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  • 3Revista do Memorial da Amrica Latina 02 - 2013 / R$ 5,90

    hoyamricaFazer filme no Brasil trs vezes mais caro que em qualquer pas daAmrica Latina

    Festival de Cinema Latino-Americanodo Memorial

    Cinema brasileiro:gachos &

    pernambucanos

    Mulheres atrs das cmeras

    Tendler & Meirelles

    Confira nesta edio : dicas do que se tem da Argentina na cidade

    8

  • 4MEMORIAL DA AMRICA LATINA

    VISITE

    Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664 So Paulo, SP, ao lado da estao Barra Funda do metr

    O NOVO

  • 5EditorialJoo Batista de Andrade 05Cineclubismo Felipe Macedo 068 Festlatino 2013Marcelo Lyra 12Cinema LatinoCssio Starling Carlos 18Mulheres no cinema Marcelo Lyra 22Entrevista Maria do Rosrio Caetano 26Ensino de cinemaDora Mouro 36Custos de produo Tnia Rabello 39Censura Ana Maria Ciccacio 43Festival de Chicago Flvia Guerra 46PernambucoLuiz Joaquim 48Cinema gacho Carlos Gerbase 53Festival de Toulouse Luana Schabib 58

    Imagem da edio por Juan Rulfo 66Argentina Tnia Rabello 62

    ndice

  • 6DIRETORJOO BATISTA DE ANDRADE

    EDITORA EXECUTIVA/DIREO DE ARTELEONOR AMARANTE

    ASSISTENTE DE REDAOMRCIA FERRAZ

    DIAGRAMAOFELIPE BRAVODAYANE DA SILVEIRA XISTO (ESTAGIRIA) RENATO CANEVER (ESTAGIRIO)

    REVISO ELIAS CASTRO (ESTAGIRIO) KARLA OLIVEIRA (ESTAGIRIA)

    COLABORARAM NESTE NMEROAna Maria Cicaccio, Carlos Gerbase, Cssio Starling, Daniel Pereira, Dora Mouro, Felipe Macedo, Flvia Guerra, Luana Schabib, Luiz Joaquim, Marcelo Lyra, Maria do Rosrio Caetano, Tnia Rabello.

    NOSSA AMRICA HOY uma publicao bimestral da Fundao Memorial da Amrica Latina. Redao: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. So Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. Vendas: (11)3823-4618 Internet: www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected]

    Os textos so de inteira responsabilidade dos autores, no refletindo o pensamento da revista. expressamente proibida a reproduo, por qualquer meio, do contedo da revista.

    GOVERNADORGERALDO ALCKMIN

    SECRETRIO DA CULTURAMARCELO ARAJO

    FUNDAO MEMORIALDA AMRICA LATINA

    CONSELHO CURADOR

    PRESIDENTEALMINO MONTEIRO LVARES AFFONSO

    SECRETRIO DA CULTURAMARCELO ARAJO

    SECRETRIO DE DESENVOLVIMENTO ECONMICO, CINCIA E TECNOLOGIA (em exerccio)LUIZ CARLOS QUADRELLI

    REITOR DA USPJOO GRANDINO RODAS

    REITOR DA UNICAMPFERNANDO FERREIRA COSTA

    REITOR DA UNESPJULIO CEZAR DURIGAN PRESIDENTE DA FAPESPCELSO LAFER

    REITOR DA FACULDADE ZUMBI DOS PALMARESJOS VICENTE

    PRESIDENTE DO CIEERUY ALTENFELDER SILVA

    DIRETORIA EXECUTIVA

    DIRETOR PRESIDENTEJOO BATISTA DE ANDRADE

    DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMRICA LATINAADOLPHO JOS MELFI

    DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAISLUIZ FELIPE BACELAR DE MACEDO

    DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO SERGIO JACOMINI

    CHEFE DE GABINETEIRINEU FERRAZ

    DIRETOR PRESIDENTEMARCOS ANTONIO MONTEIRO

    DIRETOR VICE PRESIDENTEMARIA FELISA MORENO GALLEGO

    DIRETOR INDUSTRIALIVAIL JOS DE ANDRADE

    DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO HENRIQUE SHIGUEMI NAKAGAKI

    DIRETOR DE GESTO DE NEGCIOS JOS ALEXANDRE PEREIRA DE ARAJO

    nossa

    hoyamrica

    Capa : Take do filme Del Olvido Al No Me Acuerdo, 1999, do mexicano Juan Carlos Rulfo.

  • 7Ed i to r ia lA segunda edio de Nossa Amrica Hoy foi pen-

    sada para coincidir com o Festival de Cinema Latino-A-mericano de So Paulo (Festlatino), que o Memorial vai realizar de 12 a 18 de julho. Por isso, ela rene um elen-co de colaboradores que atualizam o panorama da sin-gularidade esttica da cinematografia latino-americana. O Festlatino chega ao seu oitavo ano consecutivo, desde que foi criado na minha gesto como Secretrio da Cultura do Estado de So Paulo em 2006, poca em que Fernando Lea era o presidente do Memorial da Amrica Latina. A cada ano, alm de trazer o que h de melhor na regio, o Festival tambm promove debates e oficinas com realizadores, produtores, atores e artistas de vrios pases. Tudo isso, mesclado com viso de quem do ramo, est no texto do jornalista e crtico de cinema, Marcelo Lyra. O cinema uma arte que cria sua prpria mitolo-gia, povoada de personagens que mexem com o imagin-rio do homem comum. A cinematografia latino-americana poder melhorar muito sua posio no ranking interna-cional quando criar o seu prprio mercado e fazer com que suas produes possam ser mais vistas por aqui. Como cineasta, me entusiasma apresentar o roteiro desta edio de Nossa Amrica Hoy e tambm anunciar a retomada, aqui mesmo no Memorial, do ci-neclubismo. O movimento completa cem anos e ana-lisado por Felipe Macedo, que explica por que anda faltando pblico nas salas convencionais de cinema.

    Dois diretores seminais, Slvio Tendler e Fer-nando Meirelles, entram em cena e revelam facetas e bastidores de seus trabalhos e aspectos do sistema. Eles foram entrevistados por Maria do Rosrio Caeta-no, uma das mais atentas crticas do cinema nacional. Acompanhando o alto custo de vida no Bra-sil, a jornalista Tnia Rabello revela que fazer cine-ma por aqui custa trs vezes mais caro do que em outros pases latino-americanos. A jornalista Ana Ma-ria Ciccacio escreve sobre a censura e o cinema da AL, enquanto Flvia Guerra faz o balano do Chica-go Latino Festival, o mais antigo do gnero na regio. Hoje, a hegemonia do eixo Rio-SP foi pressiona-da por outros polos que vivem momentos antagnicos. Segundo o diretor Carlos Gerbase, enquanto os gachos amargam um momento ruim, com baixa produo e pouco incentivo governamental, os pernambucanos vivem dias de excitao, com produo acelerada, prmios e reconhe-cimento, como revela o jornalista recifense Luiz Joaquim.

    Vamos falar de cinema?

    Joo Batista de Andrade cineasta e presidente da Fundao Memorial da Amrica Latina.

    Boa leitura !

  • 8Cineclubismo100 anos de

    por Felipe Macedo

    Nos estudos acadmicos so-bre o cinema existem as mais diversas abordagens: da linguagem, da narra-o, do processo cognitivo, psicanalti-co, entre outros. O pblico, porm, no aparece. A recepo, como j aponta o conceito, ato passivo, determinado sobretudo pela obra que exerce sua influncia sobre o espectador. E o es-pectador, por sua vez, uma abstrao generalizante que, desconhecendo os diferentes contextos culturais, sociais, histricos, se impe como paradigma. Significativamente, essa abstrao tende a ser calcada num espectador ocidental, branco, masculino, de clas-se mdia e mesmo cristo. O pblico, ao contrrio, contexto concreto, no individuao abstrata. No plano sociocultural das polticas pblicas, por exemplo, o p-blico tambm s considerado como objeto, nunca sujeito. Faz-se polticas para ele, nunca com ele. Ele no tem

    voz na poltica: conselhos, cmaras e outras formas de participao da sociedade civil na elaborao de pro-gramas para o cinema e/ou o audio-visual em geral tm representantes de produtores, distribuidores, artis-tas e mesmo de numerosos sub-grupos de interesse, como diretores, documentaristas, tcnicos mas no do pblico. Consagra-se e consolida-se a viso do pblico como massa indistinta de espectadores pratica-mente incapazes, consumidores in-conscientes, receptculos inermes de catequeses, autoritarismos e pro-pagandas. Objeto, nunca sujeito. Mesmo a semntica que im-pregna os usos da relao entre cine-ma e pblico significativa: plateia, assistncia, auditrio; espectador, ouvinte, consumidor. Parece que s a palavra pblico tem uma conotao mais ativa, comporta responsabilidade e capacidade coletivas.

    Ausncia do pblico no cinema

  • 9As salas de cinema eram locais de manifestaes ruidosas, com o pblico cantando, vaiando, participando enfim de vrias formas.

    Cinefilia uma espcie de ramo do cinema que vem sendo estu-dada de uns tempos para c. A julgar pelo nmero de publicaes ainda um fenmeno mais dos pases de-senvolvidos a cinefilia est meio na moda. O termo uma construo h-brida que pretende descrever o amor, o gosto pelo cinema. Mas que amor esse? Nos anos 10 do sculo passado, um tero da populao estadunidense ia ao cinema toda semana; na dcada seguinte, a metade de todos os ame-ricanos. No seria isso uma forma clara de amor ao cinema, de cinefilia? Segundo depoimentos, nos anos 50, certas chanchadas ou alguns ttulos do Mazzaropi eram vistos por mais de 15% da populao brasileira. Isso era cinefilia? A ideia de cinefilia que passou para a posteridade, no entanto,

    foi mais a de uma apreciao culta do cinema. Culta no sentido de que era caracterstica de especialistas, supos-tos conhecedores de cinema que se diferenciavam da massa de frequen-tadores. Essa diferenciao se loca-lizava frequentemente na capacidade de produzir textos mais elaborados origem da crtica, que veio a se es-tabelecer at como profisso e no fato de alguns desses espectadores se notabilizarem, justamente por seus escritos ou por fazerem seus prprios filmes. Mais uma vez se fazia do p-blico massa; e dos sinais evidentes da sua participao, selecionava-se uma elite: os cinfilos connaisseurs. Assim, a cinefilia seria um fenmeno tpico dos anos 20, com as vanguardas cinematogrficas fran-cesas principalmente. Ou dos anos

    50 e 60, com as revistas parisienses Cahiers de Cinma e Positif, e a pro-duo que surgiu daqueles grupos, a Nouvelle Vague. Cineclube seria uma espcie de templo desse culto, a cinefilia. Logo, o mesmo raciocnio situava o surgimento dos cineclu-bes naquela primeira poca dos anos loucos e identificava o pequeno grupo de cineclubes parisienses que deu ori-gem s revistas de cinema j citadas como a idade do ouro do cineclubis-mo. No entanto, nos anos 20, muitos dos primeiros cinfilos cultuavam os filmes mais populares da poca, como as aventuras seriadas de Fan-tmas, Judex ou da Vamp Musidora. Assim como nos anos 50 se-guia-se todos os chamados peplums italianos, de heris como Maciste e Hrcules. Os cineclubes que deram ori-

    Cinefilia

    Jejum de Amor, E.U.A., 1940

  • 10

    gem aos Cahiers e Positif eram uma meia dzia em Paris, em meio a alguns milha-res de cineclubes que se espalhavam pela Frana na poca, sobretudo nos meios mais populares. Tambm nos anos 20, ao lado das sesses chiques promovidas por Louis Delluc ou Ricciotto Canudo, vrios clubes de bairro ou a rede de Amigos de Spartacus exibiam e debatiam cinema em termos bem mais populares e desde bem antes. Em outras palavras, cineclube no uma reunio de especialistas, mas uma organizao quase espontnea do pblico, que reage e busca ter voz num cinema em que frequentemente no se reconhece. Des-de o incio das projees e mesmo antes do cinema, com as lanternas mgicas principalmente nos ambientes mais popula-res, com menos acesso a meios mais tradi-cionais de educao e cultura, j se usava as imagens para ilustrar palestras educativas, de proselitismo poltico ou religioso. Essas atividades se desenvolviam principalmente em associaes e clubes populares e tm origem em aes de ajuda mtua, de orga-nizao poltica e estmulo cultural que vm

    desde meados do sculo XIX. Ali estavam as primeiras sementes do cineclubismo, que comemora este ano seu centenrio formal. Com a massificao do cinema a partir das salas fixas, de 1905 em diante, seu pblico inicial era fundamentalmen-te proletrio e imigrante, e as salas os famosos nickelodeons, onde o ingresso custava 5 centavos simples, pobres e localizadas em bairros populares. Mas os filmes apresentavam o ponto de vista dos empreendedores capitalistas: assu-miam uma temtica prxima do gosto dessas modernas massas da cultura, o tratamento, no entanto, era seu opos-to: a ridicularizao do imigrante, o combate e censura s conquistas so-ciais, at mesmo (um pouco depois) a represso ao pblico com uma fora de polcia prpria origem dos lan-terninhas uniformizados que marca-ro pocas posteriores do cinema. As salas de cinema eram locais de manifestaes ruidosas, com o pblico cantando, vaiando,

    Louco por cinema e pela poltica , Paulo Emlio Salles Gomes foi um dos mais brilhantes crticos, pensadores e histo-riadores brasileiros de nosso tempo.

