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Revista Global Brasil 12

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Editorial 1 GLOBAL

Vocês que vivem segurosem suas cálidas casas,vocês que, voltando à noite,encontram comida quente e rostos amigos,

Pensem bem se isto é um homemque trabalha no meio do barro,que não conhece paz,que luta por um pedaço de pão,que morre por um sim ou por um não.Pensem bem se isto é uma mulher,sem cabelos e sem nome,sem mais força para lembrar,vazios os olhos, frio o ventre,como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:e lhes mando essas palavras.Gravem-na em seus corações,estando em casa, andando na rua,ao deitar, ao levantarrepitam-nas a seus filhos.

Ou senão, desmorone-se a sua casa,a doença os torne inválidos,os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

Primo Levi, É isto um homem?

Editorial

A vergonha de ser um homem:o ‘campo’ do Morro do Bumba

A centralidade paradoxal da vida dos pobres nas metrópolesbrasileiras: Biopoder versus Biopolítica

Como tudo no capitalismo, a favelização foi e é um processocontraditório. A chegada dos pobres nas cidades tem (pelomenos) dois grandes determinantes:

- o primeiro determinante é a persistência do latifúndio (inclu-sive graças à ditadura que reprimiu os movimentos campone-ses e continua encontrando amplo apoio naquela mídia que lhedeve concessões estatais e proteção econômica), que expulsoua população rural do campo (do mesmo jeito que a abolição tar-dia da escravidão acabou empurrando os escravos libertos paraa formação das primeiras favelas);

- o segundo determinante é o movimento de resistência queatravessou o país com o êxodo rural rumo a melhorescondições de vida e trabalho, dentro do processo de urbaniza-ção e para além de sua capacidade de absorção industrial (damesma forma que os quilombos, as favelas foram tambémzonas de autoconstrução de espaços urbanos de resistência,persistência dos pobres a viver, desejar, dançar, criar).

Assim, a fuga dos retirantes, a exemplo do Presidente Lula (omais popular que o Brasil já teve e que proporciona ao paísuma popularidade mundial sem precedentes) foi um movimen-to paradoxal: fruto de relações de poder iníquas (desiguais,racistas e neo-escravagistas) e, ao mesmo tempo, terreno deresistência, luta e invenção. As favelas (e as várias formas deocupação ilegal, informal, desordenada do solo urbano – ou emvia de urbanização) que constituíram nossas “pobres grandescidades” são também o emblema dessa ambiguidade.

As favelas são, ao mesmo tempo, a vergonha de um poder quetrata os pobres como lixo e o orgulho da resistência dos pobresque constituem tudo que é riqueza e valor do Rio de Janeiro e doBrasil. Elas são um estorvo que a elite neo-escravagista continuaa sonhar em poder remover para a periferia, em tornar invisível.Mas, elas são também o espaço da dignidade das velhas e novasguardas de pobres que lutam e inventam, resistem e criam.

Em cidades como o Rio de Janeiro, mais do que em outras, asrelações de poder e de produção atravessam e são atraves-sadas pelos embates que dizem respeito às favelas e aospobres. O grande desafio do bloco de poder – uma mistura suigeneris de elites arcaizantes bem representadas pelos grandesmeios de comunicação, segmentos institucionais de tipo mafioso(ligados à corrupção e ao tráfico) e setores tecnocráticos (dasgrandes empresas e do aparelho do Estado) – tornou-se o deregular as vidas dos pobres por meio do controle do processoe do fenômeno de favelização. Por isso, esse bloco de poder seapresenta como um bloco de Biopoder, um poder organizadosobre a vida dos pobres. O grande desafio das lutas popularestambém passou a ser, com a abertura democrática, a organiza-ção dos pobres e a construção de uma forma de representaçãoadequada a essa subjetividade social, uma subjetividade que seexpressa e se constitui nas formas de resistência e construçãoda cidade pelos e para os pobres: nas favelas e nas várias formasde “informalidade”, quer dizer, nas formas de direito constituídasdesde baixo, nas ruas, nas redes de socialização dos pobres,completamente separadas do formalismo jurídico do Estado.

A clivagem social e ética parece nítida: o poder, de um lado; ospobres do outro. Porém, uma vez traduzida em termos políti-cos, essa clivagem não se mantem mais. Os setores “progres-

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sistas” (modernizadores, poderíamos dizer) dos dois blocos (o da “direita” e o da “esquerda”) convergem numa visão nega-tiva da pobreza e dos pobres; uma convergência que se traduz, por exemplo, no uso e no abuso – sempre pejorativo – dotermo “populismo”. Os pobres são um problema, e se não aceitam as “soluções” tecnocráticas e burocráticas que os “gover-nantes” pensam para eles, é que merecem mesmo a miséria na qual se encontram, e até o risco que correm por persistir emmorar nos morros. Ou seja, são vidas que não merecem serem vividas! Emblemática a análise de André Singer (militante doPT) sobre o que ele chama de “lulismo”: um tipo de “bonapartismo” sustentado pela “base sub-proletária” que “não con-segue construir desde baixo as suas próprias formas de organização”1.

No Rio de Janeiro, essa “direita” e essa “esquerda” constituíam (e, em parte ainda constituem) as duas faces de uma mesmamoeda: a classe média e alta carioca, os ricos, e boa parte do funcionalismo público. Não por acaso, essa convergência acon-teceu de fato em 1994, por ocasião de uma “com-juntura” (junção de duas “urgências” = conjuntura) favorável a essainflexão: por um lado, a necessidade – da parte do poder – de evitar por todos os meios que a experiência operária do PTpaulista se radicasse no Rio a partir da vitória eleitoral de uma mulher, negra e favelada (a Benedita), implementando um PTrealmente carioca (um PT dos pobres); pelo outro, a opção pelo oportunismo de um político egresso do brizolismo.

Em abril de 1995, César Maia, recém eleito Prefeito do Rio, publica um artigo-programa que nos indica a operação sobre aqual ele governará a cidade ao longo de praticamente dezesseis anos, “Os Dois Rios”2. O raciocínio é simples, até simplório:trata-se de afirmar que a clivagem política fundamental não é mais aquela que opõe a esquerda (os pobres) à direita (os ricose as elites), mas aquela que separa o “Rio Legal” do “Rio Ilegal”. Nesse artigo, Maia usa os piores chavões do marxismo vul-gar para estigmatizar simultaneamente os pobres (o lumpesinato) e o assintencialismo (as “bicas d’água” nas favelas). Portrás desse novo tipo de mistificação esconde-se uma adequação ao projeto político de parte das elites cariocas, aquilo quechamamos o bloco do biopoder: no cerne dessa mudança estão os pobres enquanto tais.

GLOBAL 2 Editorial

PROJETOS [IN]PROVADOS

“Interessante falar de arquitetura e política urbana,social e econômica”, [...] “a todos conclamo pensarnessa questão que os poderes públicos e privados vêmtratando [...] como sempre, de forma displicente e deacordo com pequenos interesses”.

Essas foram as palavras de Jarbas Lopes ao propor aobra Barraco, uma casa de pau à pique, erguida emmutirão no Largo da Carioca, para a mostra Projetos[in] provados: coletiva acerca da relaçãoarte/arquitetura, idealizada por Sonia Salcedo delCastillo - que também assinou a curadoria. Com doiseixos de montagem, a cidade (arquitetura social) e oespaço institucional (arquitetura da arte), a exposiçãoreuniu trabalhos in situ, criados por 12 artistas(Fernanda Junqueira, Guga Ferraz, Luiz Monken,Marcos Chaves, Neno del Castillo, Raul Mourão,Regina de Paula, Ricardo Becker, Ronald Duarte, SuelyFarhi, Zalinda Cartaxo), realizados no interior e nosarredores urbanos da CAIXA Cultural do Rio. Dentre asintervenções do módulo urbano, diz Salcedo, Barraco“investe no diálogo entre sociedade e urbe, medianteo monumental e o efêmero como metáfora dosdesejos humanos: tempo, prazer, progressoacesso/sustentável” [...].

Barraco, de Jarbas Lopes, 2010. Fotos de Beto Felício.

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Editorial 3 GLOBAL

Não mais os pobres submetidos à cruel alternativa entreexclusão neo-escravagista ou transformação em massa emtrabalhadores – do setor de serviços ou industriais –, mas ospobres enquanto tais, enquanto pobres! Por um lado, passa-se a querer “incluí-los” (vide o programa Favela-Bairro,lançado durante o primeiro governo César Maia, além da pri-vatização de serviços públicos essenciais como a dis-tribuição de eletricidade, telefonia, e educação); por outrolado, assume-se que o conflito de hoje é mesmo aquele queopõe as elites (o bloco do biopoder) aos pobres (a sua potên-cia biopolítica). Na medida em que a elite descobre essanova linha de enfrentamento, ela trata de inovar e, sobretu-do, de mistificar seus termos. Ela encontra aliados no regimediscursivo oriundo de duas linhas de produção acadêmica:aquela da antropologia e a da teoria política da violência. Osantropólogos passam – paradoxalmente – a se transformarem darwinistas sociais, ao passo que os cientistas políticosantropologizam os mitos fundadores da teoria do contrato.Todos convergindo numa única afirmação: por causa daausência do Estado, a condição dos pobres é a do estado denatureza, quer dizer, da guerra dos pobres contra os pobres,ou o “todos contra todos” de Hobbes! O romance etno-gráfico de Paulo Lins (A Cidade de Deus) será o produtodesse sistemático trabalho de esvaziamento de qualquerperspectiva ética da vida e da luta dos pobres. Como mostrouPrimo Levi, o mecanismo de redução dos internados noscampos nazistas à condição de escravos é aquele que faz comque as vitimas acabem sentido vergonha delas mesmas.3

Essa inflexão é tão poderosa que, por um lado, mantém den-tro dela toda uma série de ambiguidades e indefinições; e,pelo outro, tem como resultado certeiro o desaparecimentode fato da esquerda institucional carioca: o PT do Rio passaser, definitivamente, uma moeda de troca (um troco barato)no jogo político nacional (ao passo que os outros partidosmais ou menos situados num imaginário de esquerda con-tinuam em irreversível declínio, como é o caso do brizolis-mo, ou na mais total incapacidade de lidar um processomajoritário).4

O fato é que, nessa política dos “dois Rios”, houve umamudança paradoxal. Os pobres foram encarados como novoe fundamental sujeito, mas as políticas que os visavam con-tinuam sendo contraditórias e hibridizadas, até tornarem-sequase esquizofrênicas: a repressão dos pobres (os informais)se articula assim à urbanização da algumas pequenas e sim-bólicas favelas (o Favela-Bairro).

A inflexão da virada da década: a gestão biopolítica do risco

O que está acontecendo, desde a saída de César Maia navirada da década, é mais uma inflexão dentro da mesmahegemonia. Mas, com Eduardo Paes, há forças que queremresolver essa esquizofrenia e, em função do Mundial deFutebol, das Olimpíadas e da evolução do próprio projetodas elites cariocas, emerge uma visão mais nítida doenfrentamento de classe que é preciso travar para asseguraruma base política e metropolitana a um novo ciclo de acu-mulação capitalista: uma acumulação capitalista que encon-tra no Brasil dos últimos dez anos uma nova fronteira derentabilidade que os derivativos financeiros do norte nãoproporcionam mais.

A centralidade da noção de “risco”, por um lado, é domesmo tipo que aquela de noções com as de “cidade criati-va” (que está mais na “moda” depois da banalização dos

1 “Raízes sociais e ideológicas do Lulismo”, Novos Estudos,n. 85, nov. 2009, São Paulo, Cepbrap, p. 83-102.2 Jornal do Brasil, 28 de abril de 1995.3 Note-se que assim sai de cena a Cidade Partida (de ZuenirVentura) que inspirou um dos eixos de recuperaçãoconciliadora do movimento dos pobres, para legitimar umanova geração de filantropismo político (aquele das ONGs).4Toda tentativa de reanimar o cadáver, por meio de esdrúxu-las alianças na Zona Oeste (vide o caso do vereador Babu)ou de espúrias coalizões (com Garotinho), foi por águaabaixo. O PT carioca é hoje bem representado pelosecretário de habitação do Rio de Janeiro: um tosco executordo projeto de governo reacionário de Eduardo Paes.

temas da cidade “global” e dos “territórios produtivos”). Poroutro lado, o uso da noção de “risco” inflacionou-se demaneira vergonhosa por ocasião das chuvas de 5 e 6 de abrilde 2010 no Rio de Janeiro. Nesse momento, a gestão do risconão é uma questão geológica (ainda menos urbanística oufilantrópica), mas sim um eixo de organização do biopoder e,por isso, financeira: são as finanças que visam construir seuscenários biopolíticos de acumulação. Ao passo que o riscodas “tradicionais” bolsas de valores se tornou desmedido(com a crise do subprime), a procura por aplicações rentáveisvolta-se para os países emergentes e para cidades como oRio de Janeiro. O risco que se quer diminuir é o dos investi-mentos e esse risco é apresentado pela potência da vida dospobres, sobretudo quando eles vivem, trabalham e sedivertem em áreas que deveriam ser o teatro dessa valoriza-ção: os morros da Zona Sul e Santa Tereza, no Centro e azona do Porto “Maravilha”. A diminuição do “risco” dosinvestimentos (e não por acaso o Rio recebeu exatamente nomesmo período o “grau de investimento”) implica umadiminuição da potência e da autonomia da vida dos pobres e,de roldão, a expulsão deles para valorizar as vizinhanças. Asremoções são na realidade deportações!

A cidade não é mais enxergada apenas como uma máquinaurbana que deve saber atrair as firmas, que deve ser “global”para que nelas se localizem as grandes multinacionais e asclasses criativas do mais recente chavão sobre empregabili-dade e mercado. A cidade é, corretamente, apreendida comonovo espaço de valorização e investimento (por isso a exal-tação paradoxal dos temas do “risco”). Mas, essa inovaçãose faz do ponto de vista dos interesses do novo capitalismo,cognitivo, fundiário, financeiro: um capitalismo que se tornarentista, que visa capturar e controlar os fluxos da coope-ração social produtiva que desenham as redes metropoli-tanas. Assim, a cidade é agora enxergada como firma e,sobretudo, administrada como firma. A gestão Paes aparececlaramente nesses termos: ela põe em ato um certo ativismo,mas um ativismo dos ricos para expropriar os pobres, umaperspectiva profundamente reacionária. Para apreender essainflexão, seria preciso aprofundar a análise da dimensãomaterial dos paradoxos próprios das políticas públicas dosúltimos quinze anos no Rio de Janeiro.

A mobilização popular das favelas contra as remoções, poruma gestão democrática do risco e mais em geral da cidade,como se depreende nos manifestos e artigos que publicamosa seguir, mostra que os pobres fazem uma análise precisa doque está acontecendo (bem mais lúcida do que as análisesideológicas antiquadas realizadas por alguns intelectuais de“esquerda”) e estão decididos a reafirmar a potência de suasvidas!

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GLOBAL 4 Sumário

Barraco Jarbas Lopes (fotos: Beto Felício)

Choque de Monstro Davi MarcosGonçalves de Oliveira

Varal Lourival Cuquinha

Interferências urbanas Mariella Sola

24h senza di Noi Giuseppe Cassiba

Chuveiros Sonoros Romano

“Des-nacionais” Sindia M. dos Santos

Resistir para acreditar Beatriz Lemos

Estúdio Móvel Experimental Silvia Leal

Irmãos de Sangue Neiton Nunes das Neves Jr

Mãe Beata de Yemanjá Claudia Ferreira

Palimpsesto 2 Rodrigo F. de Cristo eAlessandra GiovanellaQue Daniel Retamoso, Elias Maroso,Gabriel Araújo e Alinne Zucolotto.

Sem título Márcia Baldissara

Arquivos de Emergência Cristina Ribas

Palimpsesto 3 Grupo Pele de Asno eElias Maroso

Sem título Anderson C. de Araujo

Habitação, memória e vivência Célula

Comitê EditorialAlexandre do NascimentoAlexandre MendesAndré BarrosBarbara SzanieckiCaio Márcio SilveiraFábio GoveiaFábio MaliniFrancisco GuimarãesGeo BrittoGerardo SilvaGiuseppe CoccoIvana BentesLeonora CorsiniMaria José BarbosaPedro Cláudio Cunca BocayuvaPedro MendesPeter Pál PelbartRodrigo GuéronRonald DuarteTatiana Roque

Conexões GlobaisAntonio Negri (Itália)Cesar Altamira (Argentina)EduFactory (Itália)Javier Toret (Espanha)Luca Casarini (Itália)Marco Bascetta (Itália)Michael Hardt (Estados Unidos)Nicolás Sguiglia (Espanha)Raul Sanchez (Espanha)

Conselho EditorialAdriano PilattiAlexandre VoglerAna Maria BonjourAntonio MartinsBruno CavaCaia FittipaldiCristina RibasEcio de SallesEricson PiresFabiane BorgesFernando SantoroHermano VianaJô GondarLeonardo PalmaLúcia Copetti DalmasoLuis AndradeLuiz Camillo OsórioMaria Elisa PimentelMauro Sá Rego CostaPatricia Fagundes DarosPaulo Henrique de AlmeidaPepe BertarelliRomanoSimone SampaioSuely Rolnik

Revisão dos Textos Leonora CorsiniTradução dos Textos LeonardoRetamoso Palma / Lúcia Copetti Damaso /Pedro Mendes

Produção / DesignDo Lar Design / Barbara Szaniecki

Pesquisa de ImagemRonald Duarte

CapaJarbas Lopes; Foto Beto Felício

Jornalista responsávelFábio Goveia

Participaram deste número / TextosAlexandre do NascimentoAssociação de Moradores de Vila AutódromoAtílio Alencar Moura CorreaBeatriz LemosCezar MigliorinCristina RibasConselho Popular do Rio de JaneiroMovimentos sociais unidos contra a remoçãoEzequiel de Oliveira ToméFabricio ToledoFórum dos Pontos de Cultura do RioFrancesco RaparelliJean TibleHertz LealLeonardo FolettoLeonardo PalmaMarina BuenoMoradores da RocinhaNúcleo de Terras e Habitaçãoda Defensoria Pública do Rio de JaneiroOlivier BoriusSandro MezzadraSindia Martins dos SantosSonia Salcedo del CastilloVanessa Santos do CantoWilton MontenegroXico Chaves

Participaram deste número / ImagensAlessandra GiovanellaAlinne ZucolottoAnderson Correa de AraújoBeatriz LemosBeto FelícioCélula/UfesClaudia FerreiraCristina RibasDaniel RetamosoDavi Marcos Gonçalves de OliveiraElias MarosoGabriel AraújoGiuseppe CassibaGrupo Pele de AsnoJarbas LopesLourival CuquinhaMárcia BaldissaraMariella SollaNeilton Nunes das Neves JuniorRomanoSilvia LealSindia Martins dos Santos

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A Vergonha de ser um homem: o “campo” do Morro do Bumba. Editorial

Trânsitos

Favela também é cidade Conselho Popular do Rio de Janeiro

e movimentos sociais unidos contra a remoção

Assembléia dos Prazeres Ezequiel de Oliveira Tomé

Pontos de solidariedade Fórum dos Pontos de Cultura do Estado do Rio de Janeiro

Carta aberta Moradores da Rocinha

“Olimpíadas para todos, sem remoção!” Associação de Moradores de Vila Autódromo

e Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

Choque de ordem nas praias do Rio de Janeiro Hertz Leal - Cooperativa Orla Legal

Conexões Globais

Somos todos clandestinos Francesco Raparelli

1o de março - um novo início Sandro Mezzadra

O Norte perdeu o Sul Olivier Borius

“Des-nacionais”: um pedaço do Congo no Brasil, um Brasil no Congo Sindia Martins dos Santos

Resistir para acreditar Beatriz Lemos

Universidade Nômade

As cotas para negros no ensino superior e o biopoder Vanessa Santos do Canto

O atual debate sobre a política de cotas para negros na universidade Alexandre do Nascimento

Bolsa Família é um Direito Humano Marina Bueno

Sobre o Terceiro Programa de Direitos Humanos Fabricio Toledo

Maquinações

Arte/Estado Xico Chaves

Da (Es)tética, do artista Wilton Montenegro

Arquivos de Emergência: atravessar a cidade e mediar a captura Cristina Ribas

E o encontro arrancou-nos dos sonhos impotentes Atílio Alencar Moura Correa, Leonardo Foletto

e Leonardo Palma

Audiovisual e trabalho imaterial: é preciso financiar vidas e não apenas filmes Cezar Migliorin

Lutas cosmopolíticas: Marx e os Yanomani Jean Tible

Sumário 5 GLOBAL

brasil

G L O BA LOs artigos assinados são de inteiraresponsabilidade de seus autores e

não refletem necessariamentea opinião da revista.

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GLOBAL Brasil é uma publicaçãoda Rede Universidade Nômade

www.revistaglobalbrasil.com.brwww.universidadenomade.org.br

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GLOBAL 6 trânsitos

Movimentos Sociais Unidos Contra a RemoçãoMNLM - Movimento Nacional de Luta pela Moradia DignaPastoral das Favelas

Movimento Nacional dos Sem TetoFrente Carioca das Vítimas das Chuvas

CONCA - Conselho de Cidadania do Alto da Boa VistaAssociação de Moradores da RocinhaAssociação de Moradores do LaboriauxAssociação de Moradores do HortoAssociação de Moradores dos Prazeres

Associação de Moradores do FogueteiroAssociação deMoradores do Escondidinho

Associação de Moradores do GuararapesAssociação de Moradores de Vila Autódromo

Associação de Moradores do Arroio PavunaAssociação de Moradores do Canal do Anil

Federação de Favelas de Jacarepaguá, Barra, Recreio e Adjacências

Choque de Monstro,de Davi Marcos Gonçalves de Oliveira<http://favelaemfoco.wordpress.com/>

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Trânsitos 7 GLOBAL

O Programa Morar Seguro, do Governo do Estado, e o decreto32081 da Prefeitura do Rio de Janeiro, ao invés de garantir odireito à cidade, é mais um instrumento nas ameaças de despejo.

