revista cult dez 1998 saramago (2)

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Especial: José Saramago

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CULT - dezembro/9818

Horácio Costa Eu queria quevocê dissesse o que ficou da experiênciados gêneros que você praticou ao longode várias décadas � crônica, poesia, ensaio,teatro � antes da publicação do Manual depintura e caligrafia. Por que você acha quedemorou vinte anos para escrever umsegundo romance? Há um primeiro, umatentativa pouco madura nos anos 40, masa sua primeira obra em prosa de ficçãosólida é esse Manual.

José Saramago Em primeirolugar, quando se pergunta o que ficou deuma obra, que supostamente pertence a umtempo passado, pressupõe-se uma dúvida,se alguma coisa terá ficado. Porque, se nãoexistisse essa dúvida, então a pergunta nãoteria sentido. Quando se começa a escrevermuito jovem, corre-se o risco e, afinal, issome aconteceu, porque aos 25 anos publiqueium romance. Romance que ficou por aí,que foi reeditado apenas em 1997 porqueo editor achou que se o romance fazia 50anos, desde a primeira publicação, tinha queser novamente publicado � e então temosuma edição nova de um romance que sechama, perdoem, Terra do pecado. Eu nãotenho culpa de o romance ter esse título, aculpa é do editor. O romance se chamava Aviúva. Um jovem de 25 anos, que era oque eu tinha, não sabia muito de pecados, e

menos de viúvas... Mas eu percebi que nãotinha tanta coisa para dizer, nadaimportante. E me calei, me calei por vinteanos praticamente.Isso não é verdade, porque escrevi umoutro romance que se chama Clarabóia,que permaneceu inédito � e, esse sim,permanecerá inédito. Não o destruíporque não devo destruir as coisas quefaço; se não posso destruir todas, por quevou destruir algumas? Se eu pudesseapagar todas as coisas ruins � e agora nãoestou falando do livro, estou falando decoisas ruins que a gente faz na vida �, euas apagaria. Mas como Terra do pecado,apesar de tudo, não é a pior coisa que eufiz na vida, então que fique aí; e Clarabóiaficará, mas com a condição de não serpublicado enquanto eu viver.Até 1966, quando eu tinha 44 anos, nãoescrevi nada. Salvo no período ime-diatamente anterior a 1966, que foi quandoescrevi um livro de poesia chamado Ospoemas possíveis. E por que eu o escrevi?Bom, a resposta é sempre a mesma, ouquase sempre: porque me apaixonei. E eujá havia feito uns quantos sonetos e coisasassim no tempo que fazíamos sonetos, aosdezoito anos. Acho que os jovens de hojejá não sabem o que é escrever sonetos e asmeninas não têm a felicidade de receberum soneto dos garotos. Isso acabou, que

pena! Bom, então eu me apaixonei nessaépoca e daí saiu o livro. Confesso que,quatro anos depois, me apaixonei de novoe saiu outro livro de poemas que se chamaProvavelmente alegria. E então acabou-sea história de publicar pelo fato de meapaixonar [risos].A partir de 1966, por circunstâncias davida, me encontrei mais próximo domundo literário porque trabalhava numaeditora � desde os anos 50 e durante quase15 anos. Eu tive uma vida que não tinhanada a ver com a literatura. Eu fui váriascoisas na vida: trabalhei numa oficinamecânica, fui desenhista, funcionário dasaúde pública, depois não sei o quê, depoiseditor, e era assim. Então, eu não mepreparei para ser escritor. Sou escritor porum acaso. E que acaso é esse? É quechegou um momento em que eu, além deme apaixonar e por isso pôr sobre a mesalivros de poesia, comecei a colaborar emjornais, escrevendo crônicas. De 1966 até1977, houve onze anos de publicação:publiquei três livros de poesia � e o terceironão tem nada a ver com minhas paixões �,crônicas, ensaios políticos, que no fundoeram editoriais de jornal, de um jornal quejá não existe, chamado Diário de Lisboa, ejá em 1975, que chamávamos o anoardente da revolução, eu era diretor-adjunto de um outro jornal, Diário de

Vidal Cavalcante/AE

josésaramagonasceu em 1922 na cidadede Azinhaga, na provínciaportuguesa de Ribatejo. Antesde receber o Nobel de literatura,no mês de outubro passado,ganhou o prêmio Camões de1995. Atualmente, vive na ilhaLanzarote, na Espanha, ondese auto-exilou depois queo governo português negoua inscrição do romanceO evangelho segundo Jesus Cristono Prêmio Europeu deLiteratura, em 1991.