    A Jitney Elopement, E.U.A.,1915

  • 11

    Cineclube no uma reunio de especialistas, mas uma organizao quase espontnea do pblico.

    A breve carreira de Mary Louise Brooks ( 1906 - 1985 ) em Hollywood soma 24 filmes entre 1925 e 1938 e foi mar-cada pela forte personalidade da atriz que no se curvou a Hollywood, o que incomodou aos donos de estdios, numa poca em que a maioria dos atores e atrizes, para ter trabalho, era submissa, mal paga, e frequentemente nem aparecia nos crditos. Isso explica o porqu dela ter ficado de lado por tantos anos.

  • 12

    participando enfim de vrias formas e vrias delas organizadas, como as siffleries (apitaos) parisienses. Desde essa poca comeam a surgir alterna-tivas para um cinema que no mostra-va e no representava os interesses daqueles pblicos. Organizaes ope-rrias, entre outras (a Igreja tambm criou vrias instituies que tratavam com o cinema, desde o incio do scu-lo), alugavam salas e promoviam suas prprias sesses; comearam a produ-zir filmes. H vrios relatos nesse sen-tido, documentados pelo menos desde 1908. Em 1911, em Los Angeles, o jor-nal L.A.Citizen fala de uma sala gerida por socialistas e feministas; um en-trevistado explica que nossa sala o resultado da rebelio do pblico contra o que oferecem a ele (Steven Ross, Working Class Hollywood, 1998). Mas o provvel primeiro caso realmente bem documentado da orga-nizao de um cineclube com estatu-tos, sesses com debates e produo de filmes o do Cinma du Peuple (Cinema do Povo), organizao criada por militantes e simpatizantes anarquis-tas em Paris, em 1913. O programa do cineclube foi publicado no jornal Liber-taire, de 13 de setembro; os estatutos foram registrados em 28 de outubro. O mote do cineclube era Divertir, instruir e emancipar. O Cinema do Povo teve vida curta, interrompida no ano seguin-te pelo incio da I Guerra Mundial. Mas deixou uma produo prpria, quase inteiramente preservada, com ttulos como As Misrias da Agulha, sobre o trabalho de costureiras; O velho Do-queiro e A Comuna, sobre a insurreio de 1871, entre outros. Um detalhe interessante que a iniciativa dos anarquistas franceses foi bastante difundida, e chegou ao Brasil atravs de artigos de Neno Vas-co, anarquista portugus muito ativo no Brasil que, em um de seus perodos de exlio em Portugal mandava para o jornal A Lanterna notcias do movimen-to internacional. De fato, na sequncia dessas matrias, no seu nmero 242, de 8 de maio de 1914, o peridico traz o seguinte anncio: para tratar de fun-dar uma sociedade cujo objetivo ser a propaganda social atravs do cine-matgrafo, uma reunio ser feita na prxima segunda-feira, 11 do corrente, s 19h30, no salo da Lega della Demo-

    crazia, na Rua Bonifcio, 39, 12. Andar. Pede-se a todos os interessados que compaream. No h contudo, confir-mao da realizao dessa reunio. Tambm a igreja catlica mantinha atividades voltadas para a formao de um pblico orientado pelos melhores princpios cristos, embora isso fosse marcado por uma orientao pr-definida e no deva se confundir com o cineclubismo em que esse pblico se auto-organiza. O padre Pedro Sinzig, em uma revista Vozes de Petrpolis, de 1912, cita vrias salas de cinema paroquiais? comerciais? catlicas, como a do Centro Popu-lar Catlico, de Petrpolis, o Cinema Modelo de Belo Horizonte e o Cinema Catlico de Recife.

    As pesquisas sobre pblico e cineclubismo so bastante raras em toda a historiografia do cinema; na Amrica Latina esse problema se agra-va profundamente. Isto contribui para manter velhos mitos e, no nosso caso particular, para consagrar os anos posteriores aos cineclubes clssi-cos franceses e tambm espanhis como origem do cineclubismo em nosso continente. Certamente no assim: os movimentos operrios, prin-cipalmente, criaram em toda a Amrica instituies prprias que promoviam

    Amrica Latina

    Carmen Miranda, que brilhou nos palcosnacionais e internacionais.

  • 13

    atividades culturais; o que acontece que no h pesquisas e grande parte dos documentos se perdeu ou no est organizada e/ou acessvel. No sabemos ainda at que ponto o dispo-sitivo cinematogrfico era utilizado nas associaes, clubes, ateneus, crculos de debate, escolas, que os meios po-pulares criaram em grande nmero na virada e incio do sculo 20. Por isso, nos pases de maior tradio cinematogrfica do ponto de vista industrial -, que so a Argentina, o Brasil e o Mxico, identificam-se os pri-meiros cineclubes no final dos anos 20, isto , aqueles que surgiram por influ-ncia do cineclubismo europeu daquela dcada, a essa altura j consagrado. Na Amrica Hispnica, foi a influncia do Cineclube da Casa Universitria de Ma-dri (que teve Buuel entre seus funda-dores) e da chamada gerao de 27, por meio da Gaceta Literaria, que de-ram origem ao Cineclube de Buenos Ai-res, em 1928, e o Cineclube Mexicano, em 1930. No Brasil foi o Chaplin Club, do Rio de Janeiro, tambm fundado em 1928, que considerado at hoje o pri-meiro cineclube. Na grande maioria dos outros pases latino-americanos, as primeiras referncias e no ser mera coinci-dncia surgem nos anos 50, justa-mente quando novamente se presti-giava um cineclubismo e uma cinefilia de norma culta, identificados com os crticos e cineastas da Nouvelle Vague. A partir dessa poca os cineclubes se tornam bem visveis em todo o con-tinente. Mesmo nos trs pases com mais estrutura tambm nessa poca que os cineclubes proliferam e quan-do se pode notar as influncias que exercem sobre os cinemas nacionais e suas instituies. De fato, antes dos anos 70 quando surgem as primei-ras escolas de cinema todos os ci-neastas se formavam nos cineclubes. E as faculdades foram criadas com a gerao de cineclubistas dos anos 50 porque a gerao seguinte, formada por aquela, j a dos cinemas novos que, a partir dos cineclubes, renovou o cinema latino-americano e, em boa medida, de outras partes do mundo. No longo perodo em que pululavam ditaduras em nosso continente, uma importante resistncia se organizou a partir dos cineclubes. A crtica cine-

    matogrfica profissional tem a mes-ma origem cineclubista. Os festivais de cinema surgem por iniciativa dos cineclubes e as cinematecas nacio-nais se organizam a partir de cineclu-bes. Mas, em resumo, nos pases de maior e mais antiga cinematografia, os cineclubes foram responsveis pela criao de uma cultura cinematogrfi-ca nacional, isto , praticamente tudo obras e instituies que no vinha de Hollywood. Nos outros, os cineclu-bes praticamente se confundem com o que se possa identificar como cinema nacional: neles ou a partir deles que se produziram os poucos filmes reali-zados antes da revoluo digital; nos cineclubes que se pratica e desenvolve o estudo, a crtica, a produo e a exi-bio de filmes diversos do discurso monolngue estadunidense. Paulo Emlio Salles Gomes, considerado uma espcie de patrono do cineclubismo brasileiro, pode ser dado como um exemplo pessoal em que se encontram essas potencialida-des que resultam das prticas cineclu-bistas. Alis, em uma entrevista j no fim da vida, ele definia-se, enfim, como cineclubista, ou seja, era esse adjetivo que melhor englobava uma trajetria que envolvia poltica, ensino, crtica e teoria, que comeou com o Clube de Cinema de So Paulo (do qual par-ticipou desde 1940), passando pela converso absoluta ao cinema por meio de Plnio Sussekind (fundador do Chaplin Club), em Paris, e termina na Cinemateca (em 1957, o Clube de Cinema se torna Fundao Cinemateca Brasileira) e nos cursos de cinema das universidades de Braslia e de So Pau-lo. Louis Delluc, responsvel, de certa forma, pela disseminao do termo cineclube, tambm pensava nesse tipo de relao com o cinema: foi o criador da palavra cineasta que, para ele, definia aquele que via, pensava e fazia cinema em todos os nveis. Em outras palavras, o pblico organizado para se apropriar individual e coletivamente do poder e do sentido do cinema. Na sociedade atual, o pblico um conceito que praticamente se con-funde com a totalidade da populao, pois o principal meio de comunicao e socializao em todo o planeta so as mdias, controladas pela chamada in-dstria cultural ou de entretenimento.

    E, entre essas, a base funda-mental o audiovisual (cinema, tev, internet, celulares etc.), cuja linguagem matriz a do cinema. Os cineclubes so a forma organizacional e mesmo insti-tucional (existem nas legislaes da maioria dos pases do mundo) desse pblico, desse proletariado contempo-rneo que no s no tem acesso aos meios de produo, mas igualmente no tem acesso aos meios de produ-o do seu prprio imaginrio. Que no dispe apenas de sua fora de trabalho para vender, mas cuja subjetividade, hoje, apropriada e comercializada ao simples aceder internet e s ironica-mente chamadas de redes sociais, de fato sob controle privado.

    Dolores Del Ro, diva do cine mexicano, com dezenas de filmes em Hollywood.

    Felipe Macedo cineclubista e diretor de atividades culturais do Memorial da Amrica Latina.

