revista cult 143

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143 ANO 13 R$ 9,90 www.revistacult.com.br A precisão do crítico literário Davi Arrigucci Jr. perfil Albert Camus e a lucidez da revolta homenagem A filosofia pode transformar o sofrimento humano em potência positiva? Filosofia e consolação dossiê

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Algumas páginas da edição de fevereiro de 2010 da revista CULT

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Page 1: Revista CULT 143

143

ano 13 r$ 9,90 www.revistacult.com.br

A precisão do crítico literário Davi Arrigucci Jr.

perfi l

Albert Camus e a lucidez da revolta

homenagem

A fi losofi a pode transformar o sofrimento humano em potência positiva?

A fi losofi a pode transformar

Filosofi a econsolação

dossiê

Page 2: Revista CULT 143

06 do leitor

08 cultura eM MoViMeNtoExposição Carlos Scliar – Perfi l e Trajetória • Araquém Alcântara • O Teatro do Ornitorrinco • Roupa de Artista • Expedição Langsdorff • Pela ordem

12 eNtreVistaA escritora Beatriz Bracher aposta na banalidade surpreendente do clichê para a reinvenção da linguagem e da literatura

38 HoMeNaGeM – alBert caMusMorto há 50 anos, Camus resistiu, pela solidariedade da revolta, às promessas e utopias políticas de seu tempo

18 literatura – reseNHaEm seu primeiro romance, Dostoiévski trouxe à tona os sentimentos e infortúnios dos excluídos de São Petersburgo

20 literatura – reseNHaTerceiro volume da “trilogia íntima”, O Manto, de Marcia Tiburi, leva a cabo a vingança de Clitem-nestra contra Orestes e Apolo

22Perfil

28 literatura – laNÇaMeNtoNovas traduções de seus romances consagrados e dois livros inéditos no Brasil revigoram a obra do desconcertante escritor francês André Gide

26 eNtreVista – ricHard BourNeProfessor de estudos políticos da Universidade de Lon-dres, o inglês Richard Bourne lança biografi a sobre Lula

34 eNsaio

Do dinheiro e do amor, da beleza e do valor, da doença e dos remédios

FrAncIsco Bosco

12 eNtreVista

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Leitor minucioso, Davi Arrigucci Jr. é capaz de conviver longos anos com um texto literário em busca da análise precisa

22 Perfil – daVi arriGucci Jr.

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42 ciÊNcias HuMaNas – laNÇaMeNtos

dossiÊ46

colaBoradores desta ediÇÃo

66 oficiNa literÁria

44 filosofiaMArcIA tIBurI

O burro é o outro

46 dossiÊconsolAçÃo e FIlosoFIA

Para uma vida equilibradapor Luizir Oliveira

A busca de unidade interiorpor Juvenal Savian Filho

O riso de Montaignepor Silvana de Souza Ramos

A fi losofi a e o consolo do tempopor Débora Morato Pinto

Uma vida sem consolaçãopor Jeanne Marie Gagnebin

48

55

58

62

52

Luizir Oliveira, professor de fi losofi a da Universidade Federal do Piauí

Silvana de Souza Ramos, doutora em fi losofi a pela USP, professora do Centro Universitário São Camilo e atriz

Débora morato Pinto, professora de fi losofi a da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Escreveu capítulos para os livros Bergson (Vozes, 2008) e Atualidade de Bergson (Autêntica, 2007)

Rep

rodu

ção

Aurora F. Bernardini, professora de pós-graduação em literatura russa da USP. Traduziu Cartas a Suvórin (Edusp, 2002), de Anton Tchekhov

Juvenal Savian Filho, professor de fi losofi a da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Escreveu, entre outros, Metafísica do Ser em Boécio (Loyola, 2008), Deus (Globo, 2008), Fé e Razão: Uma Questão Atual? (Loyola, 2005)

manuel da Costa Pinto, jornalista e autor de Albert Camus – Um Elogio do Ensaio (Ateliê), organizador e tradutor de A Inteligência e o Cadafalso e Outros Ensaios, de Albert Camus (Record). É editor dos programas Entrelinhas e Letra Livre (TV Cultura) e colunista da Folha de S.Paulo

Jeanne marie Gagnebin, professora de fi losofi a da PUC-SP e da Unicamp. É autora de História e Narração em Walter Benjamin (Perspectiva, 1999) e Lembrar. Escrever. Esquecer (Editora 34, 2006)

márcio Seligmann-Silva, professor livre-do-cente de teoria literária na Unicamp e autor, entre outros, de O Local da Diferença (Editora 34) e Para uma Crítica da Compaixão (Lumme)

Eduardo Fonseca, jornalista e pós graduando em fi losofi a pela PUC-SP

moacir Amâncio, professor de língua e literatura hebraica na USP. É autor de Os Bons Samaritanos e os Filhos de Israel (Musa, 1997) e Ata (Record, 2007)

Annita Costa malufe, poeta e doutora em teoria literária pela Unicamp. É autora de Como se Caísse Devagar (Editora 34/PAC, 2008) e Nesta Cidade e Abaixo de Teus Olhos (7Letras, 2007)

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n°1438

cultura eM MoViMeNto

Carlos sCliar: uma referência na história da arte, já que conseguiu criar uma linguagem brasileira

o Centro Cultural Correios, no Rio de Janeiro, apresenta a exposição Carlos Scliar – Perfil e Trajetória até o dia 28 de

fevereiro. No local, os visitantes podem apreciar cerca de 150 obras do artista gaúcho, um dos símbolos do movimento mo-dernista brasileiro.

“Ele sofreu a influência do expressionismo alemão e acho isso muito curioso, pois a maior parte dos modernistas tem in-fluência francesa”, diz Marcus Lontra, curador da exposição. Ao contrário de artistas como Vincent van Gogh, Scliar (1920-2001) primeiramente organiza e determina espaços para posteriormen-te colocar a tinta em sua obra. “Ele é o artista do método e da métrica. Nesse sentido, a linha é essencial, pois permite a criação de espaços diferenciados”, explica Lontra.

Scliar, entretanto, foi criticado por Portinari, que disse que seu trabalho não era pintura e lhe apresentou conceitos da Escola de Paris. Com as críticas, o garoto abandonou as artes e passou a frequentar um curso de engenharia. Em 1939, ele voltou a pintar para nunca mais abandonar essa área. Apesar de seus pais serem

traços de artista

imigrantes, Scliar era bastante nacionalista e buscava valorizar a temática social em suas obras. Além disso, conseguia ressaltar a beleza de objetos e aspectos cotidianos singelos, como velas, flores, bilhetes e lamparinas.

Percorrendo seis décadas da vida artística de Scliar, a exposi-ção apresenta desde seus primeiros trabalhos até as produções finais de sua vida, nos anos 1990. Lontra expõe que “a proposta é mostrar como ele foi enriquecendo com o passar do tempo, sem perder esse compromisso com a base gráfica”. Por isso, Scliar “é uma referência na história da arte, já que conseguiu criar uma linguagem brasileira”, conclui.

Quando 20 de janeiro a 28 de fevereiroonde Centro Cultural Correios, Rio de Janeiro (RJ)Quanto entrada franca

Carlos sCliar – Perfil e trajetória

Imag

ens:

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n°143 9

o vestuário tem grande importância como fator de definição da identidade da pessoa, desde o começo dos tempos. Como dizia Flávio de Carvalho (artista

e arquiteto), o ser humano não precisa colocar uma roupa por conta de condições climáticas, ele a usa como invólucro psicológico”, diz a historiadora da arte Cacilda Teixeira da Costa, autora do livro bilíngue e ricamente ilustrado Roupa de Artista – O Vestuário da Obra de Arte.

A relação entre arte e vestimenta é antiga e sofre influências históricas. Segundo Roland Barthes, a moda tem como aspecto fundamental ser uma “novidade regular imitada coletivamente”. Diante das transformações histórico-sociais, a indumentária adquiriu importância como elemento integrado ao conjunto de fatores de definição da linguagem visual.

Roupa de Artista – O Vestuário da Obra de Arte Cacilda Teixeira da CostaImprensa Oficial do Estado de São Paulo/Edusp312 págs.R$ 120

Sertão sem FimAraquém AlcântaraTerra Brasil176 págs.R$ 120 ou R$ 140 (edição de luxo)

relação intrínseca

Mundo em extinçãoa busca por um mundo virgem sempre

foi o principal estímulo de Araquém Alcântara. Famoso por suas fotografias que revelam a natureza, aos 57 anos resolveu empreender mais uma entre as muitas peregrinações de sua carreira como fotó-grafo. Com uma velha câmera Leica R 6.2 nas mãos, e com o olhar voltado ao “tem-po que insiste em se congelar diante do dinamismo da vida moderna”, Araquém registrou fragmentos da vida sertaneja, “onde tudo parece estar no seu próprio lugar e ali pertencer”.

O resultado dessa viagem pelo “Brasil ocre, seco e espinhoso”, que se estendeu pelas estradinhas de terra do norte de Minas Gerais ao Piauí, pode ser visto no livro Sertão sem Fim. Acompanham as 90 fotografias um texto de Walnice Nogueira Galvão, batizado de “O Imaginário do Sertão”. Nele, a professora de teoria literá-ria da USP disserta sobre as características que tornam o sertão um universo único, uma “região bravia e indômita” cheia de “mistérios e de enigmas”, por fim, um local “incivilizado, fora do alcance do braço da

lei, cujos habitantes são reconhecidos co-mo uma personificação de coragem e es-toicismo diante de condições adversas”.

Nesse lugar rico em histórias, fonte de inspiração para inúmeros escritores, de Euclides da Cunha a Guimarães Rosa, pas-sando por Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos, Araquém afirma que registrou um mundo em via de extinção. “Tais ecossistemas vivos são cada vez mais raros. Cheguei a testemu-nhar todo o esforço de ex-vaqueiros or-gulhosos de sua armadura de couro. Hoje, em muitos lugares, os vaqueiros preferem motocicletas para tocar o gado. Os vilare-jos estão sendo consumidos por cartazes de baixa qualidade, pelo plástico. Procurei registrar o que ainda restou desse ataque cultural desenfreado”.

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eNtreVista Be At r I z Br A c h e r

redescoberta do clichêA escritora Beatriz Bracher aposta na banalidade surpreendente do clichê para a reinvenção da linguagem e da literatura

Mo A c I r AM â n c I o

Fo t o s : Al e s s A n d r A Pe r r e c h I l

Uma das ciclistas que passam de manhã pela Pedroso de Morais, região do Alto de Pinheiros – São Paulo (SP), é a escritora Beatriz Bracher rumo

ao escritório onde trabalha, nas imediações. Lá, concebe suas histórias, lê Kafka, Beckett, Nuno Ramos, Coetzee, Rubens Figueiredo, João Gilberto Noll, Flannery O’Connor, Faulkner, Graciliano Ramos (o grande, entre os brasileiros). Depois de ter sido editora (foi uma das fundadoras da bem-sucedida Editora 34, com um catálogo em que figuram, por exemplo, cânones da literatura russa em novas traduções), ela tem ministrado cursos diversos e feito palestras, sem nunca perder de vista a atividade literária. Nisso, é uma profissional, capaz de manter uma espécie de contabilidade criativa, anotando em uma caderneta os projetos, anda-mentos, ideias que serão desenvolvidos em suas histórias, como um modo de controlar a tarefa e avançar nela.

Bracher recebeu elogios de críticos literários de peso, como Alcir Pecora e Roberto Schwarz. E também prê-mios que a colocam no time que se firma como um novo capítulo da literatura brasileira, ao lado de Luiz Ruffato, Marcia Tiburi, Wilson Bueno. Questões éticas, implicações políticas, preocupação estética e experimentação formal são características destacadas em seus livros: Azul e Dura, romance, 2002 (7Letras); Não Falei, 2004; Antonio, 2007; e Meu Amor, 2009 (esses três pela Editora 34), mais o con-to “João”, numa edição limitada, de 2008. Com Antonio, ficou com o 3º lugar no Prêmio Jabuti e o 2º no Portugal Telecom. Meu Amor levou o Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, como o melhor livro de contos em 2009. Seu roteiro, escrito com o cineasta Sérgio Bianchi, recebeu o prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cinema do Rio, também no ano passado. O filme tem estreia prevista para este mês.

Paulistana, viveu no Rio, mas voltou à capital paulista, onde vive. Nesta entrevista, conta como se tornou escritora e fala sobre o último livro e a criação literária, a linguagem em confronto com a mídia das telenovelas, o cotidiano e o mítico, a crítica e a atividade literária no Brasil. No mo-mento, escreve um romance sobre um apaixonado leitor de Paraíso Perdido, de John Milton, que luta para concluir um trabalho acadêmico sobre aquele poema.

CULT – Podemos dizer que o cotidiano é o grande motor do romance, do conto. Nada mais banal, mais cotidiano, do que uma expressão como “meu amor”, título de seu último livro. Como você detona o lugar-comum, ou o recria, ou o redescobre de certo modo?Beatriz Bracher – Escolhi esse título porque acho que as duas principais coisas do livro são o clichê e a linguagem. O lugar-comum é o quê? É um carimbo, pode servir para diferentes tipos de situação. Seria como tornar carne e osso a palavra, a expressão “meu amor”, mas sabendo que talvez seja uma luta inglória, sem a certeza de que vou conseguir.

Em alguns outros contos isso também acontece, como em “João”, por exemplo, em que a mãe vê o filho preso e diz “nunca imaginei isso para o meu filho”. O que ela fala é um clichê, mas por outro lado eu não duvido nem um pouco de que o coração dela está cheio de sofrimento.

Então, como o clichê consegue transmitir coisas importantes, intensas e originais? O clichê não impede que a expressão seja sincera. É quase como ouvir alguém falando português errado: você associa isso com burrice, e não com ignorância da língua. E o clichê também tem isso: a pessoa pode usá-lo de maneira que revele algo original e não escamoteie um senso comum, uma ausência de sentimento sincero.

CULT – Você escreveria uma novela para a televisão?Beatriz – Vamos dizer que, se eu conseguisse escrever uma novela para a televisão – não sei se eu conseguiria no sentido técnico, porque é uma complicação –, mas, se eu conseguisse, eu não sei se gostaria...

CULT – É uma forma privilegiada de trabalhar o clichê também.Beatriz – Mas talvez na novela o clichê seja só clichê, quer dizer, não seja cheio de vida.

CULT – Mas há bons exemplos, como o Dias Gomes; o Aguinaldo Silva, que também é romancista e começou muito jovem e com grande talento; o Carlos Lombardi, com ideias mirabolantes e inovadoras; o Walcyr Carrasco, com um transcendentalismo sutil. Eles usam o clichê como clichê e ao mesmo tempo como uma forma de retrabalhar a linguagem.Beatriz – É verdade. Na novela, a frase pode ser clichê, mas o ator

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Erudição e envolvimentoDe 1961, quando ingressou no cur-so de letras da mítica Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antônia, ao ofício de professor universitário, pas-saram-se apenas dois anos. Mesmo antes de concluir a graduação, Davi assumiu uma turma do curso de literatura espanhola. A partir de então, foram 33 anos dedicados à Universidade de São Paulo.

O envolvimento com as aulas e o modo como adentrava os textos tra-balhados em sala são lembrados por seus alunos: “Tinha a impressão de que ele começava de forma lenta e até despretensiosa, rodeando o texto em questão, e então ia apresentando sua tessitura, seus nós, focalizando sob todos os ângulos, quando, tendo amarrado os seus vários lados, come-çava a decolar. Quando percebíamos, já estávamos no alto, olhando o texto todo aberto, como um exercício longo e paciente de complexas dobraduras que se abrisse num objeto surpreen-dente”, comenta Viviana Bosi, pro-fessora de teoria literária da USP. O

Perfil dAv I Ar r I G u c c I jr .

Paciência a serviço da precisãoLeitor minucioso, Davi Arrigucci Jr. é capaz de conviver longos anos com um texto literário em busca da análise precisa

WI l k e r so u s A

“a grandeza das aulas de davi é mais ou menos

fácil de definir: um homem realmente culto ao lado

de uma paixão forte pelo assunto”

Murilo Marcondes de Moura

Rua Dona Veridiana, São Paulo. Nas prateleiras espalhadas pe-los cômodos do apartamento,

repousam muitos dos livros que ajuda-ram a construir a trajetória intelectual de Davi Arrigucci Jr. Dos cânones da crítica literária brasileira, como Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Mário de Andrade e Antonio Candido, pas-sando pelos expoentes da estilística espanhola até os ícones da literatura nacional e estrangeira, a diversidade de suas leituras contribuiu para a for-mação de “um crítico de amplo e altís-simo repertório, que conhece muito, tem paixão pela literatura e dispõe da inteligência e da sensibilidade que ca-racterizam um grande leitor”, segundo palavras de José Miguel Wisnik.

O encanto pela leitura foi desper-tado ainda na infância em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. No sobrado em que vivia, próximo ao centro da cidade, na Rua Saldanha Marinho, havia livros tanto nas es-tantes da mãe quanto no consultório do pai, médico pediatra. A primeira biblioteca que o fascinou, porém, foi aquela pertencente ao amigo da famí-lia e também médico Joaquim José de Oliveira Neto. Em armários envidra-çados e estantes de madeira dispostos em duas salas, estava um vasto acervo de literatura brasileira e francesa, além de obras raras, como uma edição de Os Lusíadas do século 16. A bibliote-ca foi importante para muitos da re-gião e dela também se serviu o amigo Antonio Candido.

método desenvolvido por ele nas aulas também é recordado por José Miguel Wisnik: “A mera paráfrase do poema feita por ele já soava como revelação. Depois de comentado e contextuali-zado o texto, começavam a análise e a interpretação propriamente ditas, vi-sando ao ‘círculo hermenêutico’ em que o particular e o geral encontravam um ponto de síntese, e graças ao qual o poema reverberava em um detalhe sem deixar de ser compreendido co-mo um todo”. Para Murilo Marcondes de Moura, professor de literatura bra-sileira da USP, “a grandeza [das aulas de Davi] é mais ou menos fácil de de-finir: é um professor que sabe muito, um homem realmente culto ao lado de uma paixão forte pelo assunto”.

Em busca da análise precisaCom a indústria dos papers, acom-panhada de mestrados e doutorados relâmpagos vigentes no universo acadêmico, debruçar-se por vários anos sobre a obra de um determina-do escritor parece algo impraticável. Contudo, o longo convívio com o objeto de estudo, com vistas a polir a análise, é algo inerente ao trabalho de Davi Arrigucci. Quando decidiu estudar a obra do argentino Julio Cortázar, ainda nos anos 1960, Davi deparou-se com um vasto contexto histórico-literário a ser descortinado, o que demandou sete anos de estudo até concluir sua tese de doutorado, sob orientação de Antonio Candido. “No caso do Cortázar, eu tinha de ler

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n°143 23

Acervo Cult

arriGUCCi Jr.: crítico de amplo repertório, que dispõe da inteligência e da sensibilidade que caracterizam um grande leitor

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ensaio Fr a n c i s c o Bo s c o

o congênito e o adquiridoDo dinheiro e do amor, da beleza e do valor, da doença e dos remédios

Diz a anedota que o milioná-rio de idade avançada está conversando com um amigo

mais jovem. Conta a esse que sua nova namorada, de 20 e poucos anos, não para de lhe pedir presentes: roupas, joias, viagens, e acaba de pedir um carro. O jovem comenta: “Que na-morada cara, hein?”. Ao que o outro responde: “Rapaz, na minha idade, ou é cara ou é coroa...”. As expressões e piadas sobre a relação entre dinhei-ro e amor são inúmeras. Convergem, em geral, para o sentido da expressão “dar o golpe do baú”, em que a rela-ção é taxada de ilegítima do ponto de vista do amor: casou-se por causa do dinheiro, e não por amor; mais pre-cisamente, casou-se contra o amor, disposto a sacrificá-lo pelo luxo ma-terial. A perspectiva de fundo desse juízo é pseudofilosófica; ela se apoia numa cadeia de oposições que esta-belecem um fosso entre os supostos artifício (o dinheiro) e espontâneo (o amor), adquirido e congênito, no limite, falso e verdadeiro. Digo que essa série é pseudofilosófica porque ela reproduz, sem o saber, os termos do vocabulário filosófico, sem chegar, contudo, a questioná-los, sem chegar, portanto, à filosofia, cujo ponto de partida é a questão. E o que é a ques-tão? A questão é o estado filosófico da pergunta. Uma pergunta encerra sempre uma afirmação, um modo de ver a priori. O trabalho filosófico co-meça por suspender esse a priori da pergunta. Quando uma pergunta per-de seu chão, aí ela se metamorfoseia em questão. Daí que se pode detectar um espírito filosófico em sua atitude

segundo uma determinação narcísi-ca, seja segundo a reprodução de uma situação primitiva. No primeiro caso, apaixonamo-nos por nosso eu ideal: pela imagem que fazemos do outro e que corresponde ao que julgamos ou gostaríamos de ser. No outro caso, apaixonamo-nos por qualquer pes-soa que substitua, para nós, o papel protetor da figura materna. O sujeito, assim, “tem originalmente dois obje-tos sexuais – ele próprio e a mulher que cuida dele”, diz-nos Freud. A es-pontaneidade revela-se tão somente uma construção ignorada. Como diz a canção, “até uma coca-cola é mais pura do que a fórmula do amor”.

Desmoralizar para moralizarO que me interessa aqui é minar a oposição entre o congênito e o adqui-rido. Poderia fazer esse caminho pela psicanálise, por Freud e Lacan: para ambos a formação do eu remonta a uma alienação, ou a uma série de-las. O eu não tem essência, não é da ordem da metáfora do fruto, mas da cebola: descascando-lhe as camadas (de identificações, de que se forma o eu), resta nada. Mas quero fazer o per-curso interrogando o senso comum. Pois outra manifestação do espírito antifilosófico do senso comum é sua propensão à moralização. Moralizar os fenômenos é uma operação que ra-ramente alcança o estado filosófico, que contudo é aquele a partir do qual se deve fundar uma moral. Moralizar, normalmente, consiste apenas em es-colher um dos lados de uma oposição. É por isso que tão ou mais importante que moralizar os signos é desmoralizá-

diante de uma pergunta: o filósofo não é aquele que responde à pergunta, mas que a questiona.

Pois bem, tentemos conduzir o problema ao nível da questão. O que se pode perceber é que a dissociação necessária entre dinheiro e amor não apenas se apoia na série de oposições descrita acima, como moraliza essa série, isto é, faz incidir sobre ela um nítido juízo de valor ao privilegiar um dos lados da cadeia. Assim, entre o congênito e o adquirido, nesse caso, fica-se com o congênito. O dinheiro, por ter sido adquirido, é um aspecto exterior ao sujeito, não lhe é consti-tutivo. E não se pode amar senão a “essência” da pessoa, já que o amor seria ele mesmo essencial, o que ha-veria de mais espontâneo em alguém. Esse juízo de fundo é assimilado não só pelo suposto aproveitador, o golpis-ta do golpe do baú, mas também pela suposta vítima. Daí a figura clássica do milionário que se disfarça de po-bre, que oculta sua riqueza por temer que os outros só vão gostar dele por causa de seu dinheiro. O milionário submete o outro a um teste, que con-siste em que possa amá-lo indepen-dentemente de seu dinheiro, ou seja, “pelo que eu sou”.

Mas, curiosamente, a expres-são mais cínica desse juízo é a que mais se aproxima de desconstruí-lo. “Dinheiro compra até amor sincero.” Pois, de certo modo, compra mesmo. Em primeiro lugar, deve-se observar que nenhum amor é, assim, tão sin-cero. A espontaneidade é um mito, e dos mais fracos. Para Freud, por exemplo, o sujeito só pode amar seja

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banda de moebius: o congênito e o adquirido, no amor, formam oposições arbitrárias

CC/Reprodução

Fora dessa lógica da rivalidade, outro aspecto remonta às oposições entre congênito e adquirido, e também se manifesta como uma moralização. Refiro-me ao uso de medicamentos diretamente ligados ao psiquismo, como antidepressivos, ansiolíticos ou mesmo remédios para disfunção erétil (que muitas vezes tem causa psíqui-ca). É claro que esse problema ins-taura imediatamente todo um campo complexo de problemas, em que não vou entrar. Quero apenas identificar a postura moralizante que consiste em não ingerir tais remédios com base nas oposições entre dentro e fora, na-tureza e cultura, puro e impuro etc. Muitas pessoas não se incomodam em tomar frequentemente remédios alopáticos para “o corpo”: antibióti-cos, anti-inflamatórios, e por aí vai. Mas hesitam, temem ou repudiam a ingestão de um ansiolítico. O que aí parece operar é uma lógica segundo a qual “o corpo” exclui o psiquismo e é considerado uma espécie de exteriori-dade, sobre a qual outra exterioridade (a dos remédios) pode atuar. Mas o psiquismo seria o núcleo, a essência do sujeito, uma interioridade que se-ria uma fraqueza moral socorrer com uma exterioridade. Aqui, no fundo, vige a oposição entre natureza e cultu-ra. Mas o psiquismo, claro, é histórico: sobre ele pesam as determinações do Outro. Às doenças da modernidade correspondem os remédios da moder-nidade. E, mesmo que se tenha uma postura crítica ao espírito do tempo, mesmo que se consiga subtrair de muitas de suas determinações, ainda assim o sujeito se encontra atraves-sado por ele, exposto a ele, sofrendo suas consequências. A moralização fundada na positivação de uma supos-ta natureza implica sofrer as doenças da história e recusar seus remédios. É um ganho da psicanálise não pensar o sujeito sob essa lógica moral e pseu-docausal, mas sob a lógica do desejo e da diferença entre tratar da estrutura e aliviar o sintoma.

[email protected]

los. Não se deve moralizar sem antes desmoralizar.

Falando concretamente, no caso que estamos analisando, é preciso primeiro desmoralizar o problema, mostrando que a cadeia de oposições em que se apoia é arbitrária: o congê-nito e o adquirido formam uma es-pécie de banda de Moebius. Nos dois polos do problema: tanto no sujeito que ama quanto no sujeito amado (a expressão “objeto amado” é, para falar com humor, de uma perversão impressionante). O dinheiro é parte tão constitutiva do sujeito quanto sua beleza, sua saúde e quaisquer de suas qualidades (e tão transitório quanto essas). Não há como separar o dinhei-ro do sujeito que o possui. Para um herdeiro, a fortuna terá consequências decisivas em sua formação. Para um self-made man, a conquista do dinhei-ro terá moldado o seu caráter, ou terá sido moldada por ele. O dinheiro é um mundo. E uma das razões mais legítimas para se amar alguém é amar o seu mundo. Além disso, o próprio dinheiro pode ser congênito ou ad-quirido, isto é, herdado ou conquis-tado. Essa distinção é irrelevante do ponto de vista filosófico, como vimos, mas não do ponto de vista existencial. Aqui (e em tudo o mais), a observação importante, decisiva, que resolve mes-mo a questão, superando-a, é a frase de um personagem de Almodóvar:

“Uma pessoa é tanto mais legítima quanto mais se parece com seu so-nho”. A partir disso, podemos voltar a moralizar a questão. Se há uma crí-tica a fazer a quem se junta a alguém por dinheiro, é essa: se tal união trai o seu sonho (o que é improvável, se feita por vontade própria), ou se esse sonho é um sonho, existencialmente falando, pequeno. Pois o dinheiro é um mundo, mas pode ser um mun-do bem pequeno. Pois o poder é um mundo, mas pode ser um mundo bem infeliz: ser estrela é bem fácil, sair do Estácio é que é o x do problema.

As doenças e os remédios da históriaQue a moralização pelo senso comum seja destituída de espírito filosófico, isso o comprova outra relação, aquela entre a beleza e o reconhecimento so-cial. Aqui o caso clássico é o do sujeito belo que não quer se distinguir apenas por sua beleza, mas por sua qualida-de profissional. O sinal moral então é invertido: o congênito é bruscamente desvalorizado – como uma espécie de injustiça – e o adquirido, valorizado, sem que se questione a oposição. O que parece estar em jogo, em ambos os casos, é um mecanismo compen-satório da economia social das riva-lidades imaginárias: desvaloriza-se o que o outro possui em alto grau, e valoriza-se o que ele não possui.

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HoMenaGeM al B e rt ca m u s

altiva austeridadeMorto há 50 anos, Camus resistiu, pela solidariedade da revolta, às promessas e utopias políticas de seu tempo

ma n u e l D a co s ta Pi n t o

Reprodução

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n°143 37

Comentando a obra do escritor Albert Camus – que morreu há 50 anos, num acidente de

automóvel em 4 de janeiro –, o crítico João Alexande Barbosa escreveu:

“Desde Núpcias até a conferência de Uppsala, é possível traçar uma li-nha de coerência para com o fragmen-to, que termina por emprestar à obra uma feição incômoda de inconclusão para aqueles que desejam sempre a se-gurança dos sistemas classificatórios. Para esses, Camus sempre deixou de dizer alguma coisa. O seu mundo não era nem podia ser esgotante porque sobretudo pretendia ser verdadeiro. Feito de sugestões, pesquisas, avan-ços e recuos, era um mundo dialético por natureza. Se no discurso que pro-nunciou na Suécia é possível apontar a dimensão de um escritor já amadure-cido na sua arte, não é menos possível mostrar a sua fidelidade para com o mundo corajosamente inseguro que construiu. Daí uma espécie de eterno retorno que é constante em sua obra: cada novo livro oferece a possibilidade

para melhor compreensão de um an-terior. Mas quando esperamos o fe-chamento do círculo, eis que as cor-das se desatam e novamente começa o jogo difícil da procura. Por isso, Jean Starobinski pôde escrever: ‘Camus pertencia menos a seus livros do que à tentativa que lhes sucedia, e que co-locava novas questões’.”

A obra de Camus sempre girou em torno de alguns temas ou obses-sões, examinados a partir de gêneros diferentes: ficção, teatro, ensaio. E ca-da um deles, por sua vez, recapitula as origens de uma intuição, de uma disposição fundamental, que começa a se delinear em sua Argélia natal.

Camus é conhecido como o “filó-sofo do absurdo”, que teria dado à sua percepção do confronto entre o desejo

de clareza do homem e a opacidade do mundo (em O Mito de Sísifo) uma dimensão romanesca e teatral (em livros como O Estrangeiro e A Peste e em peças como Calígula e O Mal-entendido). Essa repartição da obra camusiana é muito semelhante àque-la encontrada na obra de Jean-Paul Sartre, também ele um escritor e pen-sador que abordou temas como cons-ciência e contingência em ensaios (O Ser e o Nada), romances (A Náusea) e peças (Entre Quatro Paredes).

Por causa disso, da amizade entre ambos e de certas coincidências inte-lectuais e biográficas (como a questão do engajamento e a Resistência ao nazismo), Camus se viu a contragosto associado ao existencialismo de Sartre. Enquanto a situação política do pós-guerra sustentou interesses comuns, essa vinculação não foi tão incômoda. Com o acirramento da Guerra Fria, porém, as diferenças se acentuaram, culminando na ruptura entre am-bos após a polêmica em torno de O Homem Revoltado, livro de 1951 em

infânCia: vida pobre, entre banhos de mar, “peladas” em que brilhava como goleiro e devaneios alimentados pelos livros do tio

Reprodução/divulgação

Camus se viu a contragosto associado ao existencialismo de

sartre

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Dossiê

Consolação FilosoFiae

O tema do Dossiê de fevereiro oferecido pela CULT contém uma pitada de polêmica: pode a filosofia consolar? Pode a filosofia ter um papel positivo na busca humana de uma existência harmônica,

pacificada e – por que não? – mais feliz?O tema implica sérios riscos, sobretudo se se associar a atividade filo-

sófica com o que, em linguagem corrente, se denomina “cura psicológica”. Atualmente, há iniciativas terapêuticas baseadas em afirmações de filósofos, buscando algo como uma correção do pensamento, à maneira cartesiana, e eclipsando-se as forças inconscientes da vida interior.

Os riscos aumentam se considerarmos a especificidade da atividade fi-losófica; afinal, não se pode negar o caráter técnico da pesquisa em filosofia, com suas exigências altamente especializadas (no tocante ao vocabulário, às metodologias, ao uso das fontes originais etc.). Curiosamente, chega-se a criticar essas exigências técnicas, em nome de uma “democratização” do filosofar. Ao menos em filosofia, democratização sem exigências seria impossível.

Todavia, apesar das dificuldades que o tema implica, seria inteiramente equivocado associar a atividade filosófica com a busca de realização inte-rior? Segundo a linguagem clássica, a filosofia não poderia consolar? Em linguagem mais recente, poderíamos perguntar se a atividade filosófica não se relaciona com a vida afetiva. As escolhas filosóficas não chegariam a essa dimensão da vida interior?

Para um filósofo antigo, como Sêneca e Boécio, por exemplo, é natural pensar numa consolação filosófica, tendo em vista a unidade do trabalho de reflexão e o imbricamento entre lógica, metafísica e ética, apesar da distinção metodológica dessas disciplinas. Para um filósofo moderno ou contemporâneo, dada a cisão da unidade clássica, um efeito consolatório nem sempre é evidente. Constata-se, hoje, uma pulverização das concep-ções de filosofia, chegando-se mesmo, muitas vezes, a concepções autori-tárias e dogmáticas que criticam e põem sob suspeita a tradição nascida com o espírito grego. Em alguns casos, ela derivou para a mais explícita doxa (“opinião”), e as formas de convencimento se dão mais pelo exercício do poder do que pela argumentação.

Não terão os antigos mais nada a dizer? Não fará sentido postular uma unidade interior, de maneira que todo ato livre seja visto como um ato com ressonâncias no conjunto de toda vivência interior?

A CULT oferece aos seus leitores uma das muitas portas para entrar nesse debate polêmico e delicado. A filosofia, feita ou não por especialistas, toca na vida interior de seus praticantes?

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PARA UMA VIDAEQUILIBRADA

A fi losofi a de Sêneca testemunha o poder consolador que o pensamento pode ter em nossa vida interior

lU i Z i r ol i V e i r a

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52 A BUSCA DE UNIDADEINTERIOR

A Consolação da Filosofi a registra não apenas a consolação que Boécio recebeu da fi losofi a, mas também a que procurou oferecer a ela

JU V e n a l saV i a n Fi l H o

55 O RISO DE MONTAIGNE

Nos Ensaios, Montaigne descreve sua própria experiência, esperando que o riso traga emenda à vaidade humana, fazendo-a ciente de sua inconstância

si lVa n a D e so U Z a ra M o s

58 A FILOSOFIA E OCONSOLO DO TEMPO

O pensamento de Bergson indica um sentido para nos libertarmos da ditadura do tempo

DÉ b o r a Mo r aT o Pi n T o

UMA VIDA SEM CONSOLAÇÃO

A fi losofi a não pode nos consolar. Poderia, talvez, nos ajudar a viver uma “vida sem consolação”

