incompetentes. Por outro lado, os adeptos da visão economicista ou da escolha racional reconhecem as

limitações informacionais dos cidadãos, mas argumentam que o eleitor possui capacidade de reconhecer

seus interesses e votar naqueles que melhor defendem seus objetivos e crenças.

Diante da realidade contemporânea das democracias ocidentais, caracterizada pelo

decréscimo dos índices de identidade partidária no eleitorado e a desconfiança dos cidadãos em relação

ao poder público (MOISÉS, 2013), torna-se relevante avançar na compreensão do relacionamento entre

desempenho em termos de políticas públicas e seus efeitos no comportamento dos eleitores. O artigo

desenvolve uma análise sobre competência do cidadão e accountability política mediante o exame do

impacto do desempenho fiscal nos municípios brasileiros, caracterizado pelo Índice Firjan de Gestão

Fiscal, sobre a probabilidade de reeleição das prefeituras em 2008. Para tanto, a pesquisa testa a

hipótese de que o eleitor brasileiro premia políticos com bons desempenhos, reelegendo-os. Por

conseguinte, são gerados subsídios para a discussão dos pressupostos de competência do eleitor e,

sobretudo, do voto retrospectivo no Brasil.

Além desta Introdução, o artigo discorre objetivamente sobre as principais premissas das

teorias de comportamento eleitoral supracitadas, de modo a contextualizar a hipótese da pesquisa. Em

seguida, são apresentadas as variáveis que compõem o modelo explicativo da pesquisa com uma breve

análise descritiva da reeleição e dos índices de gestão fiscal municipal. Por fim, os resultados do modelo

estatístico e as considerações finais são debatidos.

Um esboço da teoria do comportamento eleitoral

Uma das principais correntes que interpretam o comportamento eleitoral é a

psicossociológica, também denominada escola de Michigan. Ela surge como um contraponto à

perspectiva sociológica, que defende a existência de vínculo entre a classe social e o voto no partido

(LIPSET; ROKKAN, 1967). Os primeiros refutam a hipótese de ideologia como elemento decisivo na

determinação do voto da maioria do eleitorado. Para os precursores da escola de Michigan, a identidade

partidária seria decorrente do processo de socialização política dos indivíduos, compreendida como uma

associação psicológica que as pessoas travam com um partido a partir de suas percepções, valores ou

comportamentos (CAMPBELL et al., 1960). Essa identificação não é proveniente somente dos interesses

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CAVALCANTE, P. Vale a pena ser um bom prefeito? Comportamento eleitoral...

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sociais, mas também de um sentimento afetivo que nem sempre é vinculado a conteúdos programáticos

(CAMPBELL et al., 1960).

A ideologia em geral não seria um fator decisivo que determinaria o voto da maioria do

eleitorado. A formação das opiniões advém das atitudes políticas, consolidadas através do processo de

socialização, e não, necessariamente, definidas pelas origens sociais e econômicas ou mesmo pela

classe social. De acordo com Converse (1964), uma parcela educada e reduzida da população atua

dentro de um sistema de crenças do tipo ideológico, enquanto a massa possui ideias desestruturadas e

ilógicas, como fica evidente no trecho de Figueiredo a seguir:

Converse (1964) constata que somente na porção altamente politizada da sociedade (cerca

de 15% nos países desenvolvidos) os sistemas de crenças são suficientemente

estruturados para sustentar previsões de longo prazo. Em outros níveis da sociedade,

observa-se que os sistemas de crenças vão perdendo coerência e densidade de conteúdo

político, identificando-se até mesmo sistemas verdadeiramente idiossincráticos (FIGUEIREDO,

1991, p. 24).

Os acadêmicos dessa linha argumentam que os eleitores, na sua maioria, são incompetentes,

desinformados e com pouco conhecimento (CAMPBELL et al., 1960), por conseguinte, os cidadãos tomam

decisões eleitorais míopes. Tal interpretação, construída, sobretudo, a partir de investigações nos

Estados Unidos e predominante na literatura de comportamento eleitoral nas últimas cinco décadas,

reforça a ideia de que os eleitores são insuficientemente engajados na política para terem condições de

tomar decisões eleitorais que sejam fundamentadas na compreensão das políticas públicas (GOREN,

2013; BARTELS, 2008). Mais recentemente, a obra clássica The American voter foi revisitada por Lewis-

Beck et al. (2008). Dentre suas principais conclusões, reiteram a percepção de que os cidadãos

continuam altamente descomprometidos com posicionamentos políticos sólidos, embora identifiquem

mais vinculações dos eleitores com partidos e ideologia do que na obra de 1960.

Fundamentada nesse debate, parte significativa dos pesquisadores passou a se preocupar

com a questão do grau de conhecimento político dos cidadãos. Se, por um lado, saber de política pode

ser um fator de poder (DELLI CARPINI; KEETER, 1996), por outro, a desinformação pode distorcer as

preferências coletivas (KUKLINSKI et al., 2000) e, consequentemente, gerar decisões eleitorais irracionais

(BARTELS, 2008; CAPLAN, 2007).

Contrariando os componentes psicossociológicos das motivações individuais dos eleitores, a

escola da escolha racional ou economicista introduz uma leitura mais objetiva do comportamento do

eleitor. De acordo com Anthony Downs (1957), o cidadão, dentro de uma racionalidade individual,

comporta-se diante de uma urna como um consumidor no mercado, isto é, age racionalmente sob a

lógica de custo-benefício. A ideologia serve assim como uma linguagem sintética que reduz os custos de

informação do eleitor.

A ênfase na racionalidade pressupõe o caráter instrumental do voto – capacidade do eleitor

em reconhecer seus interesses e votar naqueles que melhor convergem com seus objetivos e crenças. O

eleitor se importa com a capacidade da política em gerar os benefícios esperados; em caso de bons

resultados na economia, aumentam-se as chances da situação, enquanto as chances da oposição

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tendem a se elevar na medida em que o governo não apresenta bons desempenhos no campo

econômico. Em suma, prevalece uma tendência a votar com base nos efeitos da economia no bolso dos

cidadãos.

Dentro dessa lógica, a perspectiva de accountability eleitoral defende que a democracia,

supostamente, tende a produzir governos controlados e responsivos à população, cujos partidos políticos

atuam como atores centrais, dentro de processo eleitoral livre, justo e frequente. As eleições, assim,

possuem como função central propiciar aos cidadãos um momento para realizarem a avaliação dos

governantes (POWELL, 2000; MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 1999). O processo eleitoral é o principal

mecanismo da accountability, utilizado pelos eleitores não apenas para punir os atuais ocupantes dos

cargos, visão padrão do voto retrospectivo (FIORINA, 1981; KEY JR., 1966), mas também para escolher os

melhores governantes, sob a ótica do voto prospectivo (FEREJOHN, 1999; MARAVALL, 2009). Tais

interpretações ficam claras nas palavras de Fearon (1999, p. 82):

Existem dois principais mecanismos no qual as eleições podem trazer as políticas públicas

que os eleitores desejam – punição e seleção. Políticos eleitos podem ser motivados a

escolher políticas que a população deseja, seja porque isso os ajudará a serem reeleitos

(punição) ou porque o eleitorado é capaz de selecionar “tipos bons” que são competentes,

íntegros e compartilham as metas do eleitorado, independente dos incentivos da reeleição.

No caso específico do voto retrospectivo, foco da presente pesquisa, vale ressaltar que um

dos trabalhos mais influentes, Retrospective voting in American national elections, de Morris Fiorina

(1981), atribui importância eleitoral não apenas às oscilações econômicas, mas também aos resultados,

em termos de política externa, leia-se guerras, e os impactos nas condições de vida da população.

Mesmo desinformados, os cidadãos possuem um pouco de dados que possibilitam interpretar o

desempenho do governo. Quanto menos eles sabem sobre os detalhes de políticas públicas vigentes,

mais eles tendem a se basear no voto retrospectivo como atalho para tomar decisões eleitorais.

Mesmo decidindo de forma racional, o cidadão possui um rol de alternativas, condicionadas

pelo contexto que o cerca, sobretudo pelo acesso à escolarização. Compreender o comportamento

eleitoral não se restringe somente à análise da ação racional ou não racional do eleitor, mas também aos

diferentes contextos socioeconômicos em que os indivíduos vivem. A racionalidade é restringida pelo

contexto em que se encontram, especialmente, pelas informações que as elites políticas lhes fornecem.

O reconhecimento dos baixos graus de informação e de estruturação ideológica não implica,

necessariamente, sustentar a afirmação de que os setores populares da população tenham um

comportamento político irracional. Mesmo se eleitores não são totalmente informados, podem se basear

em atalhos de informação (shortcuts) como palpites ou opiniões alheias para tomar decisões eleitorais

(LUPIA, 1994; POPKIN, 1991). Na mesma direção, a pesquisa recente de Paul Goren (2013) argumenta

que quase todos os cidadãos norte-americanos, independentemente de seus níveis de sofisticação

política, possuem alguma opinião sobre três temas centrais da agenda governamental: papel do governo,

visões distintas de normas morais e papel do poder militar.

Ao desenvolver de forma sucinta o debate sobre o comportamento do eleitor, esta pesquisa

procurou fundamentar teoricamente sua pergunta central: qual o efeito do desempenho governamental

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sobre o comportamento dos eleitores? As análises empíricas seguintes almejam examinar se o eleitorado

brasileiro se comporta de forma racional ao avaliar as práticas de gestão, nesse caso específico de

política fiscal em nível municipal, e, logo, se isso gera incentivos eleitorais positivos para que o prefeito

atue de forma mais responsável.

Eleitor brasileiro premia ou pune?

Modelo explicativo

No sentido de avançar na complexa tarefa de compreender o comportamento do eleitor

brasileiro, a pesquisa passa a analisar se os cidadãos tendem a premiar ou a punir os políticos de acordo

com os desempenhos de seus governos. Para tanto, a investigação foca nos efeitos dos resultados da

gestão fiscal sobre as chances de reeleição do prefeito.

A reeleição para os cargos do Executivo, isto é, a possibilidade que têm o prefeito, o governador

ou o presidente de renovar o seu mandato de forma consecutiva, é um fenômeno relativamente recente

na democracia brasileira. Somente em 1997, com a Emenda Constitucional nº 16, a reeleição passou a

vigorar, permitindo ao ocupante de cargo do Executivo concorrer mais uma vez.

A partir desse cenário, o prefeito no fim do mandato possui algumas opções, tais como

abandonar a carreira, candidatar-se a vereador, esperar o próximo pleito estadual/nacional ou

candidatar-se à reeleição. De modo geral, essa última opção tem sido a mais utilizada pelos políticos

municipais. Nas eleições de 2000, a primeira após a instituição da reeleição, 65% dos prefeitos optaram

pela candidatura à reeleição. O mesmo ocorreu nas eleições de 2008, quando esse percentual girou em

torno de 55% (aproximadamente 3 mil prefeituras), mesmo com uma parcela importante não podendo

mais se candidatar, por já estar no segundo mandato.

Outra alternativa analítica comumente utilizada é examinar o comportamento do eleitor em

relação ao partido político. Todavia, a notória fragilidade do sistema partidário brasileiro (MAINWARING,

1999) é reforçada também no caso das reeleições em nível municipal. A troca de partidos para concorrer

ao segundo mandato de prefeito é bastante expressiva, aproximadamente 30%, e se manteve no mesmo

patamar nas três primeiras eleições após o estabelecimento de reeleição (2000, 2004 e 2008). Um terço

dos prefeitos que concorrem à reeleição troca de partido, porém, como a informação dessa mudança não

pode ser verificada de forma sistemática e abrangente no pleito seguinte, não é possível avaliar a qual

partido o prefeito esteve filiado na maior parte do mandato. Consequentemente, a alternativa de analisar

o comportamento do eleitor em relação ao desempenho de um partido é comprometida.

A variável dependente desta pesquisa é a reeleição, 0 – atual prefeito perde a eleição, ou 1 –

atual prefeito vence o pleito. A probabilidade média de reeleição nas eleições de 2008 foi relativamente

alta, em torno de 0,69. Em outras palavras, de cada dez candidatos à reeleição, sete foram bem-

sucedidos. Entretanto, essa performance não foi uniforme quando analisamos os resultados segregando

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os municípios por região e porte populacional1. A Figura 1 retrata essa diversidade com destaque para a

menor média nas regiões de menor densidade demográfica, Norte e Centro-Oeste. Quanto ao porte, os

prefeitos de municípios maiores tiveram em média um desempenho melhor no pleito, em especial, no

último grupo de grandes cidades (acima de 500 mil habitantes).

Figura 1

Probabilidade média de reeleição, por região e porte populacional

Fonte: Elaboração própria com base em dados do TSE.

Para explicar os determinantes da reeleição nos municípios brasileiros, as principais variáveis

independentes envolvem aspectos da gestão fiscal. Cabe ressaltar a importância desse campo de política

pública em nível local no Brasil, principalmente devido ao amplo processo de descentralização fiscal pós-

Constituição de 1988, no qual os municípios passaram a desempenhar papel de destaque, com aumento

sensível das suas responsabilidades, tanto no âmbito das receitas quanto no das despesas (AFONSO;

ARAÚJO, 2000; SOUZA, 2004). As prefeituras ampliaram seu poder político e tributário com competência

legal para arrecadar uma série de impostos e taxas específicas que são suscetíveis à deliberação do

Legislativo local.

O olhar para essa esfera de atuação dos governos municipais possibilita analisar se os

1 A classificação de porte populacional é a mesma utilizada pelo IBGE, caracterizada por sete portes: 1) até 5.000 habitantes; 2)

de 5.001 até 10.000; 3) de 10.001 até 20.000 habitantes; 4) de 20.001 até 50.000; 5) de 50.001 até 100.000 habitantes; 6)

100.001 até 500.000; 7) acima de 500.000 habitantes.

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cidadãos premiam ou punem políticos/partidos de acordo com o desempenho de seu governo e, por

conseguinte, geram incentivos positivos para decisões de políticas públicas voltadas para a boa gestão.

Assim, a principal hipótese a ser testada é: o eleitor brasileiro premia políticos com bons

desempenhos, reelegendo-os. No caso desta pesquisa, os prefeitos com melhor desempenho na gestão

fiscal tendem a ser reeleitos.

Para testar a hipótese, a pesquisa utiliza o Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF2), bem como

os indicadores que o compõem. Esse índice mede de forma abrangente a disciplina e a qualidade da

gestão orçamentária e financeira dos municípios brasileiros a partir de cinco medidas:

i. Receita própria: é medida pela razão da receita própria sobre a receita corrente líquida e visa avaliar o

grau de autonomia da prefeitura em relação às transferências intergovernamentais.

ii. Gastos com pessoal: corresponde ao percentual das despesas com pagamento de pessoal em relação

à receita corrente líquida e objetiva mensurar o grau de comprometimento das receitas com esse

elemento de despesas, em face das limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

iii. Investimentos: reflete a relação entre a parcela de investimentos das prefeituras e a receita corrente

líquida e visa avaliar o grau de comprometimento do governo local com esse tipo de elemento de

despesa.

iv. Liquidez: consiste na razão entre os restos a pagar e os ativos financeiros disponíveis pela prefeitura

para o exercício seguinte. Em síntese, busca verificar quão responsável e crível é a gestão financeira do

município.

v. Custo da dívida: corresponde à relação entre os gastos com amortizações e juros e a receita líquida

real. Logo, possibilita verificar o peso dos encargos da dívida no orçamento municipal.

Na composição do Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF3), as primeiras quatro medidas

possuem peso 22,5% e a última 10,0% no resultado final. Assim como as medidas supracitadas, o IFGF

também varia entre 0 e 1, quanto mais próximo de 1, melhor a gestão fiscal do município. Para fins

deste artigo, utilizam-se as médias dos índices de 2006 e 2008. A Figura 2 retrata o quão díspares são

os desempenhos dos governos municipais no exercício das atividades relativas ao gerenciamento

orçamentário e financeiro. Em síntese, as distribuições dos índices – agregadas por região e porte

populacional – expõem padrões distintos de desempenhos das prefeituras e reforçam a relevância de

mensurar seus impactos sobre a reeleição dos prefeitos brasileiros.

2 O Anexo deste artigo detalha as fórmulas de cálculo de cada um dos índices. Para aprofundamento dessa metodologia, ver

Firjan (2012).

3 A base de dados primária para a elaboração do índice advém do Relatório Finbra da Secretaria do Tesouro Nacional, que

reporta as informações contábeis anualmente apresentadas pelas prefeituras em atendimento à Lei 4.320, de 17 de março de

1964, e do artigo 51 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

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Figura 2

Distribuição dos índices IFGF por região e porte populacional, 2006-2008

Fonte: Elaboração própria com base em dados do Firjan.

É importante frisar que a política fiscal é uma dimensão central que retrata a forma como as

políticas são conduzidas e seus subsequentes efeitos no dia a dia da população, como bem pondera

Peters (1991, p. 3): “embora possa parecer muito técnico e difícil de entender, a política fiscal em várias

maneiras é apenas um tipo de política pública”. Como exemplo, se, por um lado, a arrecadação de

impostos gera mais receitas para o governo, por outro, afeta negativamente o bolso do cidadão.

O modelo multivariado incorpora ainda outros fatores, especialmente, da dimensão política,

como também controles de caráter socioeconômico e demográfico numa base de dados de

aproximadamente 3 mil municipalidades. Como foi possível perceber na Figura 2, a dinâmica fiscal

também varia de acordo com o porte populacional. Por exemplo, na receita própria é nítida a relação

positiva do índice com o incremento da população, o que pode ser explicado pelo maior dinamismo

econômico das cidades médias e grandes. De modo a capturar essas nuances, além do modelo com a

totalidade dos prefeitos que tentaram reeleição, também são analisados, de forma secundária, os efeitos

da gestão fiscal em três grupos de municípios: a) até 20.000 habitantes (portes de 1 a 3); b) até

100.000 habitantes (portes 4 e 5); c) acima de 100.001 habitantes (portes 6 e 7).

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Na esfera política, a primeira variável para explicar a reeleição é a força eleitoral do prefeito,

calculada pela margem de vitória em relação ao segundo colocado na eleição anterior, quando foi eleito,

e visa mensurar os efeitos de uma suposta base prévia do candidato. A variável é um proxy do eleitorado

fiel ao candidato dentro da suposição de que existem eleitores fiéis, independentemente do desempenho

do prefeito e que constituem um estoque no momento de partida da campanha (PELTZMAN, 1990).

A segunda variável política é a competição eleitoral4 no município, medida pelo histórico do

Número Efetivo de Partidos (NEP) nas disputas para o cargo majoritário – média dos pleitos de 1996 a

2004. A expectativa da pesquisa é de que, quanto maior a competição na eleição municipal, menor a

probabilidade de reeleição.

De modo a testar a influência do alinhamento partidário com outras esferas de governo sobre

as chances de reeleição, o modelo incorpora duas variáveis dummies: partido do governador e coalizão

do presidente5. Devido à relevância desses cargos na condução de importantes políticas públicas, como

políticas macroeconômicas e grandes obras, espera-se que a proximidade com o partido do governador e

do presidente aumente a probabilidade de reeleição do prefeito.

Logicamente, os fatores estruturais também podem impactar as chances de reeleição e, por

conseguinte, o comportamento dos eleitores. Nesse sentido, são controlados os efeitos de anos de

estudo da população, taxa de urbanização, log da população, bem como a renda per capita municipal.

Esses dados são oriundos do IBGE e se referem ao ano de 2008, com exceção da variável educacional,

cuja fonte é o Censo Demográfico de 2000, também do IBGE.

Resultados

Por se tratar de um modelo explicativo que possui uma variável dependente binária, a

reeleição dos prefeitos (varia de 0 a 1), a pesquisa utiliza um dos modelos mais aplicados nesses casos,

o modelo de regressão múltipla logit (WOOLDRIDGE, 2006). O número de observações, no modelo com

todos os municípios, é bastante expressivo, com um pouco mais de 2.900 prefeituras. Naturalmente,

com a divisão em três grupos populacionais, o N se reduz na medida em que aumenta o tamanho das

cidades.

Primeiro, foram rodados dois modelos para o conjunto total de municipalidades, um com o

desempenho do prefeito, representado somente pelo índice Firjan de gestão fiscal composto, e, o

segundo, com esse índice desagregado nos seus cinco componentes. As estimativas são bastante

interessantes dentro da discussão deste artigo, como é possível observar no Quadro 1: à exceção dos

4 Existem diversas formas de calcular a competição eleitoral, mas o método mais utilizado é o Número Efetivo de Partidos (NEP),

que ganhou uma versão mais sofisticada elaborada por Grigorii Golosov (2010):

(Np: é o indicador de competição político-partidária por ano eleitoral; S1: é a maior componente, ou seja, a maior proporção na

divisão de votos partidários; Si: é a outra ou as outras componente(s) de proporção na divisão de votos partidários; x: é a menor

componente, ou seja, a menor proporção na divisão de votos partidários). 5 São considerados partidos da coalizão do presidente aqueles que possuem ao menos uma pasta presidencial no ano de 2008.

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índices de receita própria e custo da dívida, os índices de gestão fiscal obtidos pelos prefeitos que

concorrem à reeleição são fatores com efeitos significativos, tanto estatisticamente quanto em termos

substantivos, na probabilidade de sucesso nas eleições.

No caso específico da receita, o fato de a grande maioria das municipalidades brasileiras não

possuir arrecadação própria, sobretudo as de menor porte populacional, como exposto na Figura 2, pode

ser a justificativa para a inexistência de efeitos dessa dimensão da política fiscal.

Quadro 1

Determinantes da reeleição de prefeitos, 2008

Modelo 1

(totalidade)

Modelo 2

(totalidade)

Modelo 3

(até 20 mil hab.)

Modelo 4

(até 100 mil hab.)

Modelo 5

(acima de 100 mil

hab.)

IFGF 2,52***

(0,4)

IFGF Receita

própria

– 0,47 – 0,63 – 0,26 – 1,52

(0,37) (0,52) (0,65) (1,46)

IFGF Gasto com

pessoal

0,83*** 0,93*** 0,08 1,54

(0,30) (0,36) (0,57) (1,93)

IFGF Investimentos 1,12*** 0,97*** 1,77*** 1,05

(0,19) (0,23) (0,42) (1,15)

IFGF Liquidez 0,39*** 0,36*** 0,6** – 0,42

(0,13) (0,16) (0,3) (0,85)

IFGF Custo da

dívida

0,11 – 0,1 0,22 – 1,26

(0,26) (0,32) (0,53) (1,33)

Competição

eleitoral

0,11 0,14 0,02 0,3 0,28

(0,12) (0,12) (0,14) (0,25) (0,42)

Margem de vitória 1,60*** 1,58*** 1,3*** 2,14*** 7,13**

(0,30) (0,30) (0,33) (0,73) (2,95)

Partido do

governador

0,21* 0,20* 0,34*** 0,03 – 0,8

(0,11) (0,11) (0,14) (0,25) (0,51)

Coalizão do

presidente

– 0,00 – 0,00 0,08 – 0,20 – 0,16

(0,08) (0,08) (0,10) (0,17) (0,47)

Anos de estudo – 0,12*** – 0,05 – 0,08 – 0,22** 0,42

(0,04) (0,05) (0,06) (0,11) (0,35)

Taxa de

urbanização

0,33 0,42* 0,41 0,93* – 1,85

(0,22) (0,22) (0,25) (0,55) (2,9)

Renda municipal per capita

– 0,00 – 0,00 – 0,00 0,00 – 0,00

(0,00) (0,00) (0,00) (0,00) (0,02)

População 0,00 0,06 – 0,17* 0,4* 0,25

(0,04) (0,05) (0,09) (0,22) (0,41)

Constante – 0,73* – 1,63*** 0,8 – 5,15** – 3,55

(0,40) (0,60) (1,0) (2,33) (5,0)

Pseudo R2 0,02 0,02 0,03 0,05 0,1

N 2916 2916 2040 729 147

Fonte: Elaboração própria.

Notas: Coeficientes estimados. Erros-padrão entre parênteses.

Significância estatística: * significa valor-P < 0,1; ** valor-P < 0,05; *** valor-P < 0,01.

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O modelo 2 desmembra o IFGF em seus cinco componentes. No gasto com pessoal, um bom

índice no controle dessas despesas gera o aumento na probabilidade de reeleição. O coeficiente positivo

estimado de 0,83 sugere que o comprometimento excessivo dos recursos financeiros no pagamento com

os funcionários públicos, prática historicamente comum na administração pública brasileira, é

penalizado pelos eleitores. Com efeito, o comportamento responsável do prefeito não é apenas

formalmente induzido ao cumprimento das restrições impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas

também pelos incentivos oriundos das urnas.

No que tange aos investimentos, em nível municipal, tais despesas normalmente são

destinadas à construção de hospitais e escolas, saneamento básico, pavimentação, dentre outras.

Entretanto, as vinculações de despesas constitucionais e os limites da LRF acabam por tornar esse tipo

de gasto em um dos que mais refletem a discricionariedade e a qualidade da gestão fiscal da prefeitura,

haja vista que a parcela destinada a investimentos demanda do prefeito a capacidade de cumprir as

regras supracitadas de maneira mais eficiente, de modo a gerar excedentes no orçamento para serem

investidos. Nesse contexto, as evidências do modelo indicam que tal esforço do prefeito é recompensado

no momento da avaliação eleitoral na medida em que o coeficiente estimado é de 1,12.

O IFGF Liquidez, que, sucintamente, reflete a capacidade e a subjacente responsabilidade do

prefeito municipal em honrar seus compromissos financeiros no exercício vigente, também demonstrou

ser um fator que influencia a probabilidade de reeleição do prefeito. O indicador de liquidez na análise

descritiva (Figura 2) apresentou a maior variação entre os municípios. Contudo, seus efeitos estimados

são os menores dentre as dimensões de gestão fiscal, com impacto significativo. Uma explicação pode

ser o alto grau de especificidades dessa questão, bem como a dificuldade do cidadão em perceber os

impactos no seu dia a dia.

O coeficiente estimado do índice composto (IFGF) – modelo 1 – é altamente significativo do

ponto de vista estatístico, refletido no seu tênue intervalo de confiança. Em termos substantivos, a

estimativa, também bastante expressiva como pode ser visualizada na Figura 3, retrata a relação

estimada entre a probabilidade de reeleição do prefeito e o índice da sua gestão fiscal, mantendo-se as

demais variáveis explicativas do modelo fixas. O resultado indica que a variação do IFGF de 0 para 1

tende a refletir, em média, incremento de 25% nas chances de o prefeito se reeleger, ceteris paribus.

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Figura 3

Relação entre probabilidade de reeleição e gestão fiscal, 2008

Fonte: Elaboração própria.

Em síntese, as evidências empíricas de ambos os modelos indicam que o desempenho fiscal

dos prefeitos importa nas tentativas de reeleição. Portanto, é possível confirmar a hipótese de que o

eleitor brasileiro premia políticos com bons desempenhos, reelegendo-os, quando se analisam os efeitos

da administração orçamentário-financeira. Da mesma forma, os resultados sugerem que o cidadão vota

de forma competente e, consequentemente, oferece incentivos positivos para que os políticos tomem

decisões em termos de políticas públicas voltadas para a boa gestão.

Quanto à esfera política, as variáveis mostram efeitos bastante semelhantes em ambos os

modelos. A competição eleitoral na municipalidade não apresentou efeitos significativos, ou seja, a

probabilidade de reeleição do prefeito independe do grau de acirramento da disputa nas eleições

anteriores. Do mesmo modo, o fato de ser alinhado à coalizão do presidente da República não aumenta

as suas chances de reeleger-se.

Por outro lado, a margem do prefeito na eleição anterior, que pode ser considerada como um

proxy do seu “patrimônio político”, é um fator que possui um impacto estatisticamente significativo na

reeleição. Em termos substantivos, cada 10% de diferença em relação ao segundo colocado no último

pleito refletem em incremento de 1,6% nas chances do prefeito. O alinhamento com o governador

também influencia positivamente na possibilidade de manutenção do cargo de prefeito. Mesmo que o

efeito estimado não seja tão expressivo, o resultado confirma o senso comum de que ser do partido do

governador é um aspecto importante não apenas para facilitar a administração da prefeitura como

também para conseguir outro mandato.

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Em relação aos fatores estruturais, a população e a renda do município não apresentaram

efeitos significativos. No modelo 1, o coeficiente estimado de anos de estudo sugere que, quanto mais

educada é a população, menores são as chances de o prefeito se reeleger. Enquanto, no segundo

modelo, a urbanização se apresenta como um aspecto estatisticamente significativo. Não obstante, de

modo geral, os modelos demonstram que, ao menos do ponto de vista de efeitos diretos, os fatores

estruturais pouco importaram na probabilidade de os prefeitos se reelegerem em 2008.

Quanto aos demais modelos que focam em três grupos de municípios, os resultados

confirmam a expectativa de que os efeitos da gestão fiscal sobre a probabilidade de reeleição variam de

acordo com o porte populacional. Se, por um lado, nas cidades médias e grandes (modelo 5), o

desempenho fiscal dos prefeitos não demonstrou ter impacto estatisticamente significativo, nos outros

dois grupos (modelos 3 e 4) o impacto é relevante. Nesses últimos, embora não apresentado no Quadro

1, as estimativas da regressão com o índice IFGF composto apresentaram coeficientes positivos e

significativos de 2,3 e 3,5 para o conjunto de municípios com até 20 mil e entre 20 mil e 100 mil

habitantes, respectivamente.

Os coeficientes significativos do modelo com a totalidade (modelo 2) praticamente se

repetem nos municípios de pequeno porte, que, em termos objetivos, representam mais de dois terços

do total. No modelo 4, embora o efeito significativo do gasto com pessoal não seja observado, os

impactos das variáveis de investimentos e liquidez são ainda mais intensos.

Por fim, na esfera política, é perceptível que a margem de vitória mantém uma influência

substantiva sobre a reeleição, aumentando o impacto na medida em que se eleva o porte populacional

em análise. Em contrapartida, o alinhamento com o governador é significativo apenas no primeiro grupo.

Considerações Finais

O artigo almejou contribuir para o importante desafio de compreender o relacionamento

entre o desempenho dos governos e o comportamento eleitoral. O elo entre políticas públicas e voto não

é nada trivial, uma vez que envolve um denso debate teórico e também um conjunto de limitações de

caráter metodológico. Diante desse cenário, o artigo testou premissas basilares dessa discussão como a

competência do eleitor e a existência de componentes do voto retrospectivo na política brasileira.

Para tanto, optou-se pelo uso de medidas que refletem o desempenho no tocante ao

gerenciamento orçamentário e financeiro dos prefeitos. Os índices Firjan de Gestão Fiscal sintetizam de

forma abrangente e sofisticada dimensões centrais do funcionamento da política fiscal em nível

municipal. As medidas também englobam um número expressivo e representativo de prefeituras

brasileiras, o que possibilita elevar os graus de liberdade do modelo estatístico e, sobretudo, amplia a

capacidade de validade externa ou de generalização das inferências.

Os resultados dos modelos contribuem para enriquecer o debate teórico sobre políticas

públicas e comportamento eleitoral, na medida em que as estimativas corroboram para a confirmação

da hipótese de que o eleitor brasileiro premia os políticos com bons desempenhos, reelegendo-os,

quando se analisam os efeitos da administração orçamentária e financeira.

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100

Algumas implicações de caráter substantivo podem ser analisadas a partir desses resultados.

A primeira é que, ao menos nesse caso, eleições municipais de 2008, o cidadão brasileiro valorizou a

boa gestão, o que coloca em xeque o pressuposto central da corrente psicossociológica de que o

eleitorado vota de forma míope. Não obstante, é importante reconhecer que tal premissa é

predominantemente fundamentada em análises do comportamento eleitoral a partir de uma perspectiva

individual, diferentemente deste artigo, que tem como foco o comportamento agregado do voto. As

evidências também sugerem que o voto retrospectivo se confirma, em convergência com os preceitos da

perspectiva de accountability eleitoral. Com efeito, a mensagem das urnas gera incentivos positivos para

que os políticos tomem decisões voltadas para o bom desempenho das contas públicas e, por

conseguinte, das políticas públicas.

A análise a partir de grupos de municípios demonstrou ainda que os impactos da gestão fiscal

e de fatores de natureza política variam de acordo com o porte populacional das cidades. Todavia, os

resultados, de modo geral, não contrariam a hipótese da pesquisa, haja vista que nas abordagens da

grande maioria das prefeituras o efeito do desempenho orçamentário e financeiro se mostrou

significativo sobre as chances de reeleição do governante.

É importante também ressaltar algumas limitações de caráter analítico e metodológico que

essa investigação enfrenta. Primeiro, afirmar que o eleitor premia aqueles que apresentaram uma boa

gestão fiscal não, necessariamente, pressupõe que todos os cidadãos conheciam o índice utilizado ou

tinham completa informação acerca das finanças públicas municipais. Entretanto, embora não

conhecessem o índice ou não monitorassem sistematicamente a gestão da prefeitura, os resultados

empíricos sugerem que, de alguma forma, o eleitor deveria avaliar bem o ocupante do cargo, seja pelo

efeito direto do gerenciamento orçamentário e financeiro, seja pelos seus reflexos indiretos sobre as

condições de vida da população. Isso de certa forma refletiu na relação positiva com as chances de

reeleição do prefeito. A constatação não implica que o eleitor brasileiro seja bem informado ou tenha

conhecimento sólido de políticas públicas. Da mesma forma, não é possível saber sobre como os

eleitores entendem a responsabilização das atribuições de cada nível de governo, o que, em certa

medida, é negligenciado pela perspectiva do voto retrospectivo (RUDOLPH, 2003; STEIN, 1990). Não

obstante, tais questões não impedem que se constate a valorização dos políticos que realizaram de

forma bem-sucedida suas atribuições, como claramente identificado na discussão dos resultados neste

artigo.

As descobertas desta pesquisa devem ser interpretadas como preliminares, por analisar o

impacto de uma dimensão da administração municipal, que, mesmo altamente relevante, não engloba

todas as atribuições dos prefeitos. Porém, o resultado dessa investigação abre um fértil e promissor

caminho para avançarmos nas análises da relação entre desempenho governamental e eleições,

incorporando outras dimensões de políticas públicas, esferas de governo e processos eleitorais.

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WOOLDRIDGE, J. M. Introdução à econometria: uma abordagem moderna. 2ª ed. São Paulo: Thompson, 2006.

Anexo

Fórmulas de cálculo dos índices Firjan de gestão fiscal

1. Receita própria

Caso 1: 50%

Caso 2: 0

Caso 3: 50%

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2. Gasto com pessoal

Caso 1: 30%

Caso 2: 60%

Caso 3: 30% < 60%

3. Investimentos

Caso 1: 20%

Caso 2: 0%

Caso 3: 20% x 5

4. Liquidez

Caso 1: 1

Caso 2: 0%

Caso 3: 1

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5. Custo da dívida

Caso 1: 0

Caso 2: 13%

Caso 3: 13%

Pedro Cavalcante - [email protected]

Submetido à publicação em janeiro de 2014.

Versão final aprovada em maio de 2014.

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A política de segurança pública no Brasil:

uma análise dos gastos estaduais (1999-2010)

Iris Gomes dos Santos

José Geraldo Leandro Gontijo Doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Federal de Minas Gerais

Ernesto F. L. Amaral Pesquisador Associado na RAND Corporation (Estados Unidos)

Resumo: Este artigo analisa os gastos estaduais em segurança pública no período de 1999 a 2010, observando principalmente

suas relações com as perspectivas ideológicas dos partidos eleitos para o Poder Executivo (governador). Testou-se, sobretudo, a

hipótese de que o gasto com a política de segurança pública seria maior em estados governados por partidos de direita, uma vez

que parte da literatura nacional aponta para a existência de maior preocupação desse espectro político-ideológico com a função

de controle social. Foram utilizados modelos de regressão multivariada que indicaram os seguintes achados: a) variação positiva

dos gastos quando os partidos são de esquerda e centro, comparados aos partidos de direita; e b) relativa aproximação dos

percentuais de arrecadação investidos em segurança nos estados, independentemente dos partidos nos governos.

Palavras-chave: segurança pública; instituições subnacionais; gastos estaduais

Abstract: This article analyzes the public spending on public safety policy in Brazil in the period of 1999-2010, noting particularly

its relations with the ideological perspectives of the parties elected to the Executive (state governments). It was tested especially

the hypothesis that spending on public safety policy would be greater in states ruled by right-wing parties, as part of the national

literature points to the existence of most concern this political-ideological spectrum with the function social control. We used

multivariate regression models and the main findings were: a) increased spending in left-wing and center-wing parties, compared

to the right-wing parties; and b) approximation of the percentages of the collection invested in safety policy in the states,

regardless of the incumbent parties.

Keywords: public safety policy; sub national institutions; public spending

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Introdução1

A temática da segurança pública tem despertado demasiada atenção no cenário político brasileiro

nos últimos dez anos, configurando-se como um campo mais amplo e não exclusivo das agendas

corporativas de organizações policiais estaduais. Tal atenção, dentre outros fatores, decorre do avanço

acelerado da criminalidade e da violência após a década de 1980, notadamente nas regiões

metropolitanas e cidades de médio porte – evidenciado pelos índices de violência letal em escala

epidêmica2 e também pela constatação de que o sistema de segurança pública brasileiro carece de

amplas reformas administrativas e institucionais a fim de garantir espaços seguros de convivência

democrática e promoção da cultura de paz (SOARES, 2005; SENTO-SÉ, 2005; CANO, 2006). Nessa direção,

a segurança pública tem se constituído como um problema recorrente no campo político, tendo em vista

que as violências e criminalidades são construções resultantes do confronto de interesses na vida social,

representam custos diretos e indiretos que ultrapassam os limites da esfera privada e individual, e,

consequentemente, influenciam os investimentos econômicos, gastos com saúde pública, educação,

assistência social, geração de renda, arrecadação de impostos e os processos eleitorais em si mesmos

(BLAU; BLAU, 1982; BRASIL, 2003; SOARES, 2005; SAPORI, 2007; TOURINHO, 2008).

Análises sobre o setor da segurança a partir do ponto de vista das relações entre instituições,

atores e políticas públicas de segurança não têm sido abordadas de forma suficiente pelos estudiosos

brasileiros (SAPORI; ANDRADE, 2007). Como afirmam Sátyro (2006), Borges (2010) e Figueiredo (2010),

em que pese a situação das instituições estaduais como objeto de estudo da ciência política brasileira,

existem poucos trabalhos voltados ao entendimento dos processos de formulação e implementação de

políticas nesse nível. Incluem-se nessa lacuna os estudos sobre os gastos e investimentos públicos e sua

relação com a política (politcs) no nível estadual. Salienta-se que estudos mais recentes sobre gastos

públicos no setor de segurança estão voltados à identificação dos investimentos federais e municipais – o

que é relevante, mas não auxilia de maneira objetiva a compreensão dos aspectos relacionados aos

gastos no nível de governo, cuja responsabilidade sobre a política é constitucionalmente compulsória.

A finalidade deste artigo, portanto, é analisar quantitativamente os gastos estaduais em

segurança pública no Brasil no período de 1999-2010 – abarcando três mandatos do Executivo –

observando, principalmente, suas relações com o arcabouço político. Testou-se a hipótese de que o

gasto em segurança pública é maior em estados governados por partidos cuja orientação ideológica é de

direita, uma vez que parte da literatura da área aponta empenhos partidários diferentes, sendo as

políticas de segurança prioridades de governos cujos vieses ideológicos enfatizam a função de controle

social. Quatro variáveis independentes – variáveis de controle – foram admitidas em função de indicações

da literatura e de suas importâncias no arranjo da ação governamental estadual e, consequentemente,

pela plausível interferência que podem exercer sobre os gastos: i) regiões geográficas dos estados; ii)

índice de criminalidade letal por 100 mil habitantes; iii) capacidade fiscal (receita estadual); e iv) tipos

de secretarias estaduais.

1 Os autores deste artigo agradecem aos pareceristas anônimos pelas sugestões e contribuições reflexivas. 2 São considerados casos epidemiológicos os estados ou países que apresentam curvas ascendentes de criminalidade e violência

letal, registrando índices acima de 10 mortes por 100 mil habitantes (Organização Mundial da Saúde, OMS).

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SANTOS, I. G.; LEANDRO GONTIJO, J. G.; AMARAL, E. F. L. A política de segurança...

107

Para conduzir esse esforço reflexivo, torna-se necessário partir de uma breve contextualização

do arranjo institucional da segurança pública no Brasil – próxima seção do artigo. Os dados e a

metodologia utilizados estão expostos na terceira seção, seguidos da apresentação e da análise dos

resultados – quarta seção – além das considerações finais.

Política pública de segurança no Brasil: aspectos institucionais e políticos relevantes

à compreensão da dinâmica dos gastos no setor

A segurança pública não deve ser compreendida apenas como função e/ou resultado da ação

de instituições públicas que se utilizam de mecanismos de controle social ancorados no uso legal da

força. Ou seja, a formulação e a implementação de políticas voltadas para o controle da ordem e a

prevenção das violências são significativamente mais complexas, tendo em vista que a ordem interna

viabiliza a vida coletiva e, simultaneamente, garante os direitos civis dos indivíduos que compõem a

coletividade (PAIXÃO, 1988). Assim, os problemas relacionados ao campo desnudam uma série de

“falências” não somente do Estado – expressos pelas deficiências estruturais e funcionais do sistema –

mas também dos padrões e formas de sociabilidade da coletividade que acabam afetando todos os

cidadãos, ainda que suas evidências mais dramáticas estejam nas classes pobres e socialmente

vulneráveis. Ao mesmo tempo, tais problemas questionam o ideário de consolidação da democracia, a

partir da evidência de fragilidades de acesso à justiça e de garantia dos direitos humanos, apontando

para a existência, de fato, de um status de cidadania incompleta (ESPINHEIRA, 2004; SAPORI, 2007;

SANTOS, 1979).

Embora a Carta de 1988 introduza a segurança no rol de direitos dos cidadãos, tal política no

Brasil não é considerada constitucionalmente como integrada ao sistema de proteção social e não

existem leis constitucionais de vinculação orçamentária que garantam um padrão mínimo de gastos ou

investimentos no setor3, nem mesmo uma diretriz básica de aplicação dos recursos. É possível

identificar três ordens de fragilidades, inter-relacionadas, nas instituições constitucionais da área: i)

conceitual – no sentido de que não define exatamente o que viria a ser avaliado como uma situação ou

condição de segurança (COSTA; LIMA, 2014; SANTOS, 2010); ii) estrutural – ao manter um sistema cujas

estruturas das organizações burocráticas não são redefinidas em benefício do novo contexto

democrático, sendo conservadas separadas e autônomas entre si; ao mesmo tempo, não indica

claramente quais instrumentos garantiriam a submissão dessas organizações aos governos estaduais

eleitos, nem como dar-se-ia o controle e participação da sociedade civil, ou mesmo da União (GODINHO,

2011); iii) funcional – não há referências à natureza mais específica de conteúdos das políticas

(preventivas, repressivas ou investigativas), indicadores desejáveis ou padrões mínimos de intervenção

de cada ator para o desenvolvimento do sistema (SANTOS, 2010).

A respeito da fragilidade conceitual, cabe destacar que as definições de segurança pública são,

em alguma medida, influenciadas pelo legado autoritário dos governos nacionais. Trata-se de um legado

institucional que aproxima a segurança como um direito e prerrogativa do Estado ao passo que imprime

3 Cabe destacar que algumas Polícias Militares são autarquias em regime especial e têm, portanto, orçamento fixo garantido nas

receitas estaduais.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 105-131

108

um afastamento desta como direito de cidadania (CARVALHO, 2008). Para Costa e Lima (2014), a forma

como a segurança pública é retratada nas Constituições brasileiras indica que este é um conceito “em

aberto”, não há consenso sobre seu significado. Em nenhuma Carta o conceito é claramente definido, e

na Constituição de 1988, embora apresente avanços em relações às anteriores, o termo parece surgir

como uma oposição à ideia de segurança nacional, “na tentativa instrumental de fornecer ao Estado

condições e requisitos democráticos de acesso à justiça e garantia de direitos” (COSTA; LIMA, 2014, p.

484). Segundo Guzzi e Mathias (2010), a responsabilidade das Forças Armadas pela manutenção da Lei

e da Ordem reserva-lhes prerrogativas para participar ativamente do governo sem serem confundidas

com o poder político. A separação entre lei e ordem implica ambiguidades claras – a ordem não se

molda pela lei, mas pode estar aquém ou além desta, até mesmo da lei que constitui o próprio Estado.

As ambiguidades na interpretação de conceitos como ordem pública, lei e ordem, defesa interna e

externa ocasionam grandes dificuldades em diferenciar funções e responsabilidades entre as instituições

que compõem o setor da segurança, confundem direito individual e dever estatal, tensionando, por

vezes, o pacto Estado-sociedade. Tendo em vista a fragilidade conceitual e o legado autoritário da área

na América Latina, a partir do final dos anos 1990, organismos multilaterais buscam disseminar o

conceito de segurança cidadã4 “na tentativa de provocar rupturas políticas neste cenário e, na sequência,

reformas policiais” (COSTA; LIMA, 2014, p. 484).

Isso permite afirmar que há relativo consenso sobre a ideia de que as políticas de segurança

desenvolvidas pelos governos, sobretudo de cunho reativo, não têm dado conta da complexidade do

fenômeno das violências, acarretando uma conjuntura de descontrole da condição de proteção social e

ordem pública, fato que vem mobilizando, no Brasil, a participação de novos atores, especialmente do

governo federal, governos municipais, terceiro setor e consultores acadêmicos para a elaboração de

propostas de mudanças nas regras formais da política, notadamente relacionadas à quantidade mínima

de investimento e à qualidade desta (CANO; RIBEIRO, 2007; CERQUEIRA et al., 2007) e o controle e a

transparência sobre os gastos.

Certos esforços por mudanças e avanços institucionais podem ser observados a partir de: i)

propostas de emendas nos textos constitucionais; ii) estabelecimento de fundos e programas públicos

específicos; iii) aumento da produção intelectual na área; iv) criação de novas instâncias burocráticas em

nível nacional e local, ligadas ao tratamento do problema; v) ampliação de canais de participação social

em tal domínio; vi) envolvimento formal de outros entes federados na elaboração e implementação de

políticas; e, mormente, vii) o alargamento do conceito de segurança pública e da compreensão de seu

caráter intersetorial (BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/SENASP, 2007). Os esforços por mudanças, em alguns

estados, ancoram-se, principalmente, numa tentativa de revisão dos modelos repressivos de exercício de

controle social e manutenção da ordem, historicamente vigentes no país (ADORNO, 1998; ZAVERUCHA,

1999; ALVAREZ; SALLA; SOUZA, 2004).

4 Corresponde à situação política e social de segurança integral e cultura de paz em que as pessoas têm legal e efetivamente

garantido o gozo pleno de seus direitos humanos, por meio de mecanismos institucionais eficientes e eficazes, capazes de

prever, prevenir, planejar, solucionar pacificamente e controlar as ameaças, as violências e as coerções ilegítimas (PNUD/BID).

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SANTOS, I. G.; LEANDRO GONTIJO, J. G.; AMARAL, E. F. L. A política de segurança...

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Em relação aos aspectos institucionais, são marcos significativos das tentativas de mudanças

na política: a) a Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp (1997); b) o Plano Nacional de

Segurança Pública – PNSP (2000); e c) o Fundo Nacional de Segurança Pública – FNSP, durante o

governo Fernando Henrique Cardoso. Esses instrumentos estão vinculados ao Ministério da Justiça e

apoiam, principalmente, o aperfeiçoamento do sistema de segurança pública a partir de propostas que

visam à integração entre políticas de segurança, políticas sociais e ações comunitárias de forma a

reprimir e prevenir o crime, reduzir a impunidade e elevar a sensação de segurança dos cidadãos.

Desde tais criações, os governos estaduais vêm sistematicamente recorrendo ao FNSP para

incrementar os gastos com a política estadual, fato que intensificou as relações intergovernamentais no

setor. O FNSP, por exemplo, tem como objetivo principal realizar, por meio da celebração de convênios e

repasses de recursos aos estados, o reequipamento das polícias estaduais, o treinamento e qualificação

dessas polícias e das guardas municipais e o aprimoramento tecnológico e científico, além de apoiar

projetos na área de prevenção à violência. Souza (2005) aponta que, apesar de haver outras

possibilidades de aplicação dos recursos do Fundo, os convênios que mais receberam recursos

financeiros foram aqueles que trouxeram a questão do reequipamento em seu bojo. Segundo o autor,

isso pode ser explicado de duas formas: i) em função do valor agregado desses itens; ou ii) pela

facilidade de as instituições estaduais e municipais demonstrarem carência de equipamentos e

estrutura. Nesse sentido, as principais iniciativas da Senasp acabaram relacionadas ao financiamento de

ações de reaparelhamento das polícias nos estados (COSTA; GROSSI, 2007) e das guardas civis nos

municípios.

Alguns anos depois, no curso do primeiro mandato do governo Lula (2003-2006), ocorreu uma

ampliação do papel de intervenção da União na orientação das políticas de segurança pública adotadas

pelos governos subnacionais (RATTÓN; BARROS, 2006). Em tal governo, formulou-se outro plano nacional

(2003), o qual objetivou criar gradualmente um Sistema Único de Segurança Pública (Susp), com

atuações governamentais federais, estaduais e municipais convergentes para a implementação de

programas e ações relativos à área de segurança pública e justiça criminal, com ênfase na prevenção à

criminalidade e à violência (BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/SENASP, 2003). Tal documento também

incorporava o conceito de segurança cidadã como um novo marco de compreensão conceitual e

orientação das políticas (BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/SENASP, 2003; 2007).

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou que no ano de 2007

foram gastos R$ 26 milhões na implantação e modernização de estruturas físicas de unidades de

segurança pública; e outros R$ 162 milhões no reaparelhamento das instituições de segurança pública.

O balanço aponta também para maior ação do poder público na prevenção à violência (BRASIL/IPEA,

2009) e evidencia que os gastos no setor, pelo menos aqueles provenientes de recursos transferidos pela

União, continuam sendo destinados prioritariamente ao aparelhamento dos órgãos, financiando ações de

repressão e policiamento ostensivo, indicando que uma parcela dos estados ainda não instituiu reformas

burocráticas ou políticas vislumbrando outras possibilidades e alternativas para a aplicação de recursos

e investimentos.

Cabe notar ainda que, além da ampliação de investimentos por parte da União nas suas

burocracias específicas – Polícia Federal e Rodoviária Federal –, a presença mais significativa do governo

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central no setor da segurança pública pode ter induzido os municípios a um maior dispêndio em gastos

com políticas locais relacionadas, como assinalam Lima et al. (2012). Esses autores identificam que os

municípios dobraram os seus gastos com segurança no período 2003-2010, num crescimento de 120%,

embora a quantidade de municípios que declararam tais despesas tenha crescido apenas 11% em

números absolutos.

Para além dos esforços por mudanças mais recentes no setor e do envolvimento de outros

atores, os avanços macroinstitucionais na segurança pública não acompanharam o mesmo ritmo e

direção observados na definição dos direitos sociais de cidadania a partir da Constituição de 1988.

Autores como Soares (2005), Mariano (2004), Mesquita Neto (2008) e Sapori (2007) afirmam que as

instituições relativas à área não sofreram grandes alterações durante o processo Constituinte. Até 1988 e

mesmo após esse marco político, praticamente todo o controle dos processos de formulação,

implementação e avaliação das políticas públicas de segurança esteve concentrado ora sob o poder dos

governos nacionais, em períodos de ditadura, ora sob a alçada das corporações policiais de cada estado

federado, em períodos democráticos. A gestão da política manteve-se centralizada e suas ações

planejadas e operacionalizadas a partir de burocracias com formações e capacidades distintas (Polícia

Civil e Polícia Militar) e, frequentemente, interesses concorrentes e contraditórios.

O resultado dessa herança, para Sapori, significou um caos organizacional e institucional – “a

segurança pública, solta e corporativista, com uma revinculação difícil aos Governos Estaduais de

estrutura arcaica [...]” (SAPORI, 2007, p. 10). Isso explicaria, em parte, a predominância de um modelo

reativo de policiamento e controle da ordem pública, assim como a orientação punitiva e não restaurativa

ou de proteção no que diz respeito à atuação junto à parcela da população mais vulnerável aos riscos

sociais. Recai, portanto, sobre os estados e suas organizações policiais, sobremaneira, a

responsabilidade por adaptar-se ao novo contexto democrático. Ora, sabe-se que práticas e inovações

que superem a força da ideia de segurança interna, sob a qual as corporações policiais foram, e ainda

são, formadas, implicam um desafio central na direção da formação de uma agenda democrática para o

setor e exigem tempo, produção de conhecimento e embate de ideias.

Soares (2005) afirma que o tema da segurança pública acabou sendo negligenciado, entre

outros fatores, pela adoção de posturas ideológico-partidárias, à direita, impondo a convicção de que

bastaria equipar melhor as polícias, tolerando a brutalidade e a corrupção, para manter o foco nos

crimes das periferias circunscritos pelo cordão sanitário que protegia as elites; e, à esquerda, pela

defesa de que, sendo as violências e criminalidades causadas por problemas socioeconômicos, não

haveria sentido investir em políticas específicas. De acordo com Sapori (2007), uma variante dessa

perspectiva “esquerdista” considerava que as únicas políticas públicas capazes de afetar o curso da

criminalidade urbana e garantir proteção social seriam aquelas atinentes à provisão dos serviços de

educação, saúde, habitação, saneamento e emprego. Havendo, dessa forma, uma sobreposição quase

que completa das políticas sociais às políticas de segurança. Outro estudioso da área, Rolim (2006),

argumenta que a ausência de uma política específica estava relacionada ao fato de a direita ter assumido

uma postura ofensiva em relação à segurança e, em algum momento, ter conseguido monopolizar o

discurso na área.

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Acresce-se a isso que o debate está em boa parte impregnado de conotação ideológica,

atrelando-se as políticas distributivas ao ideário da “direita” e as políticas redistributivas às posições

políticas da “esquerda” (SAPORI, 2007). Em alguma medida, as questões político-ideológicas se

confundem com a própria natureza ou conteúdo tradicional dessas políticas (repressivas, reativas,

punitivas, discriminatórias). Cano afirma “[...] que em consequência disso não existia sequer a reflexão,

nem propostas, dos setores progressistas que se contrapusesse à simples demanda pela ordem por

parte dos grupos conservadores” (CANO, 2006, p. 137). Autores como Mariano (2004) e Soares (2005)

conferem acentuado destaque à variável “ideologia/clivagem política”, no que diz respeito à sua

interferência sobre uma estruturação deficiente de reformas e inovações nas macroinstituições do setor

da segurança que marcaram o campo no período pós-constituinte, defendendo, inclusive, que esta

política sempre foi uma bandeira dos partidos oligárquicos e das elites e um tabu para a esquerda

brasileira. Alicerçado sobre tais bases históricas e ideológicas, o sistema de segurança pública brasileiro

herda e reproduz uma trajetória de intervenção estatal orientada por estratégias de autopreservação,

repressão e controle autoritário da ordem e mediação dos conflitos sociais, não cabendo, portanto, como

componente do sistema de proteção social, o que se reverbera sobre a atual crise do setor, evidenciada

pelos índices de criminalidade em escala epidêmica e pelo distanciamento entre suas políticas e o

conceito de cidadania (SANTOS, 1979; DRAIBE, 1993; FLEURY, 1994; CARVALHO, 2008).

A relação entre ideologia política, partidos políticos e produção de políticas públicas vem sendo

discutida pela literatura internacional e nacional. Algumas das conclusões desses estudos apontam para

a existência de esforços diferenciados entre as ideologias políticas (esquerda, direita, centro) no sentido

de estruturar políticas de proteção e bem-estar social, destacando-se positivamente o papel dos partidos

de esquerda (ESPING-ANDERSEN, 1990; CASTLES; MCKINLAY, 1979); o que pode ser verificado, em alguma

medida, pelos gastos despendidos na área social5. Outros estudos, contudo, argumentam que a política

não importa na definição de políticas públicas, uma vez que os resultados políticos estão diretamente

associados com a capacidade econômica e o nível de industrialização dos países (WILENSKY, 1976). Há

pesquisadores defensores da ideia de que os resultados políticos podem estar relacionados com a

ideologia política dos governos, porém não de forma suficientemente definitiva, além de apontarem para

a existência de outras variáveis que impactam a composição partidária, como os fatores institucionais

(SÁTYRO, 2006; SCHIMDT, 1996; IMBEAU; PÉTRY; LAMARI, 2001).

Entretanto, as discussões sobre partidos e posicionamento ideológico exigem um esforço de

reflexão mais ampliado, tendo em vista, por exemplo, que os significados de esquerda e direita se forjam

em momentos históricos específicos e a partir de aspectos culturais particulares; havendo, inclusive,

localizações mais ou menos de esquerda ou de direita no espectro, além de não se tratar de dimensões

necessariamente fixas (LEONI, 2002). Todavia, em virtude da não disponibilidade de espaço neste artigo

para o exercício de localização histórica dos grupos políticos em relação ao posicionamento ideológico,

optamos pela utilização de uma classificação já existente, formulada originalmente por Figueiredo e

5 Estamos cientes das controvérsias e dos avanços das pesquisas/da literatura em relação à aferição de correlação entre partidos

e política pública, os quais passaram a analisar o conteúdo das políticas como variável central em detrimento dos gastos

despendidos. No entanto, como primeiro esforço, empreendemos a análise dos gastos pela disponibilidade empírica dos dados,

bem como pela necessidade de testar algumas hipóteses já levantadas pela literatura desse setor de política.

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Limongi (1999) e ratificada por estudos posteriores como Sátyro (2006), Castro, Nunes e Anastasia

(2009), Borges (2010) e Melo (2011).

No caso da segurança pública, embora seja possível refletir sobre a adoção de políticas – mais

sociais ou reativas – como variável correlacionada com governos e não com partidos, o que a literatura

aponta é a representação determinante dos partidos. Assim, alguns autores internacionais sugerem

existir diferenças entre o desempenho dos partidos quando se trata de investimentos na área de defesa

social/segurança e política externa (IMBEAU; PÉTRY; LAMARI, 2001), corroborando a afirmação de parte da

literatura nacional referendada6 e, consequentemente, a hipótese aqui testada. Assim sendo, se crível for

a afirmação de que “a segurança pública sempre foi uma bandeira dos partidos oligárquicos e das elites

e um tabu para a esquerda brasileira” (MARIANO, 2004), é razoável levantar a hipótese de que o

comportamento dos gastos no setor tenderá a ser mais acentuado nos estados governados por partidos

de direita, se comparados àqueles de esquerda, especialmente porque a área em questão não costuma

ser amplamente avaliada como uma política social, não se tratando, portanto, de uma pauta tão próxima

aos partidos de esquerda.

Outro importante aspecto teórico a ponderar é o indicativo na literatura da existência de relativa

autonomia das burocracias policiais em relação à dinâmica político-eleitoral, ao mesmo tempo em que

se associam a elaboração e implementação da política de segurança, em sentido mais amplo, à pauta

dos partidos de direita (PERALVA, 2000; ZAVERUCHA, 1999), dificultando a identificação de autores e

contexto: i) Quem, de fato, define diretrizes da política – burocratas autônomos ou políticos de direita, ou

mesmo esses dois atores em conjunto?; ii) Em quais contextos institucionais?; iii) Quem decide os gastos

e as prioridades de investimento?; iv) Ainda, as políticas (policy) fazem a política (politcs)? E qual o peso

das instituições (polity) nessa relação?

Apesar de serem questões relevantes, este artigo é exploratório e, ao analisar se a

clivagem/ideologia partidária é uma variável consideravelmente relevante para a compreensão das

políticas públicas e do próprio jogo institucional do setor, a intenção é esclarecer, apenas parcialmente,

alguns elementos desses questionamentos. Nessa direção, portanto, entendemos que a variável gasto

pode ser considerada um indicador importante, embora não exclusivo, do esforço de um governo no que

se refere ao desenvolvimento de determinada política (SÁTYRO, 2006), possibilitando indicar se há

consistência na afirmação de que a política de segurança é uma pauta dos partidos de direita que, em

nível estadual, investiriam e realizariam mais gastos do que os partidos de esquerda. Ou seja, a partir de

tais fundamentações teóricas, este artigo testará a hipótese da existência de relação direta e positiva

entre partidos de direita e gastos em segurança no âmbito dos estados.

Dados e metodologia

A base de dados deste artigo é constituída por 293 observações, distribuídas entre os anos

1999 e 2010, com a presença de 10 partidos diferentes, divididos quantitativamente da seguinte forma:

PDT – 4 mandatos; PFL/DEM – 12 mandatos; PPS – 4 mandatos; PMDB – 17 mandatos; PP – 1

6 Atenta-se para a particularidade dos estudos internacionais, os quais comparam políticas entre países e não entre unidades

subnacionais, como realizamos neste artigo.

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mandato; PPB – 2 mandatos; PSB – 10 mandatos; PSDB – 19 mandatos; PSL – 1 mandato; PT – 11

mandatos. Esse período de 12 anos foi estabelecido em virtude da disponibilidade de dados e da

possibilidade de análise de três resultados eleitorais/mandatos distintos (1999-2002; 2003-2006; 2007-

2010), tanto em nível estadual como em nível federal, ampliando a variabilidade de partidos e a

alternância de poder entre diferentes clivagens ideológicas nos estados. Trata-se também de um período

de mudanças significativas nos padrões de relações intergovernamentais nas políticas do setor e de

algumas inovações nas estruturas das burocracias estaduais. O banco agrega informações de gastos

totais na função, percentual da arrecadação gasto em segurança, receitas estaduais, região geográfica,

população, índice de violência letal por 100 mil habitantes, tipo de secretaria estadual e partido político

para todos os estados e o Distrito Federal no período de 12 anos.

Cabem esclarecimentos sobre algumas informações complementares concernentes às variáveis

elencadas, a saber: a) O índice de violência letal é formado pelo somatório de crimes envolvendo morte

(homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte) divididos por 100 mil habitantes; b)

Reconhecemos que um indicador de capacidade fiscal deve considerar mais do que uma única variável;

mas, para os fins pretendidos aqui, tomamos o indicador de receita estadual como uma proxy da

capacidade fiscal dos estados; c) Tendo em vista a escassez de estudos empíricos sobre as secretarias

executivas estaduais do setor, e diante da impossibilidade de realizar uma pesquisa qualitativa de

envergadura nacional, foram pesquisadas todas as nomenclaturas de secretarias existentes no âmbito

dos estados brasileiros, ao longo do período recortado para análise, tendo sido identificados cinco tipos

de secretaria.

A variável tipo de secretaria foi incorporada com objetivo de captar alguma provável diferença

no comportamento dos gastos em função das variações institucionais ou organizacionais. Nessa direção,

as secretarias cujas nomenclaturas apresentam o termo “segurança pública”, pelo fato de se

aproximarem do padrão tradicional de atuação política no campo (reativo, ostensivo), despenderiam

maiores recursos que aquelas que apresentaram mudanças/alterações em suas nomenclaturas e

estruturas, admitindo termos como “cidadania” e “defesa social”. Barreira (2004), ao analisar a

trajetória da política de segurança no estado do Ceará, já sinalizava para o peso simbólico da

modificação de nomenclatura da secretaria estadual. Segundo ele, a unificação de atividades de

diferentes setores que compõem o sistema de segurança pública representa uma responsabilidade

política do estado no que diz respeito à coordenação unificada de diferentes burocracias estaduais, além

da publicização de um compromisso com a integração das políticas de segurança aos direitos de

cidadania. Foram, assim, identificados no período analisado dois conjuntos de secretarias que

mantiveram a nomenclatura mais tradicional – Secretaria de Segurança Pública; Secretaria de Justiça e

Segurança Pública – e três tipos que apresentaram mudanças – Secretaria de Defesa Social; Secretaria

de Segurança, Defesa e Cidadania; Secretaria de Segurança e Defesa Social.

Num primeiro esforço de identificar a existência de correlações lineares entre as principais

variáveis elencadas acima, trabalhou-se com duas perspectivas de teste de hipóteses: a) coeficiente de

correlação linear de Pearson; e b) teste de qui-quadrado7. Importa esclarecer que as relações entre as

7 Nos casos de teste da existência e sentido da correlação entre pares de variáveis contínuas, utilizou-se o coeficiente de

correlação linear de Pearson (r) e o valor de p, ou seja, a probabilidade de rejeição da hipótese nula (H0), que nos casos

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variáveis gasto total na função segurança pública, percentual de arrecadação gasto em segurança e

receita estadual foram testadas a partir de intervalos de valores, daí a utilização de tal teste. Os

parâmetros analíticos para a confirmação ou a refutação da existência de relação entre as variáveis no

teste de qui-quadrado é o mesmo utilizado no coeficiente de Pearson, valor de p.

Para avaliar o efeito da ideologia política dos partidos sobre os gastos em segurança pública

nos estados brasileiros, foram estimados modelos de regressão multivariada, os quais permitem ceteris

paribus, ou seja, a existência de outros fatores constantes que afetam simultaneamente a variável

dependente. Portanto, foram identificadas duas variáveis dependentes para indicar a despesa estadual

na execução da política de segurança pública, quais sejam: i) medida de despesa agregada – gasto total

na função8; e ii) medida de despesa ponderada – percentual de arrecadação gasto em segurança. Ao

utilizar essas duas variáveis dependentes para um mesmo conjunto de variáveis independentes, foi

possível captar o impacto destas últimas nos investimentos tanto em termos de volume (gasto total)

quanto em termos de proporção (percentual de arrecadação gasto na função segurança pública),

considerando o corte de tempo transversal escolhido.

Combinações de variáveis independentes controlam os efeitos da ideologia partidária. A seleção

dessas variáveis deve-se à possibilidade de estarem igualmente relacionadas com aspectos que podem

incidir sobre o padrão de gastos nas políticas do setor, conforme apontam autores que têm se debruçado

sobre o tema (CANO; RIBEIRO, 2007; SAPORI, 2007). A ausência de estratégia política e planejamento para

a prevenção da criminalidade, por exemplo, vem sendo apontada pela literatura como uma característica

da qual decorre a existência de políticas estaduais reativas, ou seja, que são planejadas e executadas em

função da materialização dos problemas – criminalidade, homicídios etc. – e de situações de

emergência. Nesse sentido, utilizou-se o índice de violência letal9 por 100 mil habitantes como proxy da

natureza reativa das políticas dos governos. A ideia é que, ao assumir a predominância de natureza

reativa, o efeito da ideologia política sobre os gastos sofre redução. No que diz respeito aos efeitos de

arrecadação sobre os gastos, a primeira variável (arrecadação) foi utilizada como proxy de capacidade

fiscal10 dos estados. A utilização dessa variável e da região geográfica se justifica em virtude das

desigualdades constitutivas (estruturais, financeiras, sociais e históricas) entre os estados e regiões do

Brasil que interferem sobre as políticas públicas (ARRETCHE, 2003). Por fim, conforme já mencionado, a

utilização da variável tipos de secretaria busca também ponderar o fato de que reformas ou inovações na

estrutura burocrática podem interferir sobre os gastos. Em alguns estados, por exemplo, os governos

optaram por reunir duas pastas administrativas em uma única11, o que consequentemente amplia tanto

os recursos quanto os gastos.

analisados se trata sempre da não existência de correlação entre os pares de variáveis testadas. Por sua vez, a corroboração da

hipótese alternativa (H1) indica sempre a existência de correlação entre as variáveis testadas. Já o teste de qui-quadrado é

indicado para captar a relação entre variáveis categóricas. 8 O indicador gasto em segurança pública difere do indicador custo da segurança ou insegurança. Para maiores esclarecimentos,

ver Cerqueira et al. (2007). 9 Esse índice não é o único a medir o problema da segurança pública, no entanto, foi escolhido por ser, atualmente, o principal

indicador utilizado para medir o fenômeno e avaliar as políticas do setor (CANO; RIBEIRO, 2007). 10 Essa variável consta apenas no modelo que utiliza a variável dependente como gasto total, uma vez que a variável ponderada

admite colinearidade com os valores de receita, dada sua função proporcional sobre esta. 11 Por exemplo: justiça e direitos humanos com segurança pública.

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A análise estatística inferencial do Modelo 1 foi realizada com base na seguinte equação:

y = β0 (gasto total na função segurança pública) + β1 (receita estadual) + β2 (índice de violência letal por

100 mil habitantes) + β3 (regiões geográficas) + β4 (formato burocrático) + (ideologia política partidária)

+ u.

Já a análise estatística inferencial do Modelo 2 foi realizada com base na equação:

y = β0 (percentual de arrecadação gasto na função segurança pública) + β1 (índice de violência letal por

100 mil habitantes) + β2 (regiões geográficas) + β3 (formato burocrático) + (ideologia política partidária)

+ u.

Importa esclarecer que a coleta de informações sobre a segurança pública no Brasil é uma

tarefa amplamente reconhecida como “difícil” pelos intelectuais e técnicos da área, tanto no que diz

respeito aos gastos e à discriminação de ações implementadas quanto às estatísticas de criminalidade e

violência. Por isso, alguns aspectos relacionados à seleção das variáveis dos modelos devem ser

esclarecidos. Em relação aos dados de gastos, as principais dificuldades são: a) identificar em quais

ações e programas foram investidos os recursos estaduais; b) distinguir a origem do recurso executado,

se estadual ou federal, pois há casos nos quais os recursos derivados de transferências voluntárias da

União são lançados como provenientes dos cofres do Estado. Por essas razões, optou-se por utilizar o

indicador gasto de forma agregada. Ainda assim, estamos cientes de que estudos empíricos (VEIT-

WILSON, 2000; CLASEN; SIEGEL, 2007) identificam e problematizam a fragilidade da utilização de gastos

como variável dependente – sobretudo gastos agregados – pela dificuldade de identificação e

sustentação de análises sobre a qualidade e a eficiência dos gastos e sobre o conteúdo das políticas nas

quais os recursos estão sendo aplicados.

Ainda sobre esse aspecto, apesar de a fonte utilizada para a coleta de dados de investimentos e

gastos (Tesouro Nacional) atestar que não são computados gastos com pessoal, o que nos leva à ideia

de que os gastos são materializados em políticas públicas numa perspectiva mais programática de ação,

Lima et al. (2012) chamam atenção para o fato de que as definições oficiais do planejamento da União

para a classificação das despesas na função segurança pública e subfunções compreendem grandes

categorias de gastos – policiamento, defesa civil e informação e inteligência –, reduzindo a possibilidade

de análises mais fidedignas e detalhadas. Os autores apontam para os possíveis equívocos na

classificação do tipo de despesa com pessoal inativo na segurança pública e também para o fato de que

seu peso nos estados tende a aumentar ao longo das próximas décadas. Embora se constitua como uma

observação pertinente – a fragilidade da classificação dos dados e possíveis equívocos no lançamento de

despesas com pessoal inativo –, acredita-se que não inviabilize a análise proposta neste artigo, uma vez

que apresenta um caráter exploratório e problematizante, e não determinista.

De acordo com Cano e Ribeiro (2007), os problemas mais comuns em relação às estatísticas de

criminalidade são: a) a falta de padronização nos registros de ocorrências; b) a duplicidade de registros;

c) as limitações de dados e informações sobre os agressores; d) as subnotificações; e e) a incongruência

entre os registros das principais fontes – Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais de Segurança

Pública. Assim, para a coleta de informações sobre violência letal por 100 mil habitantes, optou-se pelos

dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde, no Sistema de Informações sobre Mortalidade, relativos

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aos anos de 1999 a 2006; e por aqueles disponibilizados pelo Ministério da Justiça, relativos aos anos

de 2007 a 2010.

Já a classificação dos partidos a partir de ideologias políticas, embora não seja ponto pacífico

ou consensual na literatura, estudos sobre instituições estaduais de Borges (2010) e Sátyro (2006)

também se valem da classificação elaborada por Figueiredo e Limongi (1999), adotada neste artigo.

Segundo os referidos autores, podem ser considerados como partidos de direita: Partido Democrático

Social (PDS); Partido Progressista Renovador (PPR); Partido Parlamentarista Brasileiro (PPB); Partido da

Frente Liberal/Democratas (PFL/DEM); Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); Partido da Reconstrução

Nacional (PRN); Partido Liberal/Partido da República (PL/PR); Partido Trabalhista Reformador (PTR);

Partido Progressista (PP); Partido Social Liberal (PSL). Partidos de centro: Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB); Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Partidos de esquerda:

Partido dos Trabalhadores (PT); Partido Democrático Trabalhista (PDT); Partido Popular Socialista (PPS)

e Partido Socialista Brasileiro (PSB).

A plausibilidade de tal classificação é reforçada ainda pelos estudos de Castro, Nunes e

Anastasia (2009) e Melo (2011), que, para operacionalizar uma hipótese que relaciona a localização

ideológica dos partidos e a atuação dos deputados estaduais, classificaram os partidos em um

continuum esquerda-direita com base em uma média obtida a partir de três questões contidas em um

questionário aplicado aos deputados estaduais de todas as assembleias legislativas do Brasil – a

classificação, portanto, foi elaborada a partir da própria percepção dos legisladores, como Tarouco e

Madeira (2013) sugerem ser possível. Foi solicitado aos deputados: a) que classificassem um conjunto

de partidos que não o seu; b) que se autoclassificassem; e c) que classificassem seu próprio partido em

uma escala de 1 a 10, na qual 1 representava a posição mais à esquerda e 10, a posição mais à direita.

A classificação apresentada pelos autores a partir de tal exercício também é compatível com a utilizada

neste artigo. Contudo, considerando as controvérsias existentes na literatura nacional e com a finalidade

de refinar nossas análises, trataremos: de forma agregada por ideologia os partidos, num primeiro

momento, ao utilizarmos teste de correlação; e de modo desagregado as legendas partidárias, por meio

de regressão multivariada.

Análise dos resultados: identificando padrões, relações e impactos

Os dados relacionados aos gastos (em bilhões de reais) percentuais, brutos/totais, bem como

aos percentuais de arrecadação gastos em segurança por regiões, partidos e tipos de secretarias

executivas no período de 1999-2010 são apresentados na Tabela 1. Observou-se que o volume bruto de

gastos na função segurança pública no período de três mandatos duplicou e/ou triplicou em cada região

geográfica, com exceção da região Centro-Oeste – porém de forma diferenciada entre as regiões, o que

indica uma relação positiva entre arrecadação por região e gastos brutos no setor.

No que diz respeito aos valores percentuais de arrecadação investidos, ocorre uma evolução de

forma mais lenta nas regiões, destacando-se as regiões Norte e Nordeste com ascendência positiva no

período. O Centro-Oeste apresentou redução nos valores para cada mandato, ou seja, o investimento em

segurança não acompanhou o mesmo ritmo da arrecadação estadual. O Sul aumentou os valores no

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período do segundo mandato em relação ao primeiro, mas apresentou redução no terceiro mandato. A

região Sudeste reduziu timidamente o valor dessa medida no segundo mandato, se comparado ao

primeiro, mas aumentou-o no terceiro mandato. Dessa forma, os valores de investimento no setor,

quando ponderados pela arrecadação estadual entre as regiões (percentual de arrecadação gasto na

função segurança pública), variam entre 6,1% e 10,25% no primeiro mandato; entre 7,2% e 10,1% no

segundo mandato; e entre 7% e 12,1% no terceiro mandato; evidenciando que, embora o investimento

em segurança pública não esteja delimitado por regras macroinstitucionais, os estados mantiveram um

padrão nos percentuais de arrecadação despendidos em segurança ao longo da série histórica. Assim,

apesar da existência de acentuadas desigualdades entre as arrecadações dos estados e regiões no Brasil,

são observadas aproximações quando analisamos o percentual de investimento em função da

arrecadação.

Tabela 1

Gastos percentuais, gastos totais e percentuais de arrecadação gastos pelos estados na função

segurança pública, organizados por regiões, partidos e burocracias, em bilhões de Reais

(mandatos entre 1999-2010)

Mandato 1

(1999-2002)

Mandato 2

(2003-2006)

Mandato 3

(2007-2010)

Gasto

percentual

na função

segurança

pública

Gasto total na

função

segurança

pública

Percentual

de

arrecadação

gasto na

função

segurança

pública

Gasto

percentual na

função

segurança

pública

Gasto total na

função

segurança

pública

Percentual

de

arrecadação

gasto na

função

segurança

pública

Gasto

percentual

na função

segurança

pública

Gasto total na

função

segurança

pública

Percentual

de

arrecadação

gasto na

função

segurança

pública

Região

Norte 5,28 2.397.846.254 6,1 7,05 6.327.304.180 8,3 8,31 11.633.002.647 8,5

Nordeste 14,72 6.689.852.323 6,9 15,30 13.723.727.803 7,9 19,33 27.045.680.673 8,5

Sudeste 57,13 25.956.425.191 10,25 58,17 52.183.111.332 10,1 53,27 74.533.207.829 12,1

Sul 13,00 5.905.314.760 7,5 12,58 11.282.683.319 8,2 11,76 16.451.738.474 7,25

Centro-Oeste 9,87 4.484.276.286 8,9 6,90 6.186.761.903 7,2 7,33 10.249.583.928 7,0

Total 100 45.433.714.814 --- 100 89.703.588.537 ---- 100 139.913.213.551 ---

Partido

PDT 15,83 7.190.348.586 13 0,51 459.675.256 8,5 2,36 3.295.305.124 8,5

DEM/PFL 12,11 5.499.898.883 6,4 6,77 6.070.478.171 7,6 0,52 725.710.070 1,5

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118

PMDB 23,88 10.850.868.034 8,7 16,46 14.763.735.308 7 24,71 34.581.001.987 7,75

PPB 3,63 1.648.946.117 6 – – – – – –

PSB 1,40 635.081.526 6,8 20,36 18.264.792.270 9,4 7,15 10.001.544.236 7,25

PSDB 35,50 16.132.006.033 7,4 49,22 44.151.192.611 9,3 48,30 67.572.200.236 9,5

PT 7,65 3.476.565.635 8,6 2,94 2.633.594.240 8,3 10,43 14.592.226.546 8

PPS – – – 3,46 3.106.039.432 7,6 3,59 5.025.547.321 10,9

PSL – – – 0,28 254.081.249 6,5 – – –

PP – – –

2,94 4.119.678.031 8,75

Total 100 45.433.714.814 – 100 89.703.588.537 – 100 139.913.213.551 –

Burocracia

Bur. Seg.

Pública 59,90 27.213.590.759 7,8 41,83 37.521.627.546 7,6 42,10 58.913.548.134 7,3

Bur. Def.

Social 8,01 3.639.763.160 10,25 24,96 22.392.176.210 10,7 26,97 37.730.216.451 11,5

Bur. Just.

Seg. Púb. 23,81 10.817.038.640 6,8 22,88 20.519.856.599 9 20,74 29.011.146.391 8,9

Bur. Seg.

Púb. Def. 6,96 3.162.145.559 6,4 8,68 7.789.556.628 7,4 8,44 11.805.922.141 7,65

Bur. Seg.

Def.

Cidadania

1,32 601.203.696 8 1,65 1.480.371.554 12,5 1,75 2.452.380.434 13

Total 100 45.433.714.814 – 100 89.703.588.537 – 100 139.913.213.551 –

Observações

(N) 293

Fonte: Elaboração própria com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (1998, 2002, 2006); da Controladoria-Geral da União e das

Secretarias Executivas Estaduais.

O comportamento dos gastos brutos/totais e percentuais de arrecadação investidos em

segurança apresentou variações também entre os distintos partidos políticos – mais acentuadas nos

valores de gastos brutos/totais do que nos percentuais. Há ainda certa oscilação do gasto percentual no

interior de um mesmo partido ao longo da série histórica, o que pode estar relacionado com a

quantidade de governadores que os partidos conseguiram eleger em cada mandato; e também com as

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119

respectivas capacidades de gasto (de gestão administrativa) dos estados. PDT, PT e PMDB aumentam a

quantidade de governadores, mas mantêm o padrão de percentual de arrecadação gasto em segurança

no período. Já o PSDB reduz seu número de governadores eleitos no terceiro mandato, mas aumenta o

percentual de arrecadação gasto nesse período. O PPS é o único partido que mantém a mesma

quantidade de governos e aumenta o percentual de arrecadação gasto na função – 7,6% no segundo

mandato e 10,9% no terceiro mandato. O PSB duplica a quantidade de governos eleitos entre o primeiro

e o segundo mandato e reduz no terceiro mandato, o que é acompanhado de uma queda no percentual

de arrecadação gasto em segurança. Nessa primeira análise descritiva, o PPS e o PSDB se destacam

como partidos que, embora não tenham ampliado a quantidade de governos eleitos, expandiram os

valores percentuais de arrecadação investidos no período analisado. O caso do PFL/DEM também

merece atenção: o partido sofreu grande redução na quantidade de governos estaduais eleitos no

período. A legenda já apresentava o segundo menor percentual de investimentos em segurança no

primeiro e no segundo mandatos e reduziu a 1,5% seu percentual de gasto em segurança no terceiro

mandato, em função da arrecadação, registrando o menor valor dentre os estados na série histórica.

Salienta-se que os estados com maior arrecadação foram governados por partidos de centro e,

consequentemente, investiram maior volume bruto de recursos na área. Esses partidos governaram os

estados mais urbanizados do país (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro), e talvez isso justifique uma

maior demanda por investimentos no setor. O PSDB, por exemplo, teve três mandatos em São Paulo,

dois em Minas Gerais e um mandato no Rio Grande do Sul durante o período, e o PMDB, um mandato

em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo; e dois mandatos em Santa Catarina e no Paraná.

Todavia, embora tenham investido maior volume bruto de recursos, esses partidos não se diferenciaram

significativamente dos partidos de esquerda em relação aos percentuais de arrecadação investidos.

Em relação às burocracias estaduais, ainda que a quantidade de secretarias do tipo “Segurança

Pública” seja maior, assim como o volume bruto de gastos realizados por estas, os percentuais de

arrecadação gastos em segurança nesse tipo de burocracia não apresentaram o mesmo desempenho. O

maior percentual de arrecadação convertido em gastos em segurança é alcançado pelas secretarias do

tipo “Defesa Social” e “Segurança, Defesa e Cidadania”. Cabe salientar que essa variável não capta

aspectos qualitativos dentro de uma mesma tipologia de secretarias, apenas indica uma provável

mudança de comportamentos nos gastos por parte daquelas secretarias estaduais que incorporaram os

conceitos de cidadania e defesa social em suas nomenclaturas/estruturas.

A análise descritiva dos dados traz questionamentos sobre a existência de associação direta e

positiva entre políticas de segurança pública e partidos de direita no Executivo subnacional no período

analisado (1999-2010) – pelo menos no que se refere ao comportamento dos gastos. Os partidos de

direita investiram menos, tanto em termos de volume bruto quanto de forma proporcional à arrecadação.

Contudo, é preciso salientar, dado que indícios apontam para uma relação direta e positiva entre

arrecadação e gastos brutos, o desempenho dos partidos poderia sofrer influência do quantitativo de

legendas eleitas.

Os partidos considerados de direita vêm perdendo espaço no quadro político do Executivo

estadual no Brasil, e os investimentos em segurança pública não parecem ter sido prioridade em seus

governos no período analisado. Todavia, tais achados não descartam a hipótese da existência de

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correlação entre a ideologia partidária e os gastos na função segurança pública. Com o intuito de testar

tal hipótese e confirmar as análises dos dados descritivos, procedeu-se à realização de testes de hipótese

para medir a intensidade das relações entre as principais variáveis apontadas na Tabela 1. Conforme

explicitado, utilizou-se o coeficiente de correlação de Pearson para a análise de variáveis contínuas,

admitindo o valor de p como parâmetro para rejeição ou não da hipótese nula. Assim sendo, obtiveram-

se os resultados a seguir. No teste entre as variáveis arrecadação estadual e gasto bruto/total na função

segurança pública, os valores de r = 0,8708 e p = 0,0000 mostram forte correlação linear com sentido

positivo, sendo a probabilidade de não rejeição da hipótese nula muito pequena. A partir de tal resultado,

apoia-se a hipótese alternativa da existência de correlação entre a receita estadual e o gasto total na

função.

Já no teste da hipótese de existência de correlação positiva entre as variáveis ideologia

partidária e gasto bruto/total na função segurança pública, obteve-se um teste de qui-quadrado (com 82

graus de liberdade) = 106.4079, com valor de p = 0,036. Ou seja, a probabilidade de não rejeição da

hipótese nula é pequena; rejeita-se H0 e apoia-se a hipótese alternativa da existência de relação entre as

duas variáveis. A mesma modalidade de teste foi aplicada às variáveis percentual de arrecadação gasto

em segurança pública e ideologia partidária, obtendo-se: qui-quadrado (com 10 graus de liberdade) =

26.2254 e valor de p = 0,003. Nesse caso, a probabilidade de não rejeitar a hipótese nula também é

considerada pequena, assim rejeita-se H0 e apoia-se a hipótese alternativa da existência de relação entre

as variáveis testadas. Os resultados dos coeficientes de Pearson e dos testes de qui-quadrado, nesses

casos, atestam as análises descritivas dos dados, contudo, não possibilitam a realização de inferências

causais/explicativas das relações entre estas e/ou outras variáveis que podem influenciar o

comportamento da variável dependente.

A identificação de impacto, magnitude e significância estatística das relações causais entre as

variáveis no período investigado é possibilitada pela análise dos resultados das regressões multivariadas.

Os resultados das regressões estão organizados nas Tabelas 2 e 3. O primeiro modelo (Tabela 2) adota a

variável gasto bruto/total na função como dependente e as seguintes variáveis: receita total; índice de

violência letal por 100 mil habitantes; região geográfica12; tipo de secretaria estadual13; e legenda

partidária14, como independentes. O segundo modelo utiliza a variável percentual de arrecadação gasto

na função de segurança pública como dependente e, em função disso, exclui a variável receita estadual,

mantendo as demais variáveis independentes admitidas no modelo 1.

12 A categoria Sudeste foi utilizada como referência nos dois modelos. 13 A categoria Secretaria de Estado de Segurança Pública foi utilizada como referência nos dois modelos. 14 A legenda partidária PSDB foi utilizada como referência nos dois modelos.

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Tabela 2 (Modelo 1)

Coeficientes e erros-padrão estimados por modelo de mínimos quadrados ordinários

(variável dependente: gasto total/bruto na função segurança pública dos estados

brasileiros, em bilhões de Reais)

(mandatos entre 1999-2010)

Variáveis

(Modelo 1)

Gasto total na

função

Beta padronizado

Constante

3,683***

(192,4)

Mandato (1999-2002)

ref. 1

Mandato (2003-2006)

178,7

(126,4)

0,0578651

Mandato (2007-2010)

385,2**

(153,4)

0,1152174

1º quartil arrecadação

– 1,236*** – 0,3710433

(220,3)

2º quartil arrecadação

– 1,353*** – 0,3996587

(191,8)

3º quartil arrecadação

– 1,098*** – 0,3184427

(176,4)

4º quartil arrecadação

ref. 2

1º quartil índice de violência letal

709,4*** 0,2067756

(163,0)

2º quartil índice de violência letal

456,0*** 0,1335261

(162,2)

3º quartil índice de violência letal

338,2** 0,0985744

(166,5)

4º quartil índice de violência letal

ref. 3

Região Norte

– 2,043*** – 0,6034639

(237,8)

Região Nordeste

– 2,064*** – 0,6578568

(198,4)

Região Sudeste

ref. 4

Região Sul

– 2,519*** – 0,5145937

(232,8)

Região Centro-Oeste

– 2,246*** – 0,540858

(268,8)

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 105-131

122

PPB

– 759,6*** – 0,0973136

(287,7)

PDT

– 1,138***

– 0,1635691

(277,6)

PT

– 765,0*** – 0,1732149

(185,0)

PMDB

– 841,4*** – 0,219873

(168,4)

PSL

– 1,106** – 0,0865119

(458,0)

PPS

– 869,6*** – 0,1250135

(283,3)

PFL/DEM

– 1,041*** – 0,2573695

(186,0)

PSB

– 357,1* – 0,078997

(188,7)

PSDB ref. 5

Burocracia Segurança Pública

ref. 6

Burocracia Defesa Social

– 455,7** – 0,0857994

(221,0)

Burocracia Justiça Segurança Pública

–198,5 – 0,0422967

(220,5)

Burocracia Segurança Pública Defesa Social

– 1,191*** – 0,3133622

(171,5)

Burocracia Segurança Defesa Cidadania

– 69,11

– 0,0088537

(294,5)

Observações

293 293

R² Ajustado

0,698 0,698

0,723 0,723

Fonte: Elaboração própria com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (1998, 2002, 2006); da

Controladoria-Geral da União e das Secretarias Executivas Estaduais.

Erros-padrão entre parênteses.

Foi estimado o fator de inflação de variância e não há colinearidade entre as variáveis.

* Significante no nível de confiança de 90%, ** Significante no nível de confiança de 95%, *** Significante

no nível de confiança de 99%.

1. O primeiro mandato da série foi retirado como referência.

2. O 4º quartil da variável arrecadação foi retirado como referência.

3. O 4º quartil da variável índice de violência letal foi retirado como referência.

4. A região Sudeste foi retirada como referência.

5. O PSDB foi retirado como referência.

6. A Burocracia Segurança Pública foi retirada como referência.

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123

Tabela 3 (Modelo 2)

Coeficientes e erros-padrão estimados por modelo de mínimos quadrados ordinários

(variável dependente: percentual de arrecadação gasto na função segurança pública

nos estados brasileiros, em bilhões de Reais)

(mandatos entre 1999-2010)

Variáveis

(Modelo 2)

Gasto real na

função

Beta padronizado

Constante

9,561***

(0,576)

Mandato (1999-2002)

ref. 1

Mandato (2003-2006)

0,211 0,0341659

(0,375)

Mandato (2007-2010)

– 0,0160 – 0,0023849

(0,420)

1º quartil índice de violência letal

0,115 0,0167239

(0,503)

2º quartil índice de violência letal

– 0,110 – 0,0161457

(0,506)

3º quartil índice de violência letal

– 0,211 – 0,0307621

(0,512)

4º quartil índice de violência letal

ref. 2

Região Norte

– 2,636*** –0,3891419

(0,573)

Região Nordeste

– 2,103*** –0,3349416

(0,518)

Região Sudeste

ref. 3

Região Sul

– 1,438** – 0,1468109

(0,701)

Região Centro-Oeste

– 2,180*** – 0,2622391

(0,742)

PPB

– 0,802 – 0,0513414

(0,898)

PDT

1,648* 0,1184001

(0,858)

PT

0,862 0,097562

(0,575)

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 105-131

124

PSL

– 0,837

(1,422)

– 0,0327075

PPS 1,080 0,0775879

(0,862)

DEM/PFL

– 1,506*** – 0,1860909

(0,577)

PSB

– 0,683 – 0,0754971

(0,587)

PSDB

ref. 4

Burocracia Segurança Pública

ref. 5

Burocracia Defesa Social

3,191*** 0,3002289

(0,690)

Burocracia Justiça Segurança Pública

0,609 0,0648341

(0,683)

Burocracia Segurança Pública Defesa Social

– 0,633 – 0,0831955

(0,509)

Burocracia Segurança Defesa Cidadania

4,353*** 0,2786179

(0,916)

Observações

293

R² Ajustado

0,264

0,317

Fonte: Elaboração própria com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (1998, 2002, 2006); da Controladoria-

Geral da União e das Secretarias Executivas Estaduais.

Erros-padrão entre parênteses.

Foi estimado o fator de inflação de variância e não há colinearidade entre as variáveis.

* Significante no nível de confiança de 90%, ** Significante no nível de confiança de 95%, *** Significante no nível

de confiança de 99%.

1. O primeiro mandato da série foi retirado como referência.

2. O 4º quartil da variável índice de violência letal foi retirado como referência.

3. A região Sudeste foi retirada como referência.

4. O PSDB foi retirado como referência.

5. A Burocracia Segurança Pública foi retirada como referência.

Em relação aos achados da regressão do modelo 1 (Tabela 2), o qual explica 72% da variância

do gasto bruto/total na função de segurança pública, nota-se que, em comparação ao 4º quartil, os

quartis 1º, 2º e 3º da variável arrecadação estadual possuem impacto negativo, com significância

estatística de 99%, sobre a variável dependente (y), isso porque esse último quartil representa o maior

intervalo da variável e a capacidade financeira dos estados sofre notável incremento nos anos da série,

especialmente no último mandato (3º mandato), como visualizado pelo impacto positivo desse mandato

sobre a variável gasto total, com significância de 95%, se comparado com os mandatos anteriores. Os

quartis 1º, 2º e 3º da variável índice de violência letal por 100 mil habitantes impactaram positivamente

a variável dependente, com significância estatística, se comparados ao 4º quartil (que reúne o maior

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125

intervalo de índice de violência letal), indicando, contraditoriamente, existir relação entre menores

índices de violência letal e maiores investimentos brutos.

Em relação às regiões geográficas, tomando como referência a região Sudeste, todas as regiões

apresentaram variação negativa nos gastos, com significância estatística de 99%; achado consistente à

afirmação de uma relação positiva entre receita estadual e gastos brutos/totais, tendo em vista que os

estados com maior arrecadação se localizam na região tomada como referência, o que reforça as

análises da literatura sobre as desiguais capacidades dos entes subnacionais na implementação de

políticas públicas (SOUZA, 2004; ARRETCHE, 2003).

No que se refere à variável independente de principal interesse – partido político – todos os oito

partidos apresentaram impacto de variação negativa em comparação com o PSDB (partido de centro

tomado como referência), com significância estatística de 99%; com exceção dos casos do PSB (90%) e

PSL (95%), indicando que a capacidade de gasto estadual parece ser mais determinante que a ideologia

ou legenda partidária na execução da política pública, medida aqui em gastos. Todavia, tal achado exige

maior refinamento analítico, pois os valores de “beta padronizado” da variável arrecadação estadual, nos

quatro percentis, apresentaram as maiores magnitudes de impacto sobre y, ratificando os resultados do

coeficiente de correlação de Pearson que indicaram forte correlação entre as duas variáveis em questão

(gasto bruto/total e arrecadação).

Sobre o impacto na variável dependente gasto bruto/total causado pelo tipo de secretaria,

alude-se que, em comparação à categoria de referência (Secretaria de Estado de Segurança Pública),

todos os demais tipos apresentaram impacto negativo, sendo dois desses com significância estatística. A

Secretaria de Estado de Defesa Social apresentou uma variação com direção negativa de menos R$

455,7 milhões, com significância estatística de 95%, e a Secretaria de Estado de Segurança Pública e

Defesa Social demonstrou variação negativa de R$ 1,191 bilhão sobre a variável dependente, mantendo

todas as demais variáveis constantes.

O modelo 2, cuja variável dependente é o percentual de arrecadação gasto em segurança,

apresentou menor capacidade preditiva (explica 31% da variância de y). No entanto, o principal objetivo

de utilizar uma variável ponderada se deve ao fato de a arrecadação possuir grande interferência sobre

os gastos brutos/totais, conforme ilustrado na Tabela 2 e confirmado pelo teste de correlação de

Pearson. Desconsiderar tal relação poderia causar distorções e/ou vieses. Ao utilizarmos o gasto

ponderado pela arrecadação, e não mais o gasto total, observamos mudanças de valores e inversões de

sentido/impacto das variáveis independentes. No modelo 2 (Tabela 3), as variáveis índice de violência

letal e mandato perdem significância estatística com a inclusão das demais variáveis independentes, se

comparado ao modelo 1, indicando não existir uma relação direta entre estas e os percentuais de

arrecadação gastos em segurança pública.

Embora existam algumas alterações nos coeficientes da variável região geográfica,

especialmente aquele pertinente à região Sul, o predomínio é de relação com direção negativa, com

significância estatística de 99% ao se comparar as demais regiões com a região Sudeste. Ou seja, ainda

que utilizemos uma variável de gasto ponderada, as diferenças entre os estados e regiões permanecem,

mesmo que as distâncias sejam significativamente reduzidas, conforme podemos observar voltando à

Tabela 1 – especificamente à coluna percentual de arrecadação gasto na função segurança pública. No

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126

segundo mandato, por exemplo, os gastos brutos em segurança pública da região Sudeste

representaram aproximadamente 58% de todo o gasto nacional no setor, contra 7% da região Norte e

6,9% da região Centro-Oeste, menores participações em tal montante no período. Nesse mesmo

mandato, enquanto o Sudeste investiu 10,1% de sua arrecadação na política de segurança, a região

Norte investiu 8,3%.

A variável tipo de secretaria apresenta diferença expressiva nos modelos 1 e 2. Corroborando os

dados e análises descritivas derivados da Tabela 1 e contrariando os achados do modelo 1, nesse

segundo modelo a “Secretaria de Estado de Segurança, Defesa e Cidadania” detém maior coeficiente de

impacto sobre a dependente, na ordem de 4,3% de arrecadação convertidos em investimento,

comparado ao tipo “segurança pública”, deixada como referência; já a “Secretaria de Estado de Defesa

Social” mantém sua direção de impacto positivo, correspondente ao percentual de 3,1% de arrecadação

transformados em gastos em segurança, também quando comparada ao tipo “Secretaria de Estado de

Segurança Pública”, ambas com significância estatística de 99%15. Os demais tipos de burocracia não

apresentaram significância estatística.

No caso das legendas partidárias, notou-se um cenário muito diferente do modelo 1. Ao

adotarmos o percentual de arrecadação gasto na função como variável dependente, o comportamento

das variáveis partidárias assumiu a seguinte configuração: mantendo-se todas as outras variáveis do

modelo constantes, apenas PFL/DEM e PDT apresentaram significância estatística, o primeiro com

direção de impacto negativo (significância de 95%) da ordem de 1,5%; e o segundo partido com impacto

positivo na ordem de 1,6% de arrecadação convertido em investimentos no setor (significância de 90%).

De forma sintética, os achados contestam a hipótese que associa o domínio da segurança

pública como uma prioridade de governos de direita, ao menos no que diz respeito aos investimentos

realizados no setor.

Considerações Finais

Os modelos de regressão utilizados apontaram para uma fragilidade explicativa do fator

político-partidário, tomando como base de análise a ideologia e/ou legendas partidárias, na definição

dos gastos no setor de segurança pública no período analisado. Admite-se, contudo, a existência de

correlação estatística entre a variável dependente gasto bruto/total na função e a principal variável

independente, ideologia partidária. Todavia, como um teste de hipótese não capta detalhadamente a

variabilidade entre as categorias testadas, bastaria o fato de os partidos de direita apresentarem redução

de sua participação nos governos e, consequentemente, menores gastos brutos/totais e percentuais de

arrecadação gastos em segurança para que houvesse algum indicador de correlação entre ideologia e

gastos. Desse modo, a análise de regressão multivariada foi utilizada por possibilitar a apuração da

variação e do peso de cada legenda partidária no comportamento dos gastos.

15 Salienta-se que alguns estados introduziram o conceito de “defesa social” em suas secretarias a partir de processos de

reformas burocráticas que visaram à ampliação do escopo de ações na área e à capilarização de recursos e investimentos e

priorização do objetivo de defesa da sociedade. Em certos casos, as funções de justiça e segurança foram reunidas, o que

significa maior disponibilidade de recursos.

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SANTOS, I. G.; LEANDRO GONTIJO, J. G.; AMARAL, E. F. L. A política de segurança...

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No modelo 1 (Tabela 2), todos os partidos apresentaram impacto negativo com significância

estatística em comparação ao PSDB. Já no segundo modelo (Tabela 3), dentre o conjunto de oito

partidos, apenas um partido de esquerda aparece com impacto positivo e significância estatística (90%)

e um partido de direita surge com impacto de direção negativa e significância de 99%. Isso demonstra

que a legenda ou a ideologia não determinam os gastos nesse domínio de política pública e que, ao

modificarmos a variável dependente, tanto os partidos de esquerda quanto os de centro impactam a

configuração dos gastos; o que, consequentemente, fragiliza o argumento da existência de relação entre

ideologia partidária e política de segurança pública, especialmente no que diz respeito à associação

dessa política como uma prioridade ou preocupação maior dos partidos de direita. Para sustentar a ideia

de influência da ideologia nos gastos, seria necessário que os partidos de esquerda ou de direita

apresentassem padrões diferentes de resultados, em direção negativa ou positiva, com significância

estatística. Portanto, é possível afirmar que, ao tomarmos como dependente a variável gasto bruto/total,

os partidos não difiram substancialmente entre si no que diz respeito ao desempenho financeiro nas

políticas do setor e que, ao utilizarmos a dependente ponderada pela arrecadação, há alguma

diferenciação entre as legendas, porém, não na direção de um padrão de variância que possibilite

assumir o peso do partido ou da ideologia como variável explicativa necessária e suficiente.

Em relação à hipótese de predominância de ações reativas dos governos na política de

segurança pública, os coeficientes, direção e significância da variável utilizada como proxy, índice de

violência letal por 100 mil habitantes, não possibilitaram afirmar que os gastos governamentais são

impactados por uma situação de maior incidência de criminalidade letal. Inclusive, ao utilizarmos a

dependente gasto bruto/total, o que se percebeu foi uma relação de causa-efeito inversa à hipótese de

reatividade dos governos; o que, contudo, não significa afirmar que estes atuam de forma planejada. A

verificação dessa relação de forma mais contundente seria possível a partir da utilização de dados

desagregados que possibilitassem a identificação do tipo/modelo de política em que os investimentos

foram aplicados – políticas reativas, preventivas ou punitivas – e como tais alocações têm impactado os

índices de criminalidade.

A utilização da variável receita estadual como proxy de capacidade fiscal conseguiu captar o

impacto da capacidade financeira dos estados sobre a política pública, como sugerem autores como

Arretche (2003) e Souza (2004). Por sua vez, a análise do percentual de arrecadação investido em

segurança demonstrou haver algum padrão entre os estados; sugerindo que, para além do fator de

capacidade fiscal, devem existir outros fatores impactando a variável dependente, o que indica a

necessidade de estudos mais aprofundados, por exemplo: a) sobre a relação dos gastos e as regras

constitucionais dos estados; b) sobre o peso dos interesses das corporações policiais na definição dos

gastos na política; c) sobre o elevado custo de manutenção inerente ao caráter ostensivo predominante

e/ou à universalidade da política; d) sobre o grau de urbanização e necessidade de investimentos

incrementais no setor, em especial o peso dos gastos com pessoal inativo; e e) sobre o legado das

políticas prévias. Concordando com Skocpol e Amenta (1986), nesse sentido, o impacto que as políticas

prévias podem provocar no poder político de definição da agenda pública, nos padrões de conflito entre

grupos de interesse, na influência ou mudança das regras formais, na definição da alocação dos

recursos, entre outros aspectos, deve ser considerado.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 105-131

128

Outro ponto relevante é a problematização da relação estabelecida entre Executivo estadual e

burocracias, tendo em vista o conflito entre democratização e burocratização. Nesse quesito, estamos

cientes de que a construção da variável tipo de secretaria apresenta limitações, tendo em vista que nem

sempre o que corresponde às reformas e inovações pode ser representado por nomenclaturas ou

tipologias; e também pela impossibilidade de captar a relação entre os atores verificando se os formatos

diferentes das secretarias correspondem, por exemplo, a uma agenda diferenciada de governo que

impacta os gastos. Conforme exposto, em alguns estados a assunção das políticas preventivas parece

ocorrer num contexto de reorganização dos papéis e funções das secretarias estaduais e de ampliação

da permeabilidade do Estado a demandas e interesses de outros grupos e comunidades políticas.

Entretanto, o esclarecimento acerca da causalidade dessas variáveis exige maior embasamento empírico,

inclusive observando os contextos políticos e institucionais da criação de novos formatos de secretarias e

suas relações com a ideologia do partido no poder à época de sua criação. Seria, assim, necessário

estudar profundamente a estrutura formal e operacional de cada tipo/classificação das secretarias, a fim

de aumentar a sua capacidade preditiva, bem como inserir novas variáveis capazes de captar a relação

entre burocracia política e burocracia profissional (FIGUEIREDO, 2010) no contexto de formulação e

implementação da política.

Avaliando que na conjuntura da ação governamental não é possível desconsiderar as questões

relativas ao curso das trajetórias histórico-institucionais e das políticas do setor, cuja tradição ideológica

de direita ainda pode ser visualizada em práticas burocráticas e políticas punitivas – e não apenas no

padrão de gastos agregados estaduais na função –, cumprirá verificar em uma nova/futura investida

sobre os dados, a partir da recente inclusão de um ator na cena política dessa área – o governo federal –,

quanto a transferência de recursos da União vem impactando tal realidade, bem como retomar e refinar

a hipótese do peso exercido pela politics (incluindo aqui as coalizões) como suficiente para a

determinação dos padrões de gasto e formatos das políticas públicas. Cabe notar, além disso, que nosso

objeto de investigação aqui se direcionou para a execução da política e sua relação com os partidos.

Seria importante realizar pesquisas complementares para identificar o comportamento dos partidos em

relação à produção legislativa nesse campo. Como ainda não há estudos que aprofundam a dinâmica

partidária nessa esfera, nem mesmo estudos comparados sobre aspectos qualitativos da execução das

políticas, não devemos descartar possíveis padrões de influência dos partidos, especialmente os de

direita, sobre esse domínio de política pública.

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Iris Gomes dos Santos - [email protected]

José Geraldo Leandro Gontijo - [email protected]

Ernesto F. L. Amaral - [email protected]

Submetido à publicação em outubro de 2013.

Versão final aprovada em dezembro de 2014.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 132-156

Confiança nas Forças Armadas brasileiras: uma análise

empírica a partir dos dados da pesquisa

SIPS – Defesa Nacional

Rubem Kaipper Ceratti

Bolsista do Programa Nacional de Pesquisa para o Desenvolvimento

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Rodrigo Fracalossi de Moraes

Técnico de Planejamento e Pesquisa

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Doutorando em Relações Internacionais

Departamento de Política e Relações Internacionais

Universidade de Oxford

Edison Benedito da Silva Filho

Técnico de Planejamento e Pesquisa

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Resumo: Este artigo tem como propósito identificar os condicionantes associados ao grau de confiança da população brasileira

nas Forças Armadas do país. A principal fonte de dados foi um survey nacional realizado pelo Ipea em 2011 no âmbito da

pesquisa “Sistema de Indicadores de Percepção Social”, com foco em questões relacionados à defesa e segurança (SIPS –

Defesa Nacional). A partir das informações coletadas no survey e à luz da literatura sobre o tema, construiu-se um conjunto de

variáveis independentes, cujo impacto sobre a confiança foi então testado por meio de um modelo de regressão ordinal. A

principal conclusão do trabalho é que, não obstante prevaleça um elevado nível de confiança nas Forças Armadas entre todos os

estratos da população brasileira, essa confiança é impactada de forma distinta de acordo com os condicionantes

socioeconômicos e regionais e a percepção dos indivíduos acerca da legitimidade e efetividade de determinadas políticas

públicas.

Palavras-chave: Forças Armadas; Brasil; confiança; opinião pública; regressão ordinal

Abstract: This article aims to identify the variables associated to the Brazilian population trust in the country’s Armed Forces. The

main source of data is a national survey conducted by Ipea in 2011 through the research project “System of Indicators of Social

Perception”, with focus on defense and security issues. By organizing the survey data in the light of the literature on the subject,

we built up a set of independent variables, whose impact on confidence was then tested using a model of ordinal regression. The

main conclusion is that, despite prevails a high level of confidence in the military among all strata of the population, that trust is

impacted differently according to socioeconomic and regional conditions, as well as the perception of individuals about the

legitimacy and effectiveness of specific public policies.

Keywords: Armed Forces; Brazil; trust; public opinion; ordinal regression

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CERATTI, R. K.; MORAES, R. F.; SILVA FILHO, E. B. Confiança nas Forças Armadas...

133

Introdução

Ainda há escassa pesquisa empírica no Brasil acerca de temas relacionados à defesa nacional,

sobretudo no que tange às percepções da população sobre as instituições e políticas públicas desse

setor. Isso se deve não apenas à carência de dados, mas ao fato de que as políticas de defesa e

segurança nacional do país foram historicamente formuladas no âmbito das próprias Forças Armadas,

com baixo envolvimento de outras instituições. Apenas em período recente o tema passou a ser debatido

de forma mais ampla por outros segmentos do Estado e pela sociedade civil, no bojo da

redemocratização do país e das mudanças nas atribuições institucionais das Forças Armadas a partir da

criação do Ministério da Defesa em 1999.

Com o objetivo de subsidiar com informações os atores envolvidos com as políticas de defesa

nacional no país, incluindo militares das Forças Armadas, técnicos do governo, parlamentares,

diplomatas, acadêmicos, empresários e integrantes de organizações da sociedade civil, o Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou uma pesquisa de abrangência nacional acerca da

percepção da sociedade sobre o tema, no âmbito do projeto do Sistema de Indicadores de Percepção

Social (SIPS)1. Foram aplicadas 30 questões aos entrevistados, divididas em quatro eixos temáticos: i)

percepção sobre a defesa nacional e as Forças Armadas; ii) percepção de ameaças; iii) poder militar do

Brasil e inserção internacional; e iv) Forças Armadas e sociedade. Ao todo, foram ouvidas 3.796 pessoas,

em todas as unidades da federação, entre os dias 8 e 29 de agosto de 20112. A partir dos dados

coletados, obteve-se um retrato da percepção da população brasileira em relação ao tema da defesa

nacional e ao papel desempenhado pelas instituições vinculadas a essa área.

Embora constitua um componente essencial de diversas pesquisas relacionadas ao

desempenho das instituições públicas e ao grau de adesão social a regimes democráticos, a confiança

nas Forças Armadas brasileiras carece de investigação aprofundada sobre seus determinantes. A

literatura aponta a prevalência de um elevado nível de confiança nas instituições militares em diversos

países, como: Alemanha (BULMAHN; FIEBIG; HILPERT, 2011), Canadá (MONTALVO, 2009), Chile (MONTALVO,

2009), Colômbia (MONTALVO, 2009), Espanha (NUÑEZ, 2010), Estados Unidos (MONTALVO, 2009; GALLUP,

2012; PEW RESEARCH CENTER, 2013), Hungria (KISS, 2003), Japão (JAPAN MINISTRY OF DEFENSE, 2012),

México (MONTALVO, 2009), Polônia (GOGOLEWSKA, 2003), Reino Unido (U.K. MINISTRY OF DEFENCE, 2012) e

Suíça (HALTINER, 2003). Contudo, tal confiança parece estar associada a diferentes fatores, conforme o

1 O SIPS foi concebido com o objetivo de criar um conjunto de dados primários de percepção social capaz de fornecer ao Estado

informações para subsidiar análises e decisões referentes a formulação, implementação e avaliação das suas políticas públicas,

bem como oferecer à sociedade condições para melhor conhecer e avaliar os resultados efetivos alcançados pelas políticas

públicas vigentes. Esses dados são coletados por meio de pesquisas de abrangência nacional. Para maiores informações sobre a

metodologia de coleta e processamento de dados do SIPS, bem como os principais resultados da pesquisa SIPS – Defesa

Nacional, ver: Oliveira Júnior, Silva Filho e Moraes (2012). 2 Para a pesquisa adotou-se uma abordagem quantitativa cujo método estatístico permitiu determinar por amostragem

probabilística, com erro amostral de 5% para o Brasil e regiões, e nível de confiança de 95%, o tamanho da amostra de 3.796

domicílios para, assim, aferir a percepção da população sobre o fenômeno em questão. Para tanto, a amostragem foi

decomposta em três etapas: i) na primeira, houve uma estratificação por regiões, mantendo-se tamanhos amostrais prefixados

com margem de erro de 5%. Dentro de cada estrato (região) houve sorteio dos municípios através de amostragem por

conglomerados, controlando a distribuição por porte e unidade da federação; ii) na segunda etapa, já devidamente definidos os

municípios amostrados, houve um sorteio dos domicílios, cujo critério aleatório foi composto por dois estágios: a) sorteio do

setor censitário e b) arrolamento sistemático dos domicílios; iii) por fim, dada a definição prévia dos domicílios, adotou-se a

amostragem sistemática das pessoas, cujo questionário era respondido por quem se encontrava presente em cada domicílio.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 132-156

134

caso analisado. Alguns países – notadamente europeus e asiáticos – possuem, em suas histórias

contemporâneas, experiências de participação (ou de expectativa de participação) significativa em

conflitos armados de grande magnitude, de modo que a confiança nas Forças Armadas está intimamente

relacionada à necessidade de proteção da soberania. Outros países, como a maior parte dos latino-

americanos, muito embora se encontrem “em paz” por longo tempo, passaram, durante o século XX, por

períodos de interrupção do funcionamento de suas instituições democráticas. Tais experiências podem

influenciar a percepção das populações desses países acerca de suas Forças Armadas.

Dada, pois, a complexidade das variáveis relacionadas com a confiança depositada pela

população nas instituições militares, bem como seu inevitável imbricamento com os efeitos de diversas

outras políticas públicas, o emprego de técnicas estatísticas se mostra útil para avançar na compreensão

desse fenômeno social. Este artigo busca, nesse sentido, oferecer uma contribuição a essa agenda de

pesquisa por meio da análise estatística de uma série de fatores identificados no questionário do SIPS –

Defesa Nacional como possíveis elementos que se associam ao grau de confiança manifesto pela

população brasileira nas Forças Armadas.

Este artigo está dividido em cinco seções, incluindo esta Introdução. A segunda seção

apresenta a metodologia adotada neste estudo, que consiste no método de regressão ordinal. A terceira

seção apresenta os resultados obtidos pela regressão e os testes para validação do modelo proposto. A

quarta seção discute os dados obtidos a partir da análise estatística, descrevendo os efeitos marginais

de cada variável pré-selecionada sobre a variável confiança nas Forças Armadas. Conclui-se destacando

os elementos encontrados nessa análise empírica que contribuem para a explicação de variações no grau

de confiança nas Forças Armadas brasileiras.

Metodologia

Para a análise dos dados de confiança nas Forças Armadas e sua relação com diversos

atributos socioeconômicos previamente identificados, utilizou-se um modelo de regressão ordinal na

estimação do efeito das variáveis independentes sobre a variável resposta.

A escolha das variáveis explicativas se deu a partir da revisão de pesquisas empíricas similares

conduzidas em outros países (MONTALVO, 2009; LEAL, 2005; JAPAN MINISTRY OF DEFENSE, 2012; GÜRSOY,

2012). Com vistas a facilitar a identificação das variáveis selecionadas com as questões aplicadas no

questionário SIPS – Defesa Nacional, optou-se por denominar essas variáveis como Q#, em que # segue

a numeração da questão correspondente no formulário de pesquisa (reproduzido no Apêndice ao final do

artigo).

A variável dependente do modelo é a confiança nas Forças Armadas (Q19). Foram escolhidas,

ao total, 17 variáveis independentes, discriminadas no Quadro 1, a seguir, juntamente com suas

respectivas categorias (no caso das variáveis qualitativas) ou faixas de valores (no caso das variáveis

quantitativas):

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CERATTI, R. K.; MORAES, R. F.; SILVA FILHO, E. B. Confiança nas Forças Armadas...

135

Quadro 1

Variáveis independentes selecionadas

a partir da pesquisa SIPS – Defesa Nacional

Variável Número de

categorias Descrição das categorias

Sexo 2 1. Masculino

2. Feminino

Região 5

1. Sul

2. Sudeste

3. Norte

4. Nordeste

5. Centro-Oeste

Q1

Idade 6

1. 18 a 24 anos

2. 25 a 34 anos

3. 35 a 44 anos

4. 45 a 54 anos

5. 55 a 64 anos

6. mais de 64 anos

Q2

Escolaridade 7

1. Não escolarizado (a)

2. Ensino fundamental

incompleto

3. Ensino fundamental

completo

4. Ensino médio

incompleto

5. Ensino médio completo

6. Superior incompleto

7. Superior completo ou

pós-graduação

Q3

Cor ou raça 5

1. Branca

2. Preta

3. Amarela

4. Parda

5. Indígena

Q10

Renda¹ 5

1. Até R$ 545,00

2. De R$ 545,01 a

3. R$ 1.090,00

4. De R$ 1.090,01 a

5. R$ 2.725,00

6. De R$ 2.725,01 a

7. R$ 5.450,00

8. Acima de R$ 5.450,00

Q11

Orgulho de ser brasileiro 3

1. Extremamente/muito

orgulhoso

2. Razoavelmente

orgulhoso

3. Pouco/nada orgulhoso

Q12

Serviu/serve/

conhece quem serviu às

Forças Armadas

3

1. Está servindo/serviu

2. Não serve/serviu, mas

tem parente ou pessoa

próxima que

serve/serviu

3. Nenhuma das anteriores

Q13

Avaliação do trabalho das

Forças Armadas

3

1. Muito bom/bom

2. Regular

3. Ruim/muito ruim

Q14

Avaliação da

quantidade de informações

disponíveis sobre as

Forças Armadas

3

1. Muito boa/boa

2. Regular

3. Ruim/muito ruim

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Variável

Número de

categorias

Descrição das categorias

Q15

Avaliação da

igualdade de tratamento

conferido pelas Forças

Armadas

3

1. Discorda

totalmente/muito

2. Não concorda nem

discorda

3. Concorda

muito/totalmente

Q16

Encaminhamento de

reclamação ou denúncia contra

as Forças Armadas e/

ou seus integrantes

3

1. Muito fácil/fácil

2. De dificuldade razoável

3. Difícil/muito difícil

Q17

Autoavaliação quanto ao

nível de informação sobre as

Forças Armadas

3

1. Totalmente/muito

informado

2. Razoavelmente

informado

3. Pouco/nada informado

Q18

Importância das Forças

Armadas

3

1. Apenas no caso de uma

guerra

2. Tanto no caso de uma

guerra como na

ausência de guerras

3. Não são importantes em

nenhuma situação

Q31

Participação das Forças

Armadas em

missões de paz

2 1. Favorável

2. Não favorável

Q38

Respeito das Forças Armadas à

democracia

3

1. Respeitam

totalmente/muito

2. Respeitam

razoavelmente

3. Respeitam pouco/não

respeitam

Q39

Conhecimento a respeito da

Lei da Anistia

3

1. Nunca tinha ouvido falar

2. Tinha ouvido falar, mas

não sabe o que é

3. Ouviu falar e sabe o que

é

Fonte: Elaboração própria com base no Formulário SIPS – Defesa Nacional, reproduzido no

Apêndice ao final do artigo.

Nota: ¹ Para a divisão em níveis, considerou-se o valor do salário mínimo vigente entre março

e dezembro de 2011, com valor mensal de R$ 545,00.

O resultado esperado para o sentido da correlação e a intensidade dos efeitos produzidos pelas

variáveis independentes é apresentado no Quadro 2:

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CERATTI, R. K.; MORAES, R. F.; SILVA FILHO, E. B. Confiança nas Forças Armadas...

137

Quadro 2

Sentido esperado para as variáveis

independentes e probabilidade de simultaneidade

Variável explicativa Sentido da correlação

com a variável confiança Probabilidade de simultaneidade

Sexo

– (mulheres) Não se aplica

Região

+ (Norte e Sul) Não se aplica

Q1

Idade + Não se aplica

Q2

Escolaridade – Não se aplica

Q3

Cor ou raça Indeterminado Não se aplica

Q10

Renda – Não se aplica

Q11

Orgulho de ser brasileiro + Significativa

Q12

Serviu/serve/conhece quem serviu às

Forças Armadas

+

(“serviu/serve/conhece”) Não Significativa

Q13

Avaliação do trabalho das Forças

Armadas

+ Significativa

Q14

Avaliação da quantidade de informações

disponíveis sobre as

Forças Armadas

+ Não Significativa

Q15

Avaliação da igualdade de tratamento

conferido pelas Forças Armadas

– Significativa

Q16

Encaminhamento de reclamação ou

denúncia contra as Forças Armadas e/ou

seus integrantes

+ Não Significativa

Q17

Autoavaliação quanto ao nível de

informação sobre as Forças Armadas

+ Significativa

Q18

Importância das Forças Armadas

(“não são importantes”) Significativa

Q31

Participação das Forças Armadas em

missões de paz

+

(“concorda”) Não Significativa

Q38

Respeito das Forças Armadas à

democracia

+ Significativa

Q39

Conhecimento a respeito da Lei da

Anistia

(“conhece a lei”) Não Significativa

Fonte: Elaboração própria com base em dados do SIPS – Defesa Nacional.

Cumpre explicar em detalhe as hipóteses que sustentam alguns dos resultados previstos no

Quadro 2. No caso da variável sexo, a literatura aponta tendência em vários países latino-americanos de

uma maior desconfiança de mulheres em relação às instituições militares (MONTALVO, 2009; BELL, 2012).

Isso também foi observado em pesquisas realizadas nos Estados Unidos (LEAL, 2005) e no Japão (JAPAN

MINISTRY OF DEFENSE, 2012). Para a variável região, entende-se que a confiança deveria ser mais elevada

nas regiões do Brasil onde a presença das Forças Armadas é significativa e bem distribuída (Norte e Sul).

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138

A variável idade (Q1) deveria ter correlação positiva em razão do maior conservadorismo de

indivíduos em estratos etários mais avançados, fenômeno observado em países da América Latina

(MONTALVO, 2009), nos Estados Unidos (LEAL, 2005) e no Japão (JAPAN MINISTRY OF DEFENSE, 2012). A

variável escolaridade (Q2) tenderia a ter impacto negativo devido à postura mais crítica de indivíduos

mais escolarizados em relação ao papel das Forças Armadas na ruptura da democracia em países da

América Latina (MONTALVO, 2009), o que também se aplicaria à variável renda (Q10).

A variável cor/raça (Q3) tenderia a ter pouco impacto sobre a confiança nas Forças Armadas,

em linha, por exemplo, com estudos realizados nos Estados Unidos (LEAL, 2005). Contudo, em função da

elevada correlação que tal variável possui com as variáveis escolaridade e renda, é possível que a variável

cor/raça capte indiretamente os efeitos dessas últimas variáveis. Por essa razão, optou-se por não

introduzir no Quadro 2 um resultado esperado para a relação entre cor/raça e confiança nas Forças

Armadas.

A variável orgulho de ser brasileiro (Q11) deveria exercer importante efeito no modelo, uma vez

que se observa na literatura o papel do patriotismo como fator-chave para explicar a confiança nas

Forças Armadas (GÜRSOY, 2012). No caso dos indivíduos que serviram às Forças Armadas ou possuem

parentes/pessoas próximas que tiveram essa experiência (Q12), a confiança deveria ser mais elevada,

devido ao espírito de corpo e aos benefícios derivados dessa vinculação, tais como qualificação

profissional. Já as variáveis Q13 a Q17, bem como a Q38, dizem respeito à avaliação da população

quanto ao desempenho institucional das Forças Armadas, tendo, portanto, efeitos diretos sobre a

confiança. Essa dimensão de avaliação também seria captada na questão sobre a importância das

Forças Armadas (Q18), que tenderia a ser ampliada entre os indivíduos que mais confiam na instituição.

A variável participação em missões de paz (Q31) representaria um juízo acerca da necessidade

e da capacidade dos militares brasileiros de exercerem atividades no exterior sob mandato internacional

e, portanto, deveria estar relacionada à confiança nas instituições militares do país. Quanto ao respeito

dos militares à democracia (Q38), aqueles indivíduos que percebessem tal respeito como baixo

tenderiam a enxergar nos militares um grupo sem apreço pelas instituições democráticas do país e, por

isso, não merecedor de confiança. A variável conhecimento da Lei da Anistia (Q39) poderia ser

particularmente relevante para explicar a confiança nas Forças Armadas brasileiras, devido ao fato de

que essa norma impede a punição de agentes da repressão (e de integrantes de grupos armados de

oposição) responsáveis por crimes praticados no período 1961-1979. Nesse caso, o conhecimento da lei

deveria influenciar negativamente a confiança manifestada pelos entrevistados nas instituições militares

do país.

Por conveniência analítica, optou-se pela separação da variável dependente confiança,

originalmente dividida em uma escala ordinal com cinco classes de respostas, em três categorias: c = 1

(confia totalmente ou muito), c = 2 (confia razoavelmente) e c = 3 (confia pouco ou não confia). Esse

mesmo procedimento foi adotado para todas as variáveis explicativas cujas categorias apresentavam

uma escala de gradação original de cinco valores, quais sejam: Q11, Q13-Q17 e Q38. Para as demais

variáveis, foram mantidas as categorias ou faixas de valores conforme o padrão adotado no questionário

SIPS – Defesa Nacional (ver Apêndice).

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139

Desse modo, o modelo logit cumulativo para Yi (variável resposta para a observação i) pode ser

descrito conforme a equação (1) (VENABLES; RIPLEY, 2002):

(1)

em que: ζc é o intercepto da categoria c; xi⊤ é o vetor transposto de variáveis indicadoras correspondentes

às variáveis explicativas; e é o vetor de parâmetros.

Estimação e avaliação do modelo

Ajustando-se o modelo para as variáveis explicativas propostas, observa-se pela análise de

deviance, na Tabela 1, que, para as variáveis escolaridade (Q2), renda (Q10), relação com o serviço

militar (Q12) e conhecimento da Lei da Anistia (Q39), não há diferenciação significativa entre os níveis.

Em razão disso, essas variáveis foram retiradas do modelo, restando somente 13 variáveis

independentes em sua versão reduzida.

Tabela 1

Análise de deviance do

modelo com todas as variáveis

Variável X2RV G.L. P-valor

Sexo 29.51 1 5.56e-08

Região 9.95 4 0.0412818

Q1 23.93 5 0.0002243

Q2 4.16 6 0.654887

Q3 8.95 4 0.0624224

Q10 1.89 8 0.7569047

Q11 43.91 2 2.93e-10

Q12 0.13 2 0.9359625

Q13 61.84 2 3.73e-14

Q14 12.54 2 0.0018969

Q15 36.67 2 1.09e-08

Q16 13.51 2 0.0011645

Q17 48.07 2 3.64e-11

Q18 16.63 2 0.000245

Q31 3.65 1 0.0561947

Q38 84.05 2 < 2.2e-16

Q39 0.43 2 0.8064146

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do

SIPS – Defesa Nacional.

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140

Na Tabela 2 encontram-se os valores para os fatores de inflação de variância generalizada

(GVIF)3. Mesmo com todas as variáveis preditoras incluídas no modelo e os valores ajustados pelos graus

de liberdade [GVIF^(1/(2*Df))], esses valores ainda permaneceram bastante próximos da unidade,

indicando que não há problemas de colinearidade na matriz de delineamento do modelo.

Tabela 2

Fator de inflação de variância

generalizado do modelo completo

Variável GVIF Df GVIF^(1/(2*Df))

Sexo 1.114 1 1.055

Região 1.883 4 1.082

Q1 1.491 5 1.041

Q2 1.870 6 1.054

Q3 1.424 4 1.045

Q10 1.582 8 1.059

Q11 1.131 2 1.031

Q12 1.162 2 1.038

Q13 1.367 2 1.081

Q14 1.333 2 1.075

Q15 1.120 2 1.029

Q16 1.209 2 1.049

Q17 1.191 2 1.045

Q18 1.078 2 1.019

Q31 1.147 1 1.071

Q38 1.143 2 1.034

Q39 1.285 2 1.065

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do SIPS – Defesa Nacional.

Como anteriormente mencionado, com base nos resultados da Tabela 1, definiu-se o modelo

final sem as variáveis Q2, Q10, Q12 e Q39. Uma vez ajustado o modelo com as variáveis restantes,

apresentam-se na Tabela 3 as estimativas dos parâmetros, com os respectivos erros-padrão:

3 Essa estatística é uma medida de multicolinearidade para modelos lineares. Entretanto, também pode ser utilizada nesse

contexto, uma vez que diz respeito apenas às correlações entre preditores (FOX; MONETTE, 1992).

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141

Tabela 3 Estimativas dos parâmetros do modelo selecionado

Variável Categoria Estimativa Erro-

Padrão Estatística t P-valor

Q1

2 – 0,11 0,12 – 0,91 0,362

3 0,01 0,12 0,11 0,912

4 – 0,52 0,12 – 4,24 < 0,0001

5 – 0,38 0,14 – 2,82 0,005

6 – 0,50 0,14 – 3,56 < 0,0001

Q3

2 0,11 0,11 1,02 0,309

3 – 0,09 0,32 – 0,27 0,788

4 0,05 0,09 0,57 0,569

5 1,38 0,48 2,86 0,004

Q11 2 0,26 0,09 2,88 0,004

3 0,75 0,12 6,22 < 0,0001

Q13 2 0,62 0,09 7,07 < 0,0001

3 1,04 0,16 6,61 < 0,0001

Q14 2 0,06 0,09 0,63 0,529

3 0,32 0,10 3,39 0,001

Q15 2 – 0,23 0,10 – 2,25 0,024

3 – 0,49 0,08 – 6,05 < 0,0001

Q16 2 0,26 0,12 2,07 0,038

3 0,30 0,09 3,26 0,001

Q17 2 0,62 0,13 4,84 < 0,0001

3 0,90 0,12 7,36 < 0,0001

Q18 2 0,19 0,11 1,75 0,081

3 1,01 0,21 4,86 < 0,0001

Sexo M – 0,45 0,07 – 6,21 < 0,0001

Região

Nordeste – 0,28 0,14 – 1,95 0,051

Norte – 0,03 0,18 – 0,15 0,878

Sudeste – 0,12 0,14 – 0,88 0,376

Sul 0,20 0,17 1,17 0,243

Q31 2 0,21 0,09 2,2 0,028

Q38 2 0,52 0,08 6,28 < 0,0001

3 0,90 0,10 9,22 < 0,0001

Intercepto 1 1,20 0,23 5,17 < 0,0001

2 3,02 0,24 12,74 < 0,0001

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do SIPS – Defesa Nacional.

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142

Para uma avaliação preliminar acerca da adequação do modelo para fins preditivos, empregou-

se a medida R2 de Nagelkerke (NAGELKERKE, 1991). Embora o valor obtido de 0,229 possa ser

considerado baixo, optou-se por conservar o modelo uma vez que não há consenso na literatura a

respeito da validade de medidas como o coeficiente de determinação para a avaliação de modelos para

variáveis categorizadas.

Os gráficos apresentados nas Figuras 1, 2, 3 e 4 a seguir mostram os efeitos marginais

encontrados para as variáveis explicativas4:

Figura 1

Efeitos marginais da variável Q1 (idade)

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do SIPS – Defesa Nacional.

4 Nos gráficos a seguir, as categorias de cada variável são apresentadas em letras e algarismos para facilitar a visualização dos

resultados. A identificação de cada categoria correspondente a esses caracteres se encontra no Quadro 1.

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Figura 2

Efeitos marginais das variáveis Q3 (cor/raça),

Q11 (orgulho de ser brasileiro), sexo e região

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do SIPS – Defesa Nacional.

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Figura 3

Efeitos marginais das variáveis Q13 (avaliação do trabalho das Forças Armadas), Q14 (avaliação da

quantidade de informações disponíveis sobre as Forças Armadas), Q15 (avaliação da igualdade de

tratamento conferido pelas Forças Armadas), Q16 (encaminhamento de reclamação ou denúncia), Q17

(autoavaliação quanto ao nível de informação) e Q18 (importância das Forças Armadas)

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do SIPS – Defesa Nacional.

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Figura 4

Efeitos marginais das variáveis Q31

(participação das Forças Armadas em missões de paz) e

Q38 (respeito das Forças Armadas à democracia)

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do SIPS – Defesa Nacional.

Análise dos resultados

A maior parte dos resultados obtidos se mostrou consonante com as hipóteses que embasaram

a construção do modelo (Quadro 2).

Para a variável idade (Q1) – Figura 1 –, verifica-se que grupos etários mais avançados tendem a

ser mais propensos a mostrar confiança nas Forças Armadas brasileiras que os mais jovens, conclusão

que se assemelha às de: Montalvo (2009) e Latinobarómetro (2010), para diversos países da América

Latina; Leal (2005) e Jedwab (2010), sobre os Estados Unidos; Jedwab (2010), para o Canadá; Manigart

(2001, p. 5), em pesquisa feita em países da União Europeia; Natcen Social Research (2012), sobre o

Reino Unido; e Japan Ministry of Defense (2012), sobre o Japão. No caso brasileiro, observa-se uma

ruptura de tendência entre as faixas de 35-44 anos (categoria 3) e 45-54 anos (categoria 4) para os

respondentes que disseram confiar nas Forças Armadas, sendo a probabilidade de confiança

significativamente maior a partir dessa última faixa etária.

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Com relação à variável sexo (Figura 2), indivíduos do sexo masculino tendem a apresentar maior

confiança nas Forças Armadas que os do sexo feminino, o que se coaduna com as conclusões de

Montalvo (2009) sobre a América Latina. Em estudo realizado por esse autor, a variável sexo foi a de

maior impacto sobre o grau de confiança nas Forças Armadas. Conclusão semelhante foi a de Leal

(2005) em relação ao caso dos Estados Unidos, onde mulheres apoiam menos as Forças Armadas e o

uso da força do que os homens, assim como no Japão (JAPAN MINISTRY OF DEFENSE, 2012), onde as

mulheres possuem visão mais negativa sobre as Forças Armadas que os homens. Em estudo realizado no

Reino Unido, contudo, não se observaram diferenças significativas entre homens e mulheres quanto à

visão sobre as Forças Armadas do país (NATCEN SOCIAL RESEARCH, 2012).

Para a variável orgulho de ser brasileiro (Q11) – Figura 2 –, há uma forte separação na avaliação

da confiança: aqueles entrevistados que se dizem extremamente ou muito orgulhosos tendem a

apresentar maior confiança que os demais grupos de respondentes, conclusão semelhante à de Gürsoy

(2012).

Para os itens de opinião, avaliações ruins acerca do trabalho realizado pelas Forças Armadas

(Q13) levam à maior propensão a confiar razoavelmente ou pouco nestas. A percepção quanto à

escassez de informação sobre as atividades dos militares nos meios de comunicação (Q14) tende, por

sua vez, a ter impacto menor na diminuição da confiança: entre entrevistados que avaliaram haver pouca

ou nenhuma informação sobre o tema, a probabilidade de confiar totalmente ou muito nas Forças

Armadas do país ainda é superior a 40% (Figura 3). Por sua vez, os entrevistados que afirmaram possuir

baixo grau de conhecimento sobre as Forças Armadas e suas atividades (Q17) tendem a confiar menos

na instituição.

Com relação ao tratamento dispensado pelas Forças Armadas aos cidadãos (Q15), quando se

avalia que este é igualitário, há maior propensão a confiar na instituição. O mesmo se aplica acerca da

percepção quanto à facilidade de encaminhar reclamação ou denúncia (Q16).

Quando se considera a importância atribuída pelos entrevistados às Forças Armadas (Q18),

observa-se uma diferença no efeito marginal entre os que confiam totalmente/muito nas Forças Armadas

e as demais categorias, que apresentam menor confiança nessa instituição. Os indivíduos que acreditam

que as Forças Armadas respeitam a democracia (Q38) – Figura 4 –, por sua vez, tendem a mostrar maior

grau de confiança em comparação aos que não consideram que os militares respeitem as instituições

democráticas.

Chamam atenção algumas variáveis que contrariaram a expectativa inicial. Dentre elas, houve

reduzido impacto dos níveis de escolaridade (Q2) e renda (Q10) sobre a confiança nas Forças Armadas.

Em comparação, o mesmo também ocorre nos Estados Unidos, conforme atestado por Leal (2005). Na

América Latina, contudo, o modelo proposto por Montalvo (2009) não foi capaz de comprovar a

existência de tal relação. Outro ponto de destaque é o impacto não significativo sobre a confiança nas

Forças Armadas encontrado para atributos como participação do entrevistado no serviço militar (ou

conhecimento de pessoa próxima que participou) (Q12) e conhecimento da Lei da Anistia (Q39). Embora

houvesse expectativa de que esses fatores condicionassem mais fortemente o grau de confiança dos

entrevistados nas instituições militares, os resultados obtidos contrariaram essa previsão. A participação

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147

dos militares brasileiros em missões de paz (Q31) – Figura 4 – também não parece afetar de forma

significativa a confiança depositada pela população nas Forças Armadas.

Outro resultado a ser destacado é o nível menor de confiança nas Forças Armadas encontrado

na região Sul do país (Figura 2), onde há elevada quantidade de unidades militares estacionadas e onde

estas estão relativamente bem distribuídas no território. Considerando o grau substancialmente mais

elevado de confiança nas regiões Norte (onde a presença militar é ampla e distribuída) e Nordeste (onde

não é ampla), infere-se que a confiança nas Forças Armadas não se relaciona com o número e a

distribuição de unidades militares em uma determinada região.

Por fim, há pouca variação na confiança em função da cor/raça (Q3) informada pelo

entrevistado. A maior amplitude dos intervalos de probabilidade para os grupos de cor amarela e

indígenas se explica pela pequena quantidade de indivíduos em comparação ao tamanho da amostra.

Embora as distinções por cor/raça nos Estados Unidos, para fins estatísticos, sejam diferentes das

brasileiras, o estudo de Leal (2005) constatou que afro-americanos e latinos não tendem a confiar menos

nas Forças Armadas que integrantes de outras etnias/raças, o que, guardadas as devidas proporções, é

semelhante ao observado no Brasil.

O modelo proposto explica, por um lado, parte dos elementos que compõem a confiança do

brasileiro nas Forças Armadas, demonstrando a associação entre a confiança e as seguintes variáveis:

sexo, região, idade, orgulho em ser brasileiro, avaliação do trabalho das Forças Armadas, avaliação

acerca da quantidade de informações disponíveis, avaliação sobre a igualdade de tratamento por parte

das Forças Armadas, percepção sobre a facilidade de encaminhar reclamação ou denúncia,

autoavaliação quanto ao nível de informação sobre as Forças Armadas, importância atribuída às Forças

Armadas e respeito dos militares à democracia. Por outro lado, não foi possível confirmar a existência de

associação entre algumas variáveis do modelo e a confiança nas Forças Armadas, quais sejam:

escolaridade, cor/raça, renda, participação do entrevistado no serviço militar (ou conhecimento de

pessoa próxima que participou), participação das Forças Armadas em missões de paz e conhecimento

da Lei da Anistia. Não se pode afirmar, particularmente, que a elevada confiança nas Forças Armadas

seja um fenômeno de elite, nem tampouco uma característica presente em classes com renda baixa,

uma vez que ela se acha distribuída entre praticamente todos os estratos de renda e escolaridade da

sociedade.

Seria relevante para o aprimoramento futuro do modelo a inclusão de variáveis que refletissem

posturas político-ideológicas dos indivíduos, tais como sua posição no espectro ideológico (esquerda,

centro, direita etc.), filiações religiosas e opiniões sobre temas-chave que dominam o debate acerca do

papel a ser desempenhado pelos militares no país. Essas variáveis poderiam ter elevado poder

explicativo sobre o grau de confiança nas Forças Armadas, a exemplo dos estudos de Gürsoy (2012),

analisando o caso da Turquia, e Castillo, Miranda e Torres (2011, p. 17-18), para o caso do Chile.

Considerações Finais

Este artigo consistiu em um esforço preliminar para avançar na pesquisa empírica sobre o tema da

confiança nas Forças Armadas brasileiras, tomando por base os dados coletados pelo SIPS – Defesa

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 132-156

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Nacional. A partir do modelo do questionário aplicado nesta pesquisa de abrangência nacional, foram

selecionadas as questões que continham as variáveis consideradas mais relevantes para a determinação

da confiança nas instituições militares, de acordo com a literatura sobre o tema.

Os resultados obtidos mostram que, não obstante prevaleça na população um elevado nível de

confiança, certos atributos socioeconômicos se mostram mais relevantes para a determinação das

variações encontradas.

O aprimoramento do modelo estatístico permitirá o aprofundamento posterior da agenda de

pesquisa sobre a confiança nas instituições militares no Brasil. Para tanto, deve-se buscar, em um

primeiro momento, ampliar a robustez e a capacidade explanatória do modelo por meio da incorporação

ou exclusão de variáveis para, posteriormente, inferir relações de causalidade a partir dos resultados

obtidos e de teorias consolidadas sobre o tema. Futuras investigações são necessárias para abordar as

possíveis razões por detrás do grau de confiança dos indivíduos nas Forças Armadas. Nesse sentido,

ainda que não haja variância significativa quanto ao grau de confiança entre indivíduos de diferentes

níveis de renda e escolaridade, as motivações para essa confiança ainda podem ser distintas. É possível

que, para níveis mais baixos de escolaridade ou renda, a confiança derive, sobretudo, das chamadas

“ações sociais” das Forças Armadas, enquanto para estratos mais elevados ela pode ser resultado da

percepção de que as Forças Armadas constituem uma espécie de “reserva moral da nação”. Assim, uma

pesquisa posterior, que seja capaz de melhor captar o nível de conhecimento da população sobre as

atividades desempenhadas pelos militares, bem como suas preferências políticas, seria essencial para a

identificação mais precisa dos determinantes dessa confiança.

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150

Apêndice

Formulário SIPS – Defesa Nacional

Nº de identificação:

Nome:

Telefone:

Sexo:

Município: UF:

Latitude:

Longitude:

Data:

INSTRUÇÃO: Conversar com pessoas maiores de 18 anos. Caso não tenha 18 anos, perguntar se tem alguém em casa

com mais de 18 anos que possa falar.

PERGUNTAS

1. Qual a sua idade (em anos completos)? 1. Idade:

88 Não sabe

99 Não respondeu

2. Qual o seu nível de escolaridade? 1. Não escolarizado(a)

2. Ensino fundamental incompleto

3. Ensino fundamental completo

4. Ensino médio incompleto

5. Ensino médio completo

6. Ensino superior incompleto

7. Ensino superior completo ou pós-graduação

88 Não sabe

99 Não respondeu

3. Qual a sua cor ou raça? 1. Branca

2. Preta

3. Amarela (origem japonesa, chinesa, coreana etc.)

4. Parda

5. Indígena

88 Não sabe

99 Não respondeu

4. Qual é o seu estado civil? 1. Casado(a)

2. Desquitado(a) ou separado(a) judicialmente

3. Divorciado(a)

4. Viúvo(a)

5. Solteiro(a)

88 Não sabe

99 Não respondeu

5. Na semana passada o (a) Sr(a).: 1. Tinha um trabalho remunerado

2. Tinha um trabalho remunerado do qual estava temporariamente afastado por algum motivo (férias, licença, greve,

doença etc.)

3. Exerceu apenas tarefas em cultivo, pesca ou criação de animais destinados à própria alimentação das pessoas

moradoras no domicílio

4. Exerceu apenas tarefas de construção, destinada ao próprio uso das pessoas moradoras do domicílio

5. Exerceu outro tipo de atividade não remunerada

6. Exerceu apenas tarefas domésticas no próprio domicílio

7. Não trabalhou e não procurou trabalho remunerado (inativo)

8. Não trabalhou, mas procurou trabalho remunerado (desempregado)

88 Não sabe

99 Não respondeu

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CERATTI, R. K.; MORAES, R. F.; SILVA FILHO, E. B. Confiança nas Forças Armadas...

