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Revisão Marilda Fátima Dias

Capa Guilherme Angerames R. Vargas Editoração, Arte e Produção Gráfica Unemat Editora

Ficha Catalográfica M961

Revista da Faculdade de Educação/Universidade do Estado de Mato Grosso: multitemática – Coordenação: Ilma Ferreira Machado. Ano IV, nº 5/6 (Jan/Dez 2006) – Cáceres-MT: Unemat Editora.

Semestral Multitemática p. 209

ISSN 1679-4273 CDU – 37 (05)

A fim de cumprir com sua periodicidade esta Revista corresponde aos nº. 5/6, ano de 2006, porém para efeito de referência bibliográfica deve ser utilizado como data de publicação o ano de 2008. Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da editora.

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Revista da Faculdade de Educação Ano IV nº 5/6 ( jan./dez. 2006)

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO

ReitorProf. Taisir Mahmudo Karim

Vice ReitorProf. Elias Renato da Silva Januário

Pró-Reitora de Pesquisa e PósGraduaçãoProf. Carolina Joana da Silva

Pró-Reitor de Ensino e GraduaçãoProf. Agnaldo Rodrigues da Silva

Pró-Reitor de Extensão e CulturaProf. Ilário Straub

Pró-Reitor de Administração eFinançasProf. Wilbum de Andrade Cardoso

Pró-Reitora de AdministraçãoAnapaula Rodrigues Vargas

Pró Reitor de Planejamento eDesenvolvimento InstitucionalProf. Vitérico Jabur Maluf

Diretor da Faculdade de EducaçãoProf. Afonso Maria Pereira

Conselho EditorialAfonso Maria Pereira – UNEMATAumeri Carlos Bampi – UNEMATBeleni Salete Grando – UNEMATIlma Ferreira Machado (UNEMAT/Coordenadora)Irton Milanesi – UNEMATJosiane Magalhães – UNEMATManuel Francisco de Vasconcelos Motta – UFMTMaria Izete de Oliveira – UNEMATTatiane Lebre Dias – UNEMAT

Conselho ConsultivoAna Canen – UFRJAbigail Alvarenga Mahoney – PUC/SPBernardete Angelina GattiClaudia Davis – PUC/SPFarid Eid – UFSCARFilomena Maria de Arruda Monteiro – UFMTIlma Passos A. Veiga - UnBJadir Pessoa – UFGJosé Carlos Libâneo – UCG/GOJosé Cerchi Fusari – FEU/SPLaurinda Ramalho de Almeida – PUC/SPLuiz Augusto Passos - UFMTLuiz Carlos Freitas – UNICAMPMariluce Bittar – UCDB/MSMauro Cherobin – UNESPMelania Moroz – PUC/SPVera Placco – PUC/SP

Unemat EditoraAv. Tancredo Neves, 1095Cavalhada II Cáceres-MTCEP: 78.200-000Fone: 65 3221 [email protected]

Revista da Faculdade de EducaçãoEndereçoFaculdade de EducaçãoAv. Tancredo Neves, 1095 Cavalhada IICáceres/MT CEP: 78.200-000Fone: (65) 3221 0036 / (65) 3221 [email protected]

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SUMÁRIO

EDITORIAL ........................................................................................ 05Ilma Ferreira Machado

ARTIGOSREFLEXÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO PARA OSDIREITOS HUMANOS: SERIA A EDUCAÇÃO IMPORTANTEOU PRIORITÁRIA? ........................................................................... 09Renato de Oliveira BritoLuiz Roberto Gomes

AÇÕES AFIRMATIVAS NAS UNIVERSIDADESBRASILEIRAS: OS CRÍTICOS LIMITES DAS CRÍTICAS ............. 27Paulo Alberto dos Santos VieiraPriscila Martins Medeiros

APOSTILA: PARA NÃO LER ............................................................ 53Pedro Demo

ESTUDOS BIBLIOGRÁFICOS: ALGUMAS ABORDAGENSSOBRE OS DIVERSOS PAPÉIS JUVENIS NA ATUALIDADE ........ 71Moisés Carlos Ferreira

SONS, NÚMEROS E GEOMETRIA ................................................... 81Manoel Lima Cruz Teixeira

“TER DESTINO CONVENIENTE” Educação da infância pobresob os olhares dos agentes da lei no limiar da república brasileira .......... 93Milton Ramon Pires de Oliveira

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INDISCIPLINA ESCOLAR: UMA DISCUSSAONECESSÁRIA ENTRE ESCOLA, PAIS E PROFESSORES ............. 109Egeslaine de Nez

INTERDISCIPLINARIDADE: UMA POSSIBILIDADE A PARTIRDO DIÁLOGO ENTRE AS DISCIPLINAS ....................................... 129Benedito de Oliveira (in memorian)

O SUPERVISOR NA ESCOLA REFLEXIVA:GESTÃO-FORMAÇÃO-AÇÃO ....................................................... 143Edlúcia Passos Carvalho PereiraVanessa Delving Ely

RELAÇÕES POSSÍVEIS DA EDUCAÇÃO DE JOVENSE ADULTOS COM A SÓCIO-ECONOMIA SOLIDÁRIA .............. 155Leonir Amantino BoffAleido Díaz GuerraGeovane Paulo Sornberger

O TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO MATO GROSSOE A VERIFICAÇÃO DA APLICAÇÃO DOS RECURSOSVINCULADOS À EDUCAÇÃO ....................................................... 167Nicholas Davies

OS INTELECTUAIS DIANTE DO MUNDO:ENGAJAMENTO E RESPONSABILIDADE ..................................... 191Antonio Ozaí da Silva

NORMAS DA REVISTA PARA APRESENTAÇÃO DEPRODUÇÕES CIENTÍFICAS ....................................................... 207

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EDITORIAL

Produzir e socializar conhecimentos que possam contribuir com oenriquecimento cultural de nossa gente e com o avanço da ciência, eis umagrande tarefa das universidades e dos educadores/pesquisadores. Tarefanem sempre fácil de ser levado a cabo, face uma série de empecilhos quepor vezes enfrentamos, seja de natureza técnica ou político-financeira.Contudo, buscamos superar tais dificuldades e limitações, um exemplo dissoé esta publicação conjugada da Revista da Faculdade de Educação, relativaaos números 5 e 6 de 2006, para colocar em dia sua periodicidade, mantendoo firme propósito de consolidar ações educativas e científicas que seconstituem em mecanismo de objetivação do pensamento questionador epropositivo e, ao mesmo tempo, de transformação de nossa realidade.

A edição da Revista ora apresentada reúne trabalhos de imensariqueza, pela complexidade das temáticas e por evidenciar a diversidade derelações que a educação comporta, seja no âmbito escolar e não escolar,nas modalidades infantil, juvenil e de adultos. São abordadas questões esituações com as quais lidamos ou nos defrontamos cotidianamente, muitasvezes, sem analisar profundamente seus fundamentos e fatores intervenientes.

Renato de Oliveira Brito e Luiz Roberto Gomes, a partir deexperiências na África do Sul e no Brasil, trazem uma reflexão sobre aspolíticas educativas para os direitos humanos, procurando evidenciar o papelda educação na promoção de avanços culturais e econômicos e da dignidadehumana, bem como o papel de co-responsabilidade do Estado naescolarização dos sujeitos, cabendo-lhe, respaldado por um amplocompromisso social, assegurar a efetividade e a qualidade desse processo.

Paulo Alberto Santos Vieira e Priscila Martins Medeirosdebatem a polêmica que se estabeleceu em torno das ações afirmativas nasuniversidades brasileiras, apresentando um contraponto às críticas feitas aessas ações. Reafirmam a necessidade de políticas de ações afirmativas,pautados nas teorias do multiculturalismo e nas proposições de políticasemancipatórias, que buscam o reconhecimento das diferenças sócio-culturais.

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O uso da apostila como material pedagógico nas escolas públicase privadas é questionado por Pedro Demo, considerando-se a queda nodesempenho escolar na avaliação do SAEB (Sistema de Avaliação daEducação Básica), o que leva o autor a afirmar que o ensino praticadonacionalmente tem caráter instrucionista: aprimora-se o ensino quando deveriahaver uma preocupação em aprimorar o ato de aprender, que não se constituiem mero repasse de conhecimentos.

No campo da pesquisa sobre juventude Moisés Carlos Ferreiratraz uma abordagem sobre os diversos e, às vezes, contraditórios papéisatribuídos aos jovens em nossa atualidade, apoiando-se nos estudos dospesquisadores hispano-colombianos Martín-Barbero, Valenzuela e Cubides,que cunharam conceitos como “moratória social” e “jovem oficial”.

Por meio de uma pesquisa bibliográfica, Manoel Lima CruzTeixeira procura evidenciar as relações existentes entre questões distintas,como a matemática e a música. Para tanto, o autor analisa desde a experiênciafeita por Pitágoras com o monocórdio, criando a linguagem musical com ouso da linguagem dos números, até o surgimento da acústica e da músicacomo arte autônoma.

Em seu artigo, Milton Ramon Pires de Oliveira, trata dodelineamento das concepções de infância, família e educação, empregadaspela polícia e por juristas brasileiros nas primeiras décadas do século XX,período em que crianças e famílias pobres eram objeto de práticasclassificatórias e discriminatórias e a educação dada pela polícia às criançasque passavam aos seus cuidados era vista como meio possível de mudar odestino “condenado” dessas crianças.

A indisciplina escolar continua sendo um tema desafiador paraeducadores e pais. Neste sentido, Egeslaine de Nez procura mostrar anecessidade de conhecermos os fatores causadores da indisciplina e as raízesdos problemas daqueles que são rotulados de indisciplinados e, ainda, de seconsiderar que, historicamente, tanto a família quanto a escola mudaram,por isso é importante se estabelecer regras claras e coetâneas com essanova realidade, de modo a permitir que o trabalho educativo aconteça

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organizadamente. Benedito de Oliveira trata de uma questão que é tão cara aos

educadores, porém tão pouco praticada: a interdisciplinaridade. Faz umareconstituição histórica da disciplinaridade, no século XVI, como forma desituar o movimento pela interdisciplinaridade, que se constitui como ummovimento pedagógico, conforme definido por Veiga-Neto, sem se constituir,no entanto, em uma nova teoria de currículo e sem prescindir dadisciplinaridade. O autor postula o diálogo entre as disciplinas como umapossibilidade de realização da interdisciplinaridade.

Edlúcia Passos Carvalho Pereira e Vanessa Delving Elydiscutem a gestão educacional, com destaque para o papel do supervisor,tendo em vista a escola dinâmica e reflexiva que utiliza a pesquisa-ação comometodologia para elaborar seu projeto político-pedagógico, em outraspalavras, para pensar e desenvolver seu trabalho educativo. Dessa maneira,defendem a estreita e simultânea articulação entre gestão-formação-ação.

A partir da experiência desenvolvida com o “EmpreendimentoMulheres Solidárias”, Leonir Amantino Boff, Aleido Diaz Guerra eGeovane Paulo Sornberger propõem uma reflexão sobre as relações einterações possíveis entre educação de jovens e adultos e a sócio-economiasolidária, na perspectiva de integrar duas atividades historicamentedicotomizadas no contexto da sociedade capitalista, que são educação etrabalho.

Nicholas Davies apresenta dados de uma pesquisa em queexamina os procedimentos do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grossona contabilização da receita e despesa vinculada à manutenção edesenvolvimento do ensino, constatando-se variações e equívocos nasinterpretações do Tribunal. Em decorrência dessa prática, o autor estima emcentenas de milhões de reais os prejuízos para a educação pública de MatoGrosso.

A necessidade de engajamento e responsabilidade dos intelectuaisdiante de nossa realidade é o tema abordado por Antônio Ozaí da Silva,que ao explicitar a origem e significado do termo “intelectual”, busca refletir

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sobre as complexas e polêmicas relações entre a teoria e a prática dosintelectuais, bem como suas relações com o poder, função e responsabilidadesocial. Desse modo, nos instiga a pensar sobre essa questão tão antiga e aomesmo tempo tão atual.

Que as contribuições trazidas pelos autores dessa edição sirvampara alimentar o debate no campo educacional, pois este é elementoimprescindível no processo de constituição de um projeto de educação esociedade pautado nos princípios democráticos e críticos, cuja finalidadeprimeira e última é a formação humana do sujeito.

Ilma Ferreira MachadoEditora da Revista FAED/UNEMAT

Cáceres-MT, junho de 2008.

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REFLEXÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO PARA OSDIREITOS HUMANOS: SERIA A EDUCAÇÃO

IMPORTANTE OU PRIORITÁRIA?

Renato de Oliveira Brito1

Luiz Roberto Gomes2

RESUMO: O objetivo deste artigo é destacar as políticas educativas sobre osDireitos Humanos. É uma tautologia dizer que o cidadão tem direito à educaçãoe que esta deve ser de qualidade, sendo que o Estado é co-responsável pelaescolarização do indivíduo. Neste estudo, ressaltamos o fato de que a educaçãopromove os aspectos econômicos e culturais de uma nação, o que pode sercomprovado pela experiência realizada na África do Sul sobre a educação esuas formas de ensinar os Direitos Humanos, desenvolvidas no CCR – Centrode Resolução de Conflitos da Universidade do Cabo. A relevância da educaçãoé salientada a partir dos sentidos atribuídos à noção de Importante e Prioritária.Conclui-se que a educação brasileira só será efetiva e de qualidade quandohouver um compromisso social, e quando a política de Estado for respaldadapor um amplo acordo capaz de coordenar e legitimar as ações sociais.

PALAVRAS-CHAVE, Educação, Direitos Humanos, Políticas Educacionais,Cidadania.

ABSTRACT: This article aims at highlighting educational policies on HumanRights. It is a tautology to say that citizens have the Right for an education ofquality since the State is co-responsible for the individual’s education. We stressthe fact that Education provides the economical and cultural aspects of a nation,what can be proved by an experience on education carried out in South Africa,and its ways of teaching Human Rights, developed in the Center of ConflictSolutions of University of Cape Town. The relevance of Education is evidencedby the senses attributed to the notion of Important and Prioritizing. We, then,conclude that the Brazilian Education will only be effective and of quality when

1 Pesquisador Visitante em Direitos Humanos pelo Centre For Social Science Research da Universidade de Cape Town– África do Sul (2005). Atualmente é graduando no Curso de Direito do UNITRI, Pesquisador Bolsista da FAPEMIG como projeto de pesquisa “Direitos Humanos e Educação Superior”, e membro do grupo de pesquisa “Teoria Crítica e EducaçãoSuperior - CNPq”.2 Doutor em Filosofia da Educação pela UNICAMP, professor titular do Programa de Mestrado em Educação Superiore do Curso de Direito do UNITRI, líder do grupo de pesquisa “Teoria Crítica e Educação Superior - CNPq”.

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3 Cf. Adorno (1972, 1995 e 1996), Boufleuer (2001), Delors (1999), Gimeno Sacristán (2002), Giroux (1986), Gomes(2006, 2007), Habermas (1983, 1984, 1999, 2004a, 2004b, 2004c), Hannoun (1998), Mattei (2002), Mühl (2003),Platão (1983), Plank (2001), Popkewitz, (1997), Pucci et all (1999), entre outros.

there is a social compromise, and when the State Policy relies on a wideragreement capable of coordinating and legitimating social actions.

KEYWORDS: Education, Human Rights, Educational Policies, Citizenship

1. Introdução

As reflexões sobre a educação na atualidade ganham sentido,sobretudo, quando passamos a considerar a educação básica como umaação possível de transformação social3 . Do ponto de vista social, cultural,econômico, ideológico e ético-político – para citar apenas algumas das esferasnas quais a sociedade está inserida – percebe-se que a educação vemsofrendo mudanças, em sua identidade, nas últimas décadas.

No contexto das políticas educacionais atuais destacamos a“Conferência Mundial sobre Educação para Todos” realizada em Jomtien,Tailândia, entre 5 e 9 de março de 1990, como expressão das potencialidadesda educação básica. Tal Conferência deu início a um grande projeto deeducação em nível mundial para a década que se iniciava e, que foi financiadapelas agências UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial. Estaconferência explicita as tendências e metas para o decênio de 1990, tendocomo eixo principal a idéia da “satisfação das necessidades básicas deaprendizagem”, por isso:

Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deverá estar emcondições de aproveitar as oportunidades educacionais oferecidaspara satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Estasnecessidades abarcam tanto as ferramentas essenciais para aaprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, ocálculo, a solução de problemas) como os conteúdos básicos daaprendizagem (conhecimentos teóricos e práticos, valores eatitudes) necessários para que os seres humanos possamsobreviver, desenvolver plenamente suas capacidades, viver etrabalhar com dignidade, participar plenamente dodesenvolvimento, melhorar a qualidade de sua vida, tomar decisõesfundamentais e continuar aprendendo. A amplitude das

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necessidades básicas de aprendizagem varia de país a país emsua cultura e muda inevitavelmente com o transcurso do tempo.(WCEA, 1990, p. 157)

A esse respeito, Frigotto e Ciavatta (2003) atestam que osrepresentantes de 155 países que participaram dessa Conferência, porintermédio das agências internacionais, organizações não-governamentais,associações profissionais e destacadas personalidades da área de educaçãoem nível mundial comprometeram-se em trabalhar no sentido de asseguraruma “educação básica de qualidade”.

O Brasil, por ser um país seriamente afetado por altos índices deanalfabetismo e evasão escolar, foi instado a desenvolver ações queimpulsionassem políticas educacionais ao longo da década de 1990, alémde ser solicitado a desenvolver projetos que levassem em consideração afamília, a comunidade, os meios de comunicação. Tais projetos, para seremviabilizados, seriam monitorados por um fórum consultivo coordenado pelaUNESCO (SHIROMA et al., 2002, p. 57-58).

No contexto das ações institucionais, pode-se dizer que no Brasilhouve, de um lado, progressos quantitativos com relação à oferta de vagas,se compararmos a década de 1990 com as décadas anteriores e, de outro,a constatação do déficit em relação à qualidade do ensino. São evidentes,ainda, os índices de repetência e evasão escolar, sem mencionar o déficit deaprendizagem dos alunos que são aprovados anualmente sem demonstrar omínimo de habilidades e competências necessárias para a continuidade deseus estudos, mesmo se considerarmos o projeto de implantação dasDiretrizes Curriculares implantado no governo Fernando Henrique Cardoso.

De acordo com a classificação apresentada pela Unesco no relatórioEducação Para Todos 2006 – Professores e Educação de Qualidade –que considera os 45 países cujos índices de repetência são superiores a10%, o Brasil apresenta um índice de repetência em torno de 21% (a pesquisausa como base o ano de 2002). Esse país tem situação melhor apenas emrelação a 15 países, em sua maioria países da África e do Caribe. OCamboja, por exemplo, apresenta em índice de 11% de repetência escolar.

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Já no Haiti esse índice é de aproximadamente 16%, na Ruanda de 19%, noChile em torno de 2% e na Argentina de 6%.

Estudos realizados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica- SAEB, pelo Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM e pelo ProgramaInternacional de Avaliação Comparada - PISA revelam que existem no Brasilsérios problemas relacionados à alfabetização, à aprendizagem da LínguaPortuguesa e da Matemática, especialmente no aspecto da redação, nodesconhecimento de conceitos aritméticos básicos e no uso inadequado dessesconceitos.

De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas - INEP2005, com uma nota média de 396, e numa escala de zero a 800, osestudantes brasileiros ficaram na 37ª posição na prova de leitura do ProgramaInternacional de Avaliação de Alunos – Pisa – aplicado em uma amostra deadolescentes com 15 anos de idade de 41 países. Nos resultados do testede 2000, o Brasil havia ficado em último lugar entre 31 países participantes,mas, com o ingresso de mais dez nações, o chamado “Pisa Ampliado”, comprovas aplicadas em 2001, o patamar de colocação do País mudou.

Vários especialistas em Educação têm apresentado sugestões quefacilitam a adaptação da educação às novas tecnologias, na tentativa decontribuir para que o analfabetismo alarmante no Brasil seja minimizado.Outro fator que agrava a crise escolar brasileira é a evasão dos estudos poruma grande parcela de estudantes, que sequer chegam a terminar o ensinofundamental.

As causas da evasão escolar, da repetência e do déficit deaprendizagem são várias; dentre elas, pode-se destacar a estrutura física dasescolas e a má qualidade do ensino, que muitas vezes não propicia acontinuidade da criança, do jovem ou do adulto na escola, embora as políticaspúblicas aleguem que existam investimentos maciços na educação. Narealidade, além de o espaço físico das salas de aula ser precário, há ainda oproblema da falta de salas de aula no país, especialmente em grandes centros,como São Paulo, onde as migrações internas, aliadas à explosão demográficageraram outras situações de precariedade. Além disso, pode-se mencionar

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que a falta de uma política séria de formação continuada de professores emdiferentes áreas, a péssima remuneração paga aos docentes e a deficiênciana formação dos professores asseveram a crise da educação brasileira.

Aliado a estes problemas pode-se mencionar o tempo mínimo depermanência do aluno na escola que, segundo especialistas do INEP (InstitutoNacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), no Brasil corresponde acerca de 4,3 horas por dia. O ideal, obviamente, seria que os alunospermanecessem de seis a oito horas por dia na escola, como acontece noexterior e, em algumas escolas brasileiras elitizadas. Por esses fatores, eoutros, os problemas se agravam ainda mais, principalmente os relacionadosà repetência e evasão escolar nos estratos mais pobres da população.

Em função do exposto, verifica-se que um dos direitos humanosbásicos assegurados pela Constituição Brasileira de 1988, a educação, nãoestá sendo garantido, uma vez que a defasagem educacional ainda é grande.A Constituição Brasileira, por sua vez, estabelece que a educação é umdireito de todos e dever do Estado e da família, e esta deve ser incentivadae promovida com a colaboração da sociedade em geral. Para tanto, o direitoà educação, conforme disposto no artigo 4º da Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional, só se efetivará mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para osque a ele não tiveram acesso na idade própria;

II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensinomédio;

III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandoscom necessidades especiais, preferencialmente na rede regularde ensino;

IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às criançasde zero a seis anos de idade;

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e dacriação artística, segundo a capacidade de cada um;

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do

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educando;

VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos,com características e modalidades adequadas às suas necessidadese disponibilidades, garantindo aos que forem trabalhadores ascondições de acesso e permanência na escola;

VIII - atendimento ao educando, no ensino fundamental público,por meio de programas suplementares de material didático-escolar,transporte, alimentação e assistência à saúde;

IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como avariedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumosindispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

Assim, a educação escolar que a sociedade necessita precisa estarcomprometida com a construção de uma cultura voltada para o respeito aosdireitos fundamentais dos cidadãos, envolvendo diferentes segmentos, atoressociais, instituições, órgãos públicos e privados, e diferentes esferas doGoverno a fim de que a sociedade torne-se, de fato, habilitada a exercer suacidadania controlada ou produzida pela vontade de cada um4 .

2. Educação: importante ou prioritária?

Se fizermos uma retrospectiva na história da educação5 , certamenteconcluiremos que a qualidade da educação se constitui como uma dasprincipais preocupações de, praticamente, todas as sociedades. No Brasil,as pesquisas recentes6 empreendidas pela Secretaria de Gestão eComunicação Estratégica da Presidência da República indicam a necessidadede um pacto na educação a fim de que a educação provoque investimentoscontínuos nos próximos vinte anos, independentemente de governo ou departidos políticos, pois já há um consenso de que não haverá desenvolvimentoeconômico e democracia se a população não tiver educação.

Diante dessa reflexão, pode-se formular um questionamento no4 Entenda-se por Cidadania: consciência e prática de direitos e deveres.5 Cf. Manacorda, 1999.6 Trata-se do governo Lula.

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sentido de promover uma ação mais incisiva sobre a educação. A educaçãono Brasil é importante ou prioritária? São várias as características da históriaque nos levam a uma resposta, dependendo do enfoque político que osgovernos e a própria sociedade possam impetrar.

Antes de buscar uma resposta possível para esta questão, éimportante comparar o significado das palavras importante e prioritário.Segundo o Dicionário Brasileiro Globo (2004) “importante” pode significaralgo que merece consideração, necessário, essencial, e “prioritário” podeser considerado como uma anterioridade, uma precedência, uma primazia.

Se a educação fosse somente importante, com certeza não teriasido e não continuaria sendo uma área de investimento dos governosmunicipais, estaduais, e federal, assim como não seria, também, objeto deestudo de vários pesquisadores e estudiosos que passam anos, décadas, ou,provavelmente, uma vida, debruçada sobre os livros, dedicando-se àexperiência prática da sala de aula, revendo conceitos, procurando defenderidéias, por meio de teorias, dissertações e teses, de que a educação abrehorizontes e de que ela é a base da vida humana.

Segundo Schwartzman (1993) a educação brasileira passou porgrandes t ransformações nas últimas décadas, e teve como resultado umaampliação significativa do número de pessoas que têm acesso à escola, assimcomo o nível médio de escolarização da população. No entanto, estastransformações não têm sido suficientes para colocar o país no patamareducacional necessário, tanto do ponto de vista da eqüidade, isto é, daigualdade de oportunidades que a educação deve proporcionar a todos oscidadãos, quanto da competitividade e desempenho, ou seja, da capacidadede que o país tem, em seu conjunto, de participar de forma efetiva das novasmodalidades de produção e trabalho deste fim de século, altamentedependentes da educação e da capacidade tecnológica e de pesquisa.

A esse respeito, pode-se dizer que os debates acerca das questõeseducacionais revelam incertezas e preocupações que, de fato, procedem,porque em face de uma sociedade cada vez mais exigente de capacitaçãocientífica e tecnológica, vislumbra-se a necessidade de uma prática educativa

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cada vez mais compromissada com as transformações demandadas pelomundo altamente globalizado.

Por outro lado, verifica-se que a nova LDB define a educação emsentido amplo, isto é, como dever da família e do Estado e dispõe que aeducação deve ser inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais desolidariedade humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento doeducando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificaçãopara o trabalho. No entanto, segundo Goldemberg (1996), o que era paraser uma diretriz para o ensino no Brasil, passou a ser o que esse autor chamade “ilusão técnico-burocrática”, na medida em que boa parte da elite pensantebrasileira acredita que se possa criar uma “nova realidade por decreto”. Aesse respeito, Goldemberg (1996, p. 135) acrescenta que:

A proposta da nova Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, por exemplo, partilha dessa ilusão, pois simplesmentedecreta a obrigatoriedade de uma escolarização completa e deboa qualidade para todos, prevendo ainda o atendimento integralna pré-escola, a atenção especial ao estudante que trabalha e aosexcepcionais, além de remuneração condigna para os professores,sem estabelecer prioridades e sem levar em conta os recursosdisponíveis. Ninguém, em sã consciência, seria contra este ideal.Mas a idéia de que os problemas reais serão resolvidos pela Leitem como contrapartida a ilusão de que, daí em diante, a tarefa dasociedade organizada consiste simplesmente em cobrar doExecutivo que execute o que foi decidido, como se o Governotivesse uma varinha de condão que tornasse isso possível. (grifodo autor)

Em razão do exposto, podemos dizer que, embora haja uma ênfasea respeito da importância da educação básica nos documentosgovernamentais, as ações efetivas, em termos quantitativos ou qualitativos,ainda são incipientes e não correspondem às crescentes demandas porconhecimento e por cidadania. Assim, com o objetivo de tentar recuperar o“tempo perdido”, torna-se necessário institucionalizar políticas que tenhamcerta estabilidade governamental a fim de que os investimentos na educaçãotenham resultado satisfatório em longo prazo.

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Conforme Plank (2001), a educação causa efeitos na economia,na garantia da promoção da cidadania e no aumento do capital social e, porisso, está sendo apontada como uma das melhores estratégias para superaro atraso econômico, cultural e o próprio subdesenvolvimento. Estudosrecentes empreendidos por especialistas da educação apontam, porém, parao fato de que para se converter a educação em prioridade nacional é precisoalavancar uma política de Estado e não apenas de governos, sob pena de setratar a política educacional de forma paliativa e não sistemática.

Para que isso, de fato, seja um compromisso social, é necessárioque essa política de Estado seja respaldada por um amplo acordo social afim de que seja legitimada e coordenada por mecanismos de integração social7 .Do contrário, não passará de política de conveniências voltada para interessesespecíficos. O objetivo da qualidade do ensino voltado para a maioria dasociedade deve receber das autoridades governamentais o mesmo nível deempreendimento que é dedicado às metas do plano econômico, ou mesmoultrapassá-las, conforme reivindicação explicitada há algumas décadas peloManifesto dos Pioneiros da Educação de 1932.

Em função das transformações ocorridas ao longo das últimasdécadas do século passado, o Brasil conseguiu expandir seu sistemaeducacional em todos os níveis, mas ainda encontra grandes dificuldades nosentido de garantir e efetivar qualidade e quantidade. A limitação dos recursospúblicos destinados à educação e a ineficácia de muitas ações governamentaisrepresentam empecilhos em relação ao crescimento econômico, uma vezque há no Brasil uma grande parcela da população que não tem educação eisso representa falta de pessoal competente para servir de mão-de-obraespecializada nesta sociedade cada vez mais científica e tecnológica.

Conforme Schartzman (1993), sabe-se que uma parte significativados orçamentos educacionais é gasta com a administração das SecretariasEstaduais e dos Conselhos Estaduais de Educação, que muitos professoresse dedicam a atividades burocráticas e administrativas, e que a manutençãofísica dos prédios escolares freqüentemente deixa a desejar. Nessa

7 Cf. Habermas (1999 e 2003).

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perspectiva, podemos afirmar que a pouca evidência da forma como seadministra os orçamentos educacionais sugerem que os recursos canalizadospara a educação escolar não são escassos no Brasil, mas eles são, na maioriadas vezes, mal geridos, como já explicitamos acima.

O fato é que não se gasta pouco na área educacional no Brasil. Aalíquota de investimento na educação, de acordo com a Constituição Federal,é da ordem de 18% do que a União arrecada em impostos e não menos de25% da arrecadação dos estados e municípios brasileiros. Assim, concluímosque embora o sistema educacional brasileiro ainda seja deficiente, o Brasil éum dos países que aplica o maior percentual de despesas públicas com aeducação, o que demonstra certa prioridade dessa pasta na agenda da políticagovernamental.

3. Educação e direitos humanos

Como temos insistido neste artigo, a educação escolar é direito detodos e, portanto, as políticas públicas nessa área devem atender à educaçãobásica e proporcionar aos cidadãos condições que lhes garantam estudosem uma escola de qualidade.

É relevante discutir sobre a importância e a priorização da educaçãopara se promover a tolerância, a resolução de conflitos e a solução deproblemas tanto em nível local quanto internacional, porquanto esseselementos são, inegavelmente, as bases fundamentais para se solidificar umaeducação voltada para os Direitos Humanos (como é o caso da África doSul, cujo modelo educacional já avançou consideravelmente). Nos últimosanos, os princípios dos Direitos Humanos vêm sendo proclamados, masapenas isso não basta. Torna-se necessário criar mecanismos para inserçãodestes princípios nos contextos e culturas locais. Portanto, o desafioeducacional deste século é trabalhar as diferenças no interior do processopluricultural, efetivando-se o fato de o cidadão exercer, na realidade, seudireito à cidadania. No entanto, constantemente vê-se negada a efetivaçãodesse princípio e a cada momento posterga-se a resolução de pequenosconflitos que surgem no cotidiano.

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Em relação a esse aspecto, Mazzuoli assevera que:

A cidadania é um processo em constante construção, que teveorigem, historicamente, com o surgimento dos direitos civis, nodecorrer do século XVIII, chamado Século das Luzes, sob a formade direitos de liberdade, mais precisamente, a liberdade de ir e vir,de pensamento, de religião, de reunião, pessoal e econômica,rompendo-se com o feudalismo medieval na busca da participaçãona sociedade. A concepção moderna de cidadania surge, então,quando ocorre a ruptura com o Ancien Régime, em virtude de serela incompatível com privilégios mantidos pelas classes dominantes,passando o ser humano a deter o status de “cidadão” (MAZZUOLI,2001, p.2) (grifos do autor)

Já no entender de Betto (1999), para que a cidadania ocorra defato, haveria a necessidade de uma ação mais incisiva na educação, a fim depromover, inclusive, a justiça social:

Um programa de educação em direitos humanos deve visar, emprimeiro lugar, a qualificação dos próprios agentes educadorestanto instituições – ONG’s, Igreja, governos, escolas, partidospolíticos, sindicatos, movimentos sociais etc, quanto pessoas.Aqueles que se dispõem a aplicá-lo devem superar as concepçõesidealistas e positivistas de direitos humanos. Numa sociedadesecularizada e pluralista, tais direitos não podem depender apenasde uma visão religiosa, metafísica ou abstrata, como se fossemderivados da vontade divina ou de uma razão natural. Não sepode esquecer que, em seu advento nos séculos XVII e XVIII,os direitos humanos surgiram como “expressão das lutas daburguesia revolucionária, como base na filosofia iluminista e natradição doutrinária liberal, contra o despotismo dos antigos Estadosabsolutistas”. Uma vez no poder, a burguesia, tendo o Estado sobcontrole, procurou garantir-se da ameaça representada pelaemergente pobreza coletiva proclamando a universalidade dosdireitos, extensivos a todas as pessoas e povos, quando de fatonão se questionavam a desigualdade de situações e a mudançamesma das causas da desigualdade (BETTO, 1999, p.1).

Vale ressaltar que é de suma relevância o papel das organizações

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não-governamentais na concretização dos projetos educativos. Talcompromisso tem sido levado a sério por essas instituições, especialmentepelo Centro de Resolução de Conflitos (CCR), uma das principaisorganizações não-governamentais na África do Sul.

O Centro de Resolução de Conflitos é sediado na Cidade do Cabo,na Província do Cabo Ocidental, e foi fundado pela Universidade da Cidadedo Cabo, em 1968, como organização independente e sem fins lucrativos.Embora seja sediada no Cabo Ocidental, essa instituição trabalha em nívelnacional e em outros locais do continente, especialmente na África Central edo Sul, para cumprir sua missão. Entre os fundos destinados a essa instituição,incluem a participação da Fundação Ford, a Fundação MacArthur e umasérie de importantes fontes de financiamento da Europa Ocidental e daAmérica do Norte.

Por meio dessas instituições, realizam-se projetos que têm comoobjetivo a promoção e expansão de uma cultura democrática voltada paraos Direitos Humanos, tais como: o desenvolvimento de material didáticosobre democracia e direitos humanos adequados ao sistema educacional dacomunidade, a qualificação de profissionais para expansão da educação paraos direitos humanos, incluindo professores na ativa e alunos da graduaçãoque ainda não tiveram experiência com a sala de aula, a criação de um corpodocente especializado no desenvolvimento e efetivação das qualificações deeducação para os direitos humanos e democracia.

4. Educação, educadores e direitos humanos

Existe em nível mundial uma corrente de pensamento que luta pelaeducação no sentido de valorizar os mestres, junto com a vontade dedescobrir novos potenciais humanos e desenvolver novas situações deaprendizagem com o objetivo precípuo de se efetivar uma educação dequalidade. Atualmente, os caminhos da observação e experimentação dentrodo processo educacional levam jovens e adultos a uma pluralidade cultural,justa e igualitária, sendo percebida apenas por aqueles que assumiram osólido compromisso moral para com as gerações futuras, por meio da tarefa

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de educar. A esse respeito Morgado diz que:

Dentro da perspectiva de formação universitária (...) entendemosque a formação deste(a) educador(a) deverá contar com umadisciplina acadêmica que privilegie esta temática, em sua gênese,caráter histórico, evolução, tipos de direitos, as diferentesdeclarações e instrumentos, avanços e retrocessos, enfim, umadisciplina que ofereça um corpo de conhecimentos específicos aosaber docente em Direitos Humanos. Educar em Direitos Humanospressupõe conhecê-los objetivamente. Ressaltamos, contudo, queesta é apenas uma das faces dos saberes necessários ao(à)educador(a) em Direitos Humanos. É essencial ter em mente aimpossibilidade de fragmentar ou dissociar estas diferentesdimensões, que juntas constroem o saber docente em DireitosHumanos (MORGADO, 2001, p.4).

A despeito de todos os problemas existentes na esfera educacional,vários educadores brasileiros8 empenharam-se e empenham-se para que aeducação seja, de fato, um direito do cidadão. Assim, tomar a educaçãocomo um processo de construção coletiva da cidadania, da dignidade e daautoconfiança é, antes de tudo, considerá-la como um espaço de encontrode gerações, de pessoas, caracterizado por tempos diversos de socialização,interação e formação dos seres humanos. Dessa forma, a educação ganhaum novo sentido e um horizonte mais amplo a cada segundo na história dahumanidade. Ainda de acordo com Morgado:

O aprendizado na educação em Direitos Humanos é construídona interação da experiência pessoal e coletiva, não sendo umaprendizado estático, cristalizado em textos, declarações e códigos,mas que se recria e reelabora permanentemente naintersubjetividade e nos conflitos sociais. Diante desta perspectiva,é um saber que, muitas vezes, se apresentará contraditório,saturado de dilemas e situações ambivalentes. Ou seja, é um saberque conflitua, tensiona e problematiza (Op. cit. p.5).

A criatividade do educador ao propor novas formas de ensino e de

8 Entre os autores destacam-se: Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Dermeval Saviani, Flávia Inez Shilling,Antônio Carlos Ribeiro, Gilberto Dimenstein, entre outros.

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interação tanto com os alunos quanto com a disciplina a ser ministrada sãofatores primordiais para superar os conflitos existentes no aprendizadoestático. Morgado acrescenta que:

Parece-nos que no âmbito da escola, não se deve tratar de DireitosHumanos através de uma disciplina específica. Também pareceincoerente que uma disciplina considerada afim (como asdisciplinas das Ciências Humanas, por exemplo) assuma a tarefade educar em Direitos Humanos. Como conseqüência, todos (as)os (as) professores (as), da pré-escola ao ensino médio, tanto dematemática, quanto de artes podem ser promotores de DireitosHumanos (Op. Cit. p.5).

Nesse sentido, os temas transversais ressaltados pelos ParâmetrosCurriculares Nacionais (1997) constituem a base a partir da qual oseducadores poderão trabalhar os Direitos Humanos, pois privilegiam osprincípios de “dignidade da pessoa humana” o que equivale ao respeito aosDireitos Humanos, igualdade e eqüidade de direitos e participação comoelementos democráticos e co-responsáveis pela vida social.

5. Considerações finais

Ao longo dessa discussão, o que se pretendeu foi mostrar que umadas questões prioritárias do cenário brasileiro é a educação. Nessaperspectiva, pode-se afirmar seguramente que a educação é importante eprioritária tanto para o desenvolvimento do cidadão como para o crescimentodo país. Houve, durante o debate teórico, a explicitação, em linhas gerais,de como o modelo de educação em curso na África do Sul tem demonstradoresultados satisfatórios, o que poderia contribuir para que a sociedade e oEstado pensem e repensem a educação escolar no Brasil.

Com os exemplos mencionados e com o aporte das políticas e dosprojetos educativos, coordenados por mecanismos integradores capazes depromover uma ação social, a educação será considerada, finalmente,importante e prioritária na medida em que se constitui como elemento essencialpara o desenvolvimento de povos, culturas e nações. Por isto, vale ressaltar

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que os estudos empreendidos em várias áreas do conhecimento têmcontribuído para que novos projetos educacionais sejam implantados emterritório brasileiro.

Dessa forma, para que a educação brasileira seja efetivamente dequalidade, faz-se necessário que haja um compromisso social e que a políticade Estado seja respaldada por um amplo acordo social a fim de que sejalegitimada e encontre apoio incondicional da sociedade.

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AÇÕES AFIRMATIVAS NAS UNIVERSIDADESBRASILEIRAS: OS CRÍTICOS LIMITES DAS CRÍTICAS

Paulo Alberto dos Santos Vieira1

Priscila Martins Medeiros2

RESUMO: No contexto da luta anti-racista pós-Durban, as ações afirmativasse destinam a grupos étnico-raciais historicamente desfavorecidos na sociedadebrasileira, gerando reações negativas e algumas resistências à adoção de cotaspara negros e índios nas universidades públicas brasileiras. Frente a essecenário, nossos objetivos neste texto são: a) demonstrar a necessidade dasações afirmativas em nosso contexto de fortes hiatos sociais; b) evidenciar avalidade jurídico-formal de tais medidas; c) elaborar um quadro que estabeleçacríticas às críticas formuladas às ações afirmativas sob duas angulações:dialogando criticamente com os argumentos mais freqüentes, por um lado; epor outro, nos lançarmos a construção de um referencial teórico cujo patamarpropõe uma crítica aos princípios sob os quais tem se dado o debate acadêmicoe científico. Para tanto, ao longo do texto pretendemos aprofundar o debateem torno da validade, urgência e necessidade da ampliação da adoção dasações afirmativas. Neste sentido, a reflexão estará pautada necessariamentenas atuais discussões orientadas pelo multiculturalismo, com enfoque nosdebates sobre políticas emancipatórias que visem o reconhecimento dediferenças.

Palavras-Chave: Raça; Ações Afirmativas; Reconhecimento

ABSTRACT: In the context of post-Durban anti-racist fight, the affirmativeactions are addressed to historically disfavored ethnic-racial groups in Braziliansociety, generating negative reactions and some resistances to the adoption ofquotas for Black and Indian people at Brazilian public universities. Consideringthis situation, our objectives in this text are: a) to demonstrate the necessity ofthe affirmative actions in our context of strong social hiatus; b) to evidence the

1 Economista. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.Professor Assistente da UNEMAT. Integrante do NEAB/UFSCar e do NEGRA/UNEMAT. Contato: NEAB/UFSCar.Rodovia Washington Luís (SP-310), KM 235, São Carlos-SP, CEP: 13.565-905. Telefone: (16)3351-8408. Endereçoeletrônico: [email protected] Cientista Social. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de SãoCarlos. Bolsista FAPESP. Integrante do NEAB/UFSCar. Contato: NEAB/UFSCar. Rodovia Washington Luís (SP-310),KM 235, São Carlos-SP, CEP: 13.565-905. Telefone: (16)3351-8408. Endereço eletrônico: [email protected]

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legal-deed validity of these actions; c) to elaborate a picture that establishescriticisms to the formulated criticisms to the affirmative actions according totwo points: dialoguing critically with the most frequent arguments and on theother hand, building theoretical referential whose platform considers a criticismto the principles which has caused the academic and scientific debate. In thisway, we intend to deepen the debate around the validity, urgency and necessityof the adoption of the affirmative actions. In this direction, the reflection will besupported by the current quarrels, which are guided by the multiculturalism,focused on debates about emancipation politics whose aim is the recognition ofthe differences.

Key -Words: Race; Affirmative actions; Recognition

1. Introdução

Em setembro de 2001, na III Conferência Mundial de Combateao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,promovida pela Organização das Ações Unidas e realizada em Durban (Áfricado Sul), vimos a temática racial ganhar uma grande redefinição em todo omundo, em especial no Brasil, último país do mundo a abolir o trabalhoescravo de pessoas de origem africana e a maior nação negra3 fora da África.

Um dos mais importantes marcos sobre as denúncias dedesigualdades raciais no Brasil está na década de 1950, com o lançamentode um grande projeto, encomendado pela UNESCO4 , que surgiu com ointuito de apresentar o país ao mundo como um modelo a ser seguido, poisteria resolvido de forma tranqüila a problemática racial. A pesquisa acaboufrustrando suas expectativas iniciais ao ter identificado o preconceito racialpersistente no Brasil, descrito freqüentemente como um “paraíso racial”.