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Notícias, e acho que tudo começa aí.Quando, em novembro de 1975, ocorreua contra-revolução, o que se chamava oprocesso contra-revolucionário � e talvezalgumas pessoas não estejam de acordocom a qualificação ou com a classificação �,eu fiquei na rua, sem emprego, sem salário,sem trabalho e sem possibilidade deencontrar outro facilmente, porque ojornal estava com a revolução.Aí eu tomei a decisão definitiva da minhavida, que era a de não procurar trabalho, eme dizia: você tem sete ou oito livrosescritos, que são dignos, sérios, honestos,mas por aí você não vai chegar a lugarnenhum. Se você está pensando na históriada literatura, então, resigne-se a que digam(se disserem) que o senhor fulano nasceunessa data, morreu numa outra, publicoualguns livros e ponto. Uma linha, duaslinhas e nada mais. Não que eu aspirassea um capítulo completo da história daliteratura, não é isso. A decisão de nãoprocurar trabalho era enfrentar essa idéiade que, talvez, eu seria um escritor, masfaltava uma prova, porque aqueles livrosnão eram na minha opinião suficientespara tal. Isso foi o que depois levou a todaessa série de livros, romances, obras deteatro, diários que caracterizam essesúltimos 20 anos. Isso é o que me leva adizer que eu sou um jovem escritor, que

eu sou um velho escritor da nova geração� porque a verdade é que eu estouescrevendo obras mais sólidas não hácinqüenta, mas há vinte anos; portanto,supondo que se começa, talvez, a escrevere publicar aos 20, 23 anos, então, agora,literariamente, eu não tenho mais do que45 anos. Sou um menino... [risos]O que ficou do que ficou para trás? Eudiria que ficou tudo. E ficou tudo em quesentido? Eu muitas vezes digo que sealguém quiser entender bem o que euestou dizendo nos romances que estouescrevendo é preciso ir às crônicas queescrevi nos jornais e que estão em doislivros: Deste mundo e do outro e A bagagemdo viajante. Quase todos os temas que estãoagora nos romances, certos pontos de vista,visão de mundo, obsessões e preocupaçõesde ordem não apenas literária, preocu-pações de ordem política, de ordem civil,tudo isso se encontra nesses pequenostextos publicados em jornais, e quem seinteresse pelo que eu faço � além dosromances que têm maior reputação, dosquais se fala, que saem na crítica, que estãonas livrarias e tudo isso � tem que ir aesses pequenos textos porque eu mesmo,quando por algum motivo tenho que voltara esses textos, me reencontro.Nessas crônicas há muito de ficção, esobretudo há o trabalho sobre a memória,

a memória da infância, da adolescência, amemória dos adultos, dos avós, das coisasvistas � e esse, se eu chegar a escrevê-lo,será o conteúdo de um livro que já temtítulo, mas que ainda não está escrito e quese chamará O livro das tentações. Já estoume antecipando, mas uma coisa chama aoutra. É uma autobiografia minha. Eu soutão vaidoso que inclusive vou escrever aminha biografia. Mas é uma autobiografiaum pouco estranha, porque termina aoscatorze anos de idade. O que eu querofazer é isso, recordar o menino que eu fui.Tentar saber quem era esse menino.Porque a verdade é que nós pensamos quetoda a nossa vida está aí para que nostornemos adultos. E, quando somosadultos, nos comportamos como seolhássemos para nós como algo que saiudo estado de crisálida, imaginando que ainfância e a primeira adolescência é acrisálida, e que depois da crisálida saiu oinseto adulto com todo o seu esplendor,as suas cores, com toda a sua beleza. Noscasos em que têm esplendor e que sãobelos, claro; há insetos que deveriam terficado na crisálida e não sair.Eu não penso assim. Para dar-lhes umaidéia do que eu penso nesse sentido: nãosei se o meu leitor percebeu que eu ponhosempre epígrafes; a epígrafe de Todos osnomes, para falar do último romance

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publicado, é �Conheces o nome que tederam, não conheces o nome que tens�, éuma citação de um livro chamado Livro dasevidências, que não existe, como em outroromance, História do cerco de Lisboa, há umaoutra epígrafe que foi tirada do Livro dosconselhos, que também não existe. E isso éum pouco borgeano, e se isso continuar, nãoterei mais remédio do que escrever o Livrodas evidências e o Livro dos conselhos. E,então, a epígrafe que terá o Livro dastentações � e com isso, acho que tereiexplicado tudo o que tentei explicar atéagora � é a seguinte: �Deixa-te levar pelomenino que foste�. Porque, na verdade, denada eu gostaria mais � ou de poucas coisaseu gostaria tanto � do que poder passearpela rua, não levando pela mão o meninoque fui, mas sendo levado pela mão dessemenino. Se eu pudesse recuperá-lo, tê-loagora mesmo, quanto eu gostaria. Vocêspodem pensar: mas que idéia estranha essa,você é ele e ele é você. Não, eu sou ele, masele não sou eu. Um deles não conhece ooutro; e o fato de que um deles não conheçao outro me perturba. E por isso eu digo:deixa-te levar pelo menino que foste. Talvezo menino, supondo que os meninos não sãomaus � alguns são péssimos, claro �, fossecapaz de, na hora que vamos fazer uma coisaerrada, de puxar pela nossa roupa e dizer:não faça isso.