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6. No trabalho único ou principal da semana passada, o (a) Sr(a). era: 1. Empregado com carteira assinada

2. Empregado sem carteira assinada

3. Servidor público civil ou militar

4. Trabalhador doméstico com carteira assinada

5. Trabalhador doméstico sem carteira assinada

6. Trabalhador por conta própria ou autônomo

7. Empregador

77 NSA (Não Se Aplica)

88 Não sabe

99 Não respondeu

7. Como o (a) Sr(a). se sente em relação à sua vida? 1. Minha vida é muito próxima daquilo que considero ideal

2. Minha vida é razoavelmente próxima daquilo que considero ideal

3. Minha vida não é muito próxima do que considero ideal

4. Minha vida não é nem um pouco próxima do que considero ideal

88 Não sabe

99 Não respondeu

8. Nos últimos 3 anos, o (a) Sr(a). percebe que a renda da sua família: 1. Melhorou muito

2. Melhorou pouco

3. Permaneceu igual

4. Piorou pouco

5. Piorou muito

88 Não sabe

99 Não respondeu

9. O (a) Sr(a). conhece alguém que é beneficiário do Programa Bolsa Família? 1. Não

2. Sim, eu mesmo

3. Sim, alguém da minha família que vive em minha casa

4. Sim, alguém da minha família, mas que não vive em minha casa

5. Sim, alguém que não é da minha família

88 Não sabe

99 Não respondeu

10.1. Considerando todas as pessoas da sua família que vivem em sua casa e todas as fontes de renda, qual foi a renda total obtida no último mês? (Considerar o rendimento líquido total da família e indicar o número de integrantes – rendimento familiar per capita; devem ser somadas todas as fontes de renda – salário, aposentadoria, pensão, programas sociais, aluguel, remuneração financeira etc.) 1. Renda:

88 Não sabe

99 Não respondeu

10.2. Qual é o número de integrantes da família que moram na mesma casa? 1. Pessoas:

88 Não sabe

99 Não respondeu

11. O quão orgulhoso o (a) Sr(a). se sente em ser brasileiro(a): extremamente, muito, razoavelmente, pouco ou nada? 1. Extremamente orgulhoso

2. Muito orgulhoso

3. Razoavelmente orgulhoso

4. Pouco orgulhoso

5. Nada orgulhoso

88 Não sabe

99 Não respondeu

12. O (a) Sr(a). está servindo ou já serviu às Forças Armadas (prestando serviço militar obrigatório ou atuando como profissional no Exército, Marinha ou Aeronáutica) ou, então, tem um parente próximo ou uma pessoa próxima que está servindo ou já serviu às Forças Armadas? 1. Está servindo ou já serviu

2. Tem um parente próximo ou pessoa próxima que está servindo ou já serviu

3. Ambas as coisas

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 132-156

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4. Nenhuma das anteriores

88 Não sabe

99 Não respondeu

13. Como o (a) Sr(a). avalia o trabalho realizado pelas Forças Armadas do Brasil, ou seja, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica: muito bom, bom, regular, ruim ou muito ruim? 1. Muito bom

2. Bom

3. Regular

4. Ruim

5. Muito ruim

88 Não sabe

99 Não respondeu

14. Como o (a) Sr(a). avalia a quantidade de informações divulgadas nos meios de comunicação – televisão, rádio, jornais, revistas – sobre as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica): muito boa, boa, regular, ruim, muito ruim? 1. Muito boa

2. Boa

3. Regular

4. Ruim

5. Muito ruim

88 Não sabe

99 Não respondeu

15. Como o (a) Sr(a). avalia a seguinte afirmação: “O tratamento dado pelas Forças Armadas e por seus integrantes (os militares) no relacionamento com os cidadãos civis (as pessoas que estão fora das Forças Armadas) é igual para todos, independente de renda, cor da pele, idade, deficiência ou gênero”. 1. Discordo totalmente

2. Discordo

3. Não concordo nem discordo

4. Concordo

5. Concordo totalmente

88 Não sabe

99 Não respondeu

16. Em sua opinião, encaminhar uma reclamação ou denúncia contra as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) ou contra algum de seus integrantes seria: muito fácil, fácil, de dificuldade razoável, difícil ou muito difícil? 1. Muito fácil

2. Fácil

3. De dificuldade razoável

4. Difícil

5. Muito difícil

88 Não sabe

99 Não respondeu

17. O quanto o (a) Sr(a). se considera informado sobre as Forças Armadas do Brasil (Exército, Marinha e Aeronáutica) e suas atividades: totalmente, muito, razoavelmente, pouco ou nada? 1. Totalmente informado

2. Muito informado

3. Razoavelmente informado

4. Pouco informado

5. Nada informado

88 Não sabe

99 Não respondeu

18. Parte da população brasileira acredita que as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) são importantes para o país, enquanto uma outra parte acredita que elas não são importantes. Em relação à importância das Forças Armadas para o Brasil, com qual das seguintes frases o (a) Sr(a). concorda mais? 1. Elas são importantes apenas no caso de uma guerra

2. Elas são importantes tanto no caso de uma guerra como na ausência de guerras (ou seja, na paz)

3. Elas não são importantes em nenhuma situação

88 Não sabe

99 Não respondeu

19. O quanto o (a) Sr(a). confia nas Forças Armadas: totalmente, muito, razoavelmente, pouco ou nada?

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CERATTI, R. K.; MORAES, R. F.; SILVA FILHO, E. B. Confiança nas Forças Armadas...

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1. Confio totalmente

2. Confio muito

3. Confio razoavelmente

4. Confio pouco

5. Não confio nada

88 Não sabe

99 Não respondeu

20. Nos últimos anos, algumas pessoas têm debatido o porquê de o Brasil ter Forças Armadas e, também, quais os tipos de trabalho que elas devem fazer. Na sua opinião, quais devem ser as funções das Forças Armadas? (O entrevistado pode escolher quantos itens desejar.) 1. Defender o país em caso de guerra

2. Combater o terrorismo

3. Combater a criminalidade em conjunto com as polícias

4. Ajudar a população com serviços médicos e sociais e em casos de desastres naturais (exemplos: enchentes,

deslizamentos de terra, incêndios etc.)

5. Construir estradas, ferrovias, portos etc.

6. Participar de missões de paz em outros países (exemplos: Haiti, países da África)

7. Ensinar aos jovens uma profissão

8. Passar para os jovens valores como responsabilidade e disciplina

9. Nenhuma das anteriores

88 Não sabe

99 Não respondeu

21. Felizmente, o Brasil, hoje em dia, vive em paz com os demais países do mundo. Contudo, se houvesse uma guerra da qual o Brasil participasse, as pessoas poderiam contribuir de várias formas, ou mesmo não contribuir. Caso realmente houvesse uma guerra, gostaria de saber se o (a) Sr(a). estaria disposto(a) a contribuir e de qual maneira. 1. Participaria como militar, inclusive em ações de combate

2. Participaria como militar, mas sem participar de ações de combate (exemplos: apoio administrativo, serviços de

saúde, manutenção de equipamentos)

3. Não participaria como militar, mas contribuiria como civil (exemplos: prestando apoio a famílias de militares,

trabalhando em organizações não governamentais de apoio a feridos)

4. Não estaria disposto a contribuir de nenhuma forma

88 Não sabe

99 Não respondeu

22. Cada pessoa tem uma percepção própria daquilo que possa ser uma ameaça para ela, para sua família, para sua cidade e para seu país, ou seja, cada pessoa possui certos medos. Assim sendo, de quais das seguintes ameaças o (a) Sr(a). tem medo? (O entrevistado pode escolher quantos itens desejar.) 1. Guerra com um país vizinho

2. Guerra com uma potência estrangeira (ou seja, um país mais forte que o Brasil)

3. Crime organizado

4. Desastres ambientais e climáticos (exemplos: acidente em usina nuclear, vazamento de petróleo no mar, enchentes,

secas, incêndios, deslizamentos de terra)

5. Terrorismo

6. Epidemias (gripe suína, dengue etc.)

7. Outros

8. Nenhuma das anteriores

88 Não sabe

99 Não respondeu

23. A Amazônia brasileira possui muitos recursos naturais, como os minérios, a água e as próprias florestas. O (a) Sr(a). acredita que o Brasil, nos próximos 20 anos, possa sofrer uma invasão militar estrangeira com o objetivo de controlar os recursos naturais da Amazônia? 1. Acredito totalmente nisso (tenho certeza)

2. Acredito muito nisso

3. Acredito razoavelmente nisso

4. Acredito pouco nisso

5. Não acredito nisso

88 Não sabe

99 Não respondeu

24. Há alguns anos atrás, foi anunciada a descoberta de grandes reservas de petróleo e gás natural a alguns quilômetros do litoral do Brasil, chamadas de reservas do pré-sal. O (a) Sr(a). acredita que o Brasil, nos próximos 20 anos, possa sofrer uma invasão militar estrangeira com o objetivo de controlar essas riquezas? 1. Acredito totalmente nisso (tenho certeza)

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 132-156

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2. Acredito muito nisso

3. Acredito razoavelmente nisso

4. Acredito pouco nisso

5. Não acredito nisso

88 Não sabe

99 Não respondeu

25. Como já foi mencionado, o Brasil, atualmente, vive em paz com os outros países do mundo. Mas e quanto ao futuro? O (a) Sr(a). acha que alguns dos países listados a seguir poderão, nos próximos 20 anos, ser uma ameaça militar para o Brasil? (O entrevistado pode escolher quantos itens desejar.) 1. Argentina

2. Bolívia

3. China

4. Colômbia

5. Estados Unidos

6. Índia

7. Países da Europa

8. Paraguai

9. Rússia

10.Venezuela

11.Outros países

12.Nenhum país representará ameaça para o Brasil no futuro

88 Não sabe

99 Não respondeu

26. Atualmente, existem algumas organizações não governamentais estrangeiras trabalhando na Amazônia brasileira. Algumas pessoas afirmam que a presença delas é importante, pois elas contribuem para a defesa do meio ambiente e para proteger os direitos humanos ou as minorias, como os índios. Outras pessoas, contudo, dizem que estas organizações defendem interesses de outros países e não os do Brasil. Na sua opinião, a influência das organizações não governamentais estrangeiras na Amazônia brasileira é: muito positiva, positiva, nem positiva nem negativa, negativa ou muito negativa? 1. Muito positiva

2. Positiva

3. Nem positiva nem negativa (não influenciam nem de uma forma nem de outra)

4. Negativa

5. Muito negativa

88 Não sabe

99 Não respondeu

27. Em alguns países vizinhos, ocorrem conflitos violentos. São casos desse tipo: os conflitos entre governo e guerrilhas na Colômbia, Paraguai e Peru; os conflitos sociais na Bolívia; e as disputas políticas entre Colômbia, Venezuela e Equador. O (a) Sr(a). acha que esses conflitos podem afetar o Brasil? Sim ou não? 1. Sim

2. Não

88 Não sabe

99 Não respondeu

28. Se for preciso defender o país de uma ameaça estrangeira, as Forças Armadas do Brasil precisam ter certos equipamentos militares, como aviões, navios e tanques de guerra. Em sua opinião, os equipamentos militares que as Forças Armadas possuem atualmente são: muito bons, bons, regulares, ruins ou muito ruins? 1. Muito bons

2. Bons

3. Regulares

4. Ruins

5. Muito ruins

88 Não sabe

99 Não respondeu

29. Na sua opinião, os gastos do governo brasileiro com as Forças Armadas para a aquisição de equipamentos militares devem: aumentar muito, aumentar razoavelmente, permanecer como estão, diminuir razoavelmente ou diminuir muito? 1. Aumentar muito

2. Aumentar razoavelmente

3. Permanecer como estão

4. Diminuir razoavelmente

5. Diminuir muito

88 Não sabe

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CERATTI, R. K.; MORAES, R. F.; SILVA FILHO, E. B. Confiança nas Forças Armadas...

155

99 Não respondeu

30. O governo brasileiro, nos últimos anos, tem buscado ampliar a indústria militar do país, ou seja, as empresas que produzam equipamentos como aviões e navios de guerra, tanques de guerra etc. Para algumas pessoas é importante que o Brasil tenha uma indústria como esta, enquanto para outras isso não tem importância. Como o (a) Sr(a). avalia a importância de haver no Brasil empresas que produzam armamentos? 1. É importante, mas somente se as empresas forem brasileiras

2. É importante, e as empresas podem ser tanto brasileiras como estrangeiras

3. Isto não é importante

88 Não sabe

99 Não respondeu

31. Desde 2004, há uma missão de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) no Haiti, um país do Caribe, e o Brasil é o país que mais tem enviado militares para lá. Na sua opinião, as Forças Armadas do Brasil devem participar de missões de paz como estas? Sim ou não? 1. Sim

2. Não

88 Não sabe

99 Não respondeu

32. O (a) Sr(a). acha que alguns dos países listados a seguir serão, nos próximos 20 anos, importantes aliados do Brasil? Ou seja, serão países amigos/parceiros do Brasil? (O entrevistado pode escolher quantos itens desejar.) 1. Argentina

2. Bolívia

3. China

4. Colômbia

5. Estados Unidos

6. Índia

7. Países da Europa

8. Paraguai

9. Rússia

10.Venezuela

11.Outros países

12.Nenhum país será um importante aliado do Brasil nos próximos 20 anos

88 Não sabe

99 Não respondeu

33. Discute-se no Brasil se as Forças Armadas devem combater a criminalidade, ou se esta é uma função que cabe apenas às polícias. Sobre esse assunto, com qual das seguintes frases o (a) Sr(a). concorda mais? 1. As Forças Armadas devem sempre combater a criminalidade

2. As Forças Armadas devem combater a criminalidade apenas em algumas situações

3. Apenas as polícias devem combater a criminalidade

88 Não sabe

99 Não respondeu

34. Quando os jovens vão decidir que tipo de trabalho querem ter no futuro, pensam em várias opções. Na opinião do (a) Sr(a)., o quanto a carreira militar, atualmente, é atraente para os jovens: extremamente, muito, razoavelmente, pouco ou nada? 1. Extremamente atraente

2. Muito atraente

3. Razoavelmente atraente

4. Pouco atraente

5. Nada atraente

88 Não sabe

99 Não respondeu

35. Atualmente, o serviço militar no Brasil é obrigatório. Algumas pessoas no Brasil discutem a possibilidade de ser criado um serviço civil para aqueles que não quiserem fazer o serviço militar. No serviço civil, os jovens fariam atividades como a prestação de serviços comunitários, o apoio a populações carentes etc. Qual a sua opinião sobre isso? 1. Deve haver somente o serviço militar obrigatório (como é hoje em dia)

2. Deve haver o serviço militar e o serviço civil. E o jovem deve obrigatoriamente escolher um dos dois (ou seja, o jovem

é obrigado a servir, mas escolhe se fará o serviço militar ou o serviço civil)

3. Deve haver o serviço militar e o serviço civil, mas nenhum dos dois deve ser obrigatório (ou seja, seriam apenas

voluntários)

4. Não deve haver nem o serviço militar nem o serviço civil, mesmo que sejam voluntários

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88 Não sabe

99 Não respondeu

36. Em muitos países, inclusive no Brasil, algumas pessoas discutem se as mulheres devem ter o direito de fazer parte das Forças Armadas como militares. Alguns são favoráveis, outros são contrários. O (A) Sr(a). concorda em que as mulheres possam ser militares nas Forças Armadas do Brasil (Exército, Marinha, Aeronáutica)? 1. Concordo, inclusive participando de combates militares

2. Concordo, mas sem participar de combates militares, atuando apenas em outras funções (exemplos: apoio, serviços

relacionados à saúde, manutenção de equipamentos)

3. Não concordo

88 Não sabe

99 Não respondeu

37. O (a) Sr(a). concorda com a presença de militares homossexuais (gays, lésbicas etc.) nas Forças Armadas do Brasil (Exército, Marinha, Aeronáutica)? Sim ou não? 1. Sim

2. Não

88 Não sabe

99 Não respondeu

38. Na sua opinião, o quanto os militares das Forças Armadas do Brasil respeitam a democracia? 1. Totalmente

2. Muito

3. Razoavelmente

4. Pouco

5. Nada (eles não respeitam a democracia)

88 Não sabe

99 Não respondeu

39. Durante o regime militar no Brasil, que durou de 1964 a 1985, foram cometidos crimes por agentes da repressão (como policiais e militares) e por grupos de oposição. Esses crimes foram perdoados por uma lei de 1979, chamada “Lei da Anistia”. O (a) Sr(a). já tinha ouvido falar sobre esse assunto? 1. Nunca tinha ouvido falar

2. Tinha ouvido falar, mas não sei o que é

3. Ouvi falar e sei o que é

88 Não sabe

99 Não respondeu

40. Atualmente, algumas pessoas têm defendido que a “Lei da Anistia” deve ser revista para que possa haver a investigação e a punição de crimes cometidos durante o regime militar no Brasil. Na sua opinião, esses crimes deveriam ser investigados e/ou punidos? 1. Não deve haver nenhuma investigação

2. Sim, deve haver investigação, mas não deve haver punição para ninguém

3. Sim, deve haver investigação e punição apenas para os agentes da repressão (como policiais e militares, por

exemplo)

4. Sim, deve haver investigação e punição apenas para aqueles que participaram de grupos armados de oposição

(guerrilheiros, por exemplo)

5. Sim, deve haver investigação e punição para todos os envolvidos

77 NSA (Não Se Aplica)

88 Não sabe

99 Não respondeu

Rubem Kaipper Ceratti - [email protected]

Rodrigo Fracalossi de Moraes - [email protected]

Edison Benedito da Silva Filho - [email protected]

Submetido à publicação em novembro de 2013.

Versão final aprovada em julho de 2014.

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Sociedade civil, Estado e autonomia:

argumentos, contra-argumentos e avanços no debate

Adrian Gurza Lavalle Departamento de Ciência Política

Universidade de São Paulo

Centro de Estudos da Metrópole e Núcleo Democracia e Ação Coletiva

Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

José Szwako Núcleo Democracia e Ação Coletiva

Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Programa de Pós-Graduação em Ciência Política

Universidade Federal do Paraná

Resumo: O cenário brasileiro das relações entre Estado e sociedade civil tem se reconfigurado ao longo das últimas três décadas,

suscitando esforços da literatura especializada para diagnosticar tais mudanças mediante deslocamentos analíticos e revisões de

pressupostos. Em diálogo com um diagnóstico recente de conjunto que recoloca algumas teses importantes na literatura e

segundo o qual essa reconfiguração é uma passagem de um período histórico de autonomia plena dos atores sociais para um

momento de interdependência com o Estado, o artigo desenvolve quatro contra-argumentos amparados em deslocamentos

teórico-analíticos e metodológicos que, junto à extensa pesquisa empírica, marcam avanços no debate do país sobre as relações

socioestatais. Os contra-argumentos partem do pressuposto da mútua constituição, ou codeterminação, entre Estado e

sociedade civil e revisam criticamente os argumentos sobre a emergência tardia da sociedade civil no Brasil, seu nascimento sob

o signo de uma não relação com o Estado e os partidos políticos, bem como sobre o advento da interdependência com o Estado

no período pós-constituinte. No seu todo, o conjunto dos contra-argumentos mostra os ganhos analíticos de uma perspectiva

centrada nas interações socioestatais e de uma compreensão relacional de autonomia tanto no plano da prática dos atores

quanto no plano da teoria.

Palavras-chave: interações socioestatais; Estado; sociedade civil; movimentos sociais; autonomia

Abstract: The relationship between civil society and state has dramatically changed in Brazil along the last three decades. Civil

society, social movements and participatory democracy literature have engaged in revising its underpinning assumptions in order

to build a comprehensive diagnosis of such changes. This article presents a critical appraisal of the trends and theoretical

innovations on the state-civil society contemporary Brazilian debate. It specifically examines a recent comprehensive diagnosis

that updates some important conventional ideas about the Brazilian civil society. Such diagnosis describes and grasps the

meaning of such changes as a historical shift between two moments: from an autonomous to an interdependent civil society vis-à-

vis the state. We challenge such ideas from the standpoint of a relational and historical approach of state-civil society relation as

mutually constitutive and drawing on an extensive literature review of both recent empirical studies on Brazilian civil society and

sound grounded theory building diagnosis. We show that the ideas of the late birth of Brazilian civil society, the non relation

between civil society, and political parties and the state during dictatorship, as well as the interdependence between them as a

recent phenomena are conceptually and empirically flawed. Overall, we show the analytical benefits of an interactive and

relational approach of state civil society interactions and autonomy.

Keywords: social and state interactions; State; civil society; social movements; autonomy

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Introdução1

O cenário brasileiro das relações entre Estado e sociedade civil tem se reconfigurado ao longo

das últimas três décadas, suscitando esforços da literatura para diagnosticar tais mudanças. Em

paralelo e junto à redemocratização política, uma quantidade cada vez maior de atores societais passou

a travar diferentes modalidades de interação com autoridades legislativas, executivas e judiciárias, de

modo a ampliar as chances de verem institucionalmente incorporadas suas demandas. São inúmeros os

exemplos que, nos três níveis da administração pública, ilustram a institucionalização em maior ou

menor medida dessas demandas, da proliferação de instâncias participativas à configuração de políticas

setoriais em áreas como saúde (SUS) ou habitação (Estatuto da Cidade, Sistema Nacional de Habitação

de Interesse Social), da formação de subcampos específicos de políticas (campo da saúde da população

negra ou dos direitos da criança e do adolescente) às inúmeras disposições que tornam obrigatória a

validação social de investimentos de grande porte mediante audiências e outros dispositivos de

incorporação da perspectiva dos afetados. Por sua vez, a literatura ocupada no percurso dos anos 1980,

1990 e 2000 com movimentos sociais, sociedade civil e espaços participativos está às voltas com o

equacionamento de diagnósticos de conjunto sobre tais mudanças e suas implicações, e também com

revisões de seus pressupostos teóricos de modo a incorporar sistematicamente o Estado e os partidos a

seus quadros analíticos.

Deslocamentos e revisões de pressupostos são claramente perceptíveis na literatura

especializada. Tais revisões fazem avançar o debate, revisando ou abrindo mão de conceitos e de

posturas interpretativas, cujos excessos normativos ou de outra ordem mais limitam do que expandem o

alcance das análises. Exemplo desse esforço pode ser visto na tentativa de “estudar o ativismo através

da fronteira entre Estado e sociedade” (ABERS; VON BULOW, 2011). Contra interpretações que enfatizaram

a oposição entre atores estatais e não estatais, as autoras argumentam que a “unidade de análise não

deve necessariamente excluir atores que estão posicionados dentro da arena estatal” (ABERS; VON BULOW,

2011, p. 54). A própria ideia do Estado como um aparato burocrático munido de autoridade,

conhecimento especializado e capacidade de ação, quando interpelado pelas instituições participativas

por ele institucionalizadas, tem sido funda e criteriosamente revisada (ABERS; KECK, 2013). Nesse mesmo

sentido, outras análises sugerem uma expansão analítica que engloba e ultrapassa a “arena estatal”,

enfocando as formas institucionalizadas de participação não a partir da sociedade civil, mas do sistema

político e em relação direta com atores partidários – ambos largamente eclipsados no debate (ROMÃO,

2010). Outro flanco dessa renovação nos estudos sobre a sociedade civil tem explorado, em revisão de

certos pressupostos deliberativos e/ou participacionistas, as funções de representação desempenhadas

1 Gurza Lavalle agradece o apoio institucional, durante a redação deste artigo, do Institute for European Studies e do Centre for

the Study of Democratic Institutions, ambos da Universidade de British Columbia, bem como o auxílio 2012/18439-6 da

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Também agradece o financiamento do Centro de Estudos da

Metrópole (Cebrap, USP), processo nº 2013/07616-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). As

opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas são de responsabilidade dos autores e não necessariamente

refletem a visão da Fapesp.

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por atores sociais nas hoje chamadas instituições participativas (LÜCHMANN, 2011; GURZA LAVALLE;

HOUTZAGER; CASTELLO, 2006a; 2006b). Nessa última seara, não têm sido poucos os esforços, acadêmicos

e oficiais, empreendidos para desenvolver instrumentos capazes de mensurar de modo fidedigno os

efeitos das instituições participativas, seja nas políticas, seja na institucionalidade estatal mais

amplamente (e.g., Pires, 2011). As referências poderiam se multiplicar, mas não é o objetivo aqui

abarcar os investimentos feitos na renovação das análises sobre movimentos, sociedade civil e

participação; fazer jus à diversidade dessas análises e seu valor de inovação analítica demandaria uma

análise exclusiva.

O que importa por ora, com esses exemplos, é atentar para os esforços de revisão conceitual a

partir de diferentes enfoques e variadas instâncias empíricas – não necessariamente restritos à

participação institucionalizada –, os quais têm enriquecido o debate e o feito avançar. Metáforas como

“fronteira” e “franja”, termos como “ativismo do Estado” ou “mobilização do Estado”, ou conceitos como

“projeto”, “domínio de agência”, “autoridade prática”, ou outros incorporados à argumentação mais

adiante, não deixam dúvida: a entrada do sistema político e as interações entre atores estatais e não

estatais têm pesado na renovação das equações analíticas2. Atores, interações, instituições e efeitos

comparecem como componentes dessas equações visando a formular diagnósticos capazes de

apreender o cenário de pluralização institucional e complexificação da democracia no país.

Em artigo recente e pioneiro, Leonardo Avritzer (2012) elaborou diagnóstico de conjunto sobre

o período, reatualizando em nova interpretação algumas das teses sobre a autonomia dos movimentos

sociais e da sociedade civil que caracterizaram a literatura nos últimos 20 anos3. O diagnóstico é

desconcertante e singelo. Nele, as transformações ocorridas nas relações entre sociedade civil e Estado

nos últimos 40 anos da história do país são equacionadas como uma evolução em três momentos. No

Brasil, como, de resto, na América Latina, dadas as peculiaridades da modernização na região, a

sociedade civil teria emergido de forma assaz tardia. No país, seria possível datar essa emergência nos

anos 1970, em um primeiro momento de “autonomia plena”4 (p. 392) animado por um “movimento pela

autonomia social” (p. 386) em relação ao Estado. A Constituinte teria encerrado esse período, ensejando

a “criação da interdependência política” (p. 390) entre atores sociais e Estado. A inauguração da

interdependência teria cedido passo, com o aprofundamento da democratização do país, a um momento

em que a sociedade civil seria “mais ou menos autônoma vis-à-vis o Estado”. Assim, o momento atual

poderia ser bem compreendido como marcado por uma “lógica mista de autonomia e dependência” que

varia conforme a dois grupos maciços de associações que constituiriam a composição da sociedade civil

brasileira: associações religiosas e aquelas vinculadas ao Estado para a implementação de políticas

públicas. Subjaz ao diagnóstico histórico, cumpre destacar, o empenho analítico de reabilitar o conceito

2 Para as metáforas “fronteira” e ”franja”, ver Abers e Von Bulow (2011) e Romão (2010); para o termo “mobilização do Estado”,

ver Abers e Keck (2009); para os conceitos “projeto”, “domínio de agência”, “autoridade prática”, ver respectivamente Dagnino,

Olvera e Panfichi (2006), Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2012), Abers e Keck (2013). O termo “ativismo de Estado” aparece

em Hochstetler e Keck (2007), mas por outras vias seu uso vem ganhando difusão, como mostrado por ementas de mesas e

grupos de trabalho entre 2011 e 2013 na Anpocs. 3 Quando da revisão da versão original deste artigo para incorporar as observações pertinentes dos pareceristas, entramos em

contato com interessante exame crítico, suscitado pelo mesmo artigo de L. Avritzer, acerca do modelo de sociedade civil por ele

abraçado (ver Burgos, 2014). 4 A partir daqui aspas duplas indicarão citações e termos com carga analítica tal como utilizados nos textos de referência. Por

sua vez, aspas simples indicarão o uso de termos cujo conteúdo é infirmado ou suspenso, bem como vocábulos nativos.

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de autonomia da sociedade civil – sem alterações ou tal como utilizado pelo próprio autor e por parte

importante da literatura ao longo dos anos 1980, 1990 e começo dos 2000 –, revisitando en passant as

críticas a ele formuladas.

Nas páginas deste texto nos beneficiamos do esforço de síntese e atualização de tal artigo e

desenvolvemos uma crítica iluminando teses e limitações a partir dos avanços observados no debate. A

reflexão de L. Avritzer é, sem dúvida, contribuição que estimula o debate a respeito de um conjunto de

transformações perscrutadas em registros diversos na literatura e para as quais ainda carecemos de

visões de conjunto sedimentadas conceitual e empiricamente. Nesse aspecto, trata-se de um esforço

bem-sucedido, em linha de continuidade com o papel de outros trabalhos do autor na ampliação das

fronteiras do campo de estudos sobre a sociedade civil e a participação (AVRITZER, 1997; 2009; AVRITZER;

NAVARRO, 2003). Porém, o diagnóstico em questão – e as teses da literatura que reatualiza – nos parece

um retrocesso em relação ao avanço da literatura do campo nos últimos 20 anos, à progressiva

sofisticação metodológica que acompanhou esse desenvolvimento e à riqueza da pesquisa empírica

produzida pela comunidade acadêmica em campos afins. A crítica opera em vários planos aproveitando

a sequência e a lógica argumentativa que sustenta o diagnóstico de Avritzer. Visamos a mostrar,

primeiro, que uma visão emergentista da sociedade civil que irrompe no último quartel do século XX e

evolui em etapas da autonomia plena à semidependência é equivocada empírica e conceitualmente;

segundo, que a plausibilidade de diagnósticos autonomistas está assentada em operações epistêmica e

metodologicamente insustentáveis, as quais borram as fronteiras entre os usos teóricos e práticos das

categorias, bem como entre evidências e inferências.

Com intuito de organizar a exposição da crítica e, sobretudo, de favorecer o aprofundamento do

debate em torno de teses assentes na literatura, as páginas que seguem exploram contra-argumentos. A

cada contra-argumento corresponde um argumento. Conjuntos articulados de ideias explícitas,

evidências mobilizadas e pressupostos implícitos configuram os argumentos, e eles são peças relevantes

para os propósitos conceituais e de diagnóstico de conjunto do artigo de Avritzer, bem como reformulam

e atualizam, à luz da história recente do país, teses importantes nas literaturas nacionais de movimentos

sociais e sociedade civil. O texto está ordenado em quatro argumentos e contra-argumentos. Quanto aos

primeiros, sua enunciação em uma única frase desempenha uma finalidade heurística, a saber, trazer à

tona imediatamente os aspectos que, a nosso ver, merecem exame cuidadoso pela sua centralidade no

diagnóstico oferecido pelo autor e sua relevância na literatura. A exposição e a reconstrução dos

argumentos, por sua vez, procedem de modo inverso, isto é, lançam mão do texto original, para mostrar

literalmente os termos em que operam. Assim, a enunciação sintética pode ser ponderada pelo leitor

mediante a reconstrução dos argumentos. Quanto aos contra-argumentos, seu desenvolvimento não é

paralelo ou estanque, eles mantêm antes interlocução progressiva e transversal entre as seções, cuja

síntese está na conclusão.

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Modernidade e emergência da sociedade civil tardia no Brasil

O conceito de sociedade civil não seria aplicável ao contexto brasileiro, “pelo menos, até o início

do século XX [devido] a uma situação de pouca diferenciação entre privado e público” (AVRITZER, 2012, p.

384). No século XIX, o conceito seria apropriado somente para realidades de algumas latitudes não

meridionais, nos “países do Atlântico Norte”, onde dois processos teriam configurado a “modernidade

ocidental”, quais sejam, “a diferenciação entre as esferas econômica e familiar com a abolição da

escravidão, bem como a diferenciação entre Estado e sociedade causada pela especialização sistêmica

do Estado” (AVRITZER, 2012, p. 384). Para o caso brasileiro, falar propriamente em sociedade civil só

faria sentido no contexto do regime militar dos anos 1960 e 1970, tomando-a como uma noção

adequada para “diferenciar os novos atores sociais emergentes tanto do mercado como do Estado

autoritário” (p. 385). Vários fatores e atores estiveram implicados na “emergência” setentista da

sociedade civil brasileira: i) a intensa urbanização (p. 386); ii) o viés tecnocrático das políticas daquele

regime (p. 386); iii) a reação das classes médias e populares àquele viés (p. 386-387); e iv) o incremento

das associações “entre 1974 e 1985” (p. 387). Em conjunto e sob o signo distintivo da autonomia, esses

fatores desaguaram numa realidade que, apenas desde então, passaria a merecer o rótulo sociedade

civil, porquanto dotada de ‘densidade associativa’, ‘propensão crescente para a associação’,

reivindicações de benefícios materiais para a ‘comunidade’, bem como ‘reivindicações pós-materiais’ (p.

388). Caracterizações semelhantes sobre a índole inédita da irrupção da sociedade civil já tinham sido

elaboradas alhures, no final dos anos 1990, como o argumento do “novo associativismo”5; mas

compreensões que enfatizavam a emergência da sociedade civil e de seus atores, com predicados

correlatos a sua atuação ‘autônoma’, plural e densa, ante o mercado e o Estado, foram compartilhadas

por vários autores no debate (cf. Scherer-Warren, 1999; Costa, 1994; 1997) e criticadas por tantos

outros (cf. Cardoso, 1983; Boschi, 1987; Diniz e Boschi, 1989).

Esse primeiro argumento tanto sofre de déficits historiográficos e analíticos como se torna

possível graças a eles. O diagnóstico de a sociedade civil ter deitado raízes só no último quartel do

século passado depende de uma dupla exigência analítica, qual seja, a irrupção da diferenciação entre

sociedade e Estado nesse momento e a suposta falta de diferenciação entre ambos no Brasil do século

XIX. Assumida como certa, ela autoriza uma postura, por assim dizer, emergentista: “descrevo o

surgimento da sociedade civil no Brasil durante os anos setenta” (AVRITZER, 2012, p. 386). Mais que um

objetivo da análise, trata-se de um parti pris: a sociedade civil, junto da modernidade a ela associada,

teria nascido entre nós naqueles anos – resta apenas descrevê-la. Como notou P. Bourdieu (1998), toda

descrição tende a operar de modo prescritivo, seja porque seu realismo contribui para a

autoconstatação, e não, ao contrário, para uma verificação hipotética – nesse caso, de uma gênese civil e

setentista – a ser matizada ou mesmo refutada; seja porque as propriedades invocadas pelo discurso

teórico – nesse caso, densidade e pluralismo – coadunam com a imagem e a autoimagem (autonomistas)

5 Veja-se: “[o] novo associativismo constitui um fenômeno formado por três componentes [...]: [densidade, isto é,] um aumento

expressivo no número e no ritmo de constituição de associações civis [...]. Uma ruptura com um padrão homogeneizante de ação

coletiva [reivindicações plurais, ou seja, materiais e pós-materiais]. [...] Parece bastante claro que a maior parte dos atores já não

busca a sua incorporação ao Estado [aqui um duplo signo, autonomista e autolimitante]” (AVRITZER, 1997, p. 97).

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do objeto descrito. Embora se valha do efeito de teoria, fazendo com que a descrição pressuposta

corresponda a divisões reais, esse argumento é histórica e analiticamente equivocado, e não leva em

conta os avanços da produção de conhecimento conquistados no debate historiográfico recente sobre a

vida associativa nos e através dos processos sociopolíticos do Brasil do século XIX. Vejamos alguns

desses avanços e processos à luz das propriedades reputadas como distintivas dos ‘atores emergentes’

dos anos 1970.

A existência de associações de auxílio ou socorro mútuo, bem como a quantidade expressiva

dessas mutuais ou ‘sociedades’ na passagem do XIX para o XX, não é algo novo no debate

historiográfico6. Novos, porém, são os dados e desdobramentos recentes do debate sobre mutualismo:

quase 80% das associações mutuais fundadas no período entre 1815 e 1904 na capital do Império e da

República tiveram sua criação a partir de 1875 (VISCARDI, 2009). Em sintonia com esse dado e a partir

de outras fontes, “encontramos 310 registros de associações criadas na cidade do Rio de Janeiro entre

1860 e 1889” (JESUS, 2007, p. 147). Embora variem muito, sendo ‘sociedades’ religiosas, científicas,

literárias, dentre outras, o tipo de consociação quantitativamente mais significativo nesses números são

as mutuais beneficentes. Estas, por sua vez, perfazem um variado leque: mutuais gerais, de ofício, de

classe, de libertos, de imigrantes/ou comemorativas, filantrópicas, regionais e, por fim, de empresários e

comerciantes.

Esses dados dizem respeito a um tecido associativo não desprezível, já no fim do XIX,

interposto entre o poder imperial e o domínio da Casa Grande. Essas associações, contudo, podem não

satisfazer uma concepção mais exigente de sociedade civil, pois

[raras eram] as mutuais [que] se construíram em bases igualitárias. Muito embora

definissem sua identidade a partir da isonomia e da ajuda mútua, eram estruturas

hierarquizadas e excludentes. Para integrar uma mutual era preciso [...] possuir renda

regular (VISCARDI, 2009, p. 299).

Não foram, contudo, os limites históricos excludentes, notadamente de ‘raça’ e gênero, mas

igualmente de classe, impostos pela dinâmica associativa, que impediram que se falasse de vida pública

e civil em latitudes do hemisfério norte e que se teorizasse a seu respeito (HABERMAS, 1994). Talvez seja

outra a limitação que nos impeça de falar de sociedade civil no fim do XIX: as mutuais teriam restrito

alcance geográfico, elas mal passariam da capital. Ledo engano. Em 1917, o Rio de Janeiro concentrava

pouco menos de 25% de todas as entidades desigualmente distribuídas pelo país e censadas pelo

governo de então (SILVA JR., 2004, p. 51-ss.). Diante dessa vida associativa, não surpreende que Silva Jr.

afirme que “o otimismo [de Avritzer] com a sociedade civil do Brasil contemporâneo fundamenta-se em

apreciações ainda deficientes sobre o que ela já foi” (2004, p. 67).

O diagnóstico do “novo associativismo” não desconhece empiricamente o fenômeno das

mutuais:

6 No Rio de Janeiro da Primeira República, as associações de auxílio mútuo chegaram a mais de 282 mil associados, ou seja,

aproximadamente 50% da população de mais de 21 anos (CARVALHO, 1996).

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GURZA LAVALLE, A.; SZWAKO, J. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos...

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[elas] representaram um padrão de ação coletiva no qual o desenvolvimento da

solidariedade social implicava imediatamente o desenvolvimento de organizações com

tendência à homogeneização dos interesses representados [...] diluindo [a solidariedade]

em organizações representativas de um interesse genérico de classe e uma identidade

genérica de povo (AVRITZER, 1997, p. 163).

Porém, subsume analiticamente as mutuais à dimensão de classe, a uma imaginada

“homogeneização dos interesses” corporativa e não “verdadeiramente plural” (AVRITZER, 1997, p. 160). E

mais: a despeito daquele variado leque das mutuais e de seu alcance geográfico, tomam-se as mutuais

como sinônimo da falta de pluralidade – uma das bases da suposta e latino-americana “debilidade

original” (1997, p. 153-ss.).

Um dos mais importantes avanços conquistados pelo debate sobre mutualismo foi justamente

desligá-lo do diapasão dos estudos sobre classe trabalhadora e história do trabalho. Contra

anacronismos e a favor da variedade própria àquelas formas de consociação, os estudos de ponta sobre

as mutuais têm insistido que elas não devem ser tratadas como a pré-história dos sindicatos (SILVA JR.,

2004, p. 22-ss.), reconhecendo

a necessidade de se partir de referências teórico-metodológicas e históricas próprias,

específicas para o estudo do mutualismo em um plano mais abrangente que meramente a

história do sindicalismo, por exemplo. A questão da cidadania, dos movimentos sociais, na

cidade e no campo, e as solidariedades horizontais se afiguram como temáticas

correlacionadas de importância evidente (JESUS, 2007, p. 153).

Além das mutuais, outras dinâmicas associativas e de protesto permitem falar de iniciativas

civis no e do século XIX. De um lado, o catolicismo tradicional, organizado àquele século em irmandades,

confrarias e Ordens Terceiras, tinha fins culturais, filantrópicos e devocionais, dentre outros. Não

totalmente dependente da hierarquia eclesiástica, parte importante das associações religiosas ficava sob

direção de leigos; ao passo que as ‘folias’ e os ‘reisados’, menos formais que as associações, eram

responsáveis pela organização de algumas festas (WERNET, 1987; FAUSTINO, 1996). Embora também se

encontrem presentes na leitura do “novo associativismo”, as associações religiosas, em especial as

irmandades, são interpretadas, não pela sua historicidade, mas, uma vez mais, por sua homogeneidade

e por aquilo que lhes faltava, uma anacrônica “autonomia”: “[as] irmandade[s] tinham como limite para

a sua autonomia as limitações de uma sociedade homogênea do ponto de vista religioso” (AVRITZER,

1997, p. 156).

O estatuto analítico emprestado a esse e a outros casos é fundamental na definição daquilo que

conta ou não como sociedade civil e, em alguma medida, como modernidade. Os casos de ‘revolta’ dos

movimentos religiosos sertanejos do começo do século passado, como Juazeiro e Canudos, por exemplo,

são apenas eclosões ‘irracionais’, ‘milenaristas’ e ‘pré-modernas’, tal como foram rotulados por boa

parte das interpretações consagradas?7 É analiticamente correto e convincente reduzi-los a fenômenos

7 Cf. Steil e Herrera, 2010, p. 366-ss.

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ideológicos ou epifenômenos de classe?8 As respostas a esses questionamentos importam, pois elas

estão perpassadas por eixos como urbano/rural e tradição/modernidade, que, com maior ou menor grau

de explicitação, também definem a origem da nossa vida civil e sua possível datação histórica. Seja como

for, a eclosão de protestos no Brasil não esperou o século XX para tomar fôlego: a Revolta do Vintém, de

1880, encarnou uma das faces da crise política imperial, antecipando a Revolta da Vacina (1904) e

compartilhando com ela uma lógica de expansão e confronto, com implicações fatais. Em ambos os

casos, veem-se “limites fortemente marcados, para além dos quais não era permitido ao Estado, seja

monárquico ou republicano, avançar sem que provocasse movimentos coletivos de protesto” (JESUS,

2006, p. 84). Esses casos levantam outro eixo caro a qualquer definição de sociedade civil, a saber,

legítimo/ilegítimo. As reações populares tanto à taxação como à vacinação ilustram a negociação, talvez

não densa e “emergente”, mas certamente ativa e insurgente dos termos do contrato socioestatal, no

qual pesou o “entendimento implícito sobre o que constituía legítima interferência do governo na vida

das pessoas” (JESUS, 2006, p. 83; grifo no original).

Ainda de um ponto de vista mais exigente, seria possível encontrar formas de associativismo

orientadas para incidir nas instituições políticas e na formação de opinião, como mostrado

emblematicamente pelo movimento abolicionista. Embora credite ao abolicionismo o lugar de primeiro

representante duma “esfera societária” no Brasil, a análise do “novo associativismo” acaba por

“demonstra[r] o baixíssimo impacto institucional do movimento abolicionista” (AVRITZER, 1997, p. 158).

Em oposição a essa interpretação e àquilo que chama “tese do insolidarismo”, quer dizer, contra a

suposta falta de densidade associativa que nos afligiria, Angela Alonso (2011) argumenta

persuasivamente que a luta pelo fim da escravidão se sustentou num “associativismo avant la lettre”9. A

evolução das associações abolicionistas lhe permite dizê-lo: após o discreto surgimento das primeiras

associações contra o tráfico de escravos em meados dos anos 1840, o movimento abolicionista registrou

seu primeiro boom associativo entre 1868 e 1871, entre a irrupção da crise política imperial e a

promulgação da Lei do Ventre Livre. No imediato pós-Ventre Livre, os grupos pró-abolição param de

crescer, voltando, porém, a se multiplicar exponencialmente a partir de 1878, com a subida dos Liberais

ao poder.

Longe de responder a uma determinação partidária, jurídica ou político-institucional, essa

variação observada na composição do associativismo abolicionista pode e, a nosso ver, deve ser

entendida em função dos seus modos e chances de interação com atores do sistema político – assunto

que ocupa o contra-argumento a seguir e por ora apenas mencionado. Um complexo arco de alianças

partidárias não restrito a Liberais: brokers cruzando espaços de classe e alinhando ativismo parlamentar

8 Cf. Giumbelli, 1997. Com efeito, ao escrutinar as análises clássicas que tomam como objeto aqueles movimentos religiosos

sertanejos, a reflexão de Giumbelli vai além da crítica à redução classista e/ou ideológica e questiona o desligamento e a

oposição indevidos entre política e religião, operados por tais análises ou nelas implícitos. Em plano analítico, o corolário dessa

crítica é o abandono de noções como messianismo e banditismo, usadas à exaustão e assentadas em disposições cognitivas que

fazem da religião o outro da política, apenas teórica e artificialmente externo a ela. 9 Aqui nos concentramos no movimento abolicionista como instância contra-argumentativa a respeito do caráter mutuamente

constitutivo entre Estado e sociedade civil. No entanto, e no detalhe, a análise de Alonso permite também uma crítica à ideia

criacionista do “pluralismo” e à falta dele imputada ao passado. Enquanto associativismo avant la lettre, o abolicionismo

incorporou mulheres e organizações de mulheres entre suas associações – fato conhecido por L. Avritzer, que, contudo,

desconhece a pluralidade do movimento, que tinha alcance nacional e perfil multiocupacional e policlassista (ver Alonso, 2011).

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e societário; demonstrações públicas de merecimento e conquista da liberdade; crises internas à elite

política percebidas e aproveitadas pela militância; um longo ciclo de protestos entre 1883 e 1884; e,

mesmo, um projeto de lei do Ventre Livre avant garde (ALONSO, 2011, p. 190-ss.). Tudo isso é expressão

de como as interconexões e interações socioestatais não esperaram o século XX e, menos ainda, um

regime democrático para tomar corpo. E mais: a nuançada observação das relações entre dinâmica

institucional e ativismo abolicionista permite ver como dinâmicas oficiais de nomeação de lideranças

civis, já no XIX, transformam, a um só tempo, a composição da institucionalidade e as respostas civis a

ela – claro exemplo de uma análise passível de ser chamada de interacionista, pois privilegia não as

instituições e sequer as associações isoladamente, mas as relações entre umas e outras10.

Por fim, cabe observar que são cognitivamente empobrecedores os efeitos de uma concepção

apenas sistêmica de modernidade, concepção subjacente ao diagnóstico da emergência tardia da

sociedade civil. Isso é mais evidente no argumento do “novo associativismo”, segundo o qual teria cabido

às lojas maçônicas, tanto na América espanhola como na portuguesa, o primeiro impulso de um “padrão

moderno de associativismo”, “mas a ação dos seus participantes não se pauta por um padrão laico e

pluralista” (AVRITZER, 1997, p. 156). Um porém a mais na conta da suposta “debilidade”: a maçonaria,

no caso brasileiro, além de ser contígua ao imperador, não abriu mão de filiação religiosa (p. 156). Aos

maçons de outrora, teria faltado laicidade e, por extensão, ação e autocompreensão modernas.

Do ponto de vista da experiência dos sujeitos, porém, a vida moderna pode ser também

definida por seu caráter dissolvente; ela dissolve certezas, divisões e hierarquias antes vividas como algo

sólido, imutável e inquestionável. Assim, uma vez observado com olhos menos anacrônicos, e visto a

partir dos discursos e grupos religiosos ou de outra índole em meio aos quais estava imersa a

maçonaria, o Brasil da segunda metade do XIX mostra uma pugna, não menos moderna pela própria

‘modernidade’, contra ela e a seu favor. Mesmo sem a vida de corte e longe de se parecer com as

vibrantes Salvador e Recife, a São Paulo do Segundo Império também teve de encarar o “dilema da

modernidade” (FAUSTINO, 1991). Dilema não, dilemas, no plural, dado que eram muitas as polêmicas,

sobre a liberdade de ensino, a emancipação feminina e a escolha entre monarquia ou república, para não

falar nos espinhosos temas do padroado e da escravidão, que se impunham aos vários grupos – todos

(inclusive maçons, anticlericais e até ateus11) autodeclarados ‘católicos’, mas em nada homogêneos. Na

nuançada miríade de opiniões e correntes religiosas, mais próximas, mais distantes ou mesmo

desligadas da hierarquia eclesiástica, digladiavam católicos ‘iluministas’ e ‘ultramontanos’. Saudoso do

“bom tempo da Idade Média” (FAUSTINO, 1991, p. 35), o ultramontanismo se opunha à maçonaria e ao

‘demônio’ que, a seu ver, “coordenaram um processo gradual de enfraquecimento e destruição de todos

os valores cristãos da sociedade” (p. 36). Tempo de ‘destruição’ das certezas herdadas, de

questionamentos e embates erigidos, por exemplo, pela defesa maçônica do casamento civil ou pelas

representações da corrente iluminista em favor da liberdade de culto e do ensino laico... No centro

10 Note-se, porém, que os discursos abolicionistas não ficaram desconectados das fazendas e mesmo das senzalas. Sobre o

caráter popular e rural do abolicionismo, ver Machado (2010). 11 Veja-se: “Enquanto o ‘país legal’ [...] se declarava católico, o ‘país real’ movia-se inteiramente à margem da fé romana.

(BARROS, 2004, p. 373). [...] Era católico o maçom, católico se considerava até o anticlerical (p. 375). [...]. Pergunte-se aos ateus

da representação nacional o que são – escrevia em 1874, no auge da questão religiosa, Saldanha Marinho – e eles responderão

submissos: católicos, apostólicos, romanos” (p. 376).

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desses embates estão três bases distintivas da vida moderna: o peso da incerteza, a oposição

tradicional/moderno, bem como a negação seja do ‘atraso’, encarnada nos discursos iluministas e

maçônicos, ou das ‘modernices’, como no caso da reação ultramontanista. Apreendido então em seus

matizes e cruzamentos culturais, doutrinários e ideológicos, o XIX desencoraja leituras de uma

“sociedade homogênea do ponto de vista religioso” (cf. Avritzer, 1997, p. 156) e aponta para debates e

embates, para polêmicas, opiniões e ideias (não restritas à religião) em pleno vapor.

A depender da diferenciação entre Estado e sociedade como marca distintiva da sociedade civil,

todos esses exemplos dão notícia de um século XIX civilmente muito mais organizado e agitado do que

aquele comumente imaginado. Agitação e organização obliteradas pelo efeito de teoria que ilumina não a

especificidade, aquilo que existe, opera e precisa ser compreendido, mas aquilo que não há: a falta – de

diferenciação, pluralidade, autonomia, densidade associativa ou laicidade – reveladora daquilo que não

fomos12. Tal diferenciação, no entanto, não deve ser tomada como expressão analítica de uma

separação, de uma dicotomia. Ao contrário, tal como desenvolvemos logo a seguir, Estado e sociedade

civil se constituem mutuamente; o que importa, segundo as lentes analíticas da mútua constituição, é

explicar o conjunto de dinâmicas, padrões, encaixes e lógicas que configuram um modo recíproco de

constituição socioestatal tendencialmente estável, porém historicamente mutável. No que se segue, o

contra-argumento permitirá reconstruir algumas das fontes teóricas de inspiração que informam uma

abordagem centrada nas relações e continuidades, e não na separação, entre Estado e sociedade civil,

de modo a enfatizar a codeterminação entre eles.

A autonomia e o advento da interdependência entre sociedade civil e Estado

Os reclamos de ‘autonomia’ em relação ao Estado, aliados ao surgimento ‘inédito’ de atores

sociais modernos, teriam sido a marca distintiva dos anos 1970 e 1980 ou, com maior precisão –

conforme a periodização de L. Avritzer da primeira etapa –, de 1977 a 1985 (AVRITZER, 2012, p. 390).

Atores populares mobilizados pela demanda de serviços públicos, associações profissionais de classes

médias críticas perante políticas setoriais autoritárias e/ou ineficientes e setores liberais oriundos das

mesmas classes confluíram na configuração da “emergência da sociedade civil” sob o signo comum da

“autonomia” (p. 386-ss.). Com efeito, “a principal característica da sociedade civil durante esse primeiro

período foi a reivindicação de autonomia em relação ao Estado” (p. 389)13. O sentido do “movimento

pela autonomia social” seria profundamente radical, como atestado por aqueles que L. Avritzer identifica

como seus dois significados principais, a saber, autonomia organizacional em relação ao Estado e a

defesa de “formas de administração de políticas sem a participação do Estado [...] ou de que a

sociedade civil podia lidar com políticas públicas de forma independente do Estado” (p. 389-390). A

caracterização daquele momento sob o signo da ‘autonomia’ é ponto comum nas literaturas dos anos

12 A tarefa de criticar os efeitos de categorias negativas e ou diagnósticos em negativo, centrados na denúncia da falta, já foi

realizada alhures, no plano ideacional ou do registro do pensamento político-social no Brasil (cf. Gurza Lavalle, 2004). 13 O autor menciona em uma frase que os reclamos de ‘autonomia’ também eram em relação a partidos políticos, mas essa

única menção não tem desdobramentos na caracterização da “autonomia”, descrita apenas em relação ao Estado. Para uma

análise cuidadosa do papel dos partidos políticos nos escritos do Avritzer, ver Romão (2011).

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1980 e 1990, debruçada sobre o papel dos atores sociais na redemocratização brasileira e,

especificamente, dos movimentos sociais (cf. Chaui, 1988; Sader, 1988; Paoli, 1995) e da sociedade civil

(cf. Gohn, 1997); o corolário dessa caracterização enfática da ‘autonomia’ no diagnóstico de conjunto

aqui examinado é, previsivelmente, o advento da interdependência política.

Espanta a possibilidade de pensar autonomia como ausência de relação entre atores sociais e

Estado. No plano da teoria, as interações e a mútua constituição entre interesses sociais organizados e

Estado definem o âmago da construção da ordem política em si (SKOCPOL, 1992, p. 41-62), e não as

feições emergentes de um período histórico antecedido por um momento de ‘plena autonomia’ da

sociedade civil – o que pressuporia também a ‘autonomia pura’ do Estado em relação aos atores sociais –

nem, necessariamente, a distinção entre regimes democráticos e não democráticos. Mesmo no contexto

das ditaduras latino-americanas, as instituições do Estado não pairavam no ar, sem bases sociais ou

resguardadas por uma autossustentação hermética (veja-se, dentre outros, Rollemberg; Quadrat, 2010).

Mais de uma postura teórica privilegia a interdependência ou as interações entre sociedade civil

e Estado como foco analítico. Na América Latina, as compreensões da sociedade civil de matriz

gramsciana desempenharam papel importante na crítica à compreensão dicotômica da relação entre

Estado e sociedade civil (DAGNINO, 2011; DAGNINO, OLVERA; PANFICHI, 2006)14. As tradições do

neoinstitucionalismo histórico e da macrossociologia histórica comparativa, por sua vez, produziram

análises primorosas de processos de longa duração a respeito, por exemplo, da gênese das bases da

cidadania moderna graças à resistência das comunidades à exação de recursos pelo soberano – como a

conscrição compulsória do filho primogênito –, ou a respeito do surgimento dos impostos como forma

abstrata de solidariedade, ou, ainda, acerca da proliferação exitosa do Estado-nação sobre sultanatos,

principados, bispados, e uma miríade de soberanias que povoaram secularmente a geografia política

europeia (TILLY, 1996; BENDIX, 1996). Essas tradições também geraram análises de processos de

duração média como a construção dos sistemas nacionais de saúde na Europa (IMMERGUT, 1992) ou o

despertar associativo nos anos posteriores à guerra civil norte-americana (CROWLEY; SKOCPOL, 2001), e

inclusive as próprias transições políticas na América Latina (COLLIER; COLLIER, 1991) – para citar apenas

alguns trabalhos emblemáticos de um campo em franca expansão durante as últimas décadas (MAHONEY;

RUESCHEMEYER, 2003).

No caso dos neoinstitucionalistas, a tese da mútua constituição entre Estado e sociedade civil

significou, já no começo dos anos 1990, um afastamento ante posturas State-centered e sua excessiva

ênfase na autonomia das políticas15 – ênfase própria da primeira geração que trouxe ‘the State back in’.

Ela levou ora a abordagens centradas na influência institucional do Estado sobre a disposição a agir e as

capacidades de ação dos atores sociais, ora a examinar a construção histórica dessas capacidades em

termos, por exemplo, da moldagem de encaixes institucionais (institutional fit) ou entradas preferenciais

14 Para uma avaliação crítica do diagnóstico de L. Avritzer aqui abordado e de seus fundamentos teóricos, ambos de uma

perspectiva gramsciana, ver Burgos (2014). 15 Cf. “[The analysis] suggests that the stark dichotomy between state and society often drawn by state-centric theory should be

revised in order to allot a significant role to the political system, defined as the complex of political parties and interest

intermediaries that stand at the intersection between the state and society in democratic polities. […] [It also] indicates that we

need an even more expansive concept of state-society relations than such traditional conceptions of the political system provide.

[…] [W]hile recognizing the usefulness of ‘bringing the state back in’, this analysis cautions us against positing too rigid a

distinction between the state and society and against an insistence on the autonomy of the state” (HALL, 1993, p. 288; 292).

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(engeniering fit) dos atores sociais no Estado (SKOCPOL, 1992, p. 47-54). Quanto aos pressupostos

teóricos, o neoinstitucionalismo histórico opunha-se a macrointerpretações de classe ou de fundo

modernizante para explicar as políticas de welfare; já no nível de suas implicações para a ação coletiva,

esse debate se voltou criticamente para os autores dos movimentos sociais na vertente do processo

político. Contra estes, E. Amenta et al. (2002) argumentaram que o Estado permanece infrateorizado

pela contentious politics e que noções como “oportunidade política” tendem a repor a dicotomia entre

atores estatais e não estatais. Como corolário, a crítica levou seus autores a forjar o modelo da

“mediação política” (AMENTA et al., 2005) e a questionar quais variáveis propriamente institucionais

explicam o impacto dos movimentos sobre a institucionalidade (AMENTA et al., 2010). Por outro caminho,

igualmente fértil, E. Clemens se dedicou aos encaixes socioestatais, partindo, porém, de uma dimensão

negligenciada nos estudos dos movimentos: a sua lógica organizacional. Essa autora se volta para as

inovações no “repertório organizacional” de mulheres estudadas por Skocpol, bem como para os efeitos

dessas inovações na interação com o arcabouço institucional político estadunidense (CLEMENS, 1993).

Amenta e Clemens não dão apenas pista de como avançar nos estudos sobre impactos político-

institucionais dos movimentos e de suas interações; a nosso ver, suas análises também encarnam de

modo profícuo as implicações teórico-analíticas da tese da constituição recíproca entre Estado e

sociedade civil, em sua versão e inspiração neoinstitucionalista.

Se no debate anglo-saxão foi o caráter autônomo (ou não) das políticas ou da política no Estado

que pautou uma parte da discussão, na literatura brasileira, foi a autonomia dos atores sociais que deu

(e ainda parece dar) o tom do debate. O estatuto teórico da categoria autonomia é crucial – e nossa

interpretação sobre ela será retomada adiante, no último contra-argumento –, mas, por ora, importa

assinalar duas razões históricas, não inscritas no plano da teoria, que podem animar a descrição dos

anos 1970 e 1980 como um ‘momento de autonomia’, a saber, as descrições coevas disponíveis na

literatura e a narrativa dos atores preservada em registros de época ou mediante rememorações

posteriores. Ambas as razões, conforme será visto logo a seguir, comparecem ao diagnóstico enfático da

autonomia. No que diz respeito aos atores, a experiência de um Estado autoritário e iníquo nos terrenos

tanto da contestação política quanto da definição e implantação de políticas públicas teria produzido

duplo efeito: o ‘surgimento’ ou ‘criação’ da sociedade civil em reação às circunstâncias e a ênfase em

uma autonomia ‘radicalizada’ em relação ao Estado. Assim, associações mobilizaram-se desenvolvendo

novos repertórios de ação independente, e atores, como o movimento sanitarista, foram além ao propor

“a organização de serviços de saúde independentes do Estado” (AVRITZER, 2012, p. 389). Por sua vez, a

literatura sintonizada com o debate internacional e sensível aos reclamos de ‘autonomia’ teria passado a

utilizar a categoria sociedade civil, que pela primeira vez faria sentido cabal na história do país.

Sem dúvida, nesses anos a autonomia encontrava-se instalada tanto como categoria prática, a

significar o sentido da ação dos atores, quanto como categoria teórica, a orientar os esforços cognitivos e

compromissos normativos dos autores, mas a positivação de ambos os elementos em nossa

compreensão contemporânea do período não apenas é operação mui seletiva, mas conduz a um

diagnóstico autonomista – factualmente incorreto. No que diz respeito à literatura, muito devemos aos

trabalhos dos anos 1980 que inovaram intelectualmente e sintetizaram a riqueza desse momento

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histórico (BRANT et al., 1982; DOIMO, 1984; SADER, 1988)16; entretanto, pouco honramos o espírito

intelectual dessa geração ao repetir diagnósticos ipsis litteris mais de 20 anos depois, ainda mais

quando considerado que os próprios integrantes dessa geração fizeram balanços coetâneos sugerindo

correções ao que julgaram ser custos cognitivos do espírito da época. Nas palavras de R. Cardoso

(1983):

o processo de mobilização popular aparece, nestas interpretações, como resposta

espontânea ao autoritarismo e à incompetência dos governos. Neste quadro, a atenção dos

cientistas se volta para este sentimento ‘oposicionista-democrático’ das massas urbanas e

deixa na sombra a atuação do Estado (CARDOSO, 2008, p. 319)17.

A literatura da época não apenas foi sensível à ‘autonomia’ como categoria prática dos atores,

mas encontrava-se inscrita na disputa pela democratização do país e, por isso, comprometida com as

implicações políticas da linguagem dos atores e vocacionada a orientar a realização de tais implicações.

Hoje é possível apreciar o valor dessa literatura, bem como entender os motivos que animaram a

proximidade entre a linguagem da teoria e a linguagem prática dos atores; não obstante, não mais

parece prudente assumir as narrativas herdadas desse momento. Trabalhos mais recentes, dedicados a

revisar o período com minúcia, têm mostrado o quanto essa narrativa é datada e requer correções

(ASSIES, 1991; HOUTZAGER, 2004; IFFLY, 2010; DOWBOR, 2012; CARLOS, 2012).

A autocompreensão dos atores, bem como a significação das suas práticas e narrativas

mediante a invocação da ‘autonomia’, poderia ser utilizada como evidência empírica para a

caracterização dos anos 1970 e 1980 como um período de ‘radicalização da autonomia’ em relação ao

Estado. De fato, o movimento sanitarista é citado como caso emblemático de mobilização e recebe

especial atenção no diagnóstico de conjunto aqui examinado por ter “radicalizado a ideia de autonomia

social” (AVRITZER, 2012, p. 390) ao propor “a organização de políticas públicas independente do Estado”

(AVRITZER, 2012, p. 389).

A mobilização das evidências para sustentar tal compreensão, todavia, precisa ser

espantosamente seletiva. O movimento sanitarista encontrava-se em processo de formação na segunda

metade dos anos 1970 (ESCOREL, 1998) e, conforme mostrado no estudo de Dowbor (2012), já nesse

momento definiu uma estratégia de atuação prioritariamente centrada em dois flancos, a qual viria a se

tornar perene. Primeiro, o “caminho institucional denominado pelos atores de ‘ocupação de espaços no

Estado’” ou, para dizê-lo em palavras nativas comuns à época, ‘a entrada no coração do sistema’

(DOWBOR, 2012, p. 107). Essa linha de atuação foi amplamente debatida e tornou-se prática comum na

forma de ocupação de cargos e de uso dos recursos associados a esses cargos para promover o ideário

da medicina social – mediante o desenho e a implementação de programas públicos, por exemplo – e a

organização e a mobilização do próprio movimento sanitarista. O segundo flanco de atuação visou a

construir o campo profissional da medicina social, mediante a criação de instituições de ensino e

16 Sínteses ricas e sintonizadas com o debate dos anos 1980 continuaram a ser publicadas durante a primeira metade dos anos

1990, conforme atestado pelo influente trabalho de Doimo (1995) sobre a trajetória dos movimentos sociais no pós-1970. 17 Ver também Machado da Silva e Ribeiro (1985).

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pesquisa, a definição de curricula e a regulação da profissão. Em ambos os casos, a estratégia bem-

sucedida do movimento sanitarista não apenas pressupôs interação com o Estado, como também

disputa dentro do Estado pelas políticas e capacidade regulatória do próprio Estado.

Os atores do período falaram de ‘autonomia’ e procuraram significar suas práticas invocando-a.

A compreensão dos sentidos da ‘autonomia’, todavia, é tarefa árdua que demanda o exame das

situações em que ela é invocada por diferentes atores, de modo a desvendar os sentidos atualizados por

tal invocação perante diferentes interlocutores. Seus sentidos, por conseguinte, não podem ser derivados

da teoria, nem imputados em macronarrativas de modo homogêneo à sociedade civil como um todo. Isso

coloca o problema da relação entre pesquisa empírica, categorias nativas ou práticas e categorias

teóricas, o qual será retomado no último contra-argumento. Como já observado, porquanto sociedade

civil e Estado são mutuamente constitutivos, a invocação da ‘autonomia’ não implica ausência de

interação – conforme mostrado acima no caso do movimento sanitarista –, da mesma forma que sua não

invocação tampouco implicaria submissão ao Estado ou qualquer forma de fusão com ele. Esse é um

bom ponto de partida para se afastar tanto dos diagnósticos de ‘insolidarismo’ (cf. Alonso, 2011), típicos

das interpretações da sociedade civil no século XIX, quanto do argumento do autonomismo e sua leitura

da separação dicotômica entre Estado e sociedade civil no período do governo militar.

O pós-1988 e o esvaziamento da interdependência entre Estado e sociedade civil

O período “radicalizado” (AVRITZER, 2012, p. 390) e autonomista teria sido sucedido por uma

nova fase, demarcada com precisão cronológica em 1987 graças à Constituinte, mas com

desdobramentos duradouros que reforçaram transformações na “autonomia” dos atores sociais –

transformações desencadeadas no momento da própria Assembleia. Com efeito, “existe um divisor de

águas entre a reivindicação de autonomia do Estado nesta primeira fase (1977-1985) e a reivindicação

de autonomia durante a segunda fase (1985 até hoje): a Assembleia Nacional Constituinte” (p. 390) e,

como decorrência, a inauguração de uma nova fase chamada de “aprofundamento democrático”

(AVRITZER, 2012, p. 387, 390). A chave para entender o papel de divisor de águas da Constituinte reside

nas emendas populares e as dezenas de milhares de assinaturas que as apoiaram como estopim – ou

“primeiro momento” (p. 390) – de aprofundamento democrático responsável pela ampliação de direitos

sociais (saúde ou reforma urbana) e políticos (instituições participativas em diversas áreas e setores de

políticas públicas). As mudanças na “autonomia” seriam, nesse sentido, resultado do sucesso da ação da

sociedade civil, e, por isso, o “movimento pela autonomia social não sobreviveu à democracia com a

mesma concepção com que surgiu” (p. 386). Quiçá um terceiro fator, mencionado apenas en passant e

sem qualquer desdobramento no argumento, poderia ter contribuído para a transformação da

autonomia, a saber, as “reformas neoliberais [que] interagiram com as responsabilidades dos atores da

sociedade civil nas políticas públicas” (p. 387). Assim, L. Avritzer oferece diagnóstico alternativo àquelas

leituras críticas que, partindo de um ‘totalitarismo neoliberal’ (OLIVEIRA, 2000), identificaram uma sorte

de hiperdesmobilização, isto é, “uma ordenação que consegue impedir que se formem experiências e

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comunidades políticas capazes de aparecer como tal” (RIZEK; PAOLI, 2007, p. 10)18. Seja como for, na

nova fase a sociedade civil teria se tornado “mais ou menos autônoma vis-à-vis o Estado” (p. 387).

Ao mesmo tempo em que firmou um retrato da sociedade civil sem interdependência com o

Estado, a caracterização do período anterior associou algumas das virtudes da mobilização social e a

própria emergência da sociedade civil em si a uma genuína ‘autonomia’ em relação ao Estado. Dado

esse diagnóstico enfático, a aparição da interdependência com o Estado poderia trazer consigo

consequências corrosivas para a recém-emergida sociedade civil. Pois bem, na etapa do aprofundamento

democrático, a sociedade civil cresceu e viu ampliar sua influência política seguindo “uma lógica mista

entre autonomia e dependência” (AVRITZER, 2012, p. 393). Prova cabal dessa lógica mista seria a

composição da sociedade civil no Brasil, alicerçada em dois grandes grupos de associações: o primeiro,

mais estável, de base religiosa, vinculado a setores populares e – presumivelmente – ‘autônomo’,

enquanto o segundo, ligado ao Estado pela implementação de políticas públicas, inscrito na órbita da

esquerda e das lutas pela democratização e, por conseguinte, interdependente. “Nesse sentido, o

argumento para uma completa interdependência entre sociedade civil e Estado parece não se sustentar”

(AVRITZER, 2012, p. 394). As evidências empíricas aí mobilizadas são intrigantes, mas não há espaço

nestas páginas para um exame cuidadoso delas19. Aqui interessa atentar para o esvaziamento da noção

de interdependência e suas consequências sobre o diagnóstico do pós-1988; quer dizer, atentar para o

cerceamento do alcance heurístico da interdependência e para as limitações explicativas desse

diagnóstico que, em sua vontade de salvaguardar a autonomia, sai do truísmo (há interdependência)

para recair numa aporia (uma sorte de interdependência sem dependência).

A ideia de que a “completa interdependência” compromete a autonomia dos atores sociais

deriva de um entendimento autonomista (não relacional) da segunda. Seja como for, tornar a autonomia

e a interdependência atributos de conjuntos de atores específicos – respectivamente, das associações

religiosas e das associações voltadas para a implementação de políticas –, em vez de um continuum

presente nas práticas de todo ator da sociedade civil e em diferentes momentos, é operação analítica tão

implausível quanto a separação da trajetória da sociedade civil no Brasil em dois períodos demarcados

pela passagem da ‘autonomia plena’ para a interdependência em relação ao Estado. Desde perspectivas

relacionais ou centradas na codeterminação entre Estado e sociedade civil, como aquela assumida aqui,

distinguir esse momento histórico pelo caráter interdependente dos laços socioestatais é um truísmo, e

por isso um diagnóstico bastante frágil, visto que – seja em períodos autoritários ou democráticos –

ambos se constituem reciprocamente. Mais: aceitar a interdependência para, em seguida, lançar mão de

operação analítica para lhe aparar as implicações indesejáveis esvazia essa categoria de seu potencial

heurístico. Seguindo boa parte da sociologia histórica, é sabido que as redes e os laços de

interdependência, seja entre indivíduos, entre grupos, entre classes ou entre Estados-nação, são

18 Para uma revisão crítica dessa produção, ver Szwako (2009). 19 L. Avritzer formula um diagnóstico da composição da sociedade civil no Brasil a partir de um survey aplicado a cidadãos em

São Paulo. A unidade empírica dessa composição são associações, e proposições sobre sua composição e evolução no tempo no

país demandam dados sobre associações e com cobertura nacional. Entrementes, tal diagnóstico descansa em dados sobre

indivíduos e sua participação em associações em uma cidade. Uma análise cuidadosa desse diagnóstico teria de mostrar os

custos cognitivos de derivar proposições acerca de um plano organizacional (a composição da sociedade civil) de evidências

sobre as práticas de participação de indivíduos.

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condição constitutiva das configurações sociais e de suas mutações (ELIAS, 1993; 1994).

Heuristicamente fértil, essa fonte específica de interpretação histórico-sociológica tem inspirado críticas

a concepções dicotômicas e maniqueístas do par Estado/sociedade civil e às ‘essências’

(respectivamente, negativa/positiva) imputadas aos polos desse par (SILVA, 2006). Embora possa estar

ligada a alguma idealização do polo civil, a caracterização do pós-1988 parece antes um empenho em

manter teoricamente imaculada a “autonomia” da sociedade civil e de seus atores: “[a sociedade civil]

interage com o Estado mantendo a sua própria dinâmica organizacional e o seu próprio processo de

tomada de decisão” (AVRITZER, 2012, p. 386; ênfases acrescidas). Em outras palavras, a sociedade civil

interage, mas não se implica; interdepende, mas não depende; interage, retomando M. Silva, sem perder

sua (suposta) essência. Cognitivamente enraizado no autonomismo, o diagnóstico da nova fase como um

período em que a sociedade civil é “mais ou menos autônoma” veicula uma contradição em termos: uma

interdependência sem dependência.

Se, no plano analítico, a interdependência não guarda relação exclusiva com a dependência,

nem excludente com a autonomia, mas supõe ambas, e se, no plano empírico, a expansão quantitativa e

qualitativa das chances e dos modos de acesso civil ao Estado é traço distintivo do “aprofundamento

democrático”, esse cenário não pode ser analisado por parâmetros que, declaradamente ou não,

atribuem sinal negativo a essas e outras formas de aproximação socioestatal. A nosso ver, é possível

prescindir da caracterização autonomista da sociedade civil dos anos 1970 e 1980, bem como da tese

de um divisor de águas que teria inaugurado uma fase de interdependência, e ainda reconhecer a

existência de transformações de vulto nas relações entre atores estatais e civis. Para perspectivas que

assumem o caráter mutuamente constitutivo da relação entre Estado e sociedade civil – conjugando em

graus variáveis autonomia e dependência –, o diagnóstico do pós-1988 como marcado pela

“semiautonomia”20 acaba onde deveria se iniciar, isto é, na afirmação da interdependência. Por

confundir um processo histórico com aquilo que é sua condição, ou seja, ao nomear e distinguir o

processo pós-1988 por seu caráter “interdependente”, o diagnóstico resta vazio, pois pensa ter explicado

o cenário recente através da evocação da “interdependência”, quando, na verdade, deixa sem explicação

as lógicas, os padrões de interação e os (des)encaixes operantes entre Estado e sociedade civil, que,

afinal, dão carne e osso àquele cenário transformado, porém sempre interdependente.

O desafio é, na nossa compreensão, documentar extensivamente as diversas modalidades de

interdependência que ocorrem em diferentes interfaces socioestatais (ISUNZA, 2006; ISUNZA; HEVIA, 2006;

GURZA LAVALLE; ISUNZA, 2010); identificar padrões pretéritos de interdependência entre atores sociais e

Estado, diagnosticar padrões emergentes e se debruçar sobre as consequências dessas transformações.

Diversas pesquisas têm encarado os desafios impostos por dinâmicas de institucionalização não só da

sociedade civil e de interfaces socioestatais, mas também das demandas dos atores da primeira vis-à-vis

autoridades públicas. E. Carlos (2012), por exemplo, debruça-se sobre os efeitos da institucionalização

20 “Semiautônomo” é adjetivo que L. Avritzer retoma de Cornwall e Coelho (2007), mas é por elas utilizado de modo distinto.

Para as autoras, não é a sociedade civil que tem caráter “semiautônomo”, mas as instituições da chamada “esfera participativa”;

“The institutions of this sphere have a semi-autonomous existence, outside and apart from the institutions of formal politics,

bureaucracy and everyday associational life, although they are often threaded through with preoccupations and positions formed

in them” (CORNWALL; COELHO, 2007, p. 1-2).

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da participação sobre os movimentos sociais, e oferece um diagnóstico segundo o qual, pari passu às

transformações e interações socioinstitucionais, produzira-se um padrão de ação coletiva em que são

combinadas, de modo não contraditório, estratégias de cooperação e enfrentamento. Já a partir do caso

do movimento da Economia Solidária, M. Silva e G. Oliveira (2011) demonstraram como as estratégias

do movimento passam tanto pelo trânsito de atores rumo ao Estado, conformando uma interseção com

ele, quanto por relações de interpenetração com partidos, no caso, de esquerda. Em chave semelhante, a

aproximação Estado/movimentos e as implicações de tal aproximação constituem, para Teixeira e

Tatagiba (2005), os “desafios da participação”. Em sua análise a respeito da participação na capital

paulista, essas autoras notaram não só que os canais participativos são uma estratégia-alvo no rol mais

amplo de estratégias de acesso ao Estado, mas também que os sentidos da ‘autonomia’ se transformam

nesse rol e em função da posição institucional (executiva ou legislativa) dos interlocutores dos

movimentos analisados. No entanto, a tática de aproximação ao Estado não é dinâmica exclusiva do pós-

1988, e a esse respeito vale lembrar a trajetória do movimento pela Reforma Sanitária, que conseguiu

imprimir seu projeto de universalização da saúde como direito do cidadão e dever do Estado, não a

despeito deste, mas através da ocupação e da permanência em suas instituições (DOWBOR, 2012).

Por vias distintas, mas com pontos de chegada bastante análogos, outro grupo das pesquisas

recentes tem se dedicado à compreensão do impacto dos encontros e desencontros entre sociedade civil

e Estado sobre este último. Em diálogo crítico com a literatura participacionista brasileira e

internacional, Abers e Keck (2009; 2013) examinam a “mobilização do Estado” pela sociedade civil e

argumentam que a atuação de atores não estatais nos comitês de gestão de água não se restringe à

deliberação e ao controle do Estado; esses atores podem, diante de limitações de operação do Estado,

fortalecer o próprio Estado em nível organizacional ou técnico, para levar a cabo seus interesses nos

comitês analisados. Por outra via, em diálogo com o institucionalismo histórico, Szwako (2013)

demonstra como o recente incremento da política de saúde, no caso paraguaio, passa necessariamente

pela interação da burocracia ministerial com atores não estatais, sejam eles civis ou de agências

internacionais. Registro semelhante é adequado para compreender a política de habitação e sua relação

com os atores e as demandas históricas do movimento pela reforma urbana durante os governos de Lula,

conforme mostrado pela análise de Serafim (2013) da burocracia ministerial da área. Nas três análises,

o deslocamento analítico operado sai duma chave participacionista/acionalista de interpretação, para

enfatizar aquilo que pesa institucionalmente nas interações socioestatais. Tal deslocamento, por sua vez,

tem implicações que obrigam a se desfazer de fatores explicativos de tom maniqueísta – dos quais o

mais recorrente é a vontade política (ROMÃO, 2011; SOUZA, 2013) – e a trazer para primeiro plano o peso

das variáveis institucionais para além do desenho institucional como, por exemplo, a capacidade estatal

(inclusive a falta dela e a sua transformação), tomando-as como dimensão estruturante dos encaixes

socioestatais e dos efeitos institucionais produzidos pelos ‘erráticos’ encontros entre atores estatais e

não estatais.

Esse cenário, no qual se multiplicam as interações socioestatais institucionalizadas, demanda

categorias de médio alcance capazes de iluminar e apreender as lógicas e dinâmicas operantes entre

Estado e sociedade civil. Com esse perfil, a categoria mais influente na literatura brasileira e latino-

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americana é “projeto político”, cunhada na tradição gramsciana por Evelina Dagnino (DAGNINO; OLVERA;

PANFICHI, 2006). Além de pressupor o caráter heterogêneo dos atores civis e estatais, o uso sistemático e

reconstrutivo da categoria projeto político desfaz o artificialismo da oposição entre Estado e sociedade

civil, dando vez aos modos e fins transversais pelos quais autoridades e atores civis se vinculam

estrategicamente. Outra distinção analítica intermediária é o chamado “domínio de agência” (GURZA

LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2012). Em diálogo com o neoinstitucionalismo, o neocorporativismo de P.

Schmitter e a literatura de ecologia organizacional, a noção de domínios de agência atenta para a

construção política das capacidades de atuação dos atores da sociedade civil mediante dinâmicas de

institucionalização que definem domínios de atuação legítimos para determinados conjuntos específicos

de organizações civis por meio da cristalização formal de barreiras de entrada, dispositivos de acesso

aos recursos estatais e reconhecimento da sua capacidade de representar determinados interesses.

Não são poucos os desafios analíticos e também empíricos postos àquelas análises que operam

na perspectiva da mútua constituição entre sociedade civil e Estado e das interações entre seus

respectivos atores. Os desenvolvimentos recentes da literatura acima elencados contribuem a elucidar

formas, instâncias e níveis de interconexão; condicionantes institucionais que modelam a interação e o

alcance político de movimentos sociais e de outros atores da sociedade civil; bem como a construção de

parte das capacidades de ação do Estado – todas elas questões integrantes de uma ampla agenda

interacionista de pesquisa que, a julgar pelos avanços da literatura, encontra-se em andamento. Ainda

permanece em pé, todavia, o problema analiticamente mais complexo que subjaz não apenas ao

diagnóstico de conjunto examinado, mas, de modo geral, às literaturas de sociedade civil e movimentos

sociais.

Mimesis entre a autonomia como categoria teórica e como categoria prática

O esforço por caracterizar uma “interdependência sem dependência” leva a supor que

subjazem à centralidade conferida à “autonomia” motivações teóricas substantivas. Isso coloca a

questão central das diferenças e possíveis conexões entre os usos práticos e teóricos que,

respectivamente, os atores e os autores fazem dela. No plano dos atores sociais, a autonomia teria sido

“entendida como agir sem pedir autorização do Estado e, ao mesmo tempo, ignorar os limites colocados

pelo Estado à organização interna e externa das associações voluntárias” (AVRITZER, 2012, p. 389). Já no

plano da literatura, e de modo consequente com a linguagem utilizada pelos atores, “[t]eorias da

sociedade civil durante o final dos anos 1980 e início de 1990 trataram as práticas de atores da

sociedade civil em termos de autonomia” (AVRITZER, 2012, p. 385). Por outras palavras, os autores

teriam incorporado à literatura a categoria nativa dos atores: “o modelo de autonomia plena estava

ligado à concepção dos atores e não a uma concepção normativa preconcebida” (p. 393). Entretanto,

assim procedendo, o debate da época teria traduzido a literatura internacional sobre sociedade civil ante

“elementos locais”, aliando a “dimensão autônoma da sociedade civil” a “todos os tipos de movimentos

sociais [...] e até mesmo [a] uma ideia geral de autonomia que vinha do próprio sindicalismo” (p. 386).

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No diagnóstico de conjunto a relação entre categorias práticas e teóricas segue a mesma lógica, a saber,

a língua falada no plano da literatura é pautada ou ‘inspirada’ pelas falas dos atores. Assim, nos

anos oitenta no Brasil, a sociedade civil estava preocupada com a autonomia [...]. [Nos]

anos noventa, a sociedade civil brasileira começou a se preocupar com o estabelecimento

de uma forma mais ampla de participação pública na maioria das áreas de políticas

públicas (AVRITZER, 2012, p. 392).

Logo, “autonomia”, “democratização das políticas” e “controle público” – questões

supostamente distintivas da década de 1980 – são “preocupações que inspiraram o marco analítico da

autonomia” (AVRITZER, 2012, p. 392). Daí à “interdependência” pós-1988: “toda a literatura recente

sobre a sociedade civil enfatiza as interconexões entre a sociedade civil e o Estado” (p. 392). Nessa

embocadura, o plano dos debates apenas segue o plano prático dos atores civis – ambos indo “da

autonomia à interdependência” – aliando essa mimese à linguagem em voga na literatura internacional.

Mantém-se assim uma intimidade entre registros teórico e prático, cujas raízes históricas estruturam o

campo de debate sobre movimentos sociais e sociedade civil, parte das quais foram tratadas no contra-

argumento anterior.

Tal indistinção analítica, que permite deslizes entre os usos teóricos e práticos da ideia de

autonomia, como se se tratasse de uma mimese, não apenas presta um desserviço ao desenvolvimento

de teoria ou de pesquisa empírica, como é imprecisa do ponto de vista da descrição da produção

acadêmica do momento, haja vista a predominância de compreensões da sociedade civil de inspiração

habermasiana ao longo dos anos 1990, a exemplo do próprio L. Avritzer (cf. 1996). Por motivos

analíticos diversos, teorias podem conceder relevância à ideia de autonomia, como é sabidamente o caso

das compreensões habermasianas de sociedade civil. Esses motivos são dignos de escrutínio nos seus

próprios termos e no nível de abstração em que opera a teoria. Por sua vez, é inteiramente

compreensível que a noção de autonomia seja cara aos atores sociais, e desvendar os sentidos a ela

conferidos, como será visto logo a seguir, é desafio nada banal para a pesquisa empírica. Contudo, supor

que os motivos da teoria e dos atores coincidem é uma escolha sociológica e teoricamente improdutiva,

que inibe a indagação empírica porque as respostas jazem prontas no plano da teoria, e poupa o esforço

conceitual de especificar as mediações que conectam as práticas dos atores significadas pelos usos

nativos da noção de “autonomia” com as definições substantivas e abstratas da teoria.

No plano teórico, a autonomia pode desempenhar diferentes funções nos arcabouços analíticos

em questão, bem como ser valorizada por diversos motivos. Assim, a autonomia qua categoria de análise

não é unívoca e sequer autoevidente; seu uso admite uma ampla gama de filiações analíticas e, seguindo

o cânone epistemológico de explicitação da posição da fala, cabe aos autores ser claros quanto a seus

pressupostos teórico-normativos. Em Habermas (1987), a autonomia ocupa uma posição no plano da

macroteoria da sociedade em dois níveis, cujo horizonte temporal de longa duração remete à gênese e ao

desenvolvimento da diferenciação entre o mundo sistêmico – Estado e mercado – e o mundo da vida. A

autonomia é, precisamente, não uma reivindicação de determinados atores em uma conjuntura

específica, mas uma propriedade distintiva e constitutiva – por definição – do mundo da vida,

imprescindível para a realização do seu potencial de inovação e emancipação. Assim, em registro

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habermasiano, o mexicano A. Olvera (2004, p. 24) formula com precisão que “autonomia se refere à

aberta diferenciação que atores sociais fazem perante o Estado e o mercado”; tais atores sociais “não se

assimilam à lógica da luta pelo poder nem se subordinam às diretrizes estratégicas dos partidos”. É essa

a perspectiva teórica que nos anos 1990 animou os trabalhos de L. Avritzer e de parte significativa da

literatura no Brasil e na América Latina, e não espanta que seja exatamente nesses termos – embora

como realização tardia da modernidade (em meados dos anos 1970) – que é descrita a ‘emergência’ da

sociedade civil. Igualmente, é porque ecoaram nesses pressupostos que os usos nativos da noção de

autonomia suscitaram atenção; pressupostos que também iluminam o empenho de L. Avritzer por definir

uma peculiar interdependência sem dependência.

A autonomia pode ser uma categoria relevante em outros registros teóricos, inclusive se

dedicados à teoria positiva – não normativa –, como tal, desenvolvida para orientar a pesquisa empírica.

O recurso analítico à autonomia tem centralidade no pluralismo, não no terreno macroteórico da

evolução social no mundo moderno, mas, conforme caracterizado por Dahl (1982), no dos dilemas que a

consociação de interesses sociais coloca às democracias. A autonomia de uma associação é definida

como sua capacidade de agir prejudicando os interesses de terceiros sem que eles possam impedi-lo e,

por isso, o conceito é entendido como complementar ao de controle (DAHL, 1982, p. 16-22). A relação

entre autonomia e controle das associações nas democracias é dilemática, pois ambos são a um só

tempo desejáveis e implicam riscos. Mais: ambos os termos existem apenas em combinação e não de

forma pura. Essa definição, aliás, permaneceu praticamente incólume ao longo da extensa produção do

autor de Poliarquia21. Inclusive no âmbito da discussão normativa – em que abundam definições e níveis

(privado e público) de escrutínio sobre suas bases (morais, individuais, coletivas ou outras) –,

compreensões não macrossociais de autonomia são também possíveis. Em obra dedicada na íntegra à

construção de uma teoria da autonomia moral, G. Dworkin esquadrinha o desafio de incorporar

constrangimentos de índole diversa sem, todavia, cancelar a dimensão de autodeterminação nevrálgica

ao conceito. A concepção de autonomia por ele trabalhada remete a “uma capacidade das pessoas de

refletir criticamente sobre suas preferências, desejos e objetivos [de primeira ordem], bem como de

aceitar mudá-los ou tentar mudá-los” à luz de novas informações e reflexões, ou tecnicamente, de

preferências de segunda ordem (DWORKIN, 1988, p. 20). Como se nota, então, o estatuto teórico da

autonomia é diverso e segue a variedade nuançada dos debates, registros e problemas de pesquisa e

desenvolvimento conceitual nos quais ela pode ser acionada, mas não como mimese da fala dos atores.

Porém, no plano empírico permanece em pé a questão de como lidar com a autonomia como

categoria prática relacional, quer dizer, não pela sua especificação e suas funções teóricas positivas ou

normativas, mas pelos sentidos que ela assume para os atores – sentidos que, conforme antecipado no

segundo contra-argumento, não são passíveis de dedução teórica. A nosso ver, quando perscrutada no

plano do sentido, a autonomia é invocada por indivíduos inscritos em coletividades – grupos,

associações, movimentos, comunidades – para significar a relação dessas coletividades com outros

21 Se no texto referido Dahl afirma “let me propose that to be autonomous in a political sense is to be not under the control of

another” (DAHL, 1982, p. 16), um quarto de século antes formulou: “grupo é [considerado] autônomo na medida em que suas

políticas não são controladas por indivíduos externos a ele” (DAHL, 1989, p. 80).

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atores civis, políticos ou econômicos. A significação das relações com outrem não é definitiva e sequer

necessariamente estável, antes, varia conforme o ator aludido, as questões ou conflitos em jogo e até a

presença ou não de terceiras partes. A autonomia aceita, por conseguinte, não apenas diversos sentidos

num mesmo momento em relação a diversos atores ou instituições, mas inclusive em relação ao mesmo

ator. O denominador comum é a afirmação de uma distância ou não ingerência considerada desejável

(desiderato) e referida a práticas e circunstâncias específicas. Como desiderato, a autonomia pode ser

invocada para significar tanto aquilo que se assegura que existe no mundo quanto aquilo que se reclama

que deveria existir legitimamente – em ambos os casos, o agir autônomo do indivíduo, ator ou

coletividade. Sobretudo, a invocação não remete diretamente a um estado de coisas no mundo – quer

um período histórico sem interações, quer um momento de soberania irrestrita, quer um ato de

autodeterminação pura –, mas à autopercepção dos atores das suas relações com outrem em sistemas

de interdependência que envolvem diversos atores. Nesses termos, a compreensão analítica da

autonomia passa pela compreensão da representação nativa feita pelos atores a respeito das suas

trocas, dívidas e dessimetrias com outros atores políticos e também civis.

Assim, desvendar os sentidos da autonomia implica examinar as diversas circunstâncias em

que ela é invocada na prática dos atores, atentando para a atualização de significados específicos

produzidos por tal invocação. Trilhando caminhos próprios, diversos esforços na literatura brasileira têm

acionado a autonomia, dedicando-se a escrutinar seus sentidos na prática dos atores, bem como a

criticar e a revisitar o modo pelo qual ela é, ou pode ser, apreendida por lentes analíticas menos

prescritivas. A renovação conceitual comum a pesquisas mais recentes consiste em assentar o

pressuposto de que autonomia não é – nem deve ser tomada como – sinônimo de não relação com o

Estado e, mais amplamente, com o sistema político (TATAGIBA, 2008). Em parte dessas investigações,

trata-se de escrutinar percepções nativas de autonomia e sua relação com recursos/atributos e com

trajetórias/dinâmicas efetivas de participação (CAYRES, 2009). A preocupação de Cayres (2009) com os

sentidos nativos de autonomia e o respectivo cuidado metodológico, que diferencia níveis individual e

organizacional de análise, permitem-lhe ensejar uma tipologia não da autonomia, mas sim das

autonomias, no plural, tal como vividas e disputadas nos conselhos. Em outra vertente, Tatagiba (2010)

ressalta as armadilhas, ambiguidades e mesmo aporias nas quais se veem enredados os movimentos

diretamente orientados para as instituições políticas:

A disputa pelo acesso ao Estado e aos recursos públicos, fundamental para a [...]

cidadania, muitas vezes acaba resultando numa sobredeterminação dos aspectos

instrumentais e estratégicos da ação, relegando ao segundo plano a comunicação dos

movimentos com suas bases (TATAGIBA, 2010, p. 69).

Essa análise encerra um duplo avanço no debate. Por um lado, seu pressuposto relacional de

investigação em nada lembra aquela concepção herdada e hipostasiada de autonomia: os movimentos

estão estrategicamente em meio a disputas partidárias e burocráticas, e não são essas interações que

fatidicamente ‘tiram’ deles sua atuação ‘autônoma’. Por outro lado, porém, em seus efeitos, tais

interações pesam sobre os movimentos, que vivem sob a tensão inerente entre a reivindicação de sua

‘autonomia’ e a eficácia de suas lutas e conquistas políticas (TATAGIBA, 2010).

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Em consonância com esses esforços, outros empreendimentos analíticos recentes vêm

escrutinando as percepções dos atores nas várias formas de aproximação entre Estado e atores da

sociedade civil, dentre as quais se destacam as chamadas ‘parcerias’ (LIMA NETO, 2013; REIS, 2013). Em

sua análise das relações entre uma Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (Incra) e movimentos de luta por terra (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,

Federação dos Trabalhadores da Agricultura, Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar),

Penna (2013) observa como o padrão de interação entre esses atores estabeleceu um repertório de

ações públicas sedimentado e sintetizado na figura nativa da “relação de parceria”. Por meio dessa

expressão, tanto burocratas como militantes expressam as táticas pelas quais o movimento influencia a

Superintendência, seja na seleção de terras expropriáveis seja na de famílias a serem assentadas. E

mais: mesmo sedimentada como condição para a distribuição de terras, a ‘parceria’ entre partes do

Incra e os movimentos não extirpou modalidades mais conflitivas de ação pelos últimos, a exemplo,

sobretudo, das ocupações na sede da Superintendência. Já em sua análise dos efeitos nos padrões de

ação coletiva das relações entre movimentos e instituições participativas no Espírito Santo, Carlos (2012)

mostra a significação de parte das interações com o poder público em termos de ‘parceria’. Observando,

desde os anos 1980, a trajetória das formas de aproximação entre a Federação das Associações de

Moradores da Serra (Fams) e o respectivo executivo municipal – apenas um dos casos por ela analisados

–, a autora destaca que a transformação no padrão de ação da Fams e nos seus objetivos corresponde

tanto “à incorporação de novas atividades relevantes na vida associativa desta coletividade” quanto “a

mudanças no Estado, à ampliação do acesso às agências governamentais e à implementação de

instituições participativas de elaboração de políticas públicas” (CARLOS, 2012, p. 151).

Nos dois casos, vê-se como as mudanças tático-organizacionais dos atores civis caminham pari

passu à interação com os respectivos poderes executivos, por sua vez, interpelados por saberes e

dinâmicas advindas desses atores, sem que a ampliação e a intensificação das trocas entre ambos

anulem ou – no jargão do debate – ‘cooptem’ os atores ou desvirtuem irremediavelmente suas táticas

consagradas, inclusive as de índole disruptiva. São, então, essas lógicas, dinâmicas e dessimetrias que

interessam à agenda do interacionismo socioestatal, e cuja caracterização vem ganhando densidade

graças à pesquisa empírica que assume a interdependência como ponto de partida, e não como ponto de

chegada da investigação.

À guisa de conclusão: sentidos da autonomia e interdependência

entre Estado e sociedade civil

Para finalizar, antes de retomar pontualmente os contra-argumentos, de modo a explicitar suas

implicações mais diretas para a pesquisa empírica, abordamos de modo breve dois casos que, embora

extemporâneos e cronologicamente distantes, permitem elucidar os contra-argumentos de forma

integrada. Com maior precisão, os dois casos permitem mostrar o rendimento heurístico dos contra-

argumentos aqui aventados, isto é, de compreensões que assumem o caráter mutuamente constitutivo

do Estado e da sociedade civil e privilegiam interpretações interacionistas e de cunho relacional. O

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primeiro caso é elucidativo em relação aos sentidos da ‘autonomia’ e o segundo, em relação à

codeterminação Estado-sociedade civil.

A análise de E. Carlos oferece indícios sobre os diferentes registros nos quais a autonomia foi

invocada durante o contexto da ditadura e da transição. Em sentido contrário de leituras autonomistas

em que a invocação da autonomia por parte dos atores é interpretada como não relação com os

executivos locais ou partidos, Carlos assevera que a invocação da autonomia – em falas como “a Fams e

o movimento popular não têm donos, nem partido político” (CARLOS, 2012, p. 100) – pelas organizações

populares por ela analisadas reivindicava (desiderato) que os partidos não se interpusessem entre elas e

o Estado, ao mesmo tempo em que mantinham laços com ambos, atores partidários e estatais. Nas suas

palavras,

a tentativa de delimitar os espaços de atuação e garantir o direito de organização popular

fora das instituições políticas [implicou, ao longo dos anos 1980,] a recusa da mediação

dos canais tradicionais na relação com o Estado e a busca de uma relação direta e sem

intermediação entre o movimento e o Estado (CARLOS, 2012, p. 117).

A invocação da autonomia, todavia, não foi e nem é unívoca, e tampouco é categoria a significar

apenas as práticas dos movimentos, pois a zona socioestatal onde eles se situam, vinculante das

sociedades civil e política, engloba também outros atores. No caso da Fams – e plausivelmente em

muitos outros –, essa zona englobava frações progressistas da Igreja Católica e correntes do Partido dos

Trabalhadores que, por sua vez, tinham concepções próprias de autonomia a organizar a autopercepção

de suas relações interdependentes, significando distanciamento em aspectos considerados críticos.

Enquanto na visão de membros das Comunidades Eclesiais de Base “a aproximação entre o movimento

popular e o ativismo partidário era indesejável” (CARLOS, 2012, p. 105), membros do diretório local

petista denunciavam “a atitude paternalista, de ‘protetor do rebanho’, de alguns agentes pastorais”

(CARLOS, 2012, p. 106). Presumivelmente, para os segundos a ascendência da igreja sobre a mobilização

popular apresentava-se como empecilho a projetos mais radicais e o distanciamento, ou a autonomia,

era considerado desejável; já para os primeiros, o dirigismo do partido sobre os atores populares é que

devia ser conjurado. Plenos de tensão e ambiguidade, esses indícios sugerem tanto a riqueza empírica

dos registros nativos em que a autonomia pode ser invocada e reivindicada, como a fineza analítica

exigida para a compreensão dos sentidos das autonomias.