  • 14

    8por Marcelo Lyra

    Latino-Americano de So Paulo

    A Amrica Latina apresenta uma diversidade cinematogrfica que desafia classificaes e tentar determi-nar um padro de estilo latino-america-no sempre foi um desafio e tanto. Uma oportunidade rara de tentar fazer essa comparao, ou simplesmente apreciar o melhor da Stima Arte no continente, o 8 Festival de Cinema Latino-Ameri-cano de So Paulo, que acontece de 11 a 18 de julho. Trata-se do maior evento do gnero no Brasil, que exibe curtas, mdias e longas-metragens latinos. Nele o espectador ter uma programa-o com filmes que se destacaram em festivais europeus como Cannes e Ber-lim, e tambm a possibilidade de des-cobrir filmes garimpados nas principais mostras do continente, como o argenti-no Bafici; o Festival de Cartagena, na Co-

    lmbia; e o de Guadalajara, no Mxico. Distribudo em algumas das principais salas de cinema de So Paulo, como o Cinesesc, a Cinema-teca, o Memorial da Amrica Latina e o Cinusp, o evento contar tambm com produes brasileiras, como o elogiado A Falta que Ele Faz, de Maria Clara Escobar, premiado em janeiro na conceituada Mostra de Tiradentes, e o documentrio sobre Mazaroppi, diri-gido pelo crtico Celso Sabadin. Entre os destaques de lngua hispnica est o documentrio Miradas Mltiplas, que aborda a obra do mais importante diretor de fotografia do cinema mexi-cano, Gabriel Figueroa, com depoi-mentos dos principais fotgrafos do mundo analisando cenas de seus filmes. Este ano a organizao do

    festival decidiu homenagear no ci-neastas, mas dois nomes ligados ao pensamento, difuso e preservao do cinema: o crtico Jos Carlos Avellar e o j lendrio ex-diretor da Cinemate-ca Uruguaia, Manuel Martinez Carril. Avellar um dos mais respeitados cr-ticos de cinema do Brasil, e dedica boa parte do seu tempo ao estudo do cine-ma latino-americano. No por acaso, autor do livro A Ponte Clandestina, uma referncia quando se fala em pesquisa do cinema deste continente. Apesar de morar no Rio de Janeiro, Avellar fre-quenta o Festival Latino-Americano h alguns anos e o considera importante por permitir uma reflexo sobre o con-junto da produo atual do continen-te. So pases com cultura bastante variada, cujos filmes apresentam uma

    Festival de Cinema

  • 15

    Realizado pelo Memorial da Amrica Latina, o festival nico do gnero no pas

    Filme : La Rabia Direo : Albertina Carri

    Argentina, 2008

  • 16

    Direo: Juan Carlos Rulfo / Mxico, 1999

    Del Olvido Al No Me Acuerdo

    expresso prpria de cada realidade, com construes estilsticas e dram-ticas muito caractersticas, explica. Segundo ele, o Festival Lati-no de So Paulo, com seus debates e palestras, permite aprofundar questes como o distanciamento que esses pa-ses mantm entre si. Do mesmo jeito que, por exemplo, filmes peruanos pra-ticamente no chegam ao Brasil, filmes uruguaios no chegam Colmbia, fil-mes chilenos no chegam ao Mxico e por a vai. Para Avellar, alm do fator determinante do mercado exibidor dos pases estarem voltados para os fil-mes americanos, preciso considerar tambm que as diferenas estilsticas de cada pas tornam mais difcil essa aproximao. So pases que

    apresentam influncias e caractersticas distintas. Isso remonta de muito tempo, basta notar que nos anos 60 Brasil e Argentina usavam cenrios naturais e cmera na mo, influncia da Nouvelle Vague francesa, enquanto o Mxico preferia filmar em cenrios e usar uma cmera clssica. Nem pre-ciso lembrar o enorme sucesso que os dramalhes mexicanos faziam em toda a Amrica Latina nesse perodo. J Martinez Carril esteve frente da Cinemateca Uruguaia por cerca de duas dcadas, o que no pouca coisa quando se pensa que se trata da maior cinemateca da Amri-ca Latina. Ela existe h 60 anos, tem mais de 15 mil filmes em seu acervo, conta com oito mil scios que pagam

    mensalidade (o que lhe permite no depender tanto do governo) e possui seis salas que esto sempre exibindo mostras e retrospectivas. Para se ter uma ideia, a Cinemateca Brasileira, que tambm das maiores, possui apenas duas salas e cerca de dez mil filmes no acervo. Para alm da questo do acer-vo, a Cinemateca Uruguaia est ligada ao processo de resistncia ditadura militar que governou com mo de ferro o pas de 1973 a 1984. Suas sesses eram um dos raros momentos em que a sociedade civil uruguaia tinha chan-ces de protestar contra o regime e ela tornou-se assim uma importante trin-cheira na luta por liberdade. Por con-ta disso a Cinemateca tem um papel importante na vida cultural uruguaia.

  • 17

    Un tigre de papel

    Direo: Luis Ospina / Colmbia, 2008

  • 18

    Juntos, Martinez Carril e Jos Carlos Avellar organizaram uma mos-tra, intitulada Carte Blanche, com 12 fil-mes que consideram mais representa-tivos da produo do continente. Cada um indicou seis pelculas que segundo eles contriburam de forma significativa para a construo e o desenvolvimen-to da cinematografia latino-americana, alm de representarem a diversidade da produo cultural. Dentre os des-taques esto Deus e o Diabo na Ter-ra do Sol (1964), de Glauber Rocha; As Es La Vida (2000) do mexicano

    Arturo Ripstein; La Rabia (2008), da argentina Albertina Carri; e Cobra-dor (2006) do mexicano Paul Leduc. A programao do festival inclui ainda a Competio de Escolas de Cinema Ciba-Cilect, que exibe cur-tas-metragens das principais facul-dades de cinema da Argentina, Brasil, Cuba, Equador, Mxico e Uruguai. As universidades brasileiras que integram o Ciba-Cilect so a ECA-USP e a Faap. Destaque tambm para a mostra 40 anos de ABD (Associao Brasileira de Documentaristas), cujo programa ir

    homenagear a Jornada de Cinema da Bahia, um dos mais tradicionais festi-vais de cinema brasileiro. Haver ainda a Mostra do Itamaraty de Cinema Sul--americano, voltada para coprodues entre no mnimo dois pases. Cada pas participante seleciona dois filmes para represent-lo na competio; e tam-bm uma mostra de Telefilmes copro-duzidos pela TV Cultura.

    Direo: Albertina Carri / Argentina, 2008

    La Rabia

    Marcelo Lyra jornalista e crtico de cinema.

  • 19

    Manuel MartinezCarril

    Diretor honorfico, autntico crebro e motor da Cinemateca Uru-guaia, crtico de cinema e autor de vrios livros e publicaes, como Trs Rostros del Cine Norteamericano, Me-dio Siglo de Cinematecas en America Latina e Preservar el Cine. Tem integra-do o jri de diversos festivais interna-cionais, entre eles o de San Sebastian,

    Valladolid, Habana e Via del Mar. correspondente do Nues-tro Cine, de Madri, e Celuloide, de Lisboa. Seu ltimo trabalho La Vida til Um conto de Cinema, sucesso no circuito cinfilo e no Festival de Cartagena 2011 foi o filme que mais acumulou trofus - ganhou os reco-nhecimentos de melhor filme da Fi-

    presci, meno especial dos Cineclu-bes (Associao La Iguana) e meno especial da crtica colombiana. Em La Vida til, Martinez se autointerpreta, como diretor de cineclu-be cercado pelas dificuldades do meio. O cineasta acumula vrias premiaes, inclusive o Trofu Kikito de Cristal do Festival de Cinema de Gramado.

    8 Festlatino homenageia o premiado mestre uruguaio

    Dois momentos do diretor uruguaio

  • 20

    Tal como o consumo e a cir-culao de bens materiais, a produo audiovisual contempornea e sua re-cepo se tornaram irrefreavelmente globais. Ao contrrio de temticas e estticas antes identificadas com determinados limites (nacionais, idiomticos e culturais), o regime das i- magens agora se organiza em termos de realizao e projeo transnacio-nais. Enquanto isso, as coprodues cumprem papel de condio funda-mental subsistncia do cinema mi-

    noritrio (leia-se no industrial), do mesmo modo que os festivais so espaos privilegiados de circulao e exposio. Por isso, tentar reconstitu-ir os traos de uma identidade lati-no-americana dispersa na produo cinematogrfica em curso nos pases da regio equivaleria a resumir a mul-tiplicidade de aspectos do cinema da sia etiqueta, incua e extica, cine- ma oriental. Neste contexto de fluxos que

    se nutrem e se confundem, o cinema latino-americano, que pelo menos at os anos 1970 manteve-se mais identifi-cado com escolhas estticas e temticas relacionadas noo de terceiro mun-do, tambm vem sofrendo sensveis mutaes estilsticas e narrativas. Apesar de tais indcios de renovao passarem, em geral, des-percebidos ao grande pblico que se-gue quase apenas a agenda do cinema comercial, o sismgrafo dos grandes festivais vem registrando a constncia

    Continente busca sua geografia cinematogrfica

    por Cssio Starling Carlos

    A Teta Assustada - 2009

    Claudia Llosa - Peru

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    tanto dos movimentos de maior escala como dos pequenos e mais individu-ais distrbios. A partir da dcada de 1990, com a emergncia do chamado Novo Cinema Argentino, passamos a tomar conhecimento de uma produo ml-tipla e bastante politizada, apesar de pouco ou nada identificada com os marcos ideolgicos que orientaram o trabalho de seus predecessores. Se o cinema se tornou, no caso da Argentina nos anos Menem, um foco de inquietao, de manifes-tao de divergncia com o presente, foi em grande parte porque se re-descobriu na tela um lugar onde pro-jetar e reunir experincias coletivas. Mesmo, e sobretudo, quando se tra- tava de mostrar o espelho estilhaado e uma imagem destruda. Ali, a fico descobriu ter perdido o sentido. Para se reconstituir,

    mirava a realidade como matria-pri-ma, como um sustento para vol-tar a crer. A partir da recorrncia de condies materiais e solues estti-cas no foi difcil reconhecer naquela srie de primeiros filmes a inspirao no cinema moderno nascido na matriz neorrealista. Por outro lado, a sbita visi-bilidade alcanada pelos filmes argen-tinos naquele perodo amplificou a re-ceptividade e garantiu que uma leva de jovens realizadores de outras origens americanas surgisse no cenrio. Ao mesmo tempo, a aprovao de mecanismos legais de fomento produo audiovisual permitiu o surgi-mento de pequenos focos de expresso cinematogrfica, alm dos trs (Argen-tina, Brasil e Mxico) que h dcadas possuem uma produo quantitativa-mente expressiva. Concomitantemente, a dis-

    seminao do suporte digital e o ba-rateamento dos custos antes proibiti-vos na era da pelcula tm viabilizado uma abundante produo independen-te e estimulado a expanso de novas estticas, sobretudo no campo do do- cumentrio, at ento um mero nicho. A influncia isolada ou combinada dessas condies vem transformando a paisagem audiovisual latino-ameri-cana, tanto como no mundo todo, em termos quantitativos e qualitativos. O nmero de longas-metra-gens nacionais lanados no circuito comercial dos principais pases produ-tores (Argentina, Brasil, Mxico, Chile, Colmbia, Venezuela, Uruguai e Peru), por exemplo, saltou de cerca de 110 em 2000 para em torno de 280 ttulos em 2010. O impacto na qualidade, di-ficilmente quantificvel, evidencia-se, no entanto, na presena constante

    gua Fria de Mar - 2010

    Paz Fabrega - Costa Rica

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    em festivais que definem o gosto e a ateno da cinefilia mundial (Berlim, Cannes, Veneza e, em outro recorte, Roterd e Locarno). O primeiro, por exemplo, concedeu o Urso de Ouro ao brasileiro Tropa de Elite (2008) e ao peruano A Teta Assustada (2009) e o no menos importante prmio Al-fred Bauer (distino para obras que abrem novas perspectivas arte ci- nematogrfica) para os argentinos O Pntano (2000) e O Guardio (2006), o mexicano Lake Tahoe (2008) e o uruguaio Gigante (2009). Dos quatro longas dirigidos pelo mexicano Carlos Reygadas, todos foram exibidos em Cannes e trs rece-beram prmios. O paraguaio Hamaca Paraguaia surpreendeu a maioria ao conquistar um prmio da crtica em Cannes em 2006. No ano anterior, o mexicano Sangre fora o escolhido tambm pela crtica da seleo Un Certain Regard. A produo costa riquenha gua Fria do Mar ficou com o prmio principal da competio de Roterd

    em 2010. No mesmo festival, o bra-sileiro O Som ao Redor foi o escolhido pela crtica em 2012. Depois de um prmio para-lelo em Cannes, o chileno No ainda foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2013, categoria que o argentino O Segredo dos Seus Olhos vencera dois anos antes. Buscar traos comuns, tendncias formais ou temticas neste grupo de filmes ou mesmo em outros com menor repercusso miditica nos expe aos riscos do reducionismo. Se na maioria deles possvel identificar como linha de fora a observao de nossas to comuns fraturas sociais, o que chamaramos de discurso poltico evidencia-se mais na singularidade das opes formais que nas demons- traes engajadas assumidas por nos-sos cineastas de outrora. Mesmo que muitos compar-tilhem a crena no documental como recurso que potencializa a fico (ou faa confundir as fronteiras), os resul-tados dspares inviabilizam reuni-los

    como demonstraes de um mesmo programa, como tanto se fez com a gerao dos anos 1960. A presena recorrente de am-bies estilsticas tpicas do cinema de autor, por outro lado, tem muito o sentido de estratgia de diferenciao, o que permite a obras e realizadores impor valor num mercado hipersatu-rado de ofertas. Neste cenrio, difcil no concordar com a ironia do crtico e cineasta argentino Sergio Wolf quando escreveu que a noo de cinema lati-no-americano algo pensado pelos Estados Unidos, e especialmente pela Europa, na medida em que nenhum festival srio do planeta imaginaria uma seo denominada cinema euro-peu, na qual convivam filmes france- ses com blgaros, ou alemes com is-landeses, s por terem sido feitos num espao delimitado geograficamente.