Há uma continuidade de pensamento einclusive uma continuidade de sensibilidadeno que estou fazendo agora e que vêm dostextos mais antigos. Como os textos nãonascem do nada, nascem de alguém queestá vivendo, mesmo que não estejaescrevendo, então tudo é uma relação quevai pelo interior da vida e que une tudo atudo. O que eu posso dizer, claro, é que háalgumas coisas que fiz antes e que, se eu asfizesse agora, tentaria fazê-las melhor. Masnão se trata aqui de mais qualidade literáriaou de menos qualidade literária, trata-se doque se está dizendo aqui.

Horácio Costa A forma comose desenvolve sua �carreira� é bastanteatípica, especialmente em relação ao quecada vez mais acontece no mundo literário,afetado por uma série de problemasexternos, a questão do mercado, osprêmios literários etc... Num texto críticodos anos 60, parte das suas colaboraçõespara a Seara Nova, você escreveu: �Aliteratura não é uma carreira�. Aquelemomento era especialmente significativo,porque então você era conhecido emPortugal como poeta. Você estavapublicando o seu segundo livro de poesia,ou prestes a publicá-lo, e entrava naliteratura ou na vida cultural lisboeta pormeio da atividade poética. E você começa

a escrever essas notas críticas numapublicação importante da literaturaportuguesa contemporânea, a Seara Nova.Então, eu gostaria de que você desen-volvesse essa idéia de autor, naquelemomento biologicamente já não muitojovem, nos anos 60, que tem consciênciade que a literatura não é uma carreira; ecomo você vê isso agora, não só comrelação ao mundo contemporâneo, mastambém à luz da sua produção posterior.

Saramago Quando me convi-daram para fazer crítica nessa revista, eusó havia publicado esse livro de poesiachamado Os poemas possíveis. Inclusiveimpus uma condição, a de que não fariacrítica de livros de poesia. Porque meparecia que isso não teria muito sentidopara mim, um jovem poeta, com apenasum livro, e que não era Rimbaud nemFernando Pessoa. Pode-se perguntar: vocênão quis fazer crítica sobre livro de poesia,mas estava disposto a fazer sobreromances? Sim, do ponto de vista do leitor,como se eu fosse um leitor, já que no fundoo crítico é um leitor. No entanto, é umleitor que tem o direito de publicar a suaopinião. Essa é, suponho, a diferença maisvisível que há entre um e outro.E é verdade que numa dessas críticas euescrevi que a literatura não é uma carreira.

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Depois de 30 anos, e com tudo o queaconteceu na minha vida, parece que háuma contradição entre a minha vida e essaafirmação, porque eu vivo do que escrevo.Mas não tenho os tipos de obrigações deum trabalho, não tenho ações, não tenhobens, não tenho nada senão o que podeser posto sobre a mesa, o que escrevo. Eununca me lancei a isso que chamamos umacarreira de escritor. Entendo que umapessoa se lance a uma carreira de advo-gado, médico, engenheiro ou algoparecido porque isso significa que sepreparou para exercer uma atividadeprofissional e, portanto, está nisso e vaitrabalhar nisso. Os médicos precisam dedoentes, mas estão certos de que doentessempre existirão, não? E, portanto, estãocertos de que podem abrir o seuconsultório para recebê-los. Esses, sim,podem falar de uma carreira.De repente, amanhã pode ser que eu nãotenha nenhuma idéia para um livro e seisso acontecer eu deixarei de escrever. E ofato de que eu esteja vivendo da literatura,porque é verdade, não significa que eu nãoescreva nada de que eu necessite escrevercomo homem. Isto é, eu não posso viversendo duas pessoas em uma � a pessoacorrente e normal, que, afinal, sou, e umaentidade, um pouco estranha, que sechama escritor. Esses dois não vivem lado

a lado, são um apenas, estão fundidos umno outro. E se o homem não tem nada paradizer como homem, também não terá nadapara dizer como escritor. Se isso acontecer,e eu já disse isso, me calarei. E poderia teracontecido de eu me calar depois doMemorial do convento, do Ano da morte deRicardo Reis, da História do cerco de Lisboa,ou do Evangelho segundo Jesus Cristo.Poderia não ter tido mais nenhuma idéia,e fim. E é verdade que, cada vez que eutermino um romance, não tenho nenhumaoutra idéia e fico esperando para ver o queacontece. Pode levar um mês, dois, três,seis meses, até me ocorrer uma idéia. Euacho que os que me lêem perceberam queos meus livros não se repetem. Elespercebem que o autor é este pela forma denarrar, pelas preocupações que expressa,mas cada livro contém alguma coisa queaí se acaba. E isso tudo é o contrário doque se necessitaria para uma carreira. Parauma carreira, o conveniente seria exploraros filões encontrados para que ela pudessese desenvolver, não? Mas eu fico assim,sem enredo, esperando para ver o queacontece.

Horácio Costa Você disse que nãoteve uma educação formal em literatura, quefoi um leitor. Mas eu lhe peço que comentea importância que tiveram a atividade crítica

que você exerceu e a atividade de tradutornesse período de formação, de auto-aprendizagem.

Saramago É preciso dizer algoque ainda não foi dito e que deve serconsiderado. Se eu, aos 20 e poucos anos,escrevi um romance, foi porque algumacoisa eu tinha lido. E tinha lidomuitíssimo. Onde? Nas bibliotecaspúblicas. Entre 16 e 22 anos, eu fui umleitor noturno, porque tinha que trabalharde dia, ia a uma biblioteca pública de umacidade pequena e lia tudo o que en-contrava. Às vezes, não entendia nada, ouquase nada, de alguns livros que lia; nãotinha ninguém que me dissesse: esse agoranão convém, é melhor que você leia esseoutro. Mas, de qualquer modo, com todosdisparates, erros e incompreensões, creioque pude ler uma gama bastante amplade autores. Eu diria que Terra do pecado,por um lado, funcionou como umasedimentação de leituras; pode-se dizerque não há nada de original ali, mas, senão somos Rimbaud, o que entendemospor �original� aos 20 e poucos anos?Você pergunta se o fato de fazer traduçõesinfluiu em alguma coisa. Não, em nada,nada, nada... É muito diferente sentar-separa traduzir uma obra pelo desejo detraduzi-la, por vontade própria e, então,

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desfrutar do trabalho de tradução, bus-cando as funções mais adequadas e tudoisso... Mas eu não traduzi por gosto, porprazer; eu traduzi para ganhar a vida etraduzi de tudo: livros de política, deeconomia, de arte, romances, coisas tontascomo uns livros de um senhor chamadoJivkov, que era búlgaro, secretário-geraldo Partido Comunista da Bulgária e aomesmo tempo presidente, e eu tive quetraduzir coisas dessas. Com isso nãoaprendi nada. Mas claro que há outro tipode aprendizagem. Quando tive quetraduzir Bonnard, aprendi muito. Masnão aprendi a escrever e acho que quemtem que traduzir nas mesmas condições ecircunstâncias que eu corre o risco de tera sua escrita prejudicada pela variedadede estilos, de modos de narrar dosdiferentes autores que tem que traduzir.Então, posso dizer que não aprendi nada.Agora, acho que aprendi a escrever porqueli muito. Sempre li muito, desde menino,desde adolescente, ia à biblioteca públicapara ler, para ler e nada mais, e no diaseguinte tinha que me levantar cedíssimopara ir à oficina onde estava trabalhando.Não estou idealizando a minha vida, nãoestou fazendo romantismo barato e falso,estou falando de fatos e nada mais; semcair na tentação de exagerar para uma vidaextraordinária, senão o contrário.

Eu comecei por esse romance, depois apoesia, depois a crônica, depois fiz umpouco de teatro. Mas o teatro não foi poruma iniciativa minha. Eu tenho quatroobras de teatro, todas elas foram repre-sentadas, e aparentemente eu poderiadizer: sou dramaturgo. Não, não sou, eunão me vejo como dramaturgo. Roman-cista, sim; mas depois de todas essasexperiências e de tudo isso. Mas talvez oromancista que sou deva algo a umacircunstância que a que ver com uma obrada qual não se fala muito, e é uma penaque não se fale muito dela, que é esseromance que publiquei em 1980 e que sechama Levantado do chão. Em 1975, comodisse, fiquei sem trabalho. Em 1976, euestava no Alentejo, no sul de Portugal. Euvenho de uma família de camponesespobres, sem terra, do norte de Lisboa, auns 100 km, mais precisamente donordeste; e, nessas alturas, quando euestava com essas dúvida � �o que vou fazerda minha vida? escrevo, não escrevo?como? o quê? para quem? e com quemeios?� �, veio-me a idéia de escrever algosobre a minha gente � avós, pais �, queviveu no campo nas condições que os maisvelhos aqui podem imaginar, se viveramno campo há 40, 50, 60, 70, 100 anos:saberão o que é isso. E eu soube, não muitoprofundamente, mas, de qualquer forma,

soube. O estranho é que eu deveria irdiretamente aos meus lugares, à minhacidade, e ficar ali, mas, talvez porque euconhecesse muito bem tudo isso, nãoqueria escrever sobre isso. Então, fui aoAlentejo em 1976 e fiquei lá dois meses,falando com as pessoas, indo ao campoonde trabalhavam, comendo com eles,dormindo com eles. E voltei, depois, pormais algumas semanas. Portanto, junteium quantidade de idéias, informações,histórias e tudo isso. E esse livro foi escritoem 1979 e publicado em 1980. Quer dizer,foram precisos três anos para que eupudesse escrever esse romance.Na verdade, durante esse tempo escrevium livro de relatos curtos, Objeto quase, epubliquei o Manual de pintura e caligrafia.Portanto, estive fazendo algumas coisas.Mas não estava fazendo o que tinha defazer � agora sei disso, mas naquela épocaeu não sabia. Porque eu não sabia de umacoisa, muito mais importante do que àsvezes se imagina: eu tinha uma históriapara contar, a história dessa gente, de trêsgerações de uma família de camponesesdo Alentejo, com tudo: a fome, o desem-prego, o latifúndio, a polícia, a igreja, tudo.Mas me faltava alguma coisa, me faltavasaber como contar isso. Então eu descobrique o como tem tanta importância quantoo quê. Não se pode contar como se não há o

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que contar, mas pode acontecer de você tero que e ficar paralisado porque não tem ocomo. O tema que eu tinha estava clarís-simo, era um romance neo-realista,bastavam camponeses, fome, desemprego,luta, tudo isso. E modelos do romanceneo-realista português, nós os temos, egrandes romances. Portanto, o molde eujá tinha e só precisava colocar nele a minhaprópria matéria e, então, já teria o romance.Mas, não, algo dentro de mim dizia: não,não e não; enquanto você não encontrar asua própria forma, não poderá escrever.Claro que isso eu estou dizendo agora,com certeza vocês não estarão imaginandoque naquela época eu conversasse dessaforma comigo mesmo: não, eu nãoconversava. Mas eu tinha uma barreiraque me impedia de ir adiante. Quando euvoltava ao Alentejo e encontrava os amigosque eu tinha feito lá, gente de umaqualidade humana impressionante, eles meperguntavam: e o romance, quando vocêvai publicá-lo? Eu dizia: é que estouocupado agora com outros assuntos e tal.Não, na verdade eu estava em pânico[risos]. Em pânico porque eu não tinha ocomo. Até que, em desespero de causa,pensei: isso não pode ficar assim e tenhode começar a escrever esse romance ecomecei a escrevê-lo como um romancenormalzinho. E quando eu digo romance

normalzinho, e há grandíssimos romancesnormaizinhos, não estou dizendo nadacontra, ao contrário: surpreende-me quenuma forma quase canônica possam serescritos romances magníficos, sem rup-turas... Claro que há outros romancesmagníficos que o são por vários motivos,entre eles porque romperam com con-venções e com tudo isso. E comecei aescrever com cada coisa no seu lugar:roteiro e tal... Mas eu não estava gostandonada do que estava fazendo.Então, o que aconteceu? Na altura dapágina 24, 25, estava indo bem e por issoeu não estava gostando. E sem perceber,sem parar para pensar, comecei a escrevercomo todos os meus leitores hoje sabemque eu escrevo: sem pontuação. Semnenhuma, sem essa parafernália de todosos sinais, de todos os sinais que vamospondo aí. O que aconteceu? Não seiexplicar. Ou, então, tenho uma explicação:se eu estivesse escrevendo um romanceurbano, um romance com um temaqualquer de Lisboa, com personagens deLisboa, isso não aconteceria. E tenhocerteza de que hoje estaria escrevendoesses romances como todo mundo � talvezbons, talvez não tão bons, mas estariaacatando respeitosamente toda a con-venção do que se chama escritura. Masalguma coisa aconteceu aí: eu havia estado

com essa gente, ouvindo, escutando-os,estavam contando-me as suas vidas, o quetinha acontecido com eles. Então, eu achoque isso aconteceu porque, sem que eupercebesse, é como se, na hora de escrever,eu subitamente me encontrasse no lugardeles, só que agora narrando a eles o queeles me haviam narrado. Eu estavadevolvendo pelo mesmo processo, pelaoralidade, o que, pela oralidade, eu haviarecebido deles. A minha maneira tãopeculiar de narrar, se tiver uma raiz, pensoque está aqui. Não estou certo de que sejaa única, mas com certeza, essa conta.Quando esse romance foi publicado emPortugal, houve um reboliço porque aspessoas não entendiam nada, inclusive umamigo meu me chamou para dizer: olha,eu sou seu amigo, mas a verdade é que leiotrês páginas e me perco, eu não entendo oque você diz. E eu disse: você tem em casaum corredor comprido, não? Pois então,acenda a luz à noite e comece a andar deum lado para o outro no corredor, lendoem voz alta. Se você ler em voz alta, vai vero que acontece. Da mesma forma que,quando nos comunicamos oralmente, nãonecessitamos nem de travessões, nem depontinhos, nem nada do que parecenecessário usar quando escrevemos, poisentão, você, como leitor, colocará aí, não oque falta, porque não falta nada... A palavra

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escrita num livro é uma palavra morta;quando fazemos a leitura silenciosa, não estámorta, acorda um pouquinho; mas a palavrasó fica acordada quando a dizemos. Paraque a palavra soe desperta é preciso dizê-la; ler silenciosamente as palavras não é sufi-ciente. E nós todos sabemos que, quandose lê poesia, fazer uma leitura silenciosa deuma poesia ou fazer uma leitura em vozalta dela são dois mundos completamentediferentes.Quando eu digo ao meu leitor �você temque ler escutando dentro da sua cabeça avoz que está dizendo�, isso se aplica aoautor. Eu começo um romance, um conto,um relato, ou algo assim, mas enquantonão ouço dentro da minha cabeça a vozque está dizendo, o texto não avança. Aprosa fica ali, parada. Tem que soar dentro.E é ainda bastante estranho que issoaconteça, porque parece que não perce-bemos que no fundo falar e fazer música éa mesma coisa, exatamente a mesma coisa.Fala-se e faz-se música com os mesmosingredientes: sons e pausas, nada mais.Toda música pode ser reduzida a isso: sonse pausas. Toda palavra, ou todo discurso,pode ser reduzido a isso, som e pausa.Mas, da mesma forma que a músicanecessita de uma espécie de suporterítmico que a conduza � não estou muitocerto disso, mas estou falando de outras

músicas �, o próprio discurso, que estásendo escrito, talvez dele necessite.