Voltando mais no tempo, mas agora pensando na interação entre atores sociais e estatais, a

análise de A. Silva Jr. das estratégias públicas das mutuais do século XIX evidencia como – longe de ser

uma característica própria das relações entre Estado e sociedade civil do período pós-Constituinte – o

associativismo, nesse caso, mutualista, transformou-se em consonância e em relação com as instituições

políticas. Não foram poucas as formas pelas quais essas associações de ajuda acessaram o Estado e

seus recursos, do mesmo modo que não foi pouco o investimento estatal para estabilizar suas relações

com as mutuais (SILVA JR., 2004, p. 296-ss.): a variedade encontrada nas formas de tipificação jurídica –

distinguindo entidades ‘beneficentes’ de ‘montepios’ e de ‘sociedade de socorro mútuo’–; as nomeações

oficiais de presidentes de entidade, bem como as subvenções diretas ou indiretas, via loterias ou com

isenção fiscal, eram três dos modos pelos quais associações mutualistas e Estado se relacionaram.

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Como é de se imaginar, os padrões de interação socioestatal se alteram significativamente com a

mudança na forma de governo:

as subvenções às entidades indicam relações diferentes entre Estado e mutuais nos

períodos imperial e republicano, pois, no primeiro caso, as subvenções podem ser

prodigalizadas às associações que o governante desejar, ao passo que, no segundo caso,

estão limitadas pelos valores gerais do orçamento (SILVA JR., 2004, p. 316).

Essa variação se reflete também no âmbito de legislação no qual tais entidades eram situadas:

na sociedade econômica, pela legislação do Império, e, na sociedade civil, ao menos pelas leis da

República Velha (SILVA JR., 2004, p. 341). A versatilidade das mutuais era a um só tempo circunscrita e

animada por essas mudanças no laço socioestatal, de modo que suas estratégias – ressoando um Offe –

eram “dependentes da definição (ou indefinição) do caráter público das entidades” (SILVA JR., 2004, p.

525). E, além disso, no alvorecer do século XX, a modernização e a complexificação da ecologia da

sociedade civil novecentista pesaram institucionalmente, por meio do Decreto 1.637 de 1907. Tal

decreto regulamentava a organização interna e financeira dos então nascentes sindicatos e, ao regulá-

los, e por isso mesmo, dava os primeiros contornos institucionais de um domínio de agência clássico22,

interferindo, porém, “na dinâmica interna das entidades existentes, quando estimula a criação de novas

sociedades de socorros mútuos, e, mais precisamente, aquelas por categoria profissional” (SILVA JR.,

2004, p. 304). Essa intervenção trouxe efeitos de curto e longo prazo no perfil do mutualismo23. Mais

uma vez, é possível, com lentes relacionais e a partir de um caso oitocentista, apreender a

codeterminação entre sociedade civil e Estado, bem como as dinâmicas, em maior ou menor medida

estáveis, de relação entre um e outro.

A propósito do diagnóstico de conjunto de L. Avritzer (2012) sobre as mudanças nas relações

entre sociedade civil e Estado no Brasil nas últimas décadas, que reatualiza teses caras à literatura de

22 Sobre a gênese, o perfil ideológico e as dinâmicas crescentes de complexificação e centralização do sindicalismo paulista nas

três primeiras décadas do XX, veja-se Simão (1981, p. 156-ss.); sobre a delimitação de um domínio de agência propriamente

sindical consagrado no e pelo Estado Novo, veja-se: “[a]s mudanças observadas na associação sindical revelam terem elas se

projetado no sentido da complexidade e burocratização [...], heteronomia e centralização organizatórias. A intervenção do

governo no sindicato não contrariou, mas acelerou aquelas mudanças [...]. Promoveu ela mesma uma transformação da mais

relevante consequência: a passagem do sindicato marginal ao Estado para o sindicato integrado na própria instituição do Estado.

Com isso, alteraram-se a estrutura e as funções das antigas ligas de resistência operárias. Mas se alteraram, também, a organização e as funções do Estado. E tais mudanças não representam ocorrências confinadas ao âmbito de uma ou outra

instituição. Elas se modificam concomitante e reciprocamente no processo indicado pelos fatos analisados. Como resultado, observam-se a extensão e a interpenetração das estruturas e funções do sindicato e do Estado” (SIMÃO, 1981, p. 186-187) (grifos

nossos). 23 A citação é longa, mas vale a pena: “[tal decreto] interfere também porque, mesmo nas então criadas caixas adjuntas aos

sindicatos, estipula a contabilidade em separado, demarcando a distinção entre os fundos destinados à proteção social e aqueles

destinados à promoção de estratégias coletivas. A forma por meio da qual a lei faculta a criação de caixas de socorros mútuos

explicita eventuais necessidades de justificar ideológica ou politicamente sua inexistência nos sindicatos a partir de então

criados. Ao se comparar a fundação de sociedades de socorro mútuo entre 1897 e 1906 e entre 1908 e 1917, verifica-se que o

incentivo legal poderia ser considerado eficiente, ao se criarem 13 caixas profissionalmente diferenciadas no período mais

recente, contra 9 do período anterior no Rio Grande do Sul. A diferença é pequena, e poderia ser atribuída ao processo mesmo

de conformação de identidade profissional ao longo do tempo, mas o peso da norma se torna mais evidente quando se

comparam os tempos médios de funcionamento nos dois períodos: enquanto as entidades criadas antes de 1907 funcionam por

cerca de 19 anos e 4 meses, as criadas posteriormente funcionam por 9 anos, o que indicaria que, na falta do estímulo legal, as

expectativas de manutenção de mutuais se pautariam exclusivamente pela avaliação da capacidade profissional de as

sustentarem, expectativas tendencialmente mais realistas. Mesmo desviada a atenção do longo período de montagem da

previdência estatal no Brasil, e de seus efeitos em sociedades de socorro mútuo, não é possível deixar de assinalar que, ainda

recentemente, disposições legais e administrativas interferem nas relações de ambas” (SILVA JR., 2004, p. 204-305).

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sociedade civil e movimentos sociais no Brasil, este artigo desenvolveu quatro contra-argumentos

igualmente balizados pela tese da mútua determinação entre Estado e sociedade civil, lançando mão dos

avanços no debate e da produção de conhecimento no país.

Primeiro, olhamos para o século XIX e, acompanhando a literatura de ponta, mostramos lá uma

agitação societal – antiescravagista ou mutualista ou religiosa –, à altura de latitudes ‘modernas de

nascimento’ e, para nós, irreconciliável com um diagnóstico de modernidade e emergência tardias da

sociedade civil, entre nós, apenas no final do terceiro quartel do século XX. Essa compreensão, que situa

na década de 1970 a emergência da sociedade civil brasileira, a nosso ver, não estima a complexidade

própria ao passado, reservando a ele falta de pluralidade e de densidade. Pelos motivos e evidências

expostos, esse não é um ponto de partida adequado. Em vez de leituras anacrônicas, as análises

dedicadas aos atores civis e às suas relações com o Estado se enriqueceriam se se valessem da riqueza

heurística da noção de sociedade civil com a condição de respeitar as formas historicamente existentes

de diferenciação entre Estado e sociedade. Sem esse respeito, a um só tempo teórico e empírico, a

análise resta comprometida e, alinhada ao senso comum e à idealização do tempo presente, condena o

passado àquilo que ele supostamente não foi e sequer pretendeu ser.

Em seguida, e em consonância com enfoques histórico-institucionalista e de raiz gramsciana,

abordou-se a codeterminação entre Estado e sociedade civil e a implausibilidade de caracterizar os anos

1970 e 1980 como um período de ‘autonomia plena’. Sustentamos a importância do pressuposto

analítico da mútua constituição entre Estado e sociedade civil, o qual exige um tratamento relacional da

autonomia. Nesses termos, a tarefa passa a ser esquadrinhar os padrões da interdependência entre

atores sociais e estatais, a constituição e/ou as consequências desses padrões, bem como as mudanças

na natureza dessa interdependência ao longo do tempo. No reverso dessa tarefa assume-se a crítica a

posturas que positivam em vez de problematizar e decodificar usos práticos da ‘autonomia’, pois, para

dizê-lo emprestando a formulação sintética de Dagnino, “sociedade civil e Estado são sempre

mutuamente constitutivos” (DAGNINO, 2011, p. 124).

O terceiro contra-argumento se concentrou na crítica a uma acepção esvaziada de

“interdependência”, ante a qual se aventaram as possibilidades exploradas na literatura nacional,

atentando para concepções relacionais de autonomia e para o desenvolvimento de categorias de médio

alcance e suficientemente plásticas e sensíveis ao mundo empírico. Categorias como, por exemplo,

projeto político e domínio de agência, assim como análises de interfaces socioestatais, suas condições e

seus efeitos institucionais, marcam um avanço no debate por abrir caminhos para pesquisar a

institucionalização dos atores da sociedade civil, suspendendo a preocupação quanto ao sinal que a ela

deve ser atribuído. Em alguns casos, os atores não estatais atuam por dentro do Estado e dos partidos,

através das instituições participativas ou, mesmo, a despeito delas; já em outros, não tão raros como de

praxe se imagina, militantes tornados autoridades ou as próprias autoridades passam a promover uma

espécie de ativismo institucional do Estado. São, pois, diversas as combinações e rotas de

interdependência entre Estado e sociedade civil, do mesmo modo que são variadas as categorias

analíticas mobilizadas para dar conta do cenário de intensificação e ampliação das trocas socioestatais.

Por um lado, como argumentamos, tentativas de salvaguardar no plano teórico a autonomia dos atores

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civis levam a aporias como “interdependência sem dependência” – figura talvez afeita à autoimagem dos

atores civis, mas pouco condizente com exigências explicativas. As ricas transformações sociopolíticas

ocorridas nas últimas duas décadas demandam interpretações baseadas em categorias relacionais, de

médio alcance e menos preocupadas com resguardar alguma essência virtuosa dos atores da sociedade

civil.

Tal virtuosidade esteve, por bom tempo, ancorada na projeção estilizada dos reclamos de

‘autonomia’ dos atores sociais para o plano da teoria. Assim, tratamos as diferenças entre a autonomia

como categoria teórica e a autonomia como categoria prática, bem como as perdas cognitivas derivadas

da indistinção ou fusão entre ambos os registros. O debate nacional avançou e, diretamente informados

pelas pesquisas empíricas recentes, mostramos o refinamento das pesquisas sobre movimentos sociais

e sociedade civil relativamente às questões de autonomia, reconceituando tal categoria de modo a lhe

restaurar a capacidade analítica. Esses avanços são conclusivos em um ponto: é equivocado entender a

autonomia – da sociedade civil ou dos movimentos sociais – como ausência de relação – com o Estado,

nesse caso. Se tomada como não relação, a autonomia se torna um obstáculo epistemológico, quer

dizer, obstáculo de pensamento contra o próprio pensamento (BACHELARD, 1972 [1934]). Assim, longe de

ser ausência de interação com atores políticos, a autonomia como categoria nativa exige o escrutínio dos

modos práticos de sua invocação nas, e por meio das, configurações concretas em que ela é mobilizada.

A apreensão relacional dos movimentos e atores civis permite escrutinar os significados nativos

atribuídos às relações por eles travadas com o Estado e o sistema político, iluminando a percepção da

distância desejada/invocada ou suposta/afirmada, por parte desses atores, em relação a outros atores

do Estado, do mercado ou da própria sociedade civil; percepção inscrita nos padrões de interação

socioestatal e, a um só tempo, deles tributária e constitutiva.

Ainda não dispomos de diagnósticos de conjunto satisfatórios sobre as transformações

ocorridas nas últimas décadas quanto aos padrões de interação entre Estado e sociedade civil, e os

avanços do debate têm seguido de modo frutífero o caminho da especialização. Contudo, à luz desses

contra-argumentos e das fontes teóricas e empíricas que os animam, os diagnósticos que por ventura

vierem a se estabilizar terão que nos oferecer um diagnóstico de conjunto não “da autonomia à

interdependência”, mas ‘da interdependência à interdependência’; isto é, uma compreensão das

mudanças de certos padrões de codeterminação à emergência e à cristalização de novos padrões de

mútua determinação entre Estado e sociedade civil.

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Adrian Gurza Lavalle - [email protected]

José Szwako - [email protected]

Submetido à publicação em novembro de 2013.

Versão final aprovada em dezembro de 2014.

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Protesto político na América Latina:

tendências recentes e determinantes individuais

Ednaldo Ribeiro Departamento de Ciências Sociais

Centro de Ciências Humanas

Universidade Estadual de Maringá

Julian Borba Departamento de Sociologia e Ciência Política

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo: Estudos recentes têm identificado redução do envolvimento dos cidadãos em formas tradicionais de participação,

predominantemente relacionadas aos processos eleitorais e às instituições formais de representação, e ampliação do

engajamento em modalidades de ação relacionadas ao protesto político. Diferentes fatores têm sido apontados como

impulsionadores dessa contestação, alguns de ordem individual ou microssocial, como sentimentos, atitudes e valores.

Focalizando o caso latino-americano, apresentamos neste artigo uma análise sobre a evolução de alguns indicadores de

envolvimento nessas formas de ação ao longo de uma década. Adicionalmente, buscamos verificar quais atributos individuais

atuam como determinantes desses comportamentos. Para tanto utilizamos a série histórica de dados produzida pela organização

Latinobarómetro (1995-2007). Os resultados indicam que, apesar da relevância do descontentamento e do contexto de

instabilidade política e econômica da região, as variáveis explicativas fundamentais do ativismo de protesto são aquelas ligadas

aos recursos individuais políticos e cognitivos.

Palavras-chave: protesto; contestação; participação; determinantes individuais; América Latina

Abstract: Recent studies have identified reduction of the involvement of citizens in traditional forms of participation,

predominantly related to the electoral processes and the formal institutions of representation, and increased engagement in types

of action related to political protest. Different factors have been identified as enhancers of these actions, some microsocial or

individual order, as feelings, attitudes and values. Focusing on the case of Latin America, in this article we present an analysis of

the evolution of some indicators of involvement in these forms of action over a decade. Additionally, we assessed individual

attributes which act as determinants of these behaviors. For this we use the time series data produced by the organization

Latinobarómetro (1995-2007). The results indicate that, despite the relevance of discontent and the context of political and

economic instability in the region, the key explanatory variables of protest activism are those linked to the political and cognitive

individual resources.

Keywords: protest; contestation; participation; individual determinants; Latin America

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RIBEIRO, E.; BORBA, J. Protesto político na América Latina: tendências recentes...

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Apresentação

O tema da participação política e sua relação com a democracia provavelmente seja um dos

mais debatidos na história da reflexão política. Como muito bem destaca Della Porta (2003), a própria

etimologia do conceito de política já nos remete à participação. Na democracia direta dos gregos, os dois

termos eram intercambiáveis. Nas modernas democracias representativas, todavia, a participação

passou a ser vista mais como um insumo do processo político, desempenhando a função de constituição

do corpo político por meio dos processos eleitorais. Dessa forma, uma vez instituída a autoridade

política, a participação cede lugar à representação.

Ainda que ocupando papel de coadjuvante no funcionamento das modernas democracias, resta

à participação outras funções relacionadas ao controle e à fiscalização da autoridade política, à demanda

por bens públicos e à proposição de questões públicas. Confirmando a sua relevância, a moderna ciência

política tem dedicado grande atenção às diferentes formas de atuação política dos cidadãos. Os esforços

dos pesquisadores da área têm se orientado principalmente para a definição conceitual do fenômeno,

para a proposição de tipologias e também para a identificação empírica dos seus condicionantes.

No campo das definições, Booth e Seligson (1978, p. 6) partem da noção de influência e

propõem que participação seja entendida como “[...] behavior influencing or attempting to influence the

distribution of public goods”. Nessa mesma direção, Axford (1997) fala em comportamentos orientados

para influenciar o processo político.

Uma vez que a participação se refere a comportamentos orientados para obtenção de bens

públicos ou para influenciar o processo político, autores de diferentes orientações têm buscado definir

quais seriam as formas pelas quais ela se materializa. Um dos primeiros esforços de sistematização

nesse sentido foi feito por Lester Milbrath (1965). Para esse autor, os comportamentos participativos

ocorrem no seguinte continuum, em termos de custos e complexidade: expor-se a solicitações políticas;

votar; participar de uma discussão política; tentar convencer alguém a votar de determinado modo; usar

um distintivo político; fazer contato com funcionários públicos; contribuir com dinheiro para um partido

ou candidato; assistir a um comício ou assembleia; dedicar-se a uma campanha política; ser membro

ativo de um partido político; participar de reuniões em que se tomam decisões políticas; solicitar

contribuições em dinheiro para causas políticas; candidatar-se a um cargo eletivo; ocupar cargos

públicos.

Todos esses comportamentos, entretanto, se relacionam ao que podemos chamar de formas

“socialmente aceitas” de atuação, definidos pela literatura como modalidades de “participação

convencional”. Milbrath (1965), assim como Almond e Verba (1963) e Verba e Nie (1972),

desconsiderava em suas análises outras formas de engajamento político, como, por exemplo, a

participação em movimentos de protesto político. Fazendo a crítica dessas abordagens, Norris (2007)

aponta que:

citizen-oriented activities, exemplified by voting participation and party membership,

obviously remain important for democracy, but today this represents an excessively narrow

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conceptualization of activism that excludes some of the most common targets of civic

engagement which have become conventional and mainstream (p. 639).

As formas de participação relacionadas ao protesto político, apesar de ocuparem essa posição

subalterna nos estudos sobre o tema, possuem uma história bastante longa. A Revolução Francesa e o

Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos na década de 1960 são apenas dois dos vários

exemplos que podemos recolher ao longo da história moderna (DALTON; SICKLE; WELDON, 2009). Na

América Latina merece destaque o recente movimento dos “piqueteiros”, que eclodiu na Argentina diante

da incapacidade das instituições típicas da democracia representativa de processar os conflitos (VITULLO,

2007), e o movimento dos Caras Pintadas no Brasil, que pressionou pelo impeachment do presidente

Fernando Collor em 1992.

A partir dos anos de 1960, com a eclosão dos “novos movimentos sociais”, assiste-se à

expansão dessas formas de engajamento que Norris (2007, p. 639) denomina de participação cause-

oriented, fortemente ligadas às atividades de protesto, que vão reconfigurar o campo das práticas e

repertórios de ação daqueles indivíduos engajados politicamente1. Verifica-se, nesse sentido, a difusão

de formas não convencionais de participação, que podem ser também definidas como contestatórias ou

relacionadas ao protesto. Della Porta (2003, p. 92) elenca algumas das formas pelas quais essa atuação

pode se expressar2: escrever a um jornal; aderir a um boicote; autorreduzir impostos ou rendas; ocupar

edifícios; bloquear o trânsito; assinar uma petição; fazer um sit-in; participar numa greve; tomar parte

em manifestações; danificar bens materiais; utilizar violência contra pessoas.

Levando em consideração essa distinção entre modalidades de envolvimento, uma série de

investigações empíricas tem apontado para o declínio ou a estabilização das formas convencionais

(DALTON; WATTENBERG, 2001; PUTNAM, 2003) e para a ampliação das contestatórias (DELLA PORTA, 2003;

INGLEHART; CATTERBERG, 2002; NORRIS, 2007; WELZEL; INGLEHART; DEUTSCH, 2005; CATTERBERG, 2004).

Algumas dessas pesquisas têm revelado que o protesto vem sendo utilizado frequentemente por

diferentes públicos como ferramenta política para influenciar decisões governamentais (NORRIS, 2007;

MEYER; TARROW, 1998; MCADAM; TARROW; TILLY, 2001).

A crescente relevância dessa modalidade de ação tem inspirado a formulação de algumas

teorias e hipóteses sobre os fatores que favoreceriam o envolvimento dos indivíduos nas modalidades de

protesto político3. Buscando contribuir com esse debate, o presente artigo procura identificar os

atributos socioeconômicos e atitudinais relacionados à ocorrência desse tipo de comportamento

focalizando um conjunto de nações latino-americanas, utilizando para tanto dados fornecidos pela

organização Latinobarómetro. Antes dessa tarefa, todavia, procuramos identificar possíveis tendências

de evolução nos indicadores de distintas formas de contestação nessa região, considerando cada um dos

países isoladamente e também no seu agregado.

1 A pesquisa de Barnes et al. (1979) foi precursora no sentido de captar a emergência dessas novas modalidades de

participação. 2 Baquero e Prá (2007, p. 131) propõem a seguinte classificação quanto às modalidades de participação: 1) ações expressivas

(ex.: patriotismo e votar em eleições); 2) ações instrumentais (participar em campanhas); 3) comportamentos não convencionais

(movimentos de protesto, passeatas). Lúcia Avelar (2004) propõe a seguinte tipologia quanto às formas de participação: a) canal

eleitoral (voto, partidos etc.); b) canais corporativos (sindicatos, órgãos de classe); c) canal organizacional (movimentos sociais). 3 Um balanço recente sobre as principais teorias do protesto político, e que atesta a crescente importância desse tema na

literatura internacional, pode ser encontrado em Opp (2009).

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Bases individuais do protesto

Como mencionamos anteriormente, nos últimos anos diversos pesquisadores têm se dedicado

à identificação dos condicionantes ou determinantes do envolvimento dos cidadãos em modalidades de

protesto político. Considerando apenas aquelas perspectivas que enfatizam os atributos de nível

individual, procuramos nesta seção fazer uma breve revisão das principais hipóteses explicativas

atualmente disponibilizadas pela literatura sobre o assunto.

A primeira abordagem que gostaríamos de mencionar parte da teoria da privação formulada

por Theodore Gurr (1968) para afirmar que a contestação seria consequência do descontentamento

individual. Experiências de privação relativa provocadas por mudanças nas condições sociais levariam os

cidadãos a se engajar em formas alternativas de atuação política. Em estudo sobre eventos de protesto

na América Latina, com destaque para o já mencionado movimento dos piqueteiros argentinos, Mara

Loveman (1998) adota essa explicação. Essa hipótese, entretanto, parece ser menos aplicável para os

contextos das sociedades economicamente mais desenvolvidas, nas quais alguns estudos constataram a

existência de apenas fracas associações entre descontentamento e contestação pública (KAASE et al.,

1979). O sentimento individual de privação, portanto, teria efeitos distintos em nações com diferentes

níveis de desenvolvimento econômico. Esse aspecto também foi destacado pelos estudos sobre

desafeição democrática, como os de Torcal (2006) e Torcal e Montero (2006), ao identificarem bases

atitudinais distintas para o fenômeno, quando compararam novas e velhas democracias. Nesse sentido,

consideramos de fundamental importância o teste empírico das variáveis relacionadas à dimensão do

descontentamento ou desafeição sobre a participação nas distintas formas de protesto no conjunto dos

países da América Latina.

A segunda abordagem de nível microssocial que queremos destacar é aquela que enfatiza os

recursos individuais. Um primeiro esforço nessa perspectiva foi desenvolvido nos trabalhos de Milbrath

(1965) e Verba e Nie (1972), os quais, tomando como base empírica apenas as formas convencionais ou

eleitorais de participação, encontraram associações entre status social e participação. Posteriormente,

tal abordagem recebeu um tratamento analítico mais cuidadoso no trabalho de Verba, Schlozman e

Brady (1995), naquele que foi denominado de modelo do “voluntarismo cívico”. Esses autores

identificaram, através de pesquisas comparadas, uma correspondência entre recursos individuais e

coletivos (como tempo, dinheiro, habilidades, pertencimento a redes associativas) e o engajamento

político tanto nas formas convencionais de envolvimento político quanto nas modalidades relacionadas

ao protesto. Da mesma maneira, pesquisa envolvendo Espanha, Brasil e Coreia confirmou a existência de

relação positiva entre a educação dos cidadãos e o comportamento de protesto (MCDONOUGH; SHIN;

MOISÉS, 1998).

Merece destaque também uma perspectiva de nível microssocial ou individual que deriva dos

estudos sobre mudança cultural, conduzidos principalmente pelos pesquisadores vinculados ao Projeto

World Values Survey, liderado por Ronald Inglehart. O ponto de partida desse grupo é a afirmação de

uma reorientação valorativa que estaria ocorrendo principalmente em razão do desenvolvimento

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econômico experimentado a partir da segunda metade do século XX, especialmente pelas sociedades

industriais avançadas (INGLEHART, 1977; 1990; 2001; INGLEHART; WELZEL, 2009).

Dentre as várias consequências desse fenômeno cultural, no campo político, uma delas se

relacionaria aos processos de democratização, pois ele estaria associado à adoção de valores e atitudes

congruentes com essa forma de governo (INGLEHART; WELZEL, 2009). Ainda que pareça paradoxal à

primeira vista, tais orientações subjetivas também seriam acompanhadas de uma postura crítica em

relação ao funcionamento das instituições políticas e, sobretudo, pelo questionamento dos mecanismos

tradicionais de representação (INGLEHART, 1990; 2001; INGLEHART; WELZEL, 2009). O reflexo dessa atitude

crítica seria a redução significativa nas taxas de mobilização política convencional verificada nas últimas

décadas nas sociedades avançadas industrialmente. A contradição, todavia, seria apenas aparente. Esse

quadro não seria um sinal de apatia por parte dos públicos dessas nações, pois, em paralelo à redução

na participação tradicional, estaria ocorrendo processo inverso nas chamadas elite-directed political

action, ou seja, nas atividades de contestação às instituições e elites estabelecidas (NORRIS, 2007;

INGLEHART; WELZEL, 2009).

Uma vez superados os limites estritos da sobrevivência física e econômica, os indivíduos

estariam se preocupando cada vez mais com questões relacionadas à sua autoexpressão, gerando uma

“intervenção cidadã na política” (INGLEHART, 2001, p. 221). O desejo de tomar parte dos assuntos

públicos de uma maneira mais ativa e direta estaria acompanhando, portanto, a mudança pós-

materialista.

Evidências empíricas robustas têm sido apresentadas desde o final da década de 1970 para

confirmar esses argumentos (BARNES et al., 1979; NORRIS, 2007). Em perspectiva mundial, os valores

pós-materialistas estariam fortemente associados a ações políticas não convencionais, como

manifestações, passeatas, boicotes, ocupações, bem como ao interesse por política em geral.

Para os países da América Latina, porém, as evidências empíricas sobre a relação entre valores

pós-materialistas e participação não convencional são bem menos evidentes que aquelas identificadas

nos contextos das democracias avançadas (INGLEHART, 2001; RIBEIRO; BORBA, 2010).

Por fim, é preciso considerar também alguma atenção aos estudos que vinculam a atividade de

protesto à orientação ideológica individual. Segundo essa abordagem, o envolvimento em modalidades

de ação política dessa natureza seria mais comum entre os indivíduos identificados com a esquerda, que

são também os mais favoráveis a mudanças na estrutura de distribuição de poder. Algumas pesquisas

de caráter comparativo entre países têm recolhido evidências que associam o percentual de extremistas

de esquerda à maior ocorrência de protesto (POWELL, 1982; DALTON; SICKLE, 2005).

Essa pequena amostra da diversidade de explicações para esse relevante fenômeno aponta para

a necessidade de testes empíricos no sentido de identificar de forma comparativa os rendimentos

explicativos de cada conjunto de atributos e características individuais enfatizados. Essa tarefa é mais

necessária ainda em contextos sociais e econômicos como o latino-americano, em que os níveis de

desigualdade social são ainda muito elevados e os efeitos da mudança cultural pós-materialista atingem

apenas uma reduzida parcela da população. A realidade dos países dessa região pode apresentar

desafios relevantes para as hipóteses que sumarizamos anteriormente, uma vez que todas foram

produzidas originalmente para explicar o protesto em nações economicamente desenvolvidas. Em países

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como o Brasil, por exemplo, a questão da insatisfação com o regime democrático continua sendo um

fator aparentemente muito relevante e que merece ser analisado cuidadosamente.

Questões metodológicas

Utilizamos nessa investigação os dados da série histórica de pesquisas conduzidas pela

organização Latinobarómetro entre 1995 e 2007, para um conjunto de 17 países4. Essa base traz uma

bateria de questões relativas ao envolvimento nas seguintes modalidades de contestação: manifestações

autorizadas, protestos não autorizados, bloqueios de tráfego, saques, ocupações de edifícios e fábricas,

abaixo-assinados e boicotes. Como ocorre frequentemente em empreendimentos de pesquisa dessa

natureza, os questionários aplicados pelo Latinobarómetro sofrem alterações em cada uma de suas

sondagens, portanto, em alguns momentos a análise da evolução do envolvimento da população

investigada em algumas modalidades foi prejudicada ou inviabilizada pela ausência de informações.

Esses problemas serão explicitados mais à frente, quando nos ocuparmos da análise desses dados.

Por ora, entretanto, é preciso justificar a definição do ano 2007 como marco final da série.

Como é sabido pela comunidade de pesquisadores em opinião pública, o Latinobarómetro mantém seus

dados mais atuais para uso exclusivo de sua rede interna de pesquisadores, o que é prática comum entre

os principais institutos de pesquisa internacionais. Em razão dessa política de disponibilização de seus

bancos, a última base com acesso livre até o presente momento é a de 2010, ano em que, infelizmente,

a bateria de perguntas sobre modalidades de protesto não foi aplicada. Essa ausência também se

verifica em 2009, e em 2008 esse bloco de questões foi incluído em apenas algumas unidades nacionais,

inviabilizando o seu emprego nos modelos multiníveis que utilizamos nessa investigação.

Na primeira parte da análise nos dedicamos, portanto, à identificação do quadro atual da

contestação entre os países da região por meio da aplicação de técnicas de estatística descritiva. Na

segunda parte da análise, na qual procuramos identificar os fatores individuais que explicam esse tipo de

engajamento, nos valemos apenas dos dados da última pesquisa, conduzida em 2007. Nesse ano apenas

três modalidades fizeram parte do questionário: abaixo-assinados, manifestações autorizadas e

protestos não autorizados. Essas informações foram coletadas por meio de perguntas que comportavam

as respostas “fiz”, “poderia fazer” e “nunca faria” e, como nosso interesse é identificar fatores

condicionantes do comportamento, reduzimos nossa análise apenas à primeira opção, reunindo as duas

outras opções em uma mesma categoria de abstenção. O resultado desse procedimento é a criação de

três variáveis binárias que expressam o envolvimento dos indivíduos nessas três modalidades de

protesto. Devido à natureza dessas medidas, a análise multivariada foi realizada por meio de modelos de

regressão logística binária, sendo especificados modelos para cada modalidade, levando em

consideração os dados de cada país em separado e também para o agregado latino-americano.

4 As bases de dados e informações técnicas podem ser obtidas através do endereço <www.latinobarometro.org>. Os países são: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá,

Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

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No campo das variáveis independentes, procuramos selecionar aquelas medidas disponíveis

que melhor representam as principais hipóteses explicativas mencionadas anteriormente5.

Sobre a hipótese do descontentamento, autores já mencionados como Gurr (1968) e Loveman

(1998) defendem que as experiências de privação relativa dos indivíduos em condições desfavoráveis

conduziriam ao envolvimento em modalidades alternativas de expressão das suas demandas e anseios,

algumas delas de natureza contestatória. Para representar em nosso modelo essa afirmação,

selecionamos quatro variáveis que se relacionam a distintas dimensões do descontentamento individual.

A primeira delas, de natureza bastante ampla, diz respeito ao nível de satisfação dos entrevistados em

relação à sua vida em geral (SAT). Mais específica, a segunda variável se refere à avaliação dos

indivíduos em relação à situação econômica nacional (SAT_EC). Tratando da dimensão política, a terceira

medida está relacionada à avaliação que fazem os cidadãos do funcionamento concreto da democracia

em seus países (SAT_DEM). Finalmente, também sobre o aspecto político, a quarta variável incluída é

um índice de confiança nas principais instituições democráticas6 (IND_CONF).

A segunda abordagem enfatiza os recursos individuais e coletivos e associa o ativismo político

geral a atributos como escolaridade, classe social, status de maioria étnica e nível de inserção social

(VERBA; SCHLOZMAN; BRADY, 1995; MCDONOUGH; SHIN; MOISÉS, 1998). Para verificar o impacto dos recursos

individuais sobre o envolvimento em protestos, incluímos a escolaridade (ESCOL) como medida dos

recursos intelectuais e também materiais, uma vez que está fortemente associada à renda.

Reconhecemos, todavia, que pode haver dissonância entre rendimento e escolarização e que isso pode

inclusive ser um fator potencializador do descontentamento e da contestação, entretanto, como não é

possível testar essa hipótese em razão de a variável renda não constar nos bancos de dados, somos

obrigados a realizar tal redução e assumimos as limitações impostas por essa escolha. Para além dessa

concepção restrita de recursos, resolvemos incluir também as variáveis relativas aos níveis de interesse

por política (INT_POL) e eficácia política subjetiva (EFIC_POL). Por fim, incluímos uma variável integrada

de envolvimento dos indivíduos em organizações e associações, como uma medida dos recursos

associativos e do envolvimento em redes de mobilização7, concebidos pela literatura recente como

relevantes impulsionadores do engajamento político contestatório (IND_PART).

Na seção anterior (“Bases individuais de protesto”), incluímos entre essas abordagens as

pesquisas sobre mudança cultural que tendem a associar o ativismo de protesto à adesão aos chamados

valores pós-materialistas (INGLEHART, 1977; 1990; 2001; INGLEHART; WELZEL, 2009). Em razão da falta de

5 Ver “Apêndice metodológico” contendo informações sobre as perguntas que geraram as variáveis e suas respectivas

codificações ao final deste artigo. 6 Essa medida é composta pela confiança no Poder Judiciário, no Congresso/Parlamento e nos partidos. O Alpha de Cronbach foi

de 0,725, o que pode ser considerado um sinal de consistência interna mesmo em uma perspectiva mais rigorosa (NUNNALY,

1978; DEVELLIS, 1991). Adicionalmente foi conduzida análise fatorial que confirmou a pertinência da redução em termos

dimensionais. Considerando apenas um único fator, a variação conjunta explicada é superior a 64%. 7 As associações e organizações consideradas são partidos, sindicatos/associações profissionais/empresariais, organização

esportiva/recreativa/cultural, ou outro tipo de organização. Nesse caso o Alpha de Cronbach resultou em 0,5, o que está um

pouco abaixo do limite mínimo de 0,6, definido para as ciências sociais (DEVELLIS, 1991). Como esse valor está próximo do

exigido e alguns trabalhos têm identificado uma tendência de subestimação da consistência interna em questões dicotômicas

(SUN et al., 2007; MAROCO; GARCIA-MARQUES, 2006), conduzimos análise fatorial para verificar a pertinência da redução. Os

resultados desse procedimento indicaram que com um fator a explicação da variação conjunta é de 34% e com dois, de 53%.

Considerando apenas um único componente, todas as cinco variáveis carregam com mais de 0,4, o que é apontado como um

limite seguro para a redução de dimensionalidade (HAIR; TATHAN; ANDERSON, 1984). Diante desses resultados e dos pressupostos

teóricos que orientam a hipótese dos recursos associativos, decidimos pela construção da medida integrada.

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dados sobre essa questão na base por nós utilizada, somos obrigados a assumir essa deficiência em

nosso artigo. Na realidade, a identificação do impacto dessas novas prioridades valorativas sobre o

fenômeno objeto de nossa atenção demandaria a utilização da base de dados do projeto World Values

Survey, entretanto, o volume de países latino-americanos cobertos por essa organização é pequeno se

comparado ao coberto pelo Latinobarómetro (9 contra 18). Para tentar contornar a falta de informações

sobre a mudança cultural, incluímos em nosso modelo uma medida sobre o apoio individual à

democracia (AP_DEM). Ainda que essa variável não seja equivalente ao índice de pós-materialismo, os

pesquisadores vinculados a essa abordagem têm afirmado repetidamente que essa reorientação cultural

estaria associada à adoção de valores e atitudes congruentes com a democracia (INGLEHART; WELZEL,

2009).

Para finalizar, verificamos anteriormente que alguns pesquisadores procuram vincular a

atividade de protesto à orientação ideológica individual. As evidências apresentadas mostram que o

envolvimento em modalidades de contestação é mais frequente entre os identificados com a esquerda

(POWELL, 1982; DALTON; SICKLE, 2005). Para testar o impacto dessa dimensão, incluímos em nossas

análises uma medida do posicionamento ideológico dos indivíduos (POS_IDEOL).

A evolução do protesto político na América Latina

Inicialmente buscamos verificar a evolução das várias formas de protesto político nos países

abrangidos pelas pesquisas do Latinobarómetro entre 1995 e 20078. A Tabela 1 apresenta as

informações sobre participação em manifestações. O dado mais relevante é o declínio da participação

nessa modalidade em praticamente todos os países quando comparamos os primeiros anos da pesquisa

com os anos mais recentes. Tal situação foi verificada mesmo em países com forte tradição em

manifestações de rua, como é o caso da Argentina. O único país que apresenta certo crescimento nas

taxas de participação nessa modalidade é a Venezuela, mesmo assim com valores muito próximos aos

registrados na primeira onda de pesquisas em 1995. O referido declínio pode ser verificado quando

analisamos os dados da América Latina como um todo, em que 21% dos respondentes haviam

participado em 1995 contra 13% em 2007. Na interpretação desses dados é importante levar também

em consideração que o Latinobarómetro produz essa informação através de uma pergunta que não limita

um espaço de tempo válido para a prática das ações políticas aos últimos 12 meses, de modo que o

entrevistado pode se referir ao passado recente ou distante, o que pode levar a problemas de

sobrerrepresentação das respostas afirmativas para cada ano.

8 Os dados iniciais, principalmente de 1995, revelam um contingente elevado de participantes em manifestações, sobretudo se

fizermos o exercício de extrapolação do contingente amostral para o populacional. O significado desses resultados, entretanto,

deve ser analisado levando em consideração que a questão não se refere ao envolvimento ao longo dos últimos 12 meses

(tomando como referência a data de aplicação do questionário) e que reúne manifestações com intensidades distintas, desde

passeatas pedindo melhorias pontuais na localidade de residência até eventos mais gerais sobre questões nacionais. Para além

desses pontos, é necessário sempre levar em consideração possíveis sobrestimações derivadas da distância entre o

comportamento efetivo e as declarações de ações dos informantes em pesquisas de survey.

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Tabela 1

Participação em manifestações, 1995-2007 (%)

Ano

País 1995 1996 1998 2000 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Argentina 20,1 18,0 13,6 18,1 16,8 14,3 16,5 14,4 8,6 17,6

Bolívia – 28,5 25,7 23,4 11,5 15,0 15,1 18,0 11,0 12,9

Brasil 27,1 29,8 22,4 23,3 24,6 11,8 13,3 2,7 16,2 14,0

Colômbia – 20,2 19,8 22,8 11,4 10,2 13,3 12,9 13,9 15,3

Costa Rica – 33,8 25,9 24,0 14,3 10,4 10,5 11,7 12,7 15,7

Chile 24,3 19,1 18,2 18,1 11,5 9,3 12,8 14,0 9,5 8,7

Equador – 33,3 28,0 23,1 9,1 9,6 13,6 12,8 5,7 5,3

El Salvador – 18,4 24,1 7,8 3,7 4,4 4,9 4,0 1,8 6,7

Guatemala – 24,9 9,3 12,6 7,0 4,4 6,5 6,4 12,1 8,0

Honduras – 17,0 20,7 13,5 5,0 9,0 13,3 6,5 10,5 11,8

México 31,6 14,7 19,4 11,7 19,6 14,7 16,2 23,3 9,8 14,7

Nicarágua – 26,6 24,5 23,2 15,7 17,6 9,2 12,4 10,6 12,7

Panamá – 19,0 30,0 18,7 8,5 9,1 10,8 8,2 6,5 9,6

Paraguai 23,5 17,2 14,6 16,6 10,8 15,6 7,7 12,7 16,8 14,1

Peru 21,3 20,2 21,5 19,5 16,7 17,1 16,5 14,3 12,1 12,0

República

Dominicana – – – – – – 12,3 12,4 13,7 11,6

Uruguai 35,9 35,8 21,9 22,4 23,9 20,2 17,8 21,0 19,6 22,9

Venezuela 22,2 18,1 16,5 20,0 10,5 14,4 17,1 13,3 25,1 23,0

América

Latina 21,3 24,7 20,9 18,9 13,7 12,3 13,0 13,1 12,1 13,3

Fonte: Latinobarómetro (1995, 1996, 1998, 2000, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007).

Observação: a) de 1995 a 2002, os questionários não distinguiam manifestações autorizadas e não

autorizadas. Consideramos esses dados como referentes a manifestações autorizadas; b) em 2004, a

redação da questão se refere a “manifestação pública”; c) foram desconsiderados os dados de 2001,

pois a redação da questão juntava manifestações, greves e protestos.

No que se refere à participação em protestos não autorizados, a pergunta somente foi incluída

nos surveys realizados a partir de 2003. Os resultados indicam a ausência de um padrão nítido.

Enquanto alguns países, como Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala,

Honduras, Panamá, Paraguai, República Dominicana e Venezuela, tiveram crescimento nessas

modalidades, os demais apresentaram estabilidade ou mesmo declínio. Considerando a América Latina

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como um todo, verificamos um pequeno aumento na participação, de modo que 5,3% dos latino-

americanos haviam participado de protestos em 2003, passando para 7,2% em 2004, declinando para

3,4% em 2005 e crescendo novamente para 7,2 em 2007.

Tabela 2

Participação em protestos

não autorizados, 2003-2007 (%)

Ano

País 2003 2004 2005 2007

Argentina 7,4 4,8 3,4 9,8

Bolívia 7,2 11,8 5,1 6,8

Brasil 5,2 2,5 2,0 10,8

Colômbia 3,2 6,3 2,5 5,6

Costa Rica 3,5 5,8 3,4 7,4

Chile 5,5 6,9 5,1 4,7

Equador 5,7 12 4,3 4,2

El Salvador 2,2 2,0 1,5 4,9

Guatemala 1,3 3,8 1,5 5,7

Honduras 2,6 9,4 1,8 7,8

México 10,4 10,3 6,2 7,7

Nicarágua 4,0 6,0 2,3 3,9

Panamá 5,4 9,3 2,1 8,8

Paraguai 6,4 5,7 4,3 9,8

Peru 6,1 9,3 3,3 3,9

República Dominicana – 7,6 3,1 9,7

Uruguai 7,8 5,3 3,8 7,8

Venezuela 4,4 9,4 3,9 10,6

América Latina 5,3 7,2 3,4 7,2

Fonte: Latinobarómetro (2003, 2004, 2005, 2007).

Observação: Em 2004, a redação se refere a “protestos ilegais”.

A Tabela 3 apresenta os dados sobre participação em bloqueio de tráfego. Aqui também

verificamos um declínio em praticamente todos os países, com exceção da Costa Rica. A participação

nessa modalidade declinou mesmo em um país como a Argentina, cujos bloqueios de tráfego se

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constituíram num significativo repertório dos movimentos sociais durante a crise política e econômica

vivenciada pelo país (VITULLO, 2007). Considerando a América Latina, o percentual parte de 6,7 pontos,

declina logo em seguida, mantendo-se na faixa dos 6% entre 1996 e 2000, e chega a 3,4% em 2005.

Tabela 3

Participação em bloqueios de tráfego, 1995-2005 (%)

Ano

País 1995 1996 1998 2000 2005

Argentina 6,8 4,2 2,7 5,0 3,3

Bolívia – 17,0 14,3 13,1 9,3

Brasil 5,3 7,9 5,3 5,4 1,7

Colômbia – 5,5 8,0 5,0 3,3

Costa Rica – 3,5 5,4 2,7 4,1

Chile 4,7 4,2 3,2 3,0 1,8

Equador – 11,5 12,6 11,7 4,6

El Salvador – 4,1 10,4 2,9 1,5

Guatemala – 10,4 2,5 9,3 2,3

Honduras – 3,4 3,1 2,2 2,9

México 7,9 4,8 11,7 6,1 4,6

Nicarágua – 3,2 4,7 5,4 2,3

Panamá – 4,8 10,0 4,3 2,0

Paraguai 3,6 2,8 1,2 2,4 3,4

Peru 3,1 2,3 4,3 2,9 3,0

República

Dominicana – – – – 3,1

Uruguai 5,0 5,5 4,2 4,2 2,8

Venezuela 8,4 8,4 7,8 12,0 4,8

América Latina 6,7 6,4 6,6 5,9 3,4

Fonte: Latinobarómetro (1995, 1996, 1998, 2000 e 2005).

A Tabela 4 apresenta os dados sobre participação em saques, modalidade que envolve maiores

custos, principalmente relativos ao risco de conflito com agentes públicos da lei e profissionais de

segurança privada. Tais custos, como seria de esperar, manifestam-se em taxas de participação muito

baixas e estáveis na maioria dos países. Em razão da ilegalidade do ato, é importante também

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considerar na análise desses indicadores o problema da subdeclaração. Mesmo com o anonimato

normalmente garantido nas pesquisas de survey, é plausível supor que parte dos entrevistados que se

envolveram em saques omita essa informação, por temer possíveis responsabilizações. Interessante

verificar que os países com maiores taxas de participação são Venezuela e Bolívia, os quais têm

vivenciado relativa instabilidade institucional nos últimos anos9.

Tabela 4

Participação em saques, 1995-2005 (%)

Ano

País 1995 2002 2005

Argentina 0,4 0,5 0,9

Bolívia – 1,7 1,4

Brasil 0,4 0,6 0,7

Colômbia – 0,5 0,3

Costa Rica – 0,6 0,2

Chile 0,7 0,9 0,1

Equador – 3,1 1,0

El Salvador – 0,6 0,4

Guatemala – 0,0 1,2

Honduras – 0,3 0,8

México 1,1 1,4 1,3

Nicarágua – 0,5 0,6

Panamá – 2,5 0,8

Paraguai 1,0 0,6 0,8

Peru 0,6 0,8 0,7

República

Dominicana – – 3,1

Uruguai 0,2 0,2 0,7

Venezuela 3,5 1,8 1,7

América Latina 1,0 1,0 3,0

Fonte: Latinobarómetro (1995, 2002 e 2005).

Observação: Em 1995, a questão se referia a saques e distúrbios.

A ocupação de edifícios e fábricas também se manteve estável e com baixas taxas em

praticamente todos os países. As maiores taxas de participação foram encontradas no Uruguai, na

9 Sobre o tema da participação política na Venezuela, ver Boidi e Seligson (2008). Para a situação da Bolívia, ver Morales

(2012). Um balanço recente dos protestos na América Latina encontra-se em Gutierrez (2012).

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República Dominicana e na Venezuela, que ficaram acima dos 2% em 2005. Nos demais, verifica-se o

declínio ou a estabilização da participação nessa modalidade.

Tabela 5

Participação em ocupações de edifícios e fábricas, 1995-2005 (%)

Ano

País 1995 1996 1998 2000 2002 2005

Argentina 2,2 1,5 1,6 1,4 1,1 1,3

Bolívia – 1,9 3,6 1,5 1,5 1,7

Brasil 2,2 1,9 2,0 2,2 0,7 0,4

Colômbia – 2,2 6,0 1,9 0,2 0,8

Costa Rica – 2,1 5,2 0,9 0,4 0,8

Chile 1,4 2,5 1,1 1,5 1,6 1,3

Equador – 3,9 6,2 3,4 2,5 1,5

El Salvador – 3,1 9,4 2,0 0,7 0,7

Guatemala – 5,6 1,9 8,5 0,1 1,6

Honduras – 3,0 4,6 0,8 1,0 1,7

México 1,2 2,9 8,0 3,4 3,0 1,6

Nicarágua – 3,8 1,4 3,1 0,6 0,5

Panamá – 2,3 2,5 1,8 1,5 0,5

Paraguai 1,2 0,8 0,4 1,2 0,4 1,2

Peru 0,8 1,6 2,8 1,4 0,9 0,9

República

Dominicana – – – – – 2,8

Uruguai 2,3 5,0 3,5 3,4 2,7 3,0

Venezuela 2,0 3,5 5,7 5,7 2,5 2,3

América Latina 1,7 2,9 4,0 2,6 1,3 1,4

Fonte: Latinobarómetro (1995, 1996, 1998, 2000, 2002 e 2005).

Observação: Em 1995, 1996, 1998 e 2000, a questão também envolvia “terreno”.

A Tabela 6 apresenta os dados sobre participação em abaixo-assinados. Como se sabe, essa é,

entre as modalidades “não convencionais”, aquela que envolve menores custos para os ativistas, e por

isso os indicadores gerais de participação sempre estão entre os mais altos. Considerando a América

Latina como um todo, verificamos certa estabilidade nos dados: no ano de 2002, 17,4% dos

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respondentes disseram ter participado de abaixo-assinados. Em 2004, foram 16,5%, declinando para

13,5% em 2006 e crescendo para 16,6% em 2007. Chama a atenção a variação dos dados em alguns

países como o Brasil, que passa de 23,9% em 2002 para 5% em 2004, crescendo para 36,5% em 2006,

declinando novamente para 7% em 2007. Bolívia e Argentina também experimentam variação

semelhante em 2006.

Tabela 6

Participação em abaixo-assinados/petições,

2002-2007 (%)

Ano

País 2002 2004 2005 2006 2007

Argentina 22,4 32,8 27,5 13,3 26,1

Bolívia 10,5 14,7 19,3 7,9 13,2

Brasil 23,9 5,0 6,7 36,5 7,0

Colômbia 8,8 19,3 17,3 15,7 17,1

Costa Rica 16,7 23,8 15,4 13,6 20,0

Chile 12,7 16,0 19,8 8,5 11,1

Equador 15,6 10,6 12,8 5,5 6,9

El Salvador 11,4 8,6 7,5 3,9 11,1

Guatemala 12,9 12,6 10,8 9,6 9,5

Honduras 14,8 13,7 7,0 8,6 15,8

México 33,5 16,5 35,4 13,5 24,3

Nicarágua 10,7 10,5 10,8 5,0 12,2

Panamá 8,1 13,7 10,8 7,4 14,4

Paraguai 12,1 9,2 14,0 16,2 17,7

Peru 19,6 21,8 15,8 10,7 14,7

República

Dominicana – 15,1 11,5 20,1 21,0

Uruguai 39,1 28,3 28,8 24,6 30,3

Venezuela 16,5 19,2 15,3 18,8 24,3

América

Latina

17,4 16,5 16,3 13,5 16,6

Fonte: Latinobarómetro (2002, 2004, 2005, 2006 e 2007).

A última forma de participação analisada foi boicotes. O Latinobarómetro somente incluiu tal

modalidade na pesquisa de 2004. Os dados indicam variações significativas entre os países, sendo que

as taxas mais altas foram verificadas na Colômbia (27,7%), no Equador (26,9%), no Peru (26,9%), em

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Honduras (23,3%), no México (24,1%) e na República Dominicana (20,5%). O Brasil é o país que

apresenta o menor percentual de participantes de boicotes (5%) entre aqueles incluídos na amostra.

Tabela 7

Participação em boicotes,

2004 (%)

País 2004

Argentina 24,8

Bolívia 18,2

Brasil 5,0

Colômbia 27,7

Costa Rica 18,1

Chile 19,8

Equador 26,9

El Salvador 11,1

Guatemala 16,7

Honduras 23,3

México 24,1

Nicarágua 12,2

Panamá 12,9

Paraguai 10,3

Peru 26,9

República Dominicana 20,5

Uruguai 17,9

Venezuela 15,9

América Latina 18,9

Fonte: Latinobarómetro (2004).

Analisando os dados em seu conjunto, o que identificamos foi uma estabilização ou um declínio

das várias modalidades de expressão do protesto político na América Latina, nos últimos anos. Esse

panorama favorece a conclusão de que, ao menos em relação ao período analisado, os países dessa

região contrariam a tendência à ampliação da contestação documentada pela literatura especializada

dos últimos anos (DELLA PORTA, 2003; INGLEHART; CATTERBERG, 2002; NORRIS, 2007; WELZEL; INGLEHART;

DEUTSCH, 2005; CATTERBERG, 2004).

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Outro dado significativo é que os países que experimentaram crescimento em algumas

modalidades são justamente aqueles que passaram (ou passam) por crises econômicas e políticas, como

são os casos de Venezuela, Bolívia e Argentina. Dessa forma, considerando apenas os dados agregados,

parece ser plausível a hipótese que relaciona tais modalidades de participação com a insatisfação da

cidadania, seja com suas condições de vida, seja com a economia ou com aspectos ligados à

legitimidade do sistema político (GURR, 1968; LOVEMAN, 1998; TORCAL; MONTERO, 2006).

Na próxima seção apresentamos os testes empíricos de nosso artigo, em que verificamos as

bases individuais do protesto político nos países da América Latina.

Condicionantes individuais do protesto

Uma primeira observação com relação aos dados é a aparente falta de padrão quanto ao

comportamento das variáveis entre os diferentes países. Porém, analisando com mais detalhes, podemos

identificar algumas tendências em termos de efeito exercido sobre o conjunto das nações latino-

americanas.

A Tabela 8 apresenta os resultados para participação em abaixo-assinados. Iniciando pelas

variáveis relacionadas ao que classificamos anteriormente como hipótese do descontentamento,

verificamos que satisfação com a vida se mostrou um preditor irrelevante em todos os países

isoladamente. Apenas quando consideramos o conjunto dos dados como representantes da região é que

o nível de significância alcança o aceitável, o que nos leva a considerar seriamente um possível efeito do

tamanho da amostra, uma vez que comporta mais de 15 mil casos. Se consideramos de fato o efeito

como significativo, cada avanço nessa escala de satisfação elevaria em 12,2% a chance de os

entrevistados fazerem parte do grupo que afirmou ter praticado esse ato.

A situação é distinta quando consideramos a satisfação com a economia nacional, pois essa

medida se mostrou relevante em três países: Colômbia, Costa Rica e Guatemala. Para os dois primeiros

esse efeito é negativo, indicando que maior satisfação reduz a probabilidade de envolvimento. No caso

colombiano, cada elevação na variável preditora reduz a chance em 38,7%, enquanto na Costa Rica esse

fator de redução é de 27,6%. Inversamente, o efeito entre os entrevistados da Guatemala é positivo,

mostrando que cada elevação da satisfação com essa dimensão econômica aumenta a probabilidade de

participar de abaixo-assinados em 44%.

Os efeitos da satisfação com a democracia também se limitam a apenas três países, Panamá,

Paraguai e Uruguai, sendo positivos em todos. No primeiro país, cada elevação no nível de satisfação

com a democracia nacional aumenta em mais de 55% a chance de participar dessa modalidade. Entre

os paraguaios esse impacto é de 47,9% e entre os uruguaios, de 34,8%.

A confiança nas instituições democráticas também teve seus efeitos limitados a três países:

México, Nicarágua e Venezuela. Em todos esses casos a confiança está positivamente associada à

participação, o que contraria em certa medida a expectativa inicial de que o protesto seria resultante da

desconfiança em relação às instituições tradicionais. No México, cada elevação na medida de confiança

produz incremento de 13,5% na probabilidade de envolvimento. Na Nicarágua, esse efeito é de 21,5

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pontos percentuais e, na Venezuela, de 9%. Acreditamos que esses resultados estejam associados a uma

percepção de que os responsáveis pela condução dessas instituições serão responsivos aos seus pleitos

ou reclamações contidas nos abaixo-assinados. A participação nessa modalidade, portanto, seria

entendida menos como uma forma de protesto e mais como mecanismos de encaminhamento de

demandas para instituições nas quais se deposita alguma confiança e que possivelmente serão sensíveis

às demandas expressas no documento.

Passando ao bloco de variáveis relacionadas à dimensão dos recursos, é possível verificar uma

maior generalidade de efeitos. Os provocados pela escolaridade, por exemplo, se estendem a cinco

países: Argentina, Colômbia, Costa Rica, Equador e México. Em todos eles o seu impacto é positivo,

indicando que, quanto maior a escolarização dos cidadãos, maior a chance de envolvimento na

modalidade. Os efeitos vão de 5,5%, no caso mexicano, a 11,6%, no equatoriano.

Interesse por política é bem mais abrangente, mostrando-se relevante no contexto de 13 países,

provocando em todos eles efeitos positivos consideráveis. O destaque aqui vai para El Salvador, pois

cada elevação na medida de interesse produz aumento de mais de 80% na chance de participar de

abaixo-assinados. O menor efeito, porém ainda expressivo, foi verificado no Uruguai, com 30,3 pontos

percentuais para cada mudança na variável preditora.

Ainda que presente em um conjunto menor, o sentimento de eficácia política também mostrou

efeitos significantes sobre a participação. Na Argentina, Bolívia, Colômbia, Nicarágua e Uruguai, os

efeitos foram positivos, indo de 20,1% a 45,4%. Apenas entre os equatorianos essa situação se inverte, e

elevações na escala utilizada para medir esse sentimento conduzem à redução de 33,9% na chance de

envolvimento na modalidade em questão.

Fechando essa dimensão dos recursos, verificamos que os efeitos da participação em

associações/organizações são também generalizados, atingindo 13 países, todos de forma positiva. O

destaque aqui fica por conta do Paraguai, país no qual o efeito de cada elevação no índice dobra as

chances de envolvimento em abaixo-assinados. Nos demais países, esse impacto também é expressivo,

sendo o menor verificado entre os venezuelanos (29%).

O apoio à democracia também exerceu efeitos positivos, porém apenas em cinco casos: Bolívia,

Brasil, Costa Rica, Peru e Uruguai. O maior efeito foi encontrado entre os bolivianos, com impacto de

mais de 100%, e o menor, entre uruguaios, com efeito de 42,1%. Pelo menos entre esses países, o

envolvimento nessa modalidade está associado a uma adesão normativa à democracia como forma de

governo.

Por fim, o autoposicionamento ideológico dos entrevistados se revelou preditor importante em

quatro países: Bolívia, Equador, Uruguai e Honduras. Nos três primeiros o efeito é compatível com a

expectativa teórica de que a participação em modalidades de protesto estaria associada a uma

orientação de esquerda. No caso hondurenho, todavia, esse efeito é positivo, com cada deslocamento em

direção à direita do espectro ideológico conduzindo a mais de 13% de aumento na probabilidade de

participação.

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RIBEIRO, E.; BORBA, J. Protesto político na América Latina: tendências recentes...

205

Tabela 8

Preditores da participação em abaixo-assinados

Fonte: Latinobarómetro (2007).

Observação: * Significância < 0,05.

Pseudo R2 (Nagelkerke): Argentina (0,17), Bolívia (0,15), Brasil (0,14), Colômbia (0,13), Costa Rica (0,13), Chile (0,14), Equador

(0,09), El Salvador (0,24), Guatemala (0,10), Honduras (0,05), México (0,09), Nicarágua (0,17), Panamá (0,08), Paraguai (0,13),

Peru (0,09), Uruguai (0,21), Venezuela (0,12), República Dominicana (0,09) e América Latina (0,10).

Com relação à participação em manifestações autorizadas (Tabela 9), a medida de satisfação

geral com a vida se comportou de maneira bastante distinta da verificada quando analisamos a

modalidade abaixo-assinado. Dessa vez o seu impacto foi significativo para seis países: Equador,

Guatemala, Honduras, Panamá, República Dominicana e Uruguai. Em todos eles o impacto desse

preditor foi positivo, merecendo destaque o caso do Equador, no qual a elevação de um ponto na escala

dobra a probabilidade de participação. Os demais efeitos são também expressivos, sendo o menor

Preditores

Exp(B)

País Sat Sat_ec Sat_dem Ind_conf Escol Int_pol Efic_pol Ind_part Ap_dem Pos-ide Contanst

Argentina 0,926 1,058 1,176 0,963 1,087* 1,356* 1,264* 1,542* 1,052 0,808 0,191*

Bolívia 1,291 0,993 0,926 1,124 1,026 1,489* 1,404* 0,909 2,053* 0,902* 0,007*

Brasil 1,214 1,156 0,883 0,912 1,020 1,781* 0,980 1,769* 1,488* 1,007 0,014*

Colômbia 0,893 0,613* 1,068 0,991 1,093* 1,194 1,201* 1,747* 1,173 1,017 0,059*

Costa Rica 0,980 0,724* 1,095 0,896 1,063* 1,430* 1,136 1,709* 1,447* 1,000 0,054*

Chile 1,208 0,914 0,885 1,052 1,072 1,344 1,191 1,778* 1,340 0,959 0,014*

Equador 0,987 1,062 1,036 1,078 1,116* 1,205 0,661* 1,348 0,932 0,810* 0,095*

El Salvador 1,264 0,800 1,055 0,910 1,055 1,824* 0,879 1,741* 1,017 0,925 0,038*

Guatemala 1,087 1,440* 1,209 1,034 1,041 1,438* 1,099 1,177 0,948 1,096 0,017*

Honduras 1,151 0,837 1,054 0,966 1,048 1,155 0,864 1,123 0,928 1,131* 0,084*

México 0,925 0,935 1,130 1,135* 1,055* 1,329* 1,097 1,379* 1,072 0,969 0,086*

Nicarágua 1,070 0,801 1,044 1,215* 1,050 1,304* 1,371* 1,636* 0,906 1,002 0,024*

Panamá 1,106 0,827 1,552* 1,011 1,012 1,397* 1,020 1,245 1,065 0,910 0,107*

Paraguai 1,234 0,727 1,479* 0,994 0,994 0,998 1,006 2,096* 1,044 1,095 0,070*

Peru 1,069 1,163 0,940 0,949 1,046 1,350* 1,200 1,332* 1,666* 0,987 0,025*

República

Dominicana 1,076 1,001 0,833 0,975 0,987 1,333* 1,005 1,521* 1,173 1,049 0,124*

Uruguai 1,167 0,912 1,348* 0,939 1,050 1,303* 1,454* 1,476* 1,421* 0,878* 0,048*

Venezuela 1,061 1,005 0,912 1,090* 0,964 1,567* 1,074 1,290* 1,218 1,020 0,093

América

Latina 1,122* 0,884* 1,092* 1,037* 1,045* 1,430* 1,122* 1,399* 1,180* 0,972* 0,044*

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 188–216

206

encontrado entre os uruguaios, com impacto de 37,2% sobre essa chance de envolvimento. Esses

resultados contrariam diretamente a hipótese do descontentamento, uma vez que conduzem à conclusão

de que são justamente os mais satisfeitos os que se envolvem em manifestações autorizadas.

Situação menos definida se verifica no que diz respeito à satisfação com a dimensão

econômica, que se mostrou relevante apenas para Argentina e El Salvador, inclusive com efeitos

inversos. No primeiro país, elevações na satisfação conduzem a aumento na probabilidade de

envolvimento na ordem de 37%. No segundo, o impacto é negativo e cada elevação da medida de

avaliação da situação econômica nacional reduz essa probabilidade em quase 50%. Ou seja, apenas no

caso salvadorenho encontramos amparo à afirmação de que a satisfação reduz a contestação.

O efeito de satisfação com a democracia também não se mostrou um preditor recorrente entre

os países, atingindo níveis de significância estatística apenas no Panamá e no Uruguai, em ambos com

impacto positivo. Os efeitos sobre a probabilidade de envolvimento nessa segunda modalidade são de

47% e 36%, respectivamente.

De forma semelhante, o índice de confiança nas instituições também não se caracteriza como

preditor importante entre o grupo de nações, uma vez que produziu efeito apenas na Nicarágua. Nesse

país, cada elevação na escala de confiança amplia em 26,3% a probabilidade de os indivíduos se

envolverem nessa modalidade de participação.

Visando a uma síntese acerca da dimensão do descontentamento, inicialmente destacamos o

fato de os preditores não generalizarem seus efeitos no conjunto dos países. A exceção, como já

mencionamos, é a satisfação geral com a vida, que atinge seis países. Chama atenção também o efeito

positivo das variáveis desse bloco que se mostraram relevantes, o que contraria a maior parte da

literatura que se dedica à análise da relação entre contestação e descontentamento (GURR, 1968;

LOVEMAN, 1998). No contexto latino-americano, não são os menos satisfeitos (ou mais descontentes) que

se envolvem nessas manifestações, mas sim aqueles que avaliam sua situação geral como positiva.

Passando ao bloco de variáveis relacionadas à teoria dos recursos, a escolaridade se apresenta

como uma variável relevante apenas para quatro países: Colômbia, Costa Rica, México e Uruguai. Em

todos esses casos, o efeito é positivo, ainda que reduzido, indo de 5,3% a 9,2%.

A situação é bastante distinta quando consideramos a variável interesse por política, cujos

efeitos significativos se generalizaram entre os países. Apenas Guatemala, Honduras, México e Paraguai

estão excluídos dessa lista. Vale lembrar que essa distinção entre escolaridade e interesse também se

apresentou na primeira modalidade de participação analisada neste artigo. Como esperado, todos os

efeitos foram positivos, com destaque para Equador e El Salvador, nos quais elevações na escala de

interesse dobram as chances de envolvimento em manifestações.

O sentimento de eficácia política, por sua vez, produziu efeitos significativos em seis países,

sendo que na maioria deles o seu impacto é positivo. Nesse grupo majoritário, os efeitos vão de 24% a

45,7%. A única exceção se verifica no caso equatoriano, no qual cada elevação nesse preditor reduz a

probabilidade de envolvimento em 43,6%.

O efeito mais generalizado sobre o conjunto de países foi produzido pelo índice de participação

em outras organizações, que só não produziu efeitos significativos nos casos de Guatemala e Honduras.

Além de generalizados, os efeitos dessa variável são também bastante expressivos, com destaque para o

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207

caso colombiano, no qual cada elevação no índice dobra a probabilidade de envolvimento em

manifestações.

Apoio à democracia foi a variável menos expressiva na análise dessa modalidade, pois atingiu

efeito significativo apenas no caso venezuelano. Nesse país, o impacto é negativo e elevações na escala

que mede essa adesão normativa reduzem em 21,1% a chance de envolvimento em manifestações.

Por fim, posicionamento ideológico se mostrou importante em seis países. Na maioria deles,

esse impacto é negativo, ou seja, indica que posicionamentos à direita do espectro ideológico são

acompanhados de redução na chance de envolvimento. O único país que apresenta situação distinta é

Honduras, no qual a relação se inverte: cada ponto à direita na escala eleva em 17,6% essa

probabilidade. Destacamos que entre os hondurenhos esse mesmo efeito positivo foi verificado na

modalidade anterior de participação, o que parece indicar que o envolvimento nessas formas de protesto

está associado à direita nesse país, contrariando assim uma tendência verificada em nível mundial.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 188–216

208

Tabela 9

Preditores da participação em manifestações autorizadas

Preditores

Exp(B)

País Sat Sat_ec Sat_dem Ind_conf Escol Int_pol Efic_pol Ind_part Ap_dem Pos-ide Constant

Argentina 0,996 1,370* 1,258 0,942 1,049 1,489* 1,319* 1,985* 1,280 0,765* 0,072*

Bolívia 0,893 0,835 1,176 0,989 1,046 1,284* 1,010 1,584* 1,293 0,840* 0,114*

Brasil 0,934 1,090 1,322 1,005 1,045 1,706* 1,005 1,736* 1,261 0,994 0,027*

Colômbia 0,969 0,870 1,092 0,962 1,059* 1,405* 1,242* 2,063* 1,123 0,902* 0,067*

Costa Rica 0,898 0,931 1,014 0,999 1,069* 1,462* 1,167 1,730* 0,828 0,998 0,082*

Chile 1,202 1,216 0,796 1,004 1,038 1,633* 1,041 1,560* 1,260 0,824* 0,030*

Equador 2,111* 1,268 0,690 1,039 0,990 2,217* 0,564* 2,158* 0,932 0,911 0,024

El Salvador 0,976 0,505* 1,254 1,058 1,045 2,267* 1,026 1,515* 1,125 0,738* 0,048*

Guatemala 1,861* 1,082 1,000 1,133 1,022 1,266 0,909 1,330 1,040 0,987 0,011*

Honduras 1,417* 0,969 1,125 0,991 1,033 1,242 0,913 1,139 0,815 1,176* 0,025*

México 1,194 0,877 0,906 1,072 1,053* 1,213 1,125 1,356* 1,038 0,981 0,052*

Nicarágua 1,190 1,021 0,961 1,263* 1,044 1,288* 1,457* 1,595* 1,078 0,982 0,010*

Panamá 1,522* 0,916 1,474* 0,965 1,056 1,477* 1,058 1,532* 1,257 0,869 0,015*

Paraguai 0,858 1,088 1,073 0,917 1,021 1,439 1,065 1,987* 0,953 0,998 0,089*

Peru 1,203 0,901 0,996 0,942 1,017 1,320* 1,187 1,758* 1,098 1,018 0,043*

República

Dominicana 1,398* 0,811 1,186 1,029 1,011 1,609* 1,021 1,521* 0,946 1,049 0,018*

Uruguai 1,372* 0,829 1,363* 1,006 1,092* 1,359* 1,290* 1,616* 1,163 0,769* 0,036*

Venezuela 1,010 1,214 0,984 1,017 0,989 1,727* 1,272* 1,629* 0,789* 0,996 0,109*

América

Latina 1,136* 0,988 1,102* 1,036* 1,044* 1,532* 1,123* 1,537* 1,087* 0,933* 0,036*

Fonte: Latinobarómetro (2007).

* Significância < 0,05.

Pseudo R2 (Nagelkerke): Argentina (0,25), Bolívia (0,11), Brasil (0,14), Colômbia (0,16), Costa Rica (0,12), Chile (0,15), Equador

(0,18), El Salvador (0,32), Guatemala (0,08), Honduras (0,09), México (0,06), Nicarágua (0,20), Panamá (0,12), Paraguai (0,14), Peru

(0,07), Uruguai (0,28), Venezuela (0,20), República Dominicana (0,14) e América Latina (0,12).

No que se refere à participação em protestos não autorizados (Tabela 10), a satisfação com a

vida exerceu efeito positivo para o conjunto da amostra, aumentando em 8,9% as chances de

envolvimento em protesto para cada elevação na escala de satisfação. Os efeitos individuais sobre os

países se mostraram estatisticamente significantes apenas no Chile e no Panamá. No primeiro, cada

aumento na escala de satisfação com a vida eleva em 114,8% as chances de participação em protestos

não autorizados. No Panamá, a elevação é de 52,5%.

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RIBEIRO, E.; BORBA, J. Protesto político na América Latina: tendências recentes...

209

Satisfação com a economia apresentou efeito significativo apenas em El Salvador, e no sentido

esperado teoricamente, ou seja, cada elevação na escala de satisfação diminui as chances de

participação em mais de 50%. Já satisfação com a democracia teve efeitos distintos para os três países

em que se mostrou significante. No Chile, cada aumento na escala de satisfação com a democracia

diminui em 50% as chances de participação. Já no Panamá e no Uruguai, eleva em mais de 60%. Para

finalizar o conjunto de variáveis relacionadas à teoria do descontentamento, confiança nas instituições

também exerceu efeitos distintos sobre os quatro países em que se mostrou estatisticamente

significante. Na Argentina, no Equador e no Uruguai, os efeitos foram no sentido esperado teoricamente,

ou seja, cada elevação na escala de confiança institucional diminui as chances de participação. Porém,

na Nicarágua, o efeito foi inverso, aumentando em mais de 30% as chances de participação para cada

elevação na escala de confiança.

Passando agora para as variáveis relativas à teoria dos recursos, verificamos que escolaridade

mais uma vez exerceu efeitos positivos sobre três países: Brasil, Chile e Nicarágua. Os efeitos de

interesse por política também foram positivos e significantes para 11 países da amostra. Analisando

esses casos individualmente, constatamos que os impactos foram distintos, variando de 32% no

Paraguai a 185% em El Salvador as chances de participação em protestos não autorizados para cada

elevação no sentimento de eficácia política.

O índice de participação foi outra variável que mais uma vez exerceu fortes efeitos sobre a

variável dependente, mostrando-se significativo para dez países, e em todos eles no sentido esperado

teoricamente. Para o conjunto da amostra, participar em outras organizações eleva em 45% as chances

de envolvimento em movimentos de protestos não autorizados. Em alguns países os efeitos foram

bastante fortes (Equador, 130%; Paraguai, 107%; Colômbia, 93%). O menor efeito foi verificado no

México (46%).

Apoio à democracia teve efeitos distintos para os dois países em que se mostrou significante

estatisticamente: na Argentina, cada aumento na escala de apoio eleva em mais de 60% as chances de

participação em protestos não autorizados. Já na Nicarágua, diminui em 36% tais chances.

Por fim, posicionamento ideológico manteve, na maioria dos casos, os mesmos efeitos

exercidos nas modalidades anteriores de participação: a probabilidade de participar aumenta à medida

que nos deslocamos da direita para esquerda do espectro político (em sete países), com exceção de

Honduras, o que novamente evidencia a particularidade desse país em termos da associação entre

orientação ideológica e comportamento contestatório.

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 188–216

210

Tabela 10

Preditores da participação em protestos não autorizados

Preditores

Exp(B)

País Sat Sat_ec Sat_dem Ind_conf Escol Int_pol Efic_pol Ind_part Ap_dem Pos-ide Constant

Argentina 1,018 1,176 1,151 0,856* 1,084 1,415* 1,240 1,846* 1,658* 0,741* 0,031*

Bolívia 0,912 1,346 0,929 1,142 1,055 1,615* 0,863 0,920 1,265 0,915 0,022*

Brasil 0,887 1,105 1,007 0,975 1,099* 1,728* 0,977 1,622* 1,188 0,870* 0,047*

Colômbia 0,766 1,168 0,843 0,851 1,089 1,303 1,331* 1,938* 1,047 0,841* 0,059*

Costa Rica 0,758 0,831 1,313 0,907 1,049 1,202 1,395* 1,425 0,782 0,904 0,097*

Chile 2,148* 1,307 0,503* 1,044 1,228* 1,930* 0,771 1,065 1,843 0,805* 0,001*

Equador 1,263 1,434 0,707 0,783* 1,007 1,723* 0,656* 2,309* 1,333 0,908 0,035*

El Salvador 1,378 0,496* 1,485 1,133 1,013 2,849* 1,090 1,704* 0,949 0,648* 0,015*

Guatemala 1,616 1,386 0,777 1,085 0,969 1,413 0,968 0,989 0,868 1,000 0,019

Honduras 1,197 1,028 0,820 0,918 0,972 0,885 1,025 1,215 0,935 1,184* 0,050*

México 1,007 1,152 1,014 1,005 1,067 1,271 1,081 1,459* 0,852 0,855* 0,072*

Nicarágua 0,847 1,358 0,771 1,318* 1,154* 1,226 0,958 1,421 0,634* 1,016 0,014*

Panamá 1,525* 0,923 1,650* 1,004 1,053 1,464* 1,122 1,216 0,771 0,755* 0,058*

Paraguai 0,948 0,988 1,313 0,983 1,008 1,324* 1,141 2,107* 0,794 0,926 0,088*

Peru 1,229 0,969 0,575 0,928 0,978 1,692* 1,544* 1,659* 1,200 0,984 0,015*

República

Dominicana 0,920 0,952 1,050 1,090 1,006 1,845* 0,943 1,515* 1,028 1,017 0,030*

Uruguai 1,191 0,813 1,618* 0,828* 1,024 1,108 1,301 1,895* 0,845 0,728* 0,121*

Venezuela 1,082 1,167 1,053 1,013 0,946 1,811* 0,662* 1,228 0,881 0,999 0,109*

América

Latina 1,089* 1,069 0,972 0,967* 1,035 1,558* 0,993 1,449* 1,044 0,913* 0,044*

Fonte: Latinobarómetro (2007).

Observação: * Significância < 0,05.

Pseudo R2 (Nagelkerke): Argentina (0,23), Bolívia (0,09), Brasil (0,15), Colômbia (0,16), Costa Rica (0,08), Chile (0,21), Equador

(0,13), El Salvador (0,43), Guatemala (0,07), Honduras (0,05), México (0,07), Nicarágua (0,14), Panamá (0,14), Paraguai (0,13),

Peru (0,11), Uruguai (0,20), Venezuela (0,13), República Dominicana (0,15) e América Latina (0,08).

Feita essa descrição mais geral dos dados encontrados nos modelos de regressão, cabe

perguntar qual o padrão de relacionamento verificado entre as variáveis. Com relação àquelas vinculadas

à teoria da privação, as quatro variáveis construídas para testar tal teoria apresentaram efeitos muito

distintos no plano individual, com efeito contrário ao esperado em 8 dos 12 testes realizados10. Quando

10 Estamos nos referindo aos resultados dos testes para o conjunto dos países da América Latina. Como eram quatro variáveis

ligadas à teoria da privação (satisfação com a vida, com a economia e com a democracia e confiança nas instituições) e

realizamos três testes de regressão, foram 12 resultados obtidos para o conjunto da amostra.

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RIBEIRO, E.; BORBA, J. Protesto político na América Latina: tendências recentes...

211

realizamos a análise por país, em 51% dos casos (111 testes de 216 no total), os efeitos foram

contrários ao esperado pela teoria. Nesse sentido, acreditamos que a teoria da privação fornece

elementos analíticos interessantes para pensar a questão do protesto do ponto de vista macrossocial,

porém tal perspectiva é limitada do ponto de vista da análise individual. Considerando essa

interpretação, fica parcialmente refutada a hipótese que formulamos a partir da análise dos dados

agregados apresentada no final da segunda seção deste artigo (“Bases individuais do protesto”). Assim,

se no plano estrutural a evolução dos índices de protesto parece estar associada à existência de

insatisfação (derivada de crises políticas, sociais ou econômicas), tal fenômeno encontra pouco eco no

plano individual.

Quando analisamos os dados sob a perspectiva dos recursos individuais e coletivos, as

evidências parecem ser bastante plausíveis, seja pela magnitude dos coeficientes de regressão

verificados, seja no sentido geral encontrado no relacionamento entre as variáveis. Todas as variáveis se

comportaram no sentido esperado quando consideramos o conjunto da amostra. Se analisarmos o efeito

por país, em 102 testes (de 216 no total), os resultados seguem no sentido esperado pela teoria. Além

disso, conforme já comentamos anteriormente, foram encontrados efeitos com elevada magnitude na

propensão à participação nas várias formas de protesto. Nesse sentido, as evidências empíricas apontam

para a confirmação da teoria dos recursos (VERBA; SCHLOZMAN; BRADY, 1995) também para o contexto

latino-americano, o que confirma análises anteriores dos autores, tomando como base empírica outras

modalidades de participação e outras bases de dados (BORBA; RIBEIRO, 2010; RIBEIRO; BORBA, 2010). O

protesto, nesse sentido, pode ser entendido como produto de recursos individuais (escolaridade,

interesse por política e sentimento de eficácia política) e coletivos (pertencimento a redes associativas),

os quais podem ser objetivos (escolaridade e pertencimento a redes) ou subjetivos (interesse por política

e sentimento de eficácia política). A lógica de operação dos recursos no sentido da sua transformação

em engajamento está além dos limites deste artigo, ficando como uma sugestão de agenda de pesquisa.

Com relação à variável apoio à democracia, que foi utilizada como proxy de pós-materialismo,

apesar dos efeitos positivos para os três testes e de seguir a direção esperada pela variável na maioria

dos casos, a magnitude de tais efeitos foi moderada para a maior parte deles. De qualquer forma,

acreditamos ser importante destacar que, se tal variável não fornece elementos conclusivos para

evidenciar os efeitos dos valores pós-materialistas sobre o protesto político na América Latina, ela nos dá

um indicativo importante sobre as bases majoritariamente pró-democráticas de tal comportamento

político.

Por fim, a variável identificação ideológica também exerceu efeitos majoritariamente de acordo

com o esperado, apesar de a magnitude dos efeitos ter sido baixa. De qualquer forma, também para a

América Latina valem os elementos que foram identificados por Dalton e Sickle (2005), de que o protesto

está associado, sobretudo, a uma base de esquerda. A exceção fica por conta do caso hondurenho, que

merece investigação específica por destoar radicalmente do padrão internacional ao exibir evidências de

relação positiva entre posicionamentos de direita e envolvimento em protesto.

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212

Considerações Finais

Considerando a importância que o tema do protesto político assume na literatura internacional

da ciência política (OPP, 2009; DELLA PORTA; GIANNI, 2008), buscamos verificar como esse fenômeno se

manifesta nos países da América Latina, considerando suas tendências e bases individuais.

Parte da literatura que estudou tal fenômeno fez isso por óticas antagônicas. De um lado,

seguiu a interpretação de matriz huntingtoniana, que identificava nos processos de mobilização política

da década de 1960 sinais da instabilidade institucional dos países dessa região (HUNTINGTON, 1975).

Para tal perspectiva, os processos de modernização trariam consigo a mobilização social, que, na

inexistência de instituições capazes de processar os conflitos, teriam como produtos as situações de

instabilidade política e quebra de regime. O fenômeno do “pretorianismo” seria, nesse sentido, a

consequência política das situações de modernização sem institucionalização, vivenciadas pelos países

da América Latina.

Por outro lado, desde a década de 1970, emergiram os estudos sobre os movimentos sociais (e

os novos movimentos sociais), que perceberam nas ações coletivas de protesto sinais de uma nova

identidade produtora de demandas por democratização (SCHERER-WARREN; KRISCHKE, 1987). Nesse

sentido, mobilização e protesto social não seriam necessariamente expressões de um “risco pretoriano”,

mas, sim, a materialização de uma nova cultura política na região, permeada por valores e atitudes

democráticas.

Aqui procuramos nos afastar de ambas as perspectivas, e nesse sentido pudemos identificar

que o comportamento de protesto parece sim estar relacionado ao contexto de instabilidade política

e/ou econômica, conforme os dados inicialmente apresentados neste artigo11. Todavia, ao nos

concentrarmos apenas na dimensão individual do fenômeno, a importância dessa dimensão da

instabilidade (e sua materialização na insatisfação/descontentamento) é sensivelmente reduzida. Como

foi possível perceber, os efeitos das variáveis selecionadas para testar essa hipótese não se generalizam

entre as nações investigadas e em vários momentos indicam situações distintas das antecipadas pela

teoria e por pesquisas conduzidas em outras regiões do globo. Essa situação reforça ainda mais a

necessidade de pesquisas que, valendo-se de modelos multivariados, produzam informações mais

precisas sobre o complexo relacionamento entre descontentamento individual, instabilidade

política/econômica e movimentos contestatórios.

Muito menos inequívocos são os efeitos da dimensão dos recursos individuais e coletivos

identificados no presente artigo, o que confirma conclusões anteriores e destacam uma base pró-

democrática do comportamento de protesto nessa região (GUTIERREZ, 2012). Seguindo Dalton, Sickle e

Weldon (2009), podemos concluir que os cidadãos latino-americanos, em termos gerais, (não)

participam de modalidades de protesto porque (não) podem. Assim como no caso de formas

convencionais de engajamento político (BORBA; RIBEIRO, 2010), a contestação parece ser uma função da

presença de atributos político-cognitivos e recursos coletivos distribuídos desigualmente.

11 O recente estudo promovido pelo PNUD e coordenado por Gutierrez (2012, pp. 17-18) corrobora tal diagnóstico ao interpretar

o protesto político na América Latina como produto da relação entre maiores “brechas sociais” e menores índices de legitimidade

do regime institucional.

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RIBEIRO, E.; BORBA, J. Protesto político na América Latina: tendências recentes...

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Apêndice metodológico

Variáveis

SAT – Satisfação com a vida em geral

0 = nada satisfeito/1 = pouco satisfeito/2 = satisfeito/3 = muito satisfeito

SAT_EC – Satisfação com a situação econômica nacional

0 = nada satisfeito/1 = pouco satisfeito/2 = satisfeito/3 = muito satisfeito

SAT_DEM – Satisfação com o funcionamento da democracia no país

0 = nada satisfeito/1 = pouco satisfeito/2 = satisfeito/3 = muito satisfeito

IND_CONF – Índice de confiança nas instituições democráticas

Somatório das respostas sobre confiança no Judiciário, Congresso/Parlamento e Partidos

Cada pergunta comportava a seguinte codificação

0 = não confia/1 = confia pouco/2 = confia/3 = confia muito

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 188–216

216

O resultado da soma é uma escala de 0 a 9.

ESCOL – Escolaridade

0 = sem estudo/1...12 = 1...12 anos de escolaridade/13 = universitário incompleto/14 = universitário completo

INT_POL – Interesse por política

0 = nada interessado/1 = pouco interessado/2 = interessado/3 = muito interessado

EFIC_POL – Eficácia política subjetiva

Variável obtida com a pergunta: Quão difícil é para você formar uma opinião sobre assuntos políticos?

0 = muito difícil/1 = difícil/2 = nem difícil, nem fácil/3 = fácil/4 = muito fácil

IND_PART – Índice de participação

Somatório das respostas sobre participação em partidos, sindicatos/associações profissionais ou empresariais,

organização esportiva/recreativa/cultural e outro tipo de organização.

Cada pergunta comportava a seguinte codificação:

0 = não participa/1 = participa

O resultado da soma é uma escala de 0 a 4.

AP_DEM – Apoio à democracia

Variável obtida com a pergunta: Você concorda muito, concorda, discorda ou discorda muito da seguinte afirmação? A

democracia pode ter seus problemas, mas é o melhor sistema de governo.

0 = discorda muito/1 = discorda/2 = concorda/3 = concorda muito

POS_IDEOL – Autoposicionamento ideológico

Variável obtida com a pergunta: Em política se fala normalmente de “esquerda” e “direita”. Em uma escala onde “0” é

“esquerda” e “10” é “direita”, onde você se localizaria?

0 = esquerda/.../10 = direita

Ednaldo Ribeiro - [email protected]

Julian Borba - [email protected]

Submetido à publicação em julho de 2013.

Versão final aprovada em novembro de 2014.

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Sentidos de mobilização

e de desmobilização da ação coletiva1

Alcides A. Monteiro Departamento de Sociologia

Universidade da Beira Interior – Portugal

Mário Miguel Montez Escola Superior de Educação

Instituto Politécnico de Coimbra – Portugal

Resumo: O presente artigo debruça-se sobre o fenómeno da ação coletiva, usando como exemplo a intervenção protagonizada

por um pequeno grupo de pessoas em defesa de um espaço de lazer e natureza denominada Mata Nacional do Choupal, situada

em Coimbra (Portugal), contra a construção de um viaduto rodoviário. A análise deste pequeno grupo contextualiza a

compreensão da relação entre a ação coletiva e o fenómeno da ameaça, mostrando como essa ação coletiva é condicionada por

uma dimensão emocional, proveniente da relação do sujeito com os bens de que usufrui. Aponta-se para a existência de uma

dinâmica determinante para a mobilização e para a desmobilização da ação coletiva, decorrente da relação entre a ameaça e a

perceção de risco pelos elementos do grupo, que denominamos de “sentidos da ação coletiva”.

Palavras-chave: ação coletiva; ameaça; risco; mobilização; desmobilização

Abstract: This article focuses on the phenomenon of collective action, using as an example the intervention carried out by a small

group of people in defense of a public space of leisure and nature named “Mata Nacional do Choupal”, situated in Coimbra

(Portugal), against the construction of a highway road. The analysis of this small group frames the understanding of the

relationship between collective action and the phenomenon of threat, showing how such collective action is conditioned by an

emotional dimension, from the individuals' relation to the goods that they enjoy. Thus, we point out the existence of a dynamic

factor for mobilization and demobilization of collective action, arising from the relationship between the threat and the perception

of risk by the elements of the group, which we call “directions of collective action”.

Keywords: collective action; threat; risk; mobilization; demobilization

1 Esta é uma publicação escrita em português europeu.

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218

Introdução

O estudo que apresentamos neste artigo incide na relação entre a ação coletiva protagonizada

por um pequeno grupo de pessoas e o fenómeno da ameaça, mostrando como a ação coletiva é

condicionada por uma dimensão emocional, proveniente, neste caso, da relação de cada sujeito do grupo

com os bens de que usufrui. Nesse sentido complementa-se a dimensão de racionalidade da ação

coletiva e exploram-se fatores que se relacionam com a perceção de risco dos sujeitos face a uma

ameaça sobre esses mesmos bens. Conclui-se que os fatores inscritos na dimensão emocional influem

no desenvolvimento da ação coletiva, potencializando tanto a mobilização como a desmobilização de

atores para a ação, gerando uma dinâmica constituída por dois sentidos: um sentido ascendente e um

sentido descendente da ação coletiva.

O estudo de caso que suporta estas considerações focou-se num grupo de pessoas que, no ano

de 2008, se organizaram em defesa de uma área natural e de lazer denominada Mata Nacional do

Choupal, situada na cidade de Coimbra, região centro de Portugal. A iminente travessia deste espaço por

uma via rodoviária levou à criação de um movimento cívico denominado Plataforma do Choupal2. Até

2010 este “pequeno grupo” levou a cabo uma série de atividades socioculturais e de ações judiciais. Em

2010, devido ao conhecimento da anulação do concurso da obra, o movimento desmobilizou-se e a ação

coletiva esmoreceu. O estudo de caso realizou-se no centro do processo de desmobilização do

movimento.

A análise da ação coletiva promovida pela Plataforma do Choupal conduziu a questionamentos,

hipóteses e propostas que aqui se apresentam, originados pelo campo de conflitos que se estende do

contexto socioterritorial às dinâmicas internas do grupo, passando por aspetos característicos de

modelos de desenvolvimento que se disputam entre si. Do contexto socioterritorial sobressaem conflitos

relativos ao usufruto de espaços pelos grupos sociais. Das dinâmicas do grupo relevam-se as forças que

impulsionam e que implodem a ação do grupo. No que concerne aos paradigmas de desenvolvimento,

destacam-se conflitos ao nível das formas de: governança; valorização de espaços de natureza e lazer e a

sua relação com os espaços urbanos; mobilidade pedonal e qualidade de vida versus mobilidade em

automóvel e preocupações no sentido “time is money”.

Este caso comporta uma complexidade de aspetos orientados pelas energias, motivações,

perceções e interesses aliados a emoções dos diversos atores sociais implicados. Por isso, reserva-se um

olhar particular sobre a forma como estes fatores afetam as questões políticas e de cidadania nas

escalas local e global, no que toca às formas de governança e ao papel dos atores sociais e das ações

coletivas pontuais como ponto de partida da construção de movimentos sociais para a transformação

social. A sua análise revelou ainda dinâmicas existentes no cerne de um grupo de protesto e da sua ação

coletiva que fazem reemergir o debate entre a racionalidade e a emocionalidade da ação coletiva. Por

isso, apresenta-se a ação coletiva como conceito envolto no confronto teórico entre estas duas

dimensões.

2 Disponível em: <http://www.facebook.com/plataforma.choupal>.

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MONTEIRO, A. A.; MONTEZ, M. M. Sentidos de mobilização e de desmobilização...

219

Ação coletiva: contributos teóricos para o debate em torno do conceito

Sendo um comportamento humano, a ação é, para Hanna Arendt, em A condição humana, a

“actividade exercida diretamente sobre as pessoas sem a mediação das coisas e da matéria” (2001).

Esta ideia, dirigida para o entendimento de pluralidade da condição humana, mostra que o mundo é

habitado por pessoas que interagem entre si. Neste sentido, interação é um processo contínuo de ações

que respondem a outras ações, com poder de afetar os outros (ARENDT, 2001). Por isso, Parsons

entendeu a ação como um comportamento humano devidamente analisado e direcionado que resulta da

relação entre a perceção de um problema e a motivação para o resolver (PARSONS; SHILS, 2007),

acrescentando que:

Each orientation of action in turn involves a set of objects of orientation. These are objects

which are relevant in the situation because they afford alternative possibilities and impose

limitations on the modes of gratifying the needs and achieving the goals of the actor or

actors (PARSONS; SHILS, 2007, p. 4).

Neste contexto, a ideia de ação associa-se à construção da transformação social a partir da sua

dimensão de historicidade (GUERRA, 2006), uma vez que a ação, “na medida em que se empenha a

fundar e a preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história”

(ARENDT, 2001).

A ação coletiva emerge dos moldes da ação, distinguindo-se, conforme afirma Erik Neveu, por

ser “uma acção comum tendo como objectivo atingir fins partilhados” (in GUERRA, 2006, p. 57) e que,

segundo a tradição de Chicago, se dá pela ação de um acontecimento desencadeador (p. 62). Embora

envolta num campo de diversificadas interpretações, a ação coletiva foi sendo observada, a partir da

sociologia do comportamento coletivo, de forma demasiado simplificada (MELUCCI, 1996), levando a que

tenham sido integradas numa única categoria de análise uma multiplicidade de fenómenos coletivos,

desde ações espontaneamente provocadas às revoluções planeadas (MELUCCI, 1996); ou manifestações

de contestação geradas por movimentos sociais e outras ações de menor dimensão organizativa ou

política (GARRETÓN, 2002).

Na tentativa de definir uma ação como ação coletiva, Melucci propõe uma designação que toma

a ação coletiva como um conjunto de práticas sociais que envolvem e comprometem um conjunto de

indivíduos ou de grupos, que exibem características morfológicas semelhantes em contiguidade de

tempo e de espaço, que comportam um campo de relações sociais e uma capacidade de as pessoas

envolvidas atribuírem um sentido à sua ação conjunta (MELUCCI, 1996; GUERRA, 2006).

Diversos conceitos de desenvolvimento estão intimamente ligados à existência de processos

coletivos e participativos, através dos quais os sujeitos se envolvem na análise e na resolução dos

problemas que os afetam directamente (LAMMERINK; BURY; BOLT, 1999; SANTOS, 2001; PEREIRA, 2012),

criando condições para a tomada de decisão sobre os mesmos. Estes processos, em si, impelidos por

grupos de protesto como a Plataforma do Choupal, encontram-se estreitamente vinculados à geração de

inclusão social, igualdade e justiça (CHINCHILA, 2006; VAN ZOMERAN; IYER, 2009). Pensar em participação

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é pensar no sujeito enquanto elemento primordial da mudança social, e enquanto produtor de

historicidade.

Alain Touraine, na obra O retorno do actor, evidencia o conceito de sujeito enquanto potencial

representativo da “capacidade dos homens de se libertarem tanto dos princípios transcendentes como

das regras comunitárias” (TOURAINE, 1996, p. 66). O sujeito é igualmente identificado com a ideia de

consciência e de capacidade criadora, situando-o na base de uma sucessão de transformações sociais

sobre as quais poderá agir e tornar-se ator social. Ou, como refere Isabel Guerra invocando o

pensamento de Touraine, o ator é “um elemento produtor da sociedade” (GUERRA, 2006, p. 20). Neste

sentido, interessa reter que, definido o sujeito pela sua criatividade, “pode admitir-se a ideia de um

conflito social central, e a ideia de ação orientada para valores” (TOURAINE, 1996, p. 71) que regem a

ação dos sujeitos e sobre os quais se dá o conflito presente na base do estudo de que este artigo trata: o

conflito entre o valor de defesa de um espaço de natureza e lazer, considerado um bem público a

manter, e o valor de uma travessia rodoviária benéfica para a política e a economia nacional.

A ação coletiva é, efetivamente, um campo de conflitos e os contributos teóricos provenientes

do seu estudo revelam divergências muito significativas que, ao longo do tempo, se vêm considerando

complementares. Por um lado, encontram-se as abordagens racionalistas que apontam a ação coletiva

como o resultado de um conjunto de interesses e, por outro, a visão de que outros fatores, como as

emoções, influenciam a organização de grupos de contestação e de ação social.

Até à década de 1960, o surgimento da ação coletiva era associado a um conjunto de emoções

características do comportamento coletivo. Tais emoções eram associadas a comportamentos imaturos

gerados pela impressionabilidade, raiva e violência dos indivíduos quando reunidos em grupos ou

multidões (GOODWIN; JASPER; POLETTA, 2004, p. 414-415). Perante esta vulnerável credibilidade das

emoções, a abordagem racionalista foi ganhando espaço, trazendo contributos de maior rigor científico

ao debate teórico em torno da ação coletiva, mostrando que este comportamento coletivo tem por base

uma racionalidade, fundada na noção de utilidade. Conforme esclarece Alcides A. Monteiro, os autores

próximos da teoria da escolha racional, em que se incluem Mancur Olson e Charles Tilly, advogam que “a

ação coletiva explica-se pela utilidade que daí decorre para os seus membros” (MONTEIRO, 2004a, p.

119), assim como se organiza “em torno da utilidade que revela para os seus membros” (p. 119). A ideia

de valor, acima associado ao caso do Choupal, com base nas ideias de Touraine e Parsons, encontra-se

aqui como pedra angular. Este sentido de atribuição de um valor à ação em causa leva a observar a ideia

que desvenda Olson de que “os indivíduos em grupo agem de acordo com os seus interesses pessoais”

(OLSON, 1998, p. 1), conferindo à ação coletiva a dimensão utilitarista que a tem qualificado

tradicionalmente, desde os anos 1960. Em complemento, Charles Tilly introduz a questão da dimensão

política da mobilização, associando esta utilidade ao tempo que cada sujeito tem disponível para

participar em ações do seu interesse. Tilly centra a sua análise na evolução do caráter da ação coletiva,

defendendo que as formas de ação se substituem ao longo da história e que a escolha de um certo tipo

de ação responde a considerações estratégicas por parte dos atores. O objetivo das mobilizações

ofensivas, com que se identifica a ação coletiva dos séculos XIX e XX e que substituíram as ações de

pendor mais reativo e defensivo características dos séculos XVII e XVIII, é essencialmente político e

passa por obter uma maior participação nas instâncias de poder e influência (TILLY, 1986).

