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184 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 184-205. RESUMO Apesar de a constituição do su- jeito não residir somente no or- gânico, não podemos desconside- rar que limitações no real do corpo podem impor obstáculos no processo de constituição sub- jetiva. A partir de questiona- mentos da minha experiência clínica como fisioterapeuta neu- ropediátrica e do meu percurso acadêmico no curso de especiali- zação em atendimento clínico – ênfase psicanálise, alguns interrogantes sobre a prática clínica com crianças com trans- tornos neuromotores foram surgindo. Testemunhando uma carência na articulação entre esses saberes, busquei encadear conhecimentos das duas especi- ficidades objetivando propor uma clínica que tome a criança como um sujeito em constituição e não apenas preocupada com o real orgânico da lesão. Descritores: transtornos neuromotores; psicanálise de crianças; fisioterapia neurope- diátrica. Dossiê N CLÍNICA DE CRIANÇAS COM TRANSTORNOS: QUANDO A PREOCUPAÇÃO ESTÁ PARA ALÉM DO ORGÂNICO Marla Finkler Neuwald Andrea Gabriela Ferrari Introdução a clínica da Estimulação Precoce e na Fi- sioterapia Neuropediátrica, é comum nos deparar- mos com bebês ou crianças apresentando lesões mo- toras severas com ou sem outras deficiências associadas, representando grandes obstáculos para o seu desenvolvimento e para sua constituição psí- quica. Geralmente são crianças reféns de um corpo Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional, Porto Alegre, RS, Brasil. Psicóloga e psicanalista. Docente da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil.

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184 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 184-205.

RESUMO

Apesar de a constituição do su-

jeito não residir somente no or-

gânico, não podemos desconside-

rar que limitações no real do

corpo podem impor obstáculos

no processo de constituição sub-

jetiva. A partir de questiona-

mentos da minha experiência

clínica como fisioterapeuta neu-

ropediátrica e do meu percurso

acadêmico no curso de especiali-

zação em atendimento clínico –

ênfase psicanálise, alguns

interrogantes sobre a prática

clínica com crianças com trans-

tornos neuromotores foram

surgindo. Testemunhando uma

carência na articulação entre

esses saberes, busquei encadear

conhecimentos das duas especi-

ficidades objetivando propor

uma clínica que tome a criança

como um sujeito em constituição

e não apenas preocupada com o

real orgânico da lesão.

Descritores: transtornos

neuromotores; psicanálise de

crianças; fisioterapia neurope-

diátrica.

Dossiê

N

CLÍNICA DECRIANÇAS COMTRANSTORNOS:

QUANDO APREOCUPAÇÃO ESTÁ

PARA ALÉM DOORGÂNICO

Marla Finkler Neuwald

Andrea Gabriela Ferrari

Introdução

a clínica da Estimulação Precoce e na Fi-sioterapia Neuropediátrica, é comum nos deparar-mos com bebês ou crianças apresentando lesões mo-toras severas com ou sem outras deficiênciasassociadas, representando grandes obstáculos parao seu desenvolvimento e para sua constituição psí-quica. Geralmente são crianças reféns de um corpo

Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional,

Porto Alegre, RS, Brasil.

Psicóloga e psicanalista. Docente da Universidade do Vale do

Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil.

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deficiente, marcado pela presença dereflexos arcaicos e patológicos, demodo que recursos como a fala, odesenho e o brincar ficam bastanterestritos.

Esses recursos são utilizados pe-los Psicanalistas para identificar a es-trutura pela qual a criança está seconstituindo, localizar a posição queela ocupa na trama familiar e desven-dar o enigma que o sintoma por elaapresentado representa. Contudo,como intervir na falta destes recur-sos com crianças lesionadas gravescom múltiplas deficiências? Criançasessas que dispõem, muitas vezes, deum piscar de olhos como única for-ma de comunicação, que não cami-nham e tampouco são capazes de selocomover de forma independente,que nem sustentação cefálica apresen-tam, encontrando-se praticamenteimobilizadas ou então, manifestandomovimentos desajeitados ou descoor-denados em função de um tônuspostural anormal?

Acredito que a Clínica Interdis-ciplinar em Estimulação Precoce (EP)tem a finalidade de sanar muitas des-sas interrogações, já que se preocupacom a constituição subjetiva de be-bês e crianças pequenas com trans-tornos do desenvolvimento e há anosvem desempenhando uma prevençãosecundária nesse sentido. Resumida-mente, esta modalidade terapêutica éuma especialidade clínica para a pri-meira infância1, isto é, destinada abebês e crianças pequenas com pro-blemas no desenvolvimento e/ou na

constituição psíquica. Por se tratar daprimeira infância, esta clínica inter-vém tanto nos aspectos estruturaiscomo instrumentais do desenvolvi-mento por intermédio de um terapeu-ta único, especialista em EP, susten-tado e apoiado por uma equipeinterdisciplinar. A cena clínica trans-corre na presença dos pais, da crian-ça e do terapeuta. O clínico se colo-ca como único agente operador,preservando o infante dos efeitos ia-trogênicos da multidisciplina, o qualefetua tanto uma escuta atenta dodiscurso parental como uma leituradas produções da criança. De formabastante sucinta, a função clínica, emsituações de transtornos orgânicos,consiste em evitar que a metáfora so-cial implicada à condição orgânica,assim como os efeitos imagináriosatrelados à patologia não resultempara o pequeno paciente um obstá-culo ainda maior que o imposto pelapatologia em si (Jerusalinsky, 2006).

Contudo, as dúvidas e angústiasgiram principalmente em torno dascrianças com mais idade, ou seja,àquelas que não mais dispõem de umaintervenção em EP, pois cronologi-camente não são crianças pequenas etampouco bebês, de modo que umtempo precoce já passou; já não maiscontamos com a intensa permeabili-dade psíquica encontrada durante aprimeira infância. Geralmente sãocrianças com deficiências múltiplas,cuja patologia neurológica de base, ousuas sequelas, são tão extremas, quecomprometem diversos órgãos e fun-

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ções. Muitas dessas crianças já nasce-ram ou adquiriram o transtorno logoapós o nascimento, tratando-se, prin-cipalmente, de crianças com sequelasneuromotoras da Encefalopatia Crô-nica não Evolutiva da Infância, maisconhecida como Paralisia Cerebral.Crianças marcadas pelo discurso téc-nico-científico da multidisciplina, comuma história de inúmeros atendimen-tos, diversos profissionais e por umabusca incansável dos pais pela curae/ou restituição do filho ideal que nãonasceu. Crianças que, além dos sérioscomprometimentos orgânicos, apre-sentam traços de desconexão psíqui-ca apesar de ou como consequênciados inúmeros atendimentos. Pergun-to-me, portanto: como a psicanálisese coloca diante dessa realidade? Épossível intervir analiticamente comessas crianças? Qual seria a direçãoda cura?

Ao longo do percurso clínico ede formação como fisioterapeutaneuropediátrica, apoiada nos estudosde Levin (2008a; 2008b; 2001), fui mequestionando a respeