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Revista Global Brasil numero 02

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Page 3: Revista Global Brasil 02

Seção 1 GLOBAL

Com o lançamento desse número 2, o projeto GLOBAL se consolidacomo um instrumento de debate e de participação que assumea globalização como uma dinâmica aberta aos movimentos sociais,propondo uma crítica ao neo-liberalismo que não fique presaa falsas alternativas.A pior dessas falsas alternativas é a de uma esquerda que não chega aoutra conclusão senão a de apontar, como saída para a crise atual,uma volta ao passado. Um passado de compromissos inter-classistasinspirados, principalmente, no nacional-desenvolvimentismo.Esta tentação é alimentada pelas polêmicas – animadas também porfiguras que nem são de "esquerda" – sobre a política econômica dogoverno Lula, vide a ênfase emblemática do vice-presidente ao atacar,ao mesmo tempo, o Movimento dos Sem Terra e a taxa de juros.Trata-se de uma alternativa falsa porque a questão não está apenasnos obstáculos externos ao crescimento do Brasil (o FMI), mas nacapacidade interna de enfrentar as forças que, no Brasil, se opõem amudanças essenciais na distribuição de renda e na materialização dacidadania que seriam as condições de uma mobilização produtiva dasociedade brasileira, inclusive diante do FMI. É no enfrentamentodessas forças que podem ou não se dar as condições para se redefinire se renegociar a inserção do Brasil nos fluxos globais.O governo Lula – governo de coalizão – avançou nesse sentido.O Brasil de Lula e a Argentina de Kirchner (e vice-versa) estão emcondições completamente novas para negociar com o FMI. A políticaglobal, muito próxima dos movimentos pela paz e contrao unilateralismo da administração Bush, tornou o governo Lula umareferência, inclusive para o novo primeiro ministro espanhol.Esse é o único modo de encarar a questão da ética e a irresponsávelhipocrisia mobilizada em torno do "caso Waldomiro". Irresponsávelporque visa desestabilizar o resultado de um ano de esforços emtermos de política econômica. Hipócrita porque, tentando afirmar que"o PT também" não é ético, tenta acabar com toda perspectiva deconstituição de um governo virtuoso. Nem o moralismo no qual partedos militantes do próprio PT tende a cair nem a tentativa de dizer queé um caso herdado do passado podem explicar o acontecido. O únicomodo de se governar de modo ético é opondo a virtude à fortuna:o governo de todos ao de poucos. A ética precisa dos movimentos quelutam pela universalização dos direitos diante dos blocos que defendemo passado – inglório – de um poder construído sobre a escravidão e oescravagismo. Essa clivagem não poderá nunca ser ofuscada pelomoralismo eleitoreiro do poder constituído. A ética do governo Lulanão se confunde com a moral de sua gestão da representação, masencontra-se nas formas de participação dos movimentos popularesdas quais ele é, mais do que um símbolo, uma concretização.Nessa direção, as questões essenciais que estão em pauta são as quese relacionam com a produção e a difusão do conhecimento. A novarelação que pode ser estabelecida, por exemplo, entre os movimentosculturais e artísticos de resistência e os movimentos deuniversalização do acesso ao ensino superior (que reivindicam açõesde redução afirmativa das desigualdades sociais e de suas basesracistas), relação que pode encontrar na reforma universitária umterreno de abertura. Esses movimentos materializam uma nova relaçãoentre arte e trabalho que precisa de uma nova plataforma de políticaspúblicas, por exemplo, a da renda universal.

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GLOBAL. 2 Sumário

Jornalista responsávelFábio Luiz Malini de Lima

Comitê Editorial e Coordenação ExecutivaAlexandre do NascimentoBarbara SzanieckiCaio Márcio SilveiraEcio de SallesEricson PiresFábio MaliniFrancisco GuimarãesGerardo SilvaGiuseppe CoccoGraciela HopsteinIvana BentesLeonora CorsiniMaria José BarbosaPatricia Fagundes DarosPedro Cláudio Cunca BocayuvaPeter Pál PelbartRonald DuarteTatiana Roque

Conexões GlobaisAntonio Negri (Itália), F. Ingrassia(Argentina), Javier Toret (Espanha), LucaCasarini (Itália), Marco Bascetta (Itália),Michael Hardt (Estados Unidos), NicolásSguiglia (Espanha), Raul Sanchez(Espanha).

Conselho EditorialAdriano PilattiAlexandre VoglerAna MonteiroAndré BasseresAndré UraniCharles FeitosaEmanuele LandiEugênio FonsecaFernando SantoroHermano VianaJoão Almeida SobrinhoJoel BirmanJô GondarJorge DavidsonKiko NetoLeonardo PalmaLiane FreireLorenzo MacagnoLuis AndradeLuiz Camillo OsórioMárcio CalvãoMarta PortoMauro Sá Rego CostaSimone SampaioSuely Rolnik

Revisão dos TextosFábio GoveiaFábio MaliniLeonora Corsini

DesignBarbara Szaniecki / Do Lar Design Ltda

Pesquisa de ImagemRonald Duarte

CapaBanquete Antropofágico de Lygia Pape, 2000.Coleção Ronald Duarte.Foto Paulo Innocêncio

Participaram deste número / TextosAlexandre do NascimentoAngela Detanico e Julia RodriguesÉcio de SallesEricson Pires e Daniel Castanheira (Hapax)Fabiane BorgesFrancis SodréGiuseppe CoccoGilmarGraciela HopsteinHermano VianaHoracio TarcusInés FernándezIvana BentesJailson de Souza e SilvaJairo NicolauJô GondarJoel BirmanLeonora Corsini e Patricia F. DarosMarisa Nogueira GreebMauro Sá Rego CostaMaurício RochaPedro Claudio Cunca BocayuvaPeter Pál PelbartSilvio MieliTatiana RoqueParticiparam deste número / ImagensAlexandre VoglerBel PedrosaCristina PapeEdouard FraipontEdson BarrusEduardo MoraisGrupo RecolectivoLygia PapePaulo InnocêncioMaurício DiasMaurício J. MarchevskyMirela LuzRafael AdaimeRonald DuarteRomanoSalgueiro DiasSandra MoraesWalter RiedwegWilton MontenegroYann Beauvais

QuadrinhosCarlos Contente

GLOB(AL) é uma publicação da RedeUniversidade Nômade.CIEC/UFRJ - Avenida Pasteur, 250 - 3o Andar -Prédio Anexo ao CFCH - 22290-240 - Urca RJTel 55 21 3873 5216/17/18/[email protected]

GLOB(AL) é a edição brasileira associadaao GLOBAL PROJECT ao qual pertencem tam-bém GLOBAL en espanhol [email protected] GLOBAL magazine/Itáliawww.globalmagazine.org

Distribuição Conrad EditoraTel (011) 33466007 / 33466088

Trânsitos

Acontecimento Negri

Conexões Globais

Quadrinhos

Trabalho/Arte

Universidade Nômade

Maquinações

Os artigos assinados são deresponsabilidade de seus autorese não refletem necessariamente a

opinião da revista.

RED

EUN

IVERSIDADE NÔMADE

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Sumário 3 GLOBAL

(01)

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(06)

(08)

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(56)((

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Editorial

Toma lá, dá cá Jairo Nicolau

A queda da Parmalat e os “bond people” Giuseppe Cocco

Direitos dos estrangeiros no Mercosul Leonora Corsini e Patricia Fagundes Daros

Quando há um só mundo, aonde vão as viagens? Maurício Rocha

Campo de luta Jailson de Souza e Silva

“Não creio que exista algo como o inconsciente”Jô Gondar

Negri e os Estados Gerais da Psicanálise Joel Birman

Comunismo da imanência Peter Pál Pelbart

Negri, Stédile, uma conversa Silvio Mieli

Negriana Ericson Pires e Daniel Castanheira (Grupo Hapax)

Olhos noutra Europa Tatiana Roque

O poder constituinte na Bolívia Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

Entre a velha e a nova esquerda Horacio Tarcus

O mercado de Bonpland – Ocupação e reconstrução do espaço público Inés Fernández

Paraíba Ninja Carlos Contente

Intermitentes Tatiana Roque

Software livre ou morte! Hermano Viana

Ocupação de espaços, almas e sentidos Fabiane Borges

Participarás Angela Detanico e Julia Rodrigues

Imaginário Periférico Mauro Sá Rego Costa

Rio-Buenos Aires, zonas de turbulência e invenção Ivana Bentes

A universidade estatal é pública? Alexandre do Nascimento

Loucos pela universidade Francis Sodré

A realidade da imagem argentina Graciela Hopstein

Inquietação e fúria Écio de Salles

Nasce uma política de grupos Marisa Nogueira Greeb

Pirataria Gilmar Rodrigues

brasil

G L O B A L

Page 6: Revista Global Brasil 02

GLOBAL. 4 Trânsitos

O presidente da Câmara dos Depu-tados, João Paulo Cunha, anunciouque a proposta de reforma políticaelaborada pela Comissão Especial, cujorelator é o deputado Ronaldo Caiado,deverá ser votada ainda neste semes-tre. Pelo cronograma do governo avotação ficaria para 2005, mas asdenúncias envolvendo WaldomiroDiniz precipitaram os fatos, comogostam de dizer os políticos. Comovários outros escândalos que abalarama política brasileira nos últimos anos, ocaso Waldomiro tem origem no finan-ciamento ilícito das campanhas. Porisso, entre os diversos tópicos da pro-posta de reforma, destaca-se a adoçãodo financiamento público das campa-nhas eleitorais, vista como antídotocontra a corrupção eleitoral.Três características do sistema de finan-ciamento de campanhas em vigor noBrasil chamam a atenção. A primeira éo alto custo das campanhas eleitorais.Na última eleição, os quatro candidatosmais importantes na disputa presiden-cial declararam ter gastado cerca de 60milhões de reais. A comparação comoutros países é difícil, por conta de umasérie de fatores: o sistema eleitoral, onúmero de eleitores, o valor da moedae a renda da população. Mas, só parase ter uma idéia, na França um can-didato a presidente pode gastar, nomáximo, 22 milhões de reais no pri-meiro turno e 30 milhões no segundo(valores de 2000). Nos Estados Unidos,os dois principais candidatos daseleições presidenciais de 2000 recebe-ram do fundo público cerca de 134 mi-lhões de dólares – grande parte dessesrecursos foi gasto na compra de tempona televisão, já que lá não existehorário eleitoral gratuito.As campanhas brasileiras são caras poruma série de razões. Nas disputas parao Executivo, a modernização das técni-cas de campanha (com o uso intensivo

de pesquisas, produção de sofisticadosprogramas de rádio e televisão, contra-tação de profissionais demarketing, pro-dução de elaboradomaterial de publici-dade) encareceu em demasia os custos.Nas eleições proporcionais, o grandenúmero de candidatos e de partidos e otempo reduzido no horário eleitoralincentivam que os candidatos gastemcada vez mais, para garantir umavotação que os torne competitivos.Um segundo fator a destacar é que ascampanhas brasileiras são fortementedependentes das doações de empre-sários. Dados compilados pelo cientistapolítico David Samuels revelam que80% dos recursos declarados pelos can-didatos a presidente em 2002 vieramde doações das empresas. Estas nãosão feitas de maneira neutra: partidospequenos e de esquerda recebemmuitomenos do que outros. Nas eleições de1998, a candidatura de Luis Inácio Lulada Silva declarou ter gasto 2,2 milhões;só o Banco Itaú doou mais do que isso(2,6 milhões) para a campanha deFernando Henrique Cardoso. Em 2002,o PT recebeu expressivas doações deempresas, mas outros partidos tiveramdificuldades de arrecadar recursos.

É dando que se recebeA dependência de recursos das empre-sas para as campanhas levanta a sus-peita (algumas vezes comprovada) deque determinadas políticas públicassão implementadas para favoreceralguns doadores, ou de que certasdoações são retribuições a políticas defavorecimento às empresas realizadasno passado. Por isso, na maioria dospaíses, as doações diretas das empre-sas para os políticos são proibidas oumuito limitadas.Um último aspecto a chamar a atençãoé que, embora o país tenha melhoradomuito o sistema de prestação de contasdos gastos de campanha, a arreca-

dação ilícita é uma prática corriqueira.É impossível saber quanto é arrecadadoilicitamente, mas as diversas denúnciasrevelamque o fenômeno é generalizado.Um agravante neste caso é o fato deque os recursos não vêm somente docaixa “dois” de empresas tradicionais,mas de redes conectadas ao crimeorganizado e à informalidade (bichei-ros, empresários de bingo, igrejas, nar-cotráfico). Ou seja, agentes que, emmuitos casos, sequer têm o caixa “um”.Sair da situação atual não é tarefa dasmais simples. A opção proposta pelacomissão de reforma política é proibirque os candidatos recebam recursosprivados e passem a fazer campanhasexclusivamente com os recursos públi-cos. Nos últimos anos, diversos paísestêm adotado alguma forma de subsídiopara financiamento dos partidos e dascampanhas. Esses recursos podem serindiretos (impressão de material, loca-ção de imóveis, horário nos meios decomunicação), ou, o que é mais raro,diretos (dinheiro para cobertura de gas-tos realizados).

Publicidade inimigaO Brasil já oferece um subsídio de cam-panha indireto, o horário eleitoral gra-tuito, que custa aos cofres públicoscerca de 1 bilhão, pois as redes derádio e televisão recebem isenção fiscalpelo tempo ocupado pelos candidatos.O projeto que será votado propõe queseja criado um fundo para financiartambém os gastos de campanha. Osrecursos do fundo viriam do tesouro, eseriam da ordem de 7 reais por eleitorinscrito para votar. Se tomarmos onúmero de eleitores de 2002 comobase, os recursos para o financiamentoestariam na casa de 810 milhões. É jus-tamente a publicidade deste valor opior inimigo do financiamento público.Convenhamos, tirar dinheiro do orça-mento para financiar as campanhaseleitorais não é uma causa das maispopulares.O projeto estabelece um complexo sis-tema de distribuição dos recursoslevando em conta a representatividadedos partidos. Calculei os recursos quecada partido receberia para as eleiçõesde 2006, segundo a votação obtida em2002. O resultado para os principaispartidos é o seguinte: PT (132 milhões),PSDB (104 milhões), PFL (98 milhões),PMDB (98 milhões), PP (60 milhões),

Após o caso Waldomiro Diniz, a opção definanciamento público das campanhas políticas

ganha força. Resta saber quem vai pagar a conta.

Toma lá, dá cáJairo Nicolau

Page 7: Revista Global Brasil 02

Trânsitos 5 GLOBAL

Querubins de Maurício J. Marchevsky para o evento Imaginário Periférico.Foto de Sandra Moraes

PSB (42 milhões), PDT (41 milhões),PTB (38 milhões) e PL (35 milhões).Parte desses recursos seria administra-da pelos diretórios nacionais dos par-tidos (30% se tiver candidato àpresidência e 20% se não tiver), e parteseria transferida para os diretóriosestaduais. Por exemplo, o diretórionacional do PT administraria 41,7 mil-hões, a serem utilizados na campanhapresidencial. Os valores são significa-tivos para a campanha nacional. É pre-ciso observar com mais cuidado se osdiretórios receberão recursos sufi-cientes para a campanha nos estados.Um dos riscos desse sistema é quealguns diretórios recebam poucosrecursos e que candidatos sejam estim-ulados a buscar “complementos” nomercado paralelo de financiamento.Também faz parte da proposta um rolde punições para os candidatos edoadores que violarem a lei. Umaempresa, além de pagar multa, podeficar proibida de participar de licitaçõese de celebrar contratos com o poderpúblico. Os candidatos podem ter o

registro ou diploma (se eleito) cassadoe os partidos poderão ter seus votosanulados. Omaior problema é que hojeos Tribunais Regionais Eleitorais nãotêm como fiscalizar detalhadamente seos candidatos realmente gastaram o quedeclararam, pois falta pessoal e muitosprocessos se acumulam sem serem jul-gados. O financiamento público deveser acompanhado por medidas quecapacitem os tribunais eleitorais compessoal e recursos para fiscalizar osgastos.O relator Ronaldo Caiado tem insistidoque a aprovação do financiamentopúblico deve estar associada à intro-dução da lista fechada nas eleiçõespara o Legislativo. Pelo novo sistema,os partidos ordenariam a lista de can-didatos antes da eleição, cabendo aoeleitor só votar na legenda. Ele temrazão ao dizer que o financiamentopúblico dificilmente daria certo com oatual sistema eleitoral, no qual mi-lhares de candidatos competem a umavaga no legislativo. Seria impossívelgarantir recursos suficientes e fiscalizaros gastos de campanha a contento.

Caixa dois continuaA opção pela lista fechada encontraresistências no meio político, sobretu-do entre algumas lideranças quetemem ficar reféns das burocracias par-tidárias. Por isso, a associação de doistópicos diferentes em sua natureza (osistema eleitoral estabelece como osvotos serão dados e contados, enquan-to o financiamento como os competi-dores podem gastar os recursos) podedificultar a aprovação do financiamen-to público. Um aspecto que deve ficarclaro é que nenhuma proposta temcomo garantir o fim do caixa dois. Nãohá como inventar um sistema que nãoseja vulnerável à corrupção eleitoral,sobretudo em economias com o graude informalidade da brasileira.Mas, o financiamento público, acom-panhado por rigoroso sistema de fisca-lização e de severas punições, é a me-lhor opção que temos para sair do pés-simo sistema de financiamento emvigor no país. Os benefícios para ademocracia brasileira (competiçãomais equilibrada, fim de doaçõesdesiguais das empresas, mais legitimi-dade dos representantes, declínio dacorrupção eleitoral) compensam emmuito as possíveis imperfeições. Atémesmo a pior delas, a continuidaderesidual do caixa dois.

Page 8: Revista Global Brasil 02

A queda da

PARMALATGLOBAL. 6 Trânsitos

Ovo no asfalto,pintura de Alexandre Vogler, Rradial.

Page 9: Revista Global Brasil 02

Trânsitos 7 GLOBAL

O escândalo da quebra da multina-cional italiana Parmalat junta-se, comseus números estrondosos, ao daamericana Enron e a muitos outros.Em face de caixas completamente va-zios, a dívida acumulada pela Parmalat– sem que nenhum órgão de controlebancário e financeiro a detectasse – éde cerca de R$ 50 bilhões, do tamanhodos pacotes de ajuda financeira quepaíses como o Brasil negociam com oFMI.O escândalo apenas mostra o que jásabíamos: contrariamente ao que sediz, o interesse privado não represen-ta nenhuma garantia de eficiência eainda menos de rigor e ética. Naobscena transparência dos casosEnron, WorldCom, Crédit Lyonnais,Vivendi e agora da Parmalat, a cor-rupção aparece pelo que ela é: um ele-mento funcional e sistêmico daprópria lógica privada dos mercados enão o desvio da norma.Mas, por trás do que já sabíamos (enão faz mal lembrar), as condições daquebra da empresa italiana mostramelementos inovadores. Um primeirotem a ver com o fato de que, desta vez,não se trata de uma forma tradicionalde empresa, mas de uma rede, ou seja,da federação de uma vasta rede deprodutores independentes na base docontrole, pela firma central, das variá-veis estratégicas de tecnologia e, sobre-tudo, de distribuição e comunicação.

O impacto social da

falência da multinacional

se mede muito pouco

pela perda de empregos

assalariados tradicionais

e muito mais pelos

prejuízos à rede

de produtores que

alimentavam os negócios.

Impacto nos distritosA quebra de uma grande empresa-rede mostra que o chamado “modelodos distritos industriais” ou dos cha-mados arranjos produtivos locais(APLs) não representa nenhumaforma harmoniosa de valorização deum capital que, dessa vez, seria social.De maneira muito mais concretatemos, ao contrário, o contexto de umnovo conflito entre as dimensõespúblicas (e cooperativas) do trabalhoque está nas redes e as formas de cap-tação privada dos fluxos desenhadospor essas redes. A mobilização produ-tiva tende a acontecer independente-mente da relação salarial, da relaçãode emprego, e os lucros se consoli-dam na captura, já dentro da circu-lação, do valor agregado.Em negativo, como num baixo relevo,a quebra da Parmalat confirma essamudança: seu impacto social se medemuito pouco pela perda de empregosassalariados tradicionais e muito maispelos prejuízos aos fornecedores, àrede de produtores que alimentavamos negócios da multinacional.No Brasil, o governo é chamado aarticular planos para as empresas darede, muito mais do que para osempregados da firma quebrada(mesmo sabendo que se trata dasegunda marca de leite do país). Maisdo que "salvar o emprego", a questãoque se coloca é a de como os produ-tores da rede poderiam usar a quebrapara cooperar entre eles e integrar demaneira horizontal as funções imate-riais – de marketing, logística e comu-nicação – que permitiram à Parmalatconstruir uma posição dominante,cuja ilegitimidade é explicitada pelotamanho da quebradeira.

Impacto nos pequenosinvestidoresUm segundo elemento importante éque a quebra da empresa italianaacabou prejudicando também umanova figura, emblemática do períodoneoliberal: os pequenos investidores,de vários países, que comprarambonds (títulos) da Parmalat (bemcomo bonds da dívida argentina). Sóna Itália, algumas estimativas apon-tam cerca de 800 mil "poupadores"envolvidos nas quebras da Argentinae da multinacional. Essa percepção dofenômeno tornou-se possível pelocaráter público que os própriospequenos investidores deram aosseus receios com relação ao dinheiroinvestido: como nas manifestaçõesargentinas contra o “corralito”, naItália também foram organizadasassembléias, manifestações e outrasformas de protesto.O conteúdo completamente privado esigiloso do dinheiro no mercadotornou-se de domínio público. Ementrevistas a jornalistas, são aberta-mente declarados os valores investi-dos, os detalhes das vidas pessoaisque permitiram essas pequenas acu-mulações de poupança: uma herança,o FGTS, o salário no país de imigraçãoetc. Queriam comprar uma casa ou teruma renda complementar. Os detalhesde vida tornam-se a marca do per-tencimento a esse movimento. Quantomais reinava o silêncio e a mesa doconsultor financeiro do banco fun-cionava como o confessionário deonde se formulavam esperanças devida e cálculos de rendas, mais baru-lhenta tornou-se a exposição do pre-juízo atual.Se os anos 70 legaram ao mundo os“boat people” que, fugindo o Vietnãem embarcações precárias, enfren-tavam o risco do mar para alcançar aprovidência dos Estados Unidos – osanos 90 nos legam os “bond people”(pequenos investidores do mercadode ações). Só que esses últimos nuncagostaram muito de correr riscos e, àmedida que seus rendimentos finan-ceiros vão para o brejo, invocam aprovidência do Estado.