3 O Censo Brasileiro classifica os entrevistados dentro de uma das cinco categorias estabelecidas: branco, preto; pardo,indígena e amarelo. Para propósitos estatísticos e por semelhanças em termos de indicadores sociais, pesquisadoresuniram as categorias preto e pardo em uma única denominada negro. Indiscutivelmente, o termo raça é uma categoriaconstruída nas relações sociais, não apresentando o menor significado biológico. Ela é uma variável de grande relevâncianas pesquisas sociais, pois é um dos determinantes na estruturação das desigualdades sócio-econômicas no país.4 Florestan Fernandes, Roger Bastide e Oracy Nogueira foram os principais pesquisadores a trabalharem no projeto UNESCO.Uma boa referência para leitura é o livro Marcos Chor Maio. A história do projeto UNESCO: estudos raciais e ciênciassociais no Brasil. Tese de doutorado, IUPERJ, 1997.

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A partir de 1964, a ditadura militar suprimiu muitas das formas dedenúncia das desigualdades no país, dificultando a organização dosmovimentos sociais e, entre eles, do movimento negro5 . Isso não impediu,porém, que florescessem várias formas de resistência cultural, principalmentenos grandes centros urbanos, culminando nos anos 1980 num movimentobastante fortalecido e apoiado pelas publicações de importantes estudosestatísticos6 de denúncia das desigualdades raciais que persistem em nossasociedade. Com o processo de democratização do país, algumas medidasconcretas são tomadas em diversas regiões, como a criação de conselhosestaduais para a discussão da problemática racial. Em 1988 é aprovada anova Constituição Federal, que tornou o preconceito de raça ou cor emcrime inafiançável e imprescritível7 .

Sem dúvida nenhuma, foi nos anos 1990 que vimos os maioresavanços na temática racial a partir de novas medidas, que sinalizavam, mesmoque de forma tímida, o tratamento da questão como uma das prioridades doEstado Brasileiro. Os programas do governo federal, que levavamexplicitamente em consideração a temática, foram conduzidos principalmentepor três Ministérios: da Justiça, do Trabalho e da Cultura (GUIMARÃES,2003).

Desde a Conferência de Durban (2001) até os dias atuaisobservamos importantes iniciativas, tais como o Programa Diversidade naUniversidade, lançado no final de 2002; a nova política de desenvolvimentodas comunidades quilombolas; a publicação da Lei 10.639 (09.01.2003)que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolasde ensino fundamental e médio de todo o país e, por fim, a criação, em julho

5 Na década de 1930 surge a Frente Negra Brasileira, o que representou a primeira grande forma de resistência política e quepressionaria a constituinte de 1934 para que se discutisse a temática racial, porém, nenhuma menção foi feita na novaconstituição. Nos anos 1940, o Movimento Negro ganhou maior evidência com o surgimento do Teatro ExperimentalNegro, que despontou grandes nomes da intelectualidade e militância negra, como Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos.Na mesma década, em 1945, aconteceu a Convenção Nacional do Negro que, mais uma vez, trouxe a problemática no intuitode discuti-la na constituinte de 1946, porém, novamente, o tema foi silenciado na legislação. Em 1978 é fundado o MovimentoNegro Unificado e em 13 de maio de 1984 funda-se o Conselho da Comunidade Negra.6 A partir da década de 1980 o debate toma abrangência e destaque nacional devido à divulgação de inúmeras análisessociais, como as elaboradas por Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle e Silva e José Pastore.7 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº 5 parágrafo XLII, reza: “prática do racismo constitui crime inafiançávele imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Esse parágrafo é regulamentado pela Lei nº7.716, de 5 dejaneiro de 1989, modificada depois pela Lei nº9.459 de 13 de maio de 1997.

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de 2003, da SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção daIgualdade Racial. Embora a proposta do Programa Diversidade naUniversidade continuasse cercada de polêmicas, o governo decidiu criar oPROUNI – Programa Universidade para Todos, através da medidaprovisória nº 213, de 10.09.2004 (HERINGER, 2005).

Apesar da existência de um amplo debate acerca da implementaçãode Ações Afirmativas por parte do Estado Brasileiro durante toda a décadade 1990, esse assunto só tomou proporções nacionais após as primeirasmedidas para a implementação de cotas em universidades públicas para oingresso de grupos minoritários historicamente discriminados da esferaacadêmica. O tema alcançou seu auge em meados do ano de 2003, quandoforam ajuizados mais de 200 mandados de segurança individual, trêsrepresentações de inconstitucionalidade e uma ação direta deinconstitucionalidade (ADIn) contra três leis editadas pelo governo do Estadodo Rio de Janeiro. Essas leis estabeleceram reserva de vagas para estudantesnegros, ou seja, aqueles que se auto-declaram pretos ou pardos, naUniversidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – e na UniversidadeEstadual do Norte Fluminense – UENF.

Na literatura atual podemos encontrar diversas definições sobreAções Afirmativas, mas todas elas nos mostram que são medidas temporáriase especiais determinadas pelo Estado ou apoiadas por ele, de formacompulsória ou espontânea, com o propósito específico de eliminar asdesigualdades que foram acumuladas historicamente na sociedade. Assim,essas medidas têm como principais beneficiários as pessoas que sofrerampreconceitos ou discriminações, mas acabam por trazer benefícios a todos,em todas as esferas da vida cotidiana. De acordo com o jurista Joaquim B.Barbosa Gomes (2001), as Ações Afirmativas inovam pelo fato de não sebasearem em conteúdos meramente proibitivos e por terem uma naturezamultifacetária. Mais do que isso, as ações afirmativas refletem uma mudançacomportamental dos juízes e a reinterpretação dos princípios constitucionaisde todo o mundo democrático do pós-guerra.

Entre os principais objetivos das ações afirmativas, podemos citar

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as seguintes: a) mudanças na ordem cultural, pedagógica e psicológica,transformando as representações sociais existentes com relação aos gruposhistoricamente desfavorecidos; b) aumento da representatividade dos gruposminoritários em atividades públicas e privadas rompendo com as barreirasinvisíveis; c) concretização da igualdade de oportunidades; d) benefícioseconômicos para o país; e) possibilidade de mobilidade social ascendente,criando “exemplos vivos” para o grupo atendido por tais políticas. O fato éque quando falamos em ações afirmativas, estamos nos referindo a medidasque, além de serem instrumentos de justiça social, trazem consigo umsignificado ainda maior, uma vez que elas são políticas que propõem mudançasde posturas e o reconhecimento das diferenças. No presente artigo, visamosreunir por um lado, um conjunto de argumentos que se contraponha às críticasdirigidas aos Programas de Ação de Ação Afirmativa postas em marcha nasuniversidades públicas8 . Por outro, buscamos contribuir com o debate acercada “contradição entre princípios da emancipação [...] e os princípios daregulação” (SANTOS, 1995, p.1). Este debate se desdobra sob váriasênfases e perspectivas, dentre as quais destacamos a chave da diferença edo reconhecimento. Sob esta orientação estruturamos o texto em quatromomentos.

No primeiro, que acompanha algumas das idéias apresentadas porBento (2005), listamos as críticas que nos parecem mais freqüentes no debate.Esclarecemos que não faz parte de nossos propósitos esmiúça-las, contudoacentuamos que as bases que as constituem estão presentes neste debate e,apesar de não se expressarem de maneira unívoca, ou seja, homogêneas,podem ser trazidas para o centro desta polêmica a partir de contribuiçõesvárias, das quais mencionamos duas (MMAGGIE e FRY, 2004 e UFRGS,2005) cujos pressupostos pretendemos criticar ao longo do texto. Nomomento seguinte, após termos listado o que julgamos ser as hipótesescentrais dos argumentos que mais se repetem, procederemos a crítica a cadauma dessas hipóteses. Na seção posterior, buscamos inserção na temática8 De acordo com a pesquisa Mapeando as Ações Afirmativas nas Universidades Públicas, conduzida pelo pesquisadorBoaventura Rodrigues V. H. Santy do NEAB / UFSCar, o Brasil conta atualmente com cerca de 45 universidades públicas queadotam algum sistema de acesso diferenciado, além de experiências com Ações Afirmativas em escolas técnicas de nível médio.

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do mito da democracia racial e dos pressupostos liberais, que se encontramna maioria das críticas levantadas contra as políticas de ação afirmativa. Aofinal, adentraremos no debate que se desenvolve em torno da diferença e doreconhecimento, sobre o qual teceremos nossas considerações finais.

2. As críticas ao sistema de cotas e suas críticas

Em nosso entendimento a polêmica instalada a partir da resistênciae crítica ao sistema de cotas, demonstra dificuldades na compreensão dosignificado e do sentido da luta anti-racista que, no país, nos remete ao inícioda empreitada colonizadora. Estas dificuldades, manifestadas na crítica aadoção de políticas afirmativas dirigidas à população negra (uma dasdimensões da questão), apontam objetivamente para a necessidade de seampliar uma agenda de pesquisas sobre a constituição das relações raciaisem um país com características étnico-raciais assaz singulares, como é ocaso do Brasil. No que se relaciona mais diretamente às críticas ao sistemade cotas para negros no ensino superior (que assegura o acesso e constrói apermanência) os setores que criticam a medida parecem desconsiderar umalonga trajetória de lutas, as quais comentamos resumidamente na sessãoanterior. De um modo geral, identificamos sete argumentos que variam ograu de complexidade: 1. a luta deve ser no âmbito da defesa da escolapública; 2. as cotas, quando utilizadas, devem recair sobre o aspecto sócio-econômico; 3. dada a miscigenação ocorrida em nossa sociedade, há a realimpossibilidade de identificar os negros; 4. considerada a trajetória escolardos estudantes negros, haveria, quando de seu ingresso nos cursos superiores,queda na qualidade dos mesmos; 5. o acesso a universidade deve se daratravés do mérito individual; 6. as cotas acirrarão o racismo no interior daUniversidade; e 7. a política não é universalista.

O exercício da crítica às críticas pretende apontar os equívocosque em nosso entendimento dificultam a recepção das cotas para negros nasuniversidades por alguns setores da sociedade brasileira. Em outras palavras,os equívocos ainda mantêm um vínculo com o mito da democracia racial,mito este que vem sendo posto a nu com o desenvolvimento de pesquisas no

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âmbito da educação, da historiografia, da cultura, da economia, da sociedadee em outros campos de conhecimento (SILVÉRIO, 2004). De modo aorganizarmos nossa apresentação e facilitarmos a compreensão, indicaremosos posicionamentos críticos e a partir daí desenvolveremos nossa visão daquestão.

Crítica 1: luta em defesa da escola pública, buscando sua melhoria

Esta formulação parte de uma dicotomia cuja raiz não encontrarespaldo nas manifestações dos que são favoráveis às cotas. Antepor adefesa da escola pública e a busca de melhor qualidade do ensino público àscotas não correspondem às manifestações públicas dos defensores daspolíticas afirmativas para negros no ensino superior. Insistir nesta tese édesconsiderar todo o processo de resistência democrática e popular, toda amilitância política vivida e experimentada por aqueles que hoje defendem ascotas. Esta dicotomia é fictícia e não contribui com o avanço de debate emtorno desta questão. Lembremos: Em passado recente a qualidade daeducação era inconteste e esta se apresentava plena e consistentemente naeducação pública de todos os níveis. A ampliação da rede pública de ensinoque, no nosso caso, acompanhou o processo de modernização política eeconômica (CUNHA, 2003), não significou uma efetiva e permanentepresença negra nos níveis educacionais (QUEIROZ, 2004, p. 15 e 16). Emmédia, um adulto branco tem 2,3 anos de escolaridade a mais se comparadocom um adulto negro, e essa diferença persistiu durante todo o século XX.Ou seja, as diversas reformas educacionais e a universalização do ensinobásico não contribuíram para a diminuição do hiato entre brancos e negrosno Brasil (JACCOUD e BEGHIN, 2002). Dessa forma, é imanente anecessidade de políticas diferenciadas para a necessária correção dessedesnível para que possamos chegar a um espectro de cores mais democráticodo ponto de vista étnico-racial. Por fim, resta considerar o horizonte temporalminimamente necessário para que as oportunidades fossem equânimes diantedo ingresso e da permanência de estudantes negros e não-negros nos níveiseducacionais anteriores ao nível superior. Especialistas têm afirmado que

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seriam necessários aproximadamente três décadas para que brancos e negroschegassem a uma situação de iguais condições para pleitear vagas emuniversidades. Em uma sociedade que se pretende moderna e democráticanão há razoabilidade nesta propositura que podemos chamar de “etapista”,já que defende a melhoria do ensino público (nos níveis fundamental e médio)para que só depois passemos a nos preocupar com o acesso de alunosnegros às universidades. É importante salientar que a formação deuniversitários negros, através das cotas ou da reserva de vagas, significa oaumento de professores negros a lecionarem nos níveis fundamental e médio.Além disso, existem hoje muitas iniciativas para a implementação de umaeducação multicultural nas escolas (MEC, 2004). Tudo isso só vem ratificarque as Ações Afirmativas são muito amplas e atingem positivamente toda aesfera educacional, desde os anos iniciais à universidade.

Crítica 2: admitir-se-ia cotas apenas de caráter sócio-econômico enão étnico-racial

De acordo com dados censitários e dos domicílios brasileiros,variando de região para região, a escolaridade média da população brasileiragira em torno de 08 (oito) anos, ou seja, insuficiente para pleitear vagas nosistema público de ensino superior. Este dado já é preocupante, contudo seagrava se o desagregarmos por cor. Na média, a população branca possuientre 06 (seis) e 08 (oito) anos de escolaridade, dependendo de uma sériede variáveis dentre as quais podemos destacar a localização geográfica.Ainda que a localização geográfica também possa explicar defasagenseducacionais no interior da população negra e no comparativo à populaçãonão-negra, este dado é absolutamente insuficiente para a compreensão daescolaridade média da população negra, que em fins do século XX variavaentre 04 (quatro) e 06 (seis) anos (op. cit, p. 32).

Para além dessa desproporção, é importante termos em mente queas cotas de caráter apenas sócio-econômico não trazem consigo mudançaalguma no campo simbólico. Ou seja, a história de discriminação racial e afalta de reconhecimento da diversidade ficam completamente intocáveis se

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não houver políticas específicas para as populações vulneráveis.

Crítica 3: diante da forte miscigenação, não se pode identificarquem é negro no Brasil

A fragilidade deste argumento fica mais evidente quando oconfrontamos com a real trajetória das relações raciais no Brasil e os dadosdisponíveis produzidos, inclusive por órgãos oficiais. O racismo no Brasilnão resultou numa sociedade amplamente segregacionista como os casos daÁfrica do Sul e dos Estados Unidos, casos mais conhecidos entre nós desociedade fortemente racializadas, como a nossa, mas com distintas formasde exclusão racial. Em nosso caso, a segregação e a supremacia racialintentadas resultaram, de maneira bem ampla, formas de discriminação indiretamais dificilmente de serem percebidas e combatidas (SANTOS, 2005, p.112).

Assim, os negros no Brasil têm ocupado posições de menor prestígiosocial, de menores rendimentos, ingressando mais precocemente no mercadode trabalho e com menor cobertura do sistema previdenciário. Estão maisafetos à informalidade e formas compulsórias de trabalho; têm menorescolaridade e apresentam maior defasagem no binômio série-idade, bemcomo são maioria nas escolas periféricas do sistema público de ensino;possuem menor cobertura de serviços como abastecimento de água e acessoà água tratada, ao fornecimento de energia elétrica, aos serviços de coletade lixo, ao saneamento básico; estão mais presentes nas favelas, cortiços eoutras situações de precariedade domiciliar; são a maior parcela da populaçãocarcerária, dos reformatórios e dos manicômios; são as maiores vítimas dearmas de fogo, bem como da violência dos aparatos de segurança pública.

Todos esses graves elementos são desconsiderados por grandeparte da sociedade brasileira que hoje se diz orgulhosa por ser miscigenada,mas que durante muitas décadas, com o apoio do Estado, incentivou o“branqueamento” do país a partir de uma política de imigração européia(DÁVILA, 2006). Dessa forma, não acreditamos que valha a penasustentarmos a noção de um país miscigenado sem fazermos a devida crítica

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e contextualização.

Crítica 4: a presença negra no ensino superior rebaixará aqualidade do ensino

Discussões sobre a qualidade do ensino público superior deveriam,obrigatoriamente, incorporar duas dimensões (social e do sistema educacional),sob pena de lançarem um olhar apenas parcial sobre a realidade do país. Agrande novidade, digamos assim, é que a reivindicação das cotas para negrosestabelece uma nova agenda não só para a educação como um todo, masfundamentalmente para a sociedade. Ampliando a discussão quanto no aspectoqualidade. Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e naUniversidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)9 , os dados demonstramde forma muito explícita que não há distinção alguma nos cursos em que estãoinseridos os cotistas e, quando esta ocorre, o coeficiente é mais favorável aoscotistas. Portanto, concluir a priori que a presença negra nas Universidadesrebaixará a qualidade dos cursos em função da trajetória escolar pregressa,pouco ou nada tem de amparo nas experiências de Universidades ousadas emarcadas pela retomada da dimensão utópica e emancipatória, expressa, nestemomento, pela adoção e implementação de cotas para estudantes negros emum universo marcadamente racializado. Se os críticos buscam construiralternativas, deveriam se espelhar em projetos inovadores presentes emuniversidades públicas presentes em todas as regiões geográficas do país.

Outra questão que devemos olhar com bastante seriedade é o fato deque o aumento da presença negra e de outros grupos minoritários nas universidadespúblicas significa o surgimento de um novo ambiente acadêmico, mais diverso,propício para trocas de experiências, para o contraste de realidades e para novosaprendizados para todos.

9 Em anos anteriores houve a divulgação pela imprensa sobre o rendimento dos cotistas da UERJ que,na média, era superior ao dos não-cotistas. Na UNEMAT este acompanhamento está sendo feitointernamente pelo NEGRA e os dados preliminares indicam rendimento satisfatório, ou seja, oscotistas em geral têm atendido às exigências mínimas estabelecidas. Devemos considerar que naUNEMAT ainda não há um programa de permanência. Esta nos parece uma interessante agenda depesquisa.

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Crítica 5: o ingresso nas Universidades deve se dar pelo méritoindividual

Este é um dos argumentos que tem conseguido ampla repercussãosocial, encontrando eco praticamente em todas as classes sociais, bem comoé esposado por brancos e negros contrários ao sistema de cotas. Retomando, ainda que implicitamente, os pressupostos do liberalismoeconômico e político o argumento da meritocracia se inscreve com grandeforça, inclusive entre aqueles que buscam a construção de uma sociedademais justa, fraterna e solidária, expondo profundamente as limitações teóricase políticas existentes em nossa intelectualidade e nos agentes formadores deopinião. Este posicionamento, por outro lado, torna-se refém de um dosinstrumentos mais criticados por todos no que concerne ao acesso a cursosde nível superior – o vestibular.

Entre especialistas da educação e estudiosos do assunto, jamais houveaprovação deste instrumento como adequado para identificar qualidades,aptidões e méritos. Inexplicavelmente, neste momento há um enormesilenciamento das críticas formuladas acerca da validade da utilização dovestibular; crítica esta elaborada e compartilhada, em larga extensão, por aquelesque se posicionam contrário à adoção e implementação das cotas nasUniversidades Brasileiras. O silêncio sobre o tema parece revelar grandeinconsistência do argumento em si, uma vez que o mesmo é desfraldado semconsiderar o forte consenso sobre a total e plena inadequação do vestibular.Neste sentido, a meritocracia surge como “cavalo de batalha” dos que, semmaiores cuidados, insistem em não enxergar a urgência e a necessidade daadoção e implementação das cotas para negros no ensino superior no Brasilcomo forma de democratizar o acesso, reconhecendo que a baixa presençanegra não se deve ao maior ou menor mérito, mas é resultado de longo processohistórico e social de exclusão étnico-racial posto em marcha neste país logoapós a Abolição da Escravidão (BARROS, 2005, p. 51).

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Crítica 6: as cotas acirrarão o racismo

Este argumento parece-nos desconsiderar os processos históricose sociais que resultaram na marginalização e exclusão da população negra.Como já nos referimos o racismo existente no Brasil não ocorre, via deregra, de forma direta1 0, portanto a captura do fenômeno requer outrosprocedimentos. Ao apresentar enormes dificuldades para a completude dosprincípios republicanos – onde poderíamos destacar a liberdade, igualdade,autonomia, justiça e solidariedade – a sociedade brasileira acabou por mitificargrande parcela de suas relações sociais, com ênfase sobre as raciais, naexpectativa de mitigar as brutais assimetrias raciais, econômicas, regionaisetc. Destacar como crítica às cotas o acirramento do racismo no país, rompecom a tradição do pacto de silencio imposto no Brasil, onde a populaçãobranca silencia a presença do racismo e os negros devem permanecer caladospara a manutenção da “paz e da harmonia” (GUIMARÃES, 2005, p. 64 e65). Se o preço dessa pretensa paz é o silenciamento das populaçõessubordinadas, tendemos a preferir, sem sombra de dúvida, a criação dodesconforto.

A adoção e implementação das cotas para negros nas Universidadesbrasileiras é elemento central na luta anti-racista e se antepõe ao legado anti-racialista. A presença negra no ensino superior é urgente e necessária. Querseja pelo ângulo da reparação histórica, pelo redimensionamento do camposimbólico, pelo prisma sócio-econômico e também pelo compromisso daconstrução de uma sociedade justa, respeitando sua diversidade étnico-racial.Crítica 7: as cotas não se apresentam como política universalista

Nas últimas três décadas ganhou força e consolidaram-se as políticasmarcadas pela desregulamentação dos mercados, privatização, precarizaçãodo mundo do trabalho e combate à proteção social. Próprias doneoliberalismo estas políticas buscavam romper com a universalização de10 Em pesquisa realizada em anos anteriores, pelo Datafolha e pela USP, indagou-se aos entrevistadosse acreditavam haver discriminação racial no Brasil. Aproximadamente 80% das respostas foramafirmativas; indagados se praticavam discriminação racial, mais uma vez aproximadamente 80% dasrespostas foram negativas. Esses dados nos mostram uma forte contradição, contrastando com oMito da Democracia Racial.

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uma ampla rede de amparo aos direitos dos cidadãos (educação, trabalho,saúde e segurança). As políticas de caráter neoliberal buscavam desconstruiros avanços que se consagraram no welfare-state. Fruto de conquistas dosmovimentos operários, o welfare-state reunia um jogo de concertação emque as principais classes e frações de classe dos países líderes do capitalismoacumulavam ganhos importantes; assegurava-se a reprodução ampliada docapitalismo e, concomitantemente, inserção dos trabalhadores nos mercadosconsumidores a partir de patamares mínimos de proteção social.

Nas palavras de Baruco (2005), as políticas do bem-estar socialpossibilitaram que os arranjos históricos fossem elevados à condição decomponentes estruturais da ordem capitalista, promovendo adesmercadorização da força de trabalho, isto é, em países em que eramarcante a presença do Estado e as políticas de extração keynesiana, areprodução da força de trabalho ocorria à margem do mercado de trabalho

11.

Ainda que o raciocínio para o Brasil e para a periferia do sistemacapitalista seja válido, nosso processo social de construção do bem-estarsocial foi muito característico, diferenciando-se sobremaneira da experiênciainternacional. A rede social de proteção engendrada no país alcançou apenasparcialmente os trabalhadores de um modo geral, ainda que tenha asseguradoambiência favorável à reprodução capitalista ao entre as décadas de 1940 e1980. Consideremos que a rede de proteção, cuja expressão maior talvezseja a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), diferentemente do queocorreu no núcleo orgânico do sistema capitalista internacional, prescindiudas garantias constitucionais.

O fundamento da crítica, portanto, parte de um suposto discutível.Autores como Theodoro e Jaccoud (2005) têm destacado que no Brasil aspolíticas de bem-estar, particularmente na educação, foram marcadas pelaausência de uma âncora inclusiva que possibilitassem aos trabalhadores, asmulheres, aos índios e aos negros, participação no processo dedesenvolvimento social e econômico. Ao mesmo tempo demonstram que as

11 Grasiela Cristina da Cunha Baruco. “Do Consenso Keynesiano ao Pós-Consenso de Washington”,Uberlândia, IE/UFU/PPGE, dissertação, 2005.

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assimetrias entre negros e brancos não é resultado apenas da “permanentepermanência” do legado escravocrata ou da concentração espacial doprocesso de desenvolvimento experimentado pelo país nas últimas oitodécadas; antes, apesar dos esforços empreendidos ao longo dos períodosanteriores em buscar a universalização na área educacional, os diferenciaisétnico-raciais que persistem na educação brasileira refletem duas situações.

A primeira, diz respeito a experiências históricas das políticasuniversalistas em sociedades de “capitalismo tardio”. No caso brasileiro, aspolíticas com este caráter parecem ter sido apropriadas por uma elite políticae econômica, verdadeira beneficiária dos serviços públicos de qualidade.Elite predominantemente branca. A segunda relaciona-se com a persistênciade práticas discriminatórias de cunho racial, cujo cerne tem sido adiscriminação indireta, indicando de modo explícito a impossibilidade deeficácia das políticas de cunho universal.

Afirmar que as cotas para negros são passíveis de críticas por nãoportarem caráter universal é um extraordinário equívoco, ainda quereconheçamos o ardil do argumento. Submetidos à redução da cidadania eà transformação de direitos em serviços (OLIVEIRA e RIZEK, 2007), asociedade brasileira tornou-se sensível às formulações que buscam contribuircom uma sociedade mais plural, também do ponto de vista étnico-racial. Osdefensores das cotas incluem-se nesta perspectiva, entretanto devemos cuidarpara que a ânsia da crítica não se confunda com a repetição de posturaspróprias da ideologia anti-racialista, largamente denunciadas pelos ativistase militantes do Movimento Negro, assim como todos aqueles que se inscrevemna luta anti-racista, uma das mais longas na história do Brasil. Sem dúvidaalguma, a adoção e implementação de cotas para negros nas universidadespúblicas brasileiras, parece ser um dos mais importantes capítulos desta luta.Não se trata apenas possibilitar inserção subordinada nos processos políticos,sociais, econômicos, culturais e educacionais; vincula-se, fundamentalmente,à retomada da dimensão utópica e da emancipação de negros, brancos,índios; homens e mulheres; enfim, diferenças que exigem reconhecimento.

Nesse sentido, indispensável é a referência que se assenta em um

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novo imperativo categórico, que, nas palavras de um importante pensadorcontemporâneo, “deve presidir a uma articulação pós-moderna e multiculturaldas políticas de igualdade e de identidade: temos o direito a ser iguais sempreque a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre quea igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 1995, p. 41).

3. Os críticos limites das críticas: o mito fundador e os pressupostosliberais

Na sessão anterior apresentamos em linhas gerais as mais freqüentescríticas que são formuladas contra a adoção de ações afirmativas nasuniversidades brasileiras, mais particularmente contra o sistema de cotasétnico-raciais nestes estabelecimentos de ensino superior. Buscamos tambémdemonstrar que estas críticas são questionadas por outras formulações, quevêem nas ações afirmativas uma boa iniciativa para a democratização doensino superior sob o prisma étnico-racial e concomitantemente apontampara os sérios limites destas críticas. As críticas às críticas evidenciam,resultados de pesquisas realizadas no âmbito das ciências sociais no Brasil eem outros países e que põem em cheque concepções historicamente datadase inadequadas à compreensão da dinâmica das relações raciais neste país.Se agregarmos a este debate, como apontamos acima, o comportamento deséries históricas de indicadores sócio-econômicos controlando as variáveisde acordo com a raça/cor, perceberemos que as críticas dirigidas às açõesafirmativas tornam-se absolutamente vulneráveis, portanto difíceis de seremsustentadas sob quaisquer pontos de vista: teórico, histórico, social,econômico, cultural e político.

Em verdade, tais críticas tornaram-se reféns de determinadasperspectivas teóricas cuja presença sempre fora denunciada por distintosmovimentos sociais, dentre eles o Movimento Negro. Sob este prisma,identificamos, pelo menos, duas matrizes importantes que estão nas raízesdos argumentos contrários às ações afirmativas: o mito de democracia raciale algumas das principais premissas do Liberalismo, tais como as noções deigualdade e autonomia.

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A perspectiva centrada no mito da democracia racial1 2 se apresentaem novas roupagens, pois muitos dos que têm esta filiação reconhecem queo preconceito racial se faz presente cotidianamente, contudo, ainda crêemque ações afirmativas nos conduziriam a práticas jamais havidas no Brasil.Na busca da preservação do mito da democracia racial são engolfados pelopróprio mito, ou seja, o mito se torna inconteste. A aceitação desse mito e adesaprovação das ações afirmativas podem ser observados entre algunscientistas sociais, tais como Yvonne Maggie e Peter Fry, que defendem apermanência da noção de mestiçagem. Porém, o que não podemos nosesquecer é que o discurso da mestiçagem sempre nos valeu como umalegitimação de uma ordem política e social perpassada por vícios racistas,ou seja, esse discurso silenciou a problemática das desigualdades raciais emnossa legislação e, com isso, não foi útil para pensarmos em mecanismosque acabem com as formas de reprodução do racismo (COSTA, 2006).

Estudos já clássicos entre os cientistas sociais têm demonstrado,reiterada vezes, que o mito da democracia racial no Brasil foi largamenteutilizado para impor, por um lado, o consenso das harmoniosas relaçõesraciais e, por outro, impedir a contestação e a denúncia realizada pelasociedade e, principalmente, por organizações do Movimento Negro(MUNANGA, 2004, p. 13-16).

Por outro lado, pautar a construção das críticas às ações afirmativassobre as premissas do Liberalismo, ou seja, a partir de noções e categoriastais como a meritocracia, a autonomia, a liberdade de escolha, a igualdadeentre indivíduos no campo social e normativo, requer um profundo exercício.Aqui é importante fazer uma observação: dentre aqueles que se filiam a estacorrente de pensamento político, existem inúmeros que advogam a validadee a urgência da implementação de ações afirmativas, a partir das mesmaspremissas mencionadas acima (FERES Jr.; ZONINSEIN, 2006).

Se adotarmos o entendimento de que tais premissas foram válidasem outras sociedades, como na Europa a partir de fins do século XVII, a

12 Segundo Guimarães, o primeiro a utilizar essa expressão parece ter sido Charles Wagley, em 1952.(GUIMARÃES, 2002, p.139).

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recepção destas idéias no Brasil de fins do século XIX assentou-se na tentativado “apagamento” de algumas de nossas características fundamentais, comoé o caso da hierarquização e “getização” de grupos raciais. Insistir nareivindicação destes pressupostos – seja do mito da democracia racial, sejadas premissas liberais – parece-nos uma postura de certo retraimentoacadêmico diante dos avanços das ciências sociais.

Estas reflexões apontam para alguns limites facilmente perceptíveis.Se considerarmos, por exemplo, a noção liberal de Liberdade, não podemosignorar que ela só é possível na situação de sociedade não-homogênea. Ouseja, na presença de homogeneidade física e cultural, os indivíduos têm suascaracterísticas próprias engessadas por conta da hegemonia de pensamentos,de idéias e de práticas sociais por parte do grupo favorecido, que assimila asdiferenças. Dessa forma, não é possível falarmos em liberdade sem a existênciado direito à diversidade em sua mais ampla magnitude.

Relacionado a isso, está o pressuposto liberal da Igualdade, que éuma construção jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata,deve ser igual para todos, sem qualquer distinção e completamente neutra.Hoje, porém, sabemos que a “neutralidade” do Estado Liberal tem se reveladobastante ineficaz e reduzida basicamente aos limites jurídicos. Frente a isso,a igualdade passa a ser analisada sob outra ótica, na qual o foco da atençãorecai sobre a distinção entre a Igualdade Formal e Igualdade Substancial.Segundo Silva (2004), a primeira noção é a tradicional concepção liberal-burguesa “cega às diferenças”, enquanto que a segunda diz respeito a umaigualdade materializada, ou seja, uma igualação de fato entre as pessoas,levando-se em conta as desigualdades existentes na sociedade. Dessa forma,o campo normativo incorpora a nova forma de perceber o ser humano comoser dotado de características singulares e passa a tratar de sua especificidade.

Uma outra premissa liberal bastante relembrada por aqueles quesão contrários à implementação de Ações Afirmativas é a noção deAutonomia, entendida como a capacidade de cada pessoa construir por simesma sua concepção de boa vida1 3, seus ideais de autodeterminação e13 Conceito Tayloriano.

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auto-expressão. Esses ideais descritivos da autonomia também podem serdesdobrados na necessidade de autoconfiança, auto-respeito e auto-estima que são, segundo Axel Honneth (2003), os caminhos subjetivos parase chegar ao reconhecimento. Ora, aqui está justamente o grande limite dadefesa liberal da noção de Autonomia, pois ela jamais poderia existir sem aexistência do respeito e do reconhecimento das diferenças. Um indivíduo,que não possui suas características definidoras respeitadas pela sociedadegeral, nunca pode ter a necessária autonomia para fazer suas escolhas e paraa participação social. Ele só adquire autonomia no momento que éreconhecido e legitimado pelos demais integrantes da sociedade.

Todo esse debate acerca dos limites de algumas das premissasliberais para a diminuição das desigualdades raciais no Brasil tem sidofortemente travado nos últimos anos, após uma série de implementações deações afirmativas no país e ainda mais no contexto de total erosão de váriasdas promessas modernas e do Estado-Providência. Ou seja, o que vemosnos dias atuais é o surgimento de discussões sobre as possíveis formas deemancipação de grupos vulneráveis, num contexto no qual percebemospolíticas fracassadas ou pautadas basicamente em critérios regulatórios.

Um dos autores que vêem discutir a relação entre regulação eemancipação é Boaventura de Sousa Santos (1995)1 4. Segundo o autor,os mecanismos de regulação na modernidade (que se originam tanto doEstado, quanto do mercado e da comunidade) geriram os processos dedesigualdade e de exclusão produzidos pelo capitalismo. Ele exemplificadizendo que esses dois processos (desigualdade e exclusão) podem estarpresentes em um único fenômeno social, como é o caso do racismo: ahierarquização das raças ainda observável em nosso meio, que segregabrancos e negros em diversas esferas e espaços, é fruto do processo deexclusão. Por outro lado, a exploração colonial e a política de branqueamentoda população a partir do auxílio à imigração européia é o caso de um processode desigualdades, ou seja, de uma integração subordinada.14 Discussão presente no texto A Construção Multicultural da Diferença e da Igualdade, resultado deuma palestra proferida durante o VII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado no Rio de Janeiroem setembro de 1995.

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Boaventura ainda salienta que o dispositivo ideológico da modernaluta contra esses sistemas regulatórios é o universalismo, que nada mais éque uma forma de caracterização essencialista que pode assumir duas formasaparentemente contraditórias: o universalismo antidiferencialista, que operana negação das diferenças e o universalismo diferencialista, que, por suavez, age através da absolutização das diferenças. O primeiro deles é umanorma de homogeneidade dos indivíduos a partir do apagamento dasdiferenças e que, por essa via, reproduz a hierarquização existente nasociedade. Por outro lado, o universalismo diferencialista opera pela negaçãodas hierarquias que organizam a multiplicidade das diferenças. Não nosesqueçamos que ambos universalismos são caracterizações essencialistas:se o primeiro universalismo inferioriza pelo excesso de semelhança, o segundoinferioriza pelo excesso de diferença.

As políticas denominadas “universalistas” não incentivam a quebrade estereótipos e nem a construção de uma representação social de apreçoe reconhecimento das diferenças, pois não atendem às especificidades dosgrupos ou indivíduos vulneráveis, acarretando a perpetuação da desigualdadede direitos e de oportunidades. Disso emerge a necessidade de políticas deação afirmativa que, atendendo ao direito à diferença, percebem os gruposou indivíduos como sujeitos concretos, historicamente situados e que possuemcaracterísticas singulares.

4. Por uma política do reconhecimento

Frente a toda essa problematização pautada nos pressupostosliberais, defendidos por aqueles que se posicionam contrariamente aimplementação de políticas de Ação Afirmativa, gostaríamos de compartilharde uma abordagem cuja dimensão da temática das relações étnico-raciaisrecaia na legitimidade do reconhecimento às diferenças. De acordo comSilvério (2006, pp. 05-19) no século XX configurou-se certo consenso emtorno da idéia de que os seres humanos nascem no interior de determinadasredes de relações sociais responsáveis por determinados comportamentosnas esferas da política e que contemporaneamente têm implicado no

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aprofundamento de reflexões consolidadas no imaginário social, mas quenão conseguem atribuir inteligibilidade às dinâmicas sociais e, no interiordestas, às dinâmicas raciais. Neste sentido, o autor afirma que a “demandapor reconhecimento é aquela a partir da qual vários movimentos sociais nãotradicionais, isto é, que têm por fundamento uma identidade cultural, passama reivindicar reconhecimento, seja pela ausência deste ou por umreconhecimento inadequado de sua diferença” (SILVÉRIO, 2006, p. 08).

A revitalização das demandas específicas a partir dos chamados“novos movimentos sociais” (movimento negro, feminista, ecológico etc.)traz de maneira mais explícita o questionamento das bases em que as políticaspúblicas – educação, saúde, segurança, mercado de trabalho, por exemplo– foram moldadas. Num olhar retrospectivo, os hiatos são imensos. Parauma economia marcada por um intenso crescimento econômico ao longo doséculo XX, permanecem graves desigualdades étnico-raciais e de gênero,sem que os tradicionais formatos de política pública – baseados nauniversalidade e na homogeneidade dos sujeitos – consigam, ao menos, mitigaras iniqüidades sociais registrados pelos indicadores sócio-econômicos osquais já nos referimos. Dessa forma, percebemos que as políticas “sensíveisàs diferenças”, como é o caso das Ações Afirmativas, significam a superaçãodo ideário filosófico moderno, que descrevia o ser humano como uma unidadehomogênea, pela idéia pós-moderna dos seres humanos possuidores deespecificidades (SILVA, 2004).

O não-reconhecimento de grupos minoritários resulta hoje em umdano que é lamentavelmente observável. Fanon (1979) afirma que a principalarma dos colonizadores era a imposição de uma imagem de inferioridadedos povos subjugados. O colonizado, segundo ele, a fim de libertar-se, temantes de tudo de se purgar dessas auto-imagens depreciativas. Nessaperspectiva, Taylor (2000) procura desvendar os vínculos entrereconhecimento e identidade. Segundo ele, a identidade do ser humano éparcialmente moldada a partir do reconhecimento, ou da falta deste, isto é,da representação ou da má representação que dele é feita por outros sereshumanos. A identidade, de acordo com esse autor, designa algo como uma

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compreensão de quem somos, de nossas características definitóriasfundamentais como seres humanos, e essa compreensão é alcançada tantopor fatores da esfera íntima quanto da esfera pública.

Taylor ainda afirma que é praticamente impossível que uma pessoaque não se enxergue como digna de respeito e admiração possa ter qualquerespécie de participação na esfera pública. A interiorização de um sentimentode inferioridade, de uma categoria de sub-gente, tem efeitos muito fortes denaturalização das desigualdades (SOUZA, 2003).

Charles Taylor diz algo que é bastante interessante e que vem aoencontro com as discussões sobre o pensamento liberal esboçado acima: anoção de identidade moderna originou uma política da diferença tambémbaseada em princípios universais, ou seja, na noção de que todos devem terreconhecida sua identidade (TAYLOR, 2000). Dessa forma, o que temos éuma exigência universal que fortalece o reconhecimento da especificidade.O autor ressalta ainda que as políticas de ações afirmativas que têm sidoimplementadas nos últimos tempos não atingem diretamente o foco dadiscriminação. Segundo ele, essas ações afirmativas acabam gerando apenasum processo de redistribuição de renda, o que separa as esferas da culturae da economia. O que há de importante na proposta de ações afirmativas eque nunca deve ser deixado de lado, salienta Taylor, é que o reconhecimentoé fundamental para o desenvolvimento das identidades e que, portanto, nãopossui um “prazo de validade”, devendo estar sempre garantido para quehaja sempre o exercício das particularidades. Isso é o que realmenteesperamos e o que nos guia na luta cotidiana e nas discussões teóricas.

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APOSTILA: PARA NÃO LER

Pedro Demo1

RESUMO: A Apostila tem sido defendida por educadores atrelados a sistemasprivados que fazem disso bom negócio. O texto em si pode ser resultadopertinente de competentes pesquisadores e pode conter virtudes acadêmicas.Mas, tornando-se receita pronta, evita o estudo e a leitura pelos alunos, bemcomo por professores básicos. Conforme dados do SAEB-2005, que indicaramuma queda substancial no desempenho escolar também de escolas privadas,em especial nas regiões mais desenvolvidas, torna-se temerário sugerir queapostila é garantia de melhor desempenho escolar. Ocorre que não se toma asério o que é aprender, restando o instrucionismo como prática nacional, nasescolas públicas e privadas. Apostila é pretensa maneira de aprimorar o ensino.Sendo esse quase sempre instrucionista, seria mais inteligente aprimorar aaprendizagem, não o ensino.

PALAVRAS-CHAVE: Apostila; Aprendizagem; Desempenho escolar.

ABSTRACT: The “Apostila” (recipe school text) has been defended byeducators bound to private systems which make it a good deal. The text itselfcan be a pertinent result of competent researchers and can contain academicvirtues. Yet, becoming ready recipe, it avoids study and reading in students, aswell in basic teacher themselves. According to data from Saeb-2005, whichindicate considerable fall in students’ performance also in private schools,specially at most developed regions, it becomes temerarious to suggest that“apostila” is a guarantee of better students’ performance. It happens that wedon’t take seriously what is to learn, remaining instruccionism as national practice,both in public and private schools. “Apostila” is alleged way of improvingteaching. Being this almost always instruccionist, it would be more intelligentto improve learning, not teaching.

KEYWORDS: Recipe school text (Apostila); Learning; Student performance

Continuo afirmando que professor bem preparado não precisa deapostila. Precisa de autoria. Saber pensar não é resultado de pacotes pré-1 Professor titular da UnB – Universidade de Brasília. Doutor em Sociologia pela Universität Erlangen-Nürngenberg - Alemanha.

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fabricados, mas da habilidade de questionar (DEMO, 2005). Busco aquiprecisamente questionar a apostila como fundamento didático do ensino eda aprendizagem, sem, no entanto, ir ao extremo de “satanizar” a questão(CASTRO, 2007). Os produtores de apostilas são gente que, via de regra,sabe pensar, tanto que são capazes de elaborá-las. Entretanto, dentro daregra de que, quem sabe pensar, nem sempre aprecia que outros tambémsaibam pensar, evitam que os usuários saibam pensar, atrelando-os a pacotestendencialmente fechados. Enquanto um lado é autor, o outro é beneficiário.Isto me lembra a lógica do “bolsa-família”: quem inventou o programa éex(s)perto, enquanto os atendidos são meros beneficiários. Embute-se aífacilmente um atrelamento imbecilizante, que tenho chamado de “pobrezapolítica” (DEMO, 2006). Não condeno a assistência devida a quem temfome (WEISSHEIMER, 2006); condeno o atrelamento subserviente.