Horácio Costa Eu gostaria quevocê falasse sobre o romance, ou melhor,sobre o exercício da prosa de ficção pormeio do romance: o exercício desseimaginário no mundo contemporâneo. Oque é isso? Qual a sua importância?

Saramago O que é hoje para mimficção? É como uma voz, tudo é uma voz,diria o poeta, o dramaturgo, na circuns-tância em que eu falei antes. Ocorre que avoz, no meu caso, tem toda a importânciado mundo. No meu caso, o homem e oescritor, como eu disse antes, não apenasestão juntos, mas estão fundidos um nooutro. Então eu diria que a ficção para mim,hoje, não sendo uma carreira, é o recursoque eu tenho para expressar minhasdúvidas, minhas perplexidades, minhasilusões, minhas decepções. Não no sentidode uma literatura confessional. Apreocupação que eu tenho é esta: Em quemundo estou vivendo? Que mundo é este?O que são as relações humanas? O que éessa história de sermos o que chamamos ahumanidade? O que é isso de ser Humani-dade? Ter encontrado para essa ficção umaforma pessoal de narrar, que é a minha, achoque esse meu privilégio � eu não sei como

nem a quem pagá-lo � de haver podidochegar a ter uma voz própria para narrar oque tenho para narrar não tem preço.Agora, isso tudo depois passa por umaquantidade, porque o meu processonarrativo, que nasce com Levantado do chãoe que aparentemente se repete em todos osoutros romances, repete o essencial, mas hámudanças, adaptações ao próprio tema, àprópria história que está sendo contada. Euestou percebendo que, depois de umaexpressão bem mais barroca como é o casodo Memorial do convento , talvez porinterferência do próprio século XVIII emque tudo acontece, estou me aproximandocada vez mais de uma narrativa seca, cadavez mais seca. Encontrei, outro dia, umafórmula que me parece boa, é como sedurante todo esse tempo eu estivessedescrevendo uma estátua � o rosto, o nariz �e agora eu me interessasse muito mais pelapedra de que se faz a estátua. Quer dizer, jádescrevi a estátua, todo mundo já sabe queestátua é essa que eu estive descrevendodesde Levantado do chão até o Evangelhosegundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio sobrea cegueira, em Todos os nomes e no próximoromance, se o escrever, trato da pedra.

Horácio CostaHorácio CostaHorácio CostaHorácio CostaHorácio Costapoeta (autor de Satori e O menino e o travesseiro), tradutor e

crítico literário, leciona literatura brasileira na Unam (UniversidadeNacional Autônoma de México) e é autor de

José Saramago – O período formativo

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Falto de mapas, abandonado de guias, com o temorreverencial de quem pisa terra estranha, uma terra onde ossistemas de comunicação estão habitualmente redigidos emlínguas que, não raro, só vagas semelhanças guardam ainda coma linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos umas poucasidéias elementares, as únicas que poderia autorizar-se um simplesprático da literatura como eu.

Por experiência própria, tenho observado que, no seu tratocom autores a quem a fortuna, o destino ou a má-sorte nãopermitiram a graça de um título acadêmico, mas que, nãoobstante, foram capazes de produzir obra digna de algum estudo,a atitude das universidades costuma ser de benévola e sorridente

Em ensaio inédito no Brasil,

Saramago questiona a

distinção � consagrada pela

crítica literária � entre as

figuras do autor e do

narrador, sugerindo que ao

aceitar essa dissociação o

escritor abdica da

responsabilidade pelo

que escreve

oaut

orco

mon

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CULT - dezembro/9826

tolerância, muito parecida com a quecostumam usar as pessoas sensíveis na suarelação com as crianças e os velhos, unsporque ainda não sabem, outros porquejá esqueceram. É graças a tão generosoprocedimento que os professores deLiteratura, em geral, e os de Teoria daLiteratura, em particular, têm acolhidocom simpática condescendência � massem que se deixem abalar nas suasconvicções científicas � a minha ousadadeclaração de que a figura do narrador nãoexiste, e de que só o autor exerce funçãonarrativa real na obra de ficção, qualquerque ela seja, romance, conto ou teatro. Equando, indo procurar auxílio a umaduvidosa ou, pelo menos, problemáticacorrespondência das artes, argumento queentre um quadro e a pessoa que ocontempla não há outra mediação que nãoseja a do respectivo autor, e portanto nãoé possível identificar ou sequer imaginar,por exemplo, a figura de um narrador naGioconda ou na Parábola dos cegos, o que seme responde é que, sendo as artesdiferentes, diferentes teriam igualmente deser as regras que as traduzem e as leis queas governam. Esta peremptória respostaparece querer ignorar o facto, fundamentalno meu entender, de que não há, objecti-vamente, nenhuma diferença essencialentre a mão que guia o pincel ou o vapo-rizador sobre a tela, e a mão que desenhaas letras sobre o papel ou as faz aparecerno ecrã [tela] do computador, que ambassão, com adestramento e eficácia similares,prolongamentos de um cérebro, ambasinstrumentos mecânicos e sensitivoscapazes de composições e ordenações semmais barreiras ou intermediários que osda fisiologia e da psicologia.