Giuseppe Cocco

e os “bond people”

Page 10: Revista Global Brasil 02

DDiirreeiittooss ddooss eessttrraannggeeiirrooss nnoo

MercosulLeonora Corsini e Patricia Fagundes Daros

GLOBAL. 8 Trânsitos

As migrações são tradicionalmentevistas como meros mecanismos deajuste dos mercados de trabalhonacionais, objetivamente determi-nadas pelas necessidades de mão-de-obra barata dos países e/ou das re -giões mais dinâmicas. Na realidade, amigração pode constituir um dos maisimportantes movimentos de resistên-cia, onde a mobilidade do trabalhopoderia ser vista como um vetor daluta pela liberdade. É por isso que ocapital recorre ao Estado para tentarmanter o controle da mobilidademigrante através de um arsenal deinstrumentos jurídicos e legislativos. Agora com a globalização, as migra -ções não se limitam mais aos traba -lhadores de baixa qualificação, masabarcam também o trabalho mais int-electua lizado e capacitado paradesenvolver tarefas complexas.No caso do Brasil e do Mercosul, oque prevalece é um espaço territorialcujas fronteiras internas são perce-bidas como espaços de conflito, nacontramão da idéia de que a livre cir-culação de pessoas é fator de desen-volvimento social e econômico. Cabe-ria então perguntar: por que argenti-nos, uruguaios e paraguaios aindarecebem no Brasil tratamento equiva-lente ao de estrangeiros provenientesde outros países de fora do Mercosul?Por que se pretende consolidar e for-talecer as trocas e a circulação debens (com a diminuição/remoção debarreiras tarifárias, alfandegárias, fis-cais etc.) sem ver que isso implicamaior cooperação econômica e alivre circulação das pessoas ? O Estatuto do Estrangeiro em vigordesde 1980/1981 tem sido mantido,em linhas gerais, dentro dos princí-pios dos acordos bilaterais e da reci-procidade entre países. Mas, nossalegislação coexiste com práticas restri -

tivas e oscilantes com relação à con-cessão de autorização de trabalho aestrangeiros. Essas práticas restritivasque entravam a livre circulação detrabalhadores poderiam estar rela-cionadas à idéia de que o estrangeiroé potencialmente alguém que vemroubar o emprego e tirar o “arrozcom feijão” dos brasileiros. Esta visão um tanto estreita doEstatuto do Estrangeiro, entretanto,começa a mudar com o Tratado deIntegração, Cooperação e Desenvol -vimento Brasil-Argentina de 1988, con -va lidado no Protocolo de Ouro Preto –marco institucional do Mercosul,assinado em dezembro de 1994.Desde então, vários outros documen-tos, envolvendo questões comerciais,jurídicas, de circulação de bens e desegurança, temas de interesse comumaos quatro países membros – além deChile e Bolívia – e também tópicosque inclusive ultrapassam a pautaeconômica e comercial do processode integração, com viés bem maispolítico, têm estado presentes nasagendas de discussão dos países dobloco. Neste âmbito político sobres-saem questões relativas a uma“cláusula democrática”, que defende,entre outras coisas, a idéia da “plenavigência das instituições democráti-cas como condição essencial para odesenvolvimento dos processos deintegração entre os Estados partici-pantes” (cf. Protocolo de Ushuaiasobre o Compromisso Democráticono Mercosul de 1998). De certa maneira, o tópico da mobili-dade laboral vem ganhando cada vezmais destaque, tendo inclusive como

desdobramento a formação de umSubgrupo de Trabalho (SGT) cujotema específico é o trabalho e a circu-lação de trabalhadores. Mas, lamen-tavelmente, os resultados até agoraalcançados indicam que continuam aser valorizados os fluxos de bens ecapital em detrimento da circulaçãode pessoas, quando esta última cons -titui justamente uma dinâmicapotente dentro da globalização. Recentemente, os presidentes NéstorKirchner e Luiz Inácio Lula da Silva –por ocasião da visita de Lula aArgentina em outubro de 2003 –, fir-maram uma série de documentosque expressam a disposição de coor-denar e promover ações e políticasconjuntas que visem o desenvolvi-mento sustentável, a distribuiçãomais igualitária dos frutos do cresci-mento, a ampliação do acesso aoconhecimento, à informação, à tec-nologia, à educação e ao trabalhodecente, enfim, a construção de umespaço comum que seja mais do queum bloco comercial e constitua “umaopção estratégica para fortalecer ainserção dos países signatários nomundo, aumentando sua capacidadede negociação” (artigo 15, Consensode Buenos Aires).Enfim, apesar dos avanços, per-manece um impasse, fruto de umaincompreensível tensão existente portrás dos interesses políticos eeconômicos que estão em jogo: osinteresses corporativos, o conser-vadorismo sindical, a desconfiançadas elites locais dos países envolvi-dos acabam por comprometer a per-cepção de que, no contexto da globa -lização, o movimento autônomo elivre do trabalho acaba por produziruma dinâmica de desenvolvimentoque vai além de qualquer modelofechado de integração nacional.

Page 11: Revista Global Brasil 02

Trânsitos 9 GLOBAL

Page 12: Revista Global Brasil 02

NEGRIO acontecimento

GLOBAL 10 Acontecimento Negri

Page 13: Revista Global Brasil 02

Acontecimento Negri 11 GLOBAL

Quando há

um só mundo,

aonde vão

as viagens?

Maurício Rocha

“Os lugares do

pensamento são as zonas

tropicais, freqüentadas

pelo homem tropical.

Não as zonas temperadas,

nem o homem moral,

metódico ou moderado”

Gilles Deleuze, Nietzsche

e a filosofia (1962).

Foto Bel Pedrosa

Melhor ainda do que viajar é poderresidir no lugar para onde se vai,declarou Negri em entrevista. Viajar éresidir deslocando-se, toda viagemsendo despaisamento — jangada nomar, plano de imanência que se cons-trói habitando nele. Já se disse que aatividade filosófica está mais ligada àgeografia do que à história, e que se háfilosofia política, seu objeto só pode sero capitalismo. No momento em que osistema se estende até os confins daterra, tornado mercado mundial,Antonio Negri desloca-se rumo ao hori-zonte aberto das Américas (nome her-dado de um peninsular florentino, umdos primeiros a se extasiar com olitoral tropical exuberante da hinter-lândia que tudo dá e tudo digere).Se for verdade que encontramos asarmas para resistir quando fugimos, opensamento de Negri não deixa de serorientado por uma saída para fora oufuga imanente — pela constituição deum espaço-tempo insurrecional quefoge à institucionalização, inseparávelde uma crise e de antagonismos queliberam agenciamentos sociais e jurídi-cos inéditos. A matriz conflituosa émaquiaveliana e intempestiva — poissó existe o que resiste; espinosana — épreciso fazer existir o que se conserva eproduz liberdade; marxista — afinal,trata-se de destruir o capitalismo, quenada mais tem a oferecer.Sua primeira vinda à Quarta Parte daTerra pode ser vista como mais ummomento da longa travessia pós-socialista. Ele veio a trabalho, e foiposto a trabalhar, quase sem descanso:entrevistas nos principais diários(Folha, O Globo), conferências (noPalácio Gustavo Capanema), um semi-nário informal (no Departamento deDireito da PUC), uma visita ao Centrode Estudos e Ações Solidárias da Maré(CEASM), lançamento de livros (Kayrós,Alma Vênus, Multitudo e Cinco Liçõessobre o Império) seguido de palestra(na Escola de Serviço Social da UFRJ),e encerrou-se — após idas a São Paulo,Brasília, Buenos Aires, e outras tantasentrevistas — nos Estados Gerais daPsicanálise (no Hotel Glória) para acoletividade “psi” de vários quadrantes.Quis a fortuna que a visita coincidissecom os primeiros meses do governoLula— que para muitos, Negri incluído,parece experimentar travessia similar,

com altíssimos custos. Os locais visita-dos por Negri no Rio são mesmo mar-cos históricos da República onde o pas-sado não passa — e são marcosgeográficos que entram em ressonân-cia com a trajetória do filósofo e com ascartas de navegação do êxodo, espéciede guia dos perplexos. Um exemplo é aprimeira conferência, numa tarde friade outubro no Palácio Capanema.Inaugurada em 1945, a construção levao nome de seu idealizador, o ministroda biopolítica getuliana GustavoCapanema. Discípulo do constitu-cionalista do Estado Novo (ChicoCampos), ex-camisa parda nos anos30, ousado a ponto de reunir LucioCosta (responsável pelo projeto), OscarNiemeyer, Candido Portinari (autor dospainéis de azulejos) e muitos outrospara construir o que pretendia ser “acatedral da moderna arquiteturamundial” — o astuto político mineiroseria o exemplo local da estatolatria, ede como nossa modernidade pode serconservadora. Os pilotis do prédiotestemunharam passeatas, manifes-tações e muitos confrontos entre estu-dantes e a as forças da repressão,sobretudo durante a ditadura militar —que fez da construção um depósito deburocratas e repartições públicas,esvaziando-a culturalmente. Negriestar ali — tendo ao fundo o slogan“Brasil, um país de todos” — era osinal de outros tempos, para todos. Aaudiência o recebeu com hospitalidadecarioca, misto de respeito amigável,sem transcendência ou cerimônia,plena de expectativa bem humorada.Sentada, em pé, assistindo pelo telãoinstalado no térreo, amontoada entrecâmeras, gravadores e microfones,gente de toda a parte — pelo menostrês gerações, desde a mais recente —o brindaria com perguntas atrevidas,provocadoras, enfrentadas com algu-ma paciência e serenidade setua-genária, sem prejuízo do sarcasmo edo sentido de urgência. Nessa atmos-fera, o professor exercitou os sortilé-gios de sua lírica paduana (que atingeas alturas do conceito, temperando-ocom entusiasmo desencantado), evi-denciando que o tempo do intelectualguia das massas acabou, levando juntopalavras de ordem e a fé supersticiosa(no Estado, no Partido, na Classe, naHistória etc.). Boa parte dos jovens pre-

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GLOBAL 12 Acontecimento Negri

sentes verberava o professor, variandodo antiamericanismo inconseqüente,por adolescente, à compreensível preo-cupação de quem se sabe ocupado —que a proximidade agrava e um gue-varismo metafísico renitente só reforça.Em contraponto, assistíamos a tran-sição do filósofo em não-filósofo, emfavor de um povo por vir (a multitudo).A palestra resumiu argumentos doslivros editados aqui (Cinco lições eKayrós), que desdobram os temas jápresentes no livro Império: não háglobalização sem regulamentação; quea soberania dos Estados-Nação estáem crise — fronteiras e nexos hie-rárquicos são produzidos de modo fun-cional e contínuo — sendo o mundoglobal um espaço sulcado, divididohorizontal e verticalmente por estriasdinâmicas, móveis. Insistiu no fato deque as dinâmicas da globalização pre-cisariam ser pensadas como essencial-mente determinadas pelos conflitos nodesenvolvimento capitalista — enfim, éa luta, o antagonismo social presentena relação capitalista, que constituiqualquer realidade política. Negri cos-tuma dizer que os juízes que o conde-naram sabiam, melhor que muitos his-toriadores, o significado do comunis-mo. Quando as novas formas de autori-tarismo político se baseiam no controledo trabalho intelectual é preciso perce-ber que a globalização é econômica,mas segue a lógica cultural da comuni-cação, da coordenação cognitiva dascondutas pela mídia eletrônica, fazendoa representação política moderna colap-sar e dando lugar a uma zona cinzentaonde se confunde direita e esquerda.O segundo encontro foi uma espéciede antídoto a um certo bom-mocismoiluminista das letras jurídicas cariocas.A visita de Negri ao Departamento deDireito da PUC permitiu que um pu-nhado de privilegiados pudesse argüiro filósofo com uma saraivada de per-guntas, comentários e variações sobresuas teses e proposições. O clima ia daassembléia política ao seminárioacadêmico e a platéia — composta porveteranos que resistiram à ditadura,integrantes dos pré-vestibulares comu-nitários, pensadores das redes digitais,espinosistas dispersos e estudantes dedireito constitucional — terçou vozesdurante horas com o otimismo hetero-doxo de Negri.

Em visita ao Complexo

da Maré, no Rio,

Negri ouviu o relato

da guerra urbana

em que convivem

os moradores da maior

favela carioca

Jailson de Souza e Silva

Campo de

LutaÀ fadiga inevitável dessas duas jor-nadas somou-se o sentimento deespanto diante do tamanho continentalde nossa miséria, após a visita aoCEASM (associação criada em 1997 porum grupo de moradores das favelas doComplexo da Maré, a maioria comcurso superior e experiência de militân-cia, cuja primeira ação foi um cursopré-vestibular comunitário). Ocorre aoseuropeus essa sensibilidade aguda aointolerável — que por aqui estamos areconquistar e cultivar.Lá se foi a serenidade em quarentaminutos de palestra no Campus daPraia Vermelha da UFRJ (cenário deum levante comunista, e da EscolaSuperior de Guerra, a Sorbonne dosmilitares que forjaram nossa maislonga ditadura). Negri vê na tradiçãocomunista um certo despeito com ospobres (“como poderiam ser explo-rados, visto que não trabalham?”). Parao filósofo, os pobres seriam os que nãoconseguem dar valor à atividade, masque possuem uma potência a serexpressa—bloqueada pelo sufoco, pelalimitação à mobilidade e à cooperaçãoque cria valor. Sujeitos exemplares daexploração, não estão fora da história, eseriam uma força positiva que confrontaos limites da vida — enlaçada pelo capi-tal. Nomundo sem fora, a periferia é umlimite interior. Vista de perto, ela émarco na carta de navegação. No HotelGlória (garçonnièrede tantospresidentes,povoado por fantasmas da República),a intervenção de Negri encontraria abelle indifference analítica diante daprovocação do filósofo que afirmavadesconhecer a “existência” do incons-ciente (mas essa é outra história).

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Acontecimento Negri 13 GLOBAL

No dia 15 de outubro de 2003, o filó-sofo italiano Antônio Negri foi àFavela da Maré. E esse tipo de encon-tro sempre suscita questões. Negritem dedicado sua vida à crítica dosmecanismos de ordenamento político,econômico e cultural da sociedadecapitalista, às formas de dominaçãonela existente e na defesa da necessi-dade de que os sujeitos se façamdonos de sua própria história, deforma coletiva. Perdeu, em função deseu posicionamento e compromisso,sua liberdade de ir e vir, sofreu violên-cias de diversas ordens e manteve suacoerência com os oprimidos. Tornou-se, assim, uma demonstração exem-plar da possibilidade de colocar o pre-sente em questão e lutar pela cons-trução de um novo mundo. Centradono reconhecimento da força social damultidão. Uma multidão com identi-dade, com capacidade de intervenção,com capacidade de materializar, deforma integrada, as três dimensões dohumano: a singular, a particular e ahumano-genérica.A Maré, por seu turno, é a maiorfavela do Rio de Janeiro. Seus 132 milhabitantes se distribuem por 16 comu-nidades, ao largo das principais viasde circulação da cidade - Av. Brasil,Linha Vermelha e Linha Amarela. Elaexpressa a capacidade dos setorespopulares em enfrentar a lógica docapital de transformar o espaçourbano em mercadoria. Os moradoresda Maré construíram e constróem, porsua conta e luta, o seu habitar; comsuas regras, suas lutas e na busca

cotidiana por uma melhor qualidadede vida.A Maré é, portanto, marcada por umrico processo de conquistas, mas tam-bém por muitas dores. A principaldelas é a violência de quatro gruposarmados que se confrontam no ter-ritório local, sendo um deles as forçaspoliciais. A luta pelo domínio do ter-ritório adversário faz com que osgrupos se enfrentem com armaspoderosas, sendo a tônica de todos,em particular os representantes doEstado, o desprezo à preservação davida da população civil.A violência impede que o moradorlocal exerça seu direito de ir e vir etenha sobre si a permanente ameaçade uma bala qualquer lhe tirar a vida.Assim, além da violência estruturalque caracteriza o cotidiano do mo-rador da Maré e de tantas comu-nidades populares do Rio de Janeiro,a "guerra" gera um sentimento cons-tante de temor e angústia. Não hánada, no momento atual, pior do queesta "guerra" para o morador local. Eas forças que controlam o Estado,dominadas pela lógica do combate aqualquer custo (para a populaçãolocal), nada fazem para que esta reali-dade seja superada.Negri viu as marcas desse conflito naMaré. Mas viu mais do que isso. Viutambém os diversos projetos do Centrode Estudos e Ações Sociais da Maré -

CEASM, voltados para ampliar, atra-vés de variadas linguagens, o tempo eo espaço sociais dos adolescentes ejovens locais: no Centro, formado pormoradores e ex-moradores locais, tra-balham 280 colaboradores, em geralestudantes universitários moradoresda Maré. Eles desenvolvem 17 proje-tos, das mais variadas ordens.Negri viu também a alegria, a soli-dariedade das pessoas, a comida e acerveja gelada do bar da Galega, asruas cheias de vida e intensidade e airreverência do povo. Negri, italiano,europeu, cidadão que vive da espe-rança, foi admirado na Maré, admirou-se da Maré, sofreu pela existência daMaré, alegrou-se pela existência dopovo da Maré, entrou na Maré e nelafez-se.A imensa maioria do povo da Marénão viu Negri, não conhece Negri, nãoleu nem lerá Negri. Mesmo assim, osque o viram se sentiram orgulhososde recebê-lo em seu lugar, com elebrindaram, com ele beberam, emnome de todos, com fé que é possíveluma humanidade fraterna, alegre eintensa, independente do lugar, dotempo, da idade e da experiência.Nesse encontro, Negri e Maré, cele-brou-se a vitória da humanidade real econcreta, que sabe o valor da liber-dade, da solidariedade e da espe-rança, pois tudo isso aprenderam navida, na luta e na busca.

Obrigado Negri, pela visita; obrigado, companheiro,pela esperança e solidariedade, obrigado, irmão, pornos levar com você, por continuar conosco. Sinta-sesempre em casa, na Maré, no mundo, poiseste é o nosso lugar.

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GLOBAL 14 Acontecimento Negri

A vinda de Toni Negri ao Brasil

em outubro de 2003 contou com

a parceria de diversos movimentos,

instituições e eventos.

Um deles foi o II Encontro Mundial

dos Estados Gerais da Psicanálise,

no qual Negri foi um dos principais

palestrantes. Mesmo que se leve em

conta a importância cultural do

movimento psicanalítico no Brasil

e na Argentina – e não é para menos

que o Rio de Janeiro tenha sido

escolhido como sede do encontro –

a presença de Negri entre

os psicanalistas é, no mínimo, curiosa.

Os psicanalistas

deveriam desconsiderar

a fala de Negri

na polêmica palestra

do Encontro Mundial

dos Estados Gerais

da Psicanálise?

Jô Gondar

“Não creio queexista algo como o

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Acontecimento Negri 15 GLOBAL

inconsciente”

É verdade que a América Latina tornou-se hoje, nocenário da psicanálise mundial, um nicho de vitalidade,que certas instituições internacionais mostram-se muitointeressadas em gerir e controlar. Há uma forte disponi-bilidade criativa entre os analistas brasileiros e argenti-nos, e muitos deles participam ativamente da vida cultu-ral de seus países, demonstrando uma abertura paratemas que extravasam o campo psi. É justamente estetipo de abertura que é proposta pelos Estados Gerais:uma rede que pretende interrogar a psicanálise em suainserção no mundo, na política e na economia da vida.Mas, ainda que se leve em conta todos esses fatores, oencontro entre Negri e os psicanalistas não deixa de sercurioso, como foi dito e, de fato, produziu-se uma polê-mica, tanto durante a sua palestra – “Subjetividade e polí-tica na atualidade” – quanto nas plenárias que se seguiram.

Crítica à psicanálise?Negri jamais criticou a psicanálise, como Foucault,Deleuze e Guattari o fizeram: ele simplesmente não pen-sou nem escreveu sobre ela. O sujeito que lhe interessa,a multidão, passa ao largo dos problemas relativos aoinconsciente, tanto sob a forma proposta por Freud comoaquela repensada por Deleuze e Guattari. “Não creio queexista algo como o inconsciente”, disse Negri aos psi-canalistas e, mais provocativamente, “penso que nemmesmo tenho um”. Deveriam então os psicanalistas, poreste motivo, desconsiderar a sua fala?Em primeiro lugar – mas não o mais importante – as pou-cas afirmações de Negri sobre a psicanálise, tanto nestapalestra como em seu Abecedário Biopolítico (no qual aletra “I” corresponde a Inconsciente) são conceitualmentebastante precisas. Pois o inconsciente de fato não existe,e ninguém é portador de um. Numa das entrevistas quecompõem o seu Abecedário, Negri diz, com muita pro-priedade: “É preciso descobri-lo, e o problema é quequando o descobrimos ele não está mais lá (...) Ele estásempre em movimento, e não se pode defini-lo, a não seragindo e falando; portanto, ele não existe (...). O problemaé que haja necessidade de substancializá-lo”, apontaNegri em um dos seus livros. Poucos psicanalistas dis-cordariam dessas afirmações. Poucos também se opo-riam ao modo pelo qual Negri pensa a pulsão de morte:não se trata de um impulso para trás, na direção do

inorgânico; não se trata de um princípio, mas de um li-mite. Ao buscar expressar-se, o desejo encontra limitesque permitem, paradoxalmente, a sua construção, limitesque ele procura ultrapassar, constituindo um processoque pulsa sempre para frente. Em Negri, a leituraespinosista do desejo traz beleza e vigor conceitual à suaidéia de pulsão de morte. Nela, uma concepção arriscada-mente biológica é transmutada em concepção política:para o desejo, nenhum retorno possível; os limites impul-sionam a criação de mundos.Mas este não é o ponto principal. Independentemente doque possa pensar Negri a respeito do inconsciente ou daspulsões, o que importa são as contribuições que ele écapaz de trazer para a psicanálise na esfera da política,para além de qualquer soberania, de qualquer Estado, dequalquer transcendência. Seriam contribuições externasao campo da clínica? Não, se consideramos que o traba-lho com o desejo é, inevitavelmente, um trabalho político:trata-se sempre do quanto e de como o desejo é capaz dese manifestar diante de imperativos pretensamente uni-versais, totalizantes. As contribuições de Negri à psi-canálise concernem ao modo de balizar o desejo. Sãocontribuições de método. Os psicanalistas podem apren-der com Negri que é possível se pensar, e pensar comrigor, sem fazer apelo a instâncias universais, falocêntri-cas, transcendentes. Em tempos nos quais as subjetivi-dades se organizam para além do eixo Édipo-castração,são contribuições oportunas.Como pode plasmar-se um sujeito singular, exercendosua potência de ser, amar, transformar e criar? Estaríamosdestinados a lutar pelo poder – pelo falo – e a ser, destemodo, escravizados por aquilo que se encontra para alémde nós mesmos ou de nosso próprio mundo? A propostade Negri segue na contramão de La Boétie: os homensnão lutam pela sua servidão como se fosse pela sua liber-dade; é sempre pela liberdade – e não pelo poder ou pelofalo – que se luta, por mais estranhos que pareçam osseus caminhos. A liberdade, a potência de singularização,é imanente e primeira em toda constituição subjetiva.Podemos pensar que os sintomas psíquicos também sãoformas de exercê-la. Com sofrimento e de maneira insufi-ciente, sem dúvida. Mas são pistas que podem serseguidas, na própria via tortuosa onde se exercem, paraque um sujeito possa expandir seus modos de ser.

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GLOBAL 16 Acontecimento Negri

Presença do filósofo italiano

estimulou na psicanálise

o repensar sobre a relação

entre vida e política

na formação do homem

Joel Birman P

A intenção de convidar Antonio Negripara participar, como conferencista, do“II Encontro Mundial dos EstadosGerais da Psicanálise” que se realizouno Rio de Janeiro no ano passado, foiestabelecida com muita antecedência.O desejo de tê-lo entre nós tomou corpodesde 2001, apesar da impossibilidadeinicial de realizá-lo imediatamente, emdecorrência do seu impedimento legalem deixar a Itália.Por que Negri? Porque enunciava umafilosofia política original e instigante,fundada nos horizontes entreabertospelo mundo pós-moderno, na qualanalisava rigorosamente as contradi-ções e paradoxos presentes no processode globalização. Empreendeu para issouma crítica vigorosa à tradição marxistae leninista, instrumentando-se com osfilosofemas de Spinoza, Deleuze eFoucault. Incorporou novos conceitospara pensar a atualidade, tais comobiopoder e formas de subjetivação(Foucault), assim como passou a carac-terizar a sociedade contemporânea comosendo marcada pelo controle (Deleuze)e não mais pela disciplina (Foucault).O resultado disso tudo foi a construçãodo conceito de império para a caracte-rização do poder na atualidade – indi-cando então os limites teóricos do con-ceito leninista de imperialismo – assimcomo a positivação do conceito de mul-tidão em oposição ao de massa, queentreabria outras perspectivas para quese pudesse melhor interpretar os novosmovimentos sociais que se dissemi-naram com a mundialização. Issoporque, se o conceito de massa, desdeo século XIX, supunha sempre um con-junto homogêneo de individualidades,

o de multidão, em contrapartida, enfati-zava de maneira eloqüente a dimensãode singularidade que caracterizava asnovas modalidades de agrupamentohoje existentes.

Exigência à psicanáliseEstas novas proposições teóricasestavam já presentes, para mim, desdea leitura dos livros Exílio, O poder cons-tituinte e Império, que me deslum-braram. Foi justamente baseado nessasleituras que pensei em convidá-lo paraos “Estados Gerais da Psicanálise”, quetinha como problemática central asrelações da psicanálise com a política,apesar da ausência, no trabalho teóricode Negri, de referência à psicanálise.Isso não me parecia importante, já queacreditava que Negri certamente nostraria contribuições valiosas para repen-sar as relações entre subjetividade epolítica na contemporaneidade. Caberiaentão aos psicanalistas tecer as ligaçõesentre o que Negri poderia nos trazer e oque o arquivo psicanalítico tinha já for-jado na sua tradição. Nesta perspectiva,o discurso teórico de Negri poderia fun-cionar como um pensamento do fora(Foucault) que fizesse trabalhar o dis-curso psicanalítico.Contudo, o convite não pôde ser con-cretizado logo de início, dada a prisãodomiciliar de Negri, embora o seu pen-samento tenha sido considerado umareferência emblemática para o movi-mento que já se organizava. Apenas emmaio de 2003 foi possível viabilizar oconvite e dar forma definitiva ao nossodesejo, com a suspensão da prisão domi-ciliar. A mediação de Giuseppe Cocco –decorrência de uma longa relação deamizade com Negri – foi fundamental;sem ela, não teria sido possível a vindadeste ao Brasil, naquele momento.Estabeleceu-se então um protocolomínimo de objetivos entre os “EstadosGerais da Psicanálise” e a “Univer-sidade Nômade”, para podermos orga-nizar a vinda de Negri. O acordo firmadofoi proveitoso para ambas as partes, poispermitiu, por um lado, que a “Uni-versidade Nômade” se disseminassebastante com as suas propostas política

e cultural – não apenas no Brasil comotambém na Argentina – e, por outro,que os “Estados Gerais da Psicanálise”pudessem contar com a participaçãodecisiva de Negri para pensar nas rela-ções entre subjetividade e política hoje.

EscutaA conferência de Negri foi a mais con-corrida dos “Estados Gerais daPsicanálise”, sem qualquer dúvida. Foiassistida por quase 800 pessoas, muitasdas quais vieram apenas para escutá-loe que não participaram das demaisatividades do encontro. O que, paranós, organizadores, foi também impor-tante, já que possibilitou a abertura denosso seminário à participação de ou-tros profissionais não psicanalistas, queera um de nossos objetivos.Com isso, Negri trouxe-nos na sua con-ferência uma palavra pujante e umareflexão rica sobre como superou teori-camente os impasses que estavamcolocados na cena política dos anos 70,constituindo então as bases para assuas invenções conceituais. Enunciouum efetivo discurso do fora, para que acomunidade psicanalítica pudesse pen-sar nas intrincadas relações da subje-tividade com a política na atualidade.No que concerne a esse último tópico, amarca genealógica do seu discurso foi oque mais se destacou: Negri foi além deapenas indicar alguns modelos ante-riores que pensaram essas relações eos obstáculos com que se chocaram.Também a tradição em que se inscre-viam teve que ser revirada de ponta-cabeça, para que conceitos como o damultidão permeada por singularidades,pudessem ser concebidos.O que se espera agora é a continuidadedesta fecunda colaboração que se esta-beleceu entre os “Estados Gerais da Psi-canálise” e a “Universidade Nômade”,pois nossos propósitos estratégicos sãosimilares e não podem ser reduzidos aum simples encontro pontual.

Negri e os Estados Gerais da Psicanálise

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Acontecimento Negri 17 GLOBAL

Temos a imensa alegria de receberentre nós o filósofo e militante italianoAntonio Negri. Essa é a sua primeiraviagem transcontinental, depois dedécadas de reclusão política, passadasora no cárcere, ora no exílio. Estamosmuito honrados que ele tenha escolhi-do o Brasil como um ponto de partidanessa nova condição de cidadão livre.É verdade que Negri não esperou asvicissitudes da justiça italiana paratornar-se um homem livre. Não está aoalcance dos magistrados, nem da polí-cia, nem dos Estados, outorgar ouseqüestrar a liberdade, no sentidofortíssimo do termo. Mesmo por trásdas grades, ou nas agruras do desterro,esse pensador exerceu a extrema liber-dade de enfrentar o seu tempo com asarmas que se estão gestando no coti-diano dos homens em luta, nos seuscorpos cansados e nas suas almascombalidas, no seu trabalho vivo e nasua riqueza multitudinária.Negri não se cansa de repetir que é pre-ciso repensar nossas categorias políti-cas a partir deste mundo novo quevem vindo, da desmedida que lhe éprópria, do vazio que nele se abre.Nesta dolorosa passagem para opós-moderno, é preciso reinventaros conceitos e as lutas. Desfeitas aspromessas utópicas e a ilusão dasmargens que nos poderiam salvar,

comunismo da imanênciaApresentação da conferência de Toni Negri no TUCA de São Paulo,

em outubro de 2003

Peter Pál Pelbart

pela vinda de Negri ao Brasil, o profes-sor ítalo-carioca Giuseppe Cocco que,como todo italiano remanescente daextrema esquerda, tem um codinomemeio beckettiano, o dele é Beppo. OBeppo é uma espécie de embaixadordessa movência negriana no Brasil,amigo pessoal e interlocutor ativo dopróprio, e que anima uma rede sobre aqual logo mais ele nos dirá algumaspalavras. Ele também é um dos respon-sáveis pela edição brasileira da revistaGlobal, saída dos movimentosmundiaisde antiglobalização.Para finalizar, em nome dos organi-zadores deste evento, a UniversidadeNômade, o Núcleo de Estudos da Subje-tividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica daPUC-SP, o Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP,quero agradecer aos vários amigos etambém aos alunos da pós-graduação,que se empenharam na viabilização ena divulgação deste encontro, que con-tou com o apoio generoso do recém-fundado e bem-vindo Instituto de Polí-ticas Relacionais, com a parceria dosEstados Gerais da Psicanálise, com aeficiente logística da Assessoria de Rela-ções Internacionais, bem como com orespaldo da Reitoria da PUC e do TUCA.Somos gratos à presença de todos ospresentes, e damos início a esta sessão.

um novo trabalho de escavação reco-meça, a partir de umcomum já presente,mas sempre por construir, de umacomunidade já dada, mas sempre porvir. É sob o signo de uma tal paixão pelocomum que foi proposto o tema destamesa: o comunismo da imanência.Eu queria agradecer imensamente apresença aqui da professora MarilenaChauí, que desde o primeiro instanteacolheu com entusiasmo a idéia de umencontro público com Toni Negri. Dadauma viagem a Cuba já agendada porela em datas contíguas, tivemos quecompetir com Fidel Castro para tê-laentre nós. Pela sua trajetória de resis-tência e engajamento na história políti-ca deste país, por sua produção filosó-fica ímpar, além de uma interlocução eamizade já antigas com Negri, quepassa também pela freqüentação emEspinosa, não hesitamos em momentoalgum que era ela a pessoa certa paraesta conversa aberta. Eu quero apre-sentar também o responsável maior

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O encontro entre o filósofo Toni Negri e o eco-nomista João Pedro Stédile, membro da DireçãoNacional do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra – o MST – colocou frente afrente dois "desobedientes", cada um a seumodo. Para além das origens vênetas – Negrinasceu em Pádua e Stédile é um gaúcho descen-dente de pequenos agricultores do vêneto e dotrentino – ambos têm em comum o fato deacompanharem de perto os movimentos sociaisglobais e de serem demonizados pelas altasesferas políticas e midiáticas de seus países deorigem. Negri e Stédile encontraram-se pelaprimeira vez para trocar experiências e iluminartemas que vão desde o futuro das lutas sociais,passando pela questão do trabalho imaterial,até a pertinência de um projeto de soberanianacional. O que segue abaixo são os trechosmais importantes desse diálogo, que ocorreu na

sede da Secretaria Nacional doMST, em São Paulo, na manhãde 17 de outubro de 2003.

STÉDILE – Nós do MST gostaríamosmuito de saber a opinião do professorsobre os dilemas da esquerda e como osenhor vê os movimentos sociais emnível internacional. Mas também gosta-ríamos da sua opinião sobre a situaçãobrasileira.

NEGRI – Conheci Lula muitos anosatrás. O que me parecia fundamentalno movimento de Lula era a capacidadede recolher e de mediar a esquerda. Eraa primeira vez que se via, dentro de sis-temas complexos, a possibilidade defazer caminhar os movimentos no inte-rior de uma luta política constitucional-mente legal. O grande interesse que omovimento de Lula suscitou era amanutenção de duas frentes: o PT eraum partido que conseguia ser governoe ao mesmo tempo era um partido de

luta. E isso é uma coisa muito difícil. Nos países europeus,os partidos comunistas tinham praticamente perdido estacaracterística. Eu não sei se ainda podemos dizer de Lula amesma coisa. Isso vocês é que deveriam me dizer…

STÉDILE – Não nos provoque, porquenão gostamos de falar mal de pri-mos… (Risos).

NEGRI – Lula representava uma novaforma de partido. Era um tema muitoimportante para nós europeus. Porquese existe um problema fundamentalna Europa é aquele de conseguir arti-cular as formas de pressão, no interiordas estruturas de governo, com osmovimentos. E essa ligação não podemais se dar entre o sindicato e o par-tido. E aqui emerge algo novo. Osmovimentos começam a entrar nosmunicípios mantendo uma caracterís-tica independente nas suas ações. EmRoma, por exemplo, trava-se uma lutapela moradia, que é sustentada pelas18 sub-prefeituras, sendo que trêsdelas estão nas mãos do movimentoanti-globalização. Portanto, dentro damáquina administrativa, os movimen-tos não se confundem com o poder,mas utilizam-se de sua potência.

STÉDILE – E o movimento operário,parece meio isolado…

NEGRI – O movimento operário, pelomenos na Itália, está aceitando as pri-vatizações. Na Europa, há dois proble-mas importantes para os movimentos.O primeiro é a relação entre movi-mentos e estruturas de governo, ouseja, a construção de um "fortereformismo por baixo". O segundotem a ver com a "temática do comum"– que emerge a partir da grande lutado inverno de 1995 sobre as questõesda previdência, da gestão dos trans-portes públicos em Paris – que setornou estratégica para a nova forçade trabalho. É preciso considerar astransformações do trabalho, que setorna cada vez mais imaterial. Mesmono setor agrícola encontramos cadavez mais a informatização de umasérie de serviços. O problema é o demostrar como a transformação do tra-balho, à medida que se desmateria-liza, não se torna abstrato, mas capazde apreender a qualidade. Costu-mamos dizer que o trabalho se tornafeminino, torna-se "mulher", porque

GLOBAL 18 Acontecimento Negri

Negri, Stédile, uma conversa

Silvio Mieli

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precisa da união entre a esfera intelec-tual e a afetiva. Precisa do cuidado, nosentido de cuidar, mesmo nos ser-viços informáticos. Não se trata ape-nas de serviços quantitativos, já quevocê deve entender o que pensa ointerlocutor, que coopera com você.Há um elemento afetivo, fino, sutil,que intervém na constituição do tra-balho intelectual. A mesma coisa valeno trabalho agrícola, que é uma quali-ficação da relação com a natureza e datransformação da natureza. Trata-sede um devir agrícola, campesino, dotrabalho intelectual.

STÉDILE – Mas essas áreas deserviços e essa área intelectual casam-se necessariamente como uma basede trabalho produtivo. O que achopolêmica é a questão da retomada domovimento de massas e a relaçãoentre o projeto político-ideológico e aesfera do trabalho.

NEGRI – No caso europeu, estamosdiante de uma política capitalista dedestruição do welfare apoiada pelaesquerda. É uma política de maciçamobilidade da força de trabalho, quese torna móvel no tempo e flexível noespaço. Aqui o problema que se colo-ca para o movimento é o de partir daforça de trabalho imigrada e intelec-tual e recolocá-la no centro das lutaspelo trabalho. Desde os anos 1970,começaram a destruir as fábricas e,veja bem, ou a imigração chega ou asproduções são levadas para fora. Nanossa região do Vêneto, o último con-gresso da Associação dos Industriaisde Treviso aconteceu em Timisoara,na Romênia, porque há mais fábricasna Romênia inscritas na Câmara deComércio de Treviso do que naprópria cidade de Treviso, sede daBenetton, dentre outras empresas. EmTimisoara, o custo do trabalho é umquinto do de Treviso. O problema écomo se faz para juntar essas singu-laridades. Como organizar os imi-grantes, como organizar os traba-lhadores precários? Hoje em dia,mesmo do ponto de vista quantitativo,a força de trabalho móvel e precáriaultrapassa a força de trabalho empre-gada com contrato formal (a tempoindeterminado ou determinado).

STÉDILE – Hoje o movimento operário está fragilizadonumérica e ideologicamente. Então, qual o marco ideoló-gico que vai dar sustentação a essa unidade, a essa plurali-dade, que acumule para um projeto político revolucionário?

NEGRI – Essa é a questão! Se todos raciocinassem nessestermos… Só podemos avançar por meio de uma nova con-cepção do trabalho. Não existe mais uma classe operáriaque tenha a capacidade de dirigir o movimento. Isso estácomprovado. Temos que parar de fazer de conta que elaexiste. Hoje em dia, você tem um novo proletariado. Não seicomo chamá-lo! Nós utilizamos o termo "multidão". Umamultidão de singularidades, de coisas diferentes que traba-lham com a cabeça e com as mãos, com o afeto, que tra-balham em movimento, imigrando, que trabalham de todasessas maneiras. Esse é o único marco ideológico que temosque colocar para a reconstrução de um movimento deesquerda. Só que, ao fazer isso, você tem diante de si osindicato que te chama de fascista, se você não concordacom a reivindicação corporativa mais nojenta.

STÉDILE – O senhor considera um atraso defendermos asoberania nacional?

NEGRI – O Estado soberano que conhecemos no início doséculo vinte não existe mais. Falar em restabelecer ascondições de um Estado-Nação significa que queremosestar presentes na ONU, no FMI e ter uma correlação deforças diante desses organismos. É claro que a Europa estáfazendo isto. O Brasil pode conquistar isso na AméricaLatina e no Cone Sul. Sem o que a soberania nacional correo risco de desencadear elementos nacionalistas. E eu nãogosto nada disso. Os movimentos contra a guerra noIraque, por exemplo, superaram as soberanias nacionais.Foi exercida uma pressão também sobre os Estados, mas apressão foi feita em nível global, como força global.

STEDILE – Atualmente oprofessor participa dealguma corrente política?

NEGRI – Lembre-se quesó desde 25 de abril de2003 estou livre daprisão domiciliar, portan-to não tive muito tempo.Mas estou ligado aoschamados "desobedi-entes", companheiros domovimento oriundos dePádua e Veneza, para osquais escrevo artigos,como os da revistaGlobal. No passado fuimuito ligado a partidos ea grupos. Tenho 70 anos,acho que mereço umasférias.

Acontecimento Negri 19 GLOBAL

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NEGR

GLOBAL 20 Acontecimento Negri

E r i c s o n P i r e s , D a n i e l C a s t a n h e i r a ( G r u p o H a p a x ) c o m T o n i N e g r i n a

multidão

trabalhoA segunda série é sobre o

O trabalho é sempre produçãomas é também atividade social total.O trabalho ocupa uma sociedade,faz esses buracos na montanha,acrescenta as luzes e os carros para atravessá-los.

O trabalho é o fato que consigamos colocar-nosem relação uns com os outros,é linguagem e capacidade de expressão.

É a música e a dignidade que temos.

É a chuva que chove por toda parte.

As atividades são átomos que caem sobre o mundo,o trabalho é a produção,o enriquecimento do mundo.

É a coisa que tem dificuldadepara viver e para morrer.Nascer, viver, morrer, é isso(ecco)!

Depois do trabalho, temos o cérebro,forma de trabalho cada vez mais importante,pois cada vez mais com o cérebro trabalhamos,embora continuemos a trabalhar com as mãos,é sobretudo com o cérebro queconstruímos linguagens…

Este é um bom ambiente musical,porque aqui tem trabalho,os átomos que caem e,em seguida, temos o clinamen,o evento que acontece, que corta,que constrói a grande luz …

Falamos muito, estou sem voz.

Falamos do trabalho, do cérebro, dos afetos,

da capacidade das relações se estabelecerem,do devir mulher do trabalho,do devir afetuoso nos serviços do trabalho.

Definamos três séries de conceitos:

A primeira se desenvolve a partir do conceito de multidão:multidão, biopolítica,potência e singularidade.

A segunda série desenvolve o conceito de trabalho:trabalho, afeto,cérebro e lutas.

A terceira é aquela da pobreza:pobreza, amor,eternidade e evento.

A primeira série diz respeito àou seja,a este grande enxame,

esse grande movimento de singularidades.A multidão não é fechada em si mesma,é um abrir-se,um enxame de abelhas,um coletivo de formigas, de cupins,uma coisa que possui em si um movimento unívocomas não único,que ataca e se difunde.

Então, multidão e singularidade:

tudo isso se refere àbiopolítica,

ou seja, à vida,ao conjunto de todas as coisas,

coisas que compõem as redes da vida e das relações…

é apotência que atravessa,

é o fundamento filosófico, ontológico,é o ser que está por trás,que transforma tudo,é a potência que se aproxima e desloca tudo.

(Sobre esse assunto, leiam Spinoza)

Page 23: Revista Global Brasil 02

IANA

Acontecimento Negri 21 GLOBAL

Oamor é como a pobreza.

Enquanto a pobreza tende a subir ao alto,a fazer conquistas,

o amor é extensivo e se estende,é transversal,começa por juntar duas pessoas, depois quatro, oito,para, em seguida, multiplicaras relações de afeto e de alegria.

O amor constrói o mundo,o constrói como sociedade de homens pobres

que possuem o desejo de conquistar a

eternidade,

de conquistar o prazer e a alegriae a unicidade deste momento de sua existência.

A eternidade não tem nada a ver com a imortalidade.

É a intensidade da alegria, do amor.

A eternidade é um momento absoluto que não pode serrepetido.

Não devemos repetir, mas multiplicaros momentos de alegria e absoluto.

Oevento, o acontecimento e a eternidade

são a mesma coisa,são o encontro com o mundoque o derruba e o transforma.

Espero que vocês possam cantar tudo isso!

Podemos então começar a falar das lutas.São as lutas que movem a história.Somente as lutas constroem os sujeitos,as instituições e o desenvolvimento em geral.

As lutas dãoo tempo da história que atravessam.

As lutas não devem ser declaradas por uma autoridade,seja ela partido, sindicato ou Estado.

Elas se movem dentro do crescimento e da constituiçãodas classes sociaise se movem dentro dos cérebros dos homens,a partir da indignação, do sofrimento e da exploração.

As lutas são, a um só tempo, reação e construção,que caminham adiante ejuntam o mundo,tornando-osempre mais difícil e,ao mesmo tempo, mais belo.

O amor e a

são elementos absolutamente fundamentais.

É através da pobreza que nasce o desejo.

É quando nos falta algo que desejamos algo.Mas esta é a definição platônicae nós não somos platônicos,somos materialistas.

Não se trata de perguntar o que nos falta, mas,de construir o que não temos.

A pobreza é simplesmente uma falta,é uma tensão positiva,um dispositivoe, quando não anula a possibilidade de construir tudo,menos se tem e mais se é livree mais se tem a capacidade de inventar o mundo.

pobreza

i d a a o a e r o p o r t o , s o b c h u v a f o r t e , 1 ° . d e n o v e m b r o d e 2 0 0 3 à s 2 0 h s

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Seção 1 GLOB(A.L.)

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GLOBAL. 22 Conexões Globais

Data:Tue, 10 Feb 2004 01:09:43Assunto: bon dia/ bon noiteamor meu Para voce e noite, pra meu, dia, con sol friopero bello ho commenco da filmar, fato un tour con elmetro del centro de tokyo e vado filmar de piu para lainstallatione a week or abit more I send you some cd'sdid you get them yet. maybe when you will be backfrom amazonia. come muito asai para me, acqui avevobon sushi, e la cominda e sempre bon aqui. vedomuitos cineastes e vado veder un novo espaco para artecontemporaneo (?) el meu adorabile mulato ti amo et dida milionnes beijos para la noite.