Isto me lembra também a lógica do Banco Mundial: seus técnicos,entendendo-se muito modestamente como os mais ex(s)pertos do globo,em geral sabem pensar, mas tratam os parceiros do Terceiro Mundo comoindigentes intelectuais, tal qual acerbamente criticou Caufield (1998),chamando-os de “masters of illusion”. Visivelmente o Banco Mundial nãose interessa por parcerias autônomas, porque precisa vender suas ilusõesaos incautos. Por trás de “evidências tangíveis” - assim é que se define ciênciapor lá - esconde-se o evangelho neoliberal. Se estudassem melhor Hume esobretudo Popper, veriam que a base empírica, sempre importantíssima parafazer ciência, não desfaz o argumento de autoridade, porque, no fundo, éuma de suas faces mais abusadas. Toda base empírica mantém a teoriafalsificável, do que segue que não há propriamente “evidência empírica”,mas interpretação à base de dados construídos, por vezes inventados (Demo,1995, 2000). Deveriam estudar também epistemologia com fundamentobiológico, para verem que a realidade não entra tal e qual em nossa mente,mas no contexto de uma dinâmica autopoiética, reconstrutiva, interpretativa,do ponto de vista do observador auto-referente (Maturana, 2001; Demo,2002).

Analiso a defesa da apostila, bem retratada no texto de Castro(2007). Depois, apresento meus argumentos restritivos à apostila. Por fim,evito “satanizar” a apostila.

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1. Apostila Esperta

Segundo Castro (2007), o estudo apostilado representa “escolasbem-sucedidas” que transferem este sucesso a outras escolas associadas.Valorizando também a “evidência tangível”, embora não dentro do cânonepositivista, haveria indicações de que a apostila não tem esse efeito tãofantástico. Essas indicações são muito indiretas, não estabelecendo nada deperemptório, porque são, a bem do termo, meras indicações. Busco a primeiradelas na queda catastrófica do desempenho escolar em 1999 (Tabela 1),quando, em Língua Portuguesa, segundo o SAEB, a queda esteve por voltade 16 pontos. Em Matemática foi bem menor, mas também acentuada, porvolta de 8 a 9 pontos (com exceção da 8ª série).

TABELA 1. Média de proficiência em LP e M - SAEB Brasil - 1995-2005.

Fonte: SAEB - 2005 (INEP, 2005). EF = Ensino Fundamental. EM = EnsinoMédio. LP - Língua portuguesa; M - Matemática. Média adequada para a4ª série: 200 pontos; para a 8ª série: 300 pontos; para a 3ª série do ensinomédio: 350 pontos.

É certamente um risco especular sobre razões de tamanha queda,porque podem ser inúmeras, além de encobertas. Mas ocorre-me que, tendosido aprovado o ano de 200 dias letivos em 1997, esta “inovação” ridículateve impacto efetivo em 1999. Uma possível hipótese seria que, aumentandoas aulas, o desempenho diminui, já que não faz sentido aumentar o que não

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tem sentido. A LDB aumentou as aulas, não a aprendizagem (DEMO, 1997).O contra-argumento que interponho aqui é que, sendo apostila o signo daaula instrucionista, representa no mínimo um investimento duvidoso. Bastariaperguntar: quem precisa de apostila? O professor que não a sabe fazer... Ouseja, professores incapazes de autoria própria, precisam desta bengala, e,como não são construtores de conhecimento próprio, reproduzem o dosoutros. A Tabela sugere ainda mais, por conta da tendência geral de quedana década (1995-2005): a continuar nesta marcha, parece inevitável que aqueda continue, como se insinua nos dados para 2005. Apenas a 4ª sérieapresentou valores positivos: 2,9 para língua portuguesa e 5,3 paramatemática. Como, porém, o mundo da apostila é do ensino médioprincipalmente, aí registraram-se quedas altíssimas, de 9,1 em línguaportuguesa e de 7,4 em matemática. Enquanto no ensino fundamental a escolaprivada detém apenas 10% dos alunos, no ensino médio sua presença ébem mais significativa. O mínimo que poderia aludir é que as escolas privadasapostiladas não estão puxando as cifras para cima.

Observando melhor o desempenho na 3ª série do ensino médioem língua portuguesa (Tabela 2), na comparação entre escola pública eparticular, ressalta-se a superioridade da escola particular já conhecida. Em2005, a média de proficiência na escola pública do país como um todo foide 248,7 pontos (em 1995 fora de 284,0 pontos, caindo pois 35,3 pontosna década), enquanto a da escola particular foi de 306,9 pontos (permaneceuestável na década). A diferença de 58,2 a favor da escola particular éconsiderável, mas, se levarmos em conta que nesta estuda a elite e na outraa população em geral, a cifra poderia ser relativizada fortemente. Ademais,os dados para 2005 indicam uma crise visível na escola particular, por contada queda notável, de 7,3 pontos para o país como um todo (apenas umponto abaixo da queda na escola pública). A escola particular caiu em todasas regiões, acentuadamente mais nas regiões mais desenvolvidas, ondemedram principalmente as escolas apostiladas: no sul a queda foi de 10,5pontos (mais do dobro em relação à queda na escola pública), no sudestefoi de 9,3 pontos (um ponto acima da queda na escola pública) e no centro-

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oeste foi de 8,3 pontos (levemente abaixo da queda na escola pública).

TABELA 2. Médias de Proficiência em LP - 3ª série EM - EscolasUrbanas Estaduais e Municipais (Públicas) e Particulares

Fonte: Inep, 2007. LP = Língua Portuguesa. EM = Ensino Médio.

Em matemática na 3ª série do ensino médio (Tabela 3), a configuraçãoé ainda mais drástica, por mais que a superioridade da escola particular sejaainda maior: 73,3 pontos para o país como um todo em 2005. Leve-seainda em conta que, na década, enquanto a escola pública caiu por volta de12 pontos, a escola particular subiu 26 pontos. No entanto, em 2005, caiumais que a escola pública: 7,2 pontos, contra 5,9 pontos na escola pública.O desempenho particular caiu em todas as regiões, sobressaindo, de novo,as regiões mais desenvolvidas, a Meca das escolas apostiladas: 11,8 pontosno sul, 10,2, pontos no centro-oeste, 7 pontos no Sudeste.

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TABRLA 3. Médias de Proficiência em M - 3ª série EM - Escolas UrbanasEstaduais e Municipais (Públicas) e Particulares

Fonte: Inep, 2007. M = Matemática. EM = Ensino Médio.

No mínimo, tomaria com maior cautela a alusão de que as escolasapostiladas são “bem-sucedidas”, ou que “criaram uma solução brasileirade grandes méritos e originalidade para a educação” (CASTRO, 2007). Aapostila “preenche um vácuo”, sim, mas não do saber pensar. Tende apreencher o vácuo do professor vazio que, não tendo condições de autoria,torna-se porta-voz. Castro fornece cinco argumentos sucintamente:

a) estruturação do ensino: as apostilas, quando bem feitas, são bemestruturadas, apresentando “passo a passo... teoria, aplicação, exercícios eprovas”, permitindo, segundo Castro, o professor “sair da decoreba e botara cabeça dos estudantes para funcionar”. Sendo apostila, em geral, livroúnico e “obrigatório” (por conta do atrelamento), é estranho imaginar queisto seja proposta para abrir as cabeças, por mais que a apostila possa serpertinente; ocorre que se torna texto “oficial” e desanda facilmente em cartilha,

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como se pode ver na “Escola Múltipla Escolha” da Rede Globo2 ; “facilita avida do professor”, sim, mas principalmente inventa uma ciência fácil paraquem não pretende encarar o saber pensar com autonomia; nada é maisridículo no mundo da ciência do que “ciência oficial”, não só porque temdono, mas principalmente porque se investe do argumento de autoridade,evitando florescer a autoridade do argumento que, ademais de praticar lógicae raciocínio, planta a cidadania de quem sabe confrontar-se com os problemascom autonomia;

b) integração curricular: funciona em quem faz as apostilas, masnão em quem as engole; integração curricular é resultado de dinâmicas quetecem habilidades construtivas inter e transdisciplinares, não caudatárias depensamentos únicos;

c) formação de professores: a idéia é correta, mas a ideologia defundo é abjeta - a preparação dos professores nas escolas associadas é feitana direção da apostila, para a acolher e usar; nada tem a ver com a construçãoda autoria do professor, já que, se assim fosse, dispensaria a apostila ou ausaria apenas como referência de pesquisa;

d) janela para o mundo: a escola que se associa torna-se menosisolada, mas, no fundo, troca um fechamento por outro, sob a ilusão de quea escola mãe oferece uma janela para o mundo; muita pretensão, já que delase vê principalmente a elite, não o mundo;

e) avaliação do ensino: embora se avalie o instrucionismo, não aaprendizagem, entendo que avaliar é função crucial da escola, se quiser garantira aprendizagem dos alunos e professores (DEMO, 2004).

Penso que tais argumentos não detêm profundidade satisfatória paraserem levados a sério. Posso entender que muitas escolas se sentem maisamparadas e organizadas, quando aderem a tais redes apostiladas, elevandoos índices de proficiência. No entanto, é preciso levar em conta que oinstrucionismo é patrimônio comum no país, tanto na escola pública quanto

2 Refiro-me à Escola do programa “Malhação”, espécie de “novela” diária (às 17:30 hs): baseada emapostila, em jingles para decorar conteúdos, em provas programadas e de supetão que vão para oboletim, em aulas desbragadamente instrucionistas, embala a elite para passar no vestibular dasmelhores universidades públicas. Todos os alunos carregam debaixo do braço apostila, só apostila.

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particular, até porque, em muitos casos, os professores são os mesmos e osistema de formação de professores é o mesmo. Aprende-se certamente“mais” na escola particular, porque tem dono e sofre pressão enorme dospais para que se garantam vagas nas melhores universidades públicas, masnão necessariamente “melhor”. Tanto é assim, que em 2005 o SAEB mostravisível crise da escola particular, em especial nas regiões mais desenvolvidas.Mais que solução didática, a apostila é grande negócio, também porquecorresponde a um vácuo crucial: grande parte dos professores só conseguedar aula com apostila na mão. Em vez de abrir-lhes a cabeça, a apostilaapossa-se da cabeça deles.

2. Restrições a Apostila

Não vejo, pois, que se trate de originalidade brasileira e algo quemereça ser exportado, sugestões que servem apenas para tornar o texto deCastro (2007) “propaganda” de apostila, não peça minimamente analítica.Como trabalha numa instituição que fabrica apostila e mantém respectiva rede(diz isso no texto), sua proposta já seria suspeita, por mais que recorra aapelos de “evidência tangível”. Minha impressão é de que a apostila é, pelomenos em parte, responsável, pelo vazio da leitura na escola, já que, vindopronta, basta engolir e não há mais o que ler. Num lado, vende-se a idéiaesdrúxula (mas esperta) de que conhecimento é pacote consumado e deconsumo; noutro, dispensa-se autoria do professor que se acomoda comopenduricalho da autoria de outrem. Esperteza, não expertise. Não condeno aescola que fabrica apostila, mesmo sendo sinal de esperteza. Há apostila bemfeita, fruto de gente que pesquisa, estuda e elabora bem. Mas não está longeda “auto-ajuda” (DEMO, 2005). Critico que este saber pensar não sejacompartilhado com as escolas associadas, assumindo que preparar osprofessores se reduza “saber usar”.

Lemos pouco, sobretudo lemos mal, ainda que leiamos bem mais queantigamente (DEMO, 2005b). Não descobrimos que leitura, em especialcontraleitura (DEMO, 1994), é parte da aprendizagem questionadora,principalmente é caminho crucial da construção da autoria. Uma pesquisa da

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Unesco (2004), conforme a Tabela 4, sugere que apenas 17% dos professoresparticipariam habitualmente/sempre de seminários de especialização; sequer50% leriam revistas especializadas; pouco mais de 50% leriam materiais deestudo ou formação; menos de 15% estudariam ou praticariam idiomasestrangeiros; 12% leriam livros de ficção; 23% comprariam livros não didáticos;um terço freqüentariam biblioteca; e assim por diante.

TABELA 4. Proporção de professores, segundo atividades que atestam suaspreferências culturais - 2002.

Fonte: UNESCO, 2004:97. Não constam todas as atividades da tabela original.

A baixa leitura dos professores não se refere apenas à falta de hábito,má formação, despreparo cultural, mas igualmente a ambientes profissionaisdecadentes e a remunerações precárias, que não permitem investimento noaprimoramento pessoal e profissional. É um vasto imbróglio, que a apostila vemagravar. O mal maior da apostila é a sugestão de que estudar é reproduzir. Oinstrucionismo da “formação” original é aí consagrado para sempre. A pesquisado Inaf (Tabela 5) sugere que a leitura mais comum na população (acima de 15anos até menos de 65) é da bíblia e congêneres, próxima dos 50% para o total,

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alfabetizados e nível rudimentar, alfabetizados de nível básico e alfabetizados denível pleno. Mesmo neste nível pleno, o manejo da leitura é canhestro. O quemais se lê são romance e similares (49%); livros técnicos, de teoria, ensaios sãolidos por apenas 22% dos plenamente alfabetizados. Um terço lê livros didáticos,e ainda 7% nunca lê.

Pode-se fazer um paralelo da apostila com bíblia. São leituras oficiais,quase obrigatórias, monitoradas mais pela fé do que pelo senso crítico. Não se lêpara pensar, mas para dizer “amém”. A leitura desafiadora, a contraleitura, éperegrina, por conta de ambientes instrucionistas vorazes inspirados em textospré-fabricados e consumados. Não critico quem lê a bíblia, porque não estoudiscutindo fé. Critico que se leia tão pouco e mal, sobretudo se evite a leituraquestionadora na escola. A Tabela 5 indica que até mesmo livros de auto-ajuda,em geral campeões de venda, só possuem 22% de leitores entre os alfabetizadosplenos. É por isso que, mesmo tendo a população universitária crescidoenormemente nos últimos anos, a leitura quase não saiu do lugar. A crise daseditoras persiste. Aprende-se escutando aula, manejando apostila, fazendo prova,não pesquisando, elaborando, argumentando, contra-argumentando, em ambientefranco da autoridade do argumento.

TABELA 5. Livros que os alfabetizados costumam ler - INAF 2005

Fonte: INAF, 2005.

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É comum, em ambientes instrucionistas como os da apostilacompulsória, aduzir restrições à autonomia do professor, como se fosseveleidade de pesquisadores descompromissados. Devo reconhecer que aquestão da autonomia é facilmente banalizada por professores que não sabemnem conteúdo nem propedêutica, como é fácil observar em contextos dateoria dos ciclos. Esta sempre apostou na autonomia do professor, bemcomo na primazia do aluno e suas necessidades fundamentais, sem falar narecusa de reprovação. Esta autonomia, porém, desandou em sinecura, àmedida que a avaliação desapareceu por conta da progressão automática,refletindo-se em postura descompromissada ao extremo. Resultado disso éa noção geral de que são necessários três anos para a alfabetização (constado próprio IDEB)3 , uma proposta pobre para o pobre. Só serve para ospobres, já que as escolas apostiladas alfabetizam seus alunos no pré-escolar.Este tipo de autonomia é farsa, primeiro porque grande parte dosalfabetizadores não sabe alfabetizar (o Curso de Pedagogia não osprofissionalizou minimamente), segundo porque autonomia, no sentido legítimode Paulo Freire (1997), significando a construção histórica da competênciaformal e política do professor, não pode escusar-se de garantir a aprendizagemdo aluno, terceiro porque, não sendo o professor autor, não consegue fazerdo aluno autor.

Em que pese esta crítica, é fundamental postular a autoria e aautonomia do professor. Exemplo deste desafio é a alfabetização na 1ª série,o que toda escola apostilada assume sem mais. O professor despreparadocoloca como primeira expectativa a prescrição de algum método dealfabetização, já que ele mesmo não saberia forjar o próprio. Como naapostila, em vez de adotar o aluno, adota a cartilha, e esconde-se atrás dela.Cada professor vai desenvolver naturalmente seu método, à custa de estudo,pesquisa e elaboração, além de aplicação prática, mas seria erro crassoprescrever método oficial. Um método oficial teria, como na apostila,conseqüência de estruturar o ensino, fazer todo o mundo falar a mesma

3 Decreto n. 6094, de 24 de abril de 2007. Veja livreto “Compromisso de Todos pela Educação -Passo a passo” - www.inep.gov.br

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língua, aplicar a mesma prova, integrar no mesmo instrucionismo, masimpediria a formação de ambiente questionador de aprendizagem. Ainda, ouso intensivo de uma cartilha poderia até melhorar os índices de aprovação,por instruir mais, não por educar melhor. A apostila pode, de fato, instruirmais, mas dificilmente educa melhor. Assim parece ser: que não sabe pensar,acredita no que pensa; quem sabe pensar, questiona o que pensa. Professorque sabe pensar não precisa de apostila, pois faz a sua e principalmente nãoimpõe aos outros.

3. Sem Satanás

Apostila pode sofrer duro golpe da internet. No contexto do jáclássico abuso da internet, nada se cria, tudo se copia. Não é, no fundo,diferente da apostila. Estando pronta e sendo canônica, instila a expectativade reprodução infinita. Estudar se restringe a copiar. Pesquisar nem se fala.Elaboração própria nunca. Tais habilidades ficam para o dono da apostila. Ainternet repassa a falsa noção de que conhecimento disponível está aíarmazenado. Basta usar (BRECK, 2006). Ao mesmo tempo, sugereliberdade quase sem limites dos usuários, quando se trata, na verdade, deliberdade sob medida (GALLOWAY, 2004; LIU, 2004). A questão dosjogos eletrônicos é bem ilustrativa, pois possui os dois lados.

De um lado, o jogo eletrônico é um mundo fechado, também parasalvaguardar a autoria dos seus fabricantes e vendedores. No contexto domercado capitalista não poderia ser diferente, por mais que autores jáindiquem a possível futura queda dos “direitos autorais” de materiaisveiculados na internet (TAPSCOTT/WILLIAMS, 2007). De outro, faz partede inteligência de “bons” jogos eletrônicos (GEE, 2003; 2007) abrir horizontesde autoria para os jogadores, desde a construção do avatar, até a manipulaçãodas regras de jogos e criação de ambientes virtuais próprios. Esta condiçãotem colocado tais jogos como espaços privilegiados da boa aprendizagem,em especial do que se está chamando de “aprendizagem situada” (GEE,2004). A aprendizagem aprimora-se visivelmente quando os aprendizespodem manipular com autonomia ambientes virtuais, em geral em 3D, nos

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quais as situações são tangíveis, ainda que virtuais. Este contexto me interessapara chamar a atenção para a relativa inutilidade da apostila para taisjogadores. Como os autores observam (PRENSKY, 2001), os jogadorescomo regra não lêem o manual de instruções. Começam jogando sem mais,em especial jogam juntos permitindo a aprendizagem compartilhada, porvezes “facilitada”. Depois lêem manuais para retirar algumas dúvidas querestam ou para entender certos passos. O acento é colocado, com ênfaseinaudita, na habilidade de autoria, autonomia, através da pesquisa, elaboração,argumentação e contra-argumentação. Assim, os “maus” jogos não passamde apostila.

Esta contradição precisa ser apercebida nas escolas apostiladas.Muitos dos alunos e alunas jogam tais jogos. Enquanto na sala de aula aapostila é sua referência pétrea, no computador experimentam dinâmicasbem mais abertas e desafiadoras, que os movem a construir soluções próprias,abrir veredas criativas, compartilhar conhecimento questionador, confrontar-se com desafios longos e duros, sentir motivação avassaladora.Provavelmente exagera-se a potencialidade de tais jogos, porque, para muitos,seu sentido é entretenimento, por vezes provocando dependência aguda.No entanto, como sugere Sternheimer (2003), o problema maior não estána mídia, que é instrumento apenas, mas no contorno educacional e socialque consagra tais exageros. Mesmo assim, agrava-se a esquizofrenia escolar:enquanto na escola grassa o instrucionismo, no computador pode haverambiente questionador bem mais visível.

A questão do computador é ilustrativa. Em si, trata-se de máquinalinear, seqüencial, algorítmica, padronizadora. O que nela se processa éalinhado em seqüências formais, como produtos repetitivos. É de utilidadeenorme, mesmo sendo máquina reprodutivista. É neste sentido que possover a apostila como produto tendencialmente instrucionista e, mesmo assim,aproveitável, desde que seja para pesquisar, não para colar. O computadorpode ser a maior biblioteca disponível para pesquisa ou para cópia. Assusta-nos a cópia, que se torna praga geral, mesmo nas pós-graduações strictosensu. Mas isto não tolhe o bom uso. Cada escola não teria uma apostila,

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mas uma coleção delas, como simples material de pesquisa, entre outros,para ser compulsado, comparado, questionado e sempre refeito. A boaorganização de conteúdos escolares é sempre um desafio importante, desdeque não se relegue o compromisso de os reconstruir indefinidamente. Oconhecimento organizado já é, em bom sentido, ultrapassado. Por isso, ébem mais relevante saber desconstruir e reconstruir conteúdos, algo que aapostila tende a obstaculizar.

No entanto, como a internet é bem mais completa que a apostila,esta talvez venha a perder o papel de referência compulsória. Bastariamanipular a wikipedia. Embora nela haja alhos e bugalhos, o repositório deinformação é imenso e crescente, tornando cada livro, isoladamente, umareferência mais ou menos perdida. Mesmo que se produza apostila em coleção,toda coleção é um mundo em si, no fundo fechado. A internet, contudo, temcondições de manter-se aberta, por conta de sua dinâmica interativa. Nãotenho dúvidas de que a nova apostila se chama internet, com todos os seusriscos e desafios. O problema é que não dá para exportar, vender, nem tempropriamente dono. Saber pensar não tem dono, porque uma dasprerrogativas mais formidáveis do saber pensar é abolir dono.

No mundo da internet é também insinuante a tendência de seguirinstruções e de apenas consumir. É ótimo para quem não sabe pensar, ounão quer queimar as pestanas com isso. De certa forma, na internet todas asaulas já estão prontas. Com o tempo, tal qual nos jogos eletrônicos, formam-se redes de interessados que permutam as habilidades, “facilitando” aaprendizagem dos colegas. Os que geram habilidades tornam-se donos, osque as seguem tornam-se vassalos (BARD/SODERQVIST, 2002; DIJK,2005). A apostila esconde a trama de poder que se urde por trás, tambémporque sua relação com o mercado é umbilical. Trata-se de educação àvenda, não necessariamente emancipatória. Como é constitucional, nãocaberia sequer criticar. Deve poder ganhar a vida. Mas é fundamentalquestionar de que formação se trata, quando a autoria dos professores éfacilmente evitada, em especial se trunca a leitura, sobretudo a contraleitura.

Assim como é possível lidar bem com a internet - os pais têm aí

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influência decisiva, ao lado da escola - é possível lidar bem com a apostila.Trata-se de colocá-la no devido lugar, ou seja, como material supletivo depesquisa. Não necessário, nem desnecessário, mas disponível. O aluno precisaestudar em várias fontes, compará-las, contrastar modos divergentes deargumentação, aprender que a autoridade do argumento é que interessa eforma. Para tanto precisa elaborar constantemente, tornando-se autor, nãoserviçal da apostila. Não precisamos “satanizar” a apostila, também porquehá aquelas que são bem feitas. Fariam bem para todo professor, desde quenão o atrelassem. Diria o mesmo da auto-ajuda. Como todos precisamos deajuda - nossa fragilidade é espantosa - ler tais livros não precisa ser coisa dosatanás. Podem até ajudar, desde que sejamos coerentes: devem redundarem “auto-ajuda”, não em dependência. Apostila como bíblia, além de nãosubstituir a bíblia, é imitação barata de livro sagrado que somente gente quenão sabe pensar iria adotar.O signo maior da apostila é a aula instrucionista.

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ESTUDOS BIBLIOGRÁFICOS: ALGUMAS ABORDAGENSSOBRE OS DIVERSOS PAPÉIS JUVENIS NA ATUALIDADE1

Moisés Carlos Ferreira2

RESUMO: Este artigo nos traz algumas reflexões sobre os diversos papéisatribuídos aos jovens na atualidade. Tais análises foram feitas a partir dosestudos dos pesquisadores hispano-colombianos: Jesús Martín-Barbero, JoséManuel Valenzuela e Huberto Cubides, tais autores cunharam conceitos comoMoratória Social e Jovem Oficial que serão brevemente explorados neste artigo.

PALAVRAS-CHAVE: Juventude; Moratória social; Jovem oficial.

ABSTRACT: This article in them brings some reflections on the diverseattributed papers to the young in the present time. Such analysis had beenmade from the studies of the researchers Hispanic-Colombians: Jesus Martín-Barbero, Jose Manuel Valenzuela and Huberto Cubides, such authors elaboratedconcepts as Social Moratorium and Young Officer who briefly will be exploredin this article.

KEY WORDS: Youth; Social moratorium; Young official.

Este artigo corresponde às abordagens sociológicas que tratamdas novas pesquisas no campo da juventude, empreendidas nas últimasdécadas do século XX, que compreendem os anos de 1980 e 1990. Taispesquisas foram elaboradas por autores hispano-colombianos (CUBIDESet al., 1999) contribuintes da elaboração de novos conceitos acerca do temajuventude.

As pesquisas reunidas na coletânea organizada por Cubides et al.(1999) no campo da juventude abordam este tema indicando que a juventudenão está restrita a uma fase biológica, mas sim, a um tempo social construído

1 Estudos bibliográficos realizados em 2006 no âmbito da pesquisa para Dissertação de Mestrado:“Estágios para alunos de Ensino Médio: Análise da relação entre uma escola pública e uma ONG nacidade de São Paulo”, como parte da disciplina “Pesquisas com crianças e jovens na escola: osrepertórios das décadas de 1980 e 1990”, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:História, Política e Sociedade, junto a PUC-SP.2 Professor de História e Mestre em Educação pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:História, Política e Sociedade da PUC-SP.

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pelas condições socioculturais de cada país.A leitura dos autores cujos trabalhos compõem a coletânea permite

observar, também, que essas pesquisas tomaram como objeto de estudonão o jovem em si, mas a sua inserção no tempo e espaço, uma vez queesses estudos se detiveram em estudar as inúmeras expressões juvenis nosgrandes centros urbanos da América Latina que, por sua vez, congregamuma infinidade de tempos sociais e são, ao mesmo tempo, efêmeros emultitudinários, bem como as novas formas de agregação destes jovens.

Uma das principais observações destes pesquisadores diz respeitoà noção equivocada que as sociedades capitalistas ocidentais expressamsobre a juventude. De uma forma geral, tais sociedades consideram-na comouma fase “natural”, na qual todas as pessoas obrigatoriamente fariam uma“escala” – um período transitório entre a adolescência e a maturidade, criandouma idéia de juventude que “esquece” sua associação a uma “construçãosocial”, conforme nos elucida a seguinte citação: “[...] Hay distintas manerasde ser jovem em el marco de la intensa heterogeneidad que se observa en elplano económico, social y cultural...” (MARGULIS; URRESTI, 1999, p.3).

Este estudo tem como objetivo retomar tais autores paradesmistificar este conceito arquitetado pelas sociedades contemporâneas,uma vez que nem todos os jovens, necessariamente, passam por esta faseda mesma forma, já que sua vivência depende da classe social a qual pertence,do local onde se vive e também das questões de gênero.

Nessas sociedades ocidentais, a partir do desenvolvimento industriale capitalista, gerou-se o fenômeno das grandes aglomerações urbanas, localonde se construiu um “modelo ideal de juventude”, tornando-o um paradigmaa ser generalizado, em detrimento da idéia de juventude como construçãosocial.

Com base nos conceitos de juventude expressos pelos autores aquicitados, foi possível constatar que existem inúmeras formas de ser jovem: deacordo com o país onde se vive, suas expressões culturais, suas diferentesclasses sociais, seu gênero e sua etnia: “Hombres y mujeres experimetan sujuventud según el sector social al que pertencen y son miembros de una

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generación, y como tales, son hijos de su tiempo.” (MARGULIS; URRESTI,1999, p.13).

Tais autores, ao estudar o fenômeno da juventude, ressaltam queas questões de gênero devem ser analisadas conjuntamente às questões declasses sociais.

Desta forma, para as jovens de classes sociais mais abastadas, arealização pessoal não está circunscrita apenas pela maternidade, mas simcom a aquisição de outras realizações, como por exemplo, pelas conquistasprofissionais, intelectuais e a conseqüente autonomia financeira.

No entanto para a maioria das jovens de classes populares, amaternidade ainda é tomada como sinônimo de realização e plenitude e atémesmo pode propiciar uma certa “respeitabilidade” para estas, reforçandoportanto, as limitações que as questões de gênero, associada às condiçõessócio-econômicas podem representar, conforme nos esclarece a seguintecitação: “Podria afirmarse que entre las classes medias y altas, para ser madrehay que ser mujer mientras que en las clases populares, para ser mujer hayque ser madre.” (MARGULIS; URRESTI, 1999, p.13).

Conforme abordado nos parágrafos anteriores, a construção deum modelo ideal de juventude supõe que o mesmo deva servir de parâmetropara todas as classes sociais. Margulis e Urresti (1999) analisam esse fatodentro do conceito de “moratória social”.

“Moratória social”, segundo esses autores, compreende o tempolivre que os jovens das classes sociais mais abastadas possuem nessa etapade suas vidas. “Moratória” porque estão desobrigados de “produzir seupróprio sustento”. Nesse tempo podem se dedicar aos estudos e aos gruposde amigos, realizar viagens, e profissionalizar-se e, com isso, postergar suaentrada no mundo adulto, sinônimo de responsabilidades profissionais,familiares e, conseqüentemente, participação no mundo produtivo, uma vezque esses jovens possuem as suas famílias que os assistem economicamente,subsidiando suas atividades, de acordo com citação de Margullis e Urresti(1999): “La juventud se presenta entonces, com frecuencia, como el períodoem que se posterga la asunción de responsabilidades económicas y familiares,

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y seria una característica reservada para sectores sociales com mayoresposibilidades econômicas”. (p.6).

Essa categoria de jovens, que vive sob a “moratória social”, desfrutadesse tempo legitimado socialmente, bem como, podem também usufruir osbens de consumo oferecidos pelas sociedades contemporâneas.

Os autores em questão (MARGULLIS; URRESTI, 1999) apontamque há outros grupos de jovens, oriundos das classes populares, que tambémpossuem tempo livre, não por escolha ou pela sua condição de jovem“desobrigado de produzir seu próprio sustento”, mas pelo desemprego.Portanto, esse tempo livre não pode ser associado à moratória social, poisele não se reveste de legitimidade. Esses grupos juvenis transitam por essafase com “culpa” ou impotência, não usufruindo os mesmos benefícios queos jovens que estão sob a moratória social legitimada usufruem.

Margullis e Urresti, também destacam o conceito de “JovemOficial”, que representa o modelo de juventude criado e disseminado pelofetiche publicitário, como um mito ideal a ser seguido.

Esse modelo de jovem representa o “ideal de juventude”, situando-o em uma camada social que lhe possibilite estar dentro dos signos damodernidade, ou seja, o jovem se veste, e comporta-se e se instrui dentrodos padrões da sociedade de consumo.

No Brasil, já em publicação de 1984, o escritor Carlos Drumondde Andrade apresentava essa mesma idéia em um poema intitulado “EuEtiqueta”, no qual descreve o jovem brasileiro como resultado de uma“construção publicitária”, como podemos observar em um fragmento dessepoema:

[...] meu isso, meu aquilo, desde a cabeça até o bico dos sapatos,são mensagens, letras falantes, gritos visuais [...] e fazem de mimhomem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada, estou,estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda sejanegar minha identidade. (p.85-87).

Trata-se de um modelo que pressupõe um “estereótipo” daquelejovem criado pela publicidade. Nas palavras de Margulis e Urresti (1999):“Es usual notar la presencia reiterada de cierto modelo de joven, construido

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según la retórica de la mercancía, fácilmente identificable con un patrón estéticode clase dominante y ligado con los significantes del consumo.” (p.16 e 17).

São esses mesmos jovens que, oriundos das classes altas, muitasvezes estão se preparando para ocupar futuros postos de comando nassociedades nas quais estão inseridos.

Esse “jovem oficial” pode ser considerado como protagonista dosemblemas da sociedade moderna, visto que segundo esse modelo“mitológico”, os jovens não possuem inseguranças e estão imbuídos de umcomportamento que se assemelha a uma fortaleza.

Sendo assim, estes jovens mostram-se ávidos consumidores,provocando uma espécie de paradigma juvenil, cujo modelo criado pelapublicidade instiga os jovens que pertencem às classes sociais menosfavorecidas e de poucas posses a segui-lo.

Em razão disso, provoca nos jovens pobres um sentimento deexclusão e frustração, que pode vir a desencadear comportamentosassociados à prática da violência, à medida que os jovens das camadaspopulares não conseguem acompanhar as imposições deste mercado.

Lembramos também os índices de desemprego e a precariedadedo trabalho entre os jovens

3, o que facilita a presença das redes de

narcotráfico que atuam nas periferias das grandes cidades, pois estas cooptamum certo contingente juvenil para exercerem diversas funções, em troca de“oportunidades de ganho” que podem ser revertidas para estes jovens comoum meio de exercerem seu papéis de consumidores.

Outro fenômeno também estudado por estes pesquisadores(MARGULLIS; URRESTI, 1999) refere-se ao crescimento da “tribalizaçãodos jovens” nas grandes cidades.

Nesses conglomerados urbanos, os jovens procuram agregar-se ecriar traços que o diferenciem da homogeneização resultante do avanço dacultura globalizada, já que esta dissemina um comportamento hegemônico,impedindo a construção de identidades singulares e tradicionais de cada

3 Para maiores esclarecimentos sobre este tema, verificar artigo de Guimarães(2005), intituladoTrabalho: uma categoria chave no imaginário juvenil?, in: ABRAMO, 2005.

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região.Este fenômeno, que pressupõe a agremiação de jovens com traços

identitários comuns nas grandes cidades, pode também significar algumasformas de resistência contra o modelo imperativo e divulgado do jovemoficial.

Outra observação que se faz pertinente sobre o fenômeno datribalização juvenil, diz respeito a heterogeneidade de expressões juvenistrazidas por estes grupos, o que nos leva a pensar em diversas formas de sevivenciar e construir esta fase, não apenas pautada em um único modelo,conforme nos elucida a seguinte citação:

La tribalización implica una especie de ruptura con el orden socialmonopolizado por la uniformidad, un proceso de fragmentación ycreciente explosión de identidades pasajeras, de grupos fugitivosque complejizan y tornan heterogéneo el espacio sócial. (p.20).

Uma outra contribuição quanto às pesquisas em relação aos jovensnos últimos tempos, é dada por Martin-Barbero (1999) ao fazer referênciaàs pesquisas no âmbito da antropologia urbana.

Para tal estudo, Martin-Barbero (1999) se utiliza dentre outrosautores4 , das pesquisas de Margareth Mead, como seu referencial teóricobásico.

Essas pesquisas sobre antropologia urbana classificam o mundoatual como um “desordenamento cultural”, apontando as mudanças ocorridascom a juventude nas décadas de 1950-60, o surgimento de um novo tipo decultura, decorrente das mudanças que acometeram as sociedades ocidentaisnaquele momento histórico.

Cumpre ressaltar que tais mudanças dizem respeito ao avanço datecnologia, da medicina, da indústria cultural e do advento dos meios decomunicação de massa, que redimensionaram os valores das novas gerações,criando com isso novos padrões culturais para os jovens, não mais apenas

4 Um outro referencial teórico também utilizado por Martin-Barbero é Marc Auge, por intermédiode sua obra “Hacia uma antropologia de los mundos contemporáneos, Barcelona, 1996.

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pautados nas tradições de seus antepassados.São jovens que inovam suas concepções de mundo e pertencem à

primeira geração a ter contato direto com o mundo das modernas tecnologiase seus desdobramentos.

As abordagens de Martin-Barbero (1999) esclarecem a perspectivada nova visibilidade juvenil, ao apontar que a juventude enquanto sinônimode um grupo social homogêneo e destemido frente aos desafios e conflitosgeracionais, foi construída no transcorrer do século XX, principalmente como advento do rock e das manifestações sociais nos Estados Unidos daAmérica - EUA e Europa Ocidental, a partir da década de 1950.

Esse contexto histórico configurou um modelo de jovem a ser“exportado” para outros países, propagado e legitimado pelos meios decomunicação, sem esquecer que esse modelo seria muito útil à sociedade demercado e à disseminação de inúmeros produtos que passariam a serconsumidos por esse recente grupo social, lembramos que este modelo dejovem encontra-se amparado e sistematizado dentro do “american way oflife” o estilo americano de vida, cuja difusão deu-se com maior impulso apartir da segunda metade do século XX.

A pesquisa de Martin-Barbeiro (1999) revela que o século XXtransformou o jovem em um “paradigma da modernidade”. Esse grupo tornou-se um referencial a ser seguido e reverenciado, bastando, para isso, observarcomo se disseminou nas sociedades ocidentais a “cultura dorejuvenescimento”. O ato de envelhecer praticamente passa a ser consideradocomo sinônimo de uma espécie de “heresia”.

Nesse sentido, notamos que o jovem passou a ser parâmetro paratoda a sociedade. Se, por um lado o jovem retarda a sua entrada namaturidade, com a moratória social, por outro lado, os adultos (que possuemrazoáveis condições financeiras), procuram manter-se na condição de jovens,por intermédio dos “planos qüinqüenais” de cirurgia plástica e outros recursosque os mantém com aspecto de jovem: “Pero nunca como hoy la juventudhá sido identificada com la permanente novedad que caracteriza a lomoderno.” (MARTIN, 1999, p.31).

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Desse modo, é possível notar que nas sociedades atuais aindapermanece a propagação de um processo de rejuvenilização, por meio doqual os jovens não se espelham mais nos adultos, ao contrário, evitam amaturidade e os adultos, por sua vez, buscam a perpetuação da juventude.

Compreende-se também, que há inúmeras formas de “ser jovem”e não somente aquele modelo eleito pela indústria cultural. Tal afirmaçãojustifica-se com a presença nos meios de comunicação de comportamentosjuvenis de outros extratos sociais, como por exemplo, os “funkeiros”, os“rapers”, que representam uma cultura classificada como “marginal”, masque aos poucos, vem se incorporando à sociedade.

Tais comportamentos criados pelos jovens, não estãonecessariamente dentro do modelo hegemônico criado pela sociedade demercado. Segundo Valenzuela (1999) em texto que compõe a mesmacoletânea, abordando especificamente que: “Estos movimientos cuestionanlas formas de organización dominante y sus formas de legitimación, incluyendosus mecanismos de dominación cultural.” (VALENZUELA, p.43).

Considerações finais

Para finalizar este artigo, resgatamos as reflexões cunhadas pelosautores abordados neste texto; de que a fase juventude não é uma passagemnatural de uma parcela da população que está prestes a ser admitida na vidaadulta e, sim, uma construção social das sociedades ocidentaiscontemporâneas, podemos complementar este raciocínio com a contribuiçãoda palavra “juventudes” no plural, contrapondo a sua vertente “juventude”no singular; pois esta categoria social exige um olhar mais atento dasinstituições que se propõem a estudá-la ou pesquisá-la, um olhar que sedetenha a sua diversidade e complexidade e não apenas focalize um modelodeste grupo, como sendo o protótipo para os demais, conforme exposto emparágrafos anteriores deste escrito.

Assim, o que esse conjunto de autores procura evidenciar é que osjovens não se apresentam mais de forma homogênea. Sua condição, papel eações no mundo atual se resumem a uma “figura desestabilizada e dinâmica”,

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que nos traz as contradições existentes nas sociedades contemporâneas,principalmente a brasileira.

Ressaltamos também que o sistema educacional brasileiro tornou-se abrangente, no que se refere à ampliação de suas vagas, com as chamadas“escolas de massas”, que açambarcou um grande contingente de jovens,marcados por assimetrias, portanto, muito distante do modelo homogêneo,classificado, seletivo e filtrado que chegavam as instituições escolares emdécadas anteriores.

Concluímos com a observação de que os jovens com suasidiossincrasias, juntamente com suas inúmeras maneiras de se identificar esentir o mundo, trazem conseqüências para todos os setores da sociedade,em especial, para os sistemas educacionais e seus principais agentes: osprofessores, obrigando-os a uma revisão de papel e função no processocomunicativo em sala de aula.

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SONS, NÚMEROS E GEOMETRIA

Manoel Lima Cruz Teixeira1

RESUMO: A pesquisa bibliográfica descreve as primeiras relações entrematemática e música, neste artigo. A experiência que Pitágoras fez com omonocórdio usa a linguagem dos números para criar a linguagem musical. Omomento social vivido pela sociedade Grega refletiu no trabalho do filósofo ematemático. Depois de mais de mil anos, físicos e músicos deram novos rumosao que Pitágoras construiu. As figuras de Thales de Mileto e Euclides foramfundamentais nessa mudança de paradigma. Surge a acústica e a música comoarte autônoma.

PALAVRAS-CHAVE: Música; Matemática; História da Matemática;Filosofia da Matemática

ABSTRACT: Bibliographical research describes the first relations betweenmathematics and music in this article. The experience that Pitágoras madewith the monochord uses numbers’ language, to create musical language. Thesocial moment lived by Greek society was reflected in the philosopher andmathematician work’s. After more than a thousand years later, physicists andmusicians gave new meaning in what Pitágoras had constructed. Thephilosophers Thales de Mileto and Euclides were central in this paradigmchange. Then it appears the acoustics, and music as an independent art.

KEY-WORDS: Music, Mathematics, Mathematics’ History, Mathematics’Philosophy

Introdução

Ninguém sabe como e quando a música nasceu. A idade pré-histórica é tomada como marco da descoberta dos sons. Os sons e os ritmosse encontram na natureza, nos timbres das ondas, da tempestade e das vozesdos animais e humanas. A música tinha sentido religioso, associada à dançaassumia caráter de ritual. Os pré-históricos agradeciam aos deuses dançando1 Professor Assistente da Faculdade de Educação – UFRJ. Doutorando em Educação Matemática daPUC – SP. E-mail: [email protected]

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e usavam as mãos e os pés. Depois rimavam as danças com pancadas namadeira, a percussão nascia com a descoberta do corpo, expresso em palmas,uivos, pulos, batidas e berros. Esse início da música é o surgimento da trajetóriamusical do mundo ocidental.

Outros continentes têm outras histórias da música para seremcontadas. Da música, na época pré-histórica, sabemos pouco, a comunicaçãoentre as civilizações não acontecia, hoje mais de cinco mil anos depois, apesardos avanços tecnológicos, continua-se engatinhado nesse aspecto.

A democracia Grega

Antes do ano zero, lá pelos seiscentos anos antes de Cristo, opovo Grego vivia transformações profundas na sua sociedade e a músicaera uma delas. A democracia e a filosofia marcavam o avanço da civilizaçãonos direitos humanos, na musicalidade e nos grandes pensamentos de filósofos,o que desencadeou uma série de situações que ferviam em mudanças paratodos. Nessa nova ordem grega, o individualismo, as seitas e os privilégiosestavam proibidos.

Pitágoras tinha uma vida intensa nessa época, filósofo, matemático,músico teve participação decisiva nos acontecimentos que movimentava asociedade grega. Nasceu na ilha de Samus, atual Grécia, em 572 a.C. Mudou-se para Metaponto, atual Itália, em 497 a.C., por questões políticas.

Segundo Singh (1997), Pitágoras e os discípulos conseguiramescapar dos atos revolucionários desencadeados pelo povo grego e forampara a Itália. O imperador italiano da cidade de Crota gostava dos esportesradicais. Tinha uma queda pelas artes e a filosofia. Recebeu Pitágoras e seusseguidores e financiou a comunidade pitagórica.

Pitágoras viajou muito pelo Oriente, Egito, Babilônia, Creta, issolhe proporcionou bagagem cultural valiosa.

A comunidade pitagórica se manteve por algum tempo, até que,em 460 a. C, outro ataque dizimou quase todos, sobraram alguns queconseguiram preservar seus ensinamentos até 300 a.C. Essa é outra versãopara o paradeiro de Pitágoras em vida. O pitagorismo parecia que não

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queria se acabar, sobrevivendo por mais nove séculos, até a Idade das Trevas,por volta de 600 d.C. Para outros, o pitagorismo resiste até nossos dias,apesar de não ter tanta importância e não ser reconhecido como um dosmaiores filósofos da humanidade.

O número pitagórico

Filósofo, músico e matemático Pitágoras descobriu as leismatemáticas dos intervalos musicais valendo-se do monocórdio, instrumentode uma corda só que ele inventou. O monocórdio consiste em uma caixa deressonância sobre a qual se estende uma corda tencionada e apoiada emsuas extremidades por dois cavaletes.

Esta figura nos permite visualizar como funciona o monocórdio. Aopuxar uma corda ela vibra livremente gerando uma nota básica. Apertandocom um dedo o meio da corda, a nota produzida é uma oitava mais alta e emharmonia com a nota original. Outras notas harmônicas podem ser produzidasapertando-se o dedo a 3/4, 2/4 etc.

Usar a matemática para captar a ordem que está nos sons emitidosestabelece a invariância entre números e leis matemáticas. Esse duploconhecimento nos leva a considerar o feito de Pitágoras como a essência daconcretude matemática. Segundo Santos (2000, p.63), o filósofo terminou“Descobrindo a relação fundamental da altura dos sons, com a longitude dascordas que vibram, submeteu o fenômeno do som a invariabilidade de umalei numérica.”

Hoje em dia muitas pessoas conhecem as notas musicais: dó, ré,mi, fá, sol, lá, si, cada uma delas é representada por uma letra. Dó por C, répor D, mi por E, fá por F, sol por G, lá por A e o si por B. Os intervalosmusicais podem ser de vários tamanhos. A noção de intervalo musical estáintimamente associada à noção de razão. Qual a razão entre os números 2 e3? Prontamente respondemos: 2/3. Qual a razão entre os segmentos 4 cm e5 cm? Isso é fácil: 4 cm/5 cm = 4/5. O intervalo na teoria musical criada porPitágoras tem importância crucial. Ao estender a corda na madeira surge arelação da matemática com a música. A corda pode ser entendida assim,

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como fosse um segmento de reta, só para efeito de representação.

Nos tempos de hoje as cordas dos violões são de náilon ou deferro. Tocando-se a corda solta, a vibração produzida é chamada de notabásica. Também conhecida como tônica, sua razão é 1:1.

Pressionando a corda ao meio, a nota produzida é uma oitava maisalta. Por exemplo, se apertamos a corda no dó, obtemos uma oitava, indo-se do ré até chegar ao dó novamente completando-se o ciclo de oito notasmusicais. O som é o mesmo, só com uma pequena diferença chamada deuma oitava mais alta, em harmonia com a nota original a oitava tem comorazão 1:2.

Pressionando a corda no ponto vermelho reproduzimos o som daquinta cuja razão é 2:3.

A quarta tem fração 3:4, emite-se esse som pressionando a cordano ponto vermelho.

Estava criada assim, a origem das escalas musicais. Pitágoras,interpretou a música definindo os intervalos musicais em termos matemáticos.Ao fazer essas experiências os intervalos mencionados passaram a serdenominados de consonâncias pitagóricas.

Atualmente a música está baseada neste sistema. Criou-se oprimeiro sistema denotação musical. Existem várias escalas musicais. A maisconhecida é a de Dó Maior ou C. Sua representação é dada por: dó, ré, mi,fá, sol, lá, si, dó (ou C, D, E, F, G, A, B, C).

O monocórdio deu origem ao violão, mas, em vez de uma corda,tem seis. De cima para baixo as cordas têm os nomes:mi-6ªcorda sol-3ª cordalá- 5ª corda si- 2ª cordaré- 4ª corda mi- 1ª corda

O mi da 6ª corda é grave e o da 1ª é agudo. A técnica de tocarviolão e monocórdio é a mesma, sempre se tocando as cordas soltas ou

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pressionadas nos trastes. Os trastes funcionam como se fossem as marcasno braço do violão para os meio, terços, quartos etc.

Alguns filósofos pitogóricos, como: Platão, Sócrates, Aristóteles,Proclo, Parmênides, não podiam declarar esta ligação, o pitogorismo estavaproibido na Grécia democrática. A ligação com o sobrenatural e as divindades,adoração por entidades imaginadas, às religiões e seitas estão na existênciahumana e com maior propriedade no filósofo de Samus.

A idéia de transformar o som numa linguagem possibilitou a criaçãode um novo ramo da matemática, no tempo de Pitágoras. A Música,Aritmética, Astronomia e Geometria formavam o Quadrivium. As quatrodisciplinas do currículo matemático daquela época.

Esse “Círculo Quadrivium” mostra a representação da Astronomia,Música, Aritmética e Geometria. A compreensão dessas quatro artes/ciênciaspermitia a orientação em qualquer campo não conhecido do conhecimento,pensavam os estudiosos da antiguidade.

Os símbolos dos planetas, na circunferência, foram arrumados daseguinte maneira. Na tradicional ordem da Astronomia, na parte superior:Uranos, Netuno e Plutão, posicionados nas três vértices do triângulo. A sérieharmônica e o meio tom para o acorde médio C (dó maior). No meio dacircunferência, à direita, as séries proporcionais de Platão, na parte inferiorda circunferência. Círculos arranjados na forma dos quartos círculos tangentespitagóricos, no meio à esquerda. Ramos da matemática que tempos depoisdeixou de existir, tornaram-se autônomos ficando só a aritmética e ageometria.

Para Pitágoras o número tem conotação transcendental. Afirmava,o número é tudo, O número rege o mundo. Onde estaria a força desse tal denúmero? Pitágoras usou a noção de divindade. O 1 tinha dois significados.O 1 como Deus Supremo, criador de todas as coisas. E o outro 1 no sentidoconcreto de ser uma coisa, um homem, um animal etc. O 1 nesse sentidogera todos os outros números; o 2 é 1+ 1. O 3 = 1+1+1, e assim por diante.

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O número do outro lado

Os Romanos, ao invadirem a Grécia, impuseram suas teorias. Nãoestavam interessados nos ensinamentos que poderiam obter do povo maisintelectualizado da época. Questões filosóficas e estudos científicos nasdiversas áreas do conhecimento foram substituídos pelas pesquisas embalística, estratégias de guerra e tudo que dizia respeito à arte de guerrear. Autilidade prática do conhecimento na figura do artesão tinha prioridade sobrea meditação e a arte da retórica.

A arquitetura, mesmo que ainda na fase artesanal, desenvolveu-sebastante. Os monumentos, as artes das estátuas e uma série de atividadespráticas careciam do cálculo para que se fossem construídos, às vezes, detamanhos gigantes. No cálculo, o número exige a exatidão rigorosa.

Chega o Renascimento, a filosofia iluminista e as artes em geral sãoretomadas. É o período do reflorescimento da alegria de viver, dosacontecimentos que marcariam a civilização para sempre, chamada a Idadeda Luz, em contraposição à Idade das Trevas.

Ritmos e geometria

O efeito de tirar um som contra o outro – o contraponto – é chamadode polifonia e esta técnica nasceu na França. Isso facilitou a criação de novasformas vocais, como o Motete, o Conducto e o Rondó. Era uma músicadiferente que surgia chamada de Ars Nova. O Bispo Filipe de Vitry foi ogrande teórico dessa nova música que, com outros, deu precisão matemáticaàs regras do canto coral, tornando conscientes certas combinaçõesharmônicas.

Os cantos religiosos se encerraram nas igrejas. Não conseguiamcompetir com as inovações da música profana. Isso não prejudicou o cantoreligioso, pelo contrário, ele se desenvolveu numa forma de expressão litúrgica,a Missa. Guillaume de Machaut (1310-1377) escreveu a Missa da Sagração,que é considerada hoje uma obra prima. O verdadeiro espírito da Ars Novado século XIV se revela na fusão da música erudita com a música clássica.

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No início do renascimento, um conceito bastante abstrato de músicaorientava a invenção dos mestres franco-flamengos. Chegavam a compor,para trinta e seis vozes paralelas, uma virtuosidade contrapontística.

O experimento de Pitágoras com o monocórdio estabeleceurelações matemáticas, entre o tamanho da corda e a nota emitida por elaquando vibrada. No período renascentista esse experimento especulativoadquiriu elementos de natureza matemática. Alguns músicos teóricos comoGioseffe Zarlino, Vivenco Galilei, Benetti e o físico Galileo Galilei colaborarampara a aproximação da música com a matemática. Passou-se grande tempodo século VI a.C. até o renascimento, no século XVI, para que a música e amatemática caminhassem juntas novamente. Desde Pitágoras nada aconteciaque pudesse dar continuidade aos experimentos com os sons. SegundoAbdounur (2002), Gioseffe Zarlino (1517-1590) formulou as noções básicasda Tríade Tonal. Estabeleceu que a tônica, a dominante e a subdominante,seriam, respectivamente, a primeira, a quinta e a quarta notas de um certotipo de escala. Essa invenção teórica trouxe novos rumos à música. Zarlinoinseriu novos intervalos consoantes aos descobertos por Pitágoras. Essesintervalos e seus nomes podem ser representados:Terça maior 4:5 Terça menor 5:6Sexta Menor 5:8 Sexta Maior 3:5

Vincenzo Galilei contestou como Pitágoras havia relacionado osintervalos musicais através de razões de números inteiros. Os intervalos teriamde ser revistos e ajustados para que a polifonia pudesse se estabelecercompletamente. Para Pitágoras o número dava a harmonia perfeita aos sons,não precisava de mais nada para completar a ligação entre a matemática e amúsica.

Zarlino se interessava pelos sentimentos e usou a proximidade como povo para criar a Tríade Tonal. O recurso de usar várias vozes na músicaajudou a compreender os mecanismos de combinação dos sons de maneiraharmônica. Dar um salto em direção às mudanças apontadas por Zarlino eVincenzo Galilei não foi fácil, já que a visão pitagórica dos intervalos musicaispor razões de números naturais, apesar de ter passado tanto tempo, ainda

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dominava os experimentos.A física desenvolveu a música e contribuiu para esta se tornar uma

arte autônoma desligada da matemática. Alguns músicos como Marin Mersene(1588-1648) e Zarlino deram sua contribuição nesse sentido. Mersenerealizou experiências com uma corda esticada e reproduziu sons quedeterminavam como a freqüência diminui em relação aos parâmetros físicosda corda. Essa freqüência de vibração de uma corda depende do seucomprimento, densidade linear e tensão submetida. Zarlino criou um métodode divisão do braço de um instrumento em doze semitons iguais por meio demédias geométricas. É o chamado método geométrico de divisão de umsegmento em partes iguais

As idéias dos físicos e músicos apontavam para mudanças naconcepção da teoria musical. Na opinião de Abdounur (2002), Galileu Galileideixava isso patente ao escrever, em 1638, que nem a tensão, nem ocomprimento e nem a densidade linear de cordas apresentava-se como razãodireta e imediata subjacente a intervalos musicais, mas razões dos númerosde vibrações e impactos de ondas que atingem o tímpano.

Das descobertas proporcionadas em princípio pela vibração deuma corda nasce a acústica, que estuda o fenômeno de como o som sepropaga. Giovanni Batista Benedetti foi outro músico que contribuiu para adifusão da música no período renascentista. As idéias de Pitágoras nãorespondiam as indagações de físicos e músicos da época. Foi a partir dasdescobertas musicais de Pitágoras que as pesquisas no período renascentistase desenvolveram na direção dos refinamentos dos métodos.

Os sons seriam vibrações no ar geradas pelas oscilações da cordae que mudariam segundo a velocidade da vibração. O tamanho da cordainfluenciaria nesse experimento físico. Quanto menor o tamanho da corda,mais vibrações ela produziria em um mesmo intervalo de tempo. Quantomenor a corda, mais agudo o som emitido. A consonância seria estabelecidapela coincidência dessas vibrações.

O número subsidiava as primeiras experiências com a música.Nascente, a partir de uma linguagem matemática, tem seu desenvolvimento

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complementado pelas leis físicas das vibrações, densidade e composição doar. Nessa etapa, a proporcionalidade, e não mais as razões como usavaPitágoras, daria conta desse fenômeno mais complexo, de captação daessência do som. Precisa-se de outra linguagem matemática que dariacontinuidade às pesquisas físicas sobre a natureza do som.

Essa linguagem nasceu com Thales de Mileto (640-560 a.C.),matemático, comerciante, astrônomo, geômetra e estadista. Thalesestabeleceu contatos com o Egito e a Mesopotâmia com fins comerciais.Conheceu boa por parte da matemática e astronomia babilônia. No longotempo que passou no Egito aprendeu muita coisa de sua geometria e levou-a para o Grécia. Trabalhou para o Faraó do Egito na medição das pirâmidesaplicando o método das semelhanças entre razões, a chamadaproporcionalidade.

É atribuído a Thales a enunciação de cinco teoremas da geometria.Pouco para uma obra que viria revolucionar o conhecimento matemático,Os Elementos, de Euclides.

Os cinco teoremas contribuíram para a edição do grande manualdo pensamento axiomático. A geometria nasce no ocidente, a partir dasviagens de Thales por outros países, se desenvolve com seu discípulo Pitágorasaté chegar ao auge na formalização feita por Euclides.

Mas a geometria euclidiana é, de fato, uma matéria emocionante, ea criação de Euclides é uma bela obra cujo impacto rivaliza com oda Bíblia, e cujas idéias foram tão radicais quanto às de Marx eEngels. Com seu livro Os Elementos, Euclides abriu uma janelaatravés da qual a natureza de nosso universo tem sido revelada.(MLODINOW, 2005, p.11).

A identidade de Euclides é contestada por muitos historiadores.Não se sabe ao certo se, de fato, Euclides existiu. Alguns afirmam que em300 a.C. viveu um homem em Alexandria que poderia ter sido Euclides. Aabordagem que ele utilizou na geometria deu nova forma à filosofia e definiua natureza da Matemática até o século XIX.

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Thales e Euclides empreenderam uma linguagem própria àMatemática. O pensamento organiza-se nessa formalização dos conceitos.A sistemática de estruturação da linguagem matemática passa peloentendimento de uma sintaxe, combinação de signos e da semântica queestuda as relações entre os signos. Os apontamentos gregos que originaramesta linguagem podem ter sido obra de vários autores, e não só de Euclidese Thales.

A música mudou com os estudos dos físicos e músicos. A teoriapitagórica das escalas musicais não explicava novos problemas surgidos comas descobertas de novas possibilidades de sons. Como dizia Pitágoras Tudoé Número. Essa afirmação talvez fosse percebida como uma profecia. Osensinamentos de Pitágoras tiveram grande repercursão. O fato, mais areligiosidade da filosofia pitagórica, pode ter sido a causa da demora deacontecer o viés que a geometria proporcionaria com o Teorema daproporcionalidade entre segmentos.

Teorema de Thales: Quando um sistema de retas paralelas cortaduas retas quaisquer em um plano, os segmentos determinados sobreuma delas são proporcionais aos segmentos homólogos obtidos sobre aoutra reta.

Figura 21: Representação geométrica do teorema de Thales

Desenha-se três retas paralelas e duas retas transversais a elas,chamando de A, B, C e P, Q, R as interseções, medindo os segmentos AB,BC, PQ e QR o teorema de Thales diz que, nessas condições, pode-secomprovar a proporcionalidade, substituindo cada segmento pela sua medida.

Galileu Galilei explicitou as propriedades acústicas dos intervalosmusicais, tentando provar a proporcionalidade entre altura e freqüência. Aesta conclusão Benedetti já tinha chegado, embora sem prova científica. A

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geometria possibilitou, com o teorema de Thales, que físicos e músicosdessem novos contornos à Física, com o nascimento da acústica e a músicacom a consonância e dissonância, escalas, temperamento e harmonia.

Conclusão

Os primórdios da música, mesmo que ainda de forma primitiva,representada pelos experimentos do monocórdio, e pelo filósofo e matemáticoPitágoras, introduziram, na civilização Grega, as escalas musicais.

A transformação dessa arte, em princípio experimental, em umadualidade de conhecimentos vai possibilitar o surgimento de novos conceitos,na música e na física. A acústica, a harmonia, o temperamento, são algunsdesses conceitos que foram criados ou mesmo mudados.

Nossa pretensão foi introduzir o leitor na compreensão da lógicade formação dos acordes musicais. Música e Matemática mantêm uma relaçãode proximidade que foi apresentada de uma maneira ainda elementar. Doséculo VI a.C. até o renascimento, essa constatação nos leva a incorporaridéias mais avançadas que aprofundam essas relações, tomando-se, comoponto de partida, o século XVII até os dias atuais.

Referências Bibliográficas

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SANTOS, F.M. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA,2000.

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SINGH, Simon. O último Teorema de Fermat. A história do enigma queconfundiu as maiores mentes do mundo durante 358 anos. Trad. Jorge LuizCalife. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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“TER DESTINO CONVENIENTE”1

EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA POBRE SOB OS OLHARES DOSAGENTES DA LEI NO LIMIAR DA REPÚBLICA BRASILEIRA

Milton Ramon Pires de Oliveira2

RESUMO: O delineamento das concepções de infância, família e educação,que foram empregadas pela polícia e por juristas é o foco privilegiado nestetexto. Nas primeiras décadas do século XX, período de intensa dinâmica deexpansão urbana no Rio de Janeiro, nos registros policiais rotineiros, bem comoem uma obra de repercussão no campo jurídico, estão presentes concepçõessobre a infância que passava aos cuidados da polícia sobre a educação, comomeio possível de alterar o que era tido como destino condenado e sobre afamília, também objeto das práticas classificatórias.

PALAVRAS-CHAVE: Infância pobre; Família; Educação; Agentes da lei;Primeira República;

ABSTRACT: The main focus of this text is the construction of the concepts ofchildhood, family and education created by the Jurists and Police. The Policetarget social order maintenance during a period of intense urban growth wasamong other public and private institutions and phylosophical entities that worriedabout the matter of poverty childhood. So that in police official reports it ispossible to realize the intention of define and classify childhood, family andeducation as a means of changing what could be a Doomed Destiny.

KEY-WORDS: Childhood poverty; Education; Law agents; Brazilian FirstRepublic

O delineamento das concepções de infância, família e educação,que foram empregadas pelos agentes da lei e juristas nas primeiras décadasdo século XX é o foco privilegiado neste texto. A atuação policial voltadapara manutenção da ordem social em um período de intensa dinâmica de

1 Recorrentemente, tais palavras foram registradas na documentação pesquisada que suporta estetexto. Termo empregado para qualificar a prática de enviar crianças e adolescentes para as instituiçõessob gestão da Polícia do Distrito Federal.2 Doutor em Educação Brasileira, professor adjunto na Universidade Federal de Viçosa. [email protected]

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expansão urbana, com a incorporação de migrantes com origem dentro efora do país e, direcionada para ampliar e consolidar modos de sociabilidadedirecionados para padrões baseados na modernidade capitalista se inscreviaentre as representações e ações sociais, especialmente as da Polícia do DistritoFederal, então Rio de Janeiro.

A polícia tem figurado como um dos objetos privilegiados pelasCiências Sociais ao debater o tema da Segurança Pública; o perfil e a atuaçãodos seus agentes estão entre os focos em discussão. Nos debates quetomaram este tema, destaco aqueles que apontam para a reaproximação dapolícia e de seus agentes no dia-a-dia em sociedade como uma alternativaestratégica que concorreria para uma maior eficiência da atuação policial nadiminuição dos crimes e ocorrências (BRETAS, 1997).

Ressalto que este perfil da polícia emerge dos registros cotidianos,fontes trabalhadas na pesquisa. Para as delegacias encaminhavam-sedemandas diversas de uma população possivelmente desprovida de recursose de alternativas a que recorrer: da apreensão de mendigos à intervençãodireta nas áreas de prostituição, passando pela atuação contra as diversasmodalidades de jogos, especialmente o jogo de bicho, as atividadesinvestigativas solicitadas, assim como intervenções diante a indisciplina decrianças e adolescentes, pedidos de ingresso em instituições educativas,providências quanto a pessoas ‘alienadas’. Os agentes alocados nas váriasunidades espalhadas pela cidade exerciam atividades que os colocavam muitopróximos da população, em especial dos setores pobres.

Parte da documentação utilizada na pesquisa foi constituída dosregistros rotineiros produzidos pelos agentes da Polícia do Distrito Federal,então cidade do Rio de Janeiro, no período de 1915 até 1918, quandosubordinada ao Ministério da Justiça e Negócios do Interior. Atualmente, osdocumentos encontram-se incorporados à série IJ6 do acervo do ArquivoNacional

3, localizado na cidade do Rio de Janeiro. O forte tom burocrático,

expresso na repetição das formas e das palavras, registra as hierarquias das

3 Para maiores esclarecimentos sobre este tema, verificar artigo de Guimarães(2005), intituladoTrabalho: uma categoria chave no imaginário juvenil?, in: ABRAMO, 2005.

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relações, o que é próprio das instituições nas quais eram produzidos ecirculavam. Foram trabalhados documentos que tratam das solicitações dospais e responsáveis; dos trâmites hierárquicos dos pedidos por entre aquelesque estavam qualificados para prestar informações que subsidiavam decidirsobre os pedidos.

Vale anotar que, dentre os documentos, encontra-se aqueles queforam atendidos afirmativamente, ainda que, em alguns casos, a instituiçãode destino tenha sido alterada durante os trâmites internos entre os agentesda Polícia, aos quais cabiam os atributos da determinação final sobre paraqual das instituições as crianças e adolescentes seguiriam. Também foramenfocados, nas análises, os documentos que detalhavam as destinaçõesdaqueles que eram tomados quando nas ruas, a partir da atuação dos agentespoliciais. Em algumas dessas situações, encontram-se registros de solicitaçõesde pais e responsáveis que apresentavam argumentos para a mudança dadestinação institucional ou manifestavam desejo de retomar aos seus cuidadosaqueles que se encontravam sob guarda da polícia.

A educação da infância pobre em um Brasil quase moderno

No final do século XIX percebia-se um quadro nada agradávelpara quem sonhava com as cidades européias. Na capital do país, o Rio deJaneiro, quase metade da população inseria-se em atividades ilegais; maisda metade dos registros policiais declaravam embriaguez, vadiagem, jogo edesordem como os motivos das prisões. Com uma população marcadamentenegra e mestiça, com hábitos cotidianos fundados nas suas culturas de origem,o sentido civilizatório movia a ação repressora das elites.

Assim como o novo governo republicano tinha procurado suprimira arte da capoeira tanto quanto os capoeiristas no início da décadade 1890, a polícia também tentou proibir a celebração dos ritosreligiosos afro-católicos, como parte de um movimento maiorcontra os costumes de origem africana. Em Salvador e no Rio deJaneiro, a polícia atacava de surpresa os lugares onde as cerimônias“bárbaras e pagãs” eram realizadas, destruindo propriedades eferindo participantes. Até mais do que as celebrações “barbáricas”

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do carnaval, estes ritos religiosos não combinavam com a imagemnacional que a elite europeizada procurava projetar. (HAHNER,1993, p. 235-236).

A educação figurava como um dos mecanismos possíveis decontrole sobre os setores pobres. Juristas, políticos e médicos participavamde propostas de intervenção diante das condições sociais nas quais a infânciae adolescência pobres estavam inseridas; destacavam-se como intérpretesdo desejo de modernidade. Seduzidos pela possibilidade de intervenção,participavam das iniciativas voltadas para as situações tomadas comoproblema social, investiam na acumulação de atributos valorizados no mundoda política e concorriam para a obtenção de postos almejados no corpo deprofissionais do Estado.

Diversas concepções e ações direcionadas para a inserção dasociedade brasileira nos padrões de modernidade foram produzidas econformavam os debates sobre os aspectos sociais durante a passagem dosséculos. Foi o caso da medicina, respaldada em um discurso cientificista.

Tratava-se, antes de tudo, de uma verdadeira cruzada civilizatóriaa que se atiravam os eugenistas, estes arautos dos temposmodernos. Na sua missão, ocuparam todos os espaços possíveis:as academias médicas, as sociedades filantrópicas, as casaslegislativas, as escolas, as delegacias de polícia, os tribunais dejustiça, estabelecendo uma verdadeira rede de solidariedade entrediscursos, instituições e personagens, entre estes o médico, opedagogo, o jurista, os agentes do controle social repressivo, adona de casa, o pai preocupado com o destino de sua prole.(MARQUES, 1994, p. 15).

A dinâmica social e o anseio pela modernidade defrontavam aselites com a presença dos pobres e com a eficácia das formas de intervençãoimplementadas. A crescente visibilidade dos pobres nos cenários rural e urbanoconcorreu para a confluência das idéias que emolduraram o debate sobre osproblemas sociais: estava em jogo a inserção no mercado de trabalho deparcelas da população assim categorizada. A educação era representadacomo mecanismo eficiente de intervenção. O universo de crianças e

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adolescentes foi dividido; criavam-se demandas específicas. O atendimentosistemático aos pobres, consagrado pelas práticas da caridade religiosa,voltava-se para torná-los produtivos; a dependência à ordem social era oobjetivo pretendido (Cf. Van Balen, 1983)4 .

Para o período chamado de Primeira República, na bibliografia éregistrado um incremento dos fatos que são tomados sob o aspecto deexpressões da dinâmica de aprofundamento do capitalismo na sociedadebrasileira, com a ascensão da lógica do mercado à posição de orientadorada ordem social5 . Um recorte privilegiado para apreender as múltiplas facesdo que era pretendido como moderno é o enfoque sobre a constituição domercado de trabalho livre6 . Naquele período, a sociedade defrontava-secom um grande e crescente número de pessoas sem trabalho, que se dirigiampara os centros urbanos, especialmente para a capital da República7 , embusca de trabalho. Esta presença era percebida com receio pela elite e pelossetores médios da sociedade. Recorrentemente, foi condenado o estado emque se encontrava a cidade e foram apresentadas propostas de intervençãono ordenamento urbano, por diversas vezes concretizadas, visando a diminuir,ou mesmo varrer, a presença de parte dos setores amplamente classificadoscomo pobres: a abertura da Avenida Rio Branco, a retirada do morro doCastelo e de parte do morro de Santo Antônio, obras na região do Portoforam suas expressões mais reconhecidas; a própria expansão urbana coma conquista de novas áreas, com o aterro de áreas do Mangue; comoCopacabana, através do túnel; e áreas para além da Lagoa e de SãoCristovão, com a implantação dos bondes para a primeira e dos ramais de

4 Van Balen (1983) enfoca a situação da Europa, especialmente França e Inglaterra, para discutir aspossibilidades de controle social e disciplinamento da população. Tomo aspectos de sua obra porquesão relevantes para a discussão de questões que afetam à sociedade brasileira.5 Ainda que desde períodos anteriores, a constituição de um mercado capitalista fosse perseguida, porexemplo, com o aumento da presença inglesa ou com a reeuropeização do Brasil, no dizer de GilbertoFreyre em Casa Grande e Senzala.6 O debate sobre a inserção da infância no mercado de trabalho e as condições sociais que o conformaramdurante o período chamado de Primeira República é o objeto de estudo de Braga (1993).7 A cidade do Rio de Janeiro, então Capital da República, é enfatizada como recorte específico paraesta pesquisa.

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trens para a segunda8 .Trabalhando com um tipo específico de documento, produzido para

fins claramente delimitados, foi possível apreender informações quesubsidiaram o recompor das concepções sobre infância, sobre suas famíliase sobre a população pobre em geral, do papel da educação na situação aqual era demandada, bem como sobre qual educação caberia especificamentea tais segmentos da população. Foi possível, assim, o exercício de recomporparte do olhar da polícia sobre esta população e seu modo de vida. Adestinação dada às crianças e adolescentes pobres, bem como a própriaatuação da polícia incorriam em tal olhar.

A necessária crítica aos documentos pressupõe a suadesconstrução, analisando-os diante o jogo de forças sociais presentesquando da sua produção. Tomando tal perspectiva metodológica, buscou-se o discurso daqueles que, do interior de uma agência estatal específica,produziam formulações sobre infância, família, educação e sobre as possíveissoluções para a questão da ordem social.

O teor da solicitação abaixo transcrita é recorrente nos documentosconsultados. Dirigida ao Chefe de Polícia, a solicitante investe em qualificara situação na qual se encontra aquele para quem se voltam as atenções, nocaso, a criança para a qual se pretende o ingresso em alguma das unidadesinstitucionais vinculadas a Polícia do Distrito Federal. Entre aspectos pessoaise sociais, são apresentados elementos voltados para subsidiar o delineamentode um quadro situacional capaz de convencer sobre a pertinência do pedido.

A abaixo-assinada, madrinha do menor JMP, de 11 anos da idade,natural desta Capital, filho legítimo de AMP e MLMP, vem solicitara S. Excia. o recolhimento do referido menor à Escola 15 deNovembro.A requerente, confiando muito em vossa bondade, por se tratarde um menor quase ao abandono, pois que é órfão de mãe sendode invalidez o estado de seu pai, um velho proletário, pede e espera

8 Os aspectos citados foram abordados, entre outros, por Moura (1995), Benchimol (1992) e Pereira(1992). A cidade como tema tem sido abordada por autores de diversas áreas, expandindo a bibliografia.

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favorável.Pede Deferimento. Rio de Janeiro, 10 de abril de 1915. ZC9 .

Os investimentos na qualificação social dos solicitantes tambémeram realizados. No caso apresentado, uma terceira pessoa desempenhaesta função, assim como registra os atributos que a legitimam para a referidatarefa: ser madrinha, substituta reconhecida para o papel de mãe, habilitada,assim, a tomar para si as atribuições daquela. Em vários documentos, comono acima transcrito, os atributos de vínculos entre os solicitantes e as criançasque eram os centros dos pedidos, ainda que legalmente frágeis, passíveis dequestionamentos, eram socialmente legitimados pela definição das posiçõesdas quais o solicitante tomava tal iniciativa. Objetivando aportar elementosque configurem tal vínculo, o grupo familiar é apresentado, ainda quesucintamente, destacando elementos centrais para o delineamento da situaçãodos seus componentes como em condições de vulnerabilidade social, sendoa criança aquela sobre quem deve ser realizada a intervenção demandada.

Mediadores diversos são registrados na documentação. Além depais, irmãos, padrinhos e madrinhas ocuparem a posição de solicitantes, aatuação de terceiros também se voltava para realizar os procedimentosformais demandados, como redigir a solicitação em termos corriqueiros daburocracia, habilidade esta não dominada por vários daqueles que secolocavam na posição de solicitantes. Cabe destacar que os documentosapresentam uma lógica de exposição que articula o uso de termos burocráticoscom outros, próprios da oralidade popular, resultando em peças de forteexpressividade, concorrendo, assim, para efetivar o convencimento dodestinatário sobre a pertinência do pedido.

Snr. Coronel Damazo Proença Gomes, Dgº Secretário Geral daPolícia do Distrito FederalANMS, brasileira, casada com JLS, moradores no Rio das Pedras

9 Optei por apenas registrar as iniciais dos nomes daqueles que são citados nos documentos, uma vezque as informações existentes e que possibilitam a identidade social destas pessoas estão mantidas nastranscrições.

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no lugar denominado Bica dos Ingleses, vem mui respeitosamenteperante Vª Sª pedir a internação de um seu filho menor de dezanos de idade, na Escola de Agricultura, ou em outroestabelecimento de educação pertencente a essa digna Repartição,sendo isto um benefício prestado a uma mãe extremosa, em virtudedas suas condições não permitirem a sua educação bem como desua manutenção conforme passa a expor: o meu marido é umhomem doente e inutilizado para o trabalho em virtude de umenfraquecimento cerebral; tendo por isso sido internado váriasvezes em Hospitais, ficando por fim desenganado em sua cura; eeu também doente ainda mais lutando com a falta de recursos,certas privações, sem ter a quem recorrer, por isso confiada nocoração justiceiro e humanitário de Vossa Senhoriaencarecidamente peço socorrer-me neste momento minorandoos meus sofrimentos, agasalhando bem, não deixá-lo entregue aoabandono nem tão pouco vê-lo no futuro ser ele um viciado ou umcriminoso.A Suplicante roga a Deus pela saúde e felicidade de Vª Sª e detoda a família e espera ver aquele filho seguir o caminho da morale dos bons costumes, e venha ser ele mais tarde um cidadãohonesto, e que possa ser aproveitável os seus serviços em bemde sua pátria. Assim pede a Vª Sª ser atendida. Rio de Janeiro, 23de março de 1918.

Dentre as unidades institucionais subordinadas ao Ministério daJustiça e à Polícia do Distrito Federal, algumas eram destacadas pela elevadademanda que geravam; elas são valorizadas nos documentos, pela populaçãosolicitante, por propiciarem oportunidades de profissionalização, aliadas àoferta de componentes curriculares da instrução elementar. Esses atributosproduziam lugares diferenciados para tais unidades, não apenas entre aquelasque tinham a mesma vinculação institucional, como também no campo daassistência à infância pobre, porque possibilitavam um determinadodescolamento das categorias classificatórias utilizadas, ou mesmo indicandoum refinamento no seu emprego ao demandarem uma especificação paraalém daquelas de uso corriqueiro. É o caso, por exemplo, da EscolaPremunitória XV de Novembro: nos documentos que registram as demandaspela inserção nesta unidade, reafirma-se o seu perfil escolar pelo objetivo de

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propiciar ao candidato o ensino elementar. Ainda, subsidiando a justificativaao pedido, a possibilidade de profissionalização é valorizada e reconhecida,uma vez que ela é um componente efetivo da formação realizada pelainstituição.

Exmº Sr. Dr. Chefe de Polícia do Distrito Federal

ILC, mãe ilegítima do menor NN, de 10 anos incompletos de idade,não podendo continuar a mantê-lo nas aulas da escola pública emque se iniciou por motivo da idade e em nem uma outra por escassezde meios e desejando dar a seu filho não só a instrução necessáriapara o trato comum da vida bem como a aprendizagem de umofício útil, vem requerer respeitosamente a V. Ex. a mercê de queseja o dito menor internado na Escola Premunitória 15 deNovembro, a fim de continuar e aperfeiçoar-se no curso deinstrução primária, aprendendo simultânea ou sucessivamente aarte de encadernador e dourador ou na falta desta, qualquer outraque, a juízo da direção da Escola, melhor consulte os futurosinteresses, a idade e a vocação do aludido menor. Pededeferimento. Rio, 07 de janeiro de 1915 (assina) _______ pornão saber ler nem escrever10

As condições sociais de produção sob a lógica capitalistaapresentavam demandas voltadas para a adequação e controle da força detrabalho. O Estado tomava para si parte dessa tarefa. Por sua vez, asintervenções propostas e realizadas na época também podem ser inscritasentre os investimentos que concorriam para a entrada do Brasil no conjuntodas nações modernas e civilizadas.

Durante o período enfocado, o debate sobre a infância teve destacadaatenção: entre outras questões, discutiam-se as condições de sua inserção nomercado de trabalho, buscando definir aspectos legais. Tal debate era impostopela realidade expressiva de milhares de trabalhadores de tenra idade queeram encontrados em atividade. Definir as condições legais de trabalho para ainfância era também delimitar a situação daqueles que estavam fora do mercado10 Atendendo, possivelmente, aos pedidos de informações e para viabilizar a continuidade da trajetóriada criança no ensino regular, foi anexado a esta solicitação o “certificado de habilitação nas matériasda 2ª. série do curso elementar”. (documento datado de 30/11/1914 e no qual consta o carimbo daEscola Modelo Estácio de Sá).

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de trabalho.O debate, no período, abrangeu as discussões no legislativo sobre

propostas de leis garantindo instrução e limitando a exploração da força-de-trabalho, entre outros. Entre Estado e empresariado, a discussão enfocava apertinência da legislação e da ação fiscalizadora, alegando estes que asinfrações fora das fábricas continuariam, não sendo alvo da fiscalização.Tais discussões foram alimentadas com a elaboração de legislações queabordavam a definição de menor e do seu estatuto como trabalhador ounão. Em 1924, a legislação definia três categorias classificatórias para menoresnão inseridos no mercado de trabalho: abandonados, pervertidos edelinqüentes, determinando tipos de instituições onde eles seriam atendidos(instituições particulares de patronato, asilos e escola de reforma)11 . No anode 1927 foi promulgado o Código do Menor.

O tema da criminalidade foi incorporado ao debate sobre a situaçãoda infância na sociedade brasileira no início do século. A obra do juristaEvaristo de Moraes expressa a relevância dada ao tema e sua discussão àépoca. Publicada em 1916 e com 2a. edição datada de 1927, “Criminalidadeda Infância e da Adolescência” foi publicada pela Livraria Francisco Alves.O tema não era novo para o autor, que antes publicara, em 1902, “CriançasAbandonadas e Crianças Criminosas”12 .

O autor afirma que o aumento da criminalidade na infância e naadolescência tem sido registrado pelas estatísticas nos países em que talinstrumento é utilizado com freqüência e segurança, o que possibilita que oautor estabeleça diálogo, por meio de dados, com escritores e observadoresda situação de outros países.

Aspectos tratados como especificidades da nossa sociedadetambém estão incorporados à argumentação que busca explicar o aumento

11 Braga (1993, p. 111-114) aborda as diferenciações que a referida legislação definia.12 Outros temas foram abordados pelo autor, dentre os quais destaco: o enfoque sobre as relaçõestrabalhistas, as relações raciais entre brancos e negros e o processo de abolição da escravidão nasociedade brasileira, crimes passionais, além de diversos títulos que tomam casos jurídicos específicose o funcionamento do judiciário. Na relação de obras do autor, no período entre 1894 e 1924, 27títulos foram publicados; três estavam em preparação, e um, lançado neste período, contou com acolaboração de outro jurista.

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da criminalidade na infância e adolescência. Esta abordagem possibilita queo autor registre questões que eram discutidas no seu tempo, bem como asua própria opinião sobre outros problemas que afetavam a sociedadecontemporânea. Um exemplo é quando o autor escreve sobre as habitaçõespopulares e o agravamento das condições de precariedade com asmodificações urbanísticas que alteraram o traçado da cidade e desabrigaramgrande número de habitantes humildes.

As causas do aumento da criminalidade são distinguidas entrefatores individuais e fatores sociais. Os primeiros são a hereditariedade, oalcoolismo e a impulsividade da adolescência. Conquanto seja consideradoum dos fatores individuais, o alcoolismo é inscrito também como fator deordem social, responsável pela precoce delinqüência. Esta vertente daargumentação é construída a partir do tipo de vida que o grupo familiar domenor lhe possibilita, o qual resultaria em uma maior possibilidade de inserçãona criminalidade. “Os filhos dos alcoólicos são geralmente criados à solta,sem cuidados, quando não abandonados totalmente, tornando-se fáceis presasdo crime” (MORAES, 1927, p. 22).

O grupo familiar e as situações que afetavam a sua organizaçãosão destacados pelo autor, que os enfoca a partir do momento que repercutemsobre os filhos; diversos aspectos desse tema são correlacionados ao aumentoda criminalidade. A assistência à infância estava estruturada sobre a relaçãocom a família (sua precariedade ou falta): aos órfãos era possibilitado oacesso a alternativas de atendimento, já os menores inseridos no grupo familiarnão contariam com o atendimento assistencial. Tal situação concorreria paraestimular a criminalidade: à falta de alternativas de atendimento restariam asmás influências, especialmente das ruas.

A destruição completa da família pela morte, ocasionando aorfandade, não é o pior mal, conforme finamente observou HenriJuly. O órfão, bem como o exposto ou materialmente abandonado,tem mais probabilidade de obter o amparo social, de escapar àcorrupção das ruas, ao convívio dos viciosos e criminosos, àssolicitações perniciosas que não escasseiam nas grandes cidades.(Moraes, 1927, p. 29).

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Críticas freqüentes, produzidas no período, estavam relacionadasà mistura, em um mesmo estabelecimento, de menores e adultos quandopresos, independentemente do tipo de infração ou crime cometido. Comodesdobramento, tinha-se a falta de alternativa para a inserção de menoresque ficavam sob responsabilidade do governo. Menores encontradosabandonados, mendigando, que eram encaminhados à polícia parainvestigações ou simplesmente para aguardar a localização dos seusresponsáveis, ficavam junto aos presos comuns. Esta crítica incorporava afalta de atendimento visando à preservação da infância e da adolescência,retirando-as de situações de risco e abandono. A rua era concebida comolugar de risco por excelência, como atualmente ainda o é. A contraposiçãoda casa, da restrição ao grupo familiar com a permanência e o contatoconstante com a rua é remarcada no debate sobre a temática.

Com a pretensão de abarcar a diversidade de situações encontradas,o enfoque sobre a situação dos grupos familiares incorporou a classificaçãodos pais em negligentes, incapazes e indignos. Os negligentes são osexcessivamente tolerantes, apáticos, bondosos para com seus filhos,estimulando uma formação na qual o menor não encontra limites. Incapazessão os vitimados pelas dificuldades econômicas, que deixam os filhos semvigilância constante ou entregues a si mesmo enquanto ocupam-se em seusafazeres. Já os pais indignos são classificados como aqueles que estimulamos menores aos vícios e aos crimes, alguns passando a explorar a inserçãodos filhos em tais situações.

Dentre os ‘remédios’ prescritos para combater a ‘patologia social’que é a criminalidade, alguns foram propostos desde o século anterior, comoa obrigatoriedade da instrução primária e as prisões correcionais. A instruçãofoi uma idéia muito veiculada, mas que não demonstrou ser capaz de produziros efeitos alardeados; grande parte dessa desilusão deveu-se à constataçãodo aumento da criminalidade e à presença constante de menores com algumainserção na escola e que cometiam crimes e infrações. “Efetivamente, portoda parte se viu que os progressos na instrução literária não obstavam aosprogressos da criminalidade” (Moraes, 1927, p.44). Ao fracasso da escola

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estariam articulados os problemas da desorganização familiar: a escola nãopoderia arcar, sozinha, com a formação dos menores e sua parte ficariacomprometida quando ela não fosse um prolongamento do que teria sidoiniciado no grupo familiar e caso não contasse com o apoio deste.

A dissolução da família e a anarquisação da sociedade (a braçoscom a prolongada crise do regime capitalistico) tornamimprofícuos, até certo ponto, os sacrifícios com a instrução literáriada infância pobre. A par da instrução seria preciso dar, também,educação, principiada no seio da família, continuada na escola(cujos moldes têm de ser modificados) e corroboradaconstantemente por exemplos públicos de honestidade pessoal egovernamental [...].Demais, não basta, para salvação da infância em perigo, abrirescolas de ensino literário; é necessário, é imprescindível, organizaro ensino profissional. (MORAES, 1927, p. 45-46).

O autor critica a influência da mecanização industrial sobre aaprendizagem profissional: “de maneira que aos capitalistas bem poucointeressa a instrução profissional, o método de aquisição regular e gradualdo preparo técnico” (Moraes, 1927, p. 47). O que passou a ser esperadodo trabalhador é que ele juntasse apenas sua força àquela que é produzidapela máquina. Segundo o autor, tal situação encontrava amparo nas condiçõesem que se encontravam as famílias proletárias que, precisando incorporardesde logo seus membros mais novos ao trabalho remunerado, não poderiamarcar com a prolongação do tempo dedicado à aprendizagem profissional;suas condições demandavam rendimentos imediatos.