Je a n n e Ma r i e Ga G n e b i n

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Doss iê Co n s o l a ç ã o e Fi l o s o F i a

n°14352

a busca de unidade interiora Consolação da Filosofia registra não apenas a consolação que Boécio recebeu da filosofia, mas também a que procurou oferecer a ela

Ju v e n a L Sav i a n Fi L h O

O autor mais emblemático, na história da filo-sofia, para o tema da consolação é certamente Boécio (475-525), cuja obra de maior divulga-

ção, aliás, intitula-se A Consolação da Filosofia.A consolação, nessa obra, é apresentada em dois

sentidos: aquela oferecida “pela” filosofia e aquela ofe-recida “à” filosofia. Como se diz em gramática clássica, toda a diferença está na partícula “da”, interpretada como genitivo subjetivo ou como genitivo objetivo. A Consolação de Boécio registra, assim, não apenas a consolação que ele recebeu da filosofia, mas também a que ele procurou oferecer a ela.

Consolação oferecida “à” filosofiaCom efeito, Boécio diagnosticava, em sua época – a fase final da desagregação do Império Romano –, um descaso com a atividade filosofia, ou, então, a mani-pulação e a dilapidação do patrimônio filosófico por parte de tendências que entravam na moda e saíam dela. Na obra escrita no cárcere, ele procura “consolar” esse patrimônio com um texto esmerado do ponto de vista literário e dotado de um conteúdo teórico que mantinha viva a herança clássica greco-romana.

É certamente em função dessa consolação que Boécio, nas primeiras páginas de sua derradeira obra, retrata a filosofia sob a forma de uma mulher, a dama Filosofia, cuja aparência, embora imponente, encon-trava-se embaçada, e com vestes rasgadas por mãos violentas:

Apareceu-me uma mulher, acima de meu olhar. Seu aspecto era venerável; seus olhos, repletos de fogo, mais penetrantes do que podem ser os olhares

humanos. (...) Suas vestes eram confeccionadas de fios muitos finos, trabalho delicado, matéria indes-trutível; fora ela mesma quem as tecera. Podia-se ler, bordada na franja inferior, a letra grega Pi; e, no alto, um Theta. Entre essas duas letras, via-se como uma escada, com degraus que levavam da letra inferior à superior. Entretanto, sua indumentária havia sido rasgada por mãos brutais, que lhe arran-caram tantos pedaços quantos foi possível arrancar.

A imponência dessa mulher simbolizava a tradição

ensino: iluminura de um manuscrito da De Consolatione Philosophiae, feita na itália no ano de 1385, em que Boécio leciona a seus alunos

CC/Reprodução

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n°143 53

filosófica greco-romana, incluindo os autores bizanti-nos antigos, bem conhecidos por Boécio. Quanto aos agressores, eles eram identificados como os ignorantes pretensiosos, os inimigos de Sócrates, alguns epicuristas e alguns estoicos.

Boécio não desvalorizava o estoicismo e o epicuris-mo em geral. Ele se punha, inclusive, em concordância com muitas teses dessas escolas. Mas via problemas nelas, como, por exemplo, a associação estoica entre a esperança e a infelicidade, ou a eleição epicurista do prazer como bem absoluto do ser humano. Esses modismos, somados à violência sofrida pela cultura clássica (em tempos “bárbaros”), estariam represen-tados nas vestes rasgadas da dama Filosofia.

Para Boécio, apenas uma esperança ilusória seria causa de infelicidade (como, por exemplo, esperar justiça de um tirano), e o prazer seria apenas um bem relativo, nunca absoluto (o bem absoluto teria de ativar as capacidades racionais do ser humano, distinguindo-o dos outros ani-mais). Numa palavra, a esperança autêntica deve ser lúcida, e o prazer, bem situado no conjunto dos bens humanos.

Esses exemplos apontariam para a elaboração da experiência prática, visando chegar à contemplação teórica da verdade sobre a existência: tal o sentido dos degraus que partem da letra pi (inicial de práxis, em grego) e levam à letra theta (inicial de theoría, em grego), bordadas respectivamente na parte inferior e superior das vestes da Filosofia.

Essa elaboração da prática, vazada em elementos platônicos, aristotélicos, cristãos e neoplatônicos – com pivô e ápice na Felicidade –, molda a consolação “da” Filosofia e denuncia o que, para Boécio, constituía for-mas de pensamento fáceis e sedutoras, porém equivo-cadas e autoilusórias.

Consolação oferecida “pela” FilosofiaA escalada dos degraus da práxis à teoria constituía,

por sua vez, a consolação oferecida “pela” Filosofia a Boécio. Seus últimos dias, vividos na prisão, arrema-taram uma existência de coerência ética e política. De conselheiro do imperador Teodorico, ele passou, depois de uma acusação injusta, a ser visto como traidor do império. Foi, então, obrigado a manter residência for-çada no norte da Itália, longe da família, dos amigos e de sua biblioteca, à espera da execução. Nesse período, ele compôs a Consolação.

Essa obra é o registro de um protesto contra sua sorte injusta, bem como a tentativa de responder a gra-ves problemas filosóficos que, no contexto da prisão,

prisão: Boécio Dando Adeus a Sua Família, óleo de Jean Victor schnetz (1787-1870)

CC

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ção