Data: Wed, 11 Feb 2004 13:16:27Assunto: tokyo amazoniaAmor meu, come va voce en amazonia, aqui un po friopero bella luce, sole prepara la conferneza para osakasabado e retorna la seconda feira para tokyo e paris.pensa muitos da voce que adoro ti amo

Data: Fri, 13 Feb 2004 01:53:42Assunto: amor em amazoniaque bon de saber que voce e contento oba, oba, vamosen amazonia en luglio o augusta, caramba te amo, voamanaha para osaka, en retorno en paris la secondafeira. pero no mulato em paris saudade, vodrai esser enel tue bracio dormando e sensa fare nada, la cabezza sulcorpo teu oba ti amo beijos

Olhosnoutra EuropaTatiana Roque

eu sou imoral/je suis immoral/I`m immoral/soy inmoral/ich bin unmoralisch/sono immoralede Edson Barrus e Yann Beauvais

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Conexões Globais 23 GLOBAL

samos corrigir urgentemente – que, àenorme capacidade de mobilização domovimento, não corresponde uma igualcapacidade de articular uma platafor-ma que consiga propor novas reivindi-cações, em nível continental ou global;e será impossível encontrar saídaspara os problemas que todos conhe-cemos partindo de um discurso reati-vo de tipo identitário ou nacionalista.Como afirma Bifo em um artigo publica-do no número 14 da revista Multitudes(www.multitudes.samizdat.net), a im-possibilidade de se afirmar uma iden-tidade cultural européia deve-se aoesgotamento do paradigma conceitualsobre o qual esta identidade se consti-tui: o paradigma do humanismo e doiluminismo. Estes argumentos sãouma resposta ao texto assinado porHabermas e Derrida que, mesmo bem-intencionado, propõe, como alterna-tiva ao neoliberalismo, uma idéia deEuropa que já nasce fracassada, poisse baseia por demais em uma identi-dade cultural que já faz parte do pas-sado. De nada adianta opor umnacionalismo europeu ao liberalismonacionalista que dita a face da hege-monia americana no processo de“globalização”. Sobretudo porque avocação de algo como uma “Europa”,de verdade, depende de uma premis-sa fortemente pós-nacionalista, quepossui, portanto, todas as condiçõespara servir como experiência de umareal globalização, por baixo, que nãoprecise de aspas. Citando novamenteBifo: “a Europa não é uma identidade,mas um devir no qual estão em jogoenormes forças sociais e econômicasàs quais falta um horizonte positivo”.O que permitiria então a construçãode uma nova plataforma para o movi-mento altermondialista na Europa?Talvez encarar o horizonte europeucomo espaço de onde se deve partirem direção a lutas globais, umaEuropa política experimentada comoum terreno fértil para se construirnovas reivindicações de caráter globalou, pelo menos, continental. Para darum exemplo, citamos uma propostaque poderia se contrapor à visão secu-

ritária e nacionalista de muitos gover-nos de países europeus. Esta tendên-cia, que testemunha a incapacidade detodos eles em regular em seu proveitoo fluxo de capitais, traduz-se em umaregulação reativa do fluxo de pessoas.Como alternativa a esta onda secu-ritária, no mesmo número de Multi-tudes, Rosi Braidotti menciona umaproposta radical: os cidadãos euro-peus são aqueles que vivem ou traba-lham na Europa, e se alguém vive outrabalha na Europa apenas por umcerto período de tempo, que tenhauma cidadania temporária. Destemodo, a nacionalidade não seria umaquestão de espaço – ligada ao terri-tório em que nascemos –, mas umaquestão de tempo – ligada ao lugar noqual, neste momento, produzimos,trocamos e estabelecemos relaçõesafetivas. Esta proposta, eu diria, teria ointeressante efeito colateral de reco-nhecer que as “relações afetivas”(como amizade, sexo, companhei-rismo, cooperação) são tão impor-tantes quanto o casamento, e podemter o mesmo valor social. Isso mostrao potencial de uma luta constituintepara substituir clichês mortos pornecessidades vivas.Quanto ao Brasil, poderíamos dizerque enfrentamos, em relação ao go-verno Lula, dilemas que possuem amesma natureza destes observadosno Fórum Europeu: relutamos em nosconvencer que o único espaço a serinvestido, de forma positiva e política,é o espaço global. E global não apenasem termos geopolíticos, mas tambémem termos subjetivos e teóricos. Sópara dar um exemplo de formulaçãonecessariamente global, citamos oproblema dos transgênicos, que foi,durante o Fórum, um dos mais ques-tionados na avaliação do governobrasileiro. Como pensar o nosso dile-ma com os transgênicos sem falar daproteção européia (e estávamos naFrança!) à agricultura, proteção reivin-dicada por grande parte dos própriosaltermondialistas? Colocar a questãojá é um problema global.

Fórum Social Europeudeixa de discutiros novos rumosdo VelhoContinente,como asrelações afetivas,para mantero discurso ligadoa interesseseconômicos

Escolhi apresentar alguns argumentosque circularam à margem do FórumSocial Europeu, pois nas discussõesoficiais não havia grande espaço paraa concepção que considero a maisinteressante e que enxerga a Europacomo horizonte positivo capaz de afir-mar, não uma soberania de segundaordem dentro da globalização, masuma outra globalização possível. Sur-preendeu-me perceber, no “movimentoaltermondialista”, a mesma incapaci-dade dos dirigentes nacionais euro-peus: pensar politicamente a Europacomo um espaço pós-nacionalista epós-estatal. Esta deficiência acaba dandoespaço demais aos interesses pura-mente econômicos e à reprodução declichês como os que constam no doc-umento de conclusão do Fórum: “Nãoao neoliberalismo”! Acaba parecendo– e este é um problema que preci-

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GLOBAL. 24 Conexões Globais

O poder constituinte naPedro Cláudio Cunca Bocayuva

O povo boliviano realizou uma rebe-lião cívico-política em outubro de 2003que derrubou o governo entreguista esanguinário de Gonzalo Sánchez deLozada. Os enfrentamentos que ocorre-ram em todas as cidades paralisaramas atividades no país mais pobre daAmérica do Sul, onde, através de umagreve geral, vimos a força social ativade novos e velhos sujeitos políticosque representam as multidões mobi-lizadas contra as políticas da via únicado capitalismo global.

As manifestações e os enfrentamentoscontra o governo, por parte de indíge-nas e camponeses – maioria da popu-lação –, somados aos movimentos demineiros e trabalhadores informais, deprofessores e estudantes e com as ade-sões de setores da polícia e da classemédia, são, no seu conjunto, maisuma manifestação do caráter ininter-rupto e do estado de crise permanenteque vem derrubando os governos sul-americanos. Desde o Brasil de Collor atéo Peru de Fujimori, ou na Argentina,com a sucessiva queda de governos, aAmérica Latina se coloca numa criseorgânica permanente da forma doEstado periférico. O estado perma-nente de revolta da multidão demons-tra a impossibilidade de manter obinômio governabilidade e reformasliberalizantes. Não existe uma esferapública abstrata que possa sobreviverà crise constitucional que sacode oscapitalismos periféricos, quando estesjá fazem parte de um mecanismo dehomogeneização global insustentável.

EsgotamentoA Bolívia indica os limites de um mo-delo que se apoiava em padrões de sub-metimento geopolítico, destruição docapitalismo de Estado e perdão dadívida, modelo que insiste em manterformas autoritárias e oligárquicas liberaissem repensar as bases materiais eimateriais da produção da riqueza. Alógica imperial e a base material dofluxo e das redes da economia globaldestroemoEstadodependenteperiférico.O conflito social multitudinário torna-se expressão antagônica imediata.Contudo, o poder constituinte liberadoe a expressão democrática de manifes-tação das multidões não alcançamuma forma política material capaz deproduzir um quadro político que possavarrer de vez a contra-revolução liberalpermanente, questão que exige ummar-co mais continental e federativo, que seprojeta como um desafio para o con-junto do subcontinente sul-americano.Como desdobramento de uma luta delongo prazo contra o modelo neoliberalestabelecido desde 1985 na Bolívia, as

A revolta popular na Bolívia no fim de 2003 mostra que

não é possível a manutenção de formas autoritárias e

oligárquicas, sem repensar as bases materiais e imateriais

da produção de riqueza.

Do que sou feitode Salgueiro Dias.

Bambú, terra adubadae sementes orgânicas, 2003.

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lutas de 2003 tiveram, na explosãosocial de 12 e 13 de fevereiro, o seuensaio geral. No início do ano a revoltapopular explodiu em El Alto; a luta emtorno da água em Cochabamba; e agreve dos militares, em vários pontosdo país, mobilizaram o conjunto dasforças sociais do trabalho, como umaclasse-multidão descontente com asimposições do pacote tributário, oimpuestazo, aplicado por pressão doFundo Monetário Internacional parafazer frente ao déficit público.O imposto sobre os salários conjugou-se com o desemprego, com a preca-rização do trabalho, com a redução dogasto público. A corrupção e o resulta-do perverso das privatizações combi-naram-se com os resultados nefastose os desmandos na luta contra o culti-vo da folha de coca. Os esforços nosentido de criminalizar a luta da multi-dão, os assassinatos realizados pelasforças repressivas e o uso de franco-atiradores não conseguiram bloquearo movimento que produziu a primeiraderrota de Lozada no início de 2003.A mobilização de outubro se deuquando o governo boliviano lançoumão de um subterfúgio na questão dofavorecimento das companhias trans-nacionais do complexo petrolífero, porum caminho simbolicamente proble-mático: o do gasoduto via Chile, paraexportação em direção à área do Nafta.A revolta ampliou suas bases, uma vezque a desnacionalização, a reduçãodos tributos e a sonegação fiscal jáfaziam parte de uma política espolia-tiva. Esta política se agravou com aparadoxal entrada de capitais especu-lativos e estava relacionada com a for-mação de uma nova dívida pública.Mais do que uma revolta nacionalpopular, tivemos um movimento com-plexo de jovens da cidade e do campo,de trabalhadores, de mulheres, deindígenas, de professores e mesmo depoliciais. Movimento que se ampliounum país onde as velhas elites políticasprecisam ceder espaço para um novopoder constituinte que nasce paraestabelecer, e mesmo restabelecer ascondições para um Estado Social deDireitos, e para repensar os termos dainserção internacional da Bolívia.As ameaças de recurso aos boinasverdes bolivianos e uma eventualintervenção dos seus assessores mili-

tares norte-americanos – atitude pen-sada pela direita política mas não reali-zada por estar fora do cálculo dos cus-tos sistêmicos e por força das dificul-dades da administração Bush – só teriatornado mais sangrenta a revolta legí-tima do povo. A Bolívia não lhes pare-cia valer o preço da Colômbia. Pre-feriram deixar o processo correr seucurso como no Peru, quando da quedade Fujimori. O vazio político institu-cional estava dado num contexto ondeo quadro de retomada da normalidadeou de reconhecimento e abertura parauma recomposição temporária deforças só podia ser realizado atravésdo apoio às decisões já tomadas pelaoposição e por todos os partidos querecusaram Gonzalo Sánchez Lozada,levando à sua derrubada.

“Os governantes latino-americanos, em especial o

governo Lula, devem escutara voz do movimento

das multidões sob penade entrarmos num quadrode retrocessos em nomede

uma institucionalidadeesvaziada de democracia”.

A lição dos limites da rebelião espon-tânea de fevereiro foi aprendida. Umacoordenação de organizações indíge-nas, sindicais e camponesas assumiua exigência da imediata renúncia deSánchez Lozada. Em El Alto e La Pazhouve um esforço de coordenação dascomunidades para garantir a organi-zação social e cuidar das crianças e dosferidos. As mobilizações e marchas emdireção à capital encontraram obstá-culos, mas as mulheres indígenas,vestidas com suas roupas de festas,apoiadas pelos jovens e pelos váriosmovimentos organizados, exigiram asaída de um governo que rompeu comas bases materiais, culturais e jurídicasque mantinham as formas institu-cionais da nação.Do ponto de vista internacional a situ-ação exigiu que o governo Lula edemais países considerassem a com-plexidade do processo do ponto devista da autonomia democrática dopovo boliviano que, através de seupoder constituinte, se manifestou nasmais diversas formas de luta. A saídade Gonzalo Sánchez Lozada do poder

é o fim de uma ditadura. Falar da apli-cação da Cláusula Democrática (OEA)é defender os cidadãos bolivianoscontra os desmandos, não apenas dotirano que caiu, mas da forma institu-cional liberal-oligárquica e do progra-ma liberalizante que leva ao abismo.

Jogo conservadorO governo de Goni, ou El Gringo, comoera denominado o presidente boli-viano, esteve sustentado pela coalizãodos interesses espúrios de oligarcas,de setores militares conservadores epela relação de forças políticas aliadasao capital transnacional. O peso dosdesmandos do regime impopular levoua um processo insurrecional, de cará-ter manifestamente democrático, comoexpressão do desejo das grandesmaiorias da população boliviana. Nãoexiste nenhuma solução viável quepossa manter artificialmente regimescomo o de Gonzalo Sánchez Lozada nopoder. O novo poder constituinte damultidão e a expressão democráticaativa de sua ação deve abrir novaspossibilidades de criação histórica. Arepetição de políticas como as daBolívia só podem resultar num quadrode violência generalizada.Os governantes latino-americanos, emespecial o governo Lula, devem escutara voz do movimento das multidõessob pena de entrarmos num quadrode retrocessos em nome de uma insti-tucionalidade esvaziada de democra-cia. A crise dos regimes democráticos ea fragilidade dos modelos representa-tivos na região andina conectam-se,na ordem direta do grau de intervençãoe subordinação a uma forma que com-bina a geopolítica norte-americanacom estratégias de nova dependênciaconduzida pelo capital especulativo –e pelas empresas interessadas nosrecursos energéticos dos países dosAndes. O fracasso das políticas deintegração pela abertura dos merca-dos e da estratégia de substituição docultivo da coca exige uma participaçãodireta e ativa dos trabalhadores, cam-poneses e indígenas. Isto levaria auma construção prática de alternati-vas de desenvolvimento com modosde integração continental baseados naprioridade dos direitos sociais, nacooperação produtiva do trabalho e nasustentabilidade sócio-ambiental.

Conexões Globais 25 GLOBAL

B O L Í V I A

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GLOBAL 26 Conexões Globais

Há uma campanha

de alguns setores

da sociedade argentina

pedindo ao presidente

Kirchner rigor contra

os ‘piqueteros’

Com a explosão dos movimentos depiqueteros, assembléias de bairros,fábricas recuperadas, coletivos deartistas e grupos comprometidos coma resistência global, a Argentina assis-tiu nestes últimos anos à emergênciade uma nova esquerda. Essa novidadenão assumiu a forma de novos parti-dos políticos ou doutrinas: trata-se deuma nova esquerda em ato, que praticae experimenta espontaneamente novasformas de gestão coletiva e de açãopolítica. Mais interessada nas transfor-mações sociais do que na tomada dopoder, nas redes horizontais do quenas hierarquias partidárias, na açãodireta do que na democracia represen-tativa, na elaboração coletiva emassembléias do que na liderança dospolíticos profissionais, essa esquerdaemerge através de ensaios e erros.Hoje é só uma promessa, o que não épouco numa Argentina que vem dadécada menemista.A velha esquerda (comunista, trotskista,maoísta, guevarista, populista...), queaté dezembro de 2001 estava órfã desujeitos sociais, lançou-se precipitada-mente sobre os novos movimentos.Entretanto, essas formas horizontais,autogestivas, reticuladas e autônomasestão nas antípodas da sua concepçãoinstrumental do poder e da política. Avelha esquerda procurou, por umlado, legitimar-se socialmente dentrodesses novos movimentos e, poroutro, controlá-los para levá-los pelo“bom caminho” do programa par-tidário correto e da tomada do poder.Nas últimas semanas assistimos auma intensa campanha na imprensa,

liderada pelo jornal liberal-conser-vador La Nación e pelo empresariado“nacional”, pedindo ao novo governode Kirchner “mão dura” contra oscortes de ruas praticados pelospiqueteros. Por que? Porque ospiqueteros, segundo o jornal, infiltra-dos por correntes maoístas, trotskistase putchistas, procuram provocar umenfrentamento direto com o Estado(La Nación, 30/11/2003). Na verdade,essa imagem dos piqueteros violentose hiper-politizados pretende retirardeles a legitimidade que tiveram atépouco tempo atrás entre as classes mé-dias e a opinião pública, preparandoum clima de repressão.E, para piorar, essas imagens sesuperpõem até quase identificar osnovos movimentos com as forças davelha esquerda, impedindo ver tudo oque os primeiros têm de inovador. Éverdade que muitos desses grupospolíticos, verdadeiras seitas, sobre-vivem na Argentina tomados por umimaginário insurrecional à espera doseu Outubro Vermelho. Mas também éverdade que, além de não apoiaremgolpes de mão nem táticas de lutaarmada, participam como nunca antesdo jogo político, inclusive através deseus legisladores. Ao mesmo tempo,por serem beneficiários da dis-tribuição de subsídios sociais, têmficado presos nas redes clientelistas,de longa tradição na política argentina.Mesmo quando podem crescer quan-titativamente até atingir milhares deintegrantes, as seitas não deixam deser seitas: mantêm sua estruturafechada, com uma rígida separação

Entre a velha e a nova esquerdaHoracio Tarcus

entre o “dentro” e o “fora”, rituais deiniciação e expulsão, um dogmatismoadministrado através de textos sagra-dos e profanos, intermináveis dis-cussões internas e o culto ao líder.Apesar de seu credo laico, sãoherdeiras das seitas protestantes e dafranco-maçonaria dos séculos XVIII eXIX. Como assinalava Marx numacarta a Schwaizer, “toda seita é, emdefinitivo, religiosa”. Apesar de vivernum micro-clima revolucionário, nuncarepresentam um perigo real para opoder: São, antes de mais nada, umsintoma de que o movimento socialque tentam representar e controlarnão está maduro o suficiente para selivrar delas e procurar o seu própriocaminho.

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Conexões Globais 27 GLOBAL

Não fomos todos feitospara os mesmos caminhos

Grupo Recolectivo

O colectivo (ônibus em espanhol) éuma invenção social do povo argentino.Em Córdoba, uma frota urbana deapenas cerca de 400 ônibus torna otransporte público precário e alvo dasmaiores críticas da população. Unindoestes fatos 'a idéia de que o passa-geiro de um ônibus urbano é umespectador em potencial, pois grandeparte da população diariamente os uti-liza, o Grupo Recolectivo decidiu rea-lizar uma série de intervenções noscerca de trinta trajetos dos ônibus dacidade, no interior e exterior dosveículos.Durante o mês de agosto de 2003 oRecolectivo realizou 60 performancesà bordo dos ônibus nos horários depico, ocupando cerca de 40 % dosônibus da cidade e a totalidade deseus trajetos. O repertório das per-formances variou desde o oferecimen-to gratuito de serviços de cabeleireiroe manicure à bordo; curso muy aceler-ado de idiomas; noivas de véu e gri-nalda que procuram por seus noivosnos percursos e pontos de ônibus;alguém que sobe com uma grandetorta, balões e línguas de sogra àprocura de amigos para festejar seuaniversário; um milionário que pedeaos passageiros dicas do que fazercom o dinheiro que acabou de ganhar

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GLOBAL 28 Conexões Globais

O protesto foi o impulso que nos levouà rua. Mas nem o protesto nem a resis-tência em si mesmas resolvem. Come-çamos a nos dar conta disso quandovoltávamos a cada sexta-feira da Plazade Mayo, no final de fevereiro de 2002,tentando reproduzir o espírito da rebe-lião dos dias 19 e 20 de dezembro de2001, sem conseguí-lo. Decidimosentão aprofundar nossa presença nobairro e tentar construir coletivamentealguma coisa lá.A Assembléia de Palermo Viejo (bairrotradicional de Buenos Aires) nasceunuma autoconvocação no dia 17 dejaneiro de 2002, no cruzamento dasruas Humboldt com Costa Rica, paraconstruir “uma forma legítima de par-ticipação democrática, sem dirigentesnem partidos políticos, composta decidadãos num mesmo plano de igual-dade, com possibilidade de opinar,escutar e votar para tomar decisões deinteresse comum”. Em abril de 2002,entre 70 e 100 pessoas participavamativamente, apesar do frio e das chu-vas de outono, das reuniões e dos lon-gos debates que se seguiam, muitasvezes esquentados e difíceis (sobretu-do quando tocavam em feridas pro-fundas das convicções e sensibili-dades pessoais). Mas, por fim, estáva-mos nas ruas aprendendo a respeitara diversidade, o valor das palavras detodos e de cada um, e compreen-díamos que é sim possível conjugá-lasnuma construção coletiva, no dia-a-dia, e concretizá-las em ações.O mês de maio nos encontrou “recons-truyendo la Trama social”, empenha-dos em reconstruir os fragmentos deuma Argentina despedaçada pelasditaduras militares, por democraciasautoritárias e pelo individualismoneoliberal. Mas a rua continuava a nosestimular e, depois de muitas reuniõese assembléias em esquinas, bares,clubes e estacionamentos, concluímosque necessitávamos de um espaçopara concretizar nossos projetos. Eque esse espaço devia ser público,aberto a todos, amplo e horizontal,soberano e autônomo de toda tutela e,

como nossa assembléia, capaz de aco-lher a diversidade que nos caracteriza.

O Mercado de BonplandNosso bairro não tem praças nemespaços públicos que permitam oufacilitem os encontros sociais, porém,andando e descobrindo o bairro, identi-ficamos um conjunto de construçõesabandonadas atrás do mercado munic-ipal, cujo acesso podia ser feito atravésde duas ruas pequenas com calçamen-to de pedra, e que, apesar do aspectode deterioração, revelavam uma mar-cada singularidade urbanística. Umlugar que, sem dúvida, podia abrigarnaquele momento não apenas nossasreuniões de assembléia como tambémoutras atividades que começavam amostrar-se indispensáveis e necessárias.Na mesma época, várias assembléiascomeçavam a ocupar espaços abando-nados, criando âmbitos culturais, insta-lando centros de trueque (troca) emeren-deros (lanche), transformando terrenosbaldios em parques comunitários, e ofe-recendo serviços básicos à população.A repercussão obtida pela Trama e pelotrabalho intenso das comissões (saúde,imprensa, ações do bairro, política,jovens, cultura, relacionamento comoutros coletivos e comunas) tambémnos incentivaram a projetar nossosdesejos para um futuro de mais longoprazo. A possibilidade de um lugarpróprio reavivou algumas idéias quetinham ficado pendentes. A Assembléiaentrou então num intenso e profundodebate sobre o tipo de relacionamentoa ser promovido com o governo da ci-dade, tendo em conta as práticas deassistencialismo e clientelismo, a possi-bilidade de integrar outras organiza-ções do bairro em projetos mais abran-gentes, as experiências de outras assem-bléias, as estratégias de crescimento ede inserção da população do bairro etc.No mês de julho de 2002 submetemosum projeto ao governo municipal.