O quadro descrito pelo autor é considerado como aquele queconcorre para modificar a aprendizagem, desqualificando e mesmo nãopreparando satisfatoriamente os futuros operários. Ela afirma também que asituação apontada afeta igualmente as meninas, sendo que a alternativavislumbrada pelo crescente número delas tem sido a precoce prostituição.

O autor baseia-se em escritores estrangeiros que refletiam sobre asituação dos próprios países, destacando os franceses. As passagenstranscritas e as argumentações apresentadas por aqueles, e que são

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incorporadas ao texto em análise, reafirmam a França como espelhopretendido para o Brasil; a celebração da tradição intelectual voltada paraaquele país, bem como a aproximação das duas sociedades à medida queambas sofrem problemas sociais próximos. Com isto, o autor, ao tomartrechos que se referem à situação da sociedade francesa, incorpora-os aoseu texto, deixando que eles sejam ou corram o risco de serem pensadoscomo caso brasileiro. Ganha-se em argumento de autoridade, em compararsociedade diferentes e em satisfazer o imaginário da elite ocupada em debatero grau de civilidade da sociedade brasileira.

E é, precisamente, o aumento da criminalidade juvenil que motivaos clamores dos que pediam e pedem, insistentemente, oaprendizado e as escolas profissionais. Em 1908, o deputadofrancês Clementel [...] analisava a estatística da criminalidade demenores de 16 a 18 anos, e, alarmado com a elevação dosalgarismos, proclamava: ‘a regeneração do aprendizado não é, nonosso país, simples problema industrial e comercial, mas, sim,questão moral da mais alta gravidade’.Entre nós, no Brasil, esta gravidade veio se acentuandocrescentemente.[...]Nesta embelezada capital da República, nem a décima parte dosfilhos de operários recebe a educação profissional de que tantonecessita para resistir honestamente na luta pela vida. (MORAES,1927, p. 49-50).

Provisórias conclusões

A inserção das unidades institucionais na órbita administrativa daPolícia levava tanto o solicitante quanto a criança a ingressarem em um universoordenado pelas categorias classificatórias empregadas pelos agentes da lei.Recorrentemente, a categoria menor estruturava as representações e açõesdesses agentes. Destaco a proximidade ou mesmo as trocas entre os universosdos policiais e dos juristas das noções que eram correntes nos discursosdestes no início do século XX e que enfocavam os filhos das famílias pobres.Em ambos, a responsabilização de pais e tutores estava presente,desqualificando-os como capazes de cuidar moralmente das crianças e

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apontando para ações concretas que os penalizariam ao suspender o pátriopoder, estendendo-se também aos pequenos ao retirá-los do convívio familiar,concorrendo para o fortalecimento das noções de intervenção do Estadonesse campo (Cf. Falcão, s/d).

No processo de análise, percebe-se que a produção desse discursoarticulava-se, não anterior nem independentemente, às práticas dos agentesda lei (policiais e juristas). Tais discursos, em si dinâmicos, se produziam emrelação a uma sociedade em movimento, ancorados pela pretensão deordená-la. A efervescência social que caracterizou a capital da Repúblicanas primeiras décadas do século XX foi o motivo alegado para a intensa econstante atuação dos agentes da lei, atingindo especialmente a populaçãopobre.

A infância foi um dos alvos dos agentes da ordem social. Sob aclassificação de “menores”, categoria recorrente nas suas representações eações, abrigavam-se perfis sociais diferenciados. Para a definição de umuniverso de significados para “menores”, foi demandado o olhar dos agentesda lei para as famílias, em um exercício de fins disciplinares, bem como paraa educação, o que pressupôs a conceituação de ambas.

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INDISCIPLINA ESCOLAR: UMA DISCUSSÃO NECESSÁRIAENTRE ESCOLA, PAIS E PROFESSORES1

Egeslaine de Nez2

RESUMO: A indisciplina tem sido motivo de muitos encontros e debates dentrodo espaço escolar na busca de soluções, isto porque, tornou-se a principalcausa de reclamações e desgastes dos professores em todos os níveis de ensino.Porém, esta situação desconcertante não é recente, é tão antiga quanto àexistência da própria escola. Este artigo tem como objetivo refletir sobre estegrande problema emergente nas escolas, tanto em âmbito privado como público.A necessidade é preemente no sentido de aprofundar os conhecimentos sobreas causas da indisciplina e, sobretudo, conhecer as possíveis raízes dosproblemas daqueles que são rotulados pelos professores de indisciplinados. Naescola, garantidamente, o silêncio não é sinônimo de disciplina ou garantia deaprendizagem, assim como outras formas de distribuição espacial das carteirasque torne o ambiente mais acolhedor e propício ao desenvolvimento doconhecimento às vezes, também, não contribuem para o sucesso do processode ensino. O que se pode ainda considerar é que, historicamente, o sistemaeducacional mudou e a família também. Neste sentido, é fundamental que aescola estabeleça regras e regulamentos para que o trabalho educativo sejarealizado de forma organizada e coerente.

PALAVRAS-CHAVE: Indisciplina; Professores; Pais e Escola;Comportamentos.

ABSTRACT: The indiscipline has been cause for many meetings and discussionswithin the school, in search of solutions, because it has become the main causeof complaints and damage of teachers at all levels of education. But thisdisconcerting is not recent, is as old as the existence of the school itself. Thisarticle aims to reflect on this big problem emerging in the schools, both inprivate and in public context. The need is preemente to deepen the knowledgeof the causes of indiscipline and, in particular, knowing the possible roots of the

1 Artigo produzido a partir das discussões realizadas na disciplina de Didática, no curso de Licenciatura emGeografia, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Campus de Francisco Beltrão.2 Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, graduada em Pedagogia eEspecialista em Fundamentos da Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE,Professora Titular da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT. E-mail: [email protected]

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problems of those who are labeled by teachers of undisciplined. At school,guaranteed silence is not synonymous with discipline or guarantee of learning,as well as other forms of spatial distribution of the portfolios that makes theenvironment more welcoming and conducive to the development of knowledge,one sometimes does not contribute to the success of the process of teaching.What can you even consider is that historically the educational system haschanged and the family also. Accordingly, it is essential that the school establishrules and regulations for the educational work is carried out in an organizedway and consistent.

KEY WORDS: Indiscipline; Teachers; Parents and School; Behavior.

1. Introdução

Quando inicialmente começa-se uma fala ou escrita sobre educaçãoou sobre o sistema educacional, acaba-se pensando em políticas públicaseducacionais, metodologias e outros fatores que se encontram interligados aessa realidade, todos preocupados com métodos, práticas e técnicas ealgumas vezes, esquecendo as personagens principais desta situação quesão o professor e o aluno.

A finalidade deste texto é encontrar, no meio deste emaranhado deinteresses e desinteresses que é o tecido da educação, o papel fundamentalque tem a relação cotidiana do professor com seu aluno e o quê esta relaçãoproduz na construção dos saberes escolares. Assim, conceitua-se indisciplinaconstruindo uma breve reflexão sobre a grande problemática na qual o sistemaescolar vive.

No atual momento em que a sociedade se encontra, a preocupaçãocom a educação a cada dia que passa aumenta significativamente. Isto porqueexistem várias idéias, sobre como tentar resolver os problemas existentes nocotidiano escolar. Porém, o objetivo da educação nem sempre é alcançado,ou seja, a qualidade do ensino nem sempre é conseguida e a prioridade detodas as ações não são realizadas no espaço da escola.

Todo o processo da educação se baseia em vários aspectos, taiscomo político, cultural e epistemológico, o urgente é a necessidade de se

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avançar, cada vez mais, em estudos e análises para o aprimoramento dessesprocessos na busca de um ensino diferente do que existe hoje.

Destaca-se, porém, que as tecnologias dominam todas as relaçõessociais de um modo arbitrário e as relações humanas tornam-se complexase até por vezes duvidosas, deixando algo sempre a desejar. Na sociedadecontemporânea aparecem situações onde os problemas sociais causadospela busca desenfreada de poder e as atitudes indisciplinadas dos indivíduosderivam destas situações, manifestando contradições e provocando desordensem todos os espaços, inclusive no espaço escolar.

Neste sentido, a educação sofre modificações no que se refere àspolíticas, currículos, teorias e tecnologias utilizadas. Na escola, muito tem sefalado em autonomia, competências, cidadania e construção de uma educaçãoque leve o aluno a desenvolver um senso crítico, de forma a ser um agenteativo capaz de transformar suas relações sociais, porém em função daglobalização e do neoliberalismo reinantes na sociedade, o que resulta sãoatitudes bem diferentes das indicadas pelos professores e pais.

É aqui que se ancoram as preocupações com a disciplina escolar, éexatamente a partir destas colocações que se quer compreender quais osmotivos da indisciplina escolar, buscando enfatizar e refletir sobre a disciplinaenquanto construção do conhecimento ou controle de comportamento naescola.

Mesmo este sendo um assunto que muito preocupa professoresem geral, ainda, assim, a discussão é superficial, falta clareza para definir ostermos, por ser de uma enorme complexidade e também pela ausência deregistros e pesquisas, que poderiam servir de suporte para um melhorentendimento desta temática.

2. Indisciplina escolar: esclarecendo e conceituando

Historicamente, muitas correntes surgiram na educação, todasatendendo a um dado momento histórico e a determinados interessesemergentes na sociedade. Inicialmente era a abordagem tradicional, na qual

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o aluno era um mero expectador do ensino, caminhou-se pela abordagemcomportamentalista, onde o meio oferecia os estímulos e o indivíduo, asrelações. A etapa seguinte foi a abordagem humanista, nesta tendência oaluno começou a ter valor e foi colocado no centro do processo, depois, jána abordagem cognitivista, o indivíduo passou a ser compreendido em eternaconstrução e, por fim, chega-se à abordagem sócio-cultural, que parte doprincípio que o aluno carrega consigo uma bagagem de conhecimentos eemoções e deve-se entender isso para se viabilizar a aprendizagem(MIZUKAMI, 1986).

Mas, apesar de todas estas tendências, os problemas com adisciplina se perpetuam e a escola também continua sem saber lidar comeles. Atribui-se à indisciplina dos alunos quase tão somente a fatores externosa escola, como se não tivesse relação com sua maneira de ensinar e comoutros elementos macrossociais que acabam interferindo nas ações diáriasdo espaço escolar.

Na abordagem tradicional, quando o aluno só ouvia e não podiamanifestar suas opiniões e nem sua criatividade, onde todos deveriam seguirum determinado padrão de comportamento (MIZUKAMI, 1986), talvez aindisciplina ocorresse com menos freqüência, porém houve muitos traumasocasionados a partir dessas ações e dos castigos físicos presentes a essaépoca histórica. O tempo passou, as novas abordagens foram surgindo emesmo com tudo isso, a indisciplina toma conta da escola e a instituição nãoestá dando conta desse grave problema.

Ao refletir sobre o assunto, pode-se perceber que mesmopraticando as novas tendências, em que o aluno participa da construção doconhecimento e sua criatividade, encontra um maior espaço, ainda, se querenquadrá-lo e se almeja uma sala com alunos que sejam homogêneos e queuma mesma atividade deve ser desenvolvida, com aproveitamento igual portodos.

Porém, feliz ou infelizmente isso não ocorre, pois os alunos sãodiferentes e quando se tem alunos que se manifestam de forma diferente,taxam-se os mesmos de indisciplinados, pois não se enquadram nas “normas

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e regras”3 existentes na instituição escolar.Quer-se apenas, que o aluno siga um determinado comportamento,

para isso organiza-se a sala de aula, destacando os professores como donosdo saber. Fala-se muitas vezes em formar alunos críticos, porém não se sabelidar com o aluno quando o mesmo tenta se opor às possíveis regras ounormas existentes na escola e proclamadas pelos professores e que eles nãoentendem.

Muitas instituições educacionais definem o aluno disciplinado comoaquele que se sujeita, aceita sem fazer objeção, é passivo quanto ao conjuntode regras pré-estabelecidas, tem comprometimento, é organizado, teminteresse, enfim, é educado. Desta forma, aquele que se apresenta com umcomportamento contrário, consecutivamente é desobediente e indisciplinado(KULLOK, 2002).

Esta forma de identificação do aluno é bastante aceito na sociedade,já que quando o aluno se manifesta com inquietação, questionamentos,conversas ou desatenção, entende-se isso como atitudes indisciplinares. Oque se quer é que os alunos tenham somente um tipo de atitude referente aostrabalhos escolares e que, principalmente, não sejam desordeiros e muitomenos bagunceiros.

Então pode-se dizer que o ensino está baseado em critérios quefixam comportamentos logo que o aluno entra na escola, e este deverá exibí-los ao longo dos períodos escolares, esses comportamentos são pré-determinados.

Neste sentido, na busca de um respaldo teórico, é necessárioesclarecer que a palavra indisciplina pode ter diferentes sentidos quedependerão das vivências de cada sujeito e do contexto em que foremaplicados.

Assim, ela pode ser entendida como a:Incapacidade do aluno (ou de um grupo) em se ajustar às normaspadrões de comportamento esperados. A disciplina parece ser

3 Exemplo do entendimento dessas normas e regras é a necessidade de silêncio para algumas aulas(expositivas) ou para aulas de cálculo, em algumas escolas encaminhar-se a salas de aulas em “filas”,entre muitas outras situações escolares.

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vista como obediência cega a um conjunto de prescrições e,principalmente, como um pré-requisito para o bom aproveitamentodo que é oferecido na escola [...] qualquer manifestação deinquietação, questionamento, discordância, conversa oudesatenção por parte do aluno é entendida como indisciplina [...](REGO, 1996, p. 85).

Para muitos educadores, disciplinado é, então, o aluno que ficaquieto, presta atenção na aula e apenas faz todos os exercícios solicitados,pois muitos esperam encontrar na sala de aula um ambiente tranqüilo, nemsempre primando pela interação necessária para que exista a construção doconhecimento e formação do aluno crítico, reflexivo, consciente e participativono meio em que vive.

Rego (1996) ainda induz a reflexão de que “a disciplina, ao invésde ser compreendia como um pré-requisito para o aproveitamento escolar,é encarada como resultado (ainda que não exclusivo) da prática educativarealizada na escola” (p. 87). Assim, se o professor tiver uma prática educativaque motive e conquiste o aluno a participar das atividades, de forma prazerosae não como uma obrigação imposta, o resultado será um ambiente propícioà construção do conhecimento.

Há ainda que se destacar que a disciplina, algumas vezes, é umaprática necessária diante de toda e qualquer situação, até mesmo nas condutasmais comuns vividas cotidianamente, se a disciplina não se fizer presente aatividade muitas vezes estará fadada ao insucesso.

Desta forma, a indisciplina é um fenômeno que decorre dasociedade e de seu sistema de ensino, mas é um fenômeno essencialmenteescolar tão antigo como a própria escola e tão inevitável quanto ela. Porém,tem a mesma profundidade no sistema familiar, no relacionamento dos paiscom seus filhos, na educação recebida, nas questões de limites, enfim, todaa sociedade tem participação nesta questão (AMARAL, 2000).

O indivíduo para ser disciplinado sempre precisou acatar regrasque lhe são estabelecidas, pois para alguns, isso significa ser educado e seruma pessoa responsável, capaz de ser atuante na sociedade contemporânea.

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Múltiplas abordagens4 sobre a disciplina a apontam como oresultado de todo um trabalho educativo de formação, ou seja, não bastaque a criança se comporte apenas em um ambiente que possui disciplinacomo regra obrigatória, a necessidade de se colocar limites precisa sercontínua, pois essa sistematização é indispensável para aprendizagem, nãosó escolar.

A cobrança maior ocorre na escola por ser este o espaço em quese soma uma grande coletividade de indivíduos que necessitam ser “lapidados”durante sua existência, no entanto é justamente no período que coincidecom o período de formação escolar, que começa a ser cobrado do indivíduouma postura mais coerente e responsável diante dos segmentos sociais.

Ghiggi (et all, 1993, p. 8) destaca que:

A disciplina, então não terá finalidades em si mesma, como nãoraras vezes constata-se. Mas será “condição indispensável” paraconduzir uma prática pedagógica comprometida [...] com oestabelecimento de uma sociedade igualitária (grifo do autor).

A instituição escolar sempre considerou a indisciplina, como o nãocumprimento de normas estabelecidas, como a responsável por grande partedos problemas ocorridos nestes espaços. Mas, hoje em dia, têm seevidenciado, outras questões importantes a serem consideradas, tais comoas situações familiares e sociais.

Isto porque não é raro ouvir depoimentos de mães, dizendo quenão entendem a atitude rebelde de seu filho, pois em casa sempre tiverammuita disciplina, e vice-versa. Para entender essas atitudes, deve-se analisara criança e observar seu comportamento em determinadas situações, poisos mesmos podem ou não se identificar com a professora ou ter outro motivopara esta atitude; pode não entender a matéria ou até mesmo estar enfrentandoalgum problema familiar do tipo: o pai bebe, a mãe apanha; ou lhe faltacondições financeiras para a família comprar comida, roupas entre outras

4 Ver mais sobre essas abordagens a partir dos autores: Ghiggi (1993), Rego (1996), Kullok (2002),Vasconcellos (1993) entre outros.

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situações enfrentadas pelas crianças.Os limites e a organização sistematizada das ações são resultados

de uma metodologia disciplinar desenvolvida pelos atores envolvidos nasituação, indiferente da ordem ou modalidade em que se encontra.

Geralmente, quando se comenta o termo disciplina ou indisciplina,lembra-se do espaço escolar, pois parece que somente na escola é que sedeve ser disciplinado ou que na escola é que se aprende a ser “disciplinado”,no entanto, essa é apenas uma “regra social”, onde você deve “estabelecerum determinado comportamento para cada ocasião”.

A escola, é claro, depara-se com esse fato de maneira maisexpressiva, pois a criança e/ou o jovem passa grande parte do seu tempotendo que conviver socialmente com pessoas de hábitos, atitudes e culturastotalmente diferentes dos seus, provocando assim, conflitos psicológicos,muitas vezes, aflorados em seu comportamento.

3. Causas da indisciplina escolar

A disciplina é temática geradora de discussões e embates entrevários pesquisadores da educação, pois esse comportamento em sala deaula5 é fundamental e exerce grande influência no processo de ensinoaprendizagem.

Neste sentido, um dos grandes indicativos a serem avaliados é quea disciplina pode estar diretamente ligada à metodologia desenvolvida peloeducador, é a situação existente ou não dentro de uma sala de aula, contudoé um fato necessário para que o trabalho possa existir e fluir adequadamente(VEIGA, 1991).

Muitas vezes, o silêncio não é sinônimo de disciplina, nem a bagunçasinal de aprendizagem, porém, há que se concordar, alunos abertos aodiálogo, estão mais sujeitos ao entendimento e à disciplina do que aquelesque são reprimidos em seus sentimentos e expressões.

Na mesma caminhada epistemológica Libâneo (1994) destaca que

5 Entendida como centro da educação escolar.

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a “disciplina da classe está diretamente ligada ao estilo da prática docente,ou seja, à autoridade profissional, moral e técnica do professor. Quantomaior a autoridade do professor, mais os alunos dão valor as suas exigências”(p. 252).

O mesmo autor enfatiza que:

A motivação dos alunos para a aprendizagem, através deconteúdos significativos e compreensíveis para eles, assim comode métodos adequados, é fator preponderante na atitude deconcentração e atenção dos alunos. Se estes estiverem envolvidosnas tarefas, diminuirão as oportunidades de distração e deindisciplina (LIBÂNEO, 1994, p. 253).

Como decorrência, os padrões de disciplina que pautam a educaçãodas crianças e jovens, assim como os critérios adotados para identificar umcomportamento indisciplinado, não somente se transformam ao longo dotempo como também se diferenciam no interior das dinâmicas sociais. Poreste ângulo, vê-se que a disciplina e a indisciplina são integrantes de umprocesso dinâmico, que acompanha as mudanças sociais no tempo e noespaço.

De acordo com Rego (1996), as idéias sobre indisciplina divergemem virtude “da multiplicidade de interpretações que o tema encerra” (p. 23).Diz a autora que “o próprio conceito de indisciplina, como toda criaçãocultural, não é estático, uniforme, nem tampouco universal. Ele se relacionacom o conjunto de valores e expectativas que variam ao longo da história[...]” (p. 24).

A questão da indisciplina não ocorre mediante a um fator isolado,mas sim a um conjunto de instâncias (jurisdições), entre elas, pode-sedestacar: a família, a escola e a sociedade, todos têm parcela de contribuiçãopara que isto ocorra, apesar de que é na escola que os reflexos se evidenciammais profundamente.

Percebe-se assim, que a questão da indisciplina que ocorre emsala de aula, não é resultado de um único elemento, mas sim de um conjunto

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de interações que mescla desde fatores “natos” dos indivíduos, até a influênciada educação familiar, do meio social em que vive e destacando o papel daescola em atender aos interesses e necessidades dos alunos.

A indisciplina pode ter suas causas dentro ou fora da escola, umavez que os meios de comunicação expressam a todo momento a violênciasocial e até familiar. Então a escola deve mudar a forma de tratamento dosalunos indisciplinados e deve, sobretudo, cultivar no aluno expectativas quantoa seu potencial fazendo com que assumam responsabilidades junto à escola.

Assim, para Vasconcellos (1993):

As causas da indisciplina podem ser encontradas em cinco grandesníveis: família, sociedade, escola, professor e aluno. Quando sãoapontados esses níveis é mais para uma orientação da integraçãopara não se perder de vista os diferentes fatores de interferência,no entanto, é preciso tomar cuidado com uma certa tendência dever estes aspectos isoladamente um do outro; na realidade estãoprofundamente entrelaçados (p. 19).

O autor entende que o problema da indisciplina tem raízes profundase complexas, é resultado de um conjunto de fatores que vão interferindo navida do indivíduo. Não dá para culpar um ou outro elemento somente, poistodos estão interligados.

É de suma importância, ainda, se enfatizar que a disciplina não sejaconfundida com o autoritarismo, pois a escola deve fugir da conduta em queFreire (1987) denomina de ranço autoritário. Quando se diz um não, sejapara um filho ou para um educando é necessário deixar claro para ele ajustificativa dessa atitude e essa resposta negativa deve ser muito bemanalisada pelo disciplinador, pois dizer não, nem sempre é a melhor maneirade discipliná-lo.

A posição do educador ou dos pais também precisa ser revistaquando se fizer necessário, assumir quando estiver equivocado, pois essaatitude também contribui para que a criança perceba (que o que está emquestão é) a busca de uma conduta que contribua o máximo para a formação

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dela e para o seu bom convívio com o grupo em que se relaciona.Neste sentido, indica-se que o limite na questão disciplinar merece

dois destaques: com relação à ausência absoluta e do desrespeito às regrase também sobre a permissividade expressiva dos pais.

Os limites necessários à formação de uma criança devem acontecercom a intenção de educá-la e não apenas puni-la. E, para isso, é preciso queos pais e educadores sejam justos, firmes e ao mesmo tempo amorosos. Éimportantíssimo que o educando compreenda os motivos pelos quais estásendo repreendido, tanto pelos pais quanto pelos professores.

Diante disso, indica-se que a falta de limites é um dos fatores queinfluencia a aprendizagem, pois para que ela aconteça é necessário que oaluno esteja preparado, organizado, assim, é necessário uma certa dose dedisciplina, sendo o educando consciente de seus direitos e deveres. Énecessário, ainda, não confundir o respeito aos sentimentos e desejos dacriança com a falta de limites.

Trata-se de aprender a equilibrar a vontade própria com a do outro,ou seja, aprender a se relacionar, saber ceder quando necessário e reconhecerquando a vontade do outro é mais pertinente. E, no momento em que acriança não tem limites, ela também não sabe ouvir outras opiniões, considera-se o único inteligente, o único sabedor de tudo, trazendo influências negativasem seu aprendizado, pois sofre com falta de atenção sendo uma das causasda indisciplina.

Limites é uma questão de educação, que deveria e poderia ter sidoconstruída pela família. A escola pode esclarecer, intermediar e orientar ospais, conscientizar as crianças da necessidade de se existirem limites,educação e respeito nas atitudes, para não desrespeitar os outros indivíduos.

Os professores, ainda assim, precisam compreender seus alunos,colocarem-se no lugar deles, pois eles têm a função de estabelecer os limitesda realidade, das obrigações e das normas, enquanto pessoa adulta nouniverso da escola, mas não podem deixar de ter bom humor, educação,respeito e uma forma peculiar de conquistar seus alunos de maneira queformem uma união com respeito e responsabilidade.

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Cabe ainda destacar que para estabelecer limites em sala de aula(ou na escola), o educador precisa valer-se das regras, que visam contribuirpara a organização do ambiente de trabalho, promover a justiça, fomentar aresponsabilidade por aquilo que ocorre em sala de aula e o comprometimentode todos os alunos com os procedimentos e decisões referentes ao espaçoescolar.

Segundo Ghiggi (et all, 1993) exigir disciplina de educandos quena escola são indisciplinados, impondo-lhes a idéia de que devem sersubalternos a pessoas e/ou a instituições, enfim de qualquer segmento que jáse encontra estruturado e que mantém a sociedade como atualmente seapresenta é, no mínimo, um ato irresponsável por parte do disciplinador.

Portanto, também é papel do educador fazer uso das múltiplasinteligências das quais o ser humano é possuidor. Diante de uma práticaindisciplinada, ao se chamar a atenção, deve-se procurar não causar danospsicológicos ao indivíduo, para que esse não se sinta diminuído e/ou humilhadoperante seus colegas.

Desta forma, de uma maneira geral, a disciplina é encarada comouma junção de normas e regras que devem ser respeitadas para o bomrelacionamento e para que a aprendizagem efetivamente ocorra.

Dentro desse ponto de vista, é fundamental que o professorcompreenda que através da organização das atividades, juntamente com ametodologia de ensino, bem como com seu posicionamento teórico a respeitoda temática, ele poderá obter atitudes “disciplinadas” dos seus alunos. Tambémé importante esclarecer que esse empenho dos professores é essencial, masele não é o único responsável por isso.

Há situações em que apenas a postura do professor não resolve assituações vivenciadas em sala de aula, há a composição neste tripé da famíliae da sociedade também. Em alguns momentos se fará necessária a intervençãode profissionais especializados para a resolução dessas dificuldades.

Portanto, os termos disciplina e indisciplina devem ser maisestudados e entendidos por todos os professores, considerando os fatoresque os cercam, para que futuramente não sejam vistos como uma questão

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indecifrável, mas sim como um caminho para novas formas de se trabalharcom o aluno.

Rego (1996), ainda afirma que:

[...] a escola e os educadores precisam aprender adequar suasexigências às possibilidades e necessidades dos alunos (como,por exemplo, quanto a sua capacidade de concentração,possibilidades motoras, compreensão de determinadas matérias,etc). Os alunos, por sua vez, mais do que obedecer e se conformarcom as regras estabelecidas, devido ao receio de punições eameaças [...], precisam ter a oportunidade de conhecer (e atédiscutir) as intenções que as originaram assim como asconseqüências caso sejam infringidas [...], o papel mediador doprofessor é de fundamental importância [...] (p. 99).

Nesse sentido, surge uma responsabilidade muito grande por partedo educador que deve usar suas habilidades para compreender o processopelo qual se almeja a disciplina em sala de aula e também até que ponto istoserá útil para ele, lembrando que o trabalho escolar é resultado de umaprática coletiva que envolve educando e educador (FREIRE, 2001).

O conceito de disciplina nessa perspectiva de reconstruçãopedagógica se relaciona com a organização do trabalho escolar, seus objetivose suas estratégias. Assim, a disciplina será uma conseqüência do engajamentoem trabalhos de aprendizagem significativos e diversificados segundo ointeresse do aluno (FREIRE, 2001).

Esclarecendo ainda as variáveis propostas por Vasconcellos (1993)há outros fatores que podem contribuir para a indisciplina dos educandos,entre eles estão a falta de interesse ou possibilidade dos pais em conhecer eacompanhar a vida escolar dos filhos e os ambientes econômicosculturalmente desfavorecidos.

É necessário esclarecer que os educandos possuem característicasindividuais, como rebeldia, passividade, intransigência, capacidade ouincapacidade de cooperação, agressividade, entre outros. Para Rego(1996),

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As características do funcionamento psicológico assim como ocomportamento do ser humano são construídas ao longo de umprocesso de interação com seu meio social, que possibilita aapropriação da cultura elaborada pelas gerações precedentes.“Cada indivíduo aprende a ser homem. O que a natureza lhe dáquando nasce não basta para viver em sociedade é lhe precisoadquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimentohistórico da sociedade humana” (p. 67, grifo do autor).

As pessoas do grupo social muito influenciam no comportamentodos indivíduos, quer dizer, o desenvolvimento individual é mediado pelo outro,que delimita e atribui significados à realidade. Ao internalizar as experiênciasfornecidas por outras pessoas as crianças ou adolescentes reconstroemindividualmente os modos de ação realizados externamente e aprendem aorganizar os próprios processos mentais, a controlar e dirigir seucomportamento e agir no mundo.

Dessa maneira, o comportamento indisciplinado de um indivíduodependerá de sua história educativa que terá sempre relações com ascaracterísticas do grupo social e da época histórica em que se insere, emoutras palavras, o comportamento (in)disciplinado também pode seraprendido. Sendo a escola e a família as principais agências educativas, pode-se dizer que o problema da (in)disciplina não deve ser encarado como alheiaa essas instâncias.

As atitudes dos pais e sua prática de criação e educação acabaminterferindo no desenvolvimento individual e influenciam no comportamentoda criança na escola. Os pais podem assumir posturas autoritárias, permissivasou democráticas.

Pais autoritários são bastante rígidos e exigem muito dos filhos,valorizam a obediência e o cumprimento de regras, por eles estabelecidassem dar às crianças as razões dessas imposições, ainda fazem uso de ameaçase, por vezes, até de castigos físicos. Pais permissivos são tolerantes até demaise possuem dificuldades em estabelecer regras, limites ou controle sobre seusfilhos. Deixam os mesmos bastante à vontade e não exigem que eles tenhamresponsabilidades. Já os pais democráticos, obtêm resultados mais positivos,

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pois respeitam as necessidades, capacidades e sentimentos dos seus filhos.Também são bastante comunicativos, afetuosos e sabem como exigiramadurecimento e independência deles, sem impor-lhes castigos, conseguemestabelecer limites e regras, explicando sempre os motivos e compreendendoo ponto de vista dos filhos (VASCONCELLOS, 1993).

É muito comum também a indisciplina ser associada à revolta,pobreza, violência, hoje, muito presentes na sociedade. Atribuem-na, também,à influência dos meios de comunicação, principalmente à televisão, pois retratauma sociedade injusta, opressora e violenta, sendo a escola e,consecutivamente, os alunos as vítimas dessa situação.

Como se pode perceber, os enfoques sobre a indisciplina sãomúltiplos e variados. A psicologia contemporânea tende a admitir que oindivíduo e a sociedade são complexos e estão em processo de transformaçãoe, por isso, o comportamento humano também é variável (MASETTO, 1992).

Assim, o professor não é o único responsável pela vivência desituações de disciplina ou indisciplina, a sociedade e os pais também sãochamados a sua responsabilidade perante essa temática. O problema daindisciplina não deve ser alheio nem à família e nem tão pouco à escola, poisambas são as principais agências educativas e, por isso mesmo, devem atuarjuntas, planejando e discutindo as melhores formas de agir.

Há ainda muitos outros fatores que podem ser considerados comocondicionantes de atos indisciplinados no espaço escolar, tais como: a crisede valores, o conflito de gerações, liberalização excessiva no que diz respeitoao aspecto social e familiar, bem como os horários rígidos da escola que nãorespeitam os ritmos individuais dos alunos, a degradação das escolas, aremuneração inadequada dos professores o que, ás vezes, leva a um fracodesempenho na tarefa educativa afastando-os para outras profissões oucomplementações salariais, alto índice de insucesso escolar, falta deperspectivas dos alunos, pessoal da escola despreparado para as funçõesespecíficas, entre outros.

Desta forma, destaca-se que a indisciplina produz efeitos negativosno aproveitamento escolar e na socialização dos alunos. Tais efeitos acabam

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afetando conjuntamente o professor no desenvolvimento de suas tarefasdiárias, provocando descontentamento das partes no processo de ensinoaprendizagem.

4. Considerações finais

Pensar em educação contemporânea é, antes de mais nada, pensarna superação dos principais problemas que vêm afetando o bomrelacionamento entre professor, aluno, comunidade, escola, bem como agrande defasagem na aprendizagem que se tem manifestado em grandesproporções e não deixar de pensar também nas questões relativas à disciplinaou à indisciplina escolar.

Sabe-se que a indisciplina vem sendo um dos maiores problemasque os pais e as escolas estão enfrentando no momento. Sendo que oprofessor vem ocupando um lugar de destaque nessa luta, pois, muitas vezes,sem saber como lidar, nem qual é a melhor maneira de tratar com ela, acabasofrendo de esgotamento nervoso, sem encontrar uma saída para solucionaressa situação (KULLOK, 2002).

Às vezes, ao se deparar com a indisciplina, o professor deixa deaproveitar a oportunidade de conhecer e orientar seus alunos e acaba punindo-os por ainda não estarem bem preparados e não conhecerem muito ou quasenada sobre o assunto.

Assim, à escola cabe, também, o compromisso e o interesse porproblemas e realizações, dando apoio não só às atividades em sala, mastambém fora dela. Pois, a indisciplina, sendo um comportamento humanoconforme indicado, sofre influências de todo tipo de fatores que condicionama própria vida.

Neste sentido, é necessário repensar as práticas educativas,metodologias e cobranças excessivas que são utilizadas no meio educacionale ir em busca de soluções para os problemas que surgem referentes a essatemática.

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Como afirma Amaral (2000):

Se sabiamente, o professor exerce, por força de sua função, podersobre os alunos, é necessário que esse poder se revertapositivamente em prol deles; caso contrário, esses dois personagensse transformarão em adversários, e a sala de aula local de tédio ehumilhações para ambos (p. 139).

Sabe-se que a disciplina não é conseguida apenas com punições egritos, mas com diálogo, conquista e objetivos claros que compete a todosna realização desses. O professor deve repensar e agir com maisprofissionalismo e competência, de modo que entre ele e os alunos, sejamum para o outro um ponto de segurança.

É importante esclarecer que a sala de aula não é lugar para tumultos,falta de atenção e brigas, muitas vezes, o professor pouco preparado, semdomínio do conteúdo não desperta no aluno a vontade de aprender e participarda aula.

Muitas vezes, o conteúdo não tem utilidade e não é do interesse doaluno, não diz nada sobre o seu cotidiano, então ele não tem como participare como resolver as questões propostas, o conteúdo não vem contribuir ourefletir suas condições sociais. Sendo assim, é quase certo que fazerbrincadeiras e conversar com o colega é bem mais interessante, do queprestar atenção na professora e em uma aula chata.

Finalmente, cabe explicitar que se deve considerar, de um lado, anecessidade do professor desenvolver um papel significativo e competentena organização das atividades escolares, de outro, a importância de se garantiruma prática pedagógica que incorpore decisões coletivas.

Haja vista de que não se está sugerindo uma ação educativaespontânea ou não diretiva, mas sim uma prática educativa capaz dereconhecer tanto a autoridade do professor como a possibilidade deautoridade compartilhada com os alunos. Sendo assim, a disciplina é inerentea qualquer ação educativa eficiente, já que sem esforço, compromisso eengajamento não há efetiva aprendizagem (FREIRE, 2001).

A aprendizagem requer muito mais do que simplesmente repassar

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conteúdos com silêncio em sala de aula e o educando não é obrigado aconcordar com tudo o que lhe é repassado ao longo das aulas. As estratégiaspara uma boa aprendizagem devem partir em primeiro lugar do professor,pois a esse cabe a grande responsabilidade de atrair a atenção dos alunospara o conhecimento que se quer construir com eles.

Nesse processo entra a disciplina, que muitas vezes poderá serentendida como necessária para a compreensão do conteúdo. O alunoconsciente de seu papel poderá aprender, questionar, participar sem, contudo,ter que acontecer uma concordância total e absoluta acomodação do alunoem relação ao que se está sendo ensinado

Conforme cita Jover (1998):

Ninguém nasce rebelde ou disciplinado. Trata-se de umcomportamento construído. Se antigamente disciplina equivaliaao silêncio absoluto, a disciplina desejada hoje é a do interesse eparticipação. É importante que o aluno fale, dê a sua opinião, demodo que possamos acompanhar as suas descobertas e suaaprendizagem (p. 35 – grifo nosso).

Desta forma, a indisciplina coloca-se em cena não só pelodespreparo dos pais e da escola, mas também da sociedade como um todo.A família tem papel fundamental ao lado do professor, ela deve aliar-se àescola para que juntas possam intervir com segurança e consciência noprocesso de formação desse novo sujeito histórico.

Sabe-se que educar é um ato muito mais difícil do que punir. Exigepaciência, compreensão, disponibilidade para escutar e aconselhar. O diálogo,ainda parece ser a melhor maneira de um professor lidar com seus alunosindisciplinados e, para os pais, também o melhor caminho para a construçãode uma família equilibrada.

Há sim, neste sentido, a necessidade de debater o assunto comtodos: pais, alunos, membros da comunidade escolar, enfim, todos os queparticipam cotidianamente dessa construção histórica.

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Para combater a indisciplina, a escola tem de analisar a forma comoé exercido o seu controle. A disciplina e a indisciplina são produtos dasrelações pedagógicas também existentes e estabelecidas entre os diversosprotagonistas da realidade escolar. Para isso, a escola tem de primeiroentender sobre a disciplina, que é um conjunto de comportamentos queconsidera aceitáveis, sob o ponto de vista pedagógico e social, para aquelesindivíduos, naquele contexto. Se esse trabalho for minimamente levado acabo, a escola pode avançar para medidas de controle disciplinar, senecessário.

A escola deve começar por se organizar e por desenvolvercompetentemente o trabalho pedagógico com qualidade, para de fatoprevenir ações de indisciplina no seu espaço. Para que isso seja bem sucedido,a relação entre professor e aluno deve ser pautada no respeito mútuo,confiabilidade nas ações das duas partes, bem como esperança de um futuromelhor para todos.

Como visto, o que gera indisciplina também é o fato da liberdadeexcessiva dos pais, a falta de regras e limites, em outros casos é adesestruturação familiar que os levam a desprezar valores essenciais para aformação de sua personalidade.

Neste sentido, a família precisa ser capaz de impor limites,estabelecer horários, dizer não quando for o caso e justificar, mas para issoé necessário um interlocutor (pai, mãe ou responsável) consciente de suasatitudes, ações e reações.

Portanto, para que se chegue a um resultado positivo, necessita-sede uma mescla de todas essas indicações realizadas, dosando cada umadelas de maneira que não se sobreponha e nem fique ausente, muito menossaturada. Por isso, a necessidade de se construir normas coletivas, discutircomo lidar com conflitos e transgressões, para que aos poucos se construae se perceba as vantagens e desvantagens para si e para os outros de agir dedeterminada maneira.

Nota-se então, que o problema da indisciplina tem raízes profundase complexas, e que é o resultado de muitos fatores que interferem na vida

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dos indivíduos educandos. Não dá para se culpar um ou outro, mas todosestão juntos na construção de um espaço mais disciplinado para o processode ensino aprendizagem.

Referências Bibliográficas

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INTERDISCIPLINARIDADE: UMA POSSIBILIDADE APARTIR DO DIÁLOGO ENTRE AS DISCIPLINAS1

Benedito de Oliveira2

(in memorian)

RESUMO: Neste estudo o autor aborda a necessidade do diálogo entre asdisciplinas como uma possibilidade de avanço do movimento pelainterdisciplinaridade. Para situar esse movimento faz uma reconstituiçãohistórica da disciplinaridade – surgida a partir da modernidade no Século XVI,na qual o conhecimento passa por uma profunda mudança na sua organização,culminando com a substituição do trivium e quadrivium (medievais) por umanova lógica, organizada em disciplinas. Embasado nos estudos curriculares,mostra ainda a relação existente entre o desenvolvimento curricular e ainterdisciplinaridade – uma tendência que não se apresenta como uma teoriado currículo, mas tão somente como um movimento pedagógico, denominadopor Veiga-Neto (1997) de movimento pela interdisciplinaridade. Semdesconsiderar os esforços em favor da interdisciplinaridade e apoiando-se nasidéias de Veiga-Neto, o autor estabelece uma crítica ao movimento pelainterdisciplinaridade (de inspiração iluminista), conforme os escritos de Gusdorf(Prefácio do livro Interdisciplinaridade e Patologia do Saber, de Japiassu, 1976)dentre outros – movimento esse que deposita a fé na razão como um caminhoseguro para reverter uma “patologia” que se abate sobre o mundo do saberdividido em disciplinas. Enfatiza a importância da disciplinaridade comofundamento para a interdisciplinaridade. Finalmente, apresenta o diálogo entreas disciplinas (numa tensão permanente e produtiva) como uma possibilidadede avanço do movimento pela interdisciplinaridade na formação de professores.

PALAVRAS-CHAVE: Disciplinaridade; Currículo; Interdisciplinaridade;Formação de professores.

ABSTRACT: In this study the author approaches the need of the dialogueamong the disciplines as a possibility for the progress of the movement for the

1 Publicação em memória póstuma, artigo organizado pelo professor Dr. Irton Milanesi, professor doDepartamento de Pedagogia da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Cáceres-MT.2 Professor de Filosofia, Epistemologia da Educação e Organização da Educação Brasileira naUniversidade do Estado de Mato Grosso/Cáceres-MT. Especialista em Metodologia do Ensino Superior,Direito Educacional, Direito Público e Filosofia Clínica. Mestre em Educação pela UFRGS.

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interdisciplinarity. To place that movement it is necessary to make a historicalreconstitution of the disciplinarity, that arises starting from the modernity in theXVI Century, where the knowledge goes through a deep change in itsorganization, culminating in the substitution of the trivium and quadrivium(medieval) for a new logic, organized in disciplines. Based on curricular studies,it still shows the existent relationship between the curricular development andthe interdisciplinarity - a tendency that does not come as a theory of thecurriculum, but as only as a pedagogic movement, denominated by Veiga-Neto(1997) as movement for the interdisciplinarity. Not disrespecting the efforts infavor of the interdisciplinarity and based on Veiga-Neto’s ideas, the authorestablishes a critic to the movement for the interdisciplinarity (of illuministinspiration), according to the writings of Gusdorf (Foreword of the bookInterdisciplinarity and Pathology of the Knowledge, by Japiassu, 1976) amongothers - A movement that deposits the faith in reason as a safe path to revert a“pathology” that falls on the world of the knowledge divided in disciplines. Itemphasizes the importance of the disciplinarity as foundation to theinterdisciplinarity. Finally, it also presents the dialogue among the disciplines (ina permanent and productive tension) as a possibility of progress of the movementfor the interdisciplinarity in the teachers’ formation.

KEY WORDS: Disciplinarity; Curriculum; Interdisciplinarity; Teachers’formation.