REIVINDICAÇÕES:

1. Não às remoções!

2. Pelo cumprimento do Art. 429, da Lei Orgânica Municipal;Art. 234 da Constituição Estadual; Art. 6º da ConstituiçãoFederal; Art, XXV da Declaração dos Direitos do Homem; Art.11º do Pacto Internacional dos Direitos Sociais Econômicos eCulturais; Comentário Geral nº 04 do Comitê das Nações Unidasde Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Estatuto dasCidades.

3. Destinar maiores investimentos ao reaparelhamento da GEORIO e da Defesa Civil com a garantia de concurso público e parti-cipação da população na gestão desses órgãos.

4. Implementar a longo prazo um programa que contemple adrenagem, contenção de encostas e saneamento nas comu-nidades, bem como a correta manutenção das obras.

5. Participação ampla das comunidades no debate em busca dealternativas às remoções e nas respectivas decisões.

6. Apresentação de laudos técnicos detalhados da situaçãomediante visita às casas e áreas atingidas, com a participaçãoda comunidade e de entidades representativas na análise edefinição das soluções.

7. A Interdição das casas somente pode ser feitas medianteestudo técnico detalhado, e eventual demolição só pode serrealizada, salvo perigo iminente, após ter sido garantida umasolução habitacional definitiva aos moradores atingidos.

8. Priorizar o atendimento e o reassentamento das famíliasdesabrigadas e/ou em situação de risco iminente, remanejando-as na própria comunidade ou em áreas próximas, conformedetermina a Lei Orgânica Municipal.

9. Nas situações de emergência, garantir às famílias desabri-gadas um aluguel-social digno enquanto novas unidadeshabitacionais ou obras para redução do risco não forem cons-truídas.

10. Garantir uma indenização justa às famílias que perderamseus entes nos deslizamentos, independentemente da moradiaque possam receber.

11. Priorizar, para as áreas mapeadas como de alto risco apósestudos sérios e com participação popular, as soluções quenão impliquem o reassentamento de famílias (como obras decontenção, drenagem, dragagem, reflorestamento e delimitaçãode área ocupável).

12. Os estudos técnicos do Programa “Morar Seguro” devemser debatidos entre os profissionais e moradores, objetivandosoluções participativas com a reformulação da ComissãoGestora deste programa para garantir a participação popular.

Conselho Popular do Rio de Janeiro emovimentos sociais unidos contra a remoção.

Tendo em vista a tragédia ocorrida após as últimas chuvas queatingiram principalmente as favelas e as comunidades pobres,vimos manifestar ao Poder Público e à população da Cidade doRio de Janeiro o seguinte:

Os problemas e as tragédias que hoje afligem principalmenteos moradores de favelas não são frutos do acaso, mas da omis-são e descaso do Poder Público que há décadas não investe empolíticas públicas de habitação, na realização de obras deurbanização, infraestrutura, contenção de encostas, drenagem,reflorestamento, coleta de lixo e de regularização fundiária deinteresse social.

O histórico de abandono em que vivem os moradores dessascomunidades levou a mais uma tragédia anunciada. É comumo descaso e a negligência com as reivindicações que há décadassão feitas pelas comunidades exigindo obras de contenção deencostas e de infraestrutura que propiciem redução dos riscos,melhores condições e qualidade de vida.

Se já não bastasse a tragédia, sofremos com a falta de infor-mações precisas e de transparência em relação à situação dascomunidades e das ações emergenciais para o socorro das vítimas.E observamos a ausência de articulação imediata dos órgãospúblicos na assistência aos desabrigados.

Repudiamos a arbitrariedade na relação com os desabrigados queforam levados para locais sem condições adequadas e aliciadospara que assinassem laudos de interdição genéricos sem a devidavistoria local e com desrespeito aos critérios técnicos-legais.

Os megaeventos como a Copa de 2014, as Olimpíadas de 2016e os grandes projetos urbanísticos como a Cidade da Música, aTranscarioca e o Porto Maravilha, que geram imensos impactossociais e ambientais, seriam, numa cidade justa, executadosvisando o interesse coletivo e não apenas das elites e da espe-culação imobiliária. Como foram ou estão sendo executadas,beneficiam principalmente áreas da cidade de alta renda ouconcentração empresarial.

Os Poderes Judiciário e Legislativo não podem se associar aeste ataque que os governos promovem contra os moradoresmais pobres da cidade.

A grande mídia se mostra parcial ao veicular notícias pautadasapenas na versão apresentada pelo governo, ignorando oponto de vista das comunidades.

É inaceitável o retrocesso/desrespeito imposto pelo PoderPúblico, sobre os marcos legais relativos ao direito à moradiaadequada e à segurança da posse, (Constituição Federal,Constituição Estadual, Estatuto das Cidades, Lei do ProgramaMinha Casa Minha Vida), que estabelecem o direito à regulari-zação fundiária integral, capaz de garantir aos moradores o efe-tivo direito à cidade, com a permanência em suas comu-nidades, e com realização das intervenções necessárias paraprover toda a infraestrutura necessária e a redução dos riscos.

Defendemos uma reforma urbana que garanta o direito detodos à cidade contra as tentativas de segregação e limpezasocial que hoje estão explícitas nas ameaças de remoção feitaspelos governos municipal e estadual, que se assemelhamàquelas realizadas durante a ditadura militar que caracteri-zaram os governos de Carlos Lacerda e Negrão de Lima.

FAVELA TAMBéM é CIDADECARTA ABERTA DOS MORADORES DE FAVELAS AO PREFEITO (AOS GOVERNANTES) E À CIDADE DO RIO DE JANEIRO: NÃO À REMOÇÃO!

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ASSEMBLéIA DOS PRAZERESRReemmooççããoo:: ssuubbssttaanntt iivvoo ffeemmiinniinnoo.. AAttoo oouueeffeeiittoo ddee rreemmoovveerr.. ((mmiinnii AAuurréélliioo))

RReemmoovveerr:: VVeerrbboo tt rraannssiitt iivvoo ddiirreettoo..

11 .. MMoovveerr oouu rreett iirraarr ppaarraa oouutt rroolluuggaarr,, ddeessllooccaarr,, tt rraannssffeerriirr

22 .. PPoorr ddiissttaannttee;; aaffaassttaarr

33 .. FFaazzeerr ddeessaappaarreecceerr,, ddeessffaazzeennddoo,,ddeessmmaanncchhaannddoo,, eettcc..

Já estávamos sendo removidos siste -maticamente, desde que assumiram osSenhores: governador Sérgio Cabral eprefeito Eduardo Paes. Elitistas, dés-potas, que, ao se certificarem dosmega eventos como Olimpíadas, Para-olimpíadas e Copa, viram a possibili-dade do plano perfeito. Não é verdade,defensor ferrenho das remoções desdea Sub-Prefeitura da Barra, Sr. EduardoPaes?

As favelas, antes redutos eleitoreiros,serviram ao uso e podem ser descar-tadas. Agora somos marginais, inva-sores irracionais. Mal educados pelospais e não pelo sistema. Culpados pelolixo das encostas, insignificantes. Ondeestavam os planos brilhantes agoratirados da cartola? E a atual gestãoestadual e municipal? Não existíamosaté o fatídico dia 5?

Segundo representante da GEO-RIO,geólogo, homem de idoneidade técnicarespeitável, seriam plenamente habi -táveis as encostas, caso fôssemos ricos,capazes de bancar os custos com aregularização dos terrenos e a ordenaçãodos serviços básicos, como: coleta delixo e saneamento. Disse ainda que, aprefeitura, descapitalizada, não teminteresse mais em investir. Risco realgeológico ou risco socioeconômico?Plano habitacional consciente ou dema-gogia para lavagem de dinheiro emobras fraudulentas nas licitações desdeo início e que não incluem se quer osdeficientes fiscos ou prevêem as com-plementações possíveis aos futurosmoradores como: poços de elevadoresem conjuntos verticais com determi -nados números de andares; rampas deacesso e portas adaptadas; etc.

Essa mobilização não é outra coisasenão um manifesto público em buscade respostas às atitudes dos governosmunicipais e estaduais, em relação àscomunidades situadas em encostas,mais especificamente Favelas, ditasáreas de risco, claramente declinando ademocracia para uma nova velhapolítica de segregação e autoritarismo.Governando de uma forma para ricos ede outra para os pobres. Dois pesosduas medidas. Para os ricos dasencostas, contenções de encosta epresto restabelecimento dos serviços.Para os pobres imposições de decretose uso abusivo da força, respaldadosem leis que antes contemplavam asfavelas e que agora se interpretamde forma contrária. Relegar a nossadignidade e cidadania à remoções élamentável retrocesso.

Ezequiel de Oliveira Tomé

EEuu ssoouu ffaavveellaa ((BBeezzeerrrraa ddaa SSiillvvaa))

“(...) Minha gente é trabalhadeiraNunca teve assistência social

Ela só vive láPorque para o pobre, não tem outro jeito

Apenas só tem o direitoA um salário de fome e uma vida normal.

A favela é, um problema socialA favela é, um problema social“

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ASSEMBLéIA DOS PRAZERESA desgraça do Zé polvinho caiu comoluva. Álibi perfeito; só que ao custo devidas. E, se não somos mutaçõesserviçais, algum tipo de gado, vidashumanas.

Choraram lágrimas copiosas de croco-dilo pelos royalties do Pré-Sal sem,contudo, prestar sequer uma home -nagem às nossas vítimas de formaconvincente. Vitimas de um descasocontinuado e programático, como cortenos orçamentos de órgãos respon-sáveis pela prevenção aos riscos.Descasos de quem conhecia os riscos enão usou de meios cabíveis para saná-los ou diminuí-los, porém, cinicamentedeixou acontecer. Ganância de quem seentorpeceu pelos bilhões que serãolavados nas muitas fraudes que são deprática comum nesse país.

Em vez de se condoerem com osentes abatidos e desconsolados pelatragédia, tentaram a eutanásia dascomunidades a golpe de marretas ede Estado. Desrespeitando o momentode angústia dos moradores, seme -lhante a Nero, alimentaram mais aschamas com terrorismo psicológicosobre falsos dados de riscos genera -lizados e não pontuais.

Tudo isso sem dó e sem culpa. Dumaforma desordenada, desumana, semarticulação. Semeando o pão que calaa boca. Esmolando as comunidadecom fieis doações de pessoas sérias ecomovidas com o caos estabelecidotanto pelas famosas “chuvas de março”,

DDeessppeejjoo nnaa FFaavveellaa ((AAddoonniirraann BBaarrbboossaa))

“(...) Não tem nada não seu doutor vou sair daqui pra não ouvir o ronco do tratorPra mim não tem problema em qualquer canto

me arrumo de qualquer jeito me ajeito

Depois o que eu tenho é tão poucominha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás

Mas essa gente ai hein como é que faz????”

BBaarrrraaccããoo ((LLuuiizz AAnnttoonniioo ee OOllddeemmaarr MMaaggaallhhããeess))

“Ai, barracãoPendurado no morroe pedindo socorro

à cidade a seus pés”.

Varal, de Lourival Cuquinha, Morro Babilônia, Rio de Janeiro, 2006.

ainda mais impiedosas pelos agravosao clima global, quanto pelos gover-nos com suas atitudes desmedidas.Sinceramente... Vem ai o circo fute-bolístico da copa do mundo. Saciadose alegres certamente esquecerão detudo. Jamais! Diante de tamanha humi -lhação e rompimentos dos direitoshumanos e cívicos já conquistados,Circo e Pão serão extintos. Os culpadosserão revelados e justamente serão jul-gados e condenados. Deus é fiel!

Parabéns a Brasília por seu aniver-sário, lamentando profundamente amancha em seu vestido de festas,provocado pelo derramamento docálice da falta de pudor e corrupções.Lutaremos para que não sejas remo -vida de nossas memórias. Com honra,sairemos vencedores e seremos, defato, símbolos de democracia e modelopara o mundo.

Obrigado!

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GLOBAL 10 trânsitos

Pontos de solidariedadeCATÁSTROFES E DESCASO DO PODER PÚBLICO NA GESTÃO URBANA: ONDE ESTÁ O PROBLEMA?

Aos que tiveram a vida ceifada nas últimas semanas em função da catástrofe do início de abril, e as famílias queestão convivendo com esta tragédia, os nossos profundos sentimentos! O Fórum dos Pontos de Cultura do Estadodo Rio de Janeiro solidariza-se com todas e todos que moram em morros, encostas, beiras de valas, valoões, próxi-mos a rios, periferias e baixadas.

Setores elitistas da nossa sociedade sempre discriminaram e culparam os pobres por morarem em lugaresimpróprios como divulgado por representantes públicos nos meios de comunicação. A política pública sempre foi a de remoção!!!

“Se moramos onde moramos não é simplesmente porque queremos mas pelo que restou do que nos foi negado historicamente, pela ausência de políticas habitacionais, desde a abolicão da escravidão neste país.”

Não é opção. É falta de opção.

As Prefeituras e o Governo Estadual deveriam garantir prevenção básica nos morros, como poda de árvores, coleta seletiva de lixo, muros de cotenção de encostas, fechamento de valas entre outros cuidados tal como ocorre no “asfalto”. Além de planos de emergência de defesa civil para a população e a oferta de moradias dignas.O Governo Federal deve ter um planejamento urbano de médio e longo prazo dentre outras ações que poderiam evitar tanto sofrimento. A falta de políticas públicas contribuiu para um grande déficit habitacional no Brasil,segundo o movimento de luta por moradia. Há centenas de imóveis públicos fechados pelo Estado do Rio afora eque poderiam servir de moradia, assim como dezenas de fábricas que se encontram fechadas na Avenida Brasil e Via Dutra, por exemplo.

O Fórum dos Pontos de Cultura do Estado do Rio exige políticas públicas sociais na área da habitação e gestãourbana, que respeitem sobretudo os aspectos culturais locais, parte importante dos direitos básicos de todo cidadão.É importante frisar que fora da política não há solução. Somente através de uma ação política articulada e democrática com a participação dos moradores teremos alternativas para a questão.

Abaixo o crime do esquecimento e do descaso de tantas outras tragédias! Não às remoções unilaterais e autoritárias sem a participação das comunidades. Urbanização e serviços básicos da cidade nos morros já! Cumpra-se o estatuto das cidades!

Varal, de LLoouurriivvaall CCuuqquuiinnhhaa, Morro Babilônia, Rio de Janeiro, 2006.

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Trânsitos 11 GLOBAL

A proposta de regularização fundiáriaaceita pelo Ministério das Cidades e daJustiça e que vinha sendo adotada naRocinha, como laboratório de imple-mentação da nova lei, está sofrendofortes impactos por interesses de umaclasse média hipócrita e conser- vadora, que tem na sua retaguardagrupos de interesse na especulaçãoimobiliária e fortalecida por grupospolíticos conser vadores a serviço dospróprios interesses.

Classificamos como inadmissível aforma como o problema vem sendotratado pelas autoridades. A crimina -lização da população da favela. Comose não bastasse, as inúmeras famíliasdesabrigadas, sem ter para onde ir,estão ficando em abrigos provisórios,estão jogadas em lugares inapropriadospara dormir. Os moradores também,vem sendo tratados pela prefeitura doRio com desrespeito e arrogância pelasações da Defesa Civil.

Além de convocar a todos osmoradores do Laboriux para se“cadastrar” (mesmo as casas que nãoforam atingidas), sob a ameaça deforça, e de não receberem o aluguelsocial prometido de R$ 400 reais. Noentanto, ao procurar a RegiãoAdministrativa, os moradores ficamhoras e horas em filas sem receberatendimento. Deficientes, idosos, pes-soas com doenças crônicas ficam emuma única fila. Porém, a única coisaque as famílias recebem é um “Laudode Interdição” de suas residências.

Com os despejos dos moradores, oEstatuto da Cidade, sofrerá um granderetrocesso ao direito à moradia e àterra urbana pelos mais pobres,demonstrando dessa forma que nomunicípio do Rio de Janeiro, não háuma política pública consolidada.Justamente na cidade que é o segundolugar do país, com um drástico per-centual de 70% do quadro de irregula -ridade fundiária e urbana.

Nós Moradores da Rocinha vamosresistir à remoção forçada! Convo ca -

remos o Núcleo de Terras e Habitaçãoda Defensoria Pública e vamos orga-nizar uma reunião de uma comissãoformada por moradores das áreas afe-tadas com os defensores, técnicos(engenheiros e arquitetos) e organiza-ções, para vistoriar a situação, conversarcom moradores e avaliar o que podeser feito, e se a alegada situação derisco generalizada afirmada pelaprefeitura procede.

Lutaremos por uma assessoria sócio-jurídica ao grupo ameaçado de des-pejos da terra que ocupam e que estãoem processo de regularização desres -peitando assim, o Direito à Cidade, queatravés dela a população que antesestava territorialmente excluídaingressa no mapa oficial da “CidadeLegal”.

Nós somos parte da Cidade, e comodetentores de direito coletivo queremosque todas as pessoas da cidade nãosofram discriminação racial, econô -mica, de gênero, idade, condições desaúde, queremos, assim preservarnossa história e identidade cultural.

A gestão do Prefeito Eduardo Paesquer destruir o que a própria prefeiturainiciou na década de 80, quando foramconstruídas pelo Estado as moradiascom a participação de grupos popu-lares sob a gestão do GovernoMunicipal. Uma equipe multidisciplinarfoi formada: composta por traba lha-dores sociais, arquitetos-urbanistas,engenheiros e moradores em favor deum projeto de moradia destinado àspessoas que viviam no entorno doantigo valão.

Nós lutaremos contra as remoções edespejos forçados, que encobertos sejapor uma retórica ambiental, seja porchamados à Ordem Pública, seja pordiscursos desenvolvimentistas oupatrióticos, associados a mega-eventos,favoreçam a especulação imobiliária eos governos de plantão. Estamos com-prometidos a lutar pela garantia daFunção Social da Propriedade e daCidade.

Carta aberta 14 de abril 2010

dos moradores da RocinhaNós moradores da Rocinha denun-ciamos a todos a forma autoritáriacomo a prefeitura do Rio vem cau-sando um grande “terror psicológico”aos moradores com a anunciadaremoção total dos moradores doLaboriux e também agora da Dionéia,após as chuvas e as quedas deencostas que fizeram 2 vitimas fatais.

O Retrocesso da proposta deRegularização Fundiária nas favelasdo Rio de Janeiro

Em julho de 2009, foi sancionada a LeiFederal 11.977, Capítulo III fala especifi-camente da Regularização Fundiária deInteresse Social (Seção II), instituindo o“Auto de Demarcação” e da“Legitimação da Posse”. Desde 2006, aRocinha vive um processo de regula-rização fundiária e urbanística. Esseprojeto surgiu da solicitação das lide -ranças comunitárias, bem como dasAssociações de moradores, com aparceria da Pastoral das Favelas daArquidiocese do Rio de Janeiro. Essemovimento tomou força por meio decontrato firmado com o Ministério dasCidades e com o Ministério da Justiça.

<http://wwwwilliamdarocinha.blogspot.com/2010/04/so-deus-e-nossa-luta-pode-nos-livrar-de.html>

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GLOBAL 12 trânsitos

“Olimpíadas para todos, semremoção!”; “Apesar das ameaças,desejamos sucesso para asOlimpíadas”; “Esporte é vida, nãoestresse. Políticas Públicas já!”;“Veneza carioca para os ricos e despejopara os pobres”. As faixas colocadasem um pequeno campo de futebol,transformado provisoriamente em localpara assembléias entre os moradores,movimentos sociais e representantesde diversas entidades, expressam orepúdio da comunidade Vila Autó-dromo ao projeto de remoção de cente-nas de famílias pobres para a cons-trução no local de equipamentos paraos jogos olímpicos de 2016.

Não é a primeira vez que a comunidadeprecisa se mobilizar para evitar as ten-tativas de remoção involuntária. Aprimeira ocorreu em 1992, quando oMunicípio do Rio de Janeiro alegou“dano estético e ambiental” em açãojudicial ajuizada no Tribunal do Rio deJaneiro requerendo a retirada total dacomunidade. A Barra da Tijuca, então,despontava como nova centralidadepara empreendimentos imobiliários,comerciais e esportivos, exigindo,como bem traduziu o procurador domunicípio, uma nova “estética”, naqual os pobres não estavam incluídos. A comunidade, por sua vez, organizou-se e apresentou uma reação adequadaà ofensiva municipal: em apenas doisanos, os moradores integraram um pro-grama de regularização fundiária emque o poder público estadual, propri-etário da gleba, reconheceu que o localera utilizado, há décadas, para a mora-dia. No mesmo passo, Vila Autódromoarticulou sua defesa jurídica e impediua remoção judicial das casas, demons -trando a fragilidade dos argumentosmunicipais em um litígio que até hojese arrasta no Judiciário.