A ocupaçãoEm setembro, diante da ausência deresposta, debatemos ao longo de várias

Assembléia de

Palermo Viejo,

2001-2003

Inés Fernández

Primeiro nos apropriamos

do direito de gritar, de protestar

e de fazer barulho

com as nossas panelas.

A rebelião de 19 e 20

de dezembro de 2001

foi resposta a uma política

que marginaliza a maioria

da população da “potestade”

de decidir, que coloca a

democracia como uma

justificativa para avançar

no processo de desigualdade

e exclusão. Da rebelião,

como resposta a esta política,

surgem as assembléias.

(Panfleto da convocatória à Trama 2003Re-construyendo espacios)

La Trama: encontro entre a política e a culturarealizado nos dias 25 e 26 de maio de 2002 a partirda iniciativa de diversos atores – sociais, produtivos eartísticos – do bairro, mancomunados no objetivode encontrar uma nova forma de construçãopolítica. O encontro concretizou-se com a ofertade mais de 200 atividades de teatro, música, dança,mesas-redondas, oficinas abertas, edição de umlivro, feira de artesãos, exposições de desenhos,moda, artes plásticas, e atividades infantis.As iniciativas reuniram milhares de participantes.

O mercado de BonplandOcupação e reconstrução do espaço público

Page 32: Revista Global Brasil 02

Conexões Globais 29 GLOBAL

quintas-feiras a ocupação do prédio. Asposições eram asmais diversas: algunsconsideravam que o projeto não tinhasido suficientemente debatido, outrostemiam cometer um ato de ilegalidade,outros duvidavam da aceitação porparte do restante da comunidade.Naquele momento, as manifestaçõesde repúdio à repressão policial e aoassassinato dos piqueteiros Maximi-liano Kostecki e Dario Santillan, além daluta conjunta com outros movimentossociais, enriqueceram nossos debates.Aos poucos, os diferentes posiciona-mentos foram se aproximando, asdesconfianças foram minguando, e asdúvidas transformaram-se em estraté-gias de ação (no dia 27 de setembro, acomissão de Cultura da Assembléiadecidiu projetar num centro cultural dobairro o filme colombiano “La estrate-gia del caracol” que trata da ocupaçãode moradias por parte dos vizinhos nacidade de Bogotá).Desse modo, o consenso necessáriopara passar à ação foi sendo obtido,passo a passo. E a decisão de ocupar omercado foi finalmente tomada. Orga-nizaram-se comissões ad hoc paradesenvolver um plano “logístico”, paracomunicar e integrar o bairro noprocesso de ocupação, e para contarcom o apoio de outras organizações –mas sem “dar muita bandeira”. O deli-cado equilíbrio entre a difusão e a clan-destinidade foi difícil de resolver, mas,àquela altura dos acontecimentos, játínhamos os objetivos claros, umadecisão firme e a consciência da legit-imidade dos nossos atos.Surpreendentemente, no sábado, 5 deoutubro, pela manhã, ao chegarmospara ocupar o mercado, fomos rece-bidos por um aparato policial. Eviden-temente, os serviços de inteligênciahaviam feito seu trabalho. Ali ficamos,fazendo cartazes e reunindo assina-turas, acompanhados por outras assem-bléias, estudantes, rádios indepen-dentes, meios gráficos e vizinhos emgeral. Decidimos não nos mover daliaté que os donos do prédio explicassemos motivos do abandono e nos permi-tissem ocupá-lo. Os vários represen-tantes do governo que prestaram algu-ma atenção ao caso mostraram- se logoincompetentes. Finalmente, o próprioSecretário de Desenvolvimento Econô-mico da Cidade de Buenos Aires, diantedo firme questionamento da vizinhança,

ordenou a retirada da polícia, ao que in-gressamos no prédio. Em poucos dias,firmamos umconvênio comaPrefeitura.

ReconstruindoAs pequenas ruas de pedra acabaramse tornando o espaço ideal para o esta-belecimento de uma Feira de Artesãosnoturna, que no verão teve mais de 100postos. Umamaneira de fazer frente aodesemprego através de um âmbito deprodução e comercialização autoges-tionado. Artistas e artesãos do bairrodesenvolvem oficinas, exposições eespetáculos de música e teatro. Desen-volvem-se também mesas-redondas,apresentações de livros e reuniões entreas assembléias de diferentes bairros.Mas não paramos por aí: a partir deuma série de encontros sobre econo-mia solidária, com a participação demais de vinte organizações sociais dediversas origens – movimento pique-teiro, fábricas recuperadas, organiza-ções sindicais, empreendimentos coope-rativos, assembléias de bairro, produ-tores orgânicos, entre outros – e com aassessoria de universidades e ONGs,vem sendo desenvolvido o projeto doMercado Social Solidário, ocupando oespaço central do antigo mercado.Hoje, encontramo-nos em plenoprocesso de recuperação deste espaçopúblico. Certamente o Mercado deBonpland, com suas ruas de pedra, suapresença marcante na cidade, e suaqualidade arquitetônica e valor patri-monial, merece ser revalorizado. Fi-zemos então um estudo histórico euma análise diagnóstica dos “proble-mas” da construção (que data de 1914),apresentando um projeto ao Governoda Cidade para que seja declaradopatrimônio histórico, uma maneira dereforçar o caráter público e fortementeidentitário do mercado.Em conjunto comoMovimento de Traba-lhadores Desocupados de La Matanza(bairro popular de Buenos Aires) e como esforço dos vizinhos, enfim, estamosconseguindo reabilitar o mercado. Aomesmo tempo em que se ressignificao espaço com práticas comunitárias,solidárias e cooperativas, o velho mer-cado se transforma num centro de con-densação e inclusão social, onde resultapossível a prática da cidadania e tam-bém a satisfação de necessidadesmais cotidianas.

na loteria; alguém que seca a roupalavada nos canos nos quais os pas-sageiros se apoiam durante as sacudi-das viagens ou ainda uma mulher queos interpela sobre o que fazer com qui-los e quilos de batata enquanto ospassageiros as descascam.Estas performances procuraram intro-duzir o absurdo presente, possível,mas nem sempre visível, de nossocotidiano urbano no espaço público. Asurpresa e o desconcerto dos pas-sageiros viabilizou sua participação naobra sem que esta se tornasse educa-tiva ou moralista. Grandes adesivosnegros com letras brancas foram colo-cados nas fachadas laterais dosônibus revelando frases becketianas eionescas que intensificam a idéia dotrabalho que se complementou comquarenta outdoors brancos com letrasnegras colocados nas calçadas aolongo do percurso dos ônibus no cen-tro da cidade. Estes cartazes repro-duziam citações da imprensa argenti-na no período de elaboração da obra,que coincide com a grande criseeconômica que afetou este país.O grupo, que partiu de uma propostade Maurício Dias & Walter Riedweg, écomposto também pelos artistas plás-ticos cordobeses Alejandra Bredeston,Azul Ceballos, Sara Carpio, GrazielaRasgido e o renomado grupo argenti-no de arte pública Urbomaquia (comMagui Lucero, Sandra Mutal e Lilianadi Negro), o designer gráfico cordobêsLucas di Pacuale, o designer cariocaMarcílio Braz e o recém-falecido dra-maturgo Jorge Diaz, a quem o grupodedicou esta obra.

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GLOBAL 30 Quadrinhos

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Quadrinhos 31 GLOBAL

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Quadrinhos 33 GLOBALContinuação no site www.fotolog.net/contente ou contactando [email protected]

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IInntteerrmmiitteenntteess

GLOBAL 34 Trabalho/Arte

“Intermitentes do espetáculo” são aqueles que trabalhamna área cultural (atores, técnicos, iluminadores, bailari-nos...) e que, pela própria natureza de sua profissão, nãopossuem sempre a mesma rotina, nem o mesmo ritmo detrabalho. A França, até hoje, reconheceu a intermitênciadeste tipo de trabalho remunerando tais profissionais nosperíodos de recesso, por exemplo, entre um espetáculo eoutro. Com as reformas, o governo francês começa a colocarem questão esse estatuto, para eliminá-lo, o que suscitouenormes movimentos de resistência da parte dos intermi-tentes, incluindo paralisações de festivais importantes e aincrível invasão de programas de televisão, como um impor -tante telejornal, que foi assumido, durante alguns minutos,antes que a emissora o tirasse do ar, por uma intermitente.

Estado de exceçãoMas uma questão se coloca: a intermitência é uma carac-terística apenas do trabalho no espetáculo? O fato de o tra-balho ter se tornado flexível faz com que este estatutopossa ser reivindicado por inúmeras formas de trabalho,estendendo a luta dos intermitentes à toda a sociedade.Sobre este ponto há uma divisão entre aqueles que pensamque a universalização da luta é a única forma capaz de bar-rar as reformas e os que defendem a “exceção cultural”, ouseja, a especificidade do trabalho na cultura. Para falar em“exceção cultural” precisaríamos esquecer as mudançasradicais que a cultura e a arte sofreram nos últimos anos,quando passaram a integrar intrinsecamente a produçãocapitalista. Exponho a seguir alguns argumentos recolhidosde várias intervenções de Maurizio Lazzarato, filósofo queparticipa dos “Precaires Associés de Paris” e da coorde-nação do movimento dos intermitentes.Hoje em dia, as indústrias culturais e de comunicação nãosão apenas novos terrenos de acumulação capitalista, mastêm por função a produção e a reprodução do sensível, dasensibilidade dos consumidores (dos clientes) que precedea produção material. É o consumidor-comunicador quedetermina a produção, e este consumidor é formado pelomarketing e pela publicidade graças a mecanismos artísticos.Do mesmo modo que o capitalismo industrial se apro priavados recursos naturais e da força de trabalho, explorando-ospara produzir bens, o capitalismo contemporâneo capturagratuitamente os recursos culturais e artísticos produzidospor todos, e não apenas pelos artistas de profissão. Diante disso, é inútil reivindicar o estatuto de artista para osartistas, sob o risco de particularizar a luta ao ponto deesterelizá-la. A coordenação dos intermitentes entendeueste problema e afirma: “Nossas reivindicações não podemser confundidas com uma luta por privilégios: flexibilidadee mobilidade tendem a se generalizar e não devem implicarprecariedade e miséria. A elaboração de um seguro-desem-prego fundado sobre a realidade de nossas profissões é, naverdade, uma porta aberta a toda forma de contaminaçãoem direção a outros setores”.

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Governo francês quer acabarcom os benefícios trabalhistasdados aos artistas nos períodos de recesso.

Tatiana Roque

Resta saber se o governo está conven-cido de que se trata de um meio efeti-vo para enfrentar os desafios contem -po râneos, não apenas sobre o trabalho,mas sobre propriedade e democracia.

Trabalho/Arte 35 GLOBAL

Novos financiamentosSe a intermitência não é mais umacaracterística apenas do trabalho doartista, devemos perguntar qual seriaa forma de evitar a precariedade cres-cente que é conseqüência da flexibi-lização de todo tipo de trabalho?Lazzarato responde: “Uma renda uni-versal garantida para todos comomeio para: inventar novas formas deatividade que se subtraiam à relaçãode subordinação ao trabalho, direcio-nando-as para a criação e realizaçãode bens comuns, e não para a valo -rização das empresas; dissociar tempode trabalho e remuneração para oacesso de todos a temporalidades nãocontroladas, criadoras de riquezas ede processos de subjetivação; derrotara potência financeira do poder (wel-fare) que tende a reproduzir a subordi-nação ao trabalho (workfare) emdireção a um financiamento dos indi-víduos e das infra-estruturas neces -sárias à criação de bens comuns; con-s truir condições para a neutralizaçãoda divisão entre invenção e repro-dução, entre criadores e utilizadores; eintegrar a multiplicidade dos sujeitosque participam do desenvolvimentoda cooperação social na construção deum novo conceito de democracia queos transforme de clientes, utilizadores,necessitados de emprego, precários,trabalhadores informais, em atorespolíticos de uma nova esfera públicaque não dependa do Estado.” Este último ponto mostra que a dis-cussão sobre os meios de financia-mento e sobre a factibilidade desteprojeto não precisam anteceder a suaimplementação, uma vez que se tratade um dos meios para umaredefinição da democracia. O presi-dente Lula sancionou a lei que instituia renda de cidadania proposta há tan-tos anos por Suplicy, mas o projeto sóentrará em vigor no início de 2005.

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GLOBAL 36 Trabalho/Arte

No prefácio do livro “Software Livre eInclusão Digital” (Editora Conrad),organizado por Sérgio Amadeu e JoãoCassino e que é uma excelente intro-dução a várias experiências no Brasilcom a aplicação de softwares livresem projetos sociais, escrevi que a ques -tão da liberdade digital é “a batalhapolítica mais importante que está sendotravada hoje nos campos tecnoló -gicos, econômicos, sociais, culturais”.Não é, ou não é apenas, um recursoretórico para vender o livro, ou paraincentivar o leitor a enfrentar osdemais capítulos. Eu realmente acre -dito no que escrevi. É claro, há outrasbatalhas de extrema importância – ede radical impacto para todas as áreasde nossa existência política – sendotra va das atualmente. Cito, por exem -plo, o ma pea mento do genomahuma no ou o terrorismo e o combateao terror. Mas, mesmo diante de fenô-menos tão avassaladores – e talvezpelo otimismo incurável que insistoem cultivar – continuo com a impres -são de que as lições trazidas/propostaspelo desenvol vimento de uma comu-nidade internacional de programa -dores de software livre podem terimpacto decisivo na ma neira comopensamos, vivemos e lida mos comtodos esses outros fenômenos.O regime de colaboração que tornoupossível a existência de um sistemaoperacional como o GNU-Linux (ou detoda a internet, que não existiria semo software livre) não parece ter paralelona história da humanidade. Por maisque eu tente encontrar algum aconte -

cimento semelhante, nada me vem àmemória. Não é o resultado que maisimporta, mas o processo. Este édescentralizado e envolve uma massamuitas vezes anônima de traba lha -dores de todos os cantos do planeta.Pessoas de muitas tradições culturaisdiferentes, que trabalham freqüente-mente de graça em torno de um projetocomum e global. E isto sem estaremnecessariamente guiadas por um pro-grama corporativo ou por uma ideolo-gia partidária ou por um único grupoorga nizado. O movimento social quepossibilita a produção do software livreme parece uma grande novidade emtermos de agrupamentos políticos, rev-e lando uma estratégia extremamentecriativa de utilização dos meios decomunicação de massa como am -biente emancipatório e não-alienante.O filósofo alemão Peter Sloterdijkdescreveu, com aparente melancolia,o que ele chama de massa pós-moderna como "massa sem potencial,uma soma de microanarquias esolidões que mal lembra o tempo emque – incitada e conscientizada porseus porta-vozes e secretários-gerais –deveria e queria fazer história comocoletivo prenhe de expressão." O movimento do software livre mostraalgo que ninguém esperava ver surgirno meio dessa "soma de microanar-quias e solidões" de gente que jogavideogame ou troca arquivos musicaispela internet, e por isso é punida pelaindústria fonográfica e por muitos leg-is ladores (lanço aqui meu apelo paraque o Congresso Nacional não sedeixe enganar pela indústria fonográ-fica, que está usando o combate àpirataria para nos aprisionar no seumercado, com leis e tecnologias quevão vigiar todos os nossos hábitosmusicais). E essa massa continua dis-pensando porta-vozes, secretários-gerais ou líderes carismáticos: ela estásim produzindo História, História com“H” maiúsculo, e boa parte do futuroda humanidade está sendo decidido deforma absolutamente coletiva e cheiade expressão – e já com um efeitoeconômico inquestionável – em seuscomputadores, com código aberto,

Software livre ou morte!Hermano Viana

O Brasil

tem a chance

de se tornar um pólo

de referência mundial

de produção e utilização

de programas

de código aberto

a que todo mundo pode ter acesso.Na minha procura por fenômenoscoletivos semelhantes, retornei a umpensamento que venho alimentandojá há algum tempo em várias pesqui -sas. Lembro-me de um disco de vinilque veio encartado na revista francesaLe monde de la musique e trazia provasde “plágios” realizados por compo -sitores como Beethoven, Wagner,Brahms, Mahler etc. O que pareciauma denúncia herética era para mimuma revelação antropológica: a cul-tura da humanidade sempre foi umacriação coletiva. Sem essa vibrantetroca coletiva não há qualidade artísti-ca, nada de interessante se cria.Recentemente participei do projetoMúsica do Brasil, quando visitei 82brasileiros documentando manifes-tações chamadas de folclóricas. Nessaviagem pude ver como todas essasbrincadeiras estão ligadas em rede,trocando pedaços de melodias, letrasde canções, estilos coreográficos, fan-tasias. São também criações coletivas,de código aberto, em constante trans-formação. Essas experiências melevam a desconfiar de todas as tentati-vas de “preservar a identidade cultu -ral” ou defender o “direito autoral”que tragam embutidas uma visão dacultura como um código fechado eproprietário, imutável e refratário aqualquer intercâmbio com outrastradições. A riqueza cultural para mimsempre foi função direta da possibili-dade de transformação e circulaçãolivre das idéias.Vide este meu artigo: mesmo quandonão estamos fazendo citações explíci-tas do pensamento de outros autores,nossas palavras são devedoras deidéias que nos foram propostas poroutras pessoas. Se tivéssemos quepagar por cada idéia, eu não teria di -nheiro para falar nada. Não escrevoaqui como advogado do plágio, masquero apenas fazer a defesa da possi-bilidade de que tenhamos – ao lado ecomplementando o atual sistema dedireito autoral – um outro sistema delicenciamento para a produção cultu -ral semelhante àquele proposto noexemplo já vitorioso do software livre

software livre ou morte!Software livre ou morte! software livre ou morte!

software livre ou morte!Software livre ou morte! software livre ou morte!

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Trabalho/Arte 37 GLOBAL

(que, é preciso deixar claro, nãoafronta a legislação de direito autoraljá existente).Um dos projetos mais interessantesnesse sentido está sendo desenvolvi-do pela entidade norte-americanaCreative Commons (www.creative -commons.org), que tem como um deseus objetivos incentivar a universali-dade de obras livres para serem re-utilizadas e copiadas, com clara inspi-ração na prática do software livre. Odireito autoral como conhecemos éessencialmente proibitivo, impedindoqualquer tipo de re-utilização ou cópiade obras por ele protegidas. Se umartista quer, por quaisquer motivos(inclusive comerciais), que sua obrapossa ser copiada ou re-utilizada paradeterminados fins, ele não terá pro-teção legal. A Creative Commons estádesenvolvendo licenças para esses finse já estabeleceu parceria com a Escolade Direito da Fundação Getúlio Vargaspara ter essas licenças traduzidas paraa legislação brasileira. O ministroGilberto Gil mostrou-se interessadonessas licenças, propondo caminhospara que elas possam contribuir paraa divulgação da cultura brasileira pelomundo afora.

“Lanço meu apelo para que o Congresso Nacional não se deixe enganar

pela indústria fonográfica que está usando

o combate à pirataria para nos aprisionar no seu mercado,

com leis e tecnologias que vão vigiar todos

os nossos hábitos musicais”

Posso dar um exemplo prático decomo isso pode acontecer. Há hoje umgrande mercado para a música inde-pendente brasileira em festivaiseuropeus e norte-americanos. Paramuitos músicos brasileiros interessaque suas canções possam ser execu-tadas por estações de rádio na internetou possam estar disponíveis paracópias em sites de música, mesmosem cobrar pela execução ou pelacópia, pois estarão divulgando seu tra-balho e aumentando a possibilidadede serem contratados para apresen-tações ao vivo onde poderão ser con-tatados por gravadoras locais paralançarem seus discos em pequenosmercados especializados em determi-nados estilos musicais. Hoje, elespodem seguir esse caminho, mas nãoterão nenhum aparato legal para pro-teger suas músicas, por exemplo, deserem usadas comercialmente sem asua permissão. As licenças propostaspela aliança Creative Commons eFundação Getúlilo Vargas podem re -gulamentar essas situações que vivemà margem da indústria fonográficatradicional. Além do aspecto de divulgação, temostambém que encarar toda uma novarealidade da criação artística que temsido feita cada vez mais com a utiliza-ção de computadores. Para continuarcom o exemplo da música: a maiorparte dos novos estilos popularesentre jovens das periferias brasileiras,como o hip-hop paulistano, o funk car-ioca, o novo forró cearense ou otecno-brega paraense, são de músicasproduzidas inteiramente em computa-dores ou em sintetizadores que sãoverdadeiros computadores. É precisofacilitar o acesso livre e criativo dessasmáquinas em suas produções artísti-

cas. Por isso, a utilização de softwareslivres é recomendada, já que incentivaum uso não-passivo das máquinas.O Ministério da Cultura está desenvol-vendo um projeto no qual jovens das"periferias" do país poderão ter suainiciação digital usando o computadorpara produzir arte, começando commúsica eletrônica, edição de vídeo eprogramação de jogos eletrônicos(atividade adorada por adolescentesde todas as classes, além de ser umgrande mercado de entretenimentoplanetário, onde o Brasil não tem par-ticipação relevante). Essa é uma ativi-dade também profissionalizante, comobjetivo de ocupar postos em merca-dos de trabalho que estão sendo cria-dos agora.Esses estúdios multimídias serãomontados com software livre, é óbvio.Repetindo – me autoplagiando sempagar meus direitos! – as palavras queestão impressas na capa do livro“Software Livre e Inclusão Digital”: “Aquestão do software livre é tambémuma questão de libertação nacional. E,se tiver coragem, o Brasil tem agora achance de realizar uma grande cam-panha de mobilização pró-liberdadedigital [temos fome de computadorestambém!], tornando-se assim referên-cia mundial na luta pelo software livre[...] e pólo produtor de novos soft-wares – livres também, é claro – quepoderão globalizar, no bom sentido,nossas conquistas libertárias.” Aquieu incluo, nessas conquistas liber -tárias, nossa arte que sempre deulições modernistas e tropicalistas parao mundo, mesmo quando o resto domundo raramente tomou conheci-mento dela e que, portanto, precisaser melhor e mais ampla e livrementedivulgada.

Stop (me) de Romano

software livre ou morte!Software livre ou morte! software livre ou morte!