O disciplinar na modernidade

O século XVI passou por uma profunda mudança na organizaçãodo conhecimento, culminando com a substituição do trivium e doquadrivium medievais por uma nova lógica aberta e flexível no ordenamentodas disciplinas modernas. Nesse sentido, a disciplinaridade veio colocarordem no mundo e possibilitar acomodar a “explosão dos saberes” queocorria em toda a Europa. Essa organização em disciplinas possibilita que“cada um entenda como naturais os muros que lhe são impostos ou que estásubmetido” (VEIGA-NETO, 1996 p. 244). Dessa forma, por volta do séculoXVII, os estudos acadêmicos já estavam organizados em unidades deconhecimento, denominadas disciplinas. E para designar o conjunto dessasdisciplinas foi usada a palavra curriculum que, de acordo com Veiga-Neto(1999), o uso desse termo data de 1582, na Universidade de Leiden. Por

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isso, a partir do século XVI a palavra currículo passa a

[...] designar o conjunto estruturado de conhecimentos que sãotrazidos ordenada e sequencialmente para dentro da escola, como objetivo declarado de tornar tais conhecimentos acessíveis aomaior número possível de pessoas. A ordem instituía a seqüência;a disciplina instituía a estrutura. Ambas, ordem e disciplina,constituíam o currículo [...] (VEIGA-NETO, 1999, p. 14).

Esse ordenamento disciplinar deu-se enquanto conteúdosdisciplinares e como um necessário princípio organizador desses conteúdos,possibilitando um estatuto próprio e uma identidade profissional e cultural.Esse ordenamento disciplinar colocava ordem naquilo que cada um deviaestudar num determinado curso, constituindo um conjunto de conhecimentos,operacionalizados por meio das disciplinas que instituíam determinadosregimes de verdade. Esses caracterizavam o entendimento sobre o mundo,do tipo de sujeito que cada um é, bem como do tipo de vida que cada umvive no mundo moderno. Daí a necessidade de formar um aluno quecompreenda o mundo de forma disciplinar.

A disciplina pode ser caracterizada como o elemento central dapedagogia moderna, pois estabeleceu as condições de possibilidade daindividualidade, gerando um novo tipo de poder na sociedade burguesa. Apartir da modernidade, o homem deve ser disciplinado, visando superar osinstintos de maldade presentes em sua natureza por uma cultura geral, paraque possa pela educação, tornar-se prudente nas relações sociais e cultivaros fins que possibilitam a sua realização e uma moral pessoal condizentecom o espaço social do qual o homem é sujeito, que pensa por si mesmo.

O sujeito moderno engendra uma vontade de saber que pode seroperacionalizada de uma determinada maneira, segundo uma disposiçãodisciplinar que possibilitará o olhar de cada indivíduo para si mesmo e por simesmo no sentido de conhecer o seu espaço social, transformando-se, porquese vê, e ao mesmo tempo transformar-se em objeto de si mesmo, pois ésujeitável ao poder disciplinar. O poder disciplinar estabeleceu as condiçõesde possibilidade para o estabelecimento da individualidade moderna.

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A relação currículo e interdisciplinaridade

O início do uso da palavra currículo, conforme já mencionado,pode ser situado no século XVI e significava o conjunto de assuntos estudadospelos alunos ao longo de um curso. Essa novidade avançou, chegando-seao amplo conceito de Williams (1984) que entende o currículo como a porçãoda cultura no que se refere aos conteúdos e às práticas (de ensino, avaliaçãoetc.,) que, sendo relevante num determinado momento histórico, são trazidospara a escola, refletindo uma concepção de sociedade, cultura e educação,caracterizando o que se convencionou denominar de visão mundo (VEIGA-NETO, 1997).

Ao estudar o currículo, podemos adotar uma posição interna ouexterna. No primeiro caso interessam-se as entradas e as saídas e nãopropriamente o que acontece dentro da maquinaria escolar. Já no segundocaso, procura-se enxergar o currículo sob uma perspectiva externa,entendendo-o num contexto mais amplo, tanto em termos históricos quantoeconômicos, culturais, políticos, antropológicos, psicológicos etc. Éimportante ressaltar que tanto num como em outro caso pergunta-se “o que?”quanto “por quê?”. Mas a pergunta “por quê?”, no primeiro caso, é feita “dedentro”; no segundo caso, em geral, “por quê?” é perguntado de fora, isto é,é um “por quê?” sobre outros “por quês”.

É necessária a busca de conhecimentos produzidos em outras árease que serão úteis para um melhor funcionamento do nosso currículo. Comesses outros conhecimentos, supomos que saberemos melhor o que e comodevemos ensinar. Assim, tudo isso resultará, por fim, numa grande prescriçãode como agir.

Uma tendência marcante no que se refere aos estudos curricularesque não se apresenta como teoria do currículo, se manifestou na forma deum movimento pedagógico, o qual foi denominado por Veiga-Neto (1997)de movimento pela interdisciplinaridade, que é resultado, de um lado dosestudos epistemológicos de caráter essencialista e, de outro lado, está umdiscurso pedagógico reformista, também de caráter humanista e essencialista,

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que defendia o uso da escola para a cura de uma alegada patologia do sabere, por conseqüência, o uso da educação escolarizada para melhorar o mundomoderno. A interdisciplinaridade tornou-se um modismo e uma moeda forteno campo pedagógico. Todavia, se observa uma freqüente (des)articulaçãoargumentativa que dá sustentação ao movimento, caindo naquilo que foidenominado por Azanha (1992 apud VEIGA-NETO) de “abstracionismopedagógico”. Referindo-se a isso, Fazenda (1995) sustenta que os projetoseducacionais que se dizem interdisciplinares, “surgem da intuição ou da moda,sem lei, sem regras, intenções explícitas, apoiando-se numa literaturaprovisoriamente difundida” (p. 34).

Esse movimento tem o objetivo de apontar metodologias de trabalhopedagógico que se ocupam de tentativas para recuperar uma totalidade depensamento, a qual teria sido perdida pelo fracionamento que a ciênciamoderna trouxe tanto à nossa “maneira de pensar” quanto ao próprio mundo.Na medida em que discute conteúdos e metodologias de ensino, essemovimento é curricular. O movimento pela interdisciplinaridade não tem umcaráter prescritivo, fundamentando-se sobre pressupostos bastante geraisque tomam a escola como um dado, podendo, pois, ser melhorado.

Para registrar os passos iniciais do movimento no Brasil, devemoslembrar que do lado da epistemologia o livro mais importante foi o de HiltonJapiassu (Interdisciplinaridade e patologia do saber, 1976) e do lado dapedagogia o primeiro livro dedicado à interdisciplinaridade foi o de IvaniFazenda (Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: Efetividadeou ideologia? 1992). É interessante ressaltar que o livro de Japiassu foiprefaciado pelo filósofo francês Georges Gusdorf e o de Ivani Fazenda foiprefaciado por Hilton Japiassu, criando um encadeamento na formulação domovimento pela interdisciplinaridade, pois Gusdorf na França é um dosestudiosos do pensamento interdisciplinar.

O programa tem uma formação discursiva coerente que seestabeleceu em dois eixos. O primeiro, de fundamentação, está articuladonum discurso filosófico (epistemológico) que parte de uma postura humanistacrítica. O segundo, de desenvolvimento, está claramente anunciado pelo

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discurso filosófico, mas vai se expandir no discurso pedagógico de cunhoprescritivo.

Segundo Gusdorf, a fragmentação do conhecimento em disciplinas,fez com que se desenvolvesse “uma doença muito grave”, levando adesumanização do homem, por isso, chegou o momento de construir “umanova epistemologia”, pois “a inteligência humana já é, por essência,interdisciplinar”. Assim, a aproximação disciplinar – que pode adquirir váriosmatizes ou níveis (multi, pluri, inter, transdisciplinar etc.) e que pode seradjetivada de várias maneiras – viria como um remédio para esse mundodoente, para um mundo cuja harmonia se perdeu. A interdisciplinaridadevisa a “totalidade do saber, a única que possibilitará a promoção dahumanidade do homem” (GUSDORF, 1976). Segundo Gusdorf, “é precisoreencontrar o sentido da convergência necessária das epistemologias, e oprimado da intenção interdisciplinar” (GUSDORF, in: Prefácio ao livroComunicação docente, GADOTTI p. 21).

A unidade dos saberes passa a ser entendida “como umanecessidade para uma melhor inteligência da realidade que elas (as ciênciashumanas) nos fazem conhecer” (JAPIASSU, 1976).

O livro de Japiassu – Interdisciplinaridade e patologia do saber –pode ser considerado o elo entre o eixo de fundamentação (ou eixoepistemológico) e o eixo de desenvolvimento (ou eixo pedagógico) domovimento pela interdisciplinaridade no Brasil. Para Ivani Fazenda, a doençado mundo manifesta-se numa excessiva “especialização” dos saberes. Nessesentido, o movimento foi visto como capaz de desempenhar vários papéis:melhorar a formação geral e profissional; incentivar pesquisas e desenvolvera formação de pesquisadores; criar as condições para uma educaçãopermanente; superar a dicotomia ensino-pesquisa; possibilitar uma forma decompreender e modificar o mundo e integração como necessidade doprocesso interdisciplinar.

O conteúdo programático do movimento pela interdisciplinaridadeparte de enunciados gerais e higienistas, em alguma medida, românticos,mas sem dúvida iluministas. Como o tipo de racionalidade introduzido pela

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ciência é a causa da doença do mundo moderno, o remédio que pode curaro mundo é a fusão das disciplinas, ou seja, a interdisciplinaridade. Este“remédio” pode ser aplicado através da escola, à qual cabe trabalhar comcurrículos integrados, interdisciplinares.

Como se pode observar, no final de um encadeamentoargumentativo está a educação escolarizada, sobrando-lhe o papel de vilãquando é apontada como causa dos problemas sociais, ou porque édeficiente, ou porque é malfeita, e o papel de redentora quando é chamadapara resgatar os valores e os saberes perdidos, salvar ou no mínimo, melhoraro mundo em que vivemos. Dessa forma, a escola ao preparar uma novacultura, estaria contribuindo para a cura da doença que assola o mundomoderno,

O movimento pela interdisciplinaridade pretende “trazer à dinâmicada especialização uma dinâmica compensadora da não-especialização”(GUSDORF, 1976). O movimento cientificista, exatamente ao contrário,apresenta-se como uma tentativa de criar mais e mais cientistas, cada vezmais especializados e, no nosso caso, a serviço de uma economia capitalista.A categoria central das discussões acerca da interdisciplinaridade na décadade 1970 era a idéia de totalidade (FAZENDA, 1994). O movimento pelainterdisciplinaridade atraiu boa parte dos educadores brasileiros, tanto pelaspromessas e esperanças embutidas no conteúdo programático como pelanovidade que, poderia trazer alguma modificação no cenário educacional esocial.

Ao estabelecer a crítica do movimento pela interdisciplinaridade,Veiga-Neto (1997) mostra que não tem intenção de desconsiderar os muitosesforços que se têm despendido em prol do movimento, mas sim que acrítica não é feita no sentido corretivo e muito menos no sentido prescritivo.É uma postura de permanente suspeita, desconfiança e talvez pessimismo.Por isso, o importante não é descobrir as verdades, mas sim conhecer ascondições que possibilitam que se estabeleçam essas ou aquelas verdades.Por isso, a critica é radicalmente externalista.

Procurar compreender em que medida nós nos aprisionamos na

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realidade de nossos discursos, é uma condição necessária. Por isso, éimportante uma luta constante para que as utopias aconteçam neste mundo enão no mundo abstrato das idéias.

Veiga-Neto (1997) situa suas críticas em dois aspectos: no primeiroestão as questões mais de fundo e relativas ao enquadramento iluminista dosdiscursos que dão sustentação ao movimento pela interdisciplinaridade. Osegundo plano agrupa as questões mais propriamente educacionais ou, talvezseja melhor dizer, as questões que estão na superfície de contato entre omovimento e algumas outras áreas do conhecimento e da ação pedagógica.

Ao optar por uma perspectiva internalista e confiar basicamente àepistemologia sua fundamentação, o movimento pela interdisciplinaridadenão poderia fazer muito mais do que faz, nem ir muito além de onde vai aepistemologia transcendental. O que é bastante problemático é, ao mesmotempo, ancorar o discurso pela interdisciplinaridade numa epistemologiatranscendental e reduzi-la a uma questão de sensibilidade, acentuando-a comoalgo que tem de ser, antes de tudo, “sentido”, “vivenciado”, “percebido”.

É fácil reconhecer no discurso pela interdisciplinaridade, várioselementos de inspiração iluminista. Condensada num tipo de epistemologiaestá a fé na razão como um caminho seguro para a reversão de uma patologiaque se abate sobre o mundo. A cura dessa patologia é possível através deuma prática interdisciplinar, pois esta é um bom remédio para os males domundo moderno.

Segundo Veiga-Neto (1997), mesmo imaginando um saber nãodividido segundo disciplinas, talvez tenhamos um saber dividido segundooutros “elementos”, outros “eixos”, outros “tipos” de categorias. Dessa forma,fica bastante problemático alcançar uma totalidade do saber.

Há referência que mostra a disciplinaridade como um dosdispositivos que mais contribuíram para o surgimento do sujeito moderno,pois cada um perscruta, disciplinar e disciplinadamente, como objeto de simesmo. Assim, “as luzes que descobriram as liberdades inventaram tambémas disciplinas” (FOUCAULT, 1989). É por isso que o saber fragmentadoem disciplinas está tão profunda e historicamente entranhado na organização

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curricular.Como o próprio currículo foi produzido, conforme os arranjos da

modernidade, fica muito difícil propor alterações. Isso faz suspeitar dootimismo do movimento pela interdisciplinaridade. Dado que as áreas deconhecimento são colocadas em movimento por comunidades que usamlinguagens específicas, supor a existência de um campo que unificaria todasas áreas do conhecimento, equivale a supor uma metalinguagem compreensivasuficiente, uma linguagem que abrigaria todas as demais. E assim, estariaimpossibilitado o diálogo entre as áreas, tão importante para o avanço doconhecimento.

A interdisciplinaridade como diálogo

No esforço de abordar a questão da interdisciplinaridade, Veiga-Neto (1994, p.149) entende que “eleger determinados assuntos para ensinarimplica deixar de fora uma infinidade de outros”. Esses outros(conhecimentos) que foram deixados de fora podem dificultar a vida dosalunos num cenário multicultural em que vivemos. Por isso “[...] asaproximações ou fusões disciplinares, ainda que bem sucedidas no planoepistemológico, pode ter efeitos modestos ou nulos nas formas de os sujeitos(alunos e professores) compreenderem o mundo”.

[...] A fusão de duas ou mais disciplinas em uma só em nadamudaria o mundo, pois operações desse tipo jamais nos livrariamde uma disciplina [...] o conhecimento disciplinar não pode serextinto por atos de vontade, por ações de engenharia curricularou por decretos epistemológicos, até porque a disciplinaridade sejatalvez um dos fundamentos da modernidade (p. 150).

É interessante observar que mesmo argumentando em favor dainterdisciplinaridade, Gusdorf mostra que o especialista não deve “renunciarao cultivo do campo que é o seu [...]”, porém, como estudioso de sua áreade conhecimento, ele “tem, a missão de ser ao mesmo tempo o guardião datotalidade” (Prefácio ao livro Comunicação Docente, GADOTTI, p.21).

É preciso ter muito cuidado para não cair na absolutização da ciência

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e, em nome da unidade do saber, criar uma outra disciplina que acabaria porimpedir o avanço do conhecimento, pois de acordo com Fazenda (apudVeiga-Neto), a interdisciplinaridade possibilita o “caminho de volta ao uno,sob pena de, não voltando, correr-se o perigo de fazer-se uma ciência semhomem, portanto, vazia de sentido” (FAZENDA, 1987, p. 114). O esforçoda modernidade não pode ser desprezado, pois o avanço do conhecimentopossibilitou ao homem compreender o mundo a partir da sua subjetividade,tornando-se sujeito de si mesmo e da história. Esta subjetivação do mundoé o grande referencial que distingue o pensamento moderno do pensamentoantigo.

Essa prioridade do sujeito faz com que o mundo moderno, sejacaracterizado pelo pluralismo e pela autonomia de diversos campos doconhecimento humano. O homem emerge como sujeito autônomo da vida,como subjetividade e construtor da história. Assim, o conhecimento possibilitaao homem intervir na realidade e reorganizar as relações econômico-político-sociais, pondo fim ao sistema feudal e avançando para uma economia demercado que atinge o seu momento mais importante na revolução industrial,que caracteriza o sistema capitalista com grande movimentação do capitalfinanceiro e das empresas transnacionais.

Para a modernidade o conhecimento é produção do homem,devendo ser testado para ter validade e a técnica é entendida comomanipulação do saber que deve estar a serviço do homem. Nesse sentido, oconhecimento moderno descreve a subjetividade como uma busca de certeza.Por isso, o que nos apresenta é a possibilidade de lidar com diversos camposde conhecimentos que floresceram a partir da modernidade. Creio sernecessário, o avanço do conhecimento disciplinar, com a devida humildadeintelectual, pois assim fazendo, está aberto o diálogo com outros saberes e,portanto, com outras disciplinas.

O ponto central que defendo e que aproveito das discussõesdesenvolvidas por Veiga-Neto, é que o diálogo entre as disciplinas énecessário e produtivo, porém mantendo a permanente tensão entre asmesmas, possibilitando uma, digamos, pluridisciplinaridade que aceite a

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legitimidade das disciplinas, pois

[...] supor a existência de um campo epistemológico unificado, ouseja, um campo que unificaria todas as áreas do conhecimento,equivale a supor uma metalinguagem compreensiva e suficiente,uma linguagem que abrigaria todas as demais (VEIGA-NETO,1997 p. 98).

A interdisciplinaridade na formação de professores

A interdisciplinaridade assim entendida possibilita articular ocurrículo, de modo a colocar professores e alunos enquanto sujeitos de ummesmo processo, porém com experiências, histórias e exigências diferentes.A pesquisa, tanto dos professores como dos alunos, possibilita acumularconhecimentos que venham ao encontro das necessidades fundamentais dasociedade, resgatando a qualidade da educação pública. Nesse sentido, ocurrículo deve estar alicerçado numa relação político-pedagógica em que searticula as experiências sociais dos alunos, com as bases teóricas quesustentam as ações pedagógicas do/a professor/a em sala de aula. Cadaetapa do processo formativo tem uma função importante relacionada à futuraatuação docente por parte dos acadêmicos, sendo que as disciplinas devemser trabalhadas de modo a atender as necessidades formativas em cada umadas etapas do curso de formação de professores. Além disso, elas devemestar contribuindo para a superação e solução dos desafios e problemasenfrentados pela Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamentale Médio).

Fazenda (1995) aponta que na década de 1970 ainterdisciplinaridade passou a ser um modismo, caracterizando uma palavrade ordem a ser empreendida na educação, sem se preocupar com seusprincípios, nem com as dificuldades de realização. Mostra que “em nome dainterdisciplinaridade abandonam-se e condenam-se rotinas consagradas,criam-se slogans, apelidos, hipóteses de trabalho, muitas vezes improvisadase impensadas [...]” (FAZENDA, 1995 p.34). Esses problemas persistem

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em muitos projetos chamados indevidamente de interdisciplinares, digo issopor observar que não conseguem compreender o papel de cada área deconhecimento num processo de diálogo entre as mesmas. É preciso ter clarezada maior ou menor contribuição que cada disciplina pode dar aos problemassuscitados. Tenho observado que as coisas funcionam (se é que funcionam)de acordo com o senso comum, ou seja, levanta-se uma temática a serestudada e cada área aponta sua contribuição. Ora, sabe-se que o avançodo conhecimento fez com que cada disciplina tivesse seu objeto de estudo.Nesse sentido, deveria se perguntar: qual disciplina responde melhor a essatemática de estudo? A Biologia, a História, a Geografia etc.? Por exemplo,sobre as plantas do rio Paraguai: será a Pedagogia, a Biologia, a Geografiaque fará a melhor análise? Tudo isso é desafiador e exige honestidade nosentido de que somente o diálogo entre as disciplinas pode trazer umaprofundamento do que se está buscando conhecer.

Entendo a interdisciplinaridade como um esforço dialógico em queas diversas disciplinas contribuem para uma melhor compreensão darealidade. Assim, os educadores devem ser formados numa perspectiva emque o conhecimento não é propriedade, mas sim produção histórica dahumanidade e, como tal, pode ser apropriado pelos homens e mulheres.Porém, essa apropriação deve ser de forma crítica, num espírito aberto aoavanço da ciência e, conseqüentemente, da sua e de outras disciplinas(especialidades). Fazendo eco a isso lembro Bachelard, quando diz que a“verdade é filha da discussão e não filha da simpatia” (A filosofia do não).

Ao concluir este texto, percebo que é preciso superar algunsentraves para que realmente possamos realizar uma ação docenteinterdisciplinar (ou pluridisciplinar) que permita dialogar com outras áreas deconhecimento, e que se manifesta de formas múltiplas, possibilitando-nosencontrar sentidos, sentidos e mais sentidos na realidade a qual estamosinseridos. Dessa forma, é necessário que o/a professor/a conheça bem suaprópria área, para facilitar e aprofundar a relação entre os saberes numapermanente tensão dialógica e produtiva e cultivar uma certa “dose” dehumildade intelectual para que se possa aprofundar os conhecimentos sobre

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determinados problemas em que as diversas disciplinas podem dar suascontribuições.

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O SUPERVISOR NA ESCOLA REFLEXIVA:GESTÃO-FORMAÇÃO-AÇÃO1

Edlúcia Passos Carvalho Pereira2

Vanessa Delving Ely3

RESUMO: Este artigo tem como objetivo refletir sobre a necessidade de pensaruma teoria geral para a escola a partir de seus próprios modelos explicativos.Discute a forma de gestão educacional tendo em vista a escola reflexiva queutiliza a pesquisa-ação enquanto metodologia para a elaboração de seu próprioprojeto político-pedagógico. Traz ainda uma discussão sobre equipe pedagógica,supervisão e a presença da teoria e prática no fazer escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão Escolar; Escola Reflexiva; Equipe Pedagógica;Supervisor Pedagógico; missão da escola.

ABSTRACT: This article has as an objective to think about the necessity ofthinking in a general theory to the school from its own explanatories patterns.It discusses the educational manage having as an aim the reflective school thatutilizes the research-action while methodology to the elaboration of its ownpolitical-pedagogic project. Bringing also a discussion about pedagogic team,school supervision and the theory and practice in school works.

KEYWORDS: School Manage; Reflective School; Pedagogic Team; PedagogicSupervisor; School Mission.

Introdução

Repensar a escola, especialmente frente ao contexto educacionalpresente, está tornando-se uma prática comum aos profissionais da educação.Nunca se discutiu tanto e buscou-se estudar uma nova possibilidade de escola

1 Cabe aqui explicar que estas ações não seguem uma ordem, acontecendo simultaneamente noâmbito do próprio texto, devido a sua complexidade.2 Formada em História pela Universidade Bandeirantes de São Paulo, tem especialização em Gestãoe Planejamento Escolar pela Universidade La Salle de Canoas - RS e atualmente é mestranda emEducação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.3 Formada em Pedagogia pela Universidade de Santa Cruz do Sul/RS, tem especialização emPsicopedagogia Institucional pela mesma Universidade e atualmente é mestranda em Educação pelaUniversidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

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como nos tempos atuais. O desejo e a necessidade de se construir umaeducação mais justa e igualitária em termos de acesso e permanência pareceser a meta ambicionada por todos. Mas como gerir esta escola frente atantos e diferentes olhares? Que espaços de reflexão são/devem/podem seroferecidos na e para esta escola? Quem dirige este processo detransformação? As respostas surgem carregadas de novas perguntas e comisso, trazemos à discussão a busca de uma Teoria Geral para a Escola.

Na primeira parte do texto enfocamos o contexto escolar atual e ainadequação de continuar discutindo a Teoria Geral da Administração dentroda escola utilizando Miguel Russo (2004 e Luis Leandro Dinis (2004)) comomediadores das discussões apresentadas. Os autores pontuam a necessidadede a própria escola construir seus modelos explicativos enquanto organização.

A segunda parte deste artigo apresenta o conceito de escola reflexivaenquanto forma de repensar constantemente a prática, tendo a pesquisa-ação enquanto metodologia de trabalho. Para esta reflexão utilizamos areferência de Isabel Alarcão (2004) como linha de apoio.

Na discussão sobre a relação teoria e prática e a presença da equipepedagógica, especificamente do supervisor pedagógico, a partir dadesmistificação tecnicista dos cargos dentro da escola, utilizamos autorescomo Laude Brandenburg (2003), Luíza Helena Christov (2005), LaurindaAlmeida e Vera Maria Placco (2003) para fundamentar e justificar nossasposições.

A intenção deste artigo não é fornecer modelos de escola, o queseria incoerente, mas sim saídas para as escolas repensarem seus fazerespedagógicos, organizacionais e de formação continuada.

1. Contexto Escolar: pensando uma teoria geral para a escola.

A discussão sobre uma teoria para a administração escolar é algoque vem sendo exaustivamente analisado na última década. Pensar uma teoriageral para a escola é um desafio. Desafio porque estamos vivendo um períodode quebra de paradigmas, a substituição da visão da gestão mais centralizadae autoritária por uma mais aberta, democrática e focada nos processos

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pedagógicos.Por esse motivo, pelos avanços nas discussões sobre as concepções

de escola, aluno, professor, homem e sociedade há grande incompatibilidadede continuar transpondo a Teoria Geral da Administração para a escola.Miguel Russo (2004) apontou que essa incompatibilidade está em consideraruma técnica universal e neutra dentro de um espaço em que a heterogeneidadeé fator determinante. Pensar a escola dentro da visão empresarial édesconsiderar os movimentos dialógicos que lhe dão vida. Criar uma Teoriada e para a Administração Escolar significa considerar as diversidadesculturais e o gestor como representante do corpo escolar, atuando de formadialógica, participativa e tendo a liderança compartilhada como eixo do seufazer diário e a formação dos sujeitos envolvidos como prática constante.

Miguel Russo (2004) ainda aponta que criar uma teoria geral da epara a escola requer considerar os processos pedagógicos que nela existem,pois a escola tem dentro de si toda uma cultura organizacional que se fundee lhe dá vida e criar uma teoria geral da escola significa:

[...] produzir um conhecimento sobre o trabalho pedagógico escolare sua organização, voltado a melhorar qualitativamente equantitativamente a formação dos sujeitos da educação, isto é,que seja um conhecimento iluminador da prática e indicador doscaminhos que a transformam em verdadeira práxis criadora ereflexiva; que venha oferecer contribuições para o aumento daprodutividade da aprendizagem dos alunos e produza efeitoscontrários aos da burocracia que, enquanto forma de estruturaçãodas organizações, é uma maneira específica de exercício do poder,que favorece o autoritarismo e dificulta a participação e ademocratização das organizações (RUSSO, 2004, p 29).

Desvincular-se da TGA (Teoria Geral da Administração) dentroda escola requer um trabalho de conscientização muito profundo e nadasimplório, pois envolve não apenas os profissionais ligados a administração,mas também professores e pais, direcionando a todos para novas formas depensar.

A TGA está tão enraizada que acreditar em mudanças é pensar em

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outro tipo de organização escolar, fora da visão tecnicista, autoritária e defazeres mecânicos, sem reflexão e sem vida.

Sugere-se então que as organizações escolares aproveitem osconhecimentos da realidade prática para “construir seus modelos explicativos,isto é, valorizar o conhecimento das formas concretas de gestão escolar,direcionando-o à formulação de hipóteses de solução para os problemasidentificados”, como nos apontou Miguel Russo (2004, p. 34). Ser regidapelos próprios processos pedagógicos induz a uma escola reflexiva quetransforma sua práxis em criação e reflexão.

Pensar uma Teoria Geral para a Escola é vê-la dentro de suaheterogeneidade, onde modelos de administração não cabem, incluindoposturas autoritárias e professores cumpridores de currículos pré-estabelecidos e engessados.

Pensar uma Teoria Geral para a Escola é enxergá-la dentro de suadiversidade, onde todos são aprendizes e refletem constantemente sobreseus afazeres. A Teoria Geral para a Escola tem no seu bojo o diálogo, aparticipação, a liderança compartilhada, a gestão democrática. Essa teoriasó é possível numa escola reflexiva.

2. Escola reflexiva

Escola reflexiva é aquela que une teoria e prática, prática e teoria,ambas caminhando juntas, ou seja, a teoria enriquecendo o fazer diário, aexperiência.

A reflexão sobre o que vem a ser “teoria” é necessária para clareare desmistificar conceitos e “medos”. Muitos professores sentem medo aoouvir essa palavra, consideram que ela está totalmente fora da realidade desala de aula ou, às vezes, nem conseguem enxergar onde elas se apresentam.

Segundo o dicionário Larouse Cultural (1992, p.1081) teoria é “1.Conjunto organizado de princípios, regras e leis científicas que visam descrevere explicar um certo conjunto de fatos. 2. Conjunto relativamente organizadode idéias, conceitos e princípios que fundamentam uma atividade, e que lhedeterminam a prática”. Dessa forma a teoria é o que fundamenta nossas

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ações.Luíza Helena Christov(2005) apontou este conceito em sua obra

ao analisar as intenções que regem as ações, estando muitas vezes à sombradas mesmas. O que nos faz concluir que a teoria faz parte do nosso fazercontínuo.

Toda ação humana é marcada por uma intenção consciente ouinconsciente. Sempre podemos encontrar aspectos teóricos emnossas ações, ou seja, aspectos de desejo, de imaginação efinalidades. Sempre podemos analisar nossas ações perguntando-nos pelas intenções que as cercam (2005, p.32).

A análise das ações favorecem a clareza das intenções, induzindoou não para as possíveis soluções. Toda ação tem uma teorização e requerum esforço de todos envolvidos no processo escolar, pois a construçãoteórica se dá quando conseguimos ler nossas experiências através do viésda análise das intenções.

Nossa teoria é construída ao longo da vida, nos processos deformação inicial ou continuada, nas experiências e nas vivências.

Construímos nossa teoria ao aprendermos a ler nossa experiênciapropriamente dita e experiência em geral. Construímos nossa teoriaquando fazemos perguntas aos autores; quando não nossatisfazemos com as primeiras respostas e com as aparências ecomeçamos a nos perguntar sobre as relações, os motivos, asconseqüências, as dúvidas, os problemas de cada ação ou de cadacontribuição teórica [...] (CHRISTOV, 2005, p. 33).

Para fazer a análise da ação, a escola necessita mudar de postura eadotar uma metodologia diferenciada. Sugerimos, baseadas nos estudos deIsabel Alarcão (2004), a Pesquisa-ação4 , que aponta a “aprendizagem como

4 Neste texto não nos deteremos em aprofundar os fundamentos teóricos e nem metodológicos da Pesquisa-ação, noentanto sugere-se leituras fundamentais como:ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. São Paulo: Cortez, 2004.BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.) Repensando a pesquisa participante. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,1985.BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.) Pesquisa participante. 8. ed. São Paulo: Brasiliense. 1990.HAGUETTE, Teresa Maria F. (org.) Metodologias qualitativas na sociologia. Pesquisa Ação e Pesquisa Participação.Petrópolis: Vozes, 95-148, 1987.

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um processo transformador da experiência” (2003, p.49), e a concebe dentrode quatro fases: “experiência concreta, observação reflexiva,conceptualização e experimentação activa” (idem).

A escola reflexiva vê nos problemas motivo de crescimento, poistoda busca gera a aprendizagem. Está construída a partir da pesquisa-ação,pois como nos apontou Isabel Alarcão(2004) “uma escola reflexiva é umacomunidade de aprendizagem e um local onde se produz conhecimento sobreeducação” (2004, p.38). Tendo a pesquisa-ação como característica acontribuição para a mudança, a escola reflexiva traz dentro de suas veiasprofissionais condições de gerir sua própria ação e dialogar constantementecom ela, pois tem como finalidade a educação.

A base da escola reflexiva é a formação em serviço, visto que aavaliação constante das práticas conduz ao aprendizado.

Essa escola precisa ser gerida por um corpo reflexivo: a equipepedagógica. Dizemos “equipe pedagógica” apropriando-nos de umanomenclatura utilizada por Laude Brandenburg (2003), que considera oserviço pedagógico estendido a várias pessoas: diretor, vice-diretor,coordenadores de curso, supervisores e orientadores, nomenclatura essacontrária a Teoria Geral da Administração. Essa equipe tem a função degerir de forma participativa, cooperativa e educativa.

Educativa é a equipe que transpõe o conhecimento teórico para aprática de forma contextualizada, tendo a realidade enquantoproblematizadora, vendo a si e os co-autores da gestão em diálogo eaprendizado contínuo. Age dentro de uma liderança compartilhada,percebendo a cultura organizacional enquanto elemento educativo e é geridapor todos, representada por um.

Essa escola reflexiva é baseada na inclusão, pois traz para si todoo corpo de alunos e professores num movimento de conhecer-se e se fazerconhecer, respeitando as individualidades, vivências e limitações.

O supervisor pedagógico tem nos pares da equipe o apoio para asdiscussões, nos professores os problematizadores do seu fazer, pois suaação induz ao crescimento profissional dos mesmos e seu próprio.

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O supervisor pedagógico contribui para a formação dos professoresarticulando a teoria e prática, buscando fazer elo do seu saber e oconhecimento profissional dos professores, interagindo, mediando, intervindo,problematizando e questionando as vivências escolares, num movimento deaprendizagem contínua e mútua. Afinal, o papel fundamental do supervisorpedagógico é acompanhar as práticas dos professores com vistas àcontinuidade de sua formação no interior da escola, como nos aponta VeraPlacco e Laurinda Almeida (2003).

Nessa escola reflexiva, Isabel Alarcão (2004), sugere que osprofessores necessitam ter vários conhecimentos, conhecimento do conteúdodisciplinar, conhecimento do currículo, conhecimento do aluno e de suascaracterísticas, conhecimento dos contextos, conhecimento dos finseducativos, conhecimento de si mesmo e conhecimento de sua filiaçãoprofissional. Esses conhecimentos são necessários enquanto base para umtrabalho que vê no outro a extensão de si mesmo. Ao supervisor pedagógicocabe auxiliar esse professor, instigando-o a partir de sua prática.

A supervisão é uma actividade cuja finalidade visa o desenvolvimentoprofissional dos professores, na sua dimensão de conhecimento ede acção, desde uma situação pré-profissional até uma situação deacompanhamento no exercício da profissão e na inserção na vidaescolar. (ALARCÃO, 2004, p.65).

Portanto, gerir essa escola reflexiva é considerar a experiência,utilizar-se da observação, conceptualização, generalização e experimentaçãona ação. É considerar a escola em desenvolvimento e aprendizado, é estarintegrada às pessoas e processos. É ter no centro não somente o aluno, mastodo o elemento humano.

Para gerir essa escola reflexiva é necessário ter um projeto, umprojeto construído a partir de um diagnóstico inicial, um projeto vivo,dialogado e com objetivos claros. É necessário também transformar esseprojeto em projeto ação/reflexão, que é a característica da escola reflexiva:diagnosticar, refletir, buscar caminhos a partir da análise conjunta e agir.

Gerir esta escola requer a existência de professores igualmente

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reflexivos, que pensem e implementem ações visando uma qualidade deensino e aprendizagem. Deseja-se, assim, um professor autor de idéias epensamentos, que busque respostas para as suas indagações e não seja ummero reprodutor de práticas não refletidas.

Durante muitos anos os professores foram usados como mão deobra para a formação de pessoas iguais em pensamento (poucospensamentos!) e ações. Os programas curriculares, os livros didáticos, alegislação, os cursos de formação, muito contribuíram com esta perpetuação.No entanto estamos sentindo necessidade de mudança, as amarras já nãopodem nos segurar. A “nova LDBEN” estará completando 10 anos em 2006,e a tão conclamada autonomia pedagógica autorizada por ela ainda não sefirmou nas escolas brasileiras. É urgente a formação de profissionais reflexivose para que isto aconteça tornam-se necessários “contextos que favoreçam oseu desenvolvimento, contextos de liberdade e responsabilidade”(ALARCÃO, 2004, p. 45). Destacamos os termos liberdade eresponsabilidade por acreditarmos que fazem parte dos espaços escolares,onde os atores deste meio interagem e fazem uma educação pautada tambémnestes princípios.

Atualmente a escola, diferente de concepções anteriores, éconsiderada um espaço privilegiado para a formação de profissionaisreflexivos. Muitos professores que se encontram nas escolas já freqüentarama formação inicial há um bom tempo. Portanto a formação proporcionadano seio da escola deve viabilizar o estudo, a troca entre os pares, sendocapaz de (trans)formar práticas, conceitos e proporcionar um debatecoerente com o atual contexto educacional. A escola deve estar organizadade modo a criar condições favoráveis ao diálogo e a refletividade tantoindividuais como coletivas. Segundo Isabel Alarcão (2004), a escola eespecialmente aqueles que organizam as situações de diálogo entre osprofessores precisam compreender o que é ser professor e como se pode edeve formar aquele profissional que é o professor.

Neste contexto de formação o supervisor pedagógico surge comofigura essencial, pois a ele cabe a “criação de contextos favoráveis à

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aprendizagem e ao desenvolvimento dos novos professores e, por suainfluência, à aprendizagem de desenvolvimento dos seus alunos”(ALARCÃO, 2004, p. 78).

Durante muito tempo a perspectiva tecnocrata da escola roubouum tempo precioso do supervisor, confinando-o ao preenchimento de papéise ao controle rigoroso dos professores: cabia ao supervisor controlar ospassos do professor, através de fichas de acompanhamento que poucoestavam relacionadas com o avanço pedagógico, mas sim com o controledas ações do professor que pouco podia ousar, pensar, agir e repensar. Écontra esta visão que atualmente os supervisores lutam! Seu papel na escolaé essencial, especialmente quando falamos na formação em serviço e naescola reflexiva. O supervisor pedagógico é a pessoa central da formaçãona escola e tem como objetivo principal “criar condições de aprendizagem edesenvolvimento profissionais” (ALARCÃO, 2004, p. 65).

A construção de saberes na escola e para escola só pode serdiscutida por seus atores e o melhor espaço para o desenvolvimento destetrabalho é a escola. É onde são desencadeados os fatos e onde eles podemmelhor ser observados, estudados, (re) planejados e (re) avaliados. Osupervisor será o fio condutor deste novo olhar reflexivo!

Gerir uma escola reflexiva, formar professores reflexivos apresenta-se como meta para aqueles que acreditam na mudança a partir da escola. Ecomo já nos referimos anteriormente o trabalho de uma equipe pedagógicafortalece o alcance dos objetivos e engrandece a busca por uma educaçãode qualidade. A escola configura-se não mais como um amontoado depessoas, mas como um todo coeso, organizado e com objetivos norteadorescoletivos. Se a escola tem como missão principal “educar” (ALARCÃO,2004, p. 84) é preciso pensá-la e organizá-la tendo como norte este objetivo.E os espaços de formação necessitarão refletir primordialmente sobre aquestão de educar. Surge neste contexto a idéia de projeto de escola, ondea reflexão e a ação, bem como a pesquisa-ação cumprem seu caráternorteador.

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É uma escola que sabe onde está e para onde quer ir. Pensa-se,tem um projecto orientador de ação e trabalha em equipe. É umacomunidade pensante. Ao pensar a escola, os seus membrosenriquecem-se e qualificam-se a si próprios. Nessa medida, aescola é uma organização simultaneamente aprendente equalificante. (ALARCÃO, 2004, p. 85)

3. Encaminhamentos finais: a escola que queremos

Repensar uma teoria geral para a escola a partir de seu própriocontexto e heterogeneidade é o que possivelmente irá direcionar a “TeoriaGeral da Escola”. A concepção que temos é de que a escola é única e nãopode ser administrada com teorias que de tão normativas se tornam receitasa serem cumpridas. O elemento humano tem em sua própria natureza esubjetividade, a busca por respostas a seus questionamentos; esta busca fazparte do seu ser e de seu crescimento enquanto pessoa. Na escola assituações ocorrem de forma diferenciada e de acordo com contextosimprevisíveis. Receitas normativas não dão conta da realidade escolar quetem no seu âmago a diversidade. Essa é a base para a consolidação de umaescola que vê no processo de diálogo, de discussão, de reflexão, de trabalhoformativo e de elaboração de seus modelos explicativos, o respeito àdiversidade.

Pensar uma escola reflexiva é pensar numa educação que buscamais do que a simples reprodução. Necessitamos de uma escola de criação,autora e autônoma em suas ações.

Pensar a escola enquanto “escola reflexiva” é vê-la a partir de umdiagnóstico inicial, produzindo seu próprio planejamento e executando, tendoa ação-reflexão-ação enquanto linha direcionadora. Essa escola tem umaequipe pedagógica que atua enquanto mediadora do processo,problematizadora da prática pedagógica e organizadora de situações deformação continuada do professor. Além da concepção de que num processode formação a aprendizagem é mútua.

Portanto, gestão, formação e ação não são elementos hierárquicos

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numa escola reflexiva. São elementos que interagem, se fundem, se completamnum espaço onde o diálogo é fator determinante.

A   Teoria Geral da/para a Escola é uma teoria em construção.Utilizamos os termos da e para numa tentativa de pontuar que essa teoria éde um ambiente único e para um ambiente único, não podendo ser “geral”para todas as escolas e /ou organizações. A única perspectiva queconsideramos fundamental eleger é o método de formulação. Sugerimos queesse método seja o da ação-reflexão-ação. Essa é a escola que queremos!

Referências Bibliográficas

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ALMEIDA, Laurinda Ramalho de; PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza(org). O sucesso da coordenação pedagógica no Projeto de Classes deAceleração. In: O Coordenador Pedagógico e o Espaço da Mudança. 3ed. São Paulo: Loyola. 2003. P. 07-15.

BRANDENBURG, Laude Erandi. Até onde vão os Tentáculos do polvo:construindo a identidade da equipe pedagógica. Trabalho apresentado noEncontro Internacional da SBEC. Construindo a Identidade Latino Americana.PUCRS 10 a 12 de novembro de 2003.

CHRISTOV, Luíza Helena da Silva. Teoria e prática: o enriquecimento daprópria experiência. In GUIMARÃES, Ana Archangelo at al. O coordenadorpedagógico e a educação continuada. 8 ed. São Paulo: Loyola. 2005.P.31-34.

DINIS, Luis Leandro. Das Teorias das Organizações à Organização dasTeorias: Do Mundo da Gestão ao Mundo da Educação. Revista do FórumPortuguês de Administração Escolar, n° 4, 2004. P. 79-97.

LAROUSE CULTURAL. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo:

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Nova Cultural. 1992.

RUSSO, Miguel Henrique. Escola e paradigmas de Gestão. ECCOS - RevistaCientífica. Centro Universitário Nove de Julho. Vol. 6, n° 1, jun. 2004. P.25-42.

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RELAÇÕES POSSÍVEIS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS EADULTOS COM A SÓCIO-ECONOMIA SOLIDÁRIA

Leonir Amantino Boff1

Aleido Díaz Guerra2

Geovane Paulo Sornberger3

RESUMO: O texto propõe algumas reflexões a respeito de relações einterações possíveis entre Educação de Jovens e Adultos e Sócio-EconomiaSolidária numa perspectiva de integrar solidariamente educação e trabalho,atividades historicamente dicotomizadas. A experiência desenvolvida com o“Empreendimento Mulheres Solidárias” permitiu perceber ricas interações entreEducação de Jovens e Adultos e Sócio-Economia Solidária sem haversobreposições entre uma e outra. Pelo contrário, ambas se complementam ese enriquecem mutuamente, mobilizando outras dimensões importantes da vidahumana, para além da educação e do trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos; Sócio-EconomiaSolidária; Empreendimento Mulheres Solidárias; Relações Possíveis.