Nesta contestação, claro está, não vouao ponto de negar que a figura do quedenominamos narrador possa ser de-monstrada no texto, ao menos, com odevido respeito, segundo uma lógicabastante similar à das provas definitivasda existência de Deus formuladas porSanto Anselmo... Aceito, até, a pro-babilidade de variantes ou desdobra-mentos de um narrador central, com oencargo de expressarem uma pluralidadede pontos de vista e de juízos consideradaútil à dialéctica dos conflitos. A perguntaque me faço é se a obsessiva atenção dadapelos analistas de texto a tão escor-regadias entidades, propiciadora, semdúvida, de suculentas e gratificantesespeculações teóricas, não estará acontribuir para a redução do autor e doseu pensamento a um papel de perigosasecundaridade na compreensão com-plexiva da obra.

Quando falo de pensamento, estou aincluir nele os sentimentos e as sensações,as idéias e os sonhos, as vidências domundo exterior e do mundo interior semas quais o pensamento se tornaria em puropensar inoperante. Abandonando qual-quer precaução retórica, o que aqui estouassumindo, afinal, são as minhas própriasdúvidas e perplexidades sobre a identidadereal da voz narradora que veicula, noslivros que tenho escrito e em todos quantosli até agora, aquilo que derradeiramentecreio ser, caso por caso e quaisquer quesejam as técnicas empregadas, o pen-samento do autor, seu próprio e exclusivo(até onde é possível sê-lo) ou delibe-radamente tomado de empréstimo, deacordo com os interesses da narração. Etambém me pergunto se a resignação ou

indiferença com que os autores de hojeparecem aceitar a �usurpação�, pelonarrador, da matéria, da circunstância edo espaço narrativos que antes lhe erampessoal e inapelavelmente imputados, nãoserá, no fim de contas, a expressão maisou menos consciente de um certo grau deabdicação, e não apenas literária, das suasresponsabilidades próprias.

Que fazemos, em geral, nós, os queescrevemos? Contamos histórias. Contamhistórias os romancistas, contam históriasos dramaturgos, contam histórias ospoetas, contam-nas igualmente aquelesque não são, e não virão a ser nunca,poetas, dramaturgos ou romancistas.Mesmo o simples pensar e o simples falarquotidianos são já uma história. Aspalavras proferidas, ou apenas pensadas,desde o levantar da cama, pela manhã,até ao regresso a ela, chegada a noite, semesquecer as do sonho e as que ao sonhotentaram descrever, constituem umahistória com uma coerência própria,contínua ou fragmentada, e poderão,como tal, em qualquer momento, serorganizadas e articuladas em históriaescrita.

O escritor, esse, tudo quanto escreve,desde a primeira palavra, desde a primeiralinha, é escrito em obediência a umaintenção, às vezes clara, às vezes escondida� porém, de certo modo, visível e óbvia,no sentido de que ele está sempre obrigadoa facultar ao leitor, passo a passo, dadoscognitivos que sejam comuns a ambos,para chegar finalmente a algo que,querendo parecer novo, diferente, original,já era afinal conhecido, porque, suces-sivamente, ia sendo reconhecível. Oescritor de histórias, manifestas ou

Livros de José Saramago� Terra do pecado, romance, 1947� Os poemas possíveis, poesia, 1966� Provavelmente alegria, poesia,1970� Deste mundo e do outro, crônica, 1971� A bagagem do viajante, crônica, 1973 *� As opiniões que o D. L. teve, crônica, 1974� O ano de 1993, poesia, 1975

� Os apontamentos, crônica, 1976� Manual de pintura e caligrafia, romance, 1977 *� Objeto quase, contos, 1978 *� Poética dos cinco sentidos, contos, 1979� A noite, teatro, 1979� Que farei com este livro?, teatro, 1980 *� Levantado do chão, romance,1980� Viagem a Portugal, crônica de viagem, 1981 *� Memorial do convento, romance, 1982 *

� O ano da morte de Ricardo Reis, romance, 1984 *� A jangada de pedra, romance, 1986 *� A segunda vida de Francisco de Assis, teatro, 1987� História do cerco de Lisboa, romance, 1989 *� O Evangelho segundo Jesus Cristo, romance, 1991 *� In Nomine Dei, teatro, 1993 *� Ensaio sobre a cegueira, romance, 1995 *� Todos os nomes, romance, 1997 *� Cadernos de Lanzarote, diário, 1994-1997*