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GLOBAL 38 Trabalho/Arte

OCUPAÇÃO

DE ESPAÇOS,

ALMAS

E SENTIDOS

Fotos Eduardo MoraisCaptura vídeo Rafael Adaime

Fabiane Borges

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Trabalho/Arte 39 GLOBAL

Intervenção de 120 artistas

transform

a em arte viva

a vida de 470 famílias

de sem-teto na Ocupação

Prestes Maia, em São Paulo

Aos aliados,

“Quatro andares das paredes que abrigavam sem-tetos incendiaram no dia 7 de setembro de 2003, dois m

eses antes do nosso Encontro”

No centro da cidade de São Paulo, em dezembro de 2003,houve um ritual de interferência e celebração à vida. Eu,Cassandra, fui incumbida de narrar-lhes o acontecimento.Peço que compreendam a maldição que sofro por ter repu-diado o amor do deus da razão, que por despeito fez-megaga e balbuciante, incapaz de expor logicamente as tra -vessias que o destino me força perpetrar. Eu, mulherdespedaçada, dou-lhes meu testemunho desarrazoado,misturado a vidências incongruentes, sobre o que se deuno Templo dos Sem-Teto. Adianto que foi um Encontro deArte Contemporânea junto ao MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo) na Ocupação Prestes Maia.Enquanto arrisco um modo de dar forma sígnica ao que sesucedeu, imagens vibrantes me ocupam, exigindo moradianesse texto.Quando vi o Templo pela primeira vez senti-me arrebatadapara um outro Tempo. Entrei como que no negativo de umafoto antiga. O prédio Prestes Maia impressionou-me sobre-tudo por sua arquitetura e suas histórias. Soube que pormuito tempo serviu como antiga tecelagem, onde mulheresnada Penélopes teciam e faziam greves; era uma fábrica detecidos, de engrenagens lentas e repetitivas. Trinta e cincoandares de galpões abandonados durante vinte anos emfunção de dívidas, que agora são ocupados por dois milsem-tetos. Estes criaram no interior desses espaços suascasas de tábuas de texturas distintas, lonas pretas, vidrosachados nos lixões da cidade, pregos tortos e enferrujados.Verdadeiras instalações montadas a partir do que se encon-tra no caminho, no entulho e também nas Casas Bahia.Ao impacto espaço-temporal dessas duas mil vidas, reagiclamando pelas matilhas criativas escondidas nos edifícioscinzas, espalhados pelos corredores da megalópole. Eu, umcorpo através do qual forças para além de mim emitiramsua vontade. E as matilhas, alertas como estavam, vieramde todos os lados, cada qual com seus coletivos e suasguarnições tecnológicas, performáticas, teatrais, musicais,corporais, sensoriais e mais.Estranheza! Cento e vinte artistas cheios de instalações,objetos conceituais e símbolos, encontrando uma ocupaçãodo Movimento dos Sem-Teto; 470 famílias subsistentes, emtensão na luta por moradia, cujo cotidiano é feito dereuniões, assembléias, votações, passeatas e negociaçõesininterruptas, com as várias instâncias político-administrati-vas do país. Como poderia não ser estranho? De que formamundos tão diferentes poderiam se encontrar? Que cone -xões possíveis teriam movimentos tão alheios um aooutro? Essas são questões que perduraram durante todo otempo do Encontro e ainda persistem. Eu e meu amigo Don Quixote das artes, conhecido tambémcomo Túlio Tavares, fomos impelidos a coordenar esse“Estranho Encontro”. Coordenação experimental, semcontrole de coisa alguma, em tudo esquizofrênica, semnenhum tipo de financiamento, cuja existência sustentou-se naquelas três semanas de encontro. Nossa única pro-posta aos artistas foi que entrassem em contato com oespaço, com as pessoas, com seus modos de vida e que, apartir desse encontro, se pudessem, se pusessem em obra. No decorrer do processo de “Ocupação na Ocupação”, oprédio, os andares, os moradores e os artistas foram gra -

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GLOBAL 40 Trabalho/Arte

às vezes estava triste, só triste, e mevestia de dor; e ainda: guerreira, aludi-da as grandes matilhas femininas dassem-teto e a Petensiléia – a cadela deguerra!

Superar o pânico

O encontro dos moradores com arte eartistas provocou notórias transfor-mações em seus hábitos em relaçãoao prédio. As pessoas começaram a“passear” pelos corredores eescadarias, subir ao terraço do últimoandar e ver São Paulo de cima – visãoincrível sobre a cidade – coisa que nãoera conhecida pela maioria dos queviviam ali, assim como não eracomum subir aos andares dos escom-bros do incêndio. Tinha-se pânicodesses andares, evidenciado nas falasinfantis repletas de assombração eperigo: “Tem um homem que aparecelá e mata as crianças. Lá, as máquinasdo antigo elevador funcionam sozi -nhas, a alma da menina que morreuqueimada fica chorando de noite”.Eram andares proibidos que, aospoucos, foram sendo ocupados compinturas nas paredes, instalações eoficinas, que serviram como disposi-tivos de retorno. As crianças se ofereciam como queem Sacrifício Sagrado à ocupação decriação. Nos guiavam pelo prédio, leva-vam-nos a esconderijos secretos, ao“andar das vovós”, às mães, aos tios,enquanto aprendiam a mexer em nos-sas câmeras de vídeo, máquinasfotográficas, construir monóculos,esculpir nas paredes, fazer malabaris,tocar tambor em latões, cantar. Essaspequenas vidas crescidas dentro deocupações, ajuntamentos públicos eexpulsões de prédios pareciam terpressa de aprender tudo e exigiamhabitar o mundo da arte. As matilhas criativas foram inventan-do estratégias de encontro dentro daocupação. Uma delas – Coletivo Bijari– enviou cartas para váriosmoradores, deu o endereço dumacasa lá dentro e aguardou respostas.Uma delas foi marcante, a moradoraescreveu: “Vêm nos sugar, tiram-nos

dualmente sendo ocupados. A palavraocupação foi se tornando comum eplena de significados, instalando-se emnossos pensamentos feito a lacraia quese instalou na cabeça de um dos perso-nagens de Alan Poe, que ao atra vessarseu crânio, de uma orelha à outra,expeliu centenas de larvas de cem pés.Quantas faíscas loucas não suscita riamessas forçadas sinapses centopéicas? Às vezes acho que esse Encontro foium ritual de fogo: o encontro de forçasde mundos distantes, incendiando ocotidiano de mais de duas mil pes-soas. O fogo para esta ocupação ésigno especial, que lhes arde ines -crupulosamente, e queima quem querque se aproxime com a veemência doseu terror. Quatro andares das pare-des que abrigavam tantos sem-tetosincendiaram no dia 7 de setembro de2003, dois meses antes do nossoEncontro. Diante dessa fatalidadetiveram que reinventar espaços, agre-gar famílias, criar mutirões de colabo-ração, e produzir novos agrupamentosdentro do prédio. Essas chamas semantêm acesas e inflamam a potênciadessa singular coletividade. Pensar oEncontro como um ritual de fogo estápara além de uma analogia propícia,está mais como competência deperceber os campos de forças que seestabelecem quando se deseja realizaruma ação. Transpassada por todas essas forças,fui sendo transfigurada em minhaprópria obra. Entreguei-me a deviresque me atravessaram durante otempo de “Ocupação na Ocupação”.Sentia alegria ontológica por estarconectada a um movimento socialfeito por uma grande maioria de mu -lheres, com destino tão diferente doque coube às minhas derrotadas com-panheiras troianas, que não tiveramforças para reconstruir a cidade incen-diada. Às vezes me sentia como mis-tura de Kali e Morigan – que entre outrascoisas, simbolizam a destruição nasmitologias indiana e celta –; em outrosmomentos me sentia imensa comoIemanjá, então vestia branco e, cheiade lenços pelo corpo, devaneavaáguas, seios fartos, ondas e repuxos;

tudo o que temos, bebem nossosangue, como se não soubéssemos”.Carta dispositivo de angustiadareflexão. Fizemos esse encontro porque somos sanguessugas? Queremostomar dos Sem Teto sua força? Ésangue o que queremos? Sim, mepareceu dizer a voz de Cida, moradorado 19º andar quando falou: “Ser umasem-teto deu sentido para minha vida.O momento de ocupar um prédio é omais emocionante. Meu coração batiaforte, mas tão forte! Quando a genteentrou aqui tava tudo escuro, cheiran-do a esgoto, sem luz, sem água, cheiode entulho... aí é que vem mais força,todo mundo se ajudando, se organi-zando, fico arrepiada só de lembrar!”Estava claro que se tratava de sangue.Foi um encontro de transfusão desangue! Transfusão de potência!Tanto que num dia apareceu uma faixana parede, que dizia em letras gar-rafais: “VISTA SUAS VEIAS”.Assim como essa faixa, muitas outrasleituras foram sendo colocadas peloscorredores, pelas casas das pessoas,sem que ninguém, ou quase ninguém,assinasse sua autoria. Não tinha horapara as coisas acontecerem. Elasapareciam dependendo das linhas queiam sendo tramadas naquela antigatecelagem. Evento sem hora marcada,nem assinatura das obras. O mais difícil foi lidar com os jornais.Não tínhamos assessoria de impren-sa, mesmo assim apareceram jornalis-tas de todos os grandes jornais dacidade de São Paulo nos pedindoexplicações concretas. Eu e DonQuixote os levávamos dentro dascasas para conhecerem as pessoas etentar que compreendessem que nãose tratava de exposição em galeriaexótica. Não era exibição, era trans-fusão! Mas a imprensa não entendenada de transfusão. E as notícias quesaíram nos jornais de forma algumatraduziram o que se passava.Dessas trocas sanguíneas que faláva-mos, uma moradora foi exemplar –Célia Moreira – de casa toda feita debambu e ervas de cheiros fortes. Emnosso primeiro encontro nos serviucafé e leu uma de suas poesias:

“O encontro

provocou notórias

transform

ações

nos hábitos

dos moradores,

que começaram

a ‘passear’

pelos corredores

e escadarias,

subir ao terraço

do último andar

e ver São Paulo

de cima –

visão incrível

sobre a cidade”

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Trabalho/Arte 41 GLOBAL

“Versos de Ironia”. No segundo encontro, com Don Quixotedas Artes, ela falou que era estilista e sua moda significavaa união do absurdo e do ridículo. Mostrou suas roupasfeitas de garrafas plásticas coloridas, sacos de batatas,sementes e pastos encontrados pela Terra. Não houve dúvi-da, faríamos um desfile! Célia convidou a mim e váriassem-teto para vestir suas roupas. Interrompemos a reuniãodo último encontro dos artistas no prédio, com batidas detambor e vestimentas “ridículas e absurdas” pelo corpo.Célia radiante dizia: “Estou viva! Estou viva! Eu sou gente!”Suas roupas, nunca vistas, agora ganhavam forma em cor-pos de várias idades. A maioria dos participantes do Encontro não chegavam aos30 anos. Por isso, me pergunto se o que aconteceu naOcupação Prestes Maia foi um ritual de encontro dessanova geração, uma espécie de deflagração do zeitgeist con-temporâneo!? Há algum tempo esses artistas têm experi-mentado novos modos de produzir suas obras. O aconteci-mento que se deu na Ocupação Prestes Maia me parece tersido fundamental para o fortalecimento dessas ações artís-tico-urbanas em São Paulo.Mas houve também momentos de resistência à nossa ocu-pação artística, que indicaram que os preconceitos raciais,religiosos e de classes sociais se faziam atuantes: algunssem-teto interpretaram nossa chegada como entretenimen-to de gente rica; uns outros se negaram a fazer parte doprocesso, fechando suas portas; alguns crentes sechocavam com nosso comportamento irreverente, algunsartistas não conseguiam se envolver com os moradores.Era a travessia de uma maioria de estrangeiros brancos,universitários, intelectualizados, tecnologizados a umazona de conflito ocupada por uma maioria negra, empobre-cida, com poucos recursos de educação institucional, numprédio desprovido de telefones e computadores, que se ilu-mina precariamente por gambiarras. Negar essas dife rençasseria fechar os olhos para o abismo de classes e de raçasexistentes nesse país. Para mim, esses confrontos fize rammuito sentido. Intuí que eram necessários para evidenciar aradicalidade desse projeto, para possibilitar experiências deriscos subjetivos, para propor modos de criação que surjamdo contato com um mundo povoado de vidas. Para terminar, confesso-lhes que ainda estou atordoada,não sei bem o que aconteceu. Escreveria muitas páginasmais, se assim pudesse, para dar-lhes idéia do aconteci-mento. Posso dizer-lhes que tudo segue vibrando. Artistascontinuam indo ao prédio; vários deles se juntam semanal-mente para trocar suas experiências; ações coletivas estãosendo pensadas para 2004. A Ocupação ganhou posse doedifício, as pessoas vão ser encaminhadas provisoriamentepara outros prédios, os moradores dessa ocupação vão seseparar e a última festa que os ajuntou, foi a festa do nossoEncontro. Temos convites para participar das Ocupaçõesque se seguirão – adrenalina! Enfim, em vidência lhessecreto que esses movimentos não se extinguirão!Estamos com sede da cidade, com desejo de ocupá-la,instalar-nos pelos espaços públicos. É a forma que encon-tramos de interferir e celebrar a vida.

Sua tresloucada, Cassandra.“Temos convites para participar das ocupações que se seguirão – adrenalina! Enfim, em vidência

lhes secreto que esses movimentos não se extinguirão!”

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PARTICIPARÁS

Ficha técnicaModos de UsarGaleria Vermelho, São Paulowww.galeriavermelho.com.br

Participantes: Alexandra Pescuma André Komatsu; Angela Detanico e Rafael LainChiara Banfi Edilaine Cunha Eliane Testone Fabio Morais Gisela Mota e Leandro LimaGiuliano Montijo

João e Pedro Nitsche Laércio Redondo Maíra Voltolini Marilá Dardot Maurício Ianês Nicolas Robbio Paulo Nenflídio Rivane Neuenschwander Rodrigo Matheus Roni Hirsch e Giovana GregolinSara Ramo

Curadoria de Lisette Lagnadoassistência de Julia Rodrigues

Prototipo2003 e Pinball2003de Giulianno Montijo

Foto Edouard Fraipont

GLOBAL 42 Trabalho/Arte

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Como pensar o problema da partici-pação na arte? Foi a partir dessa per-gunta que a crítica Lisette Lagnado ini-cialmente resolveu responder a umconvite da Galeria Vermelho para rea -lizar uma semana de performances.Construída coletivamente, “Modos deUsar” configura o resultado de váriosencontros com jovens artistas entresetembro e novembro de 2003. Deter -minada a propor uma revisão docaráter espetacular que ainda orientaa performance, quando esta permanecepresa à tradição teatral e reitera a sep-a ração entre performer e público, acuradora propôs um seminário paradiscutir a troca com o outro. Afinal, a participação sempre fora umadas prerrogativas da performance.Nos anos 60 e 70, período de desma-terialização da obra de arte enquantosuporte, objeto e mercadoria, a per-formance foi uma das expressões quemais se desenvolveu e ganhou veloci-dade. Nas formulações de Lygia Clarke Hélio Oiticica, o artista é um propo -sitor, é o “molde” dentro do qual aação do outro (o “sopro”) torna essepensamento vivo. O participador entrapara “completar” o diálogo. Se, nessaépoca, o convite esteve centrado navalorização das experiências sensoriaise na descoberta do corpo, em que basesse dão as parcerias de hoje? Que tipode participação o pensa mento artís -tico contemporâneo consegue ativar?

O afeto A cada encontro, a discussão foi seafastando da esfera da performance,redesenhando a proposta da expo -sição. Algumas palavras-chaves alavan-caram os debates: afeto, amador,economia, efêmero, imaterial, infância,fetiche, instruções, jogo, não-artista,negócio, participação, poder, fetiche,souvenir, troca, valor etc. Os ensaiosde Walter Benjamin, reunidos no livroReflexões: a criança, o brinquedo, aeducação (Summus, 1984) e de ToniNegri em Valor e Afeto, do livro Exílio(Iluminuras, 2001) foram adotadoscomo fios teóricos, cada qual contri -buindo com uma direção: a infância,como forma de sensibilidade e deapre ensão livre do mundo, e os con-ceitos de “potência de agir” e de “eco -nomia da atenção”, compreendidos nosentido de cuidado e manutenção.

1 Colaborou Rafael Assef.2 Colaborou Maurício Cardoso.3 Colaborou Helio Magino.PARTICIPARÁS

Ingressando no campo biopolítico, oafeto foi utilizado como dispositivopara mobilizar a participação do outroe para questionar o capital da arte.Ganhou espessura como prática polí -tica, mesmo que os projetos não seinserissem diretamente em uma linhade arte social ou ativista. Em diferentes formas e graus, os tra-balhos levavam o público a descobrirnovos modos de uso da arte. Algunspartiram de relações interpessoais jároteirizadas, como o jogo (os seteerros de Sara Ramo)1, a brincadeira (acasa na árvore de André Komatsu2, otelefone sem fio de Maurício Ianês e oesconde-esconde de Leandro Lima eGisela Mota), a sala de aula (omimeográfo de Marilá Dardot) e ocomer junto (Traduções gastronô -micas, de Rivane Neuenschwander,com a participação dos chefs CarlosSiffert e Neka Menna Barreto). A maioria das propostas traziainstruções e não poderiam existir semparticipação. A vídeo-instalação Listento me, de Laercio Redondo, apresentaimagens captadas com o público apartir de uma sentença: venha com a“música de sua vida”, ouça-a de olhosfechados e, ao final, abra os olhos3. Oresultado é editado e exibido em moni -tores ligados a fones de ouvido. A parti -ci pação recebe, no final, uma edição eformalização espacial. Na última etapado processo, o visitante da exposiçãopode sentar e escutar o resultado.

O papel da participaçãoSe na instrução de Laercio, o partici-pante é a matéria-prima da obra, notrabalho Eu e você, são coisas dife -rentes, de Maurício Ianês, ele geratransformações. O artista exibe emvídeo uma cena em que fala da dificul-dade de comunicação e pede ao parti -cipante que reproduza sua fala e seusgestos. Mesmo seguindo a orientaçãodada pelo artista, a mímese perfeitanunca é alcançada e gera-se uma novamatriz. Esta é então mostrada ao par-ticipante seguinte, que a toma comoponto de partida. A repetição doprocesso cria uma espécie de telefonesem fio que evoca a distância entre oartista e o não-artista. O ambiente de Rodrigo Matheus,Recepção, foi criado para ser alimen-tado pelos funcionários da galeria no

Exposição na

Galeria Vermelho

em São Paulo

questiona que

tipo de participação

o pensamento artístico

contemporâneo

consegue ativar.

Angela Detanico

e Julia Rodrigues

Trabalho/Arte 43 GLOBAL

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GLOBAL 44 Trabalho/Arte

decorrer da exposição. O artista recons -tituiu um escritório, sem identidadereconhecível, sugerindo um circuitode funcionamento real acrescido deobjetos dissonantes entre si: venti-lador, quadro de contas, mural derecortes de jornal e aquário. Acres -centou ainda alguns elementos daprópria galeria, (como o extintor), queforam apenas deslocados. O todo fun-cionava como um conjunto de apare -lhos conceituais.Em outras obras, a participação apre-sentava-se de modo menos explícito.Pilha, de Angela Detanico e RafaelLain, é um sistema que propõe aescritura por meio de empilhamentode objetos idênticos, relacionando-osà posição das letras no alfabeto.Seguindo essa ordenação, tijolos, bor-rachas, caixas de madeira e cubos deaçúcar, quando empilhados, for-mavam “textos”, distribuídos pelagaleria. O circuito do trabalho se com-pleta quando essas frases sãodecifradas, o que implica a assimi-lação do código criado para decifrar asmensagens. Este esforço de leiturasugere uma alternativa para a inter-pretação das coisas do cotidiano. Com essas entradas múltiplas,“Modos de Usar” evidencia processosde trabalho, em detrimento de obrasprontas para o consumo e a fruição.Evidencia ainda o hiato que existeentre artista e público e a importânciadesse espaço ser preenchido por umaparticipação, física ou mental, queganha, nas linhas de Negri, a acepçãode “trabalho imaterial”. Nesse sis-tema de trocas e cooperações, as pro-postas questionam o institucional-mente estratificado e suscitam nossaresponsabilidade perante a realidade.São ações que, embora pontuais e cir-cunscritas no espaço de uma galeria,procuraram colocar em xeque estru-turas consagradas de emissão erecepção da obra, abrindo para umapossibilidade de desestabilização. Sendo a arte um veículo para a dis-cussão da sociedade, poderia elapropor novos modelos de produção apartir da incorporação da subjetivi-dade do outro? Ou, mais ambiciosoainda, reformular as moedas de trocaquando se fala em forças de trabalhonão reconhecidas porque não premi-adas monetariamente?