ABSTRACT: The text considers some possible reflections regarding relationsand interactions between Adult Young Education of e and Solidary Partner-Economy in a perspective to integrate education and work solidarily, activitieshistorically dichotomized. The experience developed with the “EnterpriseSolidary Women” had allowed to perceive rich interactions between YoungEducation of Adult and Solidary Partner-Economy without having overlappingsbetween one and another one. For the opposite, both are complemented and ifthey enrich mutually, mobilizing other important dimensions of the life human

1 Professor de Filosofia da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, lotado noDepartamento de Pedagogia do Campus Universitário de Sinop, e desenvolve atividades de pesquisae extensão nas áreas da EJA, Educação do Campo e Economia Solidária. E-mail:[email protected] Professor-pesquisador, coordenador do Grupo “GASEA”, lotado no Departamento de Economia daUniversidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, Campus Universitário de Sinop. E-mail:[email protected] Professor de Contabilidade da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, lotado noDepartamento de Ciências Contábeis do Campus Universitário de Sinop, e também desenvolveatividades de pesquisa do Grupo “GASEA”. E-mail: [email protected]

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being, stops beyond the education and of the work.

KEY WORDS: Young and Adult Education; Solidary Sócio-Economia;Enterprise Solidary Women; Possible Relations.

Várias tendências educacionais reclamaram e propuseram umarelação mais próxima e mais direta com a realidade concreta da vida dossujeitos em processo de formação escolar4 . Essa reivindicação torna-secoerente e justa se consideramos que a organização da vida local e as relaçõesque a constituem é base que fundamenta a construção material e simbólicada pessoa humana, que se prolonga na medida em que a pessoa humana seespraia socialmente e culturalmente5 .

Além do que, a sustentabilidade da vida humana socialmenteintegrada e justa, ecologicamente equilibrada, economicamente viável eduradoura, requer uma constante vigilância e minucioso investimento na baselocal, considerando suas diversidades, potencialidades e fragilidades.

As práticas de exploração irresponsáveis sem a preocupação commanejo e reposição dos recursos naturais, porque existe a perspectiva denovas fronteiras a serem abertas e exploradas com a mesma lógica, estáconduzindo à condição de esgotamento das reservas naturais do planeta e àdestruição das condições necessárias para a continuidade da espécie humanano planeta Terra (BOFF, 1999).

Pensar o projeto de vida a partir do local e suas condições nãoquer significar o fechamento das possibilidades e de horizontes nos limitesdo local. Pretende-se apenas tomar o local como ponto de partida fundanteda vida, e é dele que depende a satisfação primeira de nossas necessidades.Além do que, o agir será sempre um agir local, mesmo que seja às vezes deforma fugaz e implique o global. A educação de modo geral, e a EJA em

4 Dentre as quais, lembramos da proposta e ideário educacional de Paulo Freire.5 Freire indica que a leitura do mundo antecede a leitura da palavra, de que o ponto de partida é arealidade que o contorna, que o envolve, mas a leitura da palavra amplia e problematiza a leitura demundo inicial, e ao problematizar a consciência, amplia seu horizonte e a expande para uma novaleitura de mundo. De sorte que, a pessoa humana situa-se num processo de fazer-se sempre, porquehistoricamente sempre inacabada.

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particular, tem um papel fundamental na construção das bases de entendimentoe de organização para a construção de um projeto que considere essesaspectos. Basta lembrar dos “círculos de cultura” desenvolvidos por Freiree outros educadores populares, os movimentos de alfabetização e osmovimentos de educação popular, cujo ponto de partida quase sempre é arealidade dos sujeitos que dela participam.

Historicamente, a educação de modo geral, e até mesmo a EJA e aEducação Popular, vêm contribuindo para o desenvolvimento da criticidade,para a construção da consciência de direitos, de participação etc., mas nãotêm contribuído suficientemente para uma projeção econômicaautonomamente organizada e produtivamente duradoura em muitosagrupamentos sociais nos meios populares. Como afirma Moura (2003, p.32), a respeito da Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimentosustentável desenvolvida em vários municípios do Agreste Pernambucano:

As comunidades apoiadas, mesmo com os avanços ideológicos,políticos, organizativos de suas lideranças, não conseguiamresultados econômicos. As lideranças sabiam muito bem criticara distribuição das riquezas, mas não conseguiam avançar naprodução das mesmas. Os grandes líderes das pastorais, dossindicatos, dos movimentos sociais do meio rural, em geral tinhamas mais fracas propriedades e a produção mais ineficaz. Foi bemidentificado o primeiro desafio: como fazer para que ascomunidades que recebiam o apoio financeiro, organizativo,religioso, social pudessem ter impacto na vida econômica comotinham em outros aspectos? Os meios, as estratégias, osconhecimentos desenvolvidos pelas lideranças impactavam muitoos capitais humano e social. As pessoas evoluíam muito, aprendiama lutar pelos seus direitos, a se organizar para debater os problemas,para conhecer as leis e a bíblia, para reivindicar serviços públicos,para conquistar espaços políticos, mas a produção e o uso detecnologias mais apropriadas não avançavam6 .

6 Os impactos da modernização na agricultura camponesa na América Latina. Coletânea de publicaçõesda Fundação Progresso para o Homem – FPH, um caderno sobre cada país na América Latina,publicado em Santiago do Chile, em 1991, com 77 entrevistas feitas com lideranças de organizaçãocamponesa.

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Parece existir aí um ponto de articulação importante entre EJA eSócio-Economia Solidária7 , que pode avançar no campo da organicidade,da crítica e da consciência dos direitos, no campo da organização do trabalho,da produção e da geração de renda. Quem sabe, tornar possível a Sócio-Economia solidária, juntamente com a EJA, como uma ferramenta pedagógica.Para Singer (2005, p. 16)

[...] a pedagogia da Economia Solidária requer a criação desituações em que a reciprocidade surge espontaneamente, comoo fazem os jogos cooperativos. Importa aqui menos o aprendizadodo comportamento adequado do que o sentimento que surge daprática solidária. Tanto dando como recebendo ajuda, o que osujeito experimenta é afeição pelo outro e este sentimento paramuitos é muito bom. Tanto em competir como em cooperar, osujeito sente-se feliz. Só que no primeiro caso, essa felicidade sóé completa se ele vence e demonstra sua superioridade sobre osdemais. No último, a felicidade é gozada toda vez que se coopera,independente do resultado.

Mas como tornar isso possível? Para Freire (1999), uma propostaeducativa para ser autenticamente educadora precisa ser transformadora.Transformar significa transcender, modificar, reorganizar, redimensionar aforma atual existente, ou seja, o “status quo”. A transformação perpassa ossujeitos nas suas maneiras de pensar, sentir, orientar suas ações, seus valores,posicionamentos políticos, suas ideologias, mas também alcança as relações,os valores e poderes que as constituem, para enfim, alcançar o próprioprojeto que se pretende para a sociedade humana, mesmo que seus efeitossejam sentidos, num primeiro momento, apenas num campo bastante restrito.Por essa razão, se num primeiro momento a transformação parece individuale localizada, num momento posterior ela pode se tornar globalizante.

Outro aspecto a ser considerado para a consecução acimaapontada, é de que a educação autenticamente concebida e orientada precisa

7 Necessidade e possibilidade de construção e configurações sociais distintas das formações sociaishegemônicas organizadas sob a lógica do capitalismo globalizado. Laudemir Luiz Zart, Cáceres:Unemat, 2004.

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problematizar os contextos da vida dos sujeitos que participam dela, suascondições e possibilidades. Entender as condições materiais conformepreconizou Marx, bem como as condições culturais e simbólicas naperspectiva que Freire (1992) discute, é alicerce para ação humana individualou coletivamente bem orientada. As possibilidades por sua vez sãovislumbradas ou construídas a partir do conjunto dos elementos quecompõem a leitura das condições materiais, culturais e simbólicas.

Nesse campo, a EJA pode contribuir significativamente, uma vezque pelas aprendizagens críticas da leitura e da escrita, bem como dosconhecimentos das diversas ciências e de suas instrumentalizaçõesmetodológicas, a mesma tem condições de problematizar sobremaneira essasduas dimensões que se implicam no desenvolvimento da vida social e nahistória.

É muito importante que as pessoas compreendam como se organizaa economia local e a sociedade onde vivem, quais as relações de trabalhoestabelecidas naquele contexto, quais as condições naturais e organizaçãosocial/política ali existente. Enfim, como a vida acontece, se desenvolve, eem que condições? As possibilidades são vislumbradas e construídas a partirda compreensão que se tem de todas essas questões e das potencialidadesexistentes, elas não podem resultar de um exercício puramente imaginário. Ese por ventura resultarem disso, certamente terão pouca ou quase nenhumaconsistência. A imaginação é muito importante, contudo deve ser utilizadapara encontrar soluções e construir alternativas e projetos a partir de umarealidade que é vivencial e concreta, e que apresenta determinadas condições.

As possibilidades podem ser vislumbradas ou os projetos seremconstruídos em muitas perspectivas, considerando e valorizando dimensõesdiversas da vida humana e perspectivas sociais e econômicas diferentes.Para nós, pensar em possibilidades e projetos que valorizem o indivíduohumano e a sociedade humana na perspectiva ética, estética, política,espiritual, epistemológica e economicamente integrada na sua humanidade ecom as demais formas de vida e de seres existentes na natureza, é ao mesmotempo desafio e horizonte.

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Nessa perspectiva apresenta-se para nós a sócio-economiasolidária. Embora sua discussão fundamental esteja no campo econômico,seu princípio fundamental contribui para a consecução das demais dimensõeshumanas, sociais e ecológicas. Conforme Singer (2005, p. 14) apresenta,

A Economia Solidária foi concebida como um modo de produçãoque tornasse impossível a divisão da sociedade em classeproprietária dominante e uma classe sem propriedade subalterna.Sua pedra de toque é a propriedade coletiva dos meios sociais deprodução (além da união em associações ou cooperativas dospequenos produtores). Na empresa solidária, todos que nelatrabalham são seus donos por igual, ou seja, têm os mesmos direitosde decisão sobre o seu destino. E todos os que detêm a propriedadeda empresa necessariamente trabalham nela.

Uma experiência neste sentido, e que merece cuidado reflexivo,pode ser o exemplo da Associação comunitária no Bairro de Chácaras NossaSenhora de Fátima, na cidade de Sinop - MT instituída há alguns anos. EssaAssociação adquiriu, por meio do PADIC8 , uma farinheira e um conjuntode máquinas de costura, de boa qualidade e que não haviam sido devidamenteaproveitadas pela comunidade e pela Associação. Através da alfabetização,um grupo de mulheres foi provocado a desenvolver um empreendimentosócio-econômico solidário, aproveitando as máquinas ali disponíveis. Muitasreuniões foram feitas até o grupo “Empreendimento Mulheres Solidárias”9

ser constituído e o Empreendimento desenvolver-se.Concomitantemente ao curso de alfabetização, aproveitando a

mesma alfabetizadora1 0 que tinha conhecimento e prática com malharia,iniciou-se o processo de capacitação das mulheres em corte costura. Oprocesso capacitação das mulheres foi organizado a partir de dois momentos8 Programa de incentivo às associações e comunidades desenvolvido no Governo do Estado de MatoGrosso, na gestão do governo Dante de Oliveira.9 O “Empreendimento Mulheres Solidárias” nome dado ao empreendimento sócio-econômicosolidário, teve seu início com a oferta de um curso de alfabetização de jovens e adultos, pelo SESI efinanciado pelo Programa Brasil Alfabetizado do Governo Federal no ano de 2005, e foi desenvolvidocom um grupo de mulheres no Bairro de Chácaras Nossa Senhora de Fátima, na cidade de Sinop – MT,e sua atividade econômica é relativa à produção pela costura.10 A alfabetizadora era Arlinda Stinger, acadêmica do Curso de Pedagogia da Universidade do Estadode Mato Grosso – UNEMAT, Campus Universitário de Sinop, militante na EJA, e que, para otrabalho de conclusão de curso, tinha como tema de pesquisa a Educação de Jovens e Adultos.

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complementares. O primeiro momento pretendia fazer com que o grupo demulheres entendesse, no coletivo, todo o processo de produção: dasatividades necessárias para confeccionar um produto; os tipos de instrumentospara desenvolver as atividades; os tipos de máquinas e suas funçõesespecíficas; os tipos de tecidos, fios, produtos possíveis de seremconfeccionados etc. O objetivo era conduzir as mulheres ao entendimentodo processo da produção como um todo, e que, posteriormente nos gruposde trabalho, cada função e atividade a ser desenvolvida cumpririam ummomento importante na confecção dos produtos. No segundo momento,organizado em dois grupos, passou-se a capacitar as mulheres nas atividadesespecíficas de corte e costura. Cada uma das mulheres experimentavadesenvolver cada uma das atividades necessárias do processo de produção.Feito isso, cada mulher escolhia uma das atividades em que, no primeiromomento, melhor se adaptasse, e poderia desenvolver com mais aptidão.Feita a escolha, cada qual aperfeiçoaria suas habilidades naquela atividade,sob orientação da professora Arlinda.

Posteriormente aos dois primeiros momentos de capacitação,avançou-se para a formação dos grupos de produção, processo decomercialização aproveitando o sistema de feiras e outras formas de venda.Tudo isso acompanhado por reuniões e encontros para entender o que era ecomo organizar e desenvolver um empreendimento sócio-econômicosolidário, que acabavam se tornando encontros de formação e de educaçãode jovens e adultos.

A constituição dos grupos de produção implicava no atendimentode diversas particularidades: diversidade de domínio de conhecimento práticodas atividades de corte e costura das mulheres participantes; considerar ashabilidades desenvolvidas pelas mulheres relativas às atividades específicasde corte e costura, a fim de compor os grupos de produção; organizaçãodos tempos das mulheres componentes de cada grupo de produção, tendoque considerar a organização da vida cotidiana das mesmas, o tempodestinado à produção no empreendimento sócio-econômico solidário, otempo destinado à alfabetização e ao estudo escolar, o tempo destinado à

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organização da vida familiar, algumas mulheres também desenvolviam outrasatividades remuneradas.

Todo esse exercício era feito coletivamente, o que exigia dasmulheres reflexão, raciocínio e certo planejamento na sua organização devida. A vida das mulheres que na sua maioria era doméstica e simples passoua compor-se por elementos de complexidade, devido à diversificação decompromissos que passariam a assumir.

Posteriormente o grupo demandava outros aspectos de formaçãocomo cursos para qualificar o sistema de produção e melhorar o padrão dequalidade dos produtos, cursos de comercialização, cursos de gestão econtábil, entre outros. Todos eles a serem desenvolvidos com a perspectivada lógica e organização da Sócio-Economia Solidária evidentemente.

Em um ambiente de cooperativismo, um dos campos de atuaçãoda Sócio-Economia Solidária, entende-se que à medida que se tornam maiscomplexas as operações de modo geral, necessitam os cooperados deinstrução adequada para a correta gestão do empreendimento. ConformeArruda (2000), já os Pioneiros de Rochdale já dedicavam 2,5% de todoexcedente à educação dos associados. Eram tempos em que não existiaeducação pública oficial, com o caráter geral (ou quase...) que conhecemoshoje. Nem havia qualquer preocupação com a educação da classetrabalhadora que, na época, como agora, constituía a imensa maioria dossócios das cooperativas. Por este motivo, aquele percentual de 2,5% iapara a atividade educativa e também para a cultura geral - formação debibliotecas, assinatura de jornais e revistas, atividades culturais.

Num contexto, em que os sistemas cooperativos surgem justamentepara se opor aos sistemas tradicionais regidos pelo capitalismo que impõede forma implacável noções de competitividade como forma de se manterem atividade, é primordial o aperfeiçoamento constante das práticas queenvolvem uma atividade. É nesse sentido que a EJA vem contribuir com aeconomia-solidária, transformando ou pode-se dizer integrando ao mesmotempo os espaços, antes preocupados apenas em produzir, com um processocontínuo de aprendizado, tudo dentro dos moldes do cooperativismo.

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Por sua parte, o “Empreendimento Mulheres solidárias” foiconstituindo um espaço de educação de jovens e adultos permanente.Produziram-se a partir dele, interações que ultrapassavam o campo daprodução econômica específica e passavam a alcançar outras dimensões davida, como: confraternizações de aniversários, festas comunitárias, o cuidadodas mulheres com a sua beleza e saúde, a preocupação de cuidado com oambiente de trabalho e do bairro onde moram, entre outros.

Segundo Arruda (2000), os princípios da educação cooperativase distinguem da educação tradicional, no sentido de que os primeiros sãovoltados ao desenvolvimento dos membros para atuar em uma sócio-economia que se baseia nos valores da cooperação e da solidariedade.

Nessa concepção, têm-se como princípios educativos: ligar teoriae prática, combinar métodos educativos e de capacitação, educar para otrabalho cooperativo, vincular educação e cultura, ensino de valores, modosde relação, incentivar a auto-organização dos estudantes, gerirdemocraticamente as escolas, criar coletivos didáticos, incentivar atividadesde pesquisa, associar interesses individuais e coletivos.

A observação aos princípios da educação cooperativa resgata osvalores da cooperação e da solidariedade, esquecidos, ou simplesmente,deixados de lado pelo capitalismo. Expressões simplistas, mas, que constituemos pilares para a sustentabilidade. O que segundo Boff (1999), é exigênciapara o ambiente da vida humana socialmente integrada e justa, ecologicamenteequilibrada, economicamente viável e, por ultimo, um ambiente duradouro.

Na sócio-economia solidária a integração da vida vai além daintegração pelo trabalho, mesmo que este seja a base integradora, porque éatravés dele que são produzidas as condições de subsistência e as demaiscondições que compõem os meios sócio-culturais. Contudo, a Sócio-Economia Solidária alcança aspectos nas relações da vida cotidiana, comoquestões relativas à saúde, integrações educativas e de lazer, co-responsabilidade no cuidado com os espaços e relações da vida comunitária.

Nesse sentido, a Sócio-Economia Solidária complementa a EJAcom um aspecto novo ao criar possibilidades de produção pela organização

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do trabalho, desenvolvendo empreendimentos econômicos solidários, einterage com a EJA em outros aspectos da vida comunitária, como os acimamencionados, porque a solidariedade alcança todas as coisas relativas àvida humana e nas relações com outras formas de vida.

Quando se observa com um olhar afetivo, ético, político eepistemologicamente orientado, encontram-se muitas relações e interaçõespossíveis entre EJA e Sócio-Economia Solidária, sem ter qualquer perspectivade uma sobrepor-se à outra, pelo contrário, ambas combinam-se pelasrelações de complementaridade. O que pode ocorrer, no campo da ação, éde ora uma ser ponto de partida, ora outra, mas sem perder de vista que apartir de um determinado momento, ambas passam a estabelecer,dialogicamente, interações complementares importantes.

Muito já se tem discutido nas academias, instituições de ensinoformal, até mesmo nos movimentos sociais e meios populares a respeito daexigência de superar, na prática, os modelos da educação bancária emeramente ilustrativa. Essas perspectivas educacionais sempre tiveram comointenção projetar os indivíduos humanos num horizonte cultural fundado naretórica, formalmente eficientes e ou na perspectiva do tecnicismo eficiente,contudo distanciados dos horizontes onde a vida acontece na sua contingênciae complexidade1 1. Esse distanciamento não só não incentivou como tambémdificultou processos de interações reflexivo-organizativas, com possibilidadesde construir processos de vida social, econômica, ambiental e culturalmenteorientadas para a integração dos saberes com as diversas formas demanifestações da vida, a partir da realidade local, em diálogo com asimplicações globais, considerando as potencialidades naturais e humanas,sem dicotomizá-las. Entende-se então que, quando se referencia o local,não se pretende afirmar seu isolamento, tampouco seu fechamento, pretende-se apenas reivindicar respeito pelo ponto de partida, a partir do qual a vidase expande pelas leituras, relações e diálogos.

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O TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO MATO GROSSOE A VERIFICAÇÃO DA APLICAÇÃO DOS RECURSOS

VINCULADOS À EDUCAÇÃO

Nicholas Davies1

RESUMO: O artigo examina procedimentos do Tribunal de Contas (TC) doMato Grosso para a contabilização da receita e despesa vinculada à manutençãoe desenvolvimento do ensino (MDE). Embora a documentação consultadanão seja suficientemente detalhada, foi possível constatar equívocos e oscilaçãonas interpretações do TC. Por exemplo, em um ano o TC considerou o percentualmínimo dos impostos (35%) fixados pela Constituição Estadual, porém emoutros se baseou, sem nenhuma justificativa, nos 25% da Constituição Federal.Outro equívoco foi incluir na base de cálculo do percentual mínimo receitasque são adicionais a este mínimo, como os convênios e salário-educação. Osurpreendente foi constatar a aceitação pelo TC, desde 2004, a partir de consultaformulada pela Secretaria Estadual de Fazenda, que o imposto de renda dosservidores estaduais e municipais não entraria na base de cálculo dos impostos.Na questão das renúncias fiscais, que correspondem a centenas de milhões dereais por ano, o governo estadual e o TC não cumpriram a Constituição Estadual,pois elas não podem ser subtraídas do montante sobre o qual incide o percentualmínimo vinculado à educação. Em síntese, em conseqüência destesprocedimentos equivocados e sua aceitação pelo TC, é possível estimar emcentenas de milhões de reais o prejuízo anual para a educação pública estaduale municipal no Mato Grosso.

PALAVRAS-CHAVE: financiamento da educação; orçamento da educação;Tribunais de Contas; Estado do Mato Grosso

ABSTRACT: The article examines procedures adopted by the Audit Office ofthe Brazilian State of Mato Grosso to calculate revenue and expenditures linkedto the maintenance and development of education (MDE). Although thedocumentation consulted was not sufficiently detailed, it was possible to findmistakes and oscillation in the interpretations by said Audit Office. For example,in one year it took into account the minimum percentage of 35% of taxes set

1 Doutor em Sociologia pela USP-SP e professor da Faculdade de Educação da Universidade FederalFluminense, Niterói, RJ. E-mail: [email protected].

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by the State Constitution, but in other years, with no justification, it consideredthe percentage of 25% stipulated in the Federal Constitution. A further mistakewas to include in the minimum percentage revenues that are an adition to saidminimum. It was surprising to find that the Office has accepted since 2004,after a consultation by the State Treasury Secretariat, that the income tax paidby State and municipal civil servants would not be included in the calculation ofthe percentage linked to education. The State government and the Audit Officehave not complied with the State Constitution, for said incentives may not bedisregarded in the calculation of funds linked to education. In sum, as a resultof these mistaken procedures adopted and their acceptance by the Audit Office,it is possible to estimate that the State and municipal education in Mato Grossolose hundreds of millions of Brazilian reais every year.

KEYWORDS: education funding; education budget; Audit Offices; the BrazilianState of Mato Grosso

1. Introdução

Este texto mostra os procedimentos adotados pelo Tribunal deContas do Estado do Mato Grosso na verificação da aplicação dos recursosvinculados à educação, sendo parte de uma pesquisa sobre o papel dosTribunais de Contas (TCs) do Brasil nesta verificação e foi suscitada pelaexperiência do autor na análise da aplicação da verba da educação porgovernos estadual e municipais do Rio de Janeiro e na sua fiscalização porparte do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (DAVIES, 1999,2001b). Essa experiência revelou, entre outras coisas, que a interpretaçãoadotada pelos TCs quanto às receitas e despesas vinculadas à manutençãoe desenvolvimento do ensino (MDE) nem sempre coincide com o que pareceestar na letra e espírito da lei. A possibilidade de interpretações variadas emesmo conflitantes por parte dos TCs tem sido confirmada na nossa pesquisa.Por exemplo, enquanto alguns Tribunais, como os do Estado do Pará,Maranhão e Paraíba, não consideram despesas de MDE as realizadas comos inativos da educação, outros adotam posição contrária, como os de Minas,São Paulo e Rio Grande do Sul. A experiência de Cesar Callegari (1997) naanálise das contas do governo estadual de São Paulo também confirma aimportância do conhecimento sobre tais interpretações que, materializadas

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em instruções normativas, resoluções ou deliberações, são na prática maisimportantes do que o estipulado na LDB (Lei 9.394), pois os governosestaduais e municipais procuram seguir (quando o fazem, é claro!) asorientações dos TCs na sua prestação de contas, e não necessariamente asdisposições da LDB ou de pareceres e resoluções do Conselho Nacionalde Educação (CNE). Daí a importância do estudo dessas interpretaçõespara a avaliação menos imprecisa dos recursos vinculados à MDE.

2. Referências legais, base empírica e procedimentos

Esta pesquisa foi iniciada em 1998 e procurou obter as normaseditadas pelos TCs desde a Lei Federal 7.348, de 1985, que regulamentoua Emenda Constitucional Calmon, de 1983, restabelecendo a vinculação derecursos para a educação que foi eliminada pela Constituição imposta peladitadura militar em 1967. Tomamos a Lei 7.348 como marco inicial porquedesde 1967 não havia vinculação constitucional de recursos (restabelecidaapenas para os municípios pela Emenda Constitucional No. 1, em 1969) eporque ela vigorou integralmente até dezembro de 1996 (quando foipromulgada a LDB) e parcialmente a partir de janeiro de 1997, segundo oParecer nº 26/97 do CNE. Basicamente esta Lei 7.348 foi importante porquedefiniu as receitas e despesas vinculadas à MDE, conceito que mereceu umadefinição menos elástica do que a permitida pela função orçamentária de‘Educação e Cultura’, prevista na Lei Federal 4.320, de 1964, que normatizaa elaboração e execução de orçamentos públicos.

Outra referência legislativa que adotamos foi a EmendaConstitucional 14 (EC 14), de setembro de 1996, e as Leis 9.394 e 9.424(esta última regulamentou o FUNDEF), ambas de dezembro de 1996.

Para saber como as contas da educação foram avaliadas desde1985, solicitamos informações e documentos mediante o envio de ofícios atodos os TCs do Brasil. De modo geral, existe em cada Estado um tribunalque analisa as contas tanto do governo estadual quanto dos municipais. É ocaso de quase todos os Estados, com exceção de: Bahia, Ceará, Pará, Goiás,Rio de Janeiro, São Paulo, onde há dois TCs. Na Bahia, Ceará, Pará e

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Goiás, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) examina só as contas estaduais,enquanto o TCM (Tribunal de Contas dos Municípios) cuida só dasmunicipais. O Rio de Janeiro e São Paulo, por sua vez, têm a particularidadede possuir um TC só para as contas da prefeitura da capital, enquanto oTCE analisa as contas do governo estadual e de todas as demais prefeituras.Apesar de enviar os ofícios pelo menos três vezes (fevereiro de 1998, maiode 1999 e janeiro de 2000), nem sempre recebemos resposta. Nãorecebemos resposta dos seguintes TCs: Amazonas, Acre, Bahia (TCM),Ceará (TCE), Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Rio de Janeiro(TCE e TCM) e Tocantins. Outros negaram o fornecimento de informaçõese documentos (Minas Gerais) ou foram sumários nas informações prestadas(TC da prefeitura de São Paulo, TCE de Alagoas, Amapá, Bahia, MatoGrosso e Mato Grosso do Sul). A lacuna ou precariedade de informações,no entanto, foi parcialmente superada pela obtenção dessas normas einformações relevantes por outras vias, como Internet e Biblioteca do TCMdo Rio de Janeiro (TCMRJ).

Também era nosso desejo examinar pareceres concretos dos TCssobre contas de governos estaduais e municipais, uma vez que a nossaexperiência no Estado do Rio de Janeiro revelara a não-coincidência deprocedimentos recomendados pelos TCs e os efetivamente seguidos pelosseus técnicos e conselheiros. Infelizmente, a imensa maioria dos TCs nãonos enviou tais pareceres, com exceção de Distrito Federal, Goiás (TCE),Pará (TCE) e Santa Catarina, porém a biblioteca do TCMRJ possibilitou oacesso a muitos destes pareceres.

Vale lembrar que, como a documentação a que tivemos acesso noprincípio nem sempre esclarecia todas as nossas dúvidas e questionamentos,enviamos novos ofícios a alguns TCs. Alguns responderam às nossasponderações e pedidos de esclarecimento: Espírito Santo, Paraíba, Sergipe,São Paulo (TCE e TCM), Rio Grande do Sul, Goiás (TCE e TCM), DistritoFederal. Outros não: TCE da Bahia, Minas, TCE e TCM do Rio de Janeiro.Por isso, o nosso estudo nem sempre conseguiu responder satisfatoriamentea todas as indagações sobre todos os TCs.

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Basicamente, as informações e documentos que procuramos obterjunto aos TCs foram as seguintes:1) Legislação federal, estadual ou municipal adotada pelos TCs para aaveriguação das receitas e despesas vinculadas à educação ou, maisprecisamente, à MDE, conforme definida na Lei 7.348, de 1985, e nosartigos 70 e 71 da LDB. Queríamos saber, por exemplo, o percentual mínimoque os TCs consideravam correto, no caso de o percentual das Constituiçõesestaduais e leis orgânicas ser superior aos 25% previstos na ConstituiçãoFederal (CF) de 1988. Essa nossa indagação foi suscitada pela experiênciano Estado do Rio de Janeiro, em que prefeituras, por exemplo, Petrópolis eSão Gonçalo, cujas leis orgânicas fixavam um valor superior aos 25%,alegavam que o percentual válido era o da CF, não o das leis orgânicas econtavam com a interpretação favorável do TCE. Além disso, o governoestadual do Rio de Janeiro (na gestão de Brizola) havia obtido em 1993liminar do Supremo Tribunal Federal suspendendo a eficácia do percentualmínimo de 35% fixado na Constituição Estadual de 1989, o que significou,na prática, a aceitação dos 25% pelo TC.

2) Instruções e normas internas elaboradas pelos TCs para o cálculo dasreceitas e despesas vinculadas à MDE desde a Lei 7.348. Tais instruçõessão fundamentais porque os governos estaduais e municipais procuram seguir(quando lhes interessam, é claro) os procedimentos nelas contidos, nãonecessariamente a Constituição Federal, Estadual ou Lei Orgânica ou alegislação educacional.

3) Definição dos impostos que compõem a base de cálculo do percentualmínimo. Queríamos saber sobretudo se a receita da dívida ativa oriunda deimpostos (DAI), sua atualização monetária e as multas e juros de mora sobrea dívida era computada. Essa questão se deveu ao fato de prefeiturasfluminenses não a incluírem e de o TCE não tê-la contabilizado por muitosanos.

4) Contabilização dos ganhos, complementação federal e rendimentosfinanceiros com o FUNDEF, receitas do salário-educação, convênios de

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natureza educacional (merenda e outros) e receitas de serviços prestadospor instituições educacionais e operações de crédito para a educação. Eramcontabilizados como parte do percentual mínimo ou como acréscimos a ele?Este cálculo é importante porque, muitas vezes, os governos omitem taisreceitas ou as incluem na base de cálculo do percentual mínimo, quando ocorreto é acrescentá-las integralmente ao mínimo.

5) Critérios de cálculo do valor devido em educação: valores nominais ouvalores reais, ou, em outras palavras, os valores devidos são corrigidosmonetariamente? Estes critérios são fundamentais numa época de inflaçãoalta e mesmo após a decretação do Plano Real, em julho de 1994, porque ainflação persistiu, embora relativamente baixa.

6) Definição de despesas consideradas como MDE. É fundamental a clarezasobre essa definição, porque não raro os governos confundem tais despesascom as realizadas na função orçamentária ‘Educação e Cultura’, modificadapara ‘Educação’ a partir de 2001, mais ampla do que o conceito de MDE,ou com o órgão responsável pela educação.

7) Critérios de cálculo das despesas em MDE - valores empenhados,liquidados ou pagos no ano. Essa diferenciação é fundamental porque não éincomum os governos considerarem os valores empenhados como osaplicados no ensino, mas cancelarem uma parte de tais empenhos no exercícioseguinte, fraudando, assim, os valores aplicados no ensino.

8) Procedimentos adotados pelos TCs tendo em vista a implantaçãoobrigatória em 1998 do FUNDEF, cuja lei de regulamentação previa, noArt. 11, que “... os Tribunais de Contas da União, dos Estados e Municípioscriarão mecanismos adequados à fiscalização do cumprimento pleno dodisposto no artigo 212 da Constituição Federal e desta Lei.”

3. O TC do Mato Grosso

No caso do TC do Mato Grosso, o nosso estudo se baseou (1)nos relatórios e pareceres prévios do TC sobre as contas de 1996, 1997,

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1998, 1999, 2000, 2001, 2004 e 2005 do governo estadual, publicados narevista do TC e/ou disponíveis no sítio do TC (www.tce.mt.gov.br); (2) naresolução nº. 1, editada pelo TC em 12/8/98, que dispõe sobre mecanismospara a fiscalização do cumprimento do disposto no artigo 212 da CF; (3) noofício 2.142, que o TC nos enviou em 31/3/98; (4) nos artigos de Ana Duarte(1997), técnica do TC, e Rosana Rodrigues (1998), assessora jurídica doTC, publicados na Revista do Tribunal de Contas do Mato Grosso; (5)nas informações prestadas em 2005 pelo Sr. Edmar Augusto Vieira, gestorgovernamental da Secretaria Estadual de Planejamento. Infelizmente, sãopouco úteis os pareceres do TC sobre as contas de 2002 e 2003, disponíveisem seu sítio, pois são muito sucintos e não permitem compreender osprocedimentos que se utilizou na contabilização da receita e despesa emMDE. Os nossos comentários sobre as contas de 1999 também foramprejudicados, porque o número 18 da revista do TC, com o relatório sobreelas, não continham as páginas 67 a 70, que aparentemente traziaminformações importantes sobre a aplicação no ensino.

3.1 As diferenças de interpretação entre técnicos e instâncias do TC

Embora nem todos os documentos mencionados sejamsuficientemente detalhados e/ou muito esclarecedores, permitem apontaralguns dos procedimentos do TC. Inicialmente, cabe sublinhar as diferençasde interpretação entre técnicos e instâncias do próprio TC. Uma refere-seao percentual mínimo devido se a Lei Orgânica (LO) prevê um percentualsuperior aos 25% da CF. Enquanto a técnica Ana Maria de Moraes Duarte(DUARTE, 1997, p. 68) recomenda o cumprimento do percentual da LO,caso ele seja maior do que os 25% fixados pela CF, Rosana Rodrigues(RODRIGUES, 1998), assessora jurídica do TC, é ambígua quanto a essaquestão, pois, embora informe que deve prevalecer o percentual da LO,“sob pena de se comprometer a autonomia municipal”, alega que “não sepossa aventar por inconstitucional o procedimento” de aplicação dos 25%.Ao alegar não ser inconstitucional a aplicação de 25% pelo prefeito quandoa LO prevê um percentual maior, a assessora acaba aceitando o

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descumprimento da LO.Esta oscilação se manifestou também no caso do percentual mínimo

que o governo estadual deveria aplicar, com base no art. 245 da ConstituiçãoEstadual de 1989, que determinou 35% prioritariamente no ensinofundamental e médio. Por exemplo, o relatório do TC sobre as contas de1996 informa que o Estado deveria aplicar 35%, porém só gastou 27,41%,ou R$ 232 milhões. Já o relatório sobre as contas de 1997 informa que oTC vem aceitando os 25%, “não só nas contas do Governo, como nas dosPrefeitos, a despeito das suas Leis Orgânicas fixarem percentuais superiores”(MATO GROSSO, TCE, 1999a, p. 126). No relatório sobre as contas de1998 (MATO GROSSO, TCE, 1999b), no entanto, o TC volta a mencionar35%, porém a sua tabela listando receitas e despesas só se refere a 25%. Aresolução nº 1 (MATO GROSSO, TCE, 1998b), por sua vez, só fazreferência aos 25%. Não conheço o fundamento legal deste não-acatamentodo percentual mínimo fixado pela CE, que contraria também o art. 69 daLDB, segundo o qual o percentual válido seria o fixado nas ConstituiçõesEstaduais (para os governos estaduais) e nas Leis Orgânicas (para asprefeituras). Desde então, o TC se esqueceu dos 35% e passou a se basearapenas nos 25%.

Além de não seguir a CE, o TC não levou em consideração aliminar do Supremo Tribunal Federal (STF) negando a inconstitucionalidadedos 35% argüída em 1990 pelo governo estadual na Ação Direta deInconstitucionalidade nº 282-1, ou seja, o governo estadual continuou sendoobrigado a cumprir os 35%. O STF só deferiu a liminar relativa à expressão“e os municípios” do art. 245, o que significa que os municípios deixaram deser obrigados a aplicar os 35% fixados na Constituição Estadual.

Outra ilegalidade praticada pelo governo estadual foi considerar,pelo menos nas contas de 2001 (MATO GROSSO, TCE, 2003, p. 143),que o percentual mínimo de 1% dos impostos (equivalentes a R$ 22,4 milhõesem 2001) vinculados pela CE à educação superior possa ser contabilizadodentro do mínimo de 25%, quando, pela CE, o correto é contabilizá-lo forados 35%. Nos relatórios sobre as contas de 1996 e 1998 o TC não

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contabilizou o 1% dentro do percentual mínimo. O relatório sobre as contasde 1997 (MATO GROSSO, TCE, 1999a, p. 127), por sua vez, nãoesclarece se os R$ 12,6 milhões aplicados no ensino superior (1,17%) foramcontabilizados dentro do percentual mínimo vinculado ao ensino fundamentale médio. Tal interpretação equivocada do governo foi endossado pelo parecerdo Ministério Público junto ao TC pelo menos nas contas de 1999, cujoparecer estima que o governo teria aplicado 26,62% dos impostos, com ainclusão do 1,48% aplicado no ensino superior. Entretanto, nas contas de2001, o Ministério Público não parece ter incluído o percentual mínimo doensino superior no cálculo, mesmo com a divergência de cálculo do montantedevido entre o governo estadual e o TC.

3.2. Os componentes da receita vinculadas à educação

Com relação aos componentes da receita vinculada à educação -os impostos, a dívida ativa de impostos, suas multas e juros de mora, asreceitas vinculadas integralmente à educação e, portanto, adicionais aopercentual mínimo, como os convênios, o salário-educação, o rendimentofinanceiro com tais receitas adicionais e, após 1998, o ganho com o FUNDEFe o rendimento financeiro com suas receitas, não tivemos acesso a nenhumaresolução ou instrução normativa do TC para saber como ele contabilizoutais receitas, pelo menos antes de 1998, e os números da revista do TCanteriores a 1997 não esclarecem tais procedimentos. O primeiro númeroda revista que oferece algum esclarecimento é o 14, de 1998, que contém orelatório sobre as contas estaduais de 1996, o qual, no entanto, não esclarecese a dívida ativa oriunda de impostos e suas multas e juros de mora sãoincluídas na base de cálculo do percentual mínimo, nem como sãocontabilizadas as receitas de convênios e salário-educação, adicionais aomínimo. É possível que a dívida arrecadada, cujo montante não é significativo,tenha sido, corretamente, contabilizada na base de cálculo, se tomarmoscomo referência os relatórios sobre as contas estaduais de 1998, 2000,2001 e 2004.

Quanto às receitas adicionais ao mínimo (convênios, salário-

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educação) e que não devem ser contabilizadas na base de cálculo, o TCnem sempre é claro. É verdade que o seu ofício 2.142 (MATO GROSSO,TCE, 1998a) informa que tais receitas são excluídas da base de cálculo, ouseja, não poderiam ser contabilizadas para efeito do cálculo do percentualmínimo. No entanto, o relatório do TC sobre as contas de 1998, emboraexclua as receitas de convênios (R$ 11,8 milhões) da base de cálculo, nãomenciona o salário-educação, que pode ter sido empregado para pagardespesas que só podem ser financiadas com o percentual mínimo dosimpostos, não com o salário-educação, que não é imposto, mas simcontribuição social. Já o relatório sobre as contas de 2000 corretamenteexclui tanto os convênios (R$ 11,6 milhões) quanto o salário-educação (R$12,8 milhões), o mesmo fazendo o relatório sobre as contas de 2004.Entretanto, o relatório sobre as contas de 1999 aceita, na base de cálculo, acontabilização do salário-educação (R$ 8,1 milhões) e de convênios (R$1,2 milhão) pagos no exercício. Como o TC também contabilizou, para efeitode cálculo do percentual mínimo em 1999, restos a pagar do salário-educação(R$ 1,6 milhão) e convênios (R$ 1,7 milhão) de 1998, a contabilizaçãoequivocada no percentual mínimo totalizou mais de R$ 12 milhões em 1999.

Com relação aos possíveis rendimentos financeiros obtidos não sócom tais receitas adicionais mas com o total dos impostos vinculados àeducação, o TC aparentemente não os contabilizou, se tomarmos comoreferência os relatórios mencionados acima, embora a sua resolução nº1(MATO GROSSO, TCE, 1998c) determinasse que todos os saldosdisponíveis dos recursos da educação fossem aplicados diariamente em fundosde curto prazo ou em operações de mercado aberto, sendo seus resultadosfinanceiros utilizados EXCLUSIVAMENTE na manutenção edesenvolvimento do ensino. Em outras palavras, o TC não cumpriu a suaprópria resolução.

Esta resolução tampouco esclarece como tais receitas adicionaisdevem ser contabilizadas, na suposição equivocada de que elas são apenasas oriundas do percentual mínimo de impostos. Equivocou-se também aonão incluir, no FUNDEF, os rendimentos financeiros auferidos com sua receita,

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conforme previsto na Lei Federal nº. 9.424, de 1996. Outro equívoco daresolução foi não determinar, conforme exigido pela Emenda Constitucional14, que 15% dos demais impostos não integrantes do FUNDEF sejamdestinados ao ensino fundamental até 2006.

Em 2004, o TC adotou um procedimento inédito entre os TCs enão adotado em nenhum ano anterior, ao excluir da base de cálculo o impostode renda dos servidores estaduais e municipais. Respondendo à consultaformulada pelo governo estadual através do processo nº 21.953-3/04, oTC entendeu que este imposto representa tão somente “registro contábil” enão se trata de “receita financeira disponível para entrega”, entendimentoeste firmado por unanimidade dos conselheiros do TC, através do acórdãonº 1.098/04, de 3/11/04, contrariando as interpretações da Secretaria doTesouro Nacional, dos demais Tribunais de Contas e do Tribunal de Contasda União. A conseqüência dessa interpretação é que dezenas de milhões dereais deixaram/deixam de ser vinculados, não só à educação das redesmunicipais e estadual, como também à saúde, desde 20042 .

3.3 As renúncias fiscais

Outro prejuízo para o financiamento da educação e também dasaúde (são os únicos setores que contam com a vinculação constitucional deimpostos para o seu financiamento) e não tão visível, são as renúncias fiscais.Segundo o relatório do TC sobre as contas estaduais de 2001, o montantede benefícios e incentivos fiscais teria sido em torno de R$ 509 milhões em2000, estimando-se em R$ 467 milhões a renúncia para 2001 (MATOGROSSO, TCE, 2003, p. 133). Edmar Vieira (VIEIRA, 2006), gestorgovernamental da Secretaria Estadual de Planejamento, em correspondênciadirigida a mim, estima a renúncia em R$ um bilhão em 2005, provocadapelos seguintes fundos e que não poderiam ser subtraídas da educação,segundo o § 3º do art. 245 da Constituição Estadual:

2 Agradeço a Edmar Vieira, gestor governamental da Secretaria de Planejamento, por esta informação.

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1) Fundo Estadual de Transporte e Habitação - FETHAB.

2) Fundo Partilhado de Investimentos Sociais - FUPIS, criado pela Lei n°8.059/2003, cujo art. 6° prevê que as empresas que contribuírem ao fundopoderão deduzir até 30% do saldo devedor do ICMS. Ou seja, o recursodeixa de entrar como receita de impostos (ICMS) e entra, aparentemente,como “Contribuição”.

3) Fundo Estadual de Fomento à Cultura do Estado de Mato Grosso, instituídopela Lei nº. 8.257, de 22/12/04. Semelhante ao FUPIS, o seu art. 6° prevêque as empresas que contribuírem ao Fundo Estadual de Fomento à Culturapoderão deduzir, até o limite de 30% do saldo devedor do Imposto sobreOperações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações deServiços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação -ICMS apurado em cada período, os valores efetivamente depositados embenefício do Fundo, nos termos do art. 14 da Lei Complementar Federal nº101, de 4 de maio de 2000.

A propósito do FETHAB, o relatório sobre as contas de 2001aponta uma divergência significativa entre a equipe técnica do TC e oMinistério Público junto ao TC. A equipe técnica contabilizou R$ 49,3 milhõesdo FETHAB na base de cálculo do percentual mínimo por entender que oFundo, embora com a nomenclatura de “contribuição”, constitui imposto,com base no art. 12, § 2º da Lei 7.263/2000, segundo o qual, para fins deapuração e recolhimento de ICMS o FETHAB seria atribuído como créditoa ser reduzido do ICMS (MATO GROSSO, 2003, pp. 140-141). OMinistério Público, por sua vez, entende que o FETHAB seria contribuiçãoe não imposto (p. 153) e, portanto, não deveria ser incluído na base decálculo.

A propósito dessas renúncias fiscais que resultam em prejuízo paraa educação e a saúde, convém lembrar que nem o governo estadual, nem oTC cumprem o § 3º do art. 245 da Constituição Estadual, que prevê que“Nos casos de anistia fiscal ou incentivos fiscais de qualquer natureza, fica oPoder Público proibido de incluir os trinta e cinco por cento destinados àeducação.” Em outras palavras, tais incentivos, se relacionados a impostos,

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não podem ser excluídos da base de cálculo vinculada à educação.

3.4. As despesas em MDE

Na definição das despesas em MDE, os relatórios do TC não sãosuficientemente detalhados e, portanto, não é possível verificar se elas sãorealmente de MDE. Por exemplo, a merenda escolar, que não pode serpaga com o percentual mínimo dos impostos, pode ter sido contabilizadacomo MDE, o que infringiria a LDB. Além disso, o TC comete o equívocode considerar gastos em órgãos da educação (Secretaria Estadual e FundoEstadual de Educação) como se fossem sinônimos de gastos em MDE. Ora,nem todo gasto realizado por tais órgãos são de MDE. Um exemplo é o daprópria merenda e dos inativos. Assim, é provável que os valores reais gastosem MDE não sejam os indicados nos relatórios.

A principal polêmica do que é ou não MDE é a relativa aos inativos,sobre a qual o TC adotou procedimento oscilante. Até 1997 aceitava queeles fossem incluídos no percentual mínimo, embora houvesse divergênciasno interior do TC. Segundo o relatório do TC sobre as contas de 1997(MATO GROSSO, TCE, 1999a), “é certo que a matéria é controvertível.Em princípio há de se excluir essas despesas, como bem frisou a comissãono seu alentado Relatório (...). “Porém, argumentou o relator das contas queaceitou a inclusão delas porque a LDB não teria excluído expressamente taisdespesas e o seu art. 88 ter dado um prazo de um ano para a União, osEstados, o Distrito Federal e os Municípios adaptarem sua legislaçãoeducacional (pp. 126-127). No relatório sobre as contas de 1998 (MATOGROSSO, TCE, 1999b), os gastos com inativos (R$ 24,3 milhões) foramexcluídos, reduzindo o percentual aplicado no exercício para 265,2 milhões,ou 22,9% da receita líquida de impostos. É possível que o montante aplicadoem 1998 seja até menor porque, segundo o relatório, o governo teriacometido a irregularidade de usar R$ 11,9 milhões do FUNDEF, que entrouem vigor em 1998, para pagar despesas do exercício anterior (1997). Apropósito da exclusão dos inativos de MDE, uma Comissão do TC, emresposta à defesa formulada pelo governo estadual sobre o relatório do TC,

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apresenta um argumento que nunca observamos em documentos de outrosTCs quando afirma, corretamente, que “por analogia, se os recursos doFUNDEF não podem respaldar despesas com inativos, também estes inativosnão podem integrar o grupo de despesas de aplicação na educação.” (MATOGROSSO, TCE, 1999b, p. 145). Já no relatório sobre as contas de 1999,o TC, sem nenhuma explicação ou justificativa, aceita o pagamento dosinativos com parte dos impostos vinculados ao percentual mínimo. O relatóriosobre as contas de 2000 (MATO GROSSO, TCE, 2003), por sua vez, écontraditório. Ao mesmo tempo que declara que o governo aplicou 25,26%e atendeu à exigência constitucional de 25% dos impostos previstos na CF,apresenta uma tabela, na p. 48, que mostra que este percentual cai para21,91% com a exclusão dos dispêndios com inativos (R$ 76,9 milhões),salário-educação (R$ 12,8 milhões) e convênios (R$ 11,6 milhões). Orelatório sobre as contas de 2001 é curioso. A equipe técnica do TC pareceexcluir os gastos com os inativos (R$ 42 milhões), mas o conselheiro-relatoradota uma posição dúbia, aparentemente aceitando o pagamento dos inativoscom o percentual mínimo, embora reconheça que o Parecer CP 26/97 doConselho Nacional de Educação tenha excluído os inativos de MDE e que oTCU não recomenda o pagamento dos inativos com recursos destinados àMDE. Os relatórios sobre as contas de 2004 e 2005, por sua vez, nãomencionam os inativos e é provável que o TC tenha aceito que o pagamentodeles fosse considerado MDE.

Também o Ministério Público junto ao TC, em seus pareceres, nãodemonstra uniformidade de interpretação nesta questão. Enquanto nas contasde 1999 (MATO GROSSO, TCE, 2000, p. 78) e 2001 (MATO GROSSO,TCE, 2003, p. 153) é favorável a que os inativos sejam pagos com os recursosvinculados, nas de 2000 adota posição contrária, afirmando que “... assisterazão aos auditores da Casa, quando afirmam que os pagamentos dosproventos relacionados aos inativos e pensionistas não devem compor abase de cálculo dos 25% destinados à manutenção e desenvolvimento doensino, (...) pois, em consonância com o entendimento do Conselho Nacionalde Educação, os inativos e pensionistas não contribuem com as ações de

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manutenção e desenvolvimento do ensino. (...) A alegação da SEFAZ[Secretaria de Fazenda] de que os inativos e pensionistas da SEDUC[Secretaria de Educação] estão vinculados a esta Secretaria não se traduzem argumento fortemente válido para autorizar o Sr. Secretário a lançar mãodos recursos específicos da Educação.” (MATO GROSSO, TCE, 2003, p.53).

3.5. A destinação do FUNDEF

A falta de uniformidade também caracteriza o TC na interpretaçãosobre a destinação dos 60% do FUNDEF, ora se referindo a professores,ora a profissionais do magistério em exercício no ensino fundamental, o quetalvez se deva à falta de consistência da própria legislação federal. Enquantoa Emenda Constitucional 14 estabelece que pelo menos 60% do FUNDEFse destinam ao pagamento de professores em efetivo exercício no ensinofundamental, a Lei 9.424, que regulamentou o FUNDEF, em 1996,determinou que pelo menos 60% são para a remuneração dos profissionaisdo magistério, categoria que, segundo a Resolução nº. 3, de 1997, doConselho Nacional de Educação (BRASIL, MEC, 1997), abrange não sóprofessores, como também diretores, supervisores, orientadores,coordenadores e todos aqueles envolvidos em funções tradicionalmentedefinidas como pedagógicas. Entretanto, apesar dessa oscilação na legislaçãofederal, o TC deveria ter feito uma opção sobre os beneficiáveis pelos 60%.

A propósito da destinação dos 60% do FUNDEF, os pareceresdo TC nem sempre deixam claro se o TC verifica efetivamente se os pagoscom este percentual estão em exercício no ensino fundamental. Há exceções,no entanto. Segundo a Comissão Técnica do TC, o governo estadual teria

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usado R$ 17 milhões do FUNDEF para pagamento dos professores doensino médio nas contas de 1999 (MATO GROSSO, TCE, 2000, p. 74).

O TC também se equivoca ao usar os termos “valorização” e“remuneração” do magistério como se fossem sinônimos, como fez norelatório sobre as contas de 2001 (MATO GROSSO, 2003, p. 140). Ora,60% do FUNDEF para a remuneração dos professores ou profissionais domagistério em exercício no ensino fundamental não garantiram, nem garantem,nem garantirão no FUNDEB, a valorização, pelo menos no sentido demelhoria salarial, por duas razões básicas.

Uma é que o FUNDEF é um fundo que não aumentou os recursospara a educação, mas apenas redistribuiu uma parte deles (15% de algunsimpostos) entre o governo estadual e as prefeituras de acordo com o númerode matrículas que tinham no ensino fundamental regular. Nesta redistribuição,alguns ganharam mas outros perderam na mesma proporção. No MatoGrosso, o governo estadual perdeu para muitas prefeituras e, portanto, asua receita com o FUNDEF correspondeu a um valor inferior à suacontribuição. Em outras palavras, os 60% tomaram como referência umvalor inferior e, portanto, não poderiam melhorar os salários, se o governoestadual se limitasse apenas aos 60%. Na verdade, segundo vários pareceresdo TC, o governo estadual nem mesmo destinou 60% para tal remuneraçãoem vários anos.

A outra razão é que as receitas de impostos vinculadas à educação,mas que não integram o FUNDEF, às vezes (dependendo do Estado ou doMunicípio) são maiores ou mesmo bem maiores do que a receita com oFUNDEF. Por exemplo, segundo o parecer do TC sobre as contas estaduaisde 2005 (MATO GROSSO, TCE, 2006), o total de impostos teria sido deR$ 3,146 bilhões. Se tomarmos como referência os 35% dos impostosprevistos pela Constituição Estadual prioritariamente para o ensinofundamental e o ensino médio, o montante vinculado à MDE seria de R$1,101 bilhão. Como, segundo o parecer, a receita do governo estadual como FUNDEF teria sido de cerca de R$ 350 milhões em 2005, isso significaque os 60% do FUNDEF significam em torno de R$ 212 milhões, menos de

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20% do total de R$ 1,101 bilhão vinculado à MDE. Mesmo se nos basearmosno percentual mínimo de 25%, adotado pelo governo estadual e aceitoequivocadamente pelo TC ao longo de muitos anos, correspondentes a R$786 milhões (25% de R$ 3,146 bilhões), os R$ 212 milhões equivaleriam aapenas 27% do total vinculado à MDE (R$ 786 milhões). Este percentual,muito inferior aos 60%, mostra a fragilidade do FUNDEF (e também doFUNDEB) para qualquer proposta séria de valorização do magistério.

3.6. Despesa: empenhada, liquidada ou paga?

Outra diferença de interpretação refere-se aos valores consideradoscomo aplicados no exercício. Seriam os empenhados ou os pagos? Segundoa técnica Ana Duarte, há duas correntes no TC sobre essa questão: “umadesenvolvida pelo senhor presidente, onde as despesas empenhadas queficarão em restos a pagar poderão ser consideradas como aplicadas naeducação, desde que haja disponível financeiro para quitação dessasobrigações. [...] a outra corrente considera apenas a despesa efetivamentepaga, não considerando o restos a pagar, mesmo que o município apresentedisponível financeiro” (DUARTE, 1997, p. 68). O Inspetor Geral do TCE,Sr. Miguel Augusto Silva (MATO GROSSO, TCE, 1998a), em resposta àconsulta que formulamos ao TCE em 1998 (sintetizadas na introdução desteartigo), informa que o TC tem se baseado em despesas pagas, o que pudemosconstatar em relatórios do TC sobre as contas estaduais de vários anos etambém na resolução nº1, de 1998.

Este procedimento de se basear nas despesas pagas tem a virtudede combater manobras contábeis dos empenhos em restos a pagar que emexercício posterior são cancelados e, portanto, não são pagos, irregularidadeessa cuja prática é reconhecida por conselheiros de dois TCs diferentes.José Gomes Graciosa, do TC do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo,reconhece a manobra de emissão de “ ‘empenhos frios’, para se atingir opercentual mínimo, que, no entanto, são anulados no exercício subseqüente,através do cancelamento de restos a pagar” (GRACIOSA, 1999, p. 24).Flávio Régis Xavier de Moura e Castro, do TC de Minas Gerais e presidente

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da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil em 1998,por sua vez, explica que “Os Restos a pagar têm sido utilizados como artifíciopara cumprimento de dispositivos constitucionais, como é o caso dos 25%na manutenção e desenvolvimento do ensino, promovendo o cancelamentodas inscrições no exercício seguinte” (CASTRO, 1999, p. 18).

Entretanto, o TC de Mato Grosso distorce o montante pago aoincluir os restos a pagar de exercícios anteriores. Em 1998, 1999 e 2000,por exemplo, foram aceitos pelo TC, respectivamente, os seguintes restos apagar: R$ 23 milhões, R$ 33,2 milhões e R$ 7,8 milhões. Contraditoriamente,no caso do FUNDEF, o TC, pelo menos nas contas estaduais de 1998, nãoaceitou que a sua receita de 1998 financiasse despesas de exercício anterior,citando manual de orientação do MEC que teria determinado que “os critériose limites estabelecidos pela legislação, com relação ao uso dos recursos doFUNDEF (e da educação em geral), devem ser observados e cumpridostomando-se como referência cada exercício” (MATO GROSSO, TCE,1999b, p. 108). Segundo o seu parecer, R$ 11,9 milhões do FUNDEFteriam sido utilizados em 1998 para quitar dívidas de exercício anterior.

4. Conclusões

Este estudo dos procedimentos do TC para a contabilização dareceita e despesa vinculada à MDE permitiu apontar algumas conclusõescom impacto negativo no financiamento da educação. Antes de mais nada,cabe ressaltar que a qualidade da análise foi prejudicada pelo poucodetalhamento da documentação que, mesmo com esta limitação, foi suficientepara identificar algumas fragilidades dos procedimentos do TC. Se eledetalhasse as despesas que considerou de MDE, provavelmente algumasseriam excluídas do legalmente permitido pela LDB, o que reduziria o valorlegalmente aplicado. Por exemplo, não esclarece se as despesas com merendaescolar foram contabilizadas dentro do percentual mínimo dos impostos,contabilização não permitida pela LDB. De qualquer maneira, a documentaçãomostra que o TC adotou interpretações oscilantes ao longo do tempo.

Num momento considerou que o percentual mínimo que o governo

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estadual deveria aplicar era o fixado na Constituição Estadual (35%), não os25% da CF. Posteriormente, passou a aceitar, com base em critérios quedesconhecemos, os 25% da CF. Outra oscilação pode ser observada nadefinição dos componentes da base de cálculo do percentual mínimo. Emofício a nós dirigido em 1998, o TC afirmou não contabilizar as receitasextras como as de convênios e salário-educação na base de cálculo dopercentual mínimo, porém alguns de seus relatórios contabilizaram tais receitasdentro do mínimo, quando, na verdade, constituem acréscimos ao mínimo.

O surpreendente foi constatar a aceitação pelo TC, a partir deconsulta formulada pela Secretaria Estadual de Fazenda, que desde 2004 oimposto de renda dos servidores estaduais e municipais não seria classificadocomo imposto e, portanto, não entraria na base de cálculo dos impostos. Naclassificação das despesas em MDE, a principal polêmica, relativa aopagamento dos inativos com o percentual mínimo, não teve uma interpretaçãouniforme do TC, que ora aceitou, ora rejeitou tal pagamento com o percentualmínimo. Na questão das renúncias fiscais, que correspondem a centenas demilhões de reais, o governo estadual e o TC não cumpriram a ConstituiçãoEstadual, que estipula que elas não podem ser subtraídas do montante sobreo qual incide o percentual mínimo vinculado à educação. Outro equívoco doTC foi contabilizar restos a pagar que sejam pagos no exercício.

É um equívoco porque tais despesas pertencem a exercíciosanteriores, mesmo porque suas fontes também a eles pertencem. Em síntese,em conseqüência destes procedimentos equivocados dos governos estaduaise provavelmente dos municipais e sua aceitação pelo Tribunal de Contas, épossível estimar em centenas de milhões de reais o prejuízo anual para aeducação pública estadual e municipal no Mato Grosso. Por último, vale apena indagar sobre a eficácia do Tribunal de Contas para obrigar o governoestadual a cumprir a lei. Afinal, o governo estadual não parece ter sofridonenhuma punição, a não ser uma ou outra ressalva do TC, embora tenhacontinuado praticando as mesmas irregularidades, como a não aplicação de15% de todos os impostos no ensino fundamental e de 60% do FUNDEFna remuneração do magistério, o uso de recursos do FUNDEF para pagar

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despesas de exercício anterior, ou de pagamento dos inativos com uma partedo percentual mínimo vinculado à MDE.

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OS INTELECTUAIS DIANTE DO MUNDO: ENGAJAMENTO ERESPONSABILIDADE

Antonio Ozaí da Silva1

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa,inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente merelaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o queocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências.Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. Nomundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar,mas para mudar (FREIRE, 1997, p.85-6).

RESUMO: O objetivo deste artigo é resgatar a polêmica sobre o engajamentodos intelectuais, suas relações com o poder, função e responsabilidade social.Após retomar as origens e significado da palavra “intelectual”, faz-se umareflexão sobre as relações, complexas e polêmicas, entre a palavra e a ação, ateoria e a prática dos intelectuais. Procura-se demonstrar que o tema permaneceatual e se traduz no dilema do engajamento da intelligentsia e suaresponsabilização perante a sociedade na qual se insere. Refuta-se a tese daneutralidade axiológica e, inspirado em autores como Paulo Freire, afirma-se anecessidade dos intelectuais se comprometerem criticamente enquanto sujeitostransformadores.

PALAVRAS-CHAVE: Intelectuais; Política; Poder; Engajamento

ABSTRACT: The aim of this article is to re-start the discussion about theintellectuals’ engagement, their relation with power, their social function andresponsibility. After retaking the origin and meaning of the word “intellectual”,a reflection is made about the polemic and complex relations between theword and the action, the intellectuals’ theory and the intellectuals’ exercise.The article intends to demonstrate that the theme is still current and that suchcan be observed in the matter of the intelligentsia’s (social) engagement andin the fact that the intelligentsia has responsibilities within the society where itexists. The axiological neutrality’s thesis is refuted and, inspired by authors likePaulo Freire, the article affirms the need for intellectuals to be critically involved

1 Professor da UEM (Universidade Estadual de Maringá-PR). Doutor em Educação pela USP.

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as transforming subjects.

KEY-WORDS: Intellectuals; Politics; Power; Engagement

Desde a antiguidade os intelectuais se colocam a soldo dos governantes ecolaboram para a conservação do poder e do status quo: 

Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram,pois sempre existiu em todas as sociedades, ao lado do podereconômico e do poder político, o poder ideológico, que se exercenão sobre os corpos como o poder político, jamais separado dopoder militar, não sobre a posse de bens intelectuais, dos quais senecessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, massobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos,de visões, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (opoder ideológico é extremamente dependente da natureza dohomem como animal falante) (BOBBIO, 1997, p.11).

Segundo Weber, “a princípio o sacerdócio era a carreira maisimportante do intelectualismo, particularmente onde existiam escriturassagradas, que faziam com que os sacerdotes se transformassem em umaguilda literária, engajada na interpretação das escrituras e no ensino de seuconteúdo, sentido e aplicação”. (Citado em SCHWARTZMAN, 1981, p.35). É interessante observar que o intelectual moderno atuou no sentidocontrário à função mágica e religiosa que desempenhou nas sociedadesantigas. Como indica Weber (1993), a sociedade moderna promoveu acrescente racionalização e burocratização, resultando no desencantamentodo mundo. Por outro lado, também sempre existiram os contestadores daordem e do poder político vigente, os inconformistas e instabilizadores; osque construíram novas ordens e produziram novos contestadores e novosdefensores da ordem.

O termo intelectual

A origem da palavra “intelectual” tem como marco o dia 14 dejaneiro de 1898. Nesta data, apareceu em Paris, no jornal L’aurore, o

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Manifeste des intellectuales, assinado por ilustres escritores como Zola,Anatole France, Proust, a favor de Dreyfus. Naquela época, o termo jáestava associado à palavra russa intelligentsia:

No particular contexto da história da Rússia pré-revolucionária,de fato, o termo, usado, ao que tudo indica, pela primeira vez, peloromancista, Boborykin e difundido nos últimos decênios do séculoXIX, significava o conjunto (não necessariamente constituindoum grupo homogêneo) dos livres pensadores - que iniciaram,promoveram e ao fim fizeram explodir o processo de crítica daautocracia czarista e, em geral, das condições de atraso dasociedade russa (BOBBIO, 1997, p. 122).

Esta é a típica situação em que manifestos se justificam e assiná-losou não se traduzem em riscos concretos. É nesses contextos, onde tomar apostura X ou Y indica compromisso e responsabilização, vale dizerengajamento, com os perigos inerentes. Os signatários do Manifesto dosIntelectuais se caracterizam por se não serem políticos, mas um grupo dehomens conhecidos pela atividade literária; são homens das letras que seposicionam em relação ao poder público e confrontam a “a razão de Estadoem nome da razão sem outras especificações, defendendo a verdade daqual se consideram os depositários contra a “mentira útil” (Id., p. 123).

Palavra e ação, teoria e prática

Os dreyfusistas inauguraram uma prática que se tornou muito comumnos tempos atuais: os manifestos. Esta prática denota a exigência de o intelectualtomar partido diante dos dilemas do seu tempo, diante do mundo. Oengajamento é próprio dos intelectuais? É lícito que o intelectual recuse apolítica? Ele deve se abster de participar do poder? É correto que ele assumao papel de conselheiro do príncipe? Qual é a sua responsabilidade diante dasociedade?

Sartre, modelo de intelectual engajado, celebrizou esse debate aodefender que o intelectual-escritor não é neutro diante da realidade históricae social. “O escritor ‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar

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é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar” (SARTRE,1993, p. 20). No contexto da sociedade capitalista é impossível manter osonho da imparcialidade diante da condição humana. Para ele, “a função doescritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-seinocente diante dele” (Id., p. 21).

Porém, o intelectual tende a separar a palavra do mundo, o conceitoda realidade. As palavras dissociam-se da vida real, das contradições,sofrimentos e esperanças dos que vivem o mundo. Como assinalaram Freiree Schor: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogointelectual muito interessante - o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos”(1986, p. 131).

Portanto, não se trata apenas de refletir sobre o mundo, dedesvendá-lo aos olhos dos incrédulos, mas de arrancar os homens e mulheresda sua consciência feliz, isto é, da sua ignorância perante o mundo e a condiçãodo homem no mundo, tencionando-os para transformá-lo. Se a palavra éação, a ação não é contemplação. Como enfatizou Marx (1982, p. 3): “Osfilósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,porém, é transformá-lo”.

 Como  vemos,  a  discussão  sobre  a  relação  teoria  e  prática,contemplação e transformação, remete-nos a tempos remotos. E, permaneceatual.

O dilema do engajamento

Sartre observa que o intelectual moderno é um homem-contradição,um ser dividido entre a ideologia particularista (fatores econômicos, sociaise culturais que condicionam sua vida) e o universalismo (exigência intrínsecada sua atitude como técnico e pesquisador). “Um físico que se dedica aconstruir a bomba atômica é um cientista. Um físico que contesta a construçãodesta bomba é um intelectual”, afirma (1994, p. 8). Eis, em resumo, oparadoxo do intelectual moderno na acepção sartriana.

Não cabe, portanto, ao especialista questionar as condições emque se dá a pesquisa, o resultado ou mesmo o uso que se faz dela. Mas é

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precisamente no momento em que o pesquisador “se mete no que não é dasua conta e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas, edas condutas que nelas se inspiram em nome de uma concepção global dohomem e da sociedade” que ele se torna um intelectual (Id., p. 14-5). Então,o intelectual aparece como uma aberração: um monstro.

Tocqueville, no século XIX, censurou os intelectuais por, em suaopinião, desempenharem um papel negativo no processo revolucionáriofrancês. Como observa o Prof. Zevedei Barbu, na apresentação de O AntigoRegime e a Revolução, Tocqueville definiu os intelectuais de sua época como“penseurs de cabinet”, isto é, críticos da sociedade tradicional, mas cujaalternativa se limitava a sonhos e fantasias. Na visão de Tocqueville,

[...] o pecado capital cometido por essa intelligentsia foi o depensar e escrever a respeito de uma nova sociedade sem possuirqualquer experiência em assuntos públicos. Assim, a intelligentsiaconstituía um protótipo de marginalidade, ficando sempresuspensa entre a sociedade real, que ela rejeitava, e a sociedadede seus sonhos, que era irrealizável (1982, p. 16).

Em contraposição, Sartre argumenta que os filósofos iluministastiveram a missão de desenvolver os pressupostos teóricos que legitimaram aideologia burguesa, a qual tornou-se universal e hegemônica. Os filósofoseram intelectuais orgânicos, no sentido gramsciano.

Se, somos feitos à imagem e semelhança de Deus, o ideal iluministanos fez à imagem e semelhança do homem burguês. A universalidade burguesatornou-se ideologia e o intelectual moderno, condicionado por essa ideologia,vê-se impelido a construir um novo humanismo, uma outra universalidade.Esta é, na acepção sartreana, a sua tarefa histórica.

Os intelectuais modernos não pertencem à classe dominante, massão por ela recrutados e a ela se vinculam através de relações empregatícias.Sua formação ideológica resulta de um sistema de ensino necessariamenteseletivo, regulado por relações de classe que excluem e dificultam o acessodos filhos dos trabalhadores à escola, e até mesmo da classe média, desprovida

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de recursos familiares.Estes intelectuais, técnicos do saber prático, encontram-se presos

às amarras do humanismo universalista burguês e às contradições própriasdo seu ser social, enquanto membros de uma categoria social vinculada àideologia dominante. Essa realidade, segundo Sartre, impossibilita osurgimento de intelectuais orgânicos das classes desfavorecidas. Mesmoquando conseguem furar esse bloqueio, os de baixo são integrados no mundoda classe média; tornam-se, por assim dizer, estranhos no ninho. Por outrolado, o pertencimento à camada média causa uma dupla desconfiança: dosde cima (por sua crítica) e dos de baixo (que não o vêem como um dosseus). Imbuído dos valores burgueses - expressos em seu cotidiano, emsuas aspirações sociais, desejos de consumo, etc. - o intelectual encontra-senum círculo vicioso.

A crítica sartreana focaliza o técnico do saber prático que, por suacondição social, é potencialmente um intelectual, mas não necessariamenteatua como tal. Ele aponta a tendência contemporânea dodescomprometimento do intelectual com as questões sociais (e, nesse sentido,ele não realiza as suas potencialidades, isto é, não se assume como intelectual).

Sartre advoga o engajamento militante do intelectual. Sua críticaexprime o elogio ao intelectual que se assume como a consciência infeliz, aaberração que ousa contrapor-se ao humanismo burguês. A função dointelectual reside em sua contradição intrínseca e se relaciona, no final dascontas, com o conhecimento. Sua primeira tarefa é reconhecer a própriacontradição, fazer a autocrítica permanente.

O discurso sartreano prescreve um modelo de intelectual engajadoque induz à diferenciação entre o falso e o verdadeiro intelectual. Há umcerto maniqueísmo nessa postura: os intelectuais se engajam à esquerda e àdireita e, nisto, são autênticos. O pior é o indiferente, o que posa de imparcial.Além disso, esquerda e direita não são termos isentos de interpretação e denuanças. É mais apropriado se referir a várias “esquerdas” e “direitas”. Comonota Bobbio (1997, p.14):

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Falsos são os que desempenham uma função que para Sartre énegativa, e é negativa unicamente porque não desempenham afunção que segundo ele deveriam desempenhar. Assim, será overdadeiro intelectual o revolucionário; falso o reacionário;verdadeiro será aquele que se engaja, falso, aquele que não seengaja e permanece fechado em sua torre de marfim.

Mas é preciso distinguir a atividade real dos intelectuais numdeterminado contexto histórico concreto dos modelos prescritivos, isto é,de como desejamos ou imaginamos a atuação dos intelectuais. Analisandohistoricamente, Bobbio (1997, p. 34) identifica as seguintes posturas:

1. Há os que consideram que os intelectuais não devem se envolvercom a política e devem se restringir à tarefa eminentementeespiritual, isto é, os intelectuais são vistos enquanto guardiões dosprincípios e valores universais;2. Há os que defendem que a tarefa do intelectual é teórica, mastambém imediatamente política, pois a ele compete elaborar asíntese das várias ideologias que possibilitam novas orientaçõespolíticas;3. Outros, concordando com a postura acima, imaginam que cabeao intelectual a função de educar as massas;4. E, por fim, os que defendem que a tarefa do intelectual tambémé política, mas a sua política não é a política ordinária dosgovernantes, mas a da cultura, e é uma política extraordináriaadaptada aos tempos de crise.

Cada uma dessas funções contém riscos de degeneração. Noprimeiro caso, o intelectual é visto como um clérigo e, enquanto tal, tende ase afastar do mundo, a estranhá-lo. O clérigo tende a desenvolver umaconcepção hedonista da cultura e uma visão agnóstica da política.

No segundo, que vê os intelectuais como indivíduos acima docombate, tende-se a desenvolver um certo neutralismo e eticismo abstratogeradores de ceticismos em relação à política, como se os intelectuaisestivessem acima dos pobres mortais, observando “com aristocrático desdém

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os cães que se pegam a dentadas” (Id., p. 35).No terceiro, o intelectual é visto como elite dirigente. O elitismo

levado às ultimas conseqüências implica no afastamento da política, vistacomo uma atividade inferior. Isso resulta num idealismo ingênuo, na crençade que o mundo pode ser transformado pelas idéias. A frustração leva aoisolamento, ao recolhimento interior, como uma forma de não sujar as mãos.No último caso, o risco de degeneração é a concentração dos intelectuaisem organizações e partidos próprios, isolados dos demais setores dasociedade.

Em todas essas posições, observa-se a tendência a elevar osintelectuais acima dos demais grupos sociais, implicando a idéia de umasuperioridade intrínseca à sua profissão. Dessas posturas, resultam dois casoslimites:1º. O isolamento do intelectual em seu próprio mundo, em sua torre demarfim;2º. O engajamento (engagement) profundo do intelectual na política.

Ambos os procedimentos, enfatiza Bobbio, impõem riscos:

Ao ardor de uma estéril revolta individual, reagiu-se com aexaltação da obediência; ao desprezo pela massa, com aincorporação à massa; ao autonomizar-se acima das ideologias,com o fanatismo ideológico do militante; à fábula de um não-classismo superior, com a mortificação da inferioridade de classe.Cansados de estarem acima de todos os partidos, escolhem umpara servir. Não ficam mais acima do combate, mas dentro dele.São clérigos não mais no sentido de portadores de valoresespirituais, mas no sentido de ministros e fiéis de uma igrejaconstituída. Nasce o novo princípio do “partidarismo da cultura”,que desafia, orgulhoso do escândalo, as inúteis vestais consagradasao culto dos valores puros (Id., p. 36 - grifos nosso).

Engajar-se é assumir uma posição no mundo, é tomar partido eassumir os riscos inerentes a essa atitude. Determinadas situações históricasnão permitem a neutralidade política. Por outro lado, o engajamentopressupõe escolher um dos lados em disputa.

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Em 1932, Paul Nizan, intelectual e militante comunista, lançou umlibelo contra os intelectuais não engajados, Os cães de guarda:

Nizan repreendia os puros filósofos pelo seu espiritualismo insosso,pelo seu humanitarismo falso-sublime, por aquela filosofiaedulcorada que Hegel teria chamado de “mingau do coração”,que veda a realidade da miséria, da exploração, da desolação,estendendo-as sobre uma nuvem de pensamentos elevados(BOBBIO, 1997, p. 77).

Julien Benda acusou os intelectuais de traição aos valores universais,ao abraçarem os particularismos de nação, classe, raça, gênero etc. Nizanacusa-os de deserção. Nessa lógica, quem toma partido trai a sagrada funçãodestinada aos intelectuais; quem não toma, deserta, isto é, abandona oshomens reais à sua própria sorte em nomes de valores pretensamenteuniversais e humanitários.

Benda defendeu a democracia na República espanhola e se engajouna luta contra o fascismo. Nizan, comunista fervoroso, decepcionou-se coma política do Partido Comunista, abandonando-o após o pacto germano-soviético. Foi acusado por ex-companheiros de ser espião. Isolado eabandonado, escreveu: “Nos tempos que correm, não reconheço mais queuma virtude: não a coragem, nem a vontade do martírio, nem a abnegação,nem o ofuscamento, mas apenas a vontade de compreender. A única honraque nos resta é a do intelecto” (Apud BOBBIO, 1997, p. 78). Morreu nafrente de combate: tinha apenas 35 anos de idade.

Essas palavras poderiam ter sido escritas por Benda. O exemplodestes autores mostra o quanto as simplificações são perigosas. Tomar ounão tomar partido exige muito mais do que a decisão de se engajar ou não:há momentos em que a recusa a se engajar se impõe; em outras circunstânciasa recusa ao engajamento pode constituir um crime. Benda se engajou quandofoi necessário; Nizan, o militante engajado, voltou-se para o intelecto quandosentiu as conseqüências do seu engajamento. “Tomar partido não é umatraição quando o lado a que me agrego é aquele que realiza melhor osprincípios em que acredito; não tomar partido não é uma deserção quando

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nenhum dos lados os realiza”, assinala Bobbio (1997, p. 78-9).A resposta a esse dilema depende das circunstâncias e das

interpretações que damos a elas. A conduta do intelectual não é determinadaapenas por idealismo, mas também pelas condições históricas concretas.No entanto, podemos imaginar, como faz Bobbio, um modelo ideal deconduta: 

Se eu tivesse que designar um modelo ideal de conduta, diria quea conduta intelectual deveria ser caracterizada por uma fortevontade de participar das lutas políticas e sociais do seu tempoque não o deixe alienar-se tanto a ponto de não sentir aquilo queHegel chamava de “o elevado rumor da história do mundo”, mas,ao mesmo tempo, por aquela distância crítica que o impeça de seidentificar completamente com uma parte até ficar ligado por inteiroa uma palavra de ordem (Id., p. 79).

Para Bobbio, a superação desse dilema está na aceitação daautonomia relativa da cultura, ou seja, uma política de cultura. Assim, evitam-se os extremos: a postura do engajamento a qualquer custo e a atitude doisolamento em torres de marfim. Pois, não-político é diferente de apolítico.Ser não-político significa colocar a política num patamar qualitativamentediferente da política ordinária (partidária) e remetê-la para outro nível nãorestrito à política como potência. “A primeira tarefa dos intelectuais deveriaser a de impedir que o monopólio da força torne-se também o monopólio daverdade” (Id., p. 81).

O engajamento, muitas vezes, configura-se numa forma desubmissão a um aparato, a uma liderança, ao Estado:

Prefiro falar mais de responsabilidade a falar de engajamentoporque importa não que o homem de cultura se engaje ou não seengaje, mas por que coisa se engaja ou não se engaja, assumindotodas as responsabilidades da sua escolha e das conseqüênciasque dela derivam (Id., p. 100).

Seguindo esta análise, o que está em questão não é o engajamentoem si, mas a causa pela qual o intelectual se engaja: há causas que são

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equivocadas e, nesses casos, é melhor o aparente não-engajamento. Ointelectual deve ser julgado por sua responsabilidade. Mas do que o não-engajamento, pesa o crescente processo de desresponsabilização dosintelectuais, muitas vezes escondido sob a capa da ética de grupo.

A desresponsabilização do intelectual se funda no argumento daneutralidade científica. Isso só se torna possível pela rendição da universidadeaos critérios mercadológicos, que transformam educador, educando econhecimento em mercadorias permutáveis. Estamos diante de umauniversidade que produz um tipo especifico de conhecimento, aquele quepode ser oferecido a quem se disponha a financiar a pesquisa; umauniversidade na qual o educando é o cliente, consumidor de conhecimentos.Esta forma de conceber a universidade é assimilada pelo setor público.Amparada em princípios mercantis, a universidade

[...] perde o senso da discriminação ética e da finalidade social desua produção - é uma multiversidade que se vende no mercadoao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, issocoberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seuproduto, capaz de arcar com os custos da e oferece cursos aquem pode pagar (TRAGTENBERG, 1990, p. 14-15).

A ideologia do intelectual desresponsabilizado consiste em “nãoter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder”(Id., p. 15). Esse típico intelectual possui uma capacidade singular de discutirmeios, desconsiderando os fins; é particularmente inteligente natransubstanciação de problemas, qualitativamente políticos em problemastécnicos; é prático ao ponto de evitar o espaço público, preferindo a segurançadas negociatas em gabinetes.

No âmago dessa postura está a ideologia da não-ideologia, a buscadas sinecuras burocráticas legitimadas por um pretenso apoliticismo. Essaforma de analfabetismo político expressa uma posição política (política nosentido amplo, não restrito à política-partidária) e fundamenta atitudes quedesconhecem ou passam por cima de quaisquer preocupações éticas ousociais.

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Considerações conclusivas...

O especialista apolítico se considera neutro e imparcial. Ele é capazde dissertar sobre a miséria humana com a sensibilidade de um autômato; écapaz de escrever sobre os avanços tecnológicos sem se colocar uma simplesquestão: a quais interesses servem a técnica e a ciência? O especialistadesconsidera a dialética da relação indivíduo e sociedade (isola um dos pólosou os toma de forma dicotômica); não percebe que todo saber expressainteresses e relações de poder. Ao mínimo lampejo de consciência infeliz elerecorre à filantropia ou aos argumentos psicologizantes, individualizando osproblemas de caráter social e termina por culpabilizar a vítima.

Muitas vezes, como intelectuais, agimos à maneira dos especialistase políticos: falamos e nada dizemos, escrevemos e nada fazemos, tratamosde temas complexos que envolvem a mísera condição humana com a friezado médico a cortar o corpo, com o calculismo das estatísticas e a banalizaçãoda realidade. A vida escorrega sob os nossos dedos e nosso ser se dilaceraentre o último modismo teórico e as dúvidas abstratas sobre conceitosdesconectados do mundo - mas conectados na rede mundial decomputadores. As idéias aparecem-nos como que autônomas, simplesproduto da nossa inteligência e prova de que pensamos. E, se pensamos,existimos. Se existimos, estamos vivos.

Pura ilusão! E se apenas respiramos e as idéias que imaginamosserem nossas, não as forem? E se, em nossa santa ingenuidade, reproduzimos,ainda que não o desejemos, o discurso da dominação, a linguagem doopressor? Ou, por acaso, o oprimido não introjeta o pensar e agir dominantes?Em nossa insana sabedoria abstraímos a realidade e as idéias nos parecemdesligadas dos contextos históricos, sociais e políticos; desvinculadas dosinteresses sociais e das formas de poder que estes assumem.

Muitas vezes, em nossa arrogância narcisista, agimos como vivosnum mundo de mortos: presos ao nosso próprio umbigo reduzimos a riquezada vida à pobreza da nossa abstração desvinculada da vida. As palavrassoam-nos neutras - como se apenas designassem coisas, objetos; em nosso

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tecnicismo e especialismo a vida se traduz em índices, números, teorias etc.;dados que podem ser simplesmente manipulados, catalogados, classificados,quantificados... E isso, de maneira neutra, imparcial. É o “balé dos conceitos”!

O intelectual isolado em sua torre de marfim - em tempos modernos,é mais propício falarmos em escritórios municiados de computadores - podeimaginar que a sua palavra se transforma em ação pelo ato de proferi-la. Doalto da sua arrogância ou ingenuidade, ele se vangloria de não se envolvercom a política, de não sujar as mãos, de desempenhar o papel de analista econselheiro - os maquiavéis modernos precisam estudar a biografia deMaquiavel! Esse tipo ideal de intelectual se considera no direito de a tudojulgar, a todos aconselhar. Acomodado confortavelmente em sua poltrona, àfrente do monitor, ele escreve sobre os que, certos ou errados, assumemriscos que o comprometem, a sua família e a própria vida. O intelectual sabeo que é certo: afinal ele não defende os valores máximos da humanidade?Mas o único risco que assume é, quem sabe, o de receber uma crítica de umabnegado leitor. A vida continua...

Talvez seja o caso de o intelectual crítico se perguntar sobre assuas atitudes concretas. O comprometimento com o mundo não se dá apenaspela abstração contemplativa, idealista e psicologizante - ainda que crítica.Quem sabe os intelectuais que aderem aos governos não mereçam maisconsideração do que aqueles protegidos em suas casamatas? A palavraengajada impõe riscos. Isso significa abandonar a postura contemplativa,significa assumir que os erros dos que agem resultam em efeitos concretos.

Não, não imagine o leitor que advogamos a adesão incondicional àpolítica partidária ou aos governos de plantão. Apenas observamos que apolítica partidária é uma forma de ação, entre outras, capaz de incorporar osintelectuais, os quais passam a correr riscos reais. Os intelectuais que nãoaderem a esta forma de ação também podem desempenhar uma funçãopolítica transformadora (em sua escola, na sala de aula, na sua cidade etc.).Isso pressupõe um comprometimento que extrapola as abstrações e a posturaconfortável do técnico e especialista que se imagina acima do mundo ou quenão consegue refletir sobre a sua ação como intelectual, desligando-se da

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realidade concreta. Este pode falar de tudo e nada do mundo ter qualquersignificado; suas palavras reduzem-se a conceitos; ele é capaz de conversarpor longas horas sobre idéias, grandes autores e obras, e a vida pulsa à suavolta sem que ele se dê conta ou importância. A condição humana não lheatinge, ele próprio se vê acima - ou imagina tratar dela, codificando-a emconceitos.

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Título: centralizado, em maiúsculo e negrito, com asterisco indicando suaorigem (se houver) no rodapé. Subtítulo em minúsculo e negrito e na margem

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esquerda da página.Nome(s) do(s) autor(es): completo(s) na ordem direta do nome, e na segundalinha abaixo do título, com alinhamento à direita, indicando em nota de rodapéa titulação, cargo que ocupa e instituição a que pertence e endereço eletrônico.Resumo: deve iniciar a um espaço duplo, abaixo do(s) nome(s) do(s)autor(es), sem adentramento, após a palavra RESUMO em maiúscula, seguidade dois pontos, o qual deverá ter no máximo dez linhas.Palavras-chave: A expressão PALAVRA-CHAVE em maiúscula, seguidade dois pontos, a um espaço duplo abaixo do resumo e dois espaços duplosacima do início do abstract, sem adentramento. Utilizar no máximo cincopalavras-chave, separadas por ponto e vírgula.Abstract: a expressão ABSTRACT, em maiúsculo a um espaço duplo abaixodas palavras-chave, seguindo as mesmas orientações do resumo.Referência de citações: deve conter o sobrenome do autor e, entre parênteses,ano de publicação da obra, seguido de vírgula e número da página.Referências bibliográficas: a expressão REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS em letras maiúsculas, sem adentramento, a um espaçoduplo após o final do texto. A primeira obra deve vir a um espaço duploabaixo da expressão REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. As referênciasdevem seguir a NBR 6023/02 da ABNT. Exemplos:Um autor:QUEIROZ, E. O crime do padre amaro. 25. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,2000. 277p.Dois ou três autores:VIGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R. Estudos sobre a história docomportamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.Mais de três autores:CASTORINA, J. A. et al. Piaget-Vigotsky: novas contribuições para odebate. São Paulo: Ática, 1995.

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