DDee VViillaa AAuuttóóddrroommoo,, uumm oollhhaarr ssoobbrree aauurrbbaanniizzaaççããoo bbrraassiilleeiirraa

A situação vivenciada por VilaAutódromo não se distingue da históriade muitas outras comunidades, favelase bairros pobres das metrópolesbrasileiras. Originalmente uma vila depescadores, Vila Autódromo torna-se,nos anos 1970, uma oportunidade paraa moradia de centenas de migrantesoperários e trabalhadores informaisque chegaram à região para a cons -trução do autódromo de Jacarepaguá,do metrô e dos novos empreendimen-tos imobiliários que despontavam no

processos de luta ligados à vida, à liber-dade e ao trabalho. Falar em direitoseconômicos, sociais e culturais dascomunidades pobres é exatamentereconhecer a dimensão material (e real!)da vida e do trabalho exercido por elasna cidade e para a cidade.

Os processos de remoção involuntáriararamente consideram a articulaçãoconcreta entre o exercício dos direitos eo espaço urbano. Das relações com oterritório surgem diferentes formas detrabalho, serviços prestados pelos autô -nomos e informais, redes de solida -riedade social, contatos com os vizinhos,amizades para as crianças, convívios naescola, contatos com os profissionais desaúde, etc. O que para o poder público éum simples “reassentamento”, para asfamílias é a uma mudança total nas for-mas de vida e de acesso, mesmo quan-do precário, aos direitos.

Frequentemente, alguns políticos, até osditos progressistas, questionam o motivopelo qual uma comunidade se recusa aser realocada para casas cons truídaspelo poder público. Ora, a homogenei-dade das construções, o espaço planifi-cado e sem criatividade das casas e a rup-tura das relações sociais com o territórioestão na origem da resistência dos mora-dores, inclusive os de Vila Autódromo.

A comunidade quer continuar onde estáe receber investimentos públicos!

Ao invés de propor remoções custosas eindesejadas, o poder público deveriareconhecer e ampliar iniciativas criadaspelos próprios moradores, investindoem urbanização com participação edecisão popular, regularização fundiária(Cf. projeto do ITERJ para Vila Autó -dromo), assistência técnica gratuita,políticas de transferência e geração derenda, estímulo às redes sociais e cultu -rais existentes, proteção do trabalhadorinformal e do pequeno comerciante,acesso à mobilidade urbana, a todos osserviços públicos e aos demais direitosda cidade.

AA rreemmooççããoo ddee VViillaa AAuuttóóddrroommoo ccoonnttrraarriiaaooss ddiirreeiittooss ffuunnddaammeennttaaiiss ddaa cciiddaaddee

A remoção de Vila Autódromo ofende alegislação brasileira e a maioria dosprincípios e compromissos interna-cionais adotados pelo Brasil sobre a efe-tivação dos direitos da cidade. DaConstituição Federal ao Estatuto daCidade, da Agenda Habitat às obser-

“OLIMPÍADAS PARA TODOS, SEM REMOÇÃO!” A mais

recente luta dacomunidade deVila Autódromo

Associação de Moradores de Vila Autódromo

Núcleo de Terras e HabitaçãoDefensoria Pública

do Estado do Rio de Janeiro

local. Outras famílias foram ali assen-tadas em razão da remoção de outracomunidade, chamada Cardoso Fontes. Pescadores, operários precarizados,desempregados, trabalhadores infor-mais, famílias removidas e migrantesformam a rede social que irá paulatina-mente urbanizar e garantir as condiçõesde vida na comunidade. O sistema uti-lizado é o denominado “mutirão”, peloqual os moradores constroem não sósuas casas, mas todo o espaço urbano,incluindo ruas, calçadas, rede de dis-tribuição de água, sistema sanitário,creches, escolas e espaços de convívio,como o campo de futebol, a igreja e asede da associação de moradores.

Além de ser um espaço construído pelotrabalho contínuo dos moradores, VilaAutódromo aparece também como umarede diversificada de trabalha dores dacidade: eletricistas, bombeiros, mecâni-cos, porteiros, pedreiros, costureiras,pequenos comerciantes, entre outros,realizam uma dinâmica prestação deserviços fundamentais para a vidaurbana. O trabalho de construção dacidade se confunde, aqui, com as ativi-dades prestadas para a cidade. Aquiloque é definido pejorativamente como ocampo subterrâneo da informalidade (acidade ilegal) é, na verdade, a vida e otrabalho diário, múltiplo e rico dosmoradores de comunidades e favelasdesprovidos de direitos.

RReeccoonnhheecceerr aa ddiimmeennssããoo rreeaall ddoossddiirreeiittooss eeccoonnôômmiiccooss,, ssoocciiaaiiss ee ccuullttuurraaiissddaass ccoommuunniiddaaddeess ppoobbrreess

Como afirmava o jurista espanholJoaquin Herrera Flores (A reinvençãodos direitos humanos, 2009), os direitoshumanos não são meras declaraçõesformais ou abstratas, mas verdadeiros

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Trânsitos 13 GLOBAL

vações gerais da ONU sobre o Tratadode Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, passando pela Carta Mundialpelo Direito à Cidade elaborada pelosmovimentos sociais, encontramos fun-damento para um total repúdio ao tipode “reassentamento” que se querrealizar em Vila Autódromo.

Sumariamente e sem excluir outrosargumentos, poderíamos apontar asseguintes razões: a) violação da cláusu-la democrática e participativa. A comu-nidade em nenhum momento foi con-sultada sobre sua inclusão no projetoolímpico apresentado ao COI e soubepela “mídia” que deveria ser removida;b) primado da regularização fundiária,do direito à moradia e da segurança daposse. A comunidade foi regularizadahá quinze anos e hoje é objeto de outroprograma estadual para atualizar eampliar os títulos concedidos. A segu-rança da posse como elemento do direitoà moradia é oponível ao município. Valelembrar que dezenas de famílias já pas-saram por anterior processo deremoção e agora têm o direito de des-frutar de uma moradia segura e estável;c) princípio da vedação ao retrocesso.Tendo sido objeto de política pública depromoção do direito social à moradia, opoder público não pode retroceder efragilizar a proteção já alcançada de umdireito social; d) reassentamento comoultima ratio. As diretrizes internacionaisafirmam que o reassentamento involun-tário é medida extrema e deve ocorrersomente quando não há alternativa, nãosendo o caso de Vila Autódromo; e)garantia do devido processo legal. Aremoção sob o argumento dos jogosolímpicos seria meio para, à margem doprocesso legal, atingir um objetivo hojevedado pelo Poder Judiciário; f) princí-pio da igualdade. De todo o seuentorno, incluindo os inúmerosempreendimentos imobiliários no local,a comunidade será a única a ser atin -gida pelo projeto olímpico. Por quesomente a Vila Autódromo?

Por esses e outros motivos, a remoçãode Vila Autódromo é ilegal do ponto devista jurídico e inaceitável do ponto devista político. Contra ela, todos oscidadãos, as comunidades pobres emovimentos sociais urbanos têm o di -reito de se insurgir e exigir do poderpúblico o respeito aos direitos funda-mentais da cidade. Participar da maisrecente luta de Vila Autódromo é tarefapara aqueles que desejam, apesar dasameaças, “olimpíadas para todos, semremoção!”.

Interferências urbanas (10° Bienal de La Habana) de Mariella Sola. Projeção em Santa Teresa, Rio de Janeiro, 2009.

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Hertz LealCooperativa Orla Legal

CHOQUE DE ORDEM NAS PRAIAS DO RIO DE JANEIROação popular na Justiça Federal redigidapor alguns parlamentares, questio -nando os estudos de impacto ambientale a licença ambiental; conseguimos limi-nar e sentença anulando o Termo deConcessão 417/99. A apelação conseguiuum acórdão reformando parcialmente asentença, concedendo o direito ao con-trato nas praias de Copacabana e Leme,pois são praias onde já havia impacto doaterramento e por já terem iniciado asobras. O desembargador chegou a consi -derar, num julgamento de embargos dedeclaração, que se deveria fazer outra lici -tação ou decisão do STJ para o contratoter validade nas outras praias.

Em 2005, apesar do então prefeito CésarMaia declarar que discordava do mono -pólio na administração dos quiosques e deter assinado um decreto em outubro de2003 cassando a concessão, ele faz umTermo Aditivo parcelando em 180 vezes adívida de seis milhões de reais da Orla Rioe estendendo por mais cinco anos o con-trato. A Orla Rio corrompe a Coopquiosqueoferecendo remuneração de dois mil equinhentos reais a cada diretor enquantoperdurasse esta concessão. Os diretoresda Coopquiosque aceitam e não fazemassembléia, constituem uma empresachamada Tecnobeach registrada na JuntaComercial de Saquarema, assinando con-trato de assessoria com a Orla Rio.

Nós fundamos a cooperativa Orla Legal econtinuamos a nos defender dessas arbi-trariedades, entramos com outras ações

populares questionando o cronograma deentrega das obras e o descumprimentodo contrato em diversas ocasiões.

A população do Rio de Janeiro precisa en-tender que esta concessão permite a explo-ração dos quiosques com a venda de publi -cidade e cobrança de aluguéis em troca daconstrução de novos quiosques com sani -tários. Porém, depois de dez anos, estaempresa, não construiu nem 10% do queestava previsto e, além de não pagar os5% dos contratos de publicidade, devemais de um milhão e trezentos e oitentamil reais, conforme requerimento de infor-mações feito por vereador da base aliada.

Foi encaminhada uma denúncia aovereador Stepan Nercessian de que asduas últimas plataformas, com dois quios -ques cada, haviam sido construídas forados padrões do projeto aprovado na lici-tação (sem as cozinhas subterrâneas, e commenos da metade das obras previstas).Através de requerimento de informações,questionamos se tal modificação haviasido autorizada e se havia algum pedidoquanto à modificação do projeto original; aresposta da administração municipal foi deque não havia sido autorizada e nem haviaqualquer pedido de modificação do pro-jeto. Gravíssima irregularidade, informadaao secretário de urbanismo Sérgio Diasatravés de ofício solicitando uma reunião,para o qual não houve resposta.

Conseguimos marcar uma reunião deambulantes com o prefeito Eduardo Paes

Quando um novo governo chega aPrefeitura da cidade espera-se observarmodificações na forma de administrar opatrimônio público Nós da CooperativaOrla Legal, em 2008, procuramos os can-didatos à prefeitura e apontamos asirregularidades na administração dos309 quiosques da orla marítima. No inícioda gestão, entregamos uma carta às se cre-tarias da Casa Civil, do Meio Ambiente, aEspecial de Ordem Pública e até a deCultura, intitulada “Ordem para osQuiosques de Nossas Praias”, mas depoisde muita insistência ouvimos do líder dogoverno na Câmara dos Vereadores, quea prefeitura deseja manter a parceriacom a concessionária Orla Rio.

Nós, quiosqueiros, tínhamos a permissãode uso dos quiosques com nossa pessoafísica e pagávamos as taxas diretamenteà prefeitura, mas em 1999 foi feita a lici-tação dos 309 quiosques, processo querecebeu uma única proposta, a da OrlaRio, a qual prometia entregar novosquiosques com sanitário sem custos paraa prefeitura e para os quiosqueiros. AOrla Rio utilizou nosso apoio político,prometendo que só haveria sentido emganhar para que todos tivessem a segu-rança de continuar nos seus quiosquespor mais tempo. Mas, logo que ganhou alicitação, apresentou um contrato para osope radores de quiosque com muitasexigências e penalidades, um contratosuper abusivo, gerando insatisfações eensejando a organização da cooperativaCoopquiosque. Assim, foi realizada uma

GLOBAL 14 trânsitos

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CHOQUE DE ORDEM NAS PRAIAS DO RIO DE JANEIROsível, foi marcada uma reunião às 8 horasde domingo no Jardim de Alá com osecretário Rodrigo Bethlem que se compro-meteu a retornar os barraqueiros aos seuslocais de trabalho tendo em vista a decisãode um mandado de segurança que restabe-lecia a barraqueira Iza no seu ponto original.

O prefeito havia dito que a Orla Rio não seestenderia às areias das praias, mas foipreciso que os trabalhadores afetados semanifestassem para impedir mais concen-tração de poderes e renda. A lógica destagestão é terceirizar, como ficou evidentecom as O.S. Na Lapa, organizaram osambulantes cedendo as calçadas para aAmbev instalar seus carrinhos de chope;nas praias, desejam que as indústrias debebidas paguem pelo merchandising,permitindo vendas com exclusividade(esta palavra encontra-se no contrato deconvênio); fornecem ainda a estrutura queirá reprimir quem não se enquadrar nestesistema de organização de nossas praias.

Ordem, educação e limpeza todos oscidadãos querem, mas por que privilegiaralgumas empresas que podem cometerdiversas irregularidades (inadimplência,atrasos e modificações contratuais)? Essasempresas contam com paciência, parcela-mento, financiamento, aumento do tempodo contrato e isenção de multas, enquantoaos trabalhadores mais humildes cabe opeso da violência da Guarda Municipal.Assim é o “Choque de Ordem”, opressãopara os pobres trabalhadores e compla -cência para os ricos empresários.

em setembro de 2009 e lhe entregamosuma carta perguntando qual o interessepúblico na continuidade da concessão417/99 tendo em vista as irregularidadese se os barraqueiros das areias tambémsofreriam a influência da Orla Rio. Oprefeito disse que apesar de não ter sim-patia pelo dono da Orla Rio, este haviaganho a concessão; afirmou ainda quenão estenderia os poderes desta em-presa para os barraqueiros e pediu aosecretário Rodrigo Bethlem que marcasseoutra reunião para discutir o assunto depraia. Esta reunião nunca foi marcada.

A Operação Verão começou no dia 8 dedezembro de 2009 com a novidade do con-vênio das associações de barraqueiros coma SEOP, que passariam a fornecer diversosequipamentos à Guarda Municipal, todauma logística de entrega e recolhimentodas barracas que, na prática, não funcio-nou. Comentava-se que a Orla Rio seria océrebro deste convênio, fazendo o contatocom as empresas que viabilizariam as vul-tuosas doações à prefeitura (quadriciclos,carros, uniformes e protetores solares paraa Guarda Municipal, carros pick-up para fis-calização, para-sois, cadeiras e barracas,etc.), tanto que foi constituída uma novaassociação de barraqueiros a Pró-Rio, daqual o vice-presidente da Orla Rio, JoãoMarcelo Barreto, seria presidente.

O Movimento Unido dos Camelôs – MUCAdeu apoio aos barraqueiros acionando asolidariedade de sindicatos filiados à CUTpara produção de panfletos. Desde o início

da Operação Verão, o vereador Reimontabriu espaço no seu mandato para discutircom os trabalhadores informais a lei1876/92; Reimont foi o parlamentar querecepcionou na Câmara dos Vereadoresuma comissão das associações conve -niadas e outra comissão dos trabalhadoresque questionavam o convênio e a formacomo este estava sendo implantado, poishouve uma reunião no CIB, no dia 4/12,quando foi feita uma fila para entrega dasautorizações de trabalho, mas antes se assi-nava a adesão ao convênio, havia apenasuma cópia para todos lerem.

O erro fatal foi o remanejamento de algunsbarraqueiros que trabalhavam nas areiasde Ipanema e Leblon, o que causou umagrande revolta e a manifestação em frenteao Hotel Ceasar Park pedindo o retornodos barraqueiros aos pontos originais compalavras de ordem como ‘Fora Barreto!’, ecom as matérias publicadas nos jornais degrande circulação. Após uma grandematéria no jornal de maior circulaçãosobre a empresa que explora o monopóliodos quiosques da orla marítima, a OrlaRio resolveu se retirar do convênio dasassociações de barraqueiros com a SEOP.Houve inquérito no Ministério Público acargo da promotora Gláucia Santana.

Os barraqueiros marcaram uma manifes-tação para o domingo de manhã, no posto11 no Leblon, de onde sairiam distribuindopanfletos em passeata até o Arpoador. Asassociações conveniadas tentaram conven-cê-los a não realizá-la; como não foi pos-

Trânsitos 15 GLOBAL

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GLOBAL 16 Conexões Globais

ITÁLIA

Somos todos clandestinos. Somos todos antirracistas, e não se trata de retórica de solidariedade. A crise e seus efeitos cada vez mais concretos não fazem mais que escancarar a caixa de Pandora. De migrantes expulsos a fuzilados – porque escravizá-los não funciona mais – aos mestres deixados em casa porque são muitos, aos precários que veem se esfumaçar qualquer possibilidade de obter uma renda, aos estudantes que veem se esvanecer qualquer possibilidade de um futuro digno. Somos muitos, muitos mesmo, nas escolas e nos postos de trabalho, e qualquer um pode ser descartado. Assim, nos tornamos clandestinos, chantageáveis, perigosos, devendo ser divididos, postos em competição, por não sermos confiáveis. Nós não pagaremos pela crise.

Porque a crise se torna a norma gritante que permite aos políticos impor sacrifícios às custas dos jovens estudantes, dos precários, dos migrantes e das novas figuras de cenário pungente de pobreza crescente. Porque a crise é o meio para traçar a nova geografia da exclusão e para impor a expulsão, deportação e o controle da força de trabalho, para fazer da perdado emprego um crime: o crime da clandestinidade.

No dia 1º de março retomaremos a Praça Montecitorio para construir, em conjunto, estudantes, jovens, precários, migrantes, desocupados – uma lição de clandestinidade. Porque queremos fazer de nossa clandestinidade a nossa riqueza, reivindicar nossaexcedência e tornar comuns nossas experiências e nossos saberes. Pretendemos tornar visíveis (e erguer nossas vozes contra!) as políticas e as retóricas racistas, a depreciação do universo da formação, a precarização da vida.

O que aconteceria a esse país se o trabalho dos imigrantes cessasse por um dia? Se os estudantes abandonassem as universidades e as escolas? Se pais e mães deixassem de levar suas crianças às escolas do racismo e da intolerância?Pretendemos colocar estas questões, reunindo nossas diferenças e nossa força. É com essas questões, e a busca por respostasinovadoras, que compareceremos à praça Montecitorio no dia 1º de março, para afirmar nossa idéia de formação e de sociedade,que passa pela cooperação, pelo confronto, pela qualidade, pela inexaurível disposição de viver e de lutar, enfim!

Para ouvir histórias diferentes. Para descobrir uma nova geografia, qual seja, a dos fluxos que atingem a Itália com a esperança de uma vida digna. Para tratar do direito europeu e da forma como ele torna letra morta o direito ao refúgio. Para ouvir uma liçãosobre as condições do trabalho e da exploração em Rosarno, como expressão de muitas outras zonas cinzentas.

O que precisamos, para sair da crise e continuar buscando a felicidade, é de espaço aberto, liberdade de movimento, dinheiro,poder de decisão sobre nossos próprios corpos. Por isso, no dia 1º de março, segunda-feira, às 10:30h, todos à Praça Montecitorio!

Os estudantes do ensino médio e universitário contra o racismo.

Somos todos clandestinosFrancesco Raparelli

Giuseppe Cassibba

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Conexões Globais 17 GLOBAL

Um novo começo. Disso trata o 1º demarço. Desde o início, ao receber asnotícias que chegavam dos quatro can-tos da península, tive a sensação de quealgo novo se punha em movimento.Vozes frescas, emocionadas e, porvezes, surpresas, davam conta degreves de consumo e de greves nasfábricas (“Não precisamos de autoriza-ção para fazer greve”, diziam muitoscoletivos, zombando da miopia dossindicatos), de manifestações estudantise de “lições de clandestinidade”, depasseatas diante do INPS, dos can-teiros de obras, de milhares de lugaresonde o trabalho dos migrantes é explo-rado cotidianamente, mas onde tam-bém lutam e resistem diariamente.Depois chegaram as fotos, e as praçasmostravam desde cedo caras novas deuma composição juvenil na qual se cru-zam histórias e cores, línguas e emo-ções. À medida que o dia passava, asruas de milhares de cidades italianasforam se preenchendo e confluindo emuma extraordinária expressão da multi-dão (ao menos uma vez o uso destetermo não é retórico), em rejeição aoracismo e na afirmação de uma novacidadania. Em Bolonha, assisti a umajovem migrante responder de formaríspida a um repórter que lhe perguntavase ali estavam os ‘cidadãos do futuro’:

“Mas, o que você está dizendo, napraça estão os cidadãos do presente!”

Este sim é o ponto: a dimensão socialda cidadania teve, ao menos por umdia, sua vingança contra a dimensãojurídica. A tomada da palavra – singulare, ao mesmo tempo, coletiva – pordezenas de milhares de homens e mu -lheres mostrou toda a materialidade eo sofrimento que fazem parte da coo -peração social e do conflito respon-sáveis por tornar as cidades que habita-mos ricas e dignas de se viver. E revelou,ao mesmo tempo, a miséria da cidada-nia que se quer impor, reforçada por‘pacotes de segurança’ e racismo, edesprovida de direitos.

Como se chegou a este dia? Como sechegou, sobretudo depois dos últimosdois anos, em que os movimentosantirracistas e de imigrantes (tutti noi)pareciam incapazes de recuperar o pro-tagonismo diante das agressões diáriase de uma ação legislativa sem prece-dentes na Itália? É claro que depois decada ataque houve uma reação, osmédicos e enfermeiros reagiram forte-mente à perspectiva de se tornaremagentes de polícia e de terem quedenunciar os “ilegais”. Em outu bro,por exemplo, houve uma grande mani-festação em Roma. No entanto, todosadvertimos quanto à inadequação dasrespostas, todos percebemos um certodesgaste e ritualização, tanto na praça,quanto nas assembléias que seseguiam umas às outras. Apenas agoranos libertamos, pelo menos por umdia, dessas sensações.

Redescobrimos o espírito, não apenasdefensivo, mas literalmente ofensivo,de ataque, que marcou as primeirasmanifestações do movimento antir-racista e de imigrantes que carac terizouo cortejo romano em 7 de outubro de1989, após o assassinato de Jerry Massloem Villa Literno, às extraordinárias lutasdos migrantes na década de 90, deBréscia a Caserta, de Gênova a Roma.

EEssppíírriittoo ooffeennssiivvoo,, ddee aattaaqquuee::

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aa aaffiirrmmaaççããoo ddee uumm pprriinnccííppiioo nnoovvoo,,

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–– mmeessmmoo qquuee eessttaa ooppoossiiççããoo ppoossssuuaa

ffoorrççaa ddee lleeii ee mmaaiioorriiaa nnoo PPaarrllaammeennttoo..

As praças e as ruas italianas (também)foram coloridas de amarelo em 1º demarço. Creio que se deva reconhecer omérito de quatro mulheres que,retomando uma iniciativa francesasemelhante que, por sua vez, seinspirou em uma mobilização históricados latinos em 1º de maio de 2006 nosEstados Unidos, começaram a percor-rer, meses atrás, o caminho que levouao “dia sem nós”. Sem esta iniciativa,o 1º de março simplesmente não teriaexistido. Mas façamos uma obser-vação: o amarelo é diferente do violeta.As próprias promotoras da mobilizaçãose deram conta imediatamente de queo caminho que levou até o 1º de marçonão poderia passar exclusivamentepelas redes sociais, à espera de con-seguir um “patrocínio” por parte daRepubblica e de L'Espresso. Não setrata aqui de minimizar a importânciada web 2.0, pelo contrário: trata-se dereconhecer que, quando a mobilizaçãonão recai sobre a figura do cidadãoindignado que clama por legalidade,mas sobre atores sociais que portam,na especificidade de sua condição,violentas contradições materiais, aspróprias redes sociais mudam defunção, e devem se deixar atravessar,por sua vez, pela materialidade destascontradições, abrindo-se à investi-gação e à relação e devendo elaborar epraticar de modo original a intersecçãoentre a realidade da rede e outrasdimensões da realidade social. Daívieram reuniões, comissões, várias ini-ciativas que anteciparam e prepararamnas semanas passadas as manifes-tações do 1º de março.

A construção do “dia sem nós” setornou assim uma espécie de espelho,que reflete a extraordinária riqueza deexperiências, formas de auto-organiza-ção, conhecimentos e práticas que seconsolidaram ao longo dos últimosvinte anos na sociedade italiana emtorno da questão das migrações.Associações antirracistas e comitês demigrantes, assessorias jurídicas e clíni-cas autogeridas, escolas de italiano eassociações de mulheres italianas emigrantes, projetos de informação e depesquisa, associações de voluntárioslaicas e católicas, e muito mais. Cadaexperiência desenvolvida pelos comitêse associações que estiveram naspraças em 1º de março desempenhouum papel vital e de valor inestimávelpara essa reabertura, embora nenhumadelas possa reivindicar exclusivamente

1º DE MARÇO – UM NOVO INÍCIOSandro Mezzadra

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GLOBAL 18 trânsitos

para si o sucesso da jornada. Cadacidade, cada praça tinha suas pecu-liaridades, decorrentes da históriaespecífica de migração e das expe-riências de luta e de mobilização queas caracterizaram nos últimos vinteanos. Mas o valor agregado no 1º demarço, seu caráter de novidadepotente, veio da confluência de mi -lhares de percursos de auto-organiza-ção e no contexto de um espaçocomum, livre da lógica de alinha -mento repleta de táticas e de cacoetespolíticos completamente vazios desentido.

E assim, uma vez mais, pudemosperceber o protagonismo extra-ordinário dos e das migrantes, quefinalmente emergiu de maneira corres-pondente ao caráter profundamenteheterogêneo e, ao mesmo tempo,maduro da presença de migrantes naItália. Os pais e suas crianças que fre-quentam creches e escolas primárias;os alunos e alunas da chamadasegunda geração; trabalhadores meta -lúrgicos junto com trabalhadoras “daatenção e do cuidado”; traba lhadoresdo comércio e da construção civil ladoa lado com os bóias-frias de Rosarno,que abriram a passeata romana. Aocaráter hete rogêneo e maduro detodas essas presenças correspondemlutas coti dianas e conflitos que atra -vessam os campos do trabalho e dosdireitos, da cidadania e da rejeição aoracismo, deslocando sob uma per-spectiva mais ampla o significado decoope ração e de convivência em nos-sos terri tórios e em nossas cidades.Precisamos e devemos valorizar essaheterogeneidade, resistir à tentaçãode reduzir a um único terreno a multi-plicidade de planos em que se desen-rolam e se determinam as lutas dos edas migrantes. Temos de intervir uti-lizando os instrumentos de investi-gação e com uma tessitura resistente,ancorada nas lutas, com relaciona-mentos capazes de antecipar e cons -truir materialmente espaços comunsde convergência e de consolidaçãodaquela cidadania que vislumbramosno 1º de março. Um novo início sedizia. Talvez seja o caso de especificar:o dia 1º de março foi memo rável.Cabe a todos e todas nós fazermosdele realmente um novo início.

Hoje, como de costume, eu consulto osjornais brasileiros e franceses online.Esta manhã, estou curioso para vercomo a imprensa francesa tratou da cri-a ção de um novo bloco regional naAmérica Latina e Caribe, sem os EstadosUnidos e o Canadá, que aconteceu navéspera, dia 23 de fevereiro. Surpresa!Nenhuma repercussão. Nem Libération,nem L’Humanité, nem Le Figaro, falamdisso. Eu consulto então o maior telejor-nal nacional do país, TF1. De novo, nada.Nada o dia 24, dia 25, dia 26. O únicoartigo (pequeno) que eu encontrei foiem Le Monde, dia 25, na seção Inter -nacional. Eu disse surpresa, mas na ver-dade, faz muito tempo que não fico maissurpreso. A única coisa é que eu nãoconsigo me acostumar. Me acostumarcom essa pretensão e essa arrogância.Da França, da Europa, da América doNorte, ou seja, dos países ricos doNorte, para simplificar.

Um detalhe a criação desse bloco? Apresença de trinta e dois presidentes echefes de governo no México paracomemorar esse evento não é suficientepara chamar a atenção dos países ricosdo Norte? Nem a provocação do Presi -dente Lula, que questionou a sobe raniabritânica nas ilhas Malvinas, e a perti -nência do Conselho de Segu rança daONU? Ou será que é por isso justamente?

O Norte

perdeu o Sul

Olivier Borius

Chuveiros sonoros, de RRoommaannoo.

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Então, não é o Norte que financia eajuda o Sul, é bem o contrário.

Na verdade, sim, tem memória, porém,como diz Jean Ziegler, membro doComitê Consultivo do Conselho deDireitos Humanos da ONU, “é umamemória dominadora, impermeável àdúvida”. Michel Debray, filósofofrancês, acrescenta que “eles remo -veram o capacete. Abaixo, a cabeçapermanece colonial”. A atual ordemeconômica imposta pelas oligarquiasdo capitalismo financeiro ocidental é oresultado dos sistemas imperialistasde opressão anteriores, notadamenteda escravidão e do colonialismo. Ocapitalismo e a ordem neoliberalmundial prosseguem a pilhagem doSul pelo Norte.

O Norte não consegue enxergar, e nãoouve, o descontentamento do Sul. Nãoouve que os povos que foram humi -lhados e explorados estão mudandode postura e entram em resistência.No fim do ano 2007, na II Cimeira daUnião Europeia-África, cujo principalobjetivo consistia em fazer os paísesafricanos assinar novos tratadoscomerciais, a África se recusou. OMovimento Não-Alinhado, compostode 118 países, que durante os anos1990 era ameaçado de extinção e queo Norte prefere pensar obsoleto, estáse mobilizando de novo, e as duas últi-mas conferências, em 2006 e 2009,foram um sucesso. Na busca de umnovo equilíbrio multipolar, os acordosSul/Sul estão se multiplicando. Sãoacordos entre países periféricos queenvolvem cerca de 4 bilhões de pessoasno mundo. Na América Latina, o Bancodo Sul, a UNASUL (União de NaçõesSul-Americana), e agora o novo blocoregional, são apenas algumas das ini-ciativas que têm como objetivo mudara distribuição do poder mundial eromper assim com o impe rialismo dosEstados Unidos.

Em suma, trata-se de questionar ahierarquia internacional. A dificuldadeé grande, pois, de fato, no Norte temo Sul, e no Sul tem o Norte. No Rio deJaneiro, por exemplo, a famosa polí -tica de choque de ordem inspira-sediretamente nessa fratura, e se carac-teriza por seu eurocentrismo e o bran-queamento das mentes. Em reposta,indiretamente, no Fórum SocialMundial da Bahia de 2010, o africanoSamba Buri Mboup conclamou à des-colonização do pensamento e daglobalização.

Outro exemplo, mais dramático, o golpe de Estado em Honduras. Mesma coisa,mesma pretensão, mesma arrogância. O Libération chegou a se questionar se setratava mesmo de um golpe de Estado. A primeira revista semanal da França,Le Nouvel Observateur, nunca escreveu a respeito. Na realidade, podemoscontinuar assim interminavelmente, a lista é longa.

O Norte não quer dividir o poder. O centro de gravidade da governança mundialnão deve mudar, e tudo é feito neste sentido. A reforma da ONU para poder inte-grar novos países no Conselho de Segurança e ser assim mais representativo?Faz mais de quinze anos que começou, e está parada. O FMI e o Banco Mundial?As decisões baseiam-se no princípio “um dólar, um voto”, garantindo a domi-nação dos Estados Unidos, com mais de 16% dos votos. Enquanto isso, os paísesda África Subsaariana, representando 27% de todos os países membros, têmapenas 8% dos votos. A Ajuda Humanitária Internacional? A ONU recomendaconsagrar 0,7% do PNB. Em 2007, a média dos países do Comitê de Ajuda aoDesenvolvimento era de 0,45%, os Estados Unidos chegando com apenas 0,16%,sendo que apenas cinco países ultrapassaram a meta da ONU. A questão damigração exemplifica também a oposição Norte/Sul. Em 2008, o ParlamentoEuropeu aprovou, por larga maioria, a “Diretiva do Retorno”, relativa à depor-tação de imigrantes ilegais, lei que entra em vigor em 2010. Essa lei endurecedrasticamente as condições de detenção e de expulsão dos migrantes sem docu-mentos, seja qual for o tempo de residência nos países europeus, a situaçãofami liar, ou a situação de trabalho. O presidente da França, bom aluno, come -morou no ano passado o aumento de 80% de expulsados. Enquanto isso, o presi -dente do Brasil assinou em 2009 uma lei que permite a regularização deestrangeiros que vivem irregularmente no Brasil.

Aparentemente, o Norte não tem memória. Os países ricos esqueceram queexploraram as riquezas dos continentes do Sul para transferi-las para a Europa,com um custo muito alto para os povos. E continua assim. As somas que o Sulreembolsou ao Norte a título da dívida eram sete vezes superiores aos valoresque o Norte emprestou em relação à Ajuda Humanitária Internacional. Em 2001,os países pobres reembolsaram 138 bilhões de dólares a mais do que recebe ram.O Norte organiza a fome dos povos e em paralelo criminaliza os refugiados.

Conexões Globais 19 GLOBAL

Bienal do Mercosul, Mostra Absurdo. Cais do Porto, Porto Alegre, 2009.

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GLOBAL 20 trânsitos

‘DES-NACIONAIS’

Fotos de SSiinnddiiaa MMaarrtt iinnss ddooss SSaannttooss..

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Conexões Globais 21 GLOBAL

– Hoje estou fazendo uma quantidade maior porque vendi para um casal decongoleses.

Desde as cinco da madrugada, Mama Bia se punha a amassar e enrolar em cilindrosa mandioca que fora cozida, posta para secar, esfarelada e misturada a água quente.Suas costas se contraiam no esforço repetido.

– Prova, é boa.

Ela pousava um pedaço da massa sobre os lábios para mostrar que o gosto era bom.Em seguida recolhia da testa os fios de cabelo em desalinho, que escapavam dablusa laranja enrolada na cabeça. As feições rígidas do rosto tornavam impossívelsaber se a oferta para experimentar o prato era um pedido ou uma ordem.

Mama Bia seguia empilhando os cilindros na gaveta do freezer quando Kembo bateua sua porta:

– Mama Bia, vai ter culto hoje?

Um domingo a cada quinze dias, Mama Bia recebe moradores das redondezas quese juntam àqueles da casa para realizarem o culto cristão-africano da IgrejaKinbanguista. Ela responde que sim com a cabeça e apressada se põe a ajeitar opátio na entrada da casa, onde o culto seria realizado.

A casa é um sobrado com oito quartos, em cada quarto uma família. Mama Bia é amoradora mais antiga. Kembo chegara fazia cinco meses da República Democráticado Congo e aguardava a resposta ao pedido de refúgio. Mama Bia deixara a Angolahá oito anos, veio para o Brasil atrás do marido que morava aqui há quatro.

No pátio, caixas de uma velha bateria são enfileiradas próximas às cadeirasajeitadas lado a lado. À frente, uma mesa coberta com lençol branco improvisavaum púlpito. Sobre ela, uma imagem dos três filhos de Simon Kinbangu, profeta quelevou o cristianismo para a R.D. Congo, é pendurado na parede.

A manhã segue no vai-e-vem de mu -lheres a ajeitar seus quartos. Algumaslavam louça, outras roupa. O tanquecoletivo que fica no fundo do quintal virapia de cozinha e as roupas são lavadasem baldes, onde as peças são mergu -lhadas, postas de molho e esfregadas.

Beni, de seis anos, cruza o corredor,enrolada numa toalha branca, os cabelosprotegidos por uma touca. Sua mãe,Patrícia, segue atrás com um balde cheiode água. O banho de Beni acontece alimesmo ao lado das mulheres que lavamroupa. Patrícia ensaboa o corpo de Benicom um pedaço de pano, dando atençãopara os pés. Depois com uma jarra plás-tica, enxágua a menina. Logo, o corredoré tomado pelo cheiro de sabonete.

Kembo toma um analgésico. Sente-semuito doente, passara as últimas noitescom febre e agora era acometido poruma dor de barriga que nas semanasseguintes desencadeariam hemorróidas.Ele se pre pa rava para voltar ao quartoquando Sandra, que também mora nacasa há poucos meses, passa de cami -sola em direção ao banheiro. Seu andarondulante carrega o peso de quase qua-tro meses de gravidez. Ela, o marido e ofilho William dividem o quarto comPatrícia e sua filha Beni.

– Mulher tem que ter filhos, diz Kembo.

Aos 40 anos, Kembo não tem filhos, suavida está assentada em projetos futuros:aguardar a concessão do refúgio,procurar um trabalho, fazer um curso deinformática, outro de português, e entãoprocurar um trabalho melhor; tudo longede seus familiares, de seu país.

– Ficar sem filhos não é bom para mim.Meu pai me nasceu, também tenho quenascer filhos.

Kembo vai até a entrada da casa e abre aporta. Do andar de cima chega a voz demulher numa música que parece umalamentação. A espera para que as coisasse ajeitem no Brasil pode ser longa eKembo sabe disso. Para cada estrangeiroque consegue reconhecimento comorefugiado, outros dois têm o pedidonegado. Atualmente, há 15,2 milhões derefugiados pelo mundo, quatro mil noBrasil. Dali a três semanas Kembo seriaum deles.

– Não pisa no chão! Calça os chinelos edepois vai procurar a tua mãe.

Kembo chama a atenção do meninoWilliam. A criança volta para o quarto

AA mmuullhheerr nneeggrraa aaggaacchhaaddaa aaoo llaaddoo ddaa mmeessaa iimmpprroovviissaaddaa ccoomm ccaaiixxootteess

pplláássttiiccooss eesstteennddeeuu aa mmããoo ooffeerreecceennddoo uumm ppeeddaaççoo ddee KKuuaannggaa..

AA mmaassssaa ddee mmaannddiiooccaa,, ddiizziiaa MMaammaa BBiiaa,, eerraa uumm pprraattoo ccoonnggoollêêss mmuuiittoo

ppaarreecciiddoo ccoomm oo aanngguu mmiinneeiirroo.. DDuurraannttee aa sseemmaannaa,, aa mmaassssaa sseerriiaa

mmiissttuurraaddaa aaoo ffeeiijjããoo,, tteemmppeerraaddoo ccoomm aazzeeiittee ddee ppaallmmaa ((ssiimmiillaarr aaoo óólleeoo

ddee ddeennddêê)),, cceebboollaa ee aallhhoo,, ee ffoorrttaalleecciiddaa ccoomm ffoollhhaass ddee mmaannddiiooccaa..

OOuu eennttããoo,, mmiissttuurraaddaa aaoo ppeeiixxee,, ttrraannssffoorrmmaannddoo--ssee nnuumm ffoorrttee ppiirrããoo..

UM PEDAÇO DO CONGO NO BRASIL, UM BRASIL NO CONGO

Sindia Martins dos Santos

Page 24: Revista Global Brasil 12

GLOBAL 22 Conexões Globais

RESiSTiR PARA ACREDiTAR

ainda chorando, acabara de acordar ereclamava a ausência da mãe que logofoi lhe socorrer.

Mama Bia finaliza a arrumação. Logo vaise arrumar, é a única que possui banheirodentro do quarto. Os 16 moradoresrestantes usam dois banheiros coletivos,um no andar de cima e outro no quintal.

Enquanto Mama Bia veste uma espéciede bata com tecido africano, sua filha,Vânia, acorda. A menina de sete anosdormia numa cama de casal que ocupavametade do quarto. Na outra metade pia,fogão, geladeira e freezer se aglomeram.

– Moro nessa casa por necessidade. ORio de Janeiro é bom para quem temdinheiro. Do contrário, como se vive?

Mama Bia enrola um tecido roxo nacabeça, ajeita o cabelo, passa creme nasmãos, veste uma calça jeans.

– Consegui refúgio um ano após terpedido. Desde então, já trabalhei comfaxina, de babá, ajudante de limpeza,mas o salário era tão baixo que vendersenglas nas ruas era melhor. Senglas emcongolês, aqui se chama “sacolé”.

Aos poucos ela abre espaço entre pane -las, utensílios domésticos e alimentos,organizando-os embaixo de mesas esobre a geladeira. Na televisão sobre acômoda, o Pica-Pau ri . Vânia se levanta eprepara o próprio achocolatado no chão,onde antes a mãe batia e enrolava amassa.

– No carnaval vendo muito senglas. Porisso comprei esse congelador. Passo anoite preparando os sucos e pondo-osno freezer, no dia seguinte ponho no iso-por e vou vender aqui no sambódromo. Lá fora, as mulheres seguem lavando ocorredor onde a pintura se desprendeem escamas e deixa à mostra a paredevelha e mal cuidada. Mama Bia detém oolhar nas tubulações improvisadas.

– Nasci na República Democrática doCongo, me mudei para a Angola quandocasei, meu marido era de lá. Tenho outrafilha, Niquia, de 17 anos, que ficou comminha mãe, faz muito tempo. Foi noCongo que aprendi a fazer Kuanga.

Kuanga, a massa de mandioca, tem umgosto azedo, e na medida que se espa lhana língua, o azedo fica mais denso.

– A gente não faz como aqui, não bota-mos sal em comida porque é o temperoque deve sobressair.

‘DES-NACIONAIS’: UM PEDAÇO DO CONGO NO BRASIL, UM BRASIL NO CONGO

No início, o Brasil foi difícil. O modo devestir de Mama Bia, com panos coloridosamarrados ao corpo, e de arrumar os cabe-los, armando-os com linhas igualmentecoloridas, logo chamaram a atenção.

– Fui na Central do Brasil pegar o trem eme perguntaram se era carnaval.

Muito à contra-gosto, passou a usar jeanse prender os cabelos, já então alisados,com grampos e elásticos. Ao mesmotempo, vendia Kuanga para os vizinhos, elhes ensinava seus penteados.

– Ainda visto minhas roupas e faço meuspenteados, mas só em dias especiais.

Nenê, que mora num dos quartos doandar de cima desce as escadas seguran-do uma bacia de ferro. Dentro, um peixeenrolado no jornal, ainda com escamas.Esse vai ser o almoço de Kembo.

Desde que ela veio morar na casa, há trêsmeses, Kembo lhe paga para ser incluídonas refeições. Nenê vive com dois filhos.Há poucos meses no Brasil, ela só falaem lingala, um dos dialetos falados noCongo, seu país de origem.

Ela quer saber se essa reportagem nãovai prejudicar as pessoas que moram nacasa, explica Kembo. Ele diz que não,mas Nenê permanece inflexível e sobe asescadas dando a conversa por encerrada.Nas próximas semanas, não receberámais Kembo para as refeições.

Mama Bia acompanha a cena de longe.Os outros moradores que também presen -ciaram o desentendimento se voltam emexpectativa para ela. Sendo a mulher quemora há mais tempo na casa e uma dasmais velhas em idade, nada ali dentroacontece sem que lhe peçam autorização.

– Deixa a Nenê para lá, sua irritação deveter motivo.

Os moradores da casa compreendemque Nenê tenta se preservar. O territórioonde vivem agora é um pedaço de seupaís no Brasil, ali podem falar em lingala,comer Kuanga, vestir roupas coloridassem que provocar estranhamento.

Mama Bia, Kembo, Sandra, Patrícia,Nenê, estão entre os 42 milhões de pes-soas que foram forçadas a deixar suascasas e migrar para outras cidades, oupedir refúgio para outros países. Eles jánão podem ser chamados de angolanosou congoleses, e muito menos debrasileiros. Possuem uma “des-naciona -lidade” que passeia entre as duas coisas.

Beatriz Lemos

Page 25: Revista Global Brasil 12

Conexões Globais 23 GLOBAL

RESiSTiR PARA ACREDiTARO exercício de rememorar minha

estadia como curadora brasileira

residente em Batiscafo1

me facilitou entender o motivo

de meu incômodo ao responder

a pergunta dos amigos após

o retorno da viagem:

“Você foi para Cuba,

que maravilha!

E aí, como foi?” O incômodo

vinha por não saber ao certo a

resposta, e apenas concluía ter

sido uma experiência intensa.

Foram vinte dias de muito trabalho, comentrevistas e visitas a artistas, curadorese gestores de arte para que eu conse -guis se conhecer a cena artística local eentender um pouco da lógica de pensa-mento que rege esse país. Para poderadentrar os círculos relacionais de Cubaé preciso criar uma nova teoria de reali-dade. É um lugar onde códigos de con-duta te levam muito mais rápido a umdestino do que simplesmente possuirdinheiro para um táxi; onde reproduzirtradi ções significa mais do que ques-tionar posicionamentos; e onde o “ir evir”, ou o “penso, logo existo” não per-ten cem aos cidadãos comuns. As adver-sidades relacionadas a um sistemapolítico que hoje se encontra em visíveldecadência e no auge de seu absurdoestrutural me comoveram bastante.

Não é possível estar em Cuba e não res-pirar política. Fala-se e escuta-se políticaem todos os momentos do dia. Antes deconhecer a ilha pensava que arte política

em Cuba poderia ser um grande clichêou lugar comum; porém, abstrair essecontexto tão peculiar é absolutamenteimpossível e, ao viver nele, o artista setorna o escape de toda uma sociedade.Em Cuba, a profissão de artista plásticoganha status diferenciado do dasdemais funções sociais. O trabalhoautônomo e a possibilidade de viajarinúmeras vezes ao exterior são regaliasconcedidas pelo governo. Isso faz comque o artista possa se manifestar semameaças diretas e, quando em outropaís, sem a pesada censura. Este é umdos motivos para que a arte cubana sejamuito mais debatida e estudada fora deCuba. Exposições e publicações anto -lógicas são realizadas para estrangeiros– no país, somente os projetos que com-pactuam com diretrizes socialistas. Essaimpossibilidade de refletir publica mentesobre passado, presente ou futuro estran -gula de maneira brutal o direito universalà liberdade de ex-pressão e engessaqualquer ideologia. Aqui, toda arte é de

Fotos de Beatriz Lemos

Page 26: Revista Global Brasil 12

GLOBAL 24 Conexões Globais

resistência e fazer arte é fazer política,intrínseca e necessariamente.

Como residentes de Batiscafo, eu e oartista brasileiro Pontogor tivemos oprivilégio, entre poucos estrangeiros,de viver na casa de cubanos, aprenderas regras relacionais e de conduta econhecer de perto as limitações nutri-cionais, materiais, financeiras e intelec-tuais impostas àquela sociedade. Nalógica institucionalizante local a maioriado que fizemos é ilegal: viver comcubanos, usar moeda local e andar emtáxi informal; até a existência deBatiscafo é ilegal. Dentro dessa lógicade ilegalidade, os estrangeiros que visi-tam Havana a conhecem com os filtrosturísticos abertos no país a partir dosanos 1990, onde tudo é vendido emCUC2, os edifícios são restaurados, aeducação e a saúde são as melhores domundo e o sistema político em vigorcontinua sendo um desejo do povo.Havana me pareceu uma cidade reparti-da em dois mundos que, ao mesmotempo em que se ignoram, são obriga-dos a se reconhecerem diariamente.Mundos fictícios, onde personagensliterários atuam em cenários de filmes etudo parece ser de mentirinha.

Entrevistei vinte e seis pessoas, em suamaioria críticos e curadores. Até poucotempo atrás, a função de curador erauma atividade de pouco prestígio nomeio artístico cubano. Como qualquertrabalho não ligado a uma instituiçãoou, de alguma maneira, não creden -ciado pelo governo está fora da lei, ocurador só existia em centros públicosou fundações internacionais, e essaprática de maneira autônoma é umfenômeno muito recente dentro dacena cubana. Contudo, muitoscuradores sobrevivem por meio deconvites diretos de artistas; ou seja, emCuba, é o artista que paga – de seupróprio bolso – pelo trabalho de umcurador e pelo texto crítico de suamostra. Quando não é dessa maneira,o curador apenas ganha currículo comas exposições de que participa. A únicasaída quanto a financiamentos eapoios passa pelas fundações interna-cionais e, em grande medida, quandose trata de projetos realizados fora deCuba.

A mesma lógica aplica-se à venda deobras. As poucas galerias de arte sãoestatais e negociam suas represen-tações em moeda local – o PesoNacional, que é extremamente desva -lorizado mesmo dentro do país. Ogrande fluxo de compra e venda dearte cubana está nos Estados Unidos eo artista é representado sempre noexterior. As instituições que visitei, emsua maioria, são bem equipadas, têmespaços expositivos adequados e dire-tores e curadores dispostos a novi-dades. A postura que necessitaassumir um diretor à frente dessasinstituições é bem delicada: mesmoadepto de práticas contemporâneas emarte, é preciso em alguns casos agircomo censor a favor do Estado. Dosespaços alternativos em arte conheciapenas o Aglutinador de SandraCeballos, que há 15 anos vem resis -tindo firme e forte, mesmo vigiado deperto por inspetores da Revolução.Acreditar e trabalhar são sempre açõesde resistência.

A Revolução foi uma utopia real, umsonho da população. O embargoimposto pelos Estados Unidos e depoiso fim do bloco socialista em 1989levaram o sistema político de Cuba àtotal decadência e ao desespero. Algotriste de se saber e ver3. Por outro lado,o privilégio de conviver com jovensartistas e intelectuais esclarecidos econstatar, a partir desse contato, quearte e cultura sempre serão ferramen-

tas para um pensamento crítico e queacreditar nisso é a ideologia possível nacontemporaneidade – independente-mente de qualquer desejo político – foifundamental para mim, como profis-sional e indivíduo. Essa geração jovem– com a qual mais tive contato –, quecresceu durante o período conhecidocomo especial (anos 1990)4 e que seesquiva das dificuldades no acesso àstecnologias da comunicação e ao pen-samento livre é a geração que respirapor mudanças e que possui as ferra-mentas necessárias para a construçãodas próximas utopias de um novo país.

LISTA DE ENTREVISTADOS

Curadores y críticos Andrés Abreu, Beatriz Gago, CristinaFigueroa, Cristina Vive, Elvia RosaCastro, Frency Fernández, MagalyEspinosa, Mailyn Machado, SandraSosa e Yuneikys Villalonga.

Artistas Adrián Melis, Ana Olema, ColetivoOVNI, Eduardo Ponjuán, JesúsHernández-Güero, Levi Orta, NuriaGuells, Pavel Acosta, Raychel Carrión,Reynier leyva, Rodolfo Peraza, SusanaP. Delahante.

Gestores de arteCorina Matamoro – curadora do Museude Bellas Artes, Ibis Hernández –curadora do Centro de ArteContemporáneo Wilfredo Lan, JorgeFernández – diretor do Centro de ArteContemporáneo Wilfredo Lan, SachieHernández – diretora do Centro deDesarrollo de las Artes Visuales,Sandra Ceballo – Fundadora do espaçoindependente Aglutinador

1. Batiscafo é um projeto artístico indepen-dente que desenvolve um programa deresidências com o objetivo de estimular odialogo entre artistas cubanos eestrangeiros. http://www.batiscafo.org/2. Moeda local com valor equivalente aodólar americano. Também conhecido comopeso convertível, foi criado na década de1990 para uso dos turistas em visita ao país.3. Repito em meu depoimento que essasimpressões só foram possíveis graças àcondição de residente e não apenas turista.4. Com a queda do muro de Berlim e o fimda União Soviética, Cuba entra em um perío-do de grande escassez de produtos alimentí-cios, que foi denominado por Fidel Castrocomo “Período especial em tempos de paz”.Conceito tomado da doutrina militar paradesignar o sacrifício massivo sofrido pelapopulação, antes desconhecido por gera -ções inteiras.

Fotos de Beatriz Lemos. Acima: Pontogor, AnaOlema. Jesús Hernández-Güero e HeribertoGarcia.

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Universidade Nômade 25 GLOBAL

Levamos o EME para apoiar uma pesquisa e atividade artística que interliga diferentes

partes do Estado do Rio de Janeiro onde se encontram ligações histórico-geográficas.

Estes foram conectados por uma corrente de chamas marítimas acionadas em locais

significantes: a cidade de Paraty e a a comunidade de Pilar na margem da Baia de

Guanabara foram conectadas. Foi encontrado uma rota colonial, que buscou e

transportou metais preciosos a partir do século XVII, exportados para Europa por

estes caminhos. Esta rota é conhecida como a Estrada Real. Duas pessoas foram

interligadas via a ação de acender uma chama marítima. A primeira no caminho

antigo da Estrada em Paraty e a segunda no caminho novo da Estrada Real em Pilar.

Estes pontos foram sinalizados por 2 pessoas que trabalham em organizações

relevantes para a preservação deste patrimônio histórico, geográfico e natural.

EME viabilizou uma reunião com o Instituto Estadual de Florestas e uma entrevista

com o Sr. João Bee.

No segundo dia fomos à prefeitura de Duque de Caxias, e apresentamos o projetopara a secretária de Cultura e Patrimônio, professora Gladis Brasa Figueira e BetoGaspari do Departamento de Projetos de Cultura. A partir desta reunião e com transeuntes da praça central de Duque de Caxias, realizamos uma pesquisa de campo no município que nos levou à antiga Igreja de São Bento e à Igreja N. Sra. Do Pilar. Dentro destes dois locais existem arquivos, entre fotos e mapas, dos portosonde os Portugueses levavam metais preciosos para a Europa pelo Caminho do Ouro– Caminho Novo. Existiam vários, portos importantíssmos nos séculos XVII e XVIII. Hoje pouco resta, mas em chegar nestes locais, havia conhecimento local sobre aimportância destes espaços. A Igreja N. Sra. do Pilar é um patrimônio histórico e artístico nacional, tombado em 1938.

Estúdio Móvel Experimental

8-10 Setembro 2009

Silvia Leal

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Sr. Alexandre, caseiro do Patrimonio Histórico da IgrejaN. Sra, do Pilar aceitou realizar a ação com a chamamarítima nas margens do Rio Pilar, que hoje é soterrado.Neste aterro do Rio Pilar, Alexandre aceitou o bastão deSr. Bee em Paraty, num jogo metafórico de revezamento.No dia seguinte, em uma oficina com o Instituto Rumo Náutico, utilizando-se do veículo como plataformade apresentação audio/visual, apresentamos o projeto EME a um grupo de jovens velejadores quefazem parte do IRN e pesquisam energias alternativas e auto-sustentáveis. Os alunos participaram de um debatesobre o EME, atividades marítimas, soluções mecânicaspara transporte, energia e clima da Baía de Guanabara.Parte da oficina foi a participação e documentação deuma 3a performance com a chama marítima, desta vezcom o aluno de elétrica náutica, Rodrigo, que aceitou participar na ação continuativa de sinalização, namargem da Baía de Guanabara. Foi uma ação simbólica da participação do grupo neste movimento de conscientização do meio ambiente.

Também foram realizadas uma apresentação do projetoEME no Instituto Baia de Guanabara, e uma entrevistacom Dora Hess de Negreiros, Presidente do IBG. Ela também aceitou o bastão e capturamos o acionamentonovamente em fotografias e um filme de 60 segundos.

Ida até a praia do Adão e Eva, onde sincronizamos com aartista carioca Thais Medeiros, convidada para acessar oPão de Açúcar em frente a Fortaleza Santa Cruz emNiterói, e apontar sua câmera em direção a praia Adão eEva em Niteroi. O resultado foi um registro da ativaçãoda última chama marítima e o fechamento deste ciclo deperformances em torno da baia de Guanabara.

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É importante destacar que a adoçãodessas medidas somente pode sercompreendida no âmbito da resis -tência realizada com mais intensidadea partir da década de 1990, e protago -nizada por jovens moradores das peri -ferias e favelas de cidades como Rio deJaneiro, Salvador e São Paulo. Essesjovens, em sua maioria negros,mestiços e oriundos das camadasmais pobres da sociedade, imprimiramum caráter novo a um elemento daagenda política dos movimentosnegros que pode ser observado, pelomenos, desde o período pós-aboliçãoda escravidão no Brasil: o acesso àeducação.

Este aspecto deve ser salientado, poisa educação sempre foi um dos princi-pais eixos norteadores de movimentostão distintos como a Frente NegraBrasileira da década de 1930, o TeatroExperimental do Negro surgido nadécada de 1940, ou o MovimentoNegro Unificado da década de 1970.Além disso, sempre foi uma pautaimportante para o movimento demulheres negras que iniciou o seuprocesso de ruptura com o movimentofeminista brasileiro, na década de1980, e que se consolidou na décadade 1990, ao se organizar, principal-mente, sob a forma de organizaçõesnão-governamentais – ONG’s.

Neste sentido, a reivindicação de umacesso mais democrático ao ensinosuperior, principalmente nas universi-dades públicas brasileiras, questionouabertamente a estrutura racista deuma sociedade que, por meio dediversos dispositivos do poder esta -belece novas formas de gestão da vidada população. Esta gestão da vidamaleável, flexível relega grandes

contingentes da população aos maisbaixos estratos da sociedade. Alémdisso, perpetua a existência dessasdesigualdades através de práticas ediscursos que aliam as diferençaseconômicas existentes entre os grupossociais aos estereótipos étnicos eraciais, atribuídos principalmente aindígenas e negros.

Além disso, a resistência organizadaatravés de pré-vestibulares populares,tais como o Pré-Vestibular paraNegros e Carentes – PVNC, a Educafroe a Organização Steve Biko, emborate nham origens distintas e sigamcami nhos, algumas vezes diver-gentes, inova ram ao suscitarquestões relacio nadas ao trabalho, àgestão dos terri tórios, à formulaçãode políticas públicas que não pas-savam necessariamente pelos sindi-catos, partidos políticos ou peloEstado. Seu discurso era centrado emuma concepção de cida dania que deve-ria ser conquistada a partir da organi-zação coletiva e a cultura apareciamenos como reforço de uma identi-dade “racial” ou “étnica” homo gênea,essencialista do que uma afini dadecompartilhada por estes jovens.

A partir desses movimentos, aospoucos foi aumentando o número deuniversidades públicas que ade riam àimplementação das cotas como formade reduzir as disparidades observadasno corpo discente, e o próprio governoformulou algumas políticas, ainda quelimitadas, no sentido de ampliar oacesso desses jovens às universi-dades, sobretudo nas instituições pri-vadas. Entretanto, estas medidas têmsido questionadas maciçamente pelamídia e por grupos que vêem seusprivilégios seculares ameaçados. É

As cotas para negros no ensino superior e Há alguns anos vêm sendo discutidas as reservas de vagas

(mais conhecidas como cotas) para negros nas universidades públicas do país.

As cotas consistem em uma das modalidades das políticas de ação afirmativa

para o combate à discriminação racial (uma das formas de manifestação do

racismo) e são implementadas seja por força da autonomia universitária,

ou através de leis estaduais que conjugam critérios monetários como forma

de aferição da hipossuficiência dos candidatos a critérios étnico-raciais,

dentre outras especificidades observadas em cada caso.

Irmãos de Sangue, de Neiton Nunes das Neves Junior

http://www.flickr.com/photos/arvore1/

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Apesar de esses argumentos

representarem avanços importantes

para a defesa das políticas de ação

afirmativa de combate à discriminação

racial, notadamente, em relação às

cotas para negros no ensino superior,

percebe-se que encontram limites na

medida em que fortalecem os

discursos pautados na moral e, em

última instância, toda uma tradição

da modernidade que se baseia na

filosofia da representação que serve de

fundamento para os discursos contra

as cotas. Além disso, contribuem

para a subsunção da diferença à

identidade na medida em que

reforçam o estabelecimento de

critérios que acabam renovando

os estereótipos fenotípicos e

culturais de certos grupos.

Dessa forma, é preciso pensar aspolíticas de ação afirmativa comoparte de um processo mais amplo deconstituição de uma sociedade dife -rente. Deve-se lutar por estas medidasnão apenas porque se é negro, indíge-na, pobre, mas pelo direito de ser qual-quer coisa que se desejar. É necessárioconquistar e defender o direito à dife -rença para além das identidades quefixam os sujeitos nos seus lugaressociais. O recurso à identidade semprepode ser manipulado no âmbito dosdiscursos e práticas engendradas pelobiopoder. A história já o tem demons -trado de diversas maneiras.

preciso evitar que os pobres, negros emestiços venham disputar os espaçosque sempre foram tranquilamenteocupados por determinados gruposda sociedade. O racismo brasileiro jánão consegue manter sua aparente“cordialidade” (se é que se pode pen-sar em uma equação como essa).

Assim, multiplicam-se as ações judi -ciais questionando a legalidade e aconstitucionalidade das cotas noensino superior brasileiro. O PoderJudi ciário é chamado a se pronunciarsobre o assunto e se aguardaansiosamente a palavra final doSupremo Tribunal Federal, principal-mente após as audiências públicasrealizadas no mês de março desteano, quando foram apresentados osargumentos contrários e favoráveisàs cotas.

Ressalte-se que, no âmbito dosdebates acerca das cotas, são mobi li -zados discursos favoráveis e contrá -rios a essas medidas. No que se refereaos argumentos contrários às cotas,segundo Marcelo Paixão podem serencontradas seis concepções distin-tas: liberal, democrático-racial, nacio -nalista, culturalista contemporânea,funcionalista, marxista e geneticista.Cada uma delas se baseia em pers -pectivas filosóficas que mobilizam amoral como principal fundamento dosdiscursos que pretendem a aboliçãodo sistema de cotas das universidadespúblicas brasileiras.

Em relação ao debate jurídico emdefesa das cotas, são utilizados dis-cursos filosóficos pautados no reco -nhecimento, tal como o de AxelHonneth, que reativa o pensamentodo Hegel da juventude. Ou, ainda, emautores que buscam estabelecer umaconciliação entre reconhecimento eredistribuição a partir de uma ope -ração que retira toda a dimensão éticada discussão, como defende NancyFraser. Outros procuram centrar suadefesa jurídica no âmbito das teoriasconstitucionalistas norte-americanas,como por exemplo, na teoria doimpacto desproporcional e na da dis-criminação de fato.

As cotas para negros no ensino superior e Vanessa Santos do CantoO BIOPODER

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Será que vcs me conhecem?Então digam quem eu souNem queimem as suas cabeçasPois a minha voz não se calouSou Beata de Yemanjá, sou parte dos orixás,E por isso aqui estouEu tenho sede de liberdade, eu não calo não senhorNão me falem em tolerância nem de perdão que eu não doiEu aqui quero dizer, nos respeiteOlhe como a palavra mudouRespeito já existeSó falta quem quera viver na lei e não ser contraventorEu só peço aos ancestraisQue aplaquem a nossa dorEles por natureza respondemA cobrança já chegouSerá que alguém tem medo?Pois se não tem é porque não conhece a força daqueles que ao Brasil chegaramEnquanto isso, eu amamento aqueles que têm fomesem pensar no credoVenham as crianças do morro e das favelas tambémSentem aqui no meu colo e mamem no meu peitoQue dará para mais de 100Os soropositivos, os homosexuais,tanto homem como mulher,eles não pediram para nascerPortanto não tem necessidade de dizer a toda hora quem sãoNão devem nada a ninguém

Lamento dos ancestraisMãe Beata de Yemanjá

Foto de Cláudia Ferreira no IlêOmiojuarô, 2010.

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O debate sobre a política de cotas paranegros nas universidades continua naordem do dia no Brasil. Agora noâmbito do poder judiciário, onde sediscute a constitucionalidade dascotas raciais. Desde 2008, quando doismanifestos foram entregues aoSupremo Tribunal Federal (STF) – umposicionando-se contra as cotas e,consequentemente, contra a constitu-cionalidade, e outro a favor e susten-tando a constitucionalidade das cotasraciais – o debate deslocou-se para aCorte Suprema do Estado Brasileiro.Ou seja, neste momento a definiçãosobre a continuidade ou não das cotaspara negros existentes em dezenas deuniversidades brasileiras está nasmãos dos ministros do STF, aos quaiscaberá a decisão sobre a constitu-cionalidade de tais políticas. DuasAções de inconstitucionalidade trami-tam naquela casa e o debate oficial foiaberto nos últimos dias 3, 4 e 5 demarço, com a Audiência Pública pro-movida pelo STF para ouvir represen-tantes de vários segmentos dasociedade. O que está em debate, por-tanto, não são as cotas em geral, masas cotas para negros. Há, inclusive,entre os detratores das cotas raciaisquem defenda a constitucionalidadedas chamadas cotas sociais.

Em novembro de 2009, o Tribunal deJustiça do Rio de Janeiro, por ocasiãode uma Ação semelhante impetradapelo Deputado Estadual FlávioBolsonaro contra a Lei Estadual queinstitui reserva de vagas nasInstituições Estaduais de EnsinoSuperior (Lei 5346/2008), considerouque a lei não fere nenhum princípioconstitucional. Por maioria de votos,os desembargadores acompanharama posição do desembargador SergioCavalieri, relator da ação direta deinconstitucionalidade, para quem a Leiaprovada pela Assembléia Legislativado Estado do Rio de Janeiro não fere oprincípio da igualdade. A decisão doTribunal de Justiça do Rio de Janeirofoi muito importante, pois se tornauma das referências para a decisãoque agora cabe aos ministros do STF,em julgamento a ser marcado.

Nesse contexto, surgiu um expressivomovimento em favor da manutençãodas cotas para negros nas universi-dades que já adotam a medida. Trata-se da campanha intitulada “Afirme-se” (http://afirmese.blogspot.com),que, segundo o site da campanha,propõe “uma ação nacional de mídiaem defesa das políticas de ação afir-mativa no Brasil, em vistas doSupremo Tribunal Federal (STF) terpautado para a partir de 5 de marçode 2010 a discussão sobre a sua cons -titucionalidade”.

A intenção é divulgar na grande mídia

posicionamentos favoráveis às políti-

cas de cotas, em contraponto aos

ataques que tais políticas têm siste -

ma ticamente sofrido com o apoio

explícito de toda a grande mídia

nacional. Nessa perspectiva, a cam-

panha “Afirme-se” arrecadou recursos

para veicular em quatro grandes

jornais um manifesto em favor da

constitucionalidade e justiça das

cotas para negros.

Entretanto, a direção do jornal OGlobo, depois de ter acesso ao conteú-do do Manifesto, e após ter apresen -tado para a Agência Publicitária queproduziu os conteúdos da campanha ovalor de R$ 54.163,20 para a publi-cação, decidiu que somente publi cariapelo valor de R$ 712.608,00 (valormais de 1000% maior que o valor nego -ciado com a Agência Publicitária),numa flagrante atitude antidemocrá-tica e de violação ao princípio de liber-dade de expressão, posição que opróprio jornal, dentre outros, dizdefender. Diante dessa atitude, umarepresentação contra o jornal O Globofoi protocolada, no dia 8 de março, noMinistério Público do Rio de Janeiro.

Como é possível notar, apesar dasexperiências existentes em várias uni-versidades, o debate sobre as políticasde cotas para negros nas instituiçõesde ensino superior ainda causa muitapolêmica e disputas. Mas, é importantelembrar que a proposta de cotas paranegros nas instituições de ensino supe-rior é uma proposição do MovimentoSocial Negro que se insere no bojo deque denominamos políticas de açãoafirmativa, ou seja, políticas públicas einstitucionais cujos objetivos são com-bater a discriminação, reduzir desigual-dades, promover igualdade de oportu-nidades e de condições objetivas depresença e participação de grupossociais discriminados e marginaliza-dos em espaços de decisão e produçãosocial. As ações afirmativas buscam apromoção da diversidade (étnico-racial,de gênero, sexual, etc.) nos espaços einstituições em que são desenvolvidas.Em relação à universidade podemossupor, pela importância que essa insti-tuição possui na sociedade, os efeitossócio-culturais das cotas raciais, ouseja, a contribuição da política de cotaspara negros na forma com que asociedade em geral se relaciona comnegros e negras, e na forma com quenegros e negras se percebem nasociedade, na medida em que maisnegros e negras passem a ocuparposições estratégicas e de tomada dedecisões, nas empresas, no Estado eem outros setores da vida social.

As políticas de ação afirmativa, e entreelas as cotas para negros, inserem-senuma perspectiva de democratizaçãode direitos e de produção de novasrelações sociais. É o que parecemdemonstrar as informações dispo-níveis sobre os efeitos já produzidospelos programas de cotas já existentesem várias instituições de ensino supe-rior no Brasil: maior número de estu-dantes universitários negros, maiornúmero de negros em posições e ematividades em que antes dificilmentetinham presença, novos temas deestudos e pesquisas, maior importân-cia dada ao tema da promoção daigualdade racial por diversas institui -ções públicas e privadas, entre outros.

O atual debate sobre a política de cotas para negros nas universidades

Universidade Nômade 31 GLOBAL

Alexandre do Nascimento

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GLOBAL 32 Universidade Nômade

é um direito humanoBolsa Família Marina Bueno

Estruturado em eixos básicos que su -ge rem objetivos estratégicos e açõesprogramáticas, o Plano Nacional deDireitos Humanos fez emergir um solofértil para as discussões em torno dacidadania e democratização dos direi -tos. Mesmo tendo sido formulado apartir de intensos processos participa-tivos desenvolvidos nos estados – con-ferências livres, regionais, distritais,municipais e pré-conferências – o quelhe confere o mérito da democráticaconstrução, o PNDH levantou umasérie de abordagens que o acusaramde promover uma “ditadura velada dis-farçada pelas palavras”.1

O Instituto Millenium, instituição ultra-conservadora sem fins lucrativos, quediz se apoiar em valores como defesada democracia, igualdade perante a leie estado de direito – valores que temsido divulgados em sua missão institu-cional – tem propagado uma série decríticas ao PNDH, que vão na direçãodo seu esforço de contribuir na for-mação da opinião pública, com o obje-tivo último de atacar o governo.

Em recente nota publicada com o obje-tivo de organizar uma passeata contrao PNDH-3 que ocorreu no dia 28/02 nobairro do Leblon, o Instituto elencoualguns pontos do Plano, considerados“riscos que as liberdades individuaiscorrem”, entre eles a previsão deexpansão do programa Bolsa Família.De acordo com o Instituto, a ampliaçãodo programa significa o aumento dosimpostos sobre a classe média “parafinanciar o maior programa de comprade votos já visto neste país, que criadependência em vez de dar dignidadeatravés do trabalho”. E conclui brilhan -temente: “os verdadeiros direitoshumanos são garantir a propriedade pri-vada, as liberdades individuais básicas,o direito de cada um buscar sua própriafelicidade sem a coerção do Estado”.

Vindo de onde vem, não há estra -nhamento algum. O que é lamentável éque este discurso ganhe eco atémesmo no interior de alguns segmen-tos da esquerda. As idéias de que BolsaFamília é esmola, de que pobre évagabundo e de que a classe média éonerada com o suor de seu trabalhopara sustentar políticas assistencia -listas que só visam angariar votos dasclasses populares que pensam com oestômago são facilmente propagadasentre diversos setores da sociedade,sendo reproduzidas e legitimadas porpessoas que acreditam estar ao lado dademocracia e defesa de direitos. É poreste tipo de abordagem, constante-mente reproduzida pela elite midiática– que tem o poder de formar opiniões –que grande parte da população nãoentende o Programa Bolsa Famíliacomo parte dos direitos humanos.

Com efeito, o programa carregaequívocos que precisam ser supe -rados, mas estes não são representa-dos por aquilo que se tornou um lugarcomum nas críticas a ele dirigidas: asnecessárias portas de saída e o deses-tímulo ao trabalho. Ao contrário, oBolsa Família precisa de mudançassim, mas elas devem ir em direção àuniversalidade e incondicionalidade deuma política que está no bojo de umanova geração de direitos, entendidosnão como um discurso vazio dedemocracia, mas como garantias con -cretas. O que precisa ser reformuladopara que o programa seja efetivadoneste âmbito são suas regras rígidas eseu perfil estigmatizante, caracterís -ticas estas amplamente defendidas poruma elite fascista que tenta nos impor(e tem conseguido) determinadosmodos hegemônicos de pensar e viver,conferindo ao beneficiário do BolsaFamília a condição de um pobrevagabundo, que prefere uma esmola àum trabalho “digno”.

Esta abordagem, que pretende pro-duzir na sociedade um sentimento derecusa não só ao Bolsa Família, masem relação a qualquer política volta-da aos pobres, eternamente acusadade promover assistencialismo barato,conjuga pelo menos três objetivos:um objetivo econômico – fazer opobre aceitar trabalhos degradantese precários por meio da cultura daética do trabalho (o trabalho quedignifica o homem!); social – reduzirdireitos e impedir a conquista deoutros, ganhando a legitimação dasociedade nesse processo, através dareprodução de um discurso que con-fere ao pobre uma condição de“inimigo” (vagabundo, responsávelpela alta dos impostos e falência doscofres públicos, violento, não mere-cedor...); e político – controlar ospobres, reduzindo qualquer trabalhonão formal à condição de precário(sem direitos, embora hoje seja reali -zado pela maior parte da populaçãodo país).

A pobreza é assim representadacomo perigosa, politicamente fraca,desorganizada etc., com o objetivo demanter o pobre adormecido para aluta, controlando sua potência. Asconsequências dessas represen-tações impedem que o problema sejaatacado em sua real dimensão, alémde estimular a manutenção doquadro de desigualdade social exis-tente no país. E é por isso que é pre-ciso dizer: Bolsa Família é um direitohumano sim.

1 Cristina Camargo, membro daequipe executiva do InstitutoMillenium, em artigo intituladoPanfleto contra o PNDH-3, publicadono site da instituição em 22/02/2010.In: http://www.imil.org.br/blog/panfleto-contra-o-pndh-3.

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Universidade Nômade 33 GLOBAL

Palimpsesto 2, de Rodrigo F. de Cristo, 2009.Fotos de Alessandra Giovanella.www.saladobradica.blogspot.com/

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GLOBAL 34 Universidade Nômade

SOBRE O PROGRAMA DE DIREITOS HUMANOS

Apesar de todos os ataques feitos pela grande imprensaao 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, a verdadeé que ele não difere muito das outras duas versões publi-cadas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso,como alguns jornais tiveram que admitir11. E, ao contráriodo que foi amplamente divulgado, o Programa não é fruto“ideológico” do gabinete do Presidente Lula, mas resulta-do do encontro de 14 mil pessoas em 137 conferênciasregionais e temáticas, incluindo a Conferência Nacional deDireitos Humanos, em 2008. Como explicou o MinistroPaulo Vannuchi, 31 ministérios foram consultados sobre oPrograma, cujo texto ficou aberto a sugestões no site dogoverno por quatro meses22. Sobre um dos pontos quesurge como novidade em relação aos demais Programas –referente à criação da Comissão da Verdade – Vannuchiexplicou que o 3º. PNDH não permite a revogação da Leide Anistia, nem implicará a perseguição criminal de qual-quer pessoa. O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro,responsável pela política de Direitos Humanos no governoFernando Henrique e pela edição do 2º PNDH – agora umdos indicados para integrar a recém criada Comissão daVerdade – explicou que a criação dos Programas deDireitos Humanos decorre de um compromisso que oEstado brasileiro assu miu na Conferência Mundial deDireitos Humanos de Viena, em 199333. Defendendo ositens do Programa que dizem respeito à sua área, oMinistro de Desenvolvimento Agrário esclareceu nos jor-nais que muitas das medidas para a resolução de conflitosagrários previstas no Programa já estão sendo praticadaspelo governo, com resultados bastante positivos44.

Mas, se todos esses esclarecimentos foram feitos, comoentender a reação histérica da imprensa? Se o Programanão contraria nenhum dispositivo legal ou constitucional ese ele está legitimado em processos amplamentedemocráticos que promoveram centenas de encontros econsulta a trinta e um ministérios, qual a razão de campa -nha tão violenta por parte da mídia? Certamente a disputaeleitoral é um dos motivos – especialmente porque aspesquisas têm apontado o crescimento das intenções devoto na candidata do Governo – mas não é o único.

A “polêmica” a respeito do 3º Programa Nacional deDireitos Humanos tornou-se importante tão logo a impren-sa viu nela um pretexto para ataques ao governo. Se ini-cialmente os jornais não deram muita atenção à publicaçãodo 3º PNDH – a Folha de São Paulo, por exemplo, preferiunoticiar o fato de Dilma não estar usando peruca55– imedia -tamente após os comandantes militares terem ameaçadopedir demissão66, o assunto não deixou as pautas. Somentena Folha, no período de um mês (30/12/09 a 30/01/2010),foram pelo menos quarenta e sete textos, dentre artigos,colunas e reportagens dedicados ao assunto. Um númeroconsiderável, levando-se em conta que o tema “direitoshumanos” não costuma receber tanta atenção da mídia.Nenhuma das vinte e sete conferências estaduais deDireitos Humanos, tampouco a 11ª. Edição da ConferênciaNacional de Direitos Humanos receberam qualquer mençãonos jornais.

A violência da mídia conservadora é proporcional

ao vazio de seu projeto e à radicalidade

dos programas sociais do Governo Lula

Fabrício Toledo

3o

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Universidade Nômade 35 GLOBAL

SOBRE O PROGRAMA DE DIREITOS HUMANOS

Frente às mudanças promovidas pelas políticas sociais doGoverno Lula, a mídia confronta o vazio de seu projeto con-servador e recorre a discursos violentos. Só isso podeexplicar que o jornal O Globo, em editorial, classifique de“golpe” o trabalho ativo de 14 mil pessoas reunidas em 137encontros. E somente o pânico das elites pode explicar queo jornal acuse o governo de “golpista” porque usa de“assembleismo” para propor as ações que permitem a uma“minoria” decidir por assuntos importantes, atropelando o“regime de democracia representativa”77. Este desesperoexplica que a Folha tenha cunhado o termo “ditabranda”para se referir à ditadura militar88 e resista a qualquer medi-da que possa significar esclarecimento do que aconteceudurante aquele período.

Quando o assunto é cotas para negros, por exemplo, asempresas Globo são agressivas e autoritárias em suas con-testações. Afirmam que as cotas colocam em questão a“real igualdade entre os brasileiros” e a “competência dosprofissionais a serem formados na universidade”99. Ohomem mais importante do jornalismo na TV Globo afirmacategoricamente que o “racismo não é um traço dominantede nossa identidade nacional”1100. E, a despeito das estatís -ticas que revelam a cor negra da massa carcerária e das víti-mas de violência fatal, o jornalista diz que “nossoarcabouço jurídico-institucional é todo ele a-racial.

É o mesmo tom reacionário que se viu no julgamento dorefugiado italiano Cesare Battisti pelo Supremo TribunalFederal. A grande imprensa foi unanimemente contra orefúgio concedido pelo Ministro Tarso e esbravejava porsua extradição. Ignorando completamente as mínimasgarantias fundamentais previstas na legislação em favordos refugiados, a imprensa e os partidos conservadoresaproveitaram o caso Battisti para atacar o avanço político esocial que o Governo Lula promove e para legitimar o STFem seu “golpe de estado”.

A crise produzida e ampliada pela mídia obrigou o governoa fazer significativos recuos, principalmente porque emtempos de disputa eleitoral era preciso esvaziar os argu-mentos dos adversários. Em relação ao aborto, tema objetode crítica por parte da Igreja, o governo alterou o Programa,retirando o trecho que falava na “autonomia das mulherespara decidir sobre seus corpos”. Aparentemente insignifi-cante, esta mudança constitui grande perda para o movi-mento feminista. Outro recuo ocorreu no item que trata daComissão criada para apurar as violações ocorridas duranteo período 1964-1985. Os militares reivindicaram isonomiano tratamento a ser dado pela Comissão, a fim de que elainvestigue não apenas os atos dos agentes do Estado, mastambém as ações realizadas pelos militantes da esquerda. Ogoverno conseguiu negociar uma alteração “semântica” notexto suprimindo a expressão “repressão política”.

A gritaria contra o 3º. PNDH – a exemplo da gritaria contraBattisti, contra as cotas, contra o Bolsa-Família ou contra oaumento do salário mínimo – portanto, se explica menospela radicalidade do Programa e mais pela força dosavanços sociais promovidos pelo governo Lula, principal-mente em termos de diminuição de desigualdade e pobreza.A mídia conservadora berra não tanto por causa das açõesprevistas no Programa, mas porque as atuais políticas dedistribuição de renda estão mudando profundamente osprocessos produtivos. A radicalidade consiste no fato deque a política social do governo Lula não apenas reduz adesigualdade, mas também mobiliza o trabalho e criariqueza1111.

1“Planos de Lula e FHC têm pontos em comum”, Folha deSão Paulo, 12/01/2010.2“Críticos tiveram quatro meses para mudar projeto, dizVanuchi”, Folha de São Paulo, 09/01/2010.3“Paulo Sergio Pinheiro pede a Arthur Virgílio que leia osPNDHs”. A entrevista pode ser ouvida no site da rádio CBN(cbn.globoradio.globo.com) e a transcrição pode ser lida emblogs como, por exemplo, http://www.viomundo.com.br.4“Sem medo dos direitos humanos”, Guilherme Cassel,Tendências e Debates, Folha de São Paulo, 26/01/2010. 5 “Após quimioterapia, Dilma aparece pela 1ª vez de cabelocurto.”Folha de São Paulo, 22/12/2009.6 “Contra ‘Comissão da Verdade’, comandantes ameaçamsair”. Folha de São Paulo, 30/12/097 “Subjugação”, O Globo, 09/02/2010.8 “Limites a Chávez”. Folha de São Paulo, Editorial, 17/02/09.9 “Cotas e o STF”, O Globo, 26/02/2010.10 “Racismo na mídia”, Ali Kamel, O Globo, 08/03/2005.11 Cocco, Giuseppe. “Que os pobres louvem os pobres”,Folha de São Paulo, 11/12/2009.

QUE de Daniel Retamoso, Elias Maroso e Gabriel Araújo, 2009.Foto de Alinne Zucolotto.www.saladobradica.blogspot.com/

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GLOBAL 36 Maquinações

A uma cultura contemporânea agre-gadora de múltiplas linguagens ediversidade de expressões deve corres -ponder uma política de Estado tam-bém contemporânea, livre da tradiçãodos modelos de gestão autoritários ecentralizadores. Estamos diante de ummomento histórico único onde as sedi -mentações ideológicas convencionaispassam por reformulações concei -tuais, quanto à forma de abordagemda questão cultural e novas estraté-gias para implementação de ações.Não é mais possível a elaboração depolíticas articuladas sem a partici-pação da sociedade e dos setores pro-dutivos da área cultural. Está cada vezmais evidente que o conhecimentosobre as diversas áreas do fazer cul-tural e as forças criativas que o poten-cializam tornam-se mais determi-nantes que as fórmulas de gestão cul-tural. Aliar criação e gestão, conheci-mento e liderança é a única alternativapara o desenvolvimento de uma políti-ca cultural arrojada, correspondente àrica natureza de sua multiplicidade,referenciada na liberdade e natransterritorialidade das expressõesque convivem no mesmo território,simultaneamente, portanto.

Lidar com uma concepção de cultura,que incorpore todos os segmentos dasociedade, com todas as contradiçõesnecessárias para sua expressão, com-preende perceber que esta mesmasociedade deve ser a beneficiáriamaior e que o produtor cultural, aíincluídos todos os mecanismos decriação e produção – que a mobiliza ea sensibiliza – para tomada de cons -ciência de que a cultura poderá, noBrasil de hoje, constituir um outro cicloeconômico. Agora é ainda o momentode refletir e debater, demo crati ca -mente, as idéias e as propostas que aviabilizem. É ainda o momento de correrriscos e perder o medo dos equí vocos,naturais aos momentos de grandetransformação. Aparelhar as insti tui -ções para esta tarefa significa consi -derar que todos têm o direito de opinare propor alternativas, descobrir mode-los adequados para cada realidade, emum universo de muitas realidades.

Os conceitos sobre arte pública prati-cados convencionalmente estão emtransição, da simples disponibilizaçãopara a participação e interação, para odiálogo com o público usuário oufruidor. Propostas temporárias e efê-meras são cada vez mais exercidas,sem excluir as que conquistaram suapermanência. As idéias e linguagensaté há pouco tempo consideradas eli -tistas ou herméticas, ao serem dispo-nibilizadas estão provando o con-trário. Apresentam maior número deinterpretações e maior potencial trans-formador. Assim como a arte popular,as linguagens mais experimentais sãocompreendidas e absorvidas comfacilidade, apresentando múltiplosdesdobramentos. Os terri tórios inter-mediários entre as formas de manifes-tação estão se reduzindo para formarum único campo expressivo, sem quecada um perca sua natureza e especifi-cidade. É um fenômeno que sempreocorreu, mas que agora, diante dasnovas ferramentas de comunicação,está acontecendo em grande escala.Não se trata de criação de novidadespor segundo, mas de abrir a “caixapreta” da memória de infindáveisexperiências e realizações que aindapermanecem na história cultural detodo indivíduo e de toda sociedade.

ARTE / ESTADOXico Chaves

Será o Estado capaz de afirmar

seu próprio questionamento?

Se for realmente democrático,

sim.

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Maquinações 37 GLOBAL

Abrir ainda outras caixas e esferas,que estão sendo gestadas e produzi-das em inúmeras atitudes e pensa-mentos. A interpretação antropológicade cultura como propriedade ganhacada vez mais novas contribuições epassamos a identificá-la, de fato, emtodos os campos da atividadehumana. A civilização contemporânea,se a pudermos classificar assim, com-preende um infinito universo de com-portamentos autônomos e coletivos,contraditórios, em movimento.