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As teorias normativas e da escolha racional, entre as quais se contam os citados contributos de

Mancur Olson, sob a égide da economia, mas também da teoria da privação relativa ou da teoria da

identidade social, assim como a visão política de Charles Tilly, continuam a dominar a análise sobre a

ação e a participação coletivas. Mas, se por um lado as abordagens racionalistas trouxeram contributos

de cientificidade, por outro lado ignoraram a importância das emoções no processo de formação da ação

coletiva. Por isso, de forma distinta, outras análises têm vindo a dar igual ênfase às variáveis emocionais

envoltas no quadro de motivações que conduzem os indivíduos à participação em manifestações

coletivas (FLAM, 1990; JASPER, 1998; VAN ZOMERAN; IYER, 2009; DRURY; REICHER, 2009; SABUCEDO et al.,

2010), o que, por sua vez, não deve ser interpretado como o reconhecimento de uma irracionalidade

inerente a essas motivações, uma vez que as emoções na ação coletiva resultam de um processo

cognitivo de entendimento do grau de proximidade de uma ameaça (JASPER, 1998). Para além de serem

culturalmente construídas e muitas vezes ligadas a valores morais impregnados de direitos e obrigações,

as emoções serão mais consistentes, constantes e previsíveis do que se poderia imaginar (THOITS, 1989;

JASPER, 1998; 2011). Pelo que, a par das visões normativa e racional, a consideração da dimensão

emocional (MENDONÇA, 2011) constitui-se como um importante contributo para uma mais completa

compreensão da ação coletiva (FLAM, 1990), atuando igualmente como preditor da sua eclosão,

desenvolvimento, possível interrupção e desmobilização.

Nos últimos anos os estudos sobre os movimentos sociais e a ação coletiva têm-se distanciado

da abordagem racionalista (ESTANQUE, 1999), tendo vindo a debruçar-se com maior atenção sobre a

dimensão subjetiva associada à participação dos indivíduos em manifestações coletivas (JASPER, 2011).

A ação coletiva tem sido então observada de uma perspetiva política e cultural, para além da económica,

associando-se-lhe uma dimensão emocional. De acordo com esta perspetiva, a ação de cada sujeito num

coletivo despoleta-se a partir de um conjunto de emoções resultantes da compreensão de uma ameaça

(pelo que não se poderão considerar não racionais) e comportam formas tão diversas como o afeto, a

identidade, a moral, a raiva, o medo, a injustiça e a indignação (JASPER, 1998; 2011). Nesta abordagem

salientam-se ainda elementos tais como a importância do compromisso, do altruísmo e das razões

ideológicas, que moldam a identidade política da ação coletiva, contrapondo ou complementando o fator

interesse relevado pela abordagem económica (QUIRÓS, 2009) e, por conseguinte, conferindo à ação

coletiva um caráter mais completo.

O estudo das emoções na ação coletiva e na geração de movimentos sociais tem produzido

conhecimento sobre as emoções, levando ao reconhecimento da existência de um complexo processo

cognitivo e físico nas emoções. Neste âmbito, Jasper organiza, apresenta e explora várias categorias de

emoções, que denomina de Dimensões Emocionais dos movimentos sociais (GOODWIN; JASPER; POLETTA,

2004). As categorias que Jasper apresenta são analisadas em consonância com casos reais de ação

coletiva ou de outros comportamentos de idêntica natureza:

a) Emoções reflexas: O medo, surpresa, aversão/revolta, zanga, felicidade, e tristeza são processos

muito complexos que contemplam processamento de informação e de sua avaliação, assim como

alterações físicas que incluem as expressões faciais e que se dão no mesmo sentido que os reflexos

musculares.

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b) Emoções afetivas: Amor, ódio, respeito e confiança são emoções que persistem durante um longo

período de tempo, proporcionam a orientação de base de um sujeito para uma ação e conduzem ao

compromisso e investimento positivo ou negativo em relação a pessoas, lugares, ideias e objetos.

c) Humor: São emoções relacionadas com alterações bioquímicas, transportáveis de uma situação para

outra, afetando cada nova situação conforme o humor que se transporta. O otimismo é uma das

emoções resultantes desta dimensão de emoções e afeta seriamente o sucesso das ações coletivas.

d) Emoções morais: Refletem a compreensão que cada sujeito tem do mundo ou dos contextos à sua

volta e influenciam diretamente a participação de um sujeito numa ação. Nesta dimensão encontram-se

emoções como compaixão, indignação e choque moral.

e) Estratégia: Revolta e aversão são emoções sentidas em relação a situações concretas e motivam a

ação. Estas emoções têm sido estrategicamente utilizadas ou apropriadas para gerar contestação,

sentimento de grupo e ação contra o que os líderes dos grupos de protestos e de ações coletivas

consideram ser ameaças às causas e ideias que defendem.

O caso da Plataforma do Choupal, aqui apresentado, revelou-se um exemplo da importância

das emoções na ação coletiva pela forma como aspetos referidos nestas dimensões (afeto, culpa, raiva,

indignação, e outras) condicionaram a mobilização e também a desmobilização da ação.

Contextos de um conflito na base da ação coletiva

O conflito é um elemento constante em toda a ação coletiva, fundamental nos processos

políticos e portador de uma tensão necessária entre movimentos sociais e democracia (PEREIRA, 2012).

No presente caso, o conflito dá-se pela divergência de visão dos atores implicados, no que concerne a

modelos de desenvolvimento e de democracia, num contexto territorial e numa conjuntura histórica e

política que são particulares. A conjuntura em causa é o início da crise económica e social que marca

drasticamente, na atualidade, Portugal e outros países europeus desde 2009. No entanto, o tempo desta

ação coletiva abrange ainda a fronteira final de uma época dedicada à promoção do “local” (dos atores

locais e das iniciativas locais) enquanto espaço de resolução de problemas sociais complexos, em

contraponto à evolução da globalização (FERREIRA, 2004). Por sua vez, à semelhança de outros conflitos

sociais que “decorrem sob o ritmo da reestruturação espacial” (ESTANQUE, 1999, p. 93), a origem da

ação social reporta-se a um contexto territorial e espacial, que importa também conhecer.

Partindo de uma perspetiva macro-micro, refira-se que o território no qual surge a ação coletiva

da Plataforma do Choupal é a cidade de Coimbra, estendendo-se pontualmente para outros territórios,

como Lisboa, por ser a capital do país, em ações pontuais. A cidade de Coimbra situa-se no centro de

Portugal, e é ponto de passagem na ligação rodoviária entre as cidades de Lisboa (a 200 km) e Porto (a

100 km). Com uma área urbana de 3.000 ha3, tem sido considerada a terceira maior cidade do país,

com 143.396 habitantes a nível do município4. A cidade é limitada a sul pelo rio Mondego que corre no

3 Fonte: página da Internet da Sociedade de Reabilitação Urbana – Coimbra Viva, em:

<http://www.coimbravivasru.pt/coimbraviva.php>, visitada em 29 de maio de 2012. 4 A cidade de Coimbra conta com 106.800 habitantes. Fonte: página da Internet de Sensos 2011 – Resultados Provisórios, em:

<http://www.ine.pt/scripts/flex_provisorios/Main.html>, visitada em 29 de maio de 2012.

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sentido nascente-poente. É no seguimento deste mesmo rio, para poente da cidade, que se encontra o

território que motivou a ação coletiva da Plataforma do Choupal: precisamente, a Mata Nacional do

Choupal.

Esta Mata situa-se aproximadamente 1,5 km a poente do centro da cidade. Trata-se de um

espaço de cerca de 71 hectares de Reserva Ecológica Nacional submetido ao Regime Florestal Total5

mas sem o estatuto de área protegida. Popularmente denominada de Choupal, a mata foi plantada no

final do século XVIII na margem norte do rio Mondego. Das várias espécies plantadas, sobressaiu o

choupo negro, originando o nome pelo qual é conhecida. Amputada a partir dos anos 1970 em cerca de

25% da sua área, devido a obras públicas de variada natureza, em 2010 enfrentou uma nova ameaça:

um novo traçado da via rodoviária IC2 (Itinerário Complementar 2) que liga as cidades de Lisboa e Porto

numa variante ou em sobreposição à Estrada Nacional 1. Em Coimbra, a revisão do seu traçado

contempla uma nova travessia do rio Mondego, alguns metros a poente da atual ponte-açude, que

atravessa a Mata Nacional do Choupal por meio de um viaduto de 40 metros de largura, com perfil de

autoestrada.

Como previsto na lei portuguesa relativa a matéria de obras públicas, e tratando-se de uma

obra sobre um espaço que contempla ecossistemas naturais, foram solicitados pelo Estado pareceres

técnicos sobre o projeto de atravessamento do Choupal, cujas conclusões foram desfavoráveis à

construção do viaduto. Contudo, não sendo estes pareceres vinculativos à decisão política, o Ministério

do Ambiente emitiu em 2008 a primeira Declaração de Impacto Ambiental (DIA) favorável ao projeto. A

decisão política de construção de um viaduto rodoviário sobre o Choupal teve o apoio da autarquia de

Coimbra, que viu neste projeto uma forma de requalificar parte da zona urbana periférica ao Choupal.

Foi também acolhida com agrado por grupos de pessoas que consideram as obras deste género como

um sinal de progresso. Mas, ao mesmo tempo, deu origem a uma dinâmica de contestação organizada

sob a forma de movimento cívico, denominado Plataforma do Choupal.

Problemas de partida da ação coletiva da Plataforma do Choupal

A decisão política de resolução de um problema de trânsito rodoviário de nível nacional,

marcado pela necessidade de aproximação espacial e temporal entre duas grandes cidades – Lisboa e

Porto –, gerou três novas dimensões de problemas:

a) um problema ambiental;

b) um problema sociocultural;

c) um problema político e de cidadania.

O problema ambiental relaciona-se com a colocação em perigo de um conjunto de ecossistemas

que caracterizam o Choupal, devido ao leque de tipologias de poluição resultantes da travessia rodoviária

e da obra de construção. Impossibilita também a utilização deste espaço como lugar de educação

ambiental, tornando-se, por conseguinte, num exemplo contrário.

5 Decreto-Lei 254/2009 de 24 de setembro que aprova o Código Florestal.

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O problema sociocultural manifesta-se pelo condicionamento ou privação de práticas de lazer e

de convívio social que acontecem no Choupal. A médio-longo curso coloca-se também em risco a

mobilidade e a qualidade de vida na cidade, uma vez que se prevê que o novo percurso da IC2 afetará o

trânsito rodoviário, levando a uma maior utilização das vias de acesso ao centro, pondo em causa a

lógica de desenvolvimento sustentável da cidade. Com uma nova amputação o Choupal afastar-se-á da

cidade. No campo simbólico o projeto põe em risco o valor patrimonial do Choupal enquanto espaço

histórico preservado pelo imaginário coletivo da cidade de Coimbra.

O problema político e de cidadania é resultado da falta de transparência na tomada de decisões

políticas e consequente desacreditação das formas de governança de nível local e nacional. Num quadro

político de democracia surge, da parte dos cidadãos, a expetativa de participação na tomada de decisões

que lhes dizem respeito e os mesmos “já não admitem que os processos de planeamento e de gestão

urbanística sejam elaborados por um grupo de decisores e técnicos em ambiente de obscurantismo”

(GUERRA, 2000, p. 38).

As três dimensões de problemas e seus conteúdos reproduzem-se igualmente como quadros de

motivação pessoal e de perceção dos riscos, que conduziram os sujeitos ao processo da ação coletiva em

causa.

Opções metodológicas

A análise que aqui se documenta resultou de um estudo de caso e assentou em metodologias

de pesquisa indutiva. Centrou-se, sobretudo, na análise de conteúdo de entrevistas a elementos do

movimento cívico, complementada com a análise de documentos referentes às ações do movimento, de

artigos de jornais, de reportagens de televisão, e ainda de sítios da internet. Acessoriamente, foram

estabelecidos contactos e obtidos testemunhos por parte das lideranças de um movimento cívico

espanhol – Salvem El Cabanyal6 –, uma vez que os documentos e estudos disponíveis apontavam para

fortes afinidades entre este e a Plataforma do Choupal.

Os elementos da Plataforma do Choupal entrevistados foram fundadores do movimento,

participantes desde o início do processo, e integrantes do movimento em fases posteriores7. A fase de

pesquisa aconteceu num tempo em que o movimento cívico desanimou, tornando-se volátil na sua

intervenção e mais difícil a relação entre esta pesquisa e a ação concreta do movimento. No entanto, tal

fator também favoreceu um relativo distanciamento dos sujeitos perante as suas ações, resultados e

sentimentos, possibilitando-lhes uma leitura mais crítica dos acontecimentos e dos percursos.

A metodologia de análise das entrevistas feitas aos protagonistas da ação coletiva segue de

perto a proposta elaborada por Demazière e Dubar, a de uma “postura analítica que procura produzir

6 O movimento Salvem El Cabanyal é um movimento cívico criado na cidade de Valência em 1998, e existente atualmente, em

defesa da demolição dos bairros El Cabanyal e Canyamelar para ampliação da avenida Blasco Ibañez até ao mar Mediterrâneo,

de acordo com um projeto urbanístico municipal iniciado no final do século XIX. Ver: <www.cabanyal.com>. 7 Entrevistados/as: Luís S., arquiteto, ativista em Coimbra, fundador do movimento. Entrevistas exploratórias 1 e 2 e

semiestruturada 1. Miguel D., professor, elemento do Bloco de Esquerda, fundador do movimento. Entrevista semiestruturada 2.

José P., reformado, participante. Entrevista semiestruturada 3. Teresa S., jurista, participante. Entrevista semiestruturada 4.

Emílio M., arquiteto e professor universitário, fundador do movimento Salvem El Cabanyal. Entrevista estruturada.

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metodicamente um sentido a partir da exploração de entrevistas de pesquisa” (1997, p. 34). Os autores

estruturaram uma abordagem dos discursos dos sujeitos (orais ou escritos) com fortes afinidades à

Grounded Theory desenvolvida por B. Glaser e A. Strauss, visando à construção de teoria a partir de uma

análise intensiva de casos e marcada por uma constante comparação entre dados empíricos. Definem o

processo indutivo de teorização como organizado em três operações principais. Uma primeira operação,

de tradução/nominação, em que os dados coletados são traduzidos em momentos e categorias

analíticas, necessariamente provisórios. A operação seguinte permite o afastamento em relação aos

dados originais (matéria-prima) e um trabalho de estruturação das categorias num sistema mais

coerente e mais integrado de hipóteses. A última operação conduzirá, por processos de conceptualização

e abstração, à formulação de proposições teóricas dotadas de coerência lógica. Através da análise

comparativa de discursos e sua categorização, avança-se dos discursos individuais e subjetivos em

direção a categorias mais formais e abstratas que conferem sentido ao “objeto sociológico” sobre o qual

a pesquisa se debruça.

Contudo, esta abordagem mais naturalista e indutiva que recai sobre os referentes – as relações

sociais, normas e processos de ação social mediatizados pelo discurso de atores que neles intervêm

ativamente – não inviabiliza o recurso a um quadro teórico em apoio, do mesmo modo que esse recurso

pode não comprometer o raciocínio indutivo (é o que se deseja). O uso de um quadro teórico de

referência surge como via para ir mais além da nebulosa de significações pessoais, para conhecer o

alcance das suas conceções acerca de si próprios e do seu lugar no mundo, identificar a totalidade social

da qual cada indivíduo e cada situação fazem parte, bem como refinar interpretações para além dos

significados mais imediatos (ALVESSON; SKÖLDBERG, 2000; MONTEIRO, 2004a).

Génese de uma ação coletiva: das emoções às perceções de risco e de ameaça

No caso da Plataforma do Choupal, residem diversas motivações para a ação coletiva. O

enfoque dado neste artigo recai sobre as motivações que se consideram de ordem emocional, levando

em conta que as emoções se complementam ou se articulam com o caráter racional da ação coletiva.

Esta complementaridade não só é geradora de conflito como de uma mais abrangente complexidade no

entendimento da ação coletiva.

As motivações observadas no caso da Plataforma do Choupal prendem-se, num primeiro olhar,

com perceções individuais de risco em relação à implicação do viaduto rodoviário sob os bens

(lugar/espaço) de que os sujeitos são usufruidores. Por isso esboçar algumas considerações sobre o

conceito de risco. Segundo o conhecimento produzido pelas ciências do risco, nas palavras do geógrafo

Fernando Rebelo, a noção de risco está associada aos conhecimentos das variáveis que comportam a

possibilidade de perigo e de crise e sua proximidade (REBELO, 2003; 2010). O risco é o somatório “de

algo que nada tem a ver com a vontade do homem (“aleatório”, “acaso”, “casualidade” ou

“perigosidade”), com algo que resulta, direta ou indiretamente, da presença do homem, a

vulnerabilidade” (REBELO, 2003, p. 259). Numa abordagem antropocêntrica, o conceito de

vulnerabilidade implica a presença humana e não se considera haver risco quando a ação não implica

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com a humanidade ou com os seus bens. Todavia, numa visão holística, qualquer risco, por mais

distante que se encontre da presença humana, afetará sempre a humanidade (REBELO, 2003, p. 252).

Mercedes Pardo aponta alguns aspetos que suportam o entendimento sobre as perceções de

risco descritas neste artigo. Em primeiro lugar, a ideia de que risco está dependente da própria

consciência grupal e social de risco (PARDO, 2002), pautando a ação dos sujeitos perante acontecimentos

que implicam com os espaços, com as pessoas e com os seus recursos. Em segundo plano, a perceção

de risco é relativa e diferenciada, uma vez que não afeta de igual forma todos os indivíduos nem todos os

setores da sociedade (BECK, 1992; BECK; GIDDENS; LASH, 2000; PARDO, 2002). Neste sentido, Pardo

aponta a forma comum de relação social com o risco, geralmente promovida pelas instâncias que detêm

o poder: a opção de remeter o risco para outros lugares da sociedade onde há mais controle social ou

onde a consciência do risco não gere conflitos. Desta forma, a potencial ação coletiva advinda da

perceção do risco não se torna tão possível. Um terceiro aspeto é o facto de que as sociedades

comportam, elas próprias, uma capacidade de produção da perceção do risco, normalizando o que é

perigoso e o que não é perigoso (PARDO, 2002). No caso da problemática em torno do Choupal, este

fenómeno é evidente, uma vez que a ideia de que não há risco na travessia do Choupal por um viaduto

rodoviário é ainda generalizada, quer pelo poder autárquico, quer por um grande número de habitantes

da cidade, quer pelo próprio órgão do governo que deliberou sobre o reduzido risco desta travessia pela

mata.

Considerado o caráter de relatividade do risco, sua necessidade de consciencialização social e

remissão para os “outros lugares” referidos por Pardo, vislumbra-se uma possível interpretação

relacionada com o problema em estudo: territórios com nenhuma ou reduzida ocupação humana estão

sujeitos a ações de transformação artificial, sem que sejam considerados os riscos tecnológicos a que

estão expostos8. Porém, as perceções que cada grupo social desenvolve em torno dos riscos inerentes a

uma ameaça conferem ao risco um papel preponderante na evolução das sociedades e da humanidade

pois, "sans risque, il ne se produirait aucune activité et, à l’évidence, il n’y aurait pas d’innovation

sociale” (PARDO, 2002, p. 2). Tira-se daqui a ilação de que o risco é, portanto, gerador de ação.

No caso em estudo, as perceções de risco que motivaram a ação coletiva resultam da notícia de

construção do viaduto e podem-se organizar em três quadros de perceção de risco e de motivação,

coincidentes com os problemas já anteriormente mencionados: a) de ordem ambiental; b) de ordem

sociocultural; c) de ordem política e de cidadania.

As perceções de risco aliam-se diretamente a um quadro de emoções proveniente do afeto

sentido pelos sujeitos em relação ao espaço da Mata do Choupal e à cidade de Coimbra. Sem este

sentimento de afeto, e consequentes emoções geradas pela iniciativa de construção do viaduto, não se

revelariam perceções de risco. Por outro lado, emergem, mesmo que intangíveis, emoções de ordem

moral e reflexas. Tendo em conta o sentido e a importância apontados às emoções, considera-se que o

sentimento de risco em relação à Mata do Choupal advém então da relação emocional entre os sujeitos e

o lugar em causa, conduzindo a motivações concretas para a ação. O quadro de motivações para a ação

8 Por riscos tecnológicos entendem-se os riscos provenientes da ação humana, as produções industriais, o trânsito, os

transportes (REBELO, 2003).

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coletiva é assim preenchido por uma palete diversificada de perceções, de interesses pessoais, de

processos cognitivos, de valores e de emoções que cada sujeito tem ou sente perante os bens que

usufrui ou em relação aos espaços que valoriza, tornando possível identificar a existência de uma

ameaça concreta ao bem-estar e às condições de vida desejadas por este grupo de pessoas. As

motivações pessoais e as perceções de risco relacionam-se com as experiências, interesses, ideologias e

relações dos sujeitos, nomeadamente neste caso, com: o Choupal; a cidade de Coimbra; um paradigma

de desenvolvimento integrado que comporta expetativas de cidadania próprias. No entanto, interessa

destacar que apesar da diversidade de motivações e da natureza individual das emoções e das

perceções, a ameaça é, no entanto, objetiva, identificada e considerada de forma comum no grupo. Das

entrevistas realizadas emerge um apontar geral da construção do viaduto sobre o Choupal como a

ameaça e a razão da mobilização do movimento cívico com uma ação coletiva.

Em todos os testemunhos dos fundadores da Plataforma do Choupal recolhidos para o estudo

de caso em que se baseia este artigo estão presentes emoções pessoais muito significativas para o

despoletar da ação coletiva. Releva-se, pelas vozes dos atores, uma multiplicidade de emoções relativas

à sua ação no movimento cívico. Emoções como o afeto, a indignação, o choque moral e o medo

estiveram na origem da criação do movimento, por uns, e da agregação ao movimento, por outros. Ao

mesmo tempo observam-se emoções relativas ao sentimento de justiça ou de injustiça em relação às

decisões políticas de transformação daquele lugar e de gestão da cidade e emoções de felicidade e de

tristeza relativas aos sucessos e insucessos do movimento.

O afeto que os fundadores do movimento sentem pelo espaço da Mata do Choupal é de tal

ordem importante que chegam a projetar para aquele espaço uma personalidade humana expressa pelo

recorrente termo “amputação”, quando se referem à construção do viaduto e a outras obras públicas

anteriores que reduziram o espaço da Mata. Observa-se também um conjunto de afetos vinculados a

memórias de infância e à memória histórica e cultural do Choupal e da cidade de Coimbra.

As vozes dos atores, em entrevistas realizadas, transmitem o leque de emoções, de motivações

e de perceções de risco, emersos na sua complexidade, a que interessa tomar atenção.

Foi essa a motivação. Uma predisposição já para questões ambientais. Ali na questão do

Choupal, uma em particular é que eu era utente do Choupal e senti-me pessoalmente

atacado, agredido, com um projeto daqueles (entrevista a Miguel D.).

Chego à Plataforma do Choupal muito mais por questões de ordem urbana, que têm a ver

claramente com o centro histórico, do que propriamente com o atentado evidente que

existe relativamente à Mata do Choupal (entrevista a Luís S.).

Chegamos a ter motivações claramente de visibilidades, protagonismos bacocos, coisas

dessas. Chegamos a ter participações desse tipo (entrevista a Luís S.).

[…] Havia pessoas apenas que achavam que aquele pedaço da sua cidade era de todos

nós, havia pessoas que apenas achavam demasiado o dinheiro, de tudo. As motivações

eram diversas, embora pense que toda a gente tivesse algum... acho que toda a gente

tinha, por um lado, a preocupação com a sua cidade, porque eram pessoas daqui que

queriam viver melhor, isso sim era transversal, e com algum prazer pela natureza, por um

pouco de verde (entrevista a Teresa S.).

A Declaração de Impacto Ambiental emitida pelo governo em 2008, que aprovou o projeto de

travessia do Choupal por uma via rodoviária em forma de viaduto, tornou-se o acontecimento

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desencadeador da ação coletiva. Considerando os fatores de mobilização enunciados por Melucci, este

acontecimento foi essencial para a mobilização dos sujeitos, por ser identificado como adversário em

conflito com os valores, recursos e ideologias que eles consideram em risco (MELUCCI, 1996). A partir do

momento da primeira mobilização inicia-se um percurso evolutivo até à ação coletiva propriamente dita,

no qual a performance da ação coletiva depende da relação de proximidade da ameaça aos bens que os

sujeitos usufruem. Os afetos sentidos pelo espaço do Choupal, pela cidade de Coimbra e, entre

elementos do grupo, nomeadamente por aqueles que demonstraram iniciativa e liderança. A culpa, a

raiva e a indignação surgiram como reação à identificação de uma ameaça tecnológica sobre os espaços

prezados e os valores das pessoas do grupo e tornou-se mais ou menos significativa quanto maior ou

menor foi o sentimento de proximidade de uma ameaça ao Choupal e aos valores culturais e políticos

dos elementos do movimento. A ação da Plataforma do Choupal, entre 2008 e 2010, ilustra muito

significativamente a compreensão deste fenómeno.

Percurso de uma ação coletiva: da ação à desmobilização

Conforme testemunhos dos fundadores da Plataforma do Choupal, o movimento, enquanto

grupo de sujeitos propriamente dito, foi originado pela associação de pessoas sensíveis às notícias

publicadas no blog SOS Choupal, entre 29 de outubro e 11 de novembro de 2008. Constitui-se

maioritariamente por homens e mulheres com anteriores participações na política local da cidade de

Coimbra, quer como cidadãos independentes impelidos por um sentido apurado do exercício da

cidadania, quer como militantes de partidos políticos, nomeadamente do Bloco de Esquerda:

Acho que há um momento inicial, que é um blog [...] que traz uma notícia bombástica que

está planeada a travessia do Choupal por um viaduto. Era o SOS. Cada um por si tomou

conhecimento da existência de um projecto desse género (entrev. A Miguel D.).

Após o conhecimento do blog, alguns sujeitos com anteriores participações cívicas no

concelho de Coimbra e frequentadores da Mata do Choupal conversaram entre si e

decidiram tomar ação (entrev. a Miguel D.).

E dentro desse partido político [a que pertence] eu coordenava a área ambiental e na altura

fiz qualquer coisa dentro do meu partido para alertar para aquela questão. Mas a coisa não

flui por aí. Posteriormente, o que é que acontece? Eu era utente do Choupal. [...] E um dia

deparo-me lá com uma equipa de jornalistas. Eles estavam a entrevistar pessoas e eu parei

e praticamente ofereci-me para ser entrevistado. Na altura anunciei uma coisa que não

existia: que haveria aí um grupo de pessoas que iria começar uma luta. E a partir daí senti-

me comprometido e entrei em contacto com várias pessoas [...]. E dá-se uma primeira

reunião entre aquilo que depois viria a ser um pouco o núcleo duro da plataforma do

Choupal (entrev. a Miguel D.).

Surge uma notícia num jornal local dizendo que havia um blog que abordava a questão do

iminente lançamento de uma empreitada sobre o Choupal. Consultando esse blog, percebi

um bocadinho melhor o que estava em causa, e precisamente vindo de uma reflexão feita

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MONTEIRO, A. A.; MONTEZ, M. M. Sentidos de mobilização e de desmobilização...

229

no concelho da cidade sobre questões absolutamente decisivas que se passam neste

momento com o centro da cidade de Coimbra e da sua relação com rio […]. A minha

questão é esta: enquanto que a reação da generalidade das pessoas que chega, mesmo à

organização do movimento, tem a ver com o grave atentado sobre a Mata Nacional do

Choupal, há outras, como eu, em que a razão pela qual chego tem a ver com aquilo que se

passa no centro histórico de Coimbra, nas questões que têm a ver com mobilidade e com o

entendimento que eu tenho de um fortíssimo potencial da cidade (entrev. a Luís S.).

Ouvi falar sobre o que estava projetado e sobre a iniciativa de algumas pessoas que

queriam combater isso. Achei que valia a pena e fui [...]. E nessa sessão pública, mesmo

no próprio Choupal, falou-se em reuniões [...]. Eram abertas a toda a gente, e assim foi. Fui

uma noite, quem estava na reunião eram pessoas muito diferentes umas das outras, de

formação, de cursos, de filiação política, sei lá. E além disso foi muito acessível, foi fácil

chegar, mesmo não tendo nenhuma participação ativa anterior, ou nenhuma experiência,

digamos, os nossos contributos foram aceites com facilidade, como se fizéssemos parte há

muito tempo (entrev. a Teresa S.).

E, numa dessas minhas idas ao Choupal, fui confrontado com muita gente, junto àquela

pontezita [...]. Parei a bicicleta, fui ver o que era [...] eu vim a saber que se tratava de um

movimento que pretendia impedir ou dificultar, ou arranjar alternativas para o viaduto que

estavam a pretender construir, não é? E pronto, na altura lembro-me que assinei um papel,

portanto constituí-me imediatamente como um dos subscritores da providência cautelar

[...]. E pronto, e passei a envolver-me com a Plataforma do Choupal nas iniciativas que

foram decorrendo... (entrev. a José P.).

No início de dezembro de 2008, os sujeitos realizaram a primeira reunião com cerca de sete

participantes. Nesse momento definiram-se como estratégias: a) obter informação sobre o assunto; b)

avançar com uma subscrição pública; c) realizar um conjunto de ações de animação que captassem a

atenção para o que consideravam ser o problema em causa.

Nós delineámos uma pequena estratégia que passou, precisamente, pela obtenção da

informação mais detalhada sobre a questão e passou pela decisão de se avançar com uma

qualquer subscrição […] e de imediato surgiu a ideia de um “abraço” também, a ideia de

abraçar o Choupal, que se realizou aí em inícios de fevereiro [de 2009] (entrev.a Luís S.).

Depois foi criado um sítio na Internet (atualmente desativado) para informação das atividades

do movimento e do problema. Em fevereiro de 2009 formou-se o grupo que se manteve mais

participativo, constituído por 12 a 20 pessoas com participação frequente nas reuniões. Até ao final de

2010 tinham sido realizadas 38 reuniões. Para promoção da causa, e da Mata do Choupal, o movimento

definiu a realização de atividades que mobilizassem a população de Coimbra, e chamassem a atenção

dos meios de comunicação social, e da sociedade portuguesa. Interessava fazer compreender o Choupal

enquanto espaço a preservar na cidade e alertar para a ameaça de que consideravam estar a ser alvo.

Foi então definido um conjunto de atividades para as quais mobilizaram outras organizações e sujeitos,

entre os quais artistas e personalidades conhecidas da sociedade portuguesa. O historial da ação

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coletiva da Plataforma do Choupal contemplou atividades de grande mobilização de pessoas, entre

dezembro de 2008 e a primavera de 2009, que se podem observar nos Quadros 1 e 2. Dessas destacam-

se as seguintes:

a) petição para a Assembleia da República, com 11 mil assinaturas;

b) concerto em defesa do Choupal, no qual participaram artistas conceituados;

c) “abraço” ou “cordão” em volta da mata, onde participaram cerca de 1.300 pessoas;

d) 48 horas de atividade física no Choupal, que mobilizou diversos clubes e associações desportivas e

atletas.

Fonte: Elaboração própria com base nas entrevistas realizadas.

Atividade Data Descrição Local Organizações parceiras Nº de

Participantes

Petição pública

2009

Petição contra a construção da IC2 e

contra a declaração de impacte

ambiental do secretário de Estado

do ambiente.

Internet

____ 10.000

“Cordão

humano pelo

Choupal”

15 de

fevereiro

2009

“Abraçar” o Choupal com pessoas

juntas.

Mata Nacional

do Choupal

ICNB;

Bar do Choupal;

ESECTV;

Escoteiros do Grupo 222

de Escoteiros da Adémia.

1.300

“Primavera pelo

Choupal”

21 de

março

2009

Espectáculo artístico com a

participação de: Manuel João Vieira;

JP Simões; Ena Pá 2000; Diabo a

Sete; Quarto Minguante.

Teatro

Académico Gil

Vicente (TAGV)

TAGV;

ESECTV;

Quarto Minguante;

Diabo a Sete.

Sem dados

“Limpeza do

Choupal”

10 de

maio

2009 e

20 de

março de

2010

Limpeza parcial da Mata do

Choupal.

Mata Nacional

do Choupal

ICNB;

CM Coimbra

Grupo 222 Escoteiros da

Adémia

Iniciativa Limpar Portugal

50

“Uma espécie

de corrida pelo

Choupal”

26, 27,

28 de

junho de

2009

48 horas de prática desportivas,

sem interrupção.

Mata Nacional

do Choupal

ICNB;

Bar do Choupal;

Centro Hípico de Coimbra;

Clubes de Atletismo;

Clubes Desportivos.

Sem dados

“Outono pelo

Choupal”

Outubro

de 2009

Ateliers de índole ambiental e

artística com crianças, dinamizadas

pelo pintor Mário Silva.

Mata Nacional

do Choupal Associação

Ambientalidades. Sem dados

Debate político

sobre Choupal

Debate entre candidatos à

autarquia, relativo ao Choupal e à

construção da IC2.

Mata Nacional

do Choupal

____ Sem dados

Quadro 1

Atividades pontuais realizadas pelo movimento cívico Plataforma do Choupal

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Quadro 2

Atividades frequentes e/ou contínuas realizadas pelo movimento cívico Plataforma do Choupal

Atividade Data Descrição Local Organizações

parceiras

Nº de

Participantes

Reuniões

semanais

Até julho

2009 = 28

Até fevereiro

2010 = 38

Reuniões de discussão de

estratégias e propostas de

atividades.

Galeria-Bar Santa

Clara; Café Santa

Cruz; Café Trianon;

Café Avenida

___

De 8 a 20.

Com

frequência: de

12 a 14.

Ação judicial De 2009 até

à atualidade

Ação judicial contra a DIA,

interposta por elementos

da Plataforma do Choupal

mas não formalmente pelo

movimento.

Tribunal

Administrativo e

Fiscal de Coimbra

____ 22

Reuniões com

deputados e

grupos

parlamentares

De 2009 a

2010

Reunião com deputados e

grupos parlamentares de

vários partidos políticos

para sensibilização para o

problema do Choupal.

Coimbra;

Assembleia da

República

____ Sem dados

Fonte: Elaboração própria com base nas entrevistas realizadas.

Ao longo do ano de 2009 o movimento realizou uma série de atividades nos campos jurídico,

sociocultural e político. Mas, ao mesmo tempo, conjugaram-se acontecimentos pessoais, políticos e

económicos que afetaram os dois lados do conflito, resultando na gradual desmobilização do movimento.

No plano económico: o brusco surgimento da atual crise, que condicionou politicamente a

despesa pública em obras que ainda não estavam adjudicadas e consideradas não urgentes nem

relevantes para o desenvolvimento nacional.

No plano político: deram-se mudanças no executivo da autarquia e do governo. Por um lado,

segundo testemunhos dos atores, a autarquia manteve a sua postura de ignorar o movimento, apesar

dos pedidos de reunião e manteve o entusiasmo na obra em questão. Por outro lado, foi anulado o

concurso de adjudicação da obra, condicionado pelo orçamento público e por opções do governo

nacional. Também se inscreve no plano político o conjunto de fatores com relevância no interior do

movimento cívico. Com efeito, revelaram-se conflitos latentes, mas não assumidos, resultantes das

diferentes perceções de risco, motivações e orientações, para a ação. Surgiram também problemas

relativos à forma de liderança assumida pelo movimento, que se pretendia democrática e aberta à

participação de todos os elementos, mas que resultou num conflito mudo entre potenciais líderes ou

entre elementos com visões distintas sobre a orientação para a ação do movimento. Tal comportamento

organizacional condiz com características das iniciativas consideradas de orientação militante e

condicionou a participação efetiva dos elementos do grupo. Consequentemente, a evolução do grupo, em

coerência com os seus valores, confrontou-se com as necessidades de encarar o futuro enquanto

movimento social e de perpetuação da sua ação no tempo:

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 217–237

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Não [havia nenhum tipo de liderança], obviamente havia pessoas que tinham, eu não digo

mais disponibilidade de tempo, mas que se disponibilizaram mais em termos da sua vida e

do seu tempo para isso. E, obviamente, estavam mais presentes, sabiam mais do assunto,

tinham conhecimentos mais técnicos desta ou daquela área, estavam mais ao corrente do

que se estava a passar, e obviamente tiveram uma posição mais preponderante, sim

(entrev. a Teresa S.).

Ela [liderança] nunca foi discutida. Eu acho que as coisas aconteciam por acontecer, e

aconteciam de uma forma espontânea e quase natural. As pessoas agiam um pouco de

acordo com aquilo que podiam dar à plataforma (entrev. a Miguel D.).

Neste plano, e em relação à estrutura e à liderança, o movimento identifica-se com o perfil

considerado de “militante”, quando reportado à tipologia das iniciativas de desenvolvimento local

apresentada por A. Monteiro (2004b). Um tal perfil assenta em valores herdados dos movimentos sociais

dos anos 1960 e 1970, confronta-se ideologicamente com o modelo dominante de governança e recusa

modelos de gestão organizacional tradicionais, preferindo uma orientação de acordo com princípios de

solidariedade, democracia e autonomia, operacionalizado por contribuições de cada participante para a

ação (MONTEIRO, 2004b, p. 10-11). Por força destas características e tendo em conta outras experiências,

como a do movimento espanhol Salvem El Cabanyal, em Valência, são a liderança e a existência de uma

estrutura que se constituem como os fatores de sucesso de um movimento. Emílio Martinez, atual

dirigente do referido movimento, afirma que “necessariamente deben haber lideres reconocibles por

todos” (entrevista a Emílio M.) e aponta como fatores determinantes para a força e o dinamismo do

movimento a existência de “objetivos, liderazgo, creatividad, empatia” (entrevista a Emílio M.).

No plano pessoal: Luís S. e Miguel D., dois elementos fundadores, considerados mais ativos do

movimento, foram pais pela primeira vez e um destes elementos passou a residir na cidade do Porto, por

razões familiares. Estas alterações nas vidas pessoais afetaram as suas disponibilidades, alteraram as

prioridades e o grau emocional que os matinham na ação coletiva, influenciando a energia ativa do

movimento.

Pelas razões anteriormente apresentadas, a relação entre o movimento e a ameaça sofreu

também uma mutação significativa. Os elementos da Plataforma do Choupal sentem que esse ainda está

em risco; apontam os fenómenos acima descritos como causas de estagnação da ação do movimento,

embora nunca o considerem extinto; e assumem uma desmobilização dos atores sociais. Miguel D.,

fundador do movimento, reconhece que “Agora, neste momento, a plataforma, objetivamente, está

parada” (entrevista a Miguel D.). Segundo os fundadores do movimento, deve-se isto ao cansaço

acumulado, e ao ritmo das vidas pessoais e profissionais dos elementos do movimento. Estes e outros

atores confirmam:

A minha explicação para isso é muito simples, é que de facto a ameaça deixou de existir e

portanto as pessoas relaxaram. Verdadeiramente, aquilo que é importante aqui é isto: a

ameaça real e iminente é retirada, o movimento enfraquece (entrev. a Luís S.).

[…] a intensidade da luta diminui imenso. Diminuiu imenso por vários fatores: um foi

precisamente a anulação do concurso, a perceção de que começámos a ganhar, de que do

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MONTEIRO, A. A.; MONTEZ, M. M. Sentidos de mobilização e de desmobilização...

233

outro lado havia uma fraqueza que era a fraqueza financeira, que possivelmente não

haveria dinheiro para realizar a obra e acho que foi sobretudo por essa via que se deu

alguma desmobilização da plataforma (entrev. a Miguel D.).

Os fatores externos é que determinavam se precisávamos de nos mexermos mais ou não,

que aquilo não é nenhum grupo profissional […]. Quando a ameaça se encontrava mais

próxima, a perceção da ameaça era mais clara e a sensação de risco era maior (entrev. a

Teresa S.).

Pistas e hipóteses

Partindo da análise efetuada sobre o percurso da ação coletiva da Plataforma do Choupal, no

qual ressalta a relação radical entre ação e desmobilização, apresentam-se articuladamente pistas e

hipóteses que podem contribuir para a compreensão deste fenómeno.

A ação coletiva apresentada parte da tensão existente entre os movimentos sociais e a

democracia (PEREIRA, 2012), e assenta num conflito em torno de modelos de compreensão do conceito

de desenvolvimento. É notória a preocupação do movimento com práticas integrantes de um paradigma

de desenvolvimento assente em princípios de sustentabilidade e democracia: por um lado, a valorização

do debate e da participação na tomada de decisão; por outro, a contestação a um modelo político

obscuro que atende a interesses financeiros privados mais do que aos padrões atuais de qualidade de

vida e de sustentabilidade ambiental e social. Contudo, tendo em conta os indícios de uma falta de

projeto e de liderança assumida no grupo, e os testemunhos que apontam para a existência de

motivações orientadas por protagonismos políticos e pessoais, observam-se na Plataforma do Choupal

discrepâncias entre as práticas de gestão do grupo e o modelo de governança que contestam. Torna-se

difusa a coerência entre o paradigma de desenvolvimento de referência e os valores e práticas que se lhe

atribuem, complexificando a compreensão da ação coletiva enquanto ação concreta contra uma ameaça

portadora de valores antagónicos. É possível que estas características determinem um nível de

organicidade e de uma capacidade de ação ao longo do tempo, insuficientes para que uma ação coletiva

desta natureza se transforme, como apontam alguns autores, em movimento social (CHINCHILA, 2006).

Com feito, fatores como a identidade coletiva, a identificação de um adversário, a definição de um

propósito e um objeto concreto posto em causa no conflito (MELUCCI, 1996; ESTANQUE, 1999) são

essenciais para que a mobilização ocorra com sucesso.

Outra pista para a compreensão da ação coletiva prende-se com a perceção de risco e de

perigo, e sua relação com a ação. Como se verificou no percurso do movimento cívico, o momento de

maior ação coincide com o momento de maior intensidade da ameaça. A partir daqui levanta-se a

hipótese de existência de uma dinâmica assente na relação de proximidade entre a ameaça e as

perceções de risco e perigo sentidas pelos sujeitos, em impulsos de ordem emocional mais do que de

ordem racional. Pela proximidade ou afastamento em relação aos bens que os sujeitos usufruem, a

ameaça alcança, neste caso, um papel extremamente relevante: quando próxima, intensifica a perceção

de risco e de perigo, sentidos coletivamente, e assim potencializa a mobilização de recursos e o

despoletar da ação coletiva, no que denominamos “sentido ascendente”; quando distante, alivia o

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, 2015, p. 217–237

234

sentimento de risco e perigo do coletivo, e influencia a desmobilização da ação coletiva, no que

denominamos de “sentido descendente”. A Figura 1 representa graficamente esta dinâmica:

Figura 1

Sentidos da ação coletiva

Fonte: Elaboração própria com base nos dados recolhidos.

Esta hipótese ilustra-se pela comparação entre a desmobilização da Plataforma do Choupal,

após dois anos de ação, com a perpetuação de 13 anos verificada no movimento Salvem El Cabanyal

face à constante ameaça de demolição do bairro pelas autoridades valencianas. Segundo o dirigente, a

ação do seu movimento mantém-se “porque el problema sigue estando”. Conforme a sua experiência, a

ameaça influi no dinamismo da ação no sentido em que “cuanto mayor es la amenaza hay una mayor

implicación, una mayor predisposición a colaborar con las propuestas que surjan y hay una implicación

más personal” (entrevista a Emílio M.).

Notas Conclusivas

O estudo de caso aqui apresentado tinha como objetivo primeiro o de compreender a ação

coletiva de um movimento cívico considerado como pequeno grupo e de que forma a sua ação contribuía

para a produção de um movimento social transformador da sociedade. A procura de razões para a ação

coletiva deste movimento, através da investigação, provocou, por sua vez, o efeito inesperado de

produção de uma reflexão sobre a ação por parte dos elementos mais ativos, numa altura em que o

> Proximidade

da Ameaça

Mobilização/

> ação

< Proximidade

da Ameaça

Desmobilização/

< ação

Organização

Estrutura

Liderança

Participação

Projeto

Objetivos

Animação

AÇÃO COLETIVA

Sentid

o de

scen

dent

eSen

tido

asce

nden

te

Militância

Disponibilidades pessoais

Liderança aberta

Contributos pontuais

Desgaste

“A minha explicação para isso é

muito simples, é que de facto a

ameaça deixou de existir e

portanto as pessoas relaxaram.”(Luís S. , fundador do movimento)

A mim o projecto do viaduto causa alguma repulsa,

porque nós temos assistido, de alguns anos a esta

parte, a um delapidar da área florestal do Choupal. […]

a génese da Plataforma é indiscutivelmente o viaduto,

não é? (Entrevista a José P., participante no movimento)

> Proximidade

da Ameaça

Mobilização/

> ação

< Proximidade

da Ameaça

Desmobilização/

< ação

Organização

Estrutura

Liderança

Participação

Projeto

Objetivos

Animação

AÇÃO COLETIVA

Sentid

o de

scen

dent

eSen

tido

asce

nden

te

Militância

Disponibilidades pessoais

Liderança aberta

Contributos pontuais

Desgaste

“A minha explicação para isso é

muito simples, é que de facto a

ameaça deixou de existir e

portanto as pessoas relaxaram.”(Luís S. , fundador do movimento)

A mim o projecto do viaduto causa alguma repulsa,

porque nós temos assistido, de alguns anos a esta

parte, a um delapidar da área florestal do Choupal. […]

a génese da Plataforma é indiscutivelmente o viaduto,

não é? (Entrevista a José P., participante no movimento)

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MONTEIRO, A. A.; MONTEZ, M. M. Sentidos de mobilização e de desmobilização...

235

movimento se desativava. O testemunho de cada sujeito da ação, dado em entrevistas, a formulação de

hipóteses e a partilha de resultados com os seus elementos têm conduzido a uma vontade de reativação

da ação do movimento, manifestada por alguns dos seus fundadores. A abordagem etnográfica e indutiva

em que assentou o estudo de caso trouxe ganhos específicos na relação entre o investigador e os atores

sociais, permitiu uma partilha na compreensão dos fenómenos aqui expostos e desvendou o carácter

emocional e subjetivo dos testemunhos, tão relevante para a produção de hipóteses. Foi motivante no

sentido em que a investigação decorreu de um posicionamento também militante, sob a

responsabilidade de compreender o percurso crítico desta ação coletiva e, talvez, também de a reavivar.

Contudo, constatou-se que um movimento cívico não se sustenta pela condição meramente militante dos

seus elementos. Ele necessita de um projeto a médio-longo prazo e de uma ambição que se

operacionalize através de ações estruturadas, e para os quais faz sentido o recurso a metodologias

sociais específicas, como a animação sociocultural. Como tal, este artigo enceta um possível ponto de

partida para uma investigação centrada no papel dos animadores e animadoras socioculturais na ação

coletiva, e do seu contributo na geração de movimentos sociais contemporâneos, tendo como

pressuposto a hipótese levantada em torno da dinâmica de ação e de desmobilização da mesma e o

carácter militante desta metodologia social.

Apesar do sentimento de afastamento e da efetiva desmobilização do movimento, a ameaça

persiste sobre o Choupal, e sobre outros bens públicos que se encontram na encruzilhada entre os

discursos e as ações políticas, suportadas por ilusões populistas e modelos de desenvolvimento

dificilmente sustentáveis. Com eles, estão em risco também práticas, direitos e liberdades conseguidas

por anteriores ações e movimentos. Por isso, a ação coletiva é um campo de estudo de atual importância

científica, social e política. Compreender a subjetividade inerente à ação coletiva, assim como a dinâmica

dos seus dois sentidos, é ajudar a garantir uma ação coletiva que comprometa cada sujeito com a ação

transformadora da sociedade, à escala local e global, na contestação dos poderes dominantes. Ao

mesmo tempo, conquistam-se novas soluções de governança e de exercício da cidadania.

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Alcides A. Monteiro - [email protected]

Mário Miguel Montez - [email protected]; [email protected]

Submetido à publicação em dezembro de 2012.

Versão final aprovada em setembro de 2014.

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April 2015 Vol. 21, nº 1

OPINIÃO PÚBLICA

Campinas

Vol. 21, nº 1 p. 1-237

April, 2015

ISSN 1807-0191

ISSN 1807-0191

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