    Lake Tahoe - 2008

    Fernando Eimbcke - Mxico

    Cssio Starling Carlos crtico, curador e profes-sor de Histria do Audiovisual.

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    MEMORIALdA AMRIcA LAtInA

    DIVULGANDO A CULTURA LATINO-AMERICANA

    24 AnOS

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    Mulheresatrs cmerasDesde a dcada de 1910 as diretoras de cinema lutam por um espao na cinematografia latino-americana

    daspor Marcelo Lyra

    A argentina Paula Hernndez, autora do premiado Herencia.

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    A cineasta americana Kathryn Bigelow surpreendeu o mundo h trs anos ao se tornar a primeira mulher a levar o Oscar de melhor direo por Guerra ao Terror. Como ela, mulheres diretoras quase sempre tiveram espao em Hollywood, sendo Sofia Coppola a mais destacada junto crtica. Vale ci-tar ainda as popularssimas de pblico, Amy Heckerling, de Olha Quem est Falando e As Patricinhas de Beverly Hills; e tambm Catherine Hardwicke, que dirigiu, entre outros, Vanilla Sky, a srie popular Crepsculo, e Aos Treze. Abaixo do Rio Grande, dis-tante deste mundo de glamour e dos holofotes miditicos, existe uma bela histria de luta, pioneirismo e supe-rao de mulheres latino-americanas que se tornaram cineastas, impondo-se graas ao talento e determinao.

    Os primeiros filmes femininos que se tem notcia datam da segunda dcada do sculo XIX e ainda provocam controvrsia pela dificuldade de se obter documentao. Na Argentina h duas pioneiras de destaque: Maria Saleny, que dirigiu dois filmes, Nia del Bos-que (1917) e Clarita (1919); e Maria de Celestini, autora de Mi Derecho (1920). No Mxico, a atriz Mara Her-minia Prez de Len, mais conhecida como Mimi Derba, iniciou sua carreira como corista no vaudeville, e depois de se tornar famosa, fundou em 1917 com o cinegrafista Enrique Rosas a Sociedad Cinematogrfica Mexicana, a primeira produtora de cinema do Mxico, que depois mudaria seu nome para Azteca Films. Em menos de um ano, produzi-ram cinco filmes, quatro deles estrela-dos pela prpria atriz, que tambm par-

    ticipava dos roteiros, produo e edio. Curiosamente, ela viria a ser a primeira diretora mexicana justamente no nico filme da produtora em que ela no atuou como atriz: A Tigresa (1917). Infelizmente, apenas algumas fotos res-taram das produes da Azteca Films. Merece destaque ainda a ve-nezuelana Margot Benacerraf, nasci-da em 1926, que estudou cinema em Paris e tornou-se mundialmente co-nhecida graas ao elogiado documen-trio Araya, sobre uma antiga mina de sal explorada por sculos depois da descoberta pelos espanhis. O filme ganhou o Prmio Internacional de Cr-tica do Festival de Cannes em 1966, dividido com nada menos que Hiroshi-ma mon Amour, de Alain Resnais. Hoje, um elenco considervel de diretoras trilha o caminho aberto

    Lucrecia Martel, autora de vrios filmes premiados, uma das mais renomadas cineastas de sua gerao.

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    por estas pioneiras. A mais importan-te delas sem dvida Lucrecia Martel, diretora do genial O Pntano, indicado ao Leo de Ouro em Berlim. Ela cursou Comunicao e comeou no cinema di-rigindo documentrios e curtas como o premiado Rei Morto. Posteriormente fez tambm A Menina Santa (2004), in-dicado Palma de Ouro em Cannes e que ganhou meno honrosa da crtica na Mostra Internacional de Cinema de So Paulo. Em 2008, A Mulher Sem Cabea tambm foi indicada Palma de Ouro em Cannes e venceu o prmio da crtica no Festival do Rio de Janeiro. Ainda entre as argenti-nas, Paula Hernndez se exps com

    os longas Chuva (2008) e Herencia (2001). Entre as equatorianas, con-tudo, destaca-se Tania Hermida, que foi premiada no festival de Havana em 2006 com o filme Qu tan lejos. Paz Fbrega nasceu em 1979 em San Jos, Costa Rica, onde estu-dou fotografia e jornalismo. A seguir, mudou-se para Londres, onde estudou cinema. Seu filme Temporal, rodado no interior da Costa Rica em 2006, con-correu em diversos festivais interna-cionais. Seu filme seguinte, gua Fria do Mar (2008), considerado o marco da retomada cinematogrfica da Costa Rica, foi finalista em Sundance (2008) e abriu o quinto Festival de Cinema La-

    tino-Americano de So Paulo em 2010. A cineasta peruana Claudia Llosa inicialmente era mais conhecida por ser sobrinha do escritor Mario Var-gas Llosa. Mas bastaram dois filmes para que ela conquistasse o respeito da crtica internacional. Em 2009 foi ven-cedora do Urso de Ouro no Festival de Berlim com o filme A Teta Assustada. Em seguida, dirigiu a elogiada copro-duo hispano-peruana Madeinusa, rodada nos Andes peruanos e que teve o roteiro premiado no Festival de Havana, alm de receber prmios em Sundance, Rotterdam e Mar del Plata. O documentrio O Corpo Equi-vocado, escrito e dirigido pela cubana

    A produo equatoriana conta com a criatividade de Tania Hermida, diretora de Qu tan lejos, de 2006.

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    Marilyn Solaya, foi eleito pela crtica cubana como uma das melhores obras do pas em 2009 e recebeu tambm o Prmio Especial do Jri no Festival In-ternacional de Cinema de Bilbao. O filme faz uma viagem para dentro da vida de Mavis, um transexual cubano que, vinte anos depois de sua cirurgia para mudan-a de sexo questiona sua feminilidade. Por ltimo, no se pode deixar de citar as brasileiras, como a pioneira produtora Carmem Santos, atriz de des-taque desde Urubu (1919), e produto-ra de clssicos como Sangue Mineiro (1929), do ciclo de Cataguases, e Favela dos Meus Amores (1936). Carmem tornou-se diretora uma nica vez, com

    o filme Inconfidncia Mineira (1939). Nos anos 70 e 80 ganharam desta-que as diretoras Ana Carolina (Mar de Rosas, 1979), Tizuka Yamazaki (Gaijin, 1979) e Suzana Amaral (A Hora da Estrela, 1986). Mas foi de-pois da chamada Retomada, ciclo de cinema brasileiro que se inicia com a criao da Lei do Audiovisual em 1993, que as mulheres comearam a ganhar enorme destaque. A comear por uma das mais talentosas, Tata Amaral, do j clssico Cu de Estre-las (1997); Lais Bodanski (Bicho de Sete Cabeas, 2000); passando por Lcia Murat (Doces Poderes, 2000); Carla Camurati (Carlota Joaquina,

    1995); Eliane Caff, Sandra Werneck, Betse de Paula e um sem-nmero de jovens diretoras como Juliana Rojas. Para se ter uma ideia, antes da Retomada (ou seja at 1993), as mulheres diretoras no chegavam a dez. Hoje j passam de cem e o n-mero cresce em progresso aritm-tica. Isso se deve maior democra-tizao do acesso ao cinema, tanto pelo barateamento do equipamento (principalmente com o advento das cmeras digitais) at os frequentes editais da secretaria do Audiovisual, que escolhem os filmes pela quali-dade do roteiro, independentemente de quem seja o autor.

    Ana Carolina, nome forte entre as diretoras brasileiras, comeou a

    destacar-se em 1979 com o filme

    Mar de Rosas.

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    Dois nomes seminais do cinema brasileiro

    Silvio TendlerE n t r e v i s t a

    &por Maria do Rosrio Caetano

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    Fernando Meirelles

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    Em novembro de 2011, o cineasta Silvio Tendler acordou te-traplgico. Eu tinha 61 anos, de-zenas de projetos em vrias fases de criao e uma vontade imen-sa de viver, mas me senti como um saco de batatas, relembra. Sem conseguir mover o pescoo, as mos e as pernas, Ten-dler desesperou-se. Clamou para si mesmo: que sejam preservados minha fala, minha cabea, meus pensamentos e o poder de criao, pois tenho muito ainda por fazer. Tetraplgico, tomou o rumo do Hospital Sarah Kubitscheck, em Braslia. Imaginava que seus males eram consequncia do diabetes que o atormenta h anos. Mas o Dr. Campos da Paz, mdico renomado, avisou tratar-se de compresso da medula. Que tudo faria para ajud-lo a recuperar os movimentos com o recurso da fisioterapia, mas sem cirurgia, pois esta seria muito arriscada. O inquieto cineasta resolveu procurar o Hospital Albert Einstein, em So Paulo. Rece-beu a recomendao de operar-se, no Rio, com o Dr. Paulo Niemeyer. O mdico carioca alertou-o dos imensos riscos da cirurgia. Tendler assinou, com a digital do polegar, a neces-sria autorizao do procedimento mdico. E passou para a filha, Ana Rosa Tendler, todas as responsabili-

    dades legais sobre seus acervo e obra. Tive um enfarto no meio da operao, relembra, acomodado em sua cadeira de rodas, mas j mo-vimentando as mos com vivacidade. Tudo deu certo e Tendler agradece, para o todo e sempre, ao Dr. Niemeyer, que no cobrou nada pela arriscada cirurgia. Agora, em casa, j consi-go me locomover com um andador. Nos espaos pblicos, se locomove em cadeira de rodas. A filha cuida de toda a parte administrativa da produ-tora Caliban, criada em 1981, e ele se-gue trabalhando, incansvel. Nesta entrevista Nossa Amrica Hoy, o carioca Slvio Tendler, um baiano de alma, que filmou as trajetrias dos baianos Glauber Rocha, Milton Santos, Castro Alves e Mari-ghella, fala de Jango, seu document-rio mais conhecido; dos muitos proje-tos que est desenvolvendo e de sua paixo pela Amrica Latina. Um terri-trio que faz parte de sua vida desde 1970, quando, aos 19 anos, foi viver no Chile de Salvador Allende.

    N.A.H.- Com a proximidade dos 50 anos do Golpe Militar de 1964, voc vem mostrando Jango em vrios fes-tivais, cineclubes e associaes pro-fissionais. Voc pretende relanar o filme em 2014?