ARTE / ESTADOO Estado deve estar preparado paraestimular essas manifestações dediferenças, sair de sua tradição cen-tralista, voltada para o controle finan-ceiro necessário, e compreender quetrabalhar com a questão culturalexige outro comportamento, maisfluido, em expansão. Está-se lidandocom a liberdade de expressão, com anossa base existencial e comporta-mental que, ao fazer parte das forçasprodutivas, extrapola a análise carte-siana, incorpora os valores simbóli-cos. Pelo fato de não termos aindamapeado todos os componentes for-madores do nosso imaginário, tarefaimpossível, cabe-nos a responsabili-dade de, pelo menos, identificar asprincipais matrizes de nossa for-mação cultural para nos lançarmos àtarefa de transformar as estruturas decontrole e poder. Criar um sistemaque realmente corresponda a nossatradição de livre expressão e ação. Asformas convencionais de controlecristalizaram, por muito tempo, con-ceitos já obsoletos. É possível eurgente seu degelo e seu reaproveita-mento em modelos mais dinâmicos ecompatíveis com as transformaçõesque estão ocorrendo e com as queocorrerão, em maior frequência evelocidade.

O Estado não pode ficar a reboque dasconquistas da própria sociedade, devedesempenhar o papel de liderança. Acultura é seu estandarte simbólico eestratégico. Ele não pode mais seguraro processo revolucionário, deve, aocontrário, ser seu principal catalisador,abrir as portas das novas dimensõesdo conhecimento e da expressão. OEstado e os governos devem se cons -cien tizar de que os processos culturaisnão se deixam aprisionar, são aomesmo tempo tradição e transgressão,atuam dentro e fora dos limites for-mais, são livres demais para seremdirigidos. Uma política de Estado paraa Cultura deve considerar sua autono-mia plena. A arte é libertária pororigem e tradição, contesta o própriosistema que a assimila, em seu núcleoe periferia. Renega o autoritarismo ereconfigura os marcos regulatórios; secontradiz e se contrapõe a qualquersistema absolutista ou legitimista.Obedece aos parâmetros de livre asso-ciação e circulação, vinga e cresce emsolos de liberdade absoluta. Surpre -ende as previsões, transita entre o pen-samento e a prática, entre o popular eo erudito, o real e o imaginário, o obje-to e o não-objeto. Será o Estado capazde afirmar seu próprio questionamen-to? Se for realmente democrático, sim.

Aparelhar as instituições

para esta tarefa

significa considerar que

todos têm o direito de opinar

e propor alternativas,

descobrir modelos adequados

para cada realidade,

em um universo

de muitas realidades.

Sem título, foto de Márcia Baldissara, 2009.

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GLOBAL 38 Maquinações

Nossa história vai por aí,

entre erros e acertos ou,

para usar uma expressão retirada

de uma conversa entre

Elisa de Magalhães e

Joel Rufino dos Santos,

movida por uma ética flutuante.

Durante a Segunda Guerra, o excelentepoeta Ezra Pound escolheu ficar ao ladodo fascismo e criou um programa naRádio Roma no qual exortava os norte-americanos a passarem para o lado deHitler e Mussolini, além de fazer propa-ganda anti-semita. “Falando democrati-camente, ele é um calhorda, mas em ter-mos acadêmicos é um belo exemplo deum americano totalitário”, disse a seupróprio respeito. No ensaio “Poundradiotraidor”, publicado no livroEntreouvidos, Stephen Berg escreve:“Numa ‘brincadeira séria’ LeonardDoob (organizador do volume de trans -crições das emissões) chama os discur-sos de ‘Cantos dos pobres’, já que nelesse encontram tantos elementos domagnum opus poundiano. Rejeitamosesta percepção, pois, na verdade, osdiscursos constituem uma leituradolorosa e perturbadora”.

Esta última frase detecta um problema, como se a obra não pudesse ser impregnadapelo caráter do artista. Ora, a impregnação é, cada vez mais, parte do fazer artístico.Por mais doloroso que seja.

2010 é um ano de eleição no Brasil, quando se vai votar pela escolha de um novopresidente. Quando artistas assumem posições políticas publicamente é um bomsinal, já que há tempos, poucos são os intelectuais que assumem posturas participa-tivas no processo de transformação pelo qual passa o país. Todavia, não é possívelignorar que alguns artistas estão apoiando candidatos cuja campanha é feita pelo par-tido representante do pensamento conservador, candidatos que cometeram“deslizes”, mas fizeram “autocrítica” e por isso “estão perdoados”, partido queexpulsou um de seus membros porque foi pego em flagrante de corrupção. Mesmode roupa nova, o DEM continua o mesmo PFL do falecido Antonio Carlos Magalhãese de Bornhausen. Os tempos de hoje são cínicos e de moralismo perigoso.

Em O Estrangeiro de Camus, o protagonista, apesar de matar um árabe, é julgadopor não demonstrar emoção com a morte da mãe. Os apoios hoje se revestem deaparência crítica ética, mas, na verdade, são um disfarce moralista, cujo certificadode garantia é dado pela suposta integridade do artista.

Aqui, não se trata da oposição de esquerda massacrada pelo stalinismo na Rússia,após a morte de Lênin; também não é o papel do artista defendido por WalterBenjamin, nem o do intelectual orgânico de Gramsci, ou das divisões propostas porNorberto Bobbio (cf. Antonio Ozaí da Silva):

“1. Há os que consideram que os intelectuais não devem se envolver com a política edevem se restringir à tarefa eminentemente espiritual, isto é, os intelectuais são vistosenquanto guardiões dos princípios e valores universais;2. Há os que defendem que a tarefa do intelectual é teórica, mas também imediata-mente política, pois a ele compete elaborar a síntese das várias ideologias que possi-bilitam novas orientações políticas;3. Outros, concordando com a postura acima, imaginam que cabe ao intelectual afunção de educar as massas;4. E, por fim, os que defendem que a tarefa do intelectual também é política, mas asua política não é a política ordinária dos governantes, mas a da cultura, e é umapolítica extraordinária adaptada aos tempos de crise”.

Wilton Montenegro

Page 41: Revista Global Brasil 12

Mesmo um artista que não venda obrafísica, para produzi-la ou expô-la temque ter algum tipo de inserção no mer-cado e, assim, ser parte integrante dessemercado. A obra de arte não perderá porisso necessariamente o seu potencialcrítico e/ou reflexivo, mas continuaráimpregnada por tudo o que o autor dizou faz. Ao metamorfosear-se nela, serárequerido um duplo exercício: virtuose evirtuoso – habilidade e modo de ser –poiésis e ethos.

Isso não significa que todos devam sermoços bem comportados, mas que têmduplo papel na sociedade: o primeiro é ode ser parte do conjunto e reconhecer-secomo um ser comum entre os mortais,fazer parte do general intellect; e osegundo é reconhecer-se como produtorde pensamento capaz de produzirmudanças, pequenas mudanças, quefazem esse conjunto andar mais oumenos rápido, “fazer ressoar o Intelectoem sua condição de vocação” (PaoloVirno aprofunda o assunto no livroVirtuosismo e Revolução).

É preciso

misturar-se à multidão

e buscar formas novas de agir.

Ao invés, cremos que o papel do artista hoje é determinado pela posição que eleocupa no mercado de trabalho. Sua obra de arte é uma commodity. Suas manifes-tações públicas revelam o que se esconde, ou, para usar as palavras de Badiou “aquilodo qual não se fala, a não ser para dar forma ao não-dizer no palavreado das conde-nações [...] estrutura totalmente aquilo de que se fala; pois é necessário preencher aslacunas e deformar todo o encadeamento para que nele possam entrar os signifi-cantes desse escamoteamento”.

A postura moralista disseminada pelo mundo intensificou-se desde o fim do séculoXX, foi reforçada pelo advento da AIDS e pela expansão do conservadorismo muçul-mano; obteve fôlego extra no Brasil com o crescimento dos evangélicos e com cam-panhas tipo “Basta” ou “Fora Sarney”, conduzidas por uma grande parte da classemédia incomodada pela corrupção que, de fato, ameaça sua estabilidade, já que põea nu a sua prática de pagar subornos a guardas, burlar o pagamento de impostos,desvalorizar o trabalho alheio. Na verdade, a divulgação da corrupção incomodamais do que a própria.

A obra-de-arte-mercadoria transformou boa parte dos criadores. O mercado tornou-se uma vaca sagrada, um intocável. Nesse processo de moralização pelo qual passao mundo contemporâneo, a preservação da obra vira obsessão para muitos, a talponto que alguns têm que se transformar em grife. O artista, ele próprio, metamor-foseia-se em commodity, traveste-se como um cordeiro em silêncio. Seu rugido, aospoucos, é ouvido quase como um balido.

Há algum tempo o crítico Paulo Sérgio Duarte defende a obra de arte comocommodity. Os valores alcançados nos leilões, especialmente nos internacionais,corrobora a afirmação dele. Tanto a aura do único, quanto o objeto reproduzidoem série, mantêm valores elevados, muitas vezes independentemente da quali-dade. Se essa inserção da arte no mercado é verdadeira – e eu acredito nisso – osartistas vivos (e até seus herdeiros ou colecionadores) buscam um maior controlesobre as obras, não permitindo um grande afluxo delas para tentar regular avelha lei da oferta e da procura. O mercado move-se por si só. Resta ao artista,portanto, tentar preservar a integridade do objeto, preservando a própria integri-dade: ao tornar-se ele mesmo a obra, qualquer ação ou declaração que faça é, elamesma, parte impregnada nessa obra – junto com todas as suas grandezas evilezas: obra é percurso.

DA (EST)ÉTICA, DO ARTISTA

Sem título, foto de MMáárrcciiaa BBaallddiissssaarraa, 2009.

Maquinações 39 GLOBAL

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GLOBAL 40 Maquinações

Deslocar-se de um lugar a outro.Encontrar o que não se conhece.Aprender sobre o que não se sabe.Num percurso dentro de uma mesmacidade, muitas cidades são atraves-sadas, e nos caminhos que poderiamser empecilhos, os desafios evitadospelo medo reaparecem como atalhosque levam à aprendizagem e ao afeto.Levam ao encontro de verdadesdesvendáveis principalmente por queprescindem de olhos nus, sem pré-conceito para encontrá-las. Levam daaproximação primeira à confiança deuma cooperação. E nessa anti-fórmulado encontro, de repente um percebeque foram extravasados os limites dis-postos em editais, a cidade se renomeiade outros tantos lugares e se vê maispelo avesso do que a realidade primeirapoderia esconder.

Em mais ou menos seis meses do anode 2009 desenvolvi um projeto emparceria com o Museu da Maré no Riode Janeiro. Contemplado no EditalInterações Estéticas – ResidênciasArtísticas em Pontos de Cultura paraacontecer no Museu – um dos tantossetecentos Pontos de Cultura que exis-tem no Brasil. O objetivo do Edital eraviabilizar o cruzamento de produçõespoéticas entre artistas e os pontostomando dois conceitos-chave parapropor os cruzamentos: residência eintervenção. Uma enormidade de for-matos distintos podem hoje ser obser-vados como resultado dos projetoscontemplados, dos quais essa experiên-cia é mais um fragmento. Considerandoque a promoção dos encontros pos-síveis produzia também desencontros,me parece interessante demarcar umdebate: de que forma a aproximaçãocom iniciativas não-artísticas tomadasno âmbito de plasticidades e visua li-dades provoca o atrito entre não só lin-guagens, mas expressões, lutas e novosencontros sociais, e nos desafiam amediar uma dita “captura” no campo dasartes contemporâneas na atualidade?

Minha “residência” no Museu da Maréaconteceu com a descoberta de umArquivo. Dona Orosina Vieira, uma dasprimeiras moradoras do Morro doTimbau, nomeia esse arquivo formadodo Projeto Rede Memória do Centro deEstudos e Ações Solidárias da Maré(CEASM), organização não-governa-mental atuante no bairro há treze anos.A iniciativa que estimula a memória apartir de “documentos” coletados alimesmo, cujos atores responsáveis poragregar a informação são os própriosmoradores do bairro: atores das ações,das narrações e das memorações plas-madas nas cartas, escrituras, foto-grafias, filmes, livros, dissertações,objetos e toda sorte de documentos quetemos hoje à disposição para escrevernovas e atuais histórias da Maré. AONG estruturou este projeto dememória que acumulava a experiênciade anos anteriores como o projeto TVMaré realizado no final dos anos 80 queregistrava narrativas locais da históriada Maré; muito diferente dos poderespúblicos que se responsabilizam porreter informação histórica e produzirnarrativas oficiais dos territórios, povose culturas. A identidade comum“mareense” é algo ainda em processona Maré causada pela excessiva segre-gação, visto que a região da Maré é,junto com o Jacarezinho e o Complexodo Alemão, uma das três regiões maisvitimizadas pela atuação do tráfico e dapolícia no Rio de Janeiro.

De minha parte, havia uma urgência detrazer a público um pesquisa em arte noBrasil tomada na forma de um arquivo,o Arquivo de emergência, uma situaçãode pesquisa para produções artísticasrealizadas desde meados de 1998. O

objetivo central é criar uma situaçãodiscursiva para eventos e estratégiaspromotores de um debate crítico sobreseu acontecimento, ativando umaesfera pública. O arquivo aconteceentão como iniciativa também educati-va, cujas trocas sobre o acontecimentodo artístico é o seu próprio mote. Asexperiências anteriores de “exposição”deste arquivo haviam me mostrado quemais do que uma exposição, criar uma“situação” poderia ser mais interes-sante. Neste sentido realizamos tal“laboratório” de arquivos que possibili-tou encampar uma experiência operan-do nas ações constitutivas dos arquivos(o que é e como se forma um arquivo?)e seus usos (a quem interessa e quaissão os modos de uso dos arquivos?).

Como experiência deste tal “labo-ratório” foram desenvolvidas diversasações pautadas, sobretudo, nas conver-sas com os agentes do arquivo ADOV:Luiz Antonio de Oliveira, MarliDamascena, Antonio Carlos PintoVieira, Marcelo Vieira e Markito Fonseca(estes últimos envolvidos na concepçãoda cenografia do Museu). As atividadesdesenhadas contemplaram um Grupode Pesquisa em Artes (dedicado aoestudo e à investigação de práticasartísticas e criativas e sua relação com asociedade) e que tinha textos doArquivo de emergência como base deestudo; atividades desenvolvidas porartistas convidados (Elisa Castro, GugaFerraz e Tiago Rivaldo); Conversas comArquivos, realizadas quinzenalmentecom artistas e pesquisadores convidandoum profissional atuante na Maré (LeonDiniz, Soraia Britto e FranciscoValdean); e a exposição final do projeto,chamada “Arquivos do Presente +

Arquivos de emergência:

[1] Minha proximidade com a Marécontudo, não acontecia apenasatravés do Museu diretamente, mas sim com a participação em um centro social ou alternativo quealugamos durante um ano.

[2]http://arquivosdopresente.wordpress.com/grupopesquisa/cristinaribas/

[3] Grande parte do material produzido e mobilizado pelo projetoArquivos do Presente foi doado aoarquivo ADOV e pode ser consultadona Casa de Cultura e Museu da Maré.

Cristina Ribas

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Maquinações 41 GLOBAL

Arquivo de emergência”, apresen tandomateriais documentais e críticos dasações desenvolvidas, e o próprioArquivo de emergência.

Me interessava intensificar as atividadesdirigidas ao público em consti tuição, demodo que a aproximação com tal “arte”atual existisse como investimento na cri-ação e na descoberta. Repensar a palavra“aprendizagem” se tornou importante, etambém aquela noção incessante depesquisa como investigação de um con-texto e da arte como lugar de aconteci-mento para animar essa atualização.1Serviam referências de projetos seme -lhantes que aliam arte e sociedade, e abusca por um noção equilibrada derespeito à realidade local (ética), acom-panhado de festejos inaugurais de umaarte “política” ou “relacional”. Naobservação destes trânsitos de signifi-cação e por que não de captura entre acidade oficial e a cidade em descoberta,percebi que era necessário entender osproblemas escusos e ver de que formacolaboram ou não no próprio aconteci-mento do projeto ou tanto nos cansamao ter que desviar dos instrumentos queobservam o Museu e esse “lugar” comofresco e novo território a ser “ocupado”pela “arte contemporânea” sem propor,contudo, uma análise crítica dos modosde acontecimento dessa cooperação.

Neste sentido relato um pouco do tra-balho de intervenção “Quais são as suasrespostas?” realizado por Elisa Castro:uma pichação com um número de tele-fone que dá acesso (quase como código)a uma secretária eletrônica para gravaros recados anônimos deixados. Na Maréas perguntas feitas pelos parti cipantesem faixas de ráfia pintadas à mão foram

espalhadas pelas ruas forçando a inter-venção direta no espaço, o que nãodeixou de motivar em várias pessoas avontade de seguir animando este espaçocontrolado por formas de violência.

O trabalho de Elisa, assim como as entre-vistas que eu realizei com fotógrafos melevam de volta à imaterialidade daquelaoperação ou laboratório de Arquivos. Naexposição final do projeto expus umaseleção de matérias de jornal coletadas epesquisadas no Arquivo Dona OrosinaVieira (especialmente acompanhada porMarli Damascena, arquivista) incitandoconexões entre as diversas vozes quenarram a favela e a pesquisa com fotó-grafos – o que resultou em um desenho-diagrama.2 A forma de exposição doArquivo de emergência – cujos docu-mentos ficam totalmente à disposição dopúblico – foram assunto de muitas con-versas com os organizadores do ADOV edo Museu. Foi possível, basicamenterepensar a forma de exibição do arquivo,instigando uma leitura coletiva, comofizemos em algumas atividades. O pro-jeto trouxe outra pergunta ainda emaberto: considerando que esta é umaconsulta pública, como deixar umespaço dialógico para que o participantetorne visível / legível para o outro suasconcatenações, suas operações dememória, ou um novo elemento comodados arquivísticos?

Passados os meses daquelas intensi-dades posso dizer que o projeto foi umlaboratório de experiências e possibili-dades daquilo que se pode produzirentre arte e arquivos, ou seja, entreexperiência sensível, memória ehistória.3 Ao final do projeto participei departe da concepção e seleção de material

para a exposição “Parágrafo O” queaconteceu no mês seguinte no Museu,sobre constituições no Brasil e direito àmoradia. E, voltando a atenção para anatureza dessa cooperação entre pes-soas e espaços, faço uma aproximaçãoe uma proposição poéticas entre umarquivo e outro, transformando concei -tualmente o próprio ADOV em umArquivo de Emergência, para que sepossa pensá-lo não apenas como arqui-vo que conta a história do passado deuma comunidade, mas que colabora napercepção política da realidade, dandoacesso rápido à informação e contri-buição nas ações de resistência cujamemória viva não deixe se repetirematrocidades majoritárias.

Agora possa afirmar que escrever umahistória radical nos tempos hoje meparece que está no atravessamento eno exercício das criatividades... Ouseja, me parece que é desmesura doque aquela concatenação primeiraentre Ministério da Cultura e Funartequeria provocar: na promoção de umencontro, uma faísca de aprendizagemmútua, uma integração de expressõesou lutas locais com formas de publi-cização e coletivização da criação, estasúltimas mais dadas aos criadores dasartes visuais contemporâneas. Aquelereceio da “captura”, ou seja, da pro-moção de um valor de troca que dávelocidade ao produzido não deixa deprovocar atrito; e por isso tive que redi-gir um email para um dos integrantesdo Museu, explicando como e por que oprojeto existe para além da delimitaçãotemporal da exposição, visto que elesegue existindo também neste texto emmais um documento como memóriacrítica das ações desenvolvidas.

atravessar a cidade e mediar a captura

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GLOBAL 42 Maquinações

assim o convívio comum entre lingua-gens diversas e produzem, por suavez, ambientes cada vez mais propíciospara o compartilhamento de bensculturais, informação e tecnologia, aomesmo tempo em que descobremoutras formas de fazer política, deresistir e de criar.

Os jovens produtores de cultura e deconteúdo que mobilizam essas redes einiciativas vêm das primeiras geraçõesque contaram com a disponibilidade daInternet como seu ambiente. Fazemuso das novas tecnologias de infor-mação e comunicação para se organi-zar e criar redes. A multiplicidade dereferências é matéria-prima para umadiversificada produção ‘recombinante’,o uso de múltiplas linguagens expli -cita-se na riqueza de suas expressõescriativas. Criatividade nutrida a acessoe lutas por acesso, o que modifica osentido de “autoral” no movimento,longe da noção de autor que está nabase da noção jurídica de “direitoautoral”, por exemplo. A meta daprofissionalização da cadeia produtivada cultura ressignifica-se como apro-fundamento da experiência comum,da qualificação, das dimensões rela-cionais e operacionais, jamais umretorno aos especialismos segmen-tados das velhas divisões do trabalho.

A percepção da relevância dessadinâmica toma como referência forteum dos primeiros pontos Fora do Eixo,o Espaço Cubo de Cuiabá (MT). OEspaço Cubo antecipa, e de muitosmodos se desdobra no próprio CircuitoFora do Eixo, foi laboratório de criaçãode muitas de suas práticas, experiências,frentes de ação, buscou e encontrouuma multiplicidade de coletivos e fezrede com eles.