IImmaaggiinnáárriioo PeriféricoMauro Sá Rego Costa

“Invadir”espaços comuns, como a estação

da Central do Brasil, e transformá-los

em galerias de arte é o objetivo desse grupo

de artistas cariocas

Linhas de Mirela Luz para o evento Imaginário Periférico

Foto Sandra Moraes

A estação ferroviária da Central doBrasil, usada diariamente por milharesde trabalhadores do Rio de Janeiro, foitomada de assalto por 40 artistas plás-ticos, uma banda de rock, outra defunk e duas de samba, um grupo deCapoeira de Nova Iguaçu, poetas deDuque de Caxias, dança a 15 metrosde altura. Um manifesto – Fome ZeroCultural (ver quadro) – é lido, aosberros, e seu texto/panfleto distribuído.O Imaginário Periférico transformaa Central numa monumental galeriade arte e espaço de performances. Asobras ficaram expostas de 22 desetembro a 3 de outubro de 2003. Osusuários da estação, em sua maioria,jamais tinham pisado numa “galeriade arte”.O Imaginário Periférico decidiu, háalguns meses, atuar dessa maneira,por invasão, ocupação de espaços nãoespecíficos para a arte; e agenciarcoletivos de artistas de linguagens e“planos” diversos, abandonando acompetitividade e a hierarquizaçãoque sempre marcaram as artes plásti-cas. Em novembro, outra ocupação,agora em São João de Meriti. Em2004, está na “mira” a UERJ, em Duque

de Caxias, única universidade públicana Baixada Fluminense. Deneir deSouza e Jorge Duarte, dois dos fun-dadores do Imaginário, fazem oficinaspara os estudantes na instituição hátrês anos. No início, com pouquíssimosalunos. As artes plásticas não apare-cem no currículo das escolas públicas,no Brasil, e a maioria chega à Univer -sidade incapaz de ler esta linguagem.O Imaginário foi criado por seis artis-tas que já fazem parte do chamado cir-cuito das artes plásticas no Rio deJaneiro – além de Deneir e JorgeDuarte, Raimundo Rodrigues, JulioSekiguchi, Ronald Duarte e RobertoTavares. O grupo aponta dois cami -nhos novos. O primeiro é o da dis-seminação da informação, uma açãode ruptura da separação social entrecentro e periferia na produção/criação/consumo desses meios de expressão.E o segundo é o trato com as artesplásticas no que se pode aproximar donovo modelo para o trabalho, pen -sado por Negri/Cocco/Lazzarato, ondenão se separa mais trabalho e vida;movimentos de indiscernibilidadeentre pro-dução/diversão/saúde/educação/cons

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Trabalho/Arte 45 GLOBAL

Imaginário PPeerriifféérriiccooMMaauurroo SSáá RReeggoo CCoossttaa

Manifesto Fome Zero CulturalCABEÇA V A Z I A NÃO ENCHE B A R R I G A

Assim como a riqueza monetária está concentrada, no Brasil, em poucas famílias, as artes, as ciências e as tecnologias estão concentradasem menos de 30.000 doutores. Arte, ciência e tecnologia para o povo. Cerca de 52 milhões famintos de comida. Cem milhões famintos de cultura.As artes, os artistas, não existem só na Zona Sul do Rio e nos Jardins de São Paulo. Estão também nas periferias do Rio, de São Paulo e da Bahia,do Ceará, do Paraná, do Mato Grosso, do Acre... Estão, mas não aparecem. O Fome Zero Cultural vai mostrar essa arte. O Fome Zero Cultural quer aengenharia, a arquitetura, a medicina, as telecomunicações, a televisão, a informática e a telemática para os 100 milhões de famintos culturais.Cabeça vazia não enche barriga.Redistribuição urgente do capital intelectual nacional!Pela criação de canais de circulação da produção cultural marginalizada!Pelo fim da exclusão digital!Pela obrigatoriedade do ensino de Artes Visuais, Música, Dança, Rádio, Teatro e Televisão no Ensino Fundamental!!!Pelo florescer dos talentos em qualquer área de saber e em todas as faixas etárias!Pela ocupação das direções dos órgãos públicos da Cultura por artistas, críticos e teóricos das Artes!!!Pelo estudo do impacto sócio-cultural nas populações dos locais de suaimplantação para os empreendimentos de maior escala!!!Pela participação dos artistas no planejamento de inovações urbanísticas(visuais e sonoras) no Plano Diretor dos municípios!!!Pela implantação de centros culturais e de artes nas comunidades e periferiasdas cidades grandes e médias!!!Pelo pagamento das dívidas culturais com as etnias não-brancas!!!Por investimentos na manutenção de manifestações artísticas ou litúrgicasregionalizadas e globalizadas-locais: indígenas, camponesas e culturalmenteespecíficas: samba, jongo, hip hop, funk, congo, mangue beat...

umo.O melhor exemplo é o de Deneir deSouza, que não abandonou a AnimaçãoCultural, preocupado com as crianças,mesmo quando o governo de MarceloAlencar arrasou o projeto; trabalhounos programas infantis de TV de DanielAzulay, mas se recusou a trabalharcom a Xuxa; reclama o tempo todo dese dar pouco tempo para a “criação”,mas é inteiramente apaixonado pelotraba lho com jovens portadores denecessidades especiais em Conceiçãode Macabú (RJ), com jovens e mãesfazendo cerâmica em Magé (RJ). Seusbrinquedos e “engenhocas” feitos delixo reciclado mereciam uma exposiçãono Museu de Arte Moderna ou noMuseu de Arte Contemporânea. Imaginário Periférico foi o nomeque o grupo se deu em 2000, concor-rendo a uma verba da Petrobrás, paraabrir um galpão na beira da RodoviaRio-São Paulo, em Nova Iguaçu, quefuncionaria como espaço de ateliês,oficinas, eventos e uma galeria dearte. A verba até agora não apareceu.Mas os contatos com as prefeituraslocais já renderam vários eventos,como os últimos da Central do Brasil e

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questão: “Com quais estratégias seenfrenta a exclusão centenária da‘cidade oficial’ que produziu as favelasno Rio de Janeiro e como os novosmovimentos argentinos estão reagindoao completo colapso social em conse-qüência das políticas econômicas?” O mapeamento das experiências do Rioe de Buenos Aires, o encontro de algunsdesses agentes, redes, grupos e movi-mentos, durante três dias na cidade deBerlim (signo de tantas outras rupturase crises), deram uma visão concreta doque poderiam ser esses “duplos” da ci -dade e como “todas essas crises levaramseus habitantes a reinventar estruturasalternativas de produção, de repro-dução ou de resistência política”, redesdentro da cidade que forçam a pensar.As “cidades da cooperação” (City ofCoop), ações que se tornaram visíveisdentro das cidades administrativas, sãoheterogêneas, mas têm questões eestratégias comuns: nascem de condi -ções de trabalho informais e precárias,

Rio de Janeiro e Buenos Aires, duascidades signos da América Latina, emmeio a crises diversas, são percebidasnos últimos anos como laboratóriospara os movimentos globais, labo-ratórios de uma outra experiência decidade que funciona paralelamente, emparceria, ou mesmo negando o Estado.O que Rio e Buenos Aires teriam emcomum e o que diferencia seus movi-mentos urbanos? Quais as característi-cas dessas cidades substitutas que vêm“funcionando na tensão entre umanova produção cultural, ‘economiassubstituas’ auto-organizadas e ativismopolítico?” A proposta dos alemãesStephen Lanz e Jochen Becker foi cons -truir uma ponte entre essas experiên-cias e fazer das cidades escolhidas temapara uma extensa análise de caso, queapenas começou a ser delineada.O projeto reuniu, em Berlim, coletivos,cooperativas, representantes de fábri -cas, grupos de cultura, saúde, música,cinema e mídia em torno da seguinte

Zonas de Turbulência e InvençãoIvana Bentes

Participantes.

Buenos AiresNuevo Rumbo (Pepe Córdoba) Andrés Di Tella (Cinema e Mídia)Asosiación Mutual Sentimiento (Graciela Draguicevich) La Tribu (Ximena Tordini) La Colifata, Myriam Pelazas

Rio de JaneiroCelula Urbana (Dietmar Starke) Coopa Roca (Tetê Leal e costureiras) Grupo Cultural Afro Reggae (Micheli Sobral)Ivana Bentes (Cinema e Mídia) aTraVer (Marcio Souza) Isabel Martins (Rede CCAP)

BerlinProjeto ErsatzStadt (Stephen Lanz e Jochen Becker)Hermann Hiller (moda) Berliner Volksbühne Max Welch Guerra (Bauhaus)Ute HermannDJ Agapê

Rio-Buenos Aires

Projeto reúne,

em Berlim, iniciativas

das duas cidades

sul-americanas que

produzem não apenas

bens materiais,

mas valor,

cultura urbana,

arte e afeto.

GLOBAL 46 Trabalho/Arte

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tornam-se cooperativas, com “econo-mias solidárias”, engajam-se naprestação de serviços sociais, na pro-dução material e imaterial, e podem ounão se associar ao mercado formal emesmo ao Estado. Outro ponto emcomum: cada vez mais a cultura e a arteaparecem indissociáveis dessa novaforma de pensar o trabalho e asquestões sociais. Nas duas cidades, osmovimentos se constituem também apartir de ações culturais e estéticas,numa torção da política e do ativismovia cultura e arte, que marca os movi-mentos globais.Os exemplos são concretos. Uma coope -rativa argentina de catadores depapelão, Nuevo Rumbo, representadapor Pepe Córdoba, se desdobra na cria -ção de uma indústria de reciclagem,apoia seus “subempreendedores” comserviços sociais e pensa numa associ-ação que possa ter força nacional. Umacooperativa brasileira de costura,Coopa Rocca, consegue unir coope -

primeira vez uma câmera de vídeo digi-tal para mostrar o lugar em que vivia,comia, resistia. Parte de um filme coletivode estudantes universitários, os re gis -tros de Compañero, piquetero cineasta,dão a impressão do cinema político epoético se reinventando e a possibili-dade de olhar um acontecimento com apotência da primeira vez. Um jovemdesempregado assassinado pela políciaargentina durante os protestos de 2001torna-se o tema do documentárioGustavo Benedetto presente!, de NaomiKlein e Avi Lewis, mostrando que omorto poderia ser qualquer outro jovemargentino que protestasse. Morte anô -nima e “insignificante” que ganha sen-tido justamente por não ser nada arbi-trária, mas um programa cumprido pelalógica policial contra qualquer jovemque significasse uma vida em revolta.Do Brasil, as imagens que vieram dasfavelas e da cidade foram produzidaspor moradores, artistas, urbanistas, quetambém dispensam os mediadores eextraem um pensamento do corpo acorpo com seu território e na sua vidacotidiana.Entre o “programa” administrativo,repressivo ou de contenção de partedos cidadãos e os sujeitos políticos saí-dos desses territórios da pobreza e doprecário, o projeto ErzatzStadt/City ofCoop deu visibilidade a essas zonas deturbulência, risco e invenção nascidades. Locais onde desempregadosou subempregados se tornam um novotipo de empresário ou empreendedor,inventam formas de trabalho e de vida(sejam artistas, piqueteros ou camelôs),onde territórios como as favelas cario-cas podem ser vistos como parte alta-mente produtiva da cidade, com traba -lhadores que produzem não apenasbens materiais, mas produzem valor,bens imateriais, cultura urbana, arte,afeto. No final um horizonte: os impas -ses e confrontos dos movimentos soci-ais no Rio ou em Buenos Aires não sãofenômenos isolados, efeito da instabili-dade e crise latino-americana, masestão no cerne mesmo da discussãosobre os movimentos globais e suasnovas formas de pensar e questionar oEstado e o trabalho, inventando agoracidades do futuro e outras formas deviver. Um problema: com tantos pontoscomuns, os movimentos e participantesvindos do Rio e Buenos Aires só seencontraram em Berlim, sem respostapara a questão: como formar redes lati-no-americanas ou cidades virtuais?

Zonas de Turbulência e InvençãoIvana Bentes

ração com visão empresarial, acabacom mediadores e coloca as costureirasda favela da Rocinha produzindo direta-mente para grandes grifes de modabrasileira, tornando-se elas mesmasuma “grife” valorizada em desfiles dealta costura, onde cada peça artesanal évendida por preços elevados e inima -gináveis para uma costureira da favelaou uma consumidora comum de moda,com todos os paradoxos e impassesque advêm dessa passagem, do poucovalor ao exorbitante. O Projeto CélulaUrbana instala na favela do Jacarezinhoum módulo experimental para umacidade utópica, usando tecnologia daBauhaus alemã e o conhecimentoempírico de construção e urbanismodos moradores para construir uma célu-la virótica de produção de valor, conhe -cimento, arte, oportunidades coletivasnum ambiente degradado. Nos trêscasos os movimentos se afastam daidéia de pureza e isolamento e searriscam competindo com o mercadoexistente, descartando atravessadores,criando novos mercados e valores.Reciclando o lixo industrial ou produzin-do luxo e cultura, a produção de ima-gens como novo valor e capital foi temados debates em torno dos projetos edessas “grifes”, com exibição de filmese vídeos que se ocupam ou são pro-duzidos pelos movimentos nascidosnas duas cidades. As imagens das fave-las no cinema e na mídia brasileira e asimagens, documentários, ficção, vídeosamadores, realizados durante a criseargentina de 2001, traziam elementosperturbadores sobre uma situação emaberto: o devir desses acontecimentos,estratégias e ações e as imagens quecircularam pelo mundo, muitas vezesesvaziando esse potencial perturbador.Quando uma câmera de cinema ouvídeo é colocada na mão de piqueteros,favelados, amadores, trabalhadores,documentaristas ou artistas com umolhar descondicionado, o resultadopode ser surpreendente, pois trata deregistrar a vida “em obra”. DaArgentina, Andres De Tella trouxe osúnicos 5 minutos de registro de umpiquetero anônimo que usava pela

Rio-Buenos Aires

“Nas duas cidades, os movimentosse constituem também a partir de ações culturais e estéticas,

numa torção da política e do ativismo via cultura e arte,

que marca os movimentos globais”

Trabalho/Arte 47 GLOBAL

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Seção 1 GLOB(A.L.)

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A universidade estatal é pública?Alexandre do Nascimento

GLOBAL 48 Universidade Nômade

O que chamamos de “público” tem osentido de “comum”, ou seja, aquiloque deve ser comum a todas as pes-soas de uma determinada sociedade,aquilo a que todos, rigorosamentetodos, devem ter acesso. É o que ofilósofo Cornélius Castoriadis chamoude “participável”, o que não pode serpartilhado, distribuído, apropriado empartes, mas o que deve permitir a par-ticipação de todas as pessoas. Odebate sobre o público vai além dodireito, pois o que importa é o pro-cesso da universalização dos direitos.A universidade estatal no Brasil –aquela que chamamos de “universi-dade pública” – é um interessantecaso, que denuncia que aqui o públiconão é necessariamente comum. Veja-mos alguns dados: a maioria dos estu-dantes das universidades estatais éoriunda de escolas particulares e/ou decursos pré-vestibulares caríssimos,que não são acessíveis à maioria dasfamílias pelos seus altos custos.Curiosamente essas instituições deensino superior são chamadas depúblicas, mas para ter acesso a elas épreciso, antes, pagar caro.Corroboram para essa situação, entreoutros fatores, a deficiência do ensinobásico nas escolas públicas – onde fal-tam investimentos, professores, mate-riais básicos, equipamentos etc. –; omodelo de exame para seleção dosfuturos universitários, que funcionamuito mais para atestar se o estudantesabe fazer prova de vestibular; as uni-versidades estatais não possuem polí-ticas de atendimento estudantil adequa-das para os alunos que necessitam deapoio; no meio acadêmico, especial-

mente no movimento docente – majo-ritariamente de “esquerda” –, algunstemas são tabus ou até mesmo ina-ceitáveis, como o debate sobre políticasde ação afirmativa (falar em políticas deacesso e permanência de pobres,negros, indígenas etc. é uma ofensaao valor fundamental do “mérito” eque “compromete a qualidade”).Outro tema que é proibido debater é apossibilidade (antidemocrática) deprofessores aposentados prestaremnovos concursos e entrarem com van-tagens, como o direito a 60% da Grati-ficação de Estímulo à Docência (GED).Neste caso, o maior problema não é odireito ao concurso, mas a quase cer-teza da aprovação. Na universidade,tanto o individualismo de direita, quan-to o corporativismo de esquerda sãoconservadores e reacionários.Movimentos Sociais como os cursospré-vestibulares populares e o movi-mento negro, enfrentam algumas resis-tências dos que não querem que a uni-versidade estatal seja pública. É comumouvirmos que, em vez de lutarmos porpolíticas de cotas para negros e pobres,deveríamos lutar pela melhoria doensino médio. Do ponto devista do movimento dospré-vestibulares populares,um ensino básico de qua-lidade é indiscutivelmentefundamental e deve serobjeto de luta. Entretanto,isso não substitui umapolítica de ação afirmativa.Para esses movimentos, oque substitui a ação afir-mativa é a abertura da uni-versidade a todas as pes-soas, sem nenhum “pro-cesso de seleção”. Aspolíticas de ação afirma-tiva são parte de um pro-cesso de universalizaçãodo direito à universidade.O governo começou a dis-cutir uma reforma no sis-tema universitário. O pro-blema maior não é oestatuto que rege a uni-versidade estatal, mas assuas formas de funciona-

O sentido de ‘público’como ‘comum a todos’passa longe dasinstituições de ensinosuperior estatais, que têmpor modelo de ingressouma prova para quem‘sabe fazer vestibular’

mento e as suas práticas internas deseleção excludente. A reforma tem atarefa de refundar as bases sociais dauniversidade. A não-democratizaçãodo ensino superior é um dos limitesfundamentais ao seu próprio desen-volvimento, pois a quantidade produzqualidade. Neste sentido, tornar a uni-versidade pública passa por promovera sua abertura aos movimentos que areivindicam e transformar a naturezados processos de produção e dedifusão do conhecimento.A reforma universitária que será pro-movida pelo MEC precisa tocar nessespontos. É preciso responder a seguintequestão: A universidade estatal épública? Pois esta é a pergunta quefazem osmovimentos sociais que lutampara romper as barreiras impostaspelas universidades à sua própriademocratização e à universalidade doacesso a ela. E esses obstáculos são,inclusive, funcionais à expansão dasuniversidades particulares. A reflexãosobre essa pergunta pode contribuirbastante para uma reforma que revo-lucione as formas de funcionamentodas universidades estatais para que elaspossam se tornar, de fato, públicas.

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Universidade Nômade 49 GLOBAL

tado é, por exemplo, os alunos não o quererem na sala deaula. O chefe de departamento quer colocá-lo à disposiçãoou readaptá-lo em funções “extra classe” – a chamadapesquisa. O departamento de saúde não quer se respon-sabilizar por seu licenciamento contínuo (e inevitável), e auniversidade pede um professor contratado para colocar emseu lugar. Tudo ao mesmo tempo.O espaço máximo da liberdade de expressão, o lugar ondese concentra o “estado da arte”, a dimensão questionadorado saber e do conhecimento não consiste em um locus tãolivre como se imagina. Muitos tentam aprisionar os “produ-tores do conhecimento”. Posso dizer que a área de saúdetem realizado muitos diagnósticos que servem como instru-mental para a retirada dessas pessoas do espaço do saber.Perdi as contas de quantas vezes ouvi: “só porque ele é pro-fessor, acha que deve nos tratar como ele tivesse sangueazul”. Ou ainda: “este funcionário é péssimo, vou solicitarque seja transferido para outro lugar”. Ambos se referem àspessoas de mesmo diagnóstico. Ambos não sabem comoconduzir a situação de um transtorno mental no trabalho.Ambos utilizam a linguagem hierarquizada do poder univer-sitário. Ambos se cumprimentam normalmente com frasesde “bom dia” durante suas rotinas. Ambos esperam dodepartamento de saúde que seja colocado um ponto final navida funcional deste servidor público. Ambos estão noespaço chamado Universidade.

Os casosEm março de 2002, recebi, como uma situação que necessi-tava de acompanhamento do Serviço Social, uma auxiliarde enfermagem que solicitava remoção do seu setor, poissentira-se coagida por colegas de trabalho que conheciam ofato dela ter denunciado um roubo de materiais hospitalarespor um colega. L.S. dizia-se vigiada e seguida nas ruas pelanova chefia que assumiu o seu setor. Com laudos e pare-ceres que diagnosticavam esquizofrenia, optei por facilitarsua saída do setor como desejava. Porém, nos atendimen-tos que agendávamos ouvia seus relatos de perseguição,ameaças de morte, rejeição da família, ou mesmo conversascom pacientes que nunca existiram no setor de internaçãodo Hospital Pedro Ernesto. L.S. via vultos, ouvia vozes, via-se perseguida por pessoas (sempre do seu trabalho), aponto de já ter se mudado para outras casas cerca de dezvezes. No mesmo ambiente universitário, atendi A.F., pro-fessora, doutora, dona de um dos currículos mais almejadospelos pesquisadores das ciências biomédicas. Diagnóstico:depressão profunda, com várias tentativas de suicídio. Ochefe do departamento, outro professor doutor, solicita aoServiço Social que viabilize seu licenciamento ou suareadaptação em funções somente extra-classe. Desde queingressei na Universidade, recebo a cada dia vários casoscomo esses. Tiro apenas algumas conclusões deles. A prin-cipal delas: o espaço do livre saber é um espaço disciplinarcomo os outros. Muitas vezes, mais perverso e apodrecidoque esses outros. E agora, o que fazer com esses loucos?

Loucos pela universidadeFrancis Sodré

Conhecida como espaço da liberdadede expressão, a Universidade revela-seuma fábrica em potencial de pacientescom graves transtornos mentais.

Há dois anos como residente em Serviço Social da Univer-sidade do Rio de Janeiro (UERJ), vivencio uma realidadenão muito discutida pela academia: o estranhamento ante ofuncionamento pérfido da Universidade. Fui surpreendidapor um dado do departamento médico da UERJ de que 40%dos casos de afastamento do trabalho ou de readaptaçãofuncional são caracterizados por problemas mentais.Incluem-se aí desde o estresse agudo à esquizofrenia, queacomete professores doutores e mestres e chefes desetores do hospital universitário – local onde se trata daspatologias mais diferentes, que as clínicas tendem a rece-ber como demanda. Contudo, o mais expressivo número depacientes mentais varia entre os auxiliares de enfermageme os agentes de administração universitária.Curioso é o posicionamento das chefias no momento dedecidir sobre o futuro dos seus subordinados que possuemdoença mental. O que fazer com o adoecido? A primeira ati-tude do comando é: “não queremos fulano neste setor. Eleatrapalha o serviço”. A segunda, pela área de recursoshumanos, é cobrar que se emita um parecer que retire osicrano do trabalho: ou por licença médica ou aposentado-ria por invalidez. Já acompanhamos situações onde todo osetor tinha mais de um funcionário com caracterização dedoença mental: depressão, ansiedade, transtorno obsessi-vo-compulsivo ou esquizofrenia.

Fora do lugarQuando pensamos naquele funcionário que é contratadoapenas para carimbar papéis e colocar o nome do aluno emuma pasta que servirá de estatística para saber quantaspessoas foram atendidas no mês, sabemos que esse servi-dor é fácil de “aposentar”. Mas quando colocamos cargose funções na mesma balança, verificamos que muitosdocentes são acometidos por transtornos mentais. O resul-

Panela de lagostins de Cristina Papepara o evento Imaginário Periférico.Foto Wilton Montenegro.

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na

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a essência das histórias. Trata-se deum cinema realista onde não se falada crise, mas sim das diversas formasde vida na região e do impacto dachegada da TV a cabo num territórioonde ainda nem todas as pessoas têmacesso aos serviços básicos de luz,água corrente, gás, etc.O road movie também pode ser con-siderado um processo subjetivo defuga para alcançar a liberdade, percur-so que tem como particularidade anecessidade de diferenciação frente auma vida cotidiana que se apresentamonótona e previsível. A aventura e aprocura de novos horizontes se insta-lam como formas potentes de pensara existência, e é literalmente a idéia domovimento que leva o espectador apensar que tudo pode acontecer, emqualquer momento e lugar.

NeorealismoMuitos críticos chegaram até a falar deuma tendência neorealista na produ-ção cinematográfica argentina. Quebra-se assim o “olhar de fora” e destaforma, os novos diretores conse-guiram que o espectador pudessemergulhar em cada uma das cenas ehistórias apresentadas. As imagenspropostas são tão reais quanto os diál-ogos dos personagens que, além domais, demonstram ter uma dificul-dade constante para se comunicar epara encarar projetos de vida, con-siderando o contexto de crise no qualestão inseridos. Também, o uso “abu-sivo” do preto e branco e as cenas fil-madas (quase exclusivamente) emcenários naturais contribuíram parainstalar uma estética documentarista,que reforçaria a idéia da tendêncianeorealista no cinema argentino.Contudo, essa nova narrativa emer-gente não adotou formas sofisticadas,mas, ao contrário, derivou na apresen-tação de narrações íntimas e dos pro-blemas cotidianos em que se resgata avida das pessoas comuns: um bandode adolescentes marginais vivendo

Saberes y DemocraciaMarco Bascetta Tradução Gerardo Silva

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A realidade da imagem argentinaCinema argentino

se renova ao discutir

os dramas vividos

pela população após

as crises econômicas

e os levantes políticos

As novas formas de protesto e deresistência que emergiram recente-mente na Argentina não se inscrevemexclusivamente ao âmbito político-social. Algumas das expressões quesurgiram ao longo da década de 90saíram a campo não apenas para con-frontar, mas também para contribuircom perspectivas e ações culturais decaráter inovador, que trouxeram novasformas de olhar a realidade social dopaís.Neste cenário, não é casualidade queo cinema argentino esteja atravessan-do um momento de significativa efer-vescência criativa. A chegada de jovens

Graciela Hopstein

cineastas com idéias inovadoras, apropagação de diversas escolas decinema e o novo contexto político,econômico e social parecem estardesenhando (construindo e instalan-do) um novo olhar da realidadeargentina. Porém, o termo “NovoCinema Argentino” ainda apresentaalgumas arestas difusas. Muitos críti-cos até resistem a utilizar a expressão,já que as diversas produções não têmaparentemente vinculação entre si,embora de fato apresentem algunselementos comuns. A presença defini-tiva de diversas problemáticas da vidaurbana, bem como a incorporação defiguras e de falas oriundas do deno-minado “mundo popular”, contri-buíram para dar um outro tom, e umavirada radical na produção cine-matográfica no país.

Novos e velhos problemasCertamente, filmes tais como “Pizza,Birra y Faso” (Stagnaro y Caetano,1997); “Mundo Grúa” (Trapero, 1999);“El Bonaerense” (Trapero, 2000);“Bolivia” (Caetano, 2001), “HistoriasMínimas” (Sorín, 2002); Tan de Re-pente (Lerman; 2002), dentre outros,trouxeram perspectivas inovadoraspara apresentar novas (e velhas) pro-blemáticas sociais vinculadas à situa-ção de risco em que se encontram asnovas gerações de jovens, à crise doemprego, às reações xenófobas – quesurgem tanto frente ao migrante dointerior quanto do exterior (principal-mente dos países limítrofes), como éno caso do filme Bolivia – e às múlti-plas respostas que as diversas situa-ções de violência e “exclusão” geramnos sujeitos envolvidos.A viagem também constitui um tópicorecorrente na produção cinematográfi-ca dos últimos tempos. No caso de“Historias Mínimas”, o filme apresen-ta uma Patagônia de paisagens desér-ticas e contrastantes sob as perspecti-vas dos seus habitantes, cuja inte-ração com os atores tende a modificar

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sua rotina de delito e violência (“Pizza,Birra y Faso”); um homem gordo,morador do subúrbio de BuenosAires, que faz do seu trabalho comooperador de guindastes seu mundo,inclusive procurando novos “mun-dos” na sua viagem pelo sul do país(“Mundo Grúa”); um homem que viveno pacato interior da Província deBuenos Aires que está envolvido numconfuso incidente, acaba trabalhandopara a Polícia Bonaerense, entrandosem muita convicção e envolvimentoem esquemas de corrupção que seapresentam como as únicas estraté-gias para sobreviver na corporaçãopolicial (El Bonaerense).Também os recursos que o Estadovinha destinando ao cinema foram, a

partir do ano 2000, cortados de formadrástica – em um percentual de 50% –situação que não apenas gerou umavisível crise na produção cinematográ-fica, mas também estimulou aemergência de novas iniciativas debaixo custo e grande potência criativa.O surgimento do chamado “cinemaindependente” apoiado por concursose financiamentos nacionais e interna-cionais – promovidos pelo INCAA, oInstituto Goethe, a Fundación Univer-sidad del Cine, o Sundance Festival, epor fundações holandesas e francesas– foi fundamental para impulsionareste novo movimento cultural queatraiu não apenas espectadores, mastambém um importante reconheci-mento internacional. Em alguns casos,

os diretores atuaram como produtorese distribuidores; em outros, os atores“sacrificaram” seus cachês paragarantir a finalização dos filmes.Desta forma, podemos afirmar tam-bém que o movimento vinculado ao“Novo Cinema Argentino” está geran-do uma autêntica “revolução”, nãoapenas por ter conseguido desestrutu-rar as “velhas” narrativas, mas tam-bém por ter instalado formas de ex-pressão debochadas e olhares novos,colocando os sujeitos (e as suas sub-jetividades) no centro das histórias.

O vampiro de Timbuca. Técnica mista, 2003.

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Inquietação e

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Écio de Salles

Veja, olhe outra vez

o rosto na multidão

A multidão, ela é um monstro

Eu sei: rosto e coração.

Racionais MCs, Negro drama

Movida a ódio de Cristina Pape

Foto Wilton Montenegro

mundo globalizado: o fato de o capital– e portanto as elites – ser móvel, rápi-do, ele pode cruzar os oceanos navelocidade de um míssil; enquanto aorestante da população restaria a imobi-lidade, o apego compulsório ao local:os pobres estão presos ao seu lugarde origem.No entanto, as experiências artísticasque têm surgido, ou se consolidadona última década em localidades estig-matizadas ao extremo – como os su-búrbios ou as favelas –, e a partir dossetores populares, têm demonstrado aviabilidade de formas radicais deresistência. Elas têm demonstrado tam-bém uma virtude fundamental: a inquie-tação. É a partir do sentimento de quealgo não funciona bem na engre-nagem social que elas recusam a qui-etude, a acomodação.Há muitos exemplos de experiênciasdesse tipo. O Hip-Hop é uma das maisinteressantes, até devido à sua diversi-dade interna, que autoriza tanto o dis-curso de MV Bill no número anteriordesta revista, quanto à apologia àsdrogas, à violência e ao sexismo maisbanal, como é o caso de astros inter-nacionais como Snoop Doggy e JahRule, que no início de janeiro desteano fizeram show no Brasil. Até porisso, me interessa neste momento orap “Negro drama”, dos RacionaisMCs. Ele já inicia afirmando dicoto-mias que tornam dramática a expe-riência de mobilidade (social que seja)vivida pelo rapper: “Negro drama/ entreo sucesso e a lama/ dinheiro, proble-mas, inveja, luxo, fama”, e mais àfrente: “Negro drama/ cabelo crespo ea pele escura/ a ferida, a chaga, aprocura da cura”.O negro drama é o “drama da cadeiae favela/ túmulo, sangue, sirene,choros e vela”. Como se vê, não éuma visão muito pacífica da realidade.Nem poderia, uma vez que o discurso

Houve um tempo em que canções deTim Maia embalavam nossos bailes;uma das melhores dizia no refrão: “oque eu quero é sossego”. Hoje, ouvi-mos tiros na noite e sabemos que acidade está em guerra. Dormimos aosom de rajadas de metralhadoras efuzis. Acordamos diariamente com acontagem dos corpos nos jornais todamanhã. Daí, argumenta-se em favorde medidas duras, fala-se em pena demorte, defende-se a redução da maio-ridade penal. Onde quer que o medose instale, logo o ódio aparece, para dis-farçá-lo. Por outro lado, nesta geração,as canções que nos embalam arma-ram nossas almas, e elas miram justa-mente “a cara do sossego”.Este é o momento em que vivemos, ese o entendo (ainda que pouco),percebo que ele abriu espaço parauma ação inquieta, contínua, que lhepossa fazer frente. Não se trata deuma obrigação moral, mas de umadecisão política. Parte da música quese faz agora é indicativa desse proces-so: “Não há guerra alguma/ apesar detodo esse barulho infernal/ é só o ca-pital cruzando o mar/ hoje ele voamais rápido que qualquer míssil”.Esses versos da canção “Caiu a ficha”,faixa do último CD do Mundo Livre,apontam uma questão interessante do

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fúria

vídeo-cassete, uns carro louco/ Atra-sado eu tô um pouco sim”. Por outrolado, afirma: “seu jogo é sujo/ e eunão me encaixo”, para afirmar no fima sua grandeza: “Eu vim da selva/ souleão/ sou demais pro seu quintal”. OsRacionais vieram da “selva”, agoraestão em outro lugar e, embora tam-bém se apeguem firmemente à suaorigem (“o dinheiro tira um homemda miséria/ mas não pode arrancar dedentro dele a favela”), sabem que naverdade estão em todo lugar, mesmoque não saibam fazer internet, atravésdela e de outros meios, habitam umespaço muito maior. “Inacreditável,mas seu filho me imita/ no meio devocês ele é o mais esperto”, cantaMano Brown, “entrei pelo seu rádio/tomei/ você nem viu”. O que indicatambém uma mudança siginificativana postura do grupo dos discos ante-

dos Racionais não representa apenasa inquietação de jovens negros,moradores de favelas. Ele é direto econtundente, a “fúria negra queressucita outra vez”, como dizem emoutra canção. Mas essa fúria não écega, não é simplesmente manifes-tação de um ódio irracional. É antesuma máquina que deseja subverter arealidade que parecia congelada,impossível de ser modificada.Os Racionais pensam diferente. EdyRock, que no disco canta a primeiraparte da música (dividindo-a comMano Brown, que canta a segunda),diz “Tim tim, um brinde pra mim/ souexemplo de vitórias/ trajetos e gló-rias”. Curiosa a associação dos termos“vitória” e “glória” ao termo “trajeto”.Essa idéia – de caminho, estrada,nomes que expressam movimentoenfim – é muito presente na músicados Racionais e aparece mais de umavez apenas nesta composição.Em sua parte, Mano Brown, dirigindo-se aos poderosos, admite: “Seus carroé bonito/ e eu não sei fazer Internet,

riores pra cá. Os Racionais agora sabemque não participam da vida apenasdos 50 mil manos de que falam em“Sobrevivendo no inferno”. O arre-mate da estrofe é revelador: “Seu filhoquer ser preto/ Ah! Que ironia”.Em contrapartida ao imobilismo, osRacionais põem em cena um ativismonômade, que migra não só através doespaço, mas através das diferentesmídias, das consciências de incon-táveis pessoas. Mano Brown sabe quenada é fácil, que é aquele “que nãopode errar/ aquele que você odeia”.Mas percebe também que o rap – masnão só o rap – encontrou um outrocaminho, através da inquietação e dafúria, e que é nesse caminho que secriam as bifurcações para outros sen-timentos e outras ações. No final,Brown pode dizer: “E de onde vem osdiamantes? Da lama!”

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Psicodrama da Cidadesurge como um modoacolhedor de fazerpolítica, no qual épossível se relacionardiretamente comas pessoas

Marisa Nogueira Greeb

Finalmente vivemos num regimedemocrático depois de tantos corposcaídos – seja pelas perseguições, tor-turas ou fome – mas ainda não con-quistamos uma democracia na qualcada cidadão tenha condição de seresponsabilizar pela produção coletivados desígnios das nações. Penso queisto talvez se deva à política de mas-sas, através do sistema de represen-tação que empreendemos.Recuperei uma reflexão que tinha rea-lizado anos atrás, quando lia Freud notexto Psicologia das Massas. O autortrabalha a questão da situação trans-ferencial que ocorre na relação damassa com o líder. Transfere-se para olíder o ego ideal ou o ideal de ego. Enão só isto: as massas delegam aolíder a realização de seus desejos e,conseqüentemente, a responsabili-dade das ações e realizações que pro-duzirão as condições do viver. Amassa é o um. Não há a mínimacondição de conflito, de diferentesposicionamentos e de criação. A dele-gação se faz de tal modo que entre-gam a própria cidadania ao modelo darepresentação. Isso se percebe comclareza quando encontramos as pes-soas alienadas e des–animadas isto é,sem anima, sem alma cidadã! Muitasvezes, sentindo-se traídas e ressentidas.

Criação do grupoDispor de um método que facilite acompreensão do drama que se vive,das forças que constroem as articu-lações existentes na vida da cidade,poder ressignificá-las para conquistaruma cidadania plena, torna-nos res-ponsáveis e comprometidos a usar emultiplicar esse método com esta sua

significância. Por isto e para isto foicriado o Psicodrama da Cidade.O Psicodrama da Cidade foi reinventa-do, na sua versão latino-americana, em12 de outubro de 2002, como “Esce-nas de los pueblos”. Que cenas estãosendo vividas pelos pueblos, quearticulações objetivas existentes navida das cidades e quais são, de fato,as articulações subjetivas que geramessas concepções e articulações, quenegam aos pueblos a vida digna ejusta do e no exercício da liberdade?A noção de protagonismo e a com-preensão histórica de que todo dramaé contextualizado, oferece a possibili-dade de perceber que toda ação estáprenhe de conteúdo coletivo, e deidentificar qual desses conteúdos estáse desdobrando naquele momento.Essa leitura permite compreender oquanto somos produzidos pelo coleti-vo e, ao mesmo tempo, mostra-nos oquanto também produzimos essecoletivo. Não há um descolamentoentre indivíduo e sociedade, mas simuma construção dialética da dinâmicade um mesmo complexo indivíduo–coletivo, singularidade–pluralidade,na produção da vida.O “insight terapêutico” na cena psico-dramática se dá pela visualização dopróprio paciente. Moreno diz: “Quandovocê pode ver a si mesmo, um palcose faz aos seus pés, e você recupera oriso”. Espelho. Esta é uma compreensãode que, se você pode se ver numacena, um outro em você existe fora dacena, e é este outro que pode lhe tirarda cena não desejada. Uma compreen-são que produz alívio, ao mostrar quenão é a totalidade que está aprisiona-da, mas um modo de ser que estágerando aquele sofrimento e aquelelugar na dinâmica das relações sociais,no contexto em que se vive. É umacompreensão do homem como umser múltiplo e em conflito entre várioscampos de forças, entre o pensamen-to mítico e o reflexivo. Este é o drama.Neste momento, importa denunciar asociometria do protagonista e/ou dogrupo protagônico, e/ou do tema pro-tagônico, para que as relações pos-sam ser reconstruídas na direção deconexões desejantes. Facilitar a liber-tação das capturas que impedem rela-

cionamentos saudáveis, ações dese-jantes, éticas, cidadãs, criando ascondições de superação da clandes-tinidade das falas, expressões e rela-cionamentos saudáveis, é a nossafunção. Seria a nova revolução socio-métrica, como profetizou Moreno?

Política femininaNa época do Psicodrama da Cidade,realizado em São Paulo em 21 demarço de 2001, recebi surpresa umtelefonema da Bélgica de uma jorna-lista muito interessada, que me per-guntava: – Isto é um novo modo defazer política? Respondi, rapidamente,que sim. Ainda não tinha, de fato, pen-sado de maneira organizada no assun-to, mas no momento me pareceuóbvio. Ela continuou: – Este é ummodo da mulher fazer política?Imagino que tenha sido uma propostavinda de uma mulher, Marta Prefeita,no caso do Psicodrama da Cidade.Respondi que não, mas que, sem dúvi-da tratava-se de ummodo feminino defazer política. Um modo acolhedor,que permite se relacionar diretamentecom pessoas de diferentes grupos e,fundamentalmente, de ouvi-las.Mas queisto pode ser realizado por homens epor mulheres... É uma outra atitudepolítica que, à medida que se tornaum movimento, transforma-se em umoutro modo se fazer política sim!Grupo é o lugar do conflito e, nessesentido, é o lugar onde as pessoaspodem se posicionar, discutir, criarnovas soluções, criar redes de susten-tação e, portando, exercitar a cidada-nia assumindo sua responsabilidadefrente ao coletivo que está sendo pro-duzido. Grupo é o lugar onde a trans-ferência é trabalhada e ressignificada,o que permite que as pessoas seresponsabilizem pela produção desuas relações e ações. Esta seria apolítica de grupo.Esta é uma das possibilidades que ométodo, mais corretamente chamadode sociopsicodrama, pode oferecer àvida nas e das cidades. E não só nascidades, mas também na área rural. Játive a oportunidade de psicodramati-zar com os “sem-terra” e foi admirávelcomo esse é um método próprio paraa compreensão de pessoas afastadas

Nasce uma política de

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da cultura “psi”. É uma linguagem deação, vivencial. No caso, estamos fo-cando a cidade por ser ela o lugar de en-contro das diferenças e também porquenela se apresentam todas as riquezasconstruídas pelas civilizações, rique-zas que todo ser humano tem direito ausufruir. A cidade protagoniza a inten-sidade das contradições sociais.

O simultâneoOutra novidade que favoreceu aampliação da rede dos psicodramatis-tas implicados com a questão socialfoi a simultaneidade dos eventos. Istotambém foi inédito no movimento, eincrivelmente atual pelo desejo damundialização dos “sem-fronteiras”.A simultaneidade também despertouem nós a alegria de nos sentirmosacompanhados e numa rede em ação,ao mesmo tempo e em vários lugares,desvendando a força da ação coletivapara a vitalização da própria rede. Enão só. A descoberta de um desejo jápresente, mas muitas vezes oculto, naprópria escolha do método para a vidaprofissional. O que não quer dizer quenão existam interesses de mercado oumesmo pouco rigor profissional dosque escolhem um método "mais fácil"e que, por ser vivencial, não exigetanto empenho nos estudos e refle-xões. Isto ocorre com todos os méto-dos e profissões e não podemos nosiludir a respeito de nossa imunidadeem relação ao sistema capitalista, quetenta transformar tudo e todos emmercadoria.Estou convencida que, para transfor-mar fundamentalmente o atual regimede competência internacional em umsistema de cooperaçãomundial, muitaspolíticas simultâneas precisarão ocor-rer. Penso ainda que os psicodramatis-tas implicados com a questão social –os socionomistas – estão sintonizadoscom o movimento das multidões queexigem a libertação da vida doscidadãos do mundo.

A governadora Benedita da Silvaacena na partida do dirigível OlhoGrande – Extra, Sexta-feira, 6 desetembro de 2002 de AlexandreVogler.

grupos

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Sender: GilmarDate: Friday, August 15, 2003 10:15 AMSubject: PIRATARIA

Caros Editores,eis a minha contribuição para o próximo número 2 da GLOB(AL). Um grande abraço e parabéns pela iniciativa!Gilmar

PIRATARIANos dêem uma boa razão não comprar produtos piratas. São de qualidade inferior? Dane-se. Se não funcionarem a gentecompra outros, vale a pena. Um cd pirata custa cinco vezes menos que um cd normal! Compre disco pirata sem nenhumpeso na consciência, a pirataria tem um enorme valor social. É distribuição de renda pura. Em vez do champanhe francês dodono da gravadora, o dinheiro vai pra cervejinha do camelô e ainda evita dele tomar uma cachaça vagabunda. Os artistasnão ganham nada? Ótimo, além da grana permanecer no nosso bolso, é muito bom pra nossa saúde que cantores e com-positores ganhem menos dinheiro. Assim seremos poupados de ver mais uma plástica craquenta na cara desenganada daZilú (mulher do Zezé di Camargo), acompanharemos o Belo comprar um canivete suíço no lugar de uma submetralhadorafashion direto das passarelas de Beirute e o nossos olhos não assistirão o interminável desfile dos filhos do Netinho: commenos plata, o negão terá que se controlar. Por aí vai uma lista infinita... o Bono Vox pagará menos micos em encontros decúpula e... sonho supremo (!), os Backstreetboys se apresentarão num clubinho da Pavuna ou de Itaquera. E mais uma cois-inha sobre a pirataria... Em que cabeças passa a rídícula idéia de gastar uma grana ferrada em softwares originais? Praenriquecer a cara de bolacha do Bill Gates? Ninguém de bom senso pode fazer isso em vez de aparelhar sua pequena empre-sa ou seu computador caseiro com os lindos softwares pirateados. Não é verdade? Vamos ser honestos, vamos ser ladrõese piratas!

Sender: Coordenação Editorial GLOB(AL)Date: Thursday, August 28, 2003 12:45 PMSubject: RE: PIRATARIA

Caro Gilmar,na reunião da Coordenação Editorial de ontem foi intensamente debatida a tua proposta para a GLOB(AL) número 2. Emtermos gerais, a maioria concorda com o encaminhamento que você da ao assunto. O problema, na verdade, foi comrelação ao tom “politically incorrect” que você escolheu para manifestar sua convicção. Em particular, não fica muito claropara nós: 1) porque debochar da mulher de Zezé di Camargo, 2) se foi provado que o Belo comprou uma submetralhado-ra, 3) se o uso da expressão ‘negão’ não é um pouco ambígua.Gostariamos de saber o que você acha destas observações,e se pode encontrar alguma forma alternativa para a reelaboração das mesmas. Gratos, Coordenação Editorial GLOB(AL).

Sender: GilmarDate: Tuesday, September 02, 2003 11:30 AMSubject: RE: RE: PIRATARIA

Caros Editores da GLOB(AL),Estou enviando a resposta a respeito do pedido de modificações no meu artigo sobre pirataria.Das mudanças que foram sugeridas eu concordo apenas em suprimir a palavra "negão", porque retirá-la não muda emnada o sentido do texto. Eu não concordo que haja algo de ofensivo no uso desse termo, pelo contrário, no texto ele éusado como um tratamento carinhoso. Se eu achasse que o Netinho é um filho da puta, eu apenas citaria o nome dele,como não é o caso, carinhosamente o tratei como "negão". Mas como não é essa a opinião do conselho editorial sobre onegão, digo sobre a palavra negão, a mudança não me custará a perda de alguma idéia importante. Quantos as outrasmudanças, inclusive a minha cara "submetralhadora fashion direto das passarelas de Beirute", eu não estou disposto amudar, não. Se as frases que dão o tom agressivo e ao mesmo tempo bem-humorado do texto (que é tom que eu desejo,me diga se eu acertei) são justamente as frases recusadas, acho que há uma incompatibilidade entre as minhas posiçõese as da GLOB(AL). De nada adianta eu trocar essas frases por outras igualmente no mesmo tom, acho que vocês nãoaceitariam. Eu não entendo o motivo de não se poder falar das plásticas da Zilu, por exemplo. Claro que a questão não é apessoa dela em si, mas da indústria fonográfica que enriquece alguns, nega oportunidades para tantos e ficam nosempurrando um monte de porcarias que saturam as rádios e a mídia toda em geral (todos os canais de TV, Revista CarasDesenganadas, etc). Eu não quero escrever um artigo falando objetivamente, falando num tom político sobre isso, porquenão é a minha especialidade, seria pretencioso querer me meter de uma forma séria na discussão. Minha área é a crônica,a impressão pessoal e subjetiva, se possível debochada. Queria dizer que não estou me recusando a mudar por vaidadeautoral. De jeito nenhum. Mudaria com toda boa vontade, mas não posso mudar ao ponto de acabar com a essência, agraça e o espírito do texto. Um abraço, Gilmar.

PiratariaGilmar Rodrigues

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