    S.T.- Se houver espao no mercado, claro. Jango fez quase um milho de espectadores em 1984. S perde, entre meus sucessos de bilheteria, para O Mundo Mgico dos Trapa-lhes (1.891.425). Mas fao questo de deixar claro que Jango nunca saiu de cartaz. O filme , constantemente, exibido em cineclubes, universida-des, escolas de segundo grau, perife-rias urbanas e sindicatos. Alis, meus filmes tm uma sobrevivncia enorme nos circuitos alternativos. Esto dis-ponveis em DVD (no caso de Jango, com legendas at em esperanto!). Lamento muito que a Ancine no leve em conta este pblico, vital para o cinema brasileiro. S se leva em conta o border das salas comerciais, um circuito formatado para o blockbuster norte-americano, presente em apenas 9% de nossos municpios. Claro que, ano que vem, com os 50 anos do golpe militar, nossos filmes sero requisita-dos (Tendler usa o plural por referir-se tambm aos filmes Dossi Jango, de Paulo Fontenelle, que discute se Jango foi assassinado ou no, e ao de Camilo Tavares, O Dia Que Durou 21 Anos). Quando realizei Jango, no comeo dos anos 1980, no entrei na questo do possvel assassinato dele, porque havia pouco material de trabalho. Pa-rentes dele me contaram que Jango pensava em ir morar em Londres, pois

    Glauber o Filme, Labirinto do Brasil - 2003

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    no havia mais espao para ele na Ar-gentina e no Uruguai, visto que as di-taduras tomavam conta do Cone Sul. Nestes quase 30 anos, muito material surgiu. Jango, meu segundo longa-metragem, me trouxe muitas alegrias. Havia um fervor cvico nas sesses do filme, a maioria lotadas. Me lembro que Villas-Boas Correa definiu meu filme como parcial, mas imperdvel. Srgio Augusto, por sua vez, escreveu: imparcial, s com a cmara desliga-da. A fortuna crtica do filme me esti-mula at hoje.

    N.A.H.- Voc tem conseguido levar seus projetos adiante, apesar dos problemas de sade que enfrentou nos ltimos anos?

    S.T.- Sim, no paro de trabalhar um s dia. Se no estou filmando, estou com a cabea fervilhando, elaborando novas ideias. Acredito na vida e no cinema, com todas as minhas foras. O cinema, para mim, militncia diria. Fiz, com apenas R$50 mil, o documentrio O

    Veneno Est na Mesa. Coloquei o filme no youtube e ele j teve 130 mil acessos. Realizei, para a TV Brasil, a srie Caa-dores de Alma, sobre fotgrafos. Conhe-ci, em Pernambuco, o Mestre Jlio, um pintor-fotgrafo sensacional. E registrei a obra dele e de outros caadores de imagens, em 13 episdios de 26 minutos cada. Com minha filha de produtora-exe-cutiva, estou realizando Sujeito Oculto na Rota do Grande Serto: Veredas, sobre a viagem de Guimares Rosa pelas Minas Gerais; J.Carlos, sobre o grande ilustra-dor, em parceria com Norma Bengell, agora cadeirante, como eu; Advogados Contra a Ditadura, sobre os juristas que enfrentaram o arbtrio na defesa de pre-sos polticos; Militares Contra Ditadura, no qual registro os militares que desafia-ram o autoritarismo do regime militar; A Alma Imoral, sobre o rabino Nilton Bon-der, e Poema Sujo Ferreira Gullar, srie de cinco programas com o grande poeta maranhense, para a TV Brasil. E, para minha alegria, o cineasta Noilton Nunes est fazendo um documentrio sobre mi-nha trajetria no cinema e vida.

    N.A.H.- Voc integra o Comit de Ci-neastas da Amrica Latina, que tem no Festival de Havana seu epicentro. Em que momento se deu seu conta-to com o cinema hispano-america-no? No Chile, quando voc integrou a equipe do francs Cris Marker, na produo de La Spirale?

    S.T.- Conheci o cinema latino-ameri-cano de perto, em 1970, quando fui morar no Chile, logo no incio do go-verno Allende. Cheguei a Santiago no dia dez de novembro de 1970, e logo que cheguei penso, onde iria morar, vi pela televiso o restabelecimento de relaes diplomticas entre Chile e Cuba, rompidas desde o incio dos anos 1960. No mesmo dia, inaugura-va-se, em Santiago, exposio organi-zada pela Universidade de Havana. Foi neste momento que conheci Miguel Littin, que era a grande estrela do ci-nema chileno. Ele havia feito O Chacal de Nahueltoro, um filme de grande repercusso. Conheci, naqueles anos, o cineasta Julio Garcia Espinosa e um

    Jango - (1984)

    JANGO

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    dos criadores do Icaic (Instituto Cuba-no de Arte e Indstria Cinematogrfi-cas), Alfredo Guevara. Nunca mais o cinema latino se desgarraria de minha pele. Em seguida, conheci o grupo de realizadores do grupo Cine Expe-rimental, da Universidade do Chile, sobretudo a figura de Pedro Chaskel. Conheci e trabalhei com Hugo Araya, el salvaje, assassinado em 1973. Em 1971, participei dos Talleres da Chilefilms, organizados por Littin, e fiquei amigo de Sergio Trabucco, convivi com Patricio Guzmn, Andres Racz, Jorge Muller y otros.

    N.A.H.- Que cineastas e obras lati-no-americanas o marcaram? E como a Amrica Latina e seus criadores, como Eduardo Galeano e Santiago Alvarez, entraram em sua obra?

    S.T.- Fui morar em Paris, em 1972, e o cinema latino-americano j cir-

    culava em minhas veias. Acho que foi isso que me aproximou de Cris Marker. Em 1973, ele me mandou para Leipzig, na antiga RDA (Repbli-ca Democrtica Alem), onde conheci os cubanos Santiago Alvarez, Jorge Fraga e um cineasta do exrcito cuba-no, Abelardo Cambra, que s falava de Kalshnikovs (risos). O mais bri-lhante, sem dvida, era Santiaguito. Tudo que vinha de Cuba me fascinava. Em Leipzig, conheci os colombianos Carlos Alvarez, Martha Rodrigues e Jorge Silve. Reencontrei os brasi-leiros Cosme Alves Netto e o Srgio Muniz. Estavam l tambm o (Jos Artur) Poerner e o Jlio Medaglia. Compartilhei um quarto com Patricio Guzmn. Era um universo fascinante para um garoto de 23 anos que amava os Beatles e a revoluo. O Comit de Cineastas da Amrica Latina e a Fun-dacin del Nuevo Cine s entraram na minha vida nos anos 1980, por inter-

    Utopia e Barbrie - 2005

    mdio do Cosme. J tinha voltado ao Brasil, j havia feito Os Anos JK. Meus gurus e referncias? O texto Por un Cine Imperfecto, de Julio Garcia Espi-nosa, e os filmes de Santiago Alvarez, Cris Marker e de todos que conheci desde que desembarquei no Chile. E, claro, o grande Tomaz Gutierres Alea.

    N.A.H.- Voc mostrou, ao receber homenagem do Cine PE 2013, vdeo autobiogrfico, no qual se apresenta como cineasta dos vencidos, dos perdedores. Neste mesmo vdeo, voc aparece em fotos com persona-lidades do cinema e da poltica, com as quais esteve ao longo dos anos. Incluindo o General Diap, do Vietn. Mas voc no visto ao lado de Cris Marker, que tanto marcou sua tra-jetria e foi fonte de inspirao do mais ousado dos seus filmes, Utopia e Barbrie. Por que?

    S.T.- Conheci Cris Marker em 1972, em Paris. Antes, trabalhara na equipe dele, que realizou La Spirale, no Chile. Na verdade, ramos um coletivo, cheio de jovens loucos para documentar o Chile de Allende. Estive com ele vrias vezes, na Frana, onde estudei, e po-deria ter feito uma foto ao lado dele. S que teria que ser na cara de pau, pois ele sempre foi muito arredio. So raras as fotos dele. Na juventude ele era lindo, um prncipe. Depois, fi-cou careca. Quem sabe no quis ser fotografado na fase madura por esta pequena vaidade? S Wim Wenders conseguiu fotograf-lo. Deve ter sido muito convincente. Eu dediquei Uto-pia e Brbarie, meu ltimo longa do-cumental, a Cris Marker. Espero que este filme, to pouco visto no circuito comercial, seja visto como merece nos circuitos paralelos.

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    E n t r e v i s t a

    A pegada internacional de Meirelles Fernando Meirelles est trabalhando muito. Como remador de Ben-Hur, diria Nelson Rodrigues. Em cinema e, principalmente, TV. A O2, produtora que mantm com scios no Alto da Lapa paulistano, desenvolve dezenas de projetos para diversas e poderosas emissoras. Da Globo Fox, passando pela HBO. A nova lei brasileira da TV a cabo, que obriga a exibio, em horrio nobre, de trs horas semanais de pro-gramas brasileiros, um divisor de

    guas na histria do nosso audiovisual, constata, satisfeito. Aos 57 anos, o realizador, que soma sete longas-metragens em carreira cinematogrfica iniciada tar-diamente (com curtas-metragens, aos 40 anos, e com longas, aos 43), gosta de lembrar que atuou mais na TV e como produtor de projetos cinemato-grficos alheios, que como diretor. Mesmo assim, viu seu nome transfor-mar-se em sinnimo de cineasta bem-sucedido, com amplo reconhecimento

    internacional, por causa do frisson causado por Cidade de Deus, que em 2002 abriu o Festival de Cannes, con-quistou 3,2 milhes de espectadores no Brasil, foi vendido para diversos mercados internacionais, e, dois anos depois, disputou quatro importantes categorias do Oscar (direo, roteiro, fotografia e montagem) junto Acade-mia de Artes e Cincias de Hollywood. Meirelles estreou no longa-metragem com Menino Maluquinho 2 A Aventura, codirigido por Fabrizia

    Cinema virou conto enquanto as sries se transformaram no novo romance

    por Maria do Rosrio Caetano

    O Jardineiro Fiel - 2005

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    Pinto. Prosseguiu com outra parceria (Domsticas, com Nando Olival). A veio o estouro de Cidade de Deus. E a seduo do mercado internacional. Foi ao Festival de Veneza com O Jardineiro Fiel, falado em ingls, idioma hegem-nico em seus filmes seguintes: Ensaio Sobre a Cegueira e 360. E no prximo: Nemesis, uma cinebiografia de Aristte-les Onassis, produo internacional, de elenco idem. Nesta entrevista revista Nossa Amrica Hoy, Meirelles fala de seu entusiasmo com a TV, que o mobiliza desde o incio dos anos 80, destaca a qualidade das sries norte-americanas e inglesas, garante que Nemesis um projeto afetivo e autoral, como todos que fiz, justifica porque ao menos matematicamente mais produtor que diretor e torce pelo aumento de coprodues entre o Brasil e a Amrica Hispnica. N.A.H.- Voc est envolvido com seu oitavo longa-metragem, Ne-

    mesis, sobre o Onassis. O que este filme significa para voc? Mais um compromisso de uma carrei-ra que se internacionalizou depois do sucesso planetrio de Cidade de Deus ou um projeto afetivo-autoral?

    F.M.- Depois dos 50 anos abri mo de compromissos que no estejam 100% sintonizados com o que me interessa, nunca investi meu tempo em uma car-reira e no faria isso agora. Sigo tocan-do os projetos que por razes diferentes me mobilizam, neste sentido Nemesis um projeto afetivo e autoral especial-mente porque depois de 12 anos estou finalmente fazendo um filme que, como Cidade de Deus, desenvolvi desde o co-meo. O roteiro de Nemesis adaptado de um livro ingls, mas foi escrito em parceria com o Brulio Mantovani, com quem trabalhei tambm em Cidade de Deus. O filme fala sobre o dio. Neme-sis a deusa da justia ou da vingana, aquela que vem nos entregar a colheita do que plantamos na vida. Por acaso, o

    personagem central grego e a histria se passa nos quatro cantos do mundo, mas a trama arquetpica e o entendi-mento dela universal.

    N.A.H.- Voc tornou-se famoso, mun-dialmente, com um filme falado em portugus, ambientado em favela e protagonizado, em sua maioria, por atores negros e desconhecidos. O festejado Cidade de Deus foi finalis-ta em quatro importantes categorias do Oscar. Depois, sua carreira no ci-nema globalizou-se. Seu nico filme brasileiro, aps o triunfo de CdD, foi Som e Fria, fruto da minissrie de mesmo nome, realizada para a Rede Globo. No chegada a hora de vol-tar a um projeto 100% brasileiro?

    F.M.- Mais do que um filme brasileiro gostaria de rodar um filme em por-tugus, muito melhor trabalhar na prpria lngua, no fiz isso antes por comodismo, talvez. Para fazer um filme brasileiro terei que lutar para conseguir

    Ensaio Sobre a Cegueira - 2008

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    financiamento, torcer para conseguir distribuio e rezar para no ser massa-crado na bilheteria. Os projetos com os quais andei envolvido j chegam com financiamento resolvido, os filmes so vendidos para o mundo todo antes de serem rodados e me sinto igualmente livre para trabalhar. O nico ponto que me faz querer voltar a rodar no Brasil mesmo a lngua. O conceito de nacio-nalidade perdeu um pouco o sentido. O mundo hoje no est mais dividido em naes, so as corporaes que contro-lam o jogo. Viajo da Amrica para a sia e encontro no s os mesmos gostos ou marcas, mas tambm as mesmas aspiraes. As barreiras ou identidades culturais aos poucos esto se diluin-do, e creio que as questes nacionais deixaram de ter relevncia perto da grande questo global que buscar uma forma de vida sustentvel no planeta.

    N.A.H.- Cidade de Deus deu visibi-lidade a uma srie de atores negros, que hoje brilham no cinema, teatro e novelas. A histria do filme vai re-sultar em longa documental, uma es-pcie de making off pstumo. Que outros ganhos CdD, to incompreen-dido na poca por parte da crtica, lhe deu como realizador e cidado?

    F.M.- Cidade de Deus, 10 Anos De-pois, de Cavi Borges e Luciano Vidigal, que foi segundo assistente em Cidade de Deus, no sobre Cidade de Deus, o filme, mas sobre o destino dos ato-res que participaram dele. Os diretores queriam me entrevistar, mas conven-ci-os de que o filme deveria ficar cen-

    trado nos garotos. Ao falar sobre esta gerao de meninos ele falar tambm sobre o que aconteceu com o Bra-sil nesta ltima dcada. Ao entrar em contato muito prximo com uma parte do Brasil que me era estranho, evidente-mente minha compreenso sobre meu prprio pas mudou e muito. Por outro lado CdD tambm me abriu as portas do mercado internacional, porta esta que jamais havia pensado em bater. Ao comear a trabalhar em outros pases, viajando sem parar, acabei me aproxi-mando de outros pontos de vista sobre a nossa civilizao, o que me deu uma nova perspectiva sobre a minha prpria vida e sobre o planeta onde estamos.

    N.A.H.- Entre os projetos de sua volta brasileira figuram Grande Serto: Veredas e uma comdia de corte shakespeareano, que seria es-crita por Jorge Furtado. Diz-se que voc desistiu do caudaloso roman-ce de Guimares Rosa, quando o pico Xingu, que produziu para Cao Hamburger, vendeu menos de 500 mil ingressos. S que na TV ele foi visto, como minissrie, por mais de 15 milhes de brasileiros. Cumpriu com brilho sua funo social, no?

    F.M.- De fato o sucesso da exibio de Xingu na TV lavou a alma, foi a nossa redeno. Quanto a Guimares Rosa coloquei o projeto na prateleira. Este seria um projeto muito caro e muito trabalhoso, que s se justificaria se muitas pessoas fossem ver, mas hoje no sinto que haja pblico suficiente-mente interessado em ver jagunos e

    ouvir prosdia. Quando falo em bilhe-teria, no penso na renda em si, pois a O2 tem a sorte de ter outras fontes de renda e pode se dar ao luxo de no ter que fazer filmes para pagar as con-tas. Quando falo em bilheteria penso no nmero de gente que possa ter contato com a obra. J fiz projetos menores, nos quais a bilheteria no pesou na deciso de embarcar. Caso de Domsticas ou 360, ambos filmes relativamente baratos e feitos sabendo que seriam para um pblico menor. Fazer um filme, como Grande Serto: Veredas, que exigiria tamanho esforo e custo to alto, para correr o risco de morrer na praia, neste momento, no me anima. De qualquer maneira, de-pois de Nemesis quero filmar em por-tugus. Alguma coisa pequena. Talvez.

    N.A.H.- Hoje, sua produtora, a O2, vem sendo procurada como parceira prioritria por emissoras de TV por assinatura, que querem dramaturgia (sries, documentrios, telefilmes) e at jornalismo, para cumprir a cota de produo brasileira. O que a O2 est produzindo de mais significativo?

    F.M.- A mudana da legislao para TV a cabo no Brasil , que agora obriga os canais a exibir 3 horas de programas nacionais por semana, em horrio nobre, um divisor de guas na his-tria do audiovisual brasileiro. Com ela a demanda por produo nacional na TV saltou de 600 para quase 3000 horas por ano. A O2 Filmes, como a maioria das produtoras, se reorganizou para atender a esta demanda. Estamos

    Cidade de Deus proporcionou visibilidade a uma srie de atores desconhecidos.

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    produzindo sete projetos para TV no momento, entre eles destacaria os se-guintes: Contos do Edgar (episdios de 30 minutos adaptados da obra de Edgar Alan Poe); Destino Rio (depois de Desti-no SP, esta srie para a HBO, fala sobre imigrantes no Rio de Janeiro; Os Expe-rientes (srie para a Rede Globo na qual divido a direo com meu filho, o Qui-co). Fora estes, estamos fazendo uma srie jornalstica que fala sobre temas polmicos a partir do ponto de vista dos vrios envolvidos nas questes, e esta-mos comeando a rodar duas sries de comdias de situao, estas sim, gran-des desafios. Comdia no nada fcil. N.A.H.- A O2 tem buscado no mer-cado mo de obra jovem para se renovar e desenvolver projetos que atraiam novos pblicos, ou conta - entre seus scios - com artistas e tcnicos em quantidade suficiente?

    F.M.- Creio que esta, mobilizar mo de obra jovem, seja a principal marca da O2 Filmes, desde o incio. Em Cidade de Deus tnhamos estreantes em quase todas as posies chaves: roteiro, montagem, msica, direo de arte e eu tambm era praticamente um iniciante em longas. Desde ento, investir em gente nova passou a ser a tnica. Se pegarmos hoje a lista do primeiro time que faz cinema no Brasil, nas reas de fotografia, som, montagem, roteiro, direo de arte e mesmo direo, veremos que grande parte deste time comeou suas carreiras na O2 e este movimento continua. Anualmente pro-duzimos curtas e projetos da garota-da que circula pela produtora e tem ideias, isso mantm a brasa acesa.

    N.A.H.- Voc tem dito que a TV, norte-americana em especial, tem produzido melhor dramaturgia que o cinema. Voc acha que isto est acontecendo s nos EUA? Ou tam-bm na Europa e Amrica Latina?

    F.M.- No diria melhor pois arris-cado atribuir valores a filmes ou sries, mas sem dvida, a produo recente de TV, no s norte-americana, mas in-glesa, israelense, argentina e de muitos lugares, tem mostrado maior frescor e inventividade do que a grande maioria dos filmes recentes que tenho visto. As

    possibilidades de arranjos de tramas e estruturas de roteiros em 100 minutos depois de mais de um sculo de hist-ria do cinema parece que praticamente se esgotaram, raro assistirmos a um filme que no nos remeta a algum ou-tro que j tenhamos visto. Quando se tem 12 horas para contar uma histria, como numa srie, as possibilidades de desenvolvimento de personagens ou estrutura de roteiro so muito maio-res. Numa srie possvel ter vrios ncleos de personagens com alto nvel de complexidade cada um. As tramas tambm podem ser muito mais elabora-das, pois h tempo para desenvolv-las, entrela-las e aprofund-las. Estas possibilidades ainda no foram explora-das exausto, por isso as sries tm nos surpreendido e esse mundo inex-plorado que as faz interessantes, tanto para quem assiste como para quem as realiza. Penso em trs razes para que a TV tenha demorado 70 anos para dar este salto. Primeira: a segmentao de canais: a TV a cabo j no precisa mais falar com todo mundo, o que lhe permite bancar experincias mais ousadas. Se-gunda: com a globalizao do mercado de TV, uma srie hoje tem recursos para bancar produes muito mais ca-ras, pois contar com a venda e exibi-o em dezenas de territrios. Terceira: as novas TVs com transmisso HD, maiores e com bom sistema de som, possibilitam aos realizadores explorar a imagem da mesma forma que se faz no cinema. At h pouco tempo, ao fa-zer TV era preciso abusar dos closes, evitavam-se grandes planos gerais e era preciso manter um ritmo de mon-tagem mais acelerado, pois a imagem no segurava muito. Hoje isso no mais um problema. As cmeras, lentes e equipamentos de finalizao usados para fazer TV agora so exatamente os mesmos com que se faz cinema e nos-sas TVs de LED conseguem mostrar isso. Andei dizendo que cinema virou o conto enquanto as sries esto se transformando no novo romance. Con-tos em geral so lidos em uma senta-da enquanto um romance nos envolve por muitos dias, vo entrando na pele aos poucos. A TV est chegando a.

    N.A.H.- Voc coproduziu O Ba-nheiro do Papa, de Fernandez & Charlone (Uruguai-Brasil). Que ba-

    lano faz do resultado desta par-ceria? Vale a pena coproduzir com pases hispano-americanos?

    F.M.- A experincia do Banheiro do Papa foi muito positiva, no tanto pelo lado comercial, mas pela quantidade de prmios e boa resposta que o filme teve por onde passou. Coprodues valem a pena para o Brasil. E valem mais ainda para pases com mercados menores como Uruguai ou Argenti-na, pois possvel somar os benefcios fiscais de cada lado e no lanamento haver dois mercados principais. Mas, mais do que a vontade dos produtores, que existe, o que determina a quantida-de de filmes feitos em conjunto so os tratados de coproduo ou, como no caso recente entre Brasil e Argentina, os editais com este propsito. O Brasil um lugar caro para se filmar. Ento, para ns, vale a parceria para conse-guirmos unir os custos de produo mais baixos conseguidos fora daqui com o maior mercado, que o brasi-leiro. E, claro, cada vez que samos de casa para filmar, a troca de informaes e ideias altamente enriquecedora. N.A.H.- Houve um momento em que voc e Walter Salles integraram a cha-mada Buena Onda, um movimento cinematogrfico que unia argentinos, mexicanos, chilenos e brasileiros. Por que ningum fala mais na Buena Onda? Nossa sina permanecermos de costas uns (os hispano-america-nos) aos outros (os luso-americanos)?

    F.M.- Infelizmente a barreira da lngua tende a deixar o Brasil mais distante do lado hispnico da Amrica Latina. O cinema argentino e o chileno hoje esto mais presentes nas telas do Bra-sil, mas no h nada que indique que este ser um movimento crescente. O mercado de cinema est cada vez mais concentrado nos filmes que chegam com grandes campanhas de marketing e ocupam grandes fatias dos parques exibidores. O espao para cinema in-dependente, ao que tudo indica, nos leva a continuar a lutar de dentro de uma trincheira e por um certo tempo. O mundo est ficando muito igual, o que uma pena. Quanto aos chamados diretores da Buena Onda, esto todos a, tocando seus trabalhos.

    Maria do Rosrio Caetano jornalista e especialista em cinema brasileiro.

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    O mundo hoje no est mais dividido em naes, so as corporaes que controlam o jogo.