No Overmundo (www.overmundo.com.br),site colaborativo que cartografa expres -sões culturais de todos os recantos dopaís, Eduardo Ferreira publicou, emmarço de 2006, “Espaço Cubo noCircuito Fora do Eixo”, uma nota quedá conta da criação da Abrafin e doCircuito Fora do Eixo durante o FestivalCalango de Cuiabá. Em janeiro de 2007,Eduardo Ferreira publica “EspaçoCultural ao Cubo” (http://u.nu/4qty6),artigo que faz um breve balançohistórico e ajuda a compreender a ges-tação de algumas das mais vigorosasexperiências do Espaço Cubo e dos iní-cios do Fora do Eixo.

No prólogo de Filosofía de la deserción(http://u.nu/8n235), livro sobre ocomum e a comunidade, e dedicado àcompreensão da lógica da multidão,publicado na Argentina pelo EditorialTinta Limón em 2009, o filósofo, tra-dutor e coordenador do grupo teatralUeinzz, Peter Pál Pelbart, nos diz:

Creo que se inventan estrategias de vida muy sutiles, que a veces tartamudean, pero a veces son sumamente afirmativas. Esto estácomentado en el libro. Un grupo de jóvenes músicos de laperiferia de la ciudad de Cuiabá queentendieron que están completamenteexcluidos de una relación con la ciudad y resolvieron agruparse, ayu-darse unos a los otros, construir unared cultural alternativa, y llegaron ainventar una moneda. El proyecto sellamaba Espacio Cubo. (p.11)

Em conjunto com uma multiplicidadede expressões da cultura urbana, emgrande medida aquelas que emergemdas periferias das cidades e dos terri-tórios da precariedade e das lutas poracesso aos meios de produção e distri-buição cultural, esses jovens produto-res de cultura, produtores de conteúdo,vivem experiências que afirmam eevidenciam a cultura urbana contem-porânea simultaneamente comoeconomia criativa, produção deriqueza e espaço de lutas por novosdireitos, “cultura da convergência” eda produção de redes, e cada vezmais, enquanto “cultura digital” e daproliferação de novas relações sociais.

E O ENCONTRO ARRANCOU-NOS DOS SONHOS IMPOTENTESA mobilização dos jovens produtoresde cultura dos circuitos de festivaisindependentes está promovendo umavisível mudança de eixo na cena culturalbrasileira. Apanhando essa mudança eao mesmo tempo protagonizando-a, oautodenominado Circuito Fora do Eixovem chamando a atenção e exercendoum efeito de contágio: cons tituir redes,fazer de cada experiência tecnologiasocial compartilhável e assumir o com-partilhamento como prática e expe -riência de constituição de novas redesmarcam sua trajetória.

No final de 2009 e primeiros meses de2010, o Circuito Fora do Eixo se fezvisível através de várias iniciativas deporte. Esteve no Fórum da CulturaDigital, organizado pelo Ministério daCultura e Casa da Cultura Digital; emconjunto com Abrafin – AssociaçãoBrasileira de Festivais independentes,BMA e Casas Associadas, lançou a fer-ramenta e rede social Toque no Brasil(www.toquenobrasil.com.br); realizouno Brasil, e em algumas cidades daArgentina, da Bolívia e do Uruguai oFestival Grito Rock América do Sul(http://gritorock.com.br/); e lançou oportal Nagulha (www.nagulha.com.br),só para citar uns poucos exemplos.

Com pontos espalhados por todas asregiões do país, o Circuito Fora do Eixocarrega em seu nome parte de suaproposta: romper com a tradição dosespaços consagrados, dos mono -pólios da difusão e das noçõesarcaicas de arte. Para os mais de qua -renta coletivos conectados através doCircuito Fora do Eixo, toda forma deproduzir cultura é válida e desejável:além da música, também o cine -clubismo, o teatro, as artes visuais, asmídias independentes. Trabalha com anoção de artes integradas. A recusa àespecialização cega é característicamarcante dos ativistas do Circuito,como atesta a postura da MacacoBong, banda cuiabana que obteverepercussão ampla com seu primeirodisco, de nome sugestivo: Artista IgualPedreiro. Não é raro ver os três músicos,minutos antes de subirem ao palco,carregando equipamentos e entrevis-tando outros músicos.

Em coerência com esta lógica, pautadapela colaboração e pela ação em rede,inúmeros ativistas passaram a agircoletivamente, conectados a outrosagentes de forma horizontal. Garantem

Atílio Alencar Moura Correa, Leonardo Foletto e Leonardo Palma

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Trânsitos 43 GLOBAL

…… hháá uummaa rreellaaççããoo nneecceessssáárriiaa

eennttrree oo ttrraabbaallhhoo aaffeettiivvoo ee aass rreeddeess

ssoocciiaaiiss,, aass ffoorrmmaass ccoommuunniittáárriiaass,,

aa ccaappaacc iiddaaddee rreellaacciioonnaall,,

ee qquuee iissssoo ccoommppoorrttaa uumm tt iippoo

ddee eennggeennddrraammeennttoo rreeccíípprrooccoo:: oo

ttrraabbaallhhoo aaffeettiivvoo ccrriiaa eessssaass rreeddeess ee

aaoo mmeessmmoo tteemmppoo éé ccrriiaaddoo ppoorr eellaass..

PPeetteerr PPááll PPeellbbaarrtt

Palimpsesto 3, Grupo Pele de Asnoe Elias Maroso, 2009.Fotos de Alessandra Giovanellawww.saladobradica.blogspot.com/

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3 - Se a cultura é o paradigma do tra-balho imaterial, a precariedade, quesempre foi parte do trabalho dos indiví-duos ligados à cultura, foi radicalmentereforçada na atual fase do capitalismo edas mudanças tecnológicas ligadas aomundo do audiovisual e da comuni-cação. As escolas de cinema nãopodem ter como paradigma o empregoou os filmes feitos com milhões de reais.Esses filmes são importantes, mas nãosustentam as possibilidades de criaçãodos jovens que saem das escolas hoje.Também o cinema é pós-industrial e nós,formadores, devemos estar atentos aisso. Precisamos pensar em condições detrabalho em uma sociedade sem em-prego. Trata-se de outro tipo de inclusão.

2 - A exibição, sem fins lucrativos, é garantida em festivais quase diários,Internet, TVs universitárias e públicas, cineclubes e programas de difusão, comoa Programadora Brasil. Contabilizar o público do cinema brasileiro hoje pelonúmero de ingressos vendidos em sala só interessa aos poderes que nenhuminteresse têm pela diversidade ou pela existência de um cinema nacional.

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Há mais de quinze anos falamos de cinema digital, de barateamento de custos edas novas possibilidades criativas com essas tecnologias. Entretanto, é nos anosrecentes que temos visto a efetiva mudança qualitativa e quantitativa da produçãoaudiovisual baseada em plataformas digitais. A atual produção no Brasil tem umacara que há dez anos não existia. Em importantes festivais de cinema, no Youtubee sites do gênero, em coletivos de criação, grupos de críticos curadores online eem escolas populares; o que vemos é uma multidão de jovens produzindo e criandocom imagens e sons, forjando experiências estéticas e subjetivas inovadoras semdinheiro incentivado direto.

O mais recente Festival de Tiradentes, por exemplo, foi vencido pelo longa-metragem Viagem a Ythaca, de Ricardo e Luiz Pretti, Pedro Diógenes e GutoParente, realizado sem recursos públicos. No Festival Cine Esquema Novo, emPorto Alegre, o melhor curta-metragem foi “Sweet Karolynne”, de Ana BárbaraRamos (PB) também realizado sem incentivo público. Os coletivos Teia em BeloHorizonte e Alumbramento em Fortaleza mudaram a cara do cinema feito nessascidades com muitos filmes feitos também sem incentivo público. Em relação àcrítica, as mais importantes revistas do país, como Cinética e Contracampo, exis-tem sem incentivo financeiro ou publicidade. Devemos lembrar ainda a existênciade uma enorme produção feita em escolas populares como Nós do Morro,Observatório de Favelas, Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, isso para ficar-mos apenas no Rio de Janeiro.

Diante desse quadro, que poderia se estender por algumas páginas, o que se colo-ca para as políticas públicas é a possibilidade de incentivar o audiovisual libe -rando essas potências de vida e de criação que refletem e inventam com imagens.Com poucos recursos, o panorama acima descrito pode se espalhar por muitasoutras cidades, grupos e pessoas. Certamente que isso não significa que os filmesnão precisem de leis de incentivo nos moldes tradicionais, mas existem hojeoutras formas de se produzir audiovisual que não podem ser negligenciadas.Nesse sentido, o que está colocado é a necessidade de uma mudança de paradigmano que tange ao incentivo à produção. É urgente que pensemos em financiarpessoas e não filmes, apenas.

Foi com este intuito que no mais recente Forcine (Fórum Brasileiro de Ensino deCinema e Audiovisual), que aconteceu em março de 2010 na UFF (UniversidadeFederal Fluminense), foi acolhida a proposta de uma renda mínima para estu-dantes egressos de escolas de cinema e audiovisual. Neste breve artigo desen-volvo a proposta, exponho alguns pontos que a contextualizam e justifico asugestão.1

1 - A popularização dos meios fazcom que jovens universitários tenhamseus pequenos computadores eacesso aos equipamentos neces -sários para edição de imagem e som.Frequentemente, isso é também ver-dade para as câmeras e microfones.Além do barateamento dos equipa-mentos pessoais, existe hoje umaimportante capacidade instalada deprodução audiovisual ligada às esco-las, ONGs, Núcleos de ProduçãoDigital, universidades, etc. Trata-sede ilhas de edição, câmeras e equipa-mentos de captação de som. Emsuma, o básico necessário para arealização de obras a baixo custo.

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Cezar Migliorin

1 No texto aprovado em assembléia do Forcine, consta apenas a necessidade de se oferecer bolsas aosegressos. As demais propostas e idéias que aparecem nesse texto são de responsabilidade do autor.

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4 - O que leva muitos jovens a pararemde produzir quando saem das escolas euniversidades é a necessidade de ganharmil ou dois mil reais mensais, e não aimpossibilidade de terem seus filmespatrocinados. Os filmes deixam de serfeitos pela necessidade de arranjar umemprego, frequentemente distante docinema e da criação, distante daquilopara o qual foram formados. Trata-se deuma questão democrática, trata-se deaproveitar o investimento que já foi feitona formação desses jovens. Hoje, ape-nas os jovens de elite têm condições dese sustentar e aproveitar todas as possi-bilidades de criação que estão dadas nocampo do audiovisual contemporâneo.O que é comum tem acesso restrito. Seestivermos de acordo que a tarefa doestado é possibilitar a existência de umcinema nacional, importante não apenascomo commodity, mas como criaçãosingular e democrática, entendemostambém que, para chegar com mais efi-ciência a este fim, são as pessoas quedevem ser patrocinadas também.

5 - Financiar as vidas de criadores decinema e audiovisual significa, alémdisto, perder o controle em relação aoque será criado. Trata-se de uma lógicadistante da dos editais de fomento. Umfomento direto às vidas descentraliza odinheiro e os modos de criação. O queaparecerá de uma iniciativa como estanão pode ser previsto ou antecipado,eis o lugar da criação.

Alguns númerosSe a cada ano forem oferecidas mil bol-sas mensais de 1.500 reais para jovensque produzem ligados ao audiovisual;escrevendo, realizando, fotografando eexperimentando, durante um ano chega-remos ao valor total de R$ 18.000.000,00para a totalidade das bolsas.

Uma radicalização democrática, umdeslocamento conceitual e um ganhoem qualidade e quantidade no audio-visual brasileiro custa o equivalente adois longas brasileiros de grande orça-mento!

PPrrooppoossttaass ddee ooppeerraaççããoo

11 .. Os jovens concorreriam a bolsasapresentando a produção dos anosem que estavam na universidade. Nãose trata de apresentar projetos a seremrealizados, mas garantir a conti nuidadede seus trabalhos nos dois primeirosanos após a formatura. Esta produçãopode ser bastante diversa e contem-plar um largo espectro de pessoas li -gadas ao cinema e o audiovisual; críti-cos, técnicos de som, diretores, fotó-grafos, diretores de arte, curadores, etc.22 .. As universidades, junto às agên-cias de fomento, poderiam gerenciaressa seleção, acompanhar os resulta-dos e produzir as necessárias avali-ações. Poderiam ainda analisar asescolas de cinema não universitáriase a possibilidade de seus alunos seapresentarem como proponentes. 33 .. As bolsas poderiam ser concedidasem regime de dezoito meses, com reno -vação depois dos nove primeiros meses.Ao trabalho.

Sem título, de Anderson Correa de Araujo, 2007.

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GLOBAL 46 Maquinações

EncontroQual o sentido de propor um encontroentre Marx e as lutas yanomami, entremundos distintos? O marxismo semprepretendeu alcançar uma universalidade,ancorada pelo desenvolvimento e expan-são do capitalismo. Entretanto, se pensar-mos Marx a partir das lutas, o universalpassa a não ser mais dado, mas sim aconstruir. Para utilizar a potência de Marx,deve-se conectá-lo com uma série delutas concretas. Um Marx, pensador revo-lucionário, afetado pelas lutas-criaçõesyanomami. Esta proposta de encontro, delevar a sério estas lutas (e seu diálogocom Marx), nos leva a questionar as distin-ções natureza/cultura, nós/eles e a pensá-las não somente em termos políticos, mascosmopolíticos (Stengers).

Contra a forma-EstadoOs coletivos yanomami ignoram o Estadoe aproximam-se da famosa tese de PierreClastres das sociedades contra o Estado.Clastres afirma que as sociedades indíge-nas rejeitam a visão convencional dopolítico – regida pela relação comando-obediência – e sua clivagem selvagens/civilizados de acordo com a existência ounão de um Estado. A constituição políticadessas sociedades centra-se na recusaativa do Estado. Tal resolução sutil daquestão política é trabalhada posterior-mente na formulação de que guerras per-manentes e a continuada criação e destrui -ção de alianças entre os diversos cole-tivos são o que lhes permite manter-secontra a coerção estatal – coletivos frag-mentados para a guerra e contra oEstado. A fragmentação é a finalidade daguerra, e não o contrário.Tal elaboração política coloca interes-santes conexões com as de Marx; tantosua crítica filosófica a Hegel, quanto suasanálises da Comuna de Paris ou doPrograma de Gotha. Sua crítica da argu-mentação hegeliana do Estado como repre -sentação da resolução da relação entreuniversal e particular leva-o a colocar opovo (e depois, os trabalhadores) comopoder constituinte e a definir a verdadeirademocracia no desaparecimento doEstado. Isto ganharia configuração con -creta – “a forma enfim encontrada” nassuas palavras – na Comuna de Paris.Pode-se dizer, com as posteriores e inin-terruptas revoltas e organizações criadasapós e a partir desta experiência “inau-gural” dos conselhos, que existe em Marxe, sobretudo, nas práticas concretas e

criativas desses sujeitos sociais umaforma-conselho – práticas contra oEstado. Se estes sujeitos foram historica-mente operários, hoje assumem múlti-plas formas, como, para citar um exemp-lo contemporâneo, as organizações debairro (comunais) em El Alto, Bolívia.Existe, ainda, um interessante elo com aproposta que fizeram os yanomami nomomento em que ocorria um processode municipalização na Venezuela (Alès).Os yanomami apresentaram uma propos-ta segundo a qual cada setor, comunidadeou grupo de vizinhança nomearia seuspróprios delegados. Todos esses delega-dos se reuniriam num Conselho, com re -pre sentação proporcional. Tal Con selhonão teria um prefeito, nem coordenadorpermanente, mas sim coordenadoresrotativos, exemplificando a tese clas -treana da precariedade do poder do chefe.Tampouco haveria uma capital adminis-trativa permanente, sendo esta itinerante.Tal proposta acabou não sendo adotada(optou-se pelo modelo “ocidental” demo-crático), mas o importante – no âmbitodessa breve reflexão – é como, em outraconjuntura histórica, continua o ímpetodos yanomami contra o Estado e a cen-tra lização. Ademais, existem interes-santes paralelos de tais propostas commedidas da Comuna de Paris, celebradaspor Marx, como a permanente revogabi -lidade dos mandatos e formas de demo -cracia conselhista, forma-conselho.

Discurso cosmopolítico de Davi KopenawaOutro exemplo das lutas-criações yano-mami encontra-se no discurso cosmo-político de Davi Kopenawa. Davi opõeum modo de pensar (e viver) yanomamiao dos brancos: um se fundamenta navisão xamânica, que permite ver a ima -gem essencial utupë, o sopro wixia e oprincípio de fertilidade në rope da floresta;o outro limita-se a um pensamento “plan-tado nas mercadorias” (Kopenawa). Oobjetivo de sua cosmo política é, dessaforma, o de denunciar o pensamento-prática, a ignorância dos “comedores daterra-floresta”. Desen volve, assim, “umaforma de crítica xamânica do fascínioletal daquilo que Marx designou como o‘deus das mercadorias’” (Albert). A força do discurso de Davi decorre deuma articulação entre coordenadas cos-mológicas de acordo com o xamanismoyanomami e os quadros discursivosimpostos pelo Estado e o capitalismo. A

isso é contraposto um discurso cosmo-político – a partir da floresta, entidadeviva e animada.

Lutas criando o comumTais afinidades entre Marx e as lutas cos-mopolíticas yanomami permitem vislum-brar – pois é algo a aprofundar – o poten-cial político do encontro proposto. O diálogo parece, assim, afirmar um dis-curso-ação de multiplicidades, num movi-mento contra as idéias-práticas de repre-sen tação e transcendência do Estado e docapital. Segundo Viveiros de Castro, osespíritos (xapiripë) são imagens não repre -sentacionais, inumeráveis – sua intensi-dade luminosa indicando uma diferençaintensiva e absoluta. Torna-se necessário,assim, “trocar a metafísica molar e solardo ‘Um’ neoplatônica pela metafísica damultiplicidade lunar e molecular indígena”.O encontro opera no sentido de umalibertação da multiplicidade, das singula -ridades do poder constituinte, da demo -cracia contra o Estado. E desenvolve-senas convergências de lutas contra o Umque criam o comum.Marx pensou o capitalismo em sua articu-lação entre a expropriação colonialmundo afora e as cercas (enclosures) esua apropriação das terras comunais (doscommons) na Inglaterra. Existe assim umprocesso contínuo – e não apenas inicial –de acumulação primitiva, uma ininter ruptaexpropriação dos bens comuns (terras,água, sementes e, sobretudo, lutas-criaçõescoletivas), numa permanente instituiçãode novos espaços de propriedade privada.Davi Kopenawa mobiliza igualmente talimagem-prática do comum quando fala dacriação contínua de elos comuns e cosmo -lógicos com a terra-floresta.Nesse sentido, pode-se opor à apropri-ação privada, a força da inteligência cole-tiva – presentes nos mitos yanomami enas experiências da forma-conselho – esua criação do comum. Se o objetivo dealguns marxistas latino-americanos(como Anibal Quijano e Edgardo Lander)é o de livrar o marxismo do eurocentris-mo, deve-se partir dos sujeitos que contraeste lutam desde séculos – continuandocom a perspectiva de pensar a partir dacriatividade das lutas. Retomando aquestão inicial do universal e das lutas, odiálogo proposto nos coloca, porém,frente a uma espinhosa questão em aberto– é possível um mundo comum? Oprimeiro passo para isso seria reconhecerque hoje existem muitos mundos (Latour).Assim, algo universal teria que não sertomado como dado, mas sim a construir –o comum. A construir a partir das lutas,das conexões entre as múltiplas lutas.

LUTAS COSMOPOLÍTICAS: MARX E OS YANOMAMI

JJeeaann TTiibbllee

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Trânsitos 47 GLOBAL

"Como conviver com entranhas

ao tempo expostas?Para onde elas apontam?"

Cristina Pape

Sem título, de Anderson Correa de Araujo, 2007.

"Estas fotografias captam a situaçãoinusitada gerada pelo pretensoembelezamento urbano planejado pelosgovernantes cariocas nos bairros doGrajaú e Andaraí. As obras realizadassob o lema “ordem e progresso”deixaram refugos como os tubos pretosque brotam nas entradas de prédios,casas particulares, ou comerciais, qualquer canto. Poéticos (e patéticos)tubos pretos, um deslocamento conscientemente capturado em meio apretensa e falsa realidade (des)ordenadapelo poder que gerencia (violenta) o Rio de Janeiro."

Anderson Correa de Araujo

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GLOBAL 48 Maquinações

É o aconchego familiar, a união entre osfamiliares, a comodidade, a estabilidade,o conforto.Adélia Martinha dos Santos

É muito boa, porque eu não moro dealuguel. Em cima, na casa de cima, molhatudo embaixo.Altair Pimentel Rodrigues

Minha casa é meu lar, onde eu vivo, trabalho e reúno minha família.Amélia Almeida Mota

Minha casa é tudo para mim, pois sótenho ela e dou valor a tudo que tenho.Ana do Nascimento

Meu lar.Anália Medina Rodrigues

É tudo para mim.Aníbal João de Almeida

É uma casa simples. Quando chove, pingatudo e às vezes nem tem onde dormir, etc.Minha casa também tem 5 cômodos, etc.Antonieta Maria de Barros

Tudo. Minha vida e dos meus filhos, ondesempre lutei para ter o melhor. Tudo dentro do possível, sou feliz no meu lar.Maria Gregória de Jesus

Minha casa é tudo para mim, e uma daspartes que mais gosto é de ficar na sala,junto com meu esposo, filhos e netos.Jandira dos Santos Gonçalves

O que é a sua casa para você?Célula = Escritório Modelode Arquitetura e Urbanismo(EMAU) da UFES

* Doralina da Conceição foi entrevistada mas preferiu não preencher a ficha.

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