* As obras assinaladas com asterisco foram lançadas no Brasil pela editora Companhia das Letras. As demais, editadas em Portugal, podem ser encomendadas à Livraria Portugal (ruaGenebra, 165, São Paulo, tel.: 011/3104-1748)

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disfarçadas, é portanto um mistificador:conta histórias e sabe que elas não são maisdo que umas quantas palavras suspensasno que eu chamaria o instável equilíbriodo fingimento, palavras frágeis, assustadaspela atracção de um não-sentido queconstantemente as empurra para o caos decódigos cuja chave a cada momentoameaça perder-se. Não esqueçamos,porém, que assim como as verdades purasnão existem, também as puras falsidadesnão podem existir. Porque se é certo quetoda a verdade leva consigo, inevita-velmente, uma parcela de falsidade,quanto mais não seja por insuficiênciaexpressiva das palavras, também certo éque nenhuma falsidade pode ser tão radicalque não veicule, mesmo contra a intençãodo mentiroso, uma parcela de verdade. Amentira conterá, pois, duas verdades: aprópria sua, elementar, isto é, a verdadeda sua própria contradição (a verdade estáoculta nas palavras que a negam), e a outraverdade de que, sem o querer, se tornouveículo, comporte ou não esta novaverdade, por sua vez, uma parcela dementira.

De fingimentos de verdade e deverdade de fingimentos se fazem, pois,as histórias. Contudo, em minha opinião,e a despeito do que, no texto, se nosapresenta como uma evidência material,a história que ao leitor mais deveriainteressar não é a que, liminarmente, lheé proposta pela narrativa. Um livro nãoestá formado somente por personagens,conflitos, situações, lances, peripécias,surpresas, efeitos de estilo, exibiçõesginásticas de técnicas de narração � umlivro é, acima de tudo, a expressão de umaparcela identificada da humanidade: o

seu autor. Pergunto-me até, se o quedetermina o leitor a ler não será umasecreta esperança de descobrir no interiordo livro � mais do que a história que lheserá narrada � a pessoa invisível masomnipresente do seu autor. Tal como oentendo, o romance é uma máscara queesconde e, ao mesmo tempo, revela ostraços do romancista. Com isto nãopretendo sugerir ao leitor que se entreguedurante a leitura a um trabalho dedetective ou antropólogo, procurandopistas ou removendo camadas geológicas,ao cabo das quais, como um culpado ouuma vítima, ou como um fóssil, seencontraria escondido o autor...

Muito pelo contrário: o autor está nolivro todo, o autor é todo o livro, mesmoquando o livro não consiga ser todo oautor. Não foi simplesmente para chocara sociedade do seu tempo que GustaveFlaubert declarou que Madame Bovaryera ele próprio. Parece-me, até, que, aodizê-lo, não fez mais do que arrombar umaporta desde sempre aberta. Sem faltar aorespeito devido ao autor de Bouvard etPécuchet, poder-se-ia mesmo dizer queuma tal afirmação não peca por excesso,mas por defeito: faltou a Flaubert acres-centar que ele era também o marido e osamantes de Emma, que era a casa e a rua,que era a cidade e todos quantos, de todasas condições e idades, nela viviam, casa,rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz.Porque a imagem e o espírito, o sangue ea carne de tudo isto, tiveram de passar,inteiros, por uma só pessoa: GustaveFlaubert, isto é, o autor, o homem, apessoa. Também eu, ainda que sendo tãopouca coisa em comparação, sou aBlimunda e o Baltasar de Memorial do

convento, e em O evangelho segundo JesusCristo não sou apenas Jesus e MariaMadalena, ou José e Maria, porque soutambém o Deus e Diabo que lá estão...

O que o autor vai narrando nos seuslivros é, tão-somente, a sua históriapessoal. Não o relato da sua vida, não asua biografia, quantas vezes anódina,quantas vezes desinteressante, mas umaoutra, a secreta, a profunda, a labiríntica,aquela que com o seu próprio nomedificilmente ousaria ou saberia contar.Talvez porque o que há de grande em cadaser humano seja demasiado grande paracaber nas palavras com que ele a si mesmose define e nas sucessivas figuras de simesmo que povoam um passado que nãoé apenas seu, e por isso lhe escaparásempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele.Talvez, também, porque aquilo em quesomos mesquinhos e pequenos é a talponto comum que nada de novo poderiaensinar a esse outro ser pequeno e grandeque é o leitor.

Finalmente, talvez seja por algumadestas razões que certos autores, entre osquais julgo dever incluir-me, privilegiem,nas histórias que contam, não a históriaque vivem ou viveram, mas a história dasua própria memória, com as suas exacti-dões, os seus desfalecimentos, as suasmentiras que também são verdades, assuas verdades que não podem impedir-sede ser mentiras. Bem vistas as coisas, sousó a memória que tenho, e essa é a históriaque conto. Omniscientemente.

Quanto ao narrador, que poderá ele sersenão uma personagem mais de umahistória que não é a sua?

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Juan

Est

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