    360 - 2011 / Anthony Hopkins

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    Ensino de cinema:plataforma eficiente?

    por Maria Dora Mouro

    O ensino de cinema estru-turado de maneira mais formal, ou seja, em escolas com cursos de longa durao, desenvolveu-se na Amri-ca Latina principalmente a partir dos anos 1960. Dcada de efervescncia cultural e artstica em todo o mundo, retomavam-se propostas de vanguar-da e experimentao. A valorizao do cinema de autor, em contrapo-sio indstria hollywoodiana ou ao cinema de produtor, teve como referncia no somente questes de linguagem mas, principalmente, a criao de uma nova esttica e a defesa de uma postura ideolgica. H uma forte influncia europeia (principalmente italiana e francesa) na produo cinemato-grfica, que tambm se evidencia na criao de cursos de cinema. Muitos dos cursos se vincu-lam a Universidades que, ainda que

    acadmicas, desenvolvem programas de ensino que enfocam a formao do realizador cinematogrfico com um perfil adequado aos novos ven-tos, ou seja, o do cinema de autor, fundamentado no modelo de produ-o independente (da indstria cons-tituda) e com forte marca artstica. O objetivo principal era o da formao de diretores, alvo este em total consonncia com a ideolo-gia dominante do cinema de autor, marcada fortemente pela vanguarda francesa, alm de enfatizar a neces-sidade de realizar filmes que refletis-sem sobre a realidade poltica e so-cial, vinda do neorrealismo italiano. Esse modelo permaneceu at apro-ximadamente 1990, quando o avan-o tecnolgico e a convergncia de equipamentos voltados para o pro-cesso de produo audiovisual (ci-nema e televiso), possibilitaram

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    outras formas de expresso e, em consequncia, determinaram inevita-velmente uma necessidade de revisar os mtodos de pensar e fazer cinema. Nesse sentido, o ensino das artes e tcnicas audiovisuais sofreu profundas alteraes em sua natureza pela intro-duo de novas tecnologias de produ-o e de novos formatos e suportes. Todas as etapas, desde a pro-duo at a difuso e a preservao do audiovisual, tm sido paulatina-mente influenciadas pelo surgimen-to de novas ferramentas e modelos de produo e ps-produo digital. Dentro deste contexto, faz-se necessrio considerar as possibilida-des tcnicas e artsticas que so ofe-

    recidas por estas ferramentas digitais e analisar as mudanas e consequn-cias que j esto ocorrendo dentro da dinmica econmica, social e cultural que afeta a todos os grupos sociais. Sob essa perspectiva, necessrio restabelecer as coordenadas est-ticas, ticas, pedaggicas e econ-micas das distintas manifestaes da arte audiovisual, num mundo de novos modelos de negcios, no-vos pblicos e novas necessidades. evidente que, tendo em vis-ta as mudanas do paradigma tecnol-gico de produo e consumo de cine-ma e audiovisual, o campo do ensino e da formao profissional tambm me-rece ser seriamente considerado. Qual

    o perfil do profissional de audiovisual da era digital e qual o papel das esco-las na formao deste profissional? A escola tem obrigao de orientar o estudante no sentido de desvendar o que est alm da aparn-cia, de descobrir o que est encoberto pelo discurso ideolgico, de perseguir o que se apresenta como real e fazer a releitura necessria. De abrir espao para a experimentao. De propor ao aluno que se aproxime de sua realidade cultural e de encaminh-lo no processo de traduo dessa realidade para o g-nero e o meio que ele deseje empregar. Formar profissionais do audiovisual pressupe, alm do aprendizado do fazer, conhecer o conjunto de expe-

    Imaginao salta o muro do campus e ganha as metrpoles do Brasil e do exterior

    Um, Dois, Trs, Vulco - 2012 / Direo : Miguel Ramos ( ECA, CTR )

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    rincias universais a partir do aces-so a todas as cinematografias e pro-dutos audiovisuais, e no somente deter-se em indstrias hegemnicas ou na do prprio pas. O conheci-mento sobre o outro, o exerccio de voltar o olhar para alm de seu pr-prio mundo, fundamental para ter uma viso mais crtica de si mesmo. H na Amrica Latina um crescimento significativo do nme-ro de escolas de cinema, de cinema e televiso ou de audiovisual. Essa expanso se espelha no interesse e na dependncia crescente da socie-dade em relao ao audiovisual em todos seus formatos. Podemos dizer que hoje, como resultado do desen-volvimento tecnolgico dos meios e processos audiovisuais, o mundo se move em torno do audiovisual.

    O fenmeno acontecido na Argentina, entre o fim dos anos 1980 e o incio dos anos 1990, quan-do deu-se o incio de um expressivo crescimento do nmero de escolas de cinema, a maioria impulsionada pela tecnologia vdeo, mas manten-do a denominao de escolas de cinema, demonstrou o interesse e a necessidade de formao na rea. Esse movimento argentino teve como resultado um aumento da produo cinematogrfica do pas e o surgimento de jovens di-retores, sados das escolas, que, de maneira geral, desenvolveram um cinema de reflexo social, em que a questo poltica aparece como pro-tagonista ou como pano de fundo. O Brasil est tomando o mesmo rumo e, de certa maneira, podemos

    considerar que os profissionais que se formam nas escolas esto en-corpando a produo audiovisual. importante mencionar que to-dos os pases da Amrica Latina tm escolas e/ou cursos de cine-ma e audiovisual, cada um dentro de suas caractersticas sociocul-turais, de indstria cultural e de tradies histricas e polticas. Algumas dessas escolas so mem-bros filiados ao Cilect Centre In-ternational de Liaison des coles de Cinma et Tlvision, associa-o que congrega 160 escolas de 60 pases e que tem como meta compartilhar experincias e conhe-cimentos, incentivar a colaborao entre as escolas, com o objetivo de manter o ensino em altos padres de eficincia.

    Um nmero expressivo de escolas de cinema, a maioria impulsionada pela tecnologia de vdeo, tem aparecido em vrias cidades da

    Amrica Latina. direita, o reconhecido curso de

    cinema, rdio e tv da ECA/USP. Abaixo e esquerda Escola Livre de Cinema e Vdeo de Santo Andr/SP e direita Escola de Cinema

    Darcy Ribeiro / Instituto Brasileiro de Audiovisual no Rio de Janeiro.

    Foto

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    Maria Dora Mouro professora titular do departa-mento de Cinema, Rdio e Televiso da ECA-USP.

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    trs vezes mais caro do que na Argentina e no Chile Fazer filme no Brasil

    O famoso Custo Brasil che-gou indstria cinematogrfica. Junte-se a isso a lei da oferta e da procura funcionando em seu estado puro. Bas-tam esses fatores para provocar uma saraivada de reclamaes de cineastas, produtores, sindicalistas e locadores de equipamentos sobre os atuais altos custos de fazer cinema no Brasil. Em unssono, ao mesmo tempo em que comemoram o superaquecimento do setor, os profissionais do cinema re-clamam da falta de mo de obra espe-cializada, de equipamentos e de est-dios para dar conta de toda a demanda o que, naturalmente, inflaciona os custos de produo. O preo mdio de se fazer um filme no Brasil bate facilmente hoje nos R$ 5 milhes, segundo dados da Agn-cia Nacional de Cinema (Ancine), sen-do que h cinco anos se podia rodar um filme por pelo menos metade dis-

    so. H casos, ainda, de filmes que al-canaram estratosfricos (para a reali-dade brasileira) R$ 26,4 milhes oramento de Amaznia, Planeta Verde, dirigido por Thierry Ragobert e ainda na fase de produo conjunta, pela brasileira Gullane e pela francesa Biloba. Excetuando-se megaprodues como Amaznia, porm, a carestia em relao a equipamentos, mo de obra e locaes tem afetado as produes. Ainda mais se pensarmos que a capta-o de dinheiro do governo, por exem-plo, no cresce na mesma proporo. Atualmente, o dinheiro oficial cobre no mximo R$ 7 milhes dos custos, teto estabelecido pela Lei do Audiovisual. O diretor-geral da Locall, uma das maiores locadoras de equipamen-tos cinematogrficos do Pas, Paulo Eduardo Ribeiro, resume a situao: Esto faltando quatro E na indstria cinematogrfica nacional: equipe, elen-

    co, equipamento e estdio, diz ele, explicando que no h gente porque simplesmente esto todos muito ocu-pados. Aumentou muito o volume de trabalho. Hoje, se voc quiser contratar um assistente de produo ou um ro-teirista experiente no consegue ime-diatamente. E, quando a oferta no acompanha a demanda, o preo sobe, explica Ribeiro. O produtor Fernando Andra-de, da Raiz Produes, concorda com Ribeiro: As equipes vm cobrando cada vez mais caro para fazer filmes. Isso compreensvel, porque o profis-sional autnomo sempre tem de rece-ber um valor por ms que compense o perodo em que teoricamente ficar sem trabalho aps a finalizao do fil-me; s que isso tem se tornado um paradoxo, pois o mercado est a pleno vapor e ele no fica sem trabalho. Mas cobra como se fosse ficar. Andrade

    por Tnia Rabello

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    Mo de obra disponvel no d conta.

    tambm reclama da escassez de pro-fissionais: de uns trs anos para c, toda vez que eu monto uma equipe te-nho encontrado certa dificuldade, co-menta, lembrando do ano passado, ano eleitoral, quando muitos profissio-nais e equipamentos ficaram disposi-o das campanhas dos candidatos. Para fazer minhas produes tive de buscar gente de todo o Brasil, e isso tambm eleva os custos. Alm das leis de incentivo ao cinema que j existiam e do prprio aquecimento da economia que tam-bm estimula, por sua vez, o setor de filmes publicitrios, que utiliza basica-mente os mesmos profissionais e equipamentos cinematogrficos , o fogo ao mercado foi ateado mesmo com a Lei 12.485, mais conhecida como Lei da TV a Cabo, que entrou em vigor em setembro do ano passado. Esta lei obriga as operadoras de TV a cabo a veicularem no mnimo uma hora e dez minutos, em horrio nobre, de contedo independente nacional. A partir da, o setor de audiovisual bom-bou. Sem dvida este o maior mo-mento de produo cinematogrfica da histria, confirma Ribeiro. Efetiva-mente, nunca se produziram tantos fil-mes no Brasil so 100 por ano, con-forme o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indstria Cinemato-grfica e do Audiovisual (Sindcine), Pedro Lazzarini. Na Amrica Latina, s a Argentina se equipara ao Brasil, com 110 filmes por ano. Com tantas produes em andamento, a mo de obra disponvel no d conta de atender a todo mundo ao mesmo tempo, embora profissio-nais experientes finalmente estejam colhendo os louros da opo pela car-reira audiovisual. O audiovisual final-mente passou a ser uma opo vivel para as pessoas, diz Andrea Barata Ribeiro, scia, junto com os cineastas Fernando Meirelles e Paulo Morelli, da O2 Filmes, uma das maiores produto-

    ras nacionais. Como h pouca mo de obra, porm, obviamente que os ca-chs tendem a subir, diz Andrea, acrescentando que atualmente est impossvel cumprir a tabela do Sind-cine, que define o piso para cada cate-goria profissional ligada ao audiovi-sual. H um piso, mas no h um teto, que est cada vez mais alto, emenda. E isso pesa nas produes, j que, como Andrea explica, a mo de obra o prin-cipal custo de um filme. No caso de um filme de alto oramento, representa cer-ca de 30%, com todos os encargos tra-balhistas que a indstria cinematogrfi-ca, como qualquer outra indstria no Brasil, obrigada a cumprir e que en-tram na conta do Custo Brasil. Num filme de baixo a mdio oramento, outra produtora, Sara Sil-veira, da Dezenove Som e Imagens, diz que a mo de obra pesa ainda mais, po-dendo chegar a at 60% dos custos, j que os profissionais empregados tanto num filme de baixo oramento quanto num de alto oramento so quase todos os mesmos. Temos de seguir a tabela do Sindcine, que subiu muito tambm. Est na hora de rever este custo. Gosta-ria muito que o setor repensasse os sa-lrios absurdos que temos tido de pa-gar, reclama Sara, comparando a situao com a Argentina: este pas, que tem um sistema cinematogrfico bem estabelecido e organizado, conse-gue fazer a mesma quantidade de filmes que ns, com excelente qualidade, e com oramentos muito mais baixos, in-clusive da mo de obra, diz. O presidente do Sindcine, Pe-dro Lazzarini, defende a atual tabela, disponvel no site do sindicato (www.sindcine.com.br). Os valores do piso de cada categoria, como roteirista, pro-dutor executivo, secretria de produo, contrarregra, assistente de produo, figurinista, maquiador, entre inmeras outras ocupaes, tem reajuste anual por volta de 6% ao ano; no muito, argumenta. E digo mais: 80% do mer-

    cado de filmes de curta, mdia e longa-metragem respeita esta tabela e paga o piso. Os cachs mais altos so pagos para profissionais renomados, os Pi-tanguys do cinema, completa. Os produtores no veem, po-rm, solues de curto prazo. Andrea lembra que um bom profissional no se forma da noite para o dia. Muitas categorias levam anos para ficar ma-duras. Mesmo com mais escolas, elas no formam uma grande quantidade de gente. J Andrade, da Raiz, men-ciona que escolas tm surgido para suprir essa carncia, como a FocoBr, inaugurada em maro. Como uma das scias da escola, Edina Fuji, define no prprio site, trata-se de suprir uma necessidade que no atendida pelos cursos regulares de nveis superior e tcnico. O uso constante de novas tec-nologias, os inmeros equipamentos e novos recursos exigem uma forte re-novao da mo de obra no mercado audiovisual, e a FocoBr chega com o firme propsito de qualificar e reciclar cada vez mais este profissional. Outra alta de custos que tem alarmado os produtores a da locao de equipamentos, o que tem tudo a ver com o Custo Brasil. H uns quatro anos, se eu pagava uns R$ 8 mil por semana de equipamento de ilumina-o, atualmente devo estar pagando quase o dobro, reclama Andrade. Quem explica o que ocorre Ribeiro, da Locall. Tirando o fato de o Brasil es-tar caro So Paulo, por exemplo, foi eleita, recentemente, a segunda cida-de mais cara do mundo para se viver , Ribeiro comenta que os equipamen-tos de cinematografia so muito espe-cficos; s servem para isso. Alm dis-so, no h muitos fabricantes no mundo, o que obriga importao de pelo menos 80% do que necessrio, diz. E, mesmo sem o Brasil fabricar praticamente nenhum item, temos de pagar entre 80% e 120% de imposto de importao. No sabemos a quem o

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    governo tenta proteger fazendo isso. Ribeiro lembra que a Colmbia paga 20% de imposto na importao de equipamentos cinematogrficos; o Chile no paga nada e a Argentina paga de 15% a 20%. Um refletor, que em uma locadora americana sai por US$ 1.000, aqui custa o dobro, define Ribeiro, con-cluindo que, obviamente, esses fatores refletem no valor final da locao. Tal debate, porm, tem avan-ado na seara governamental. J h um trabalho em desenvolvimento no setor privado, com apoio da Agncia Nacional do Cinema (Ancine), para de-sonerar equipamentos que no tm si-milar no Brasil, informa Ribeiro, acre-ditando ser esta uma soluo de curto prazo. Baixando o imposto, em seis meses a um ano as locadoras importa-riam equipamentos suficientes. Juntando o Custo Brasil Qualquer coisa no Brasil mais cara do que na Amrica Latina; transporte mais caro, estacionamento mais caro, hotel mais caro, diz Andrea, da O2 com a demanda aquecida e a escassez de profissionais, o fato que j no se fazem mais filmes com o mesmo ora-mento de antigamente. H cinco anos, filme de baixo oramento envolvia R$ 1 milho, diz Andrea Saraiva, da O2, que

    trabalha predominantemente com fil-mes de alto oramento, de no mnimo R$ 8 milhes. Este custo subiu uns 30%, comenta a scia da O2. Andrade, da Raiz, diz que h quatro anos conseguia rodar um filme por R$ 1 milho. Hoje, por menos de R$ 2 mi-lhes impossvel, e isso para filme de baixo oramento. Ele calcula que nesse mesmo perodo um filme de m-dio oramento subiu de R$ 2,5 milhes para R$ 4 milhes a R$ 7 milhes e um de alto oramento no Brasil variou de R$ 7 milhes a R$ 9 milhes para no mnimo R$ 8 milhes a R$ 16 milhes. Sara Silveira, da Dezenove, que traba-lha predominantemente com filmes de mdio oramento, acredita que se o mercado adequasse o preo da mo de obra para oramentos de mdio porte j seria um grande avano. Porque voc batalhar verbas crescentes, de no mnimo R$ 4 milhes a R$ 6 milhes, tendo de utilizar a maior parte disso para cobrir custos com mo de obra uma luta inglria, finaliza. Outro fator que encarece bas-tante o cinema brasileiro a valoriza-o do real frente ao dlar, o que torna mais atraente a filmagem, por parte de produtoras estrangeiras, nos pases vizinhos, como Argentina e Chile. As-

    sim, por exemplo, se uma produtora estrangeira bater porta da Amrica Latina em busca de um bom roteiro e de um bom oramento, ver que no fri-gir dos ovos os pases vizinhos sero mais atraentes por causa do Custo Bra-sil e da questo do cmbio real/dlar at porque historicamente Buenos Ai-res escolhida por produtoras europeias, por exemplo, porque guar-da muitas semelhanas com cidades do Velho , ao contrrio das locaes brasileiras. Para ter-se ideia, segundo o presidente do Sindcine, Pedro Lazzari-ni, o valor mdio de uma produo na Argentina de US$ 1 milho, ante US$ 1,2 milho no Chile e US$ 4 milhes no Brasil. E eu no acho que o que pesa realmente nessa diferena seja a mo de obra, complementa Lazzarini, acrescentando que, alm do cmbio desfavorvel e do Custo Brasil So Paulo tem a pizza mais cara do mun-do, destaca , h uma caracterstica do cinema brasileiro que faz com que ele seja mais caro: o Brasil gosta de fazer filmes cuja produo mais complicada, como muitas cenas ex-ternas, locaes distantes, muita gen-te no elenco, muitos figurantes bas-ta ver o oramento recordista acima

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    citado, que rodado na Amaznia. J os filmes argentinos e chi-lenos so mais simples, contam his-trias mais simples. Na Argentina os temas so mais psicolgicos e utili-zam um ambiente, dois, no mximo. Fora o fato de os Argentinos preferi-rem filmar sua prpria classe, a classe mdia. Os cineastas e produtores bra-sileiros desdobram-se em encontrar temticas mais relacionadas a situa-es que no so a realidade da clas-se mdia urbana, o que tambm enca-rece a produo. Na Argentina, o que contribui para que o cinema seja mais barato que praticamente tudo ro-

    dado em Buenos Aires. A indstria do cinema est toda l. J no Brasil, os melhores atores de cinema esto no Rio; e h muitas filmagens feitas em So Paulo. A, trazer um ator do Rio para So Paulo, pagar hospedagem, transporte, alimentao, e outras coi-sas encarece mais ainda o filme. Fora o gosto pelas locaes distantes. Lazzarini defende, alis, que se faa um estudo detalhado sobre esta questo: por que produzir filmes no Brasil mais caro do que nos pa-ses vizinhos, sobretudo na Argentina? H muito tempo estou querendo pe-gar oramentos de pelo menos dois

    filmes argentinos, dois filmes brasilei-ros e dois filmes chilenos, todos do mesmo padro, para comparar custos e ver onde est o gargalo do cinema brasileiro, diz Lazzarini, sugerindo Ancine que encampe esta proposta, para que as produtoras Que no gostam de liberar seus nmeros, destaca colaborem com isso. A veremos se a questo est na mo de obra, nos equipamentos, na ps-pro-duo que tambm muito cara no Brasil , nos impostos ou na distribui-o e poderemos traar estratgias para melhorar isso e tornar o cinema brasi-leiro mais vivel economicamente.

    Breve comparativo entre os custos de fazer cinema no Brasil, Argentina e Chile

    Tributao de equipamentos

    Locao de equipamentos Conceito

    A maior parte dos equipa-mentos utilizados importada e isto reflete em alto vetor do Custo Brasil, como seguem os ndices das taxas de importao (clculo sobre o valor FOB do produto, em sua origem): no Brasil entre 80% e 120%, na Colmbia 20%, na Argentina entre 15% e 20% e no Chile so isentos de tributao.

    No Brasil, o preo de locao atualmente o dobro de quatro anos atrs.

    O enfoque da direo, sendo um roteiro mais intimista ou no, in-fluencia os custos. Na Argentina, com sua tradio de filmes para a classe mdia, os longas-metragens custam em torno de US$ 1 milho, ante o cus-to mdio de US$ 4 milhes no Brasil e US$ 1,2 milho no Chile.

    Mo de obra

    Segundo alguns produtores brasileiros, a mo de obra representa, em uma superproduo, cerca de 30% dos custos, nos filmes de mdio ou bai-xo oramento cerca de 60%. Segundo o presidente do Sindcine, Pedro Lazzarini, a tabela atual do sindicato (www.sind-cine.com.br) argumenta que o reajuste anual dos pisos da categoria em torno de 6% ao ano, que reflete apenas uma reposio nominal das perdas salariais pelos ndices governamentais. Segundo Lazzarini, 80% do mercado de filmes (todos os formatos) respeita esta tabela e paga o piso. Os cachs estratosfricos so apenas para os profissionais e ato-res renomados.

    Logstica

    Comparativamente aos ou-tros pases, qualquer coisa no Brasil mais cara: transporte, estacionamento, hotel etc. So Paulo foi eleita, recen-temente, a segunda cidade mais cara do mundo para se viver. Na Argentina, toda a locao se concentra em Bue-nos Aires; no Brasil, s considerando o eixo Rio So Paulo, j incide um custo bem maior: muitas produes que se originam no Rio precisam ter gravaes em So Paulo, e isto gera passagens, hospedagens, dirias e transporte das equipes e atores.

    Tnia Rabello jornalista e tambm colabora com a revista Brasileiros.

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    Ontem arrancada e hoje indis-pensvel ao cotidiano dos brasileiros, a liberdade de expresso j foi sinnimo de utopia em nosso pas. Um ideal vetado a vrias geraes por longo perodo, de 1964 at a promulgao da Constituio Federal, em 1988. A censura implantada no Brasil pela ditadura militar atingiu de jornais e revistas aos meios eletrnicos de comunicao e toda a produo arts-tica do cinema literatura, da msica dramaturgia e s artes visuais. Passou de tudo pelo crivo arbitrrio da censu-ra, inclusive o temor da populao de fazer ou mesmo ouvir a mais leve crtica ao sistema. Especialmente de 1968 a 1978, perodo de vigncia do Ato Institucional n 5, de longe o mais duro golpe na democracia e que deu plenos poderes ao regime militar, tudo o que era considerado subversivo pelos cen-sores foi sumariamente proibido ou teve trechos suprimidos.

    Alguns dos mais respeitados cineastas brasileiros tiveram seus fil-mes censurados nos anos de chumbo; Nelson Pereira dos Santos, entre eles. Conforme relato do prprio cineasta, seu filme El Justicero, inspirado em novela de Joo Bethancourt, foi lan-ado em 1966 com muitos cortes nos dilogos e, depois do AI-5, apreendido pela censura por ordem do Exrcito. Foram destrudos o negativo original e todas as cpias existentes, exce-o de uma em 16mm, depositada no Festival de Cinema de Pesaro, Itlia, pelo crtico e tambm cineasta David Neves, o que possibilitou sua posterior recuperao. Fome de Amor, em 1968, foi proibido e depois liberado, graas habilidade poltica do produtor e ator Paulo Porto, com a condio de no traduzir os textos de Che Guevara de-clamados em espanhol pela persona-gem principal enlouquecida. Como Era

    Gostoso o Meu Francs, de 1970, este-ve proibido no Brasil at 1972, quando foi liberado com mais de 10 minutos de cortes, embora tenha sido exibido nos festivais de Cannes e Berlim e lan-ado comercialmente nos EUA e em pases da Europa. Memrias do Crce-re (1984), metfora de Graciliano Ra-mos sobre a sociedade brasileira, teve melhor sorte. Foi filmado sob perma-nente e controladora vigilncia oficial, mas sem grandes intervenes. At a proibio de incluir o hino nacional foi depois superada, graas ao sucesso do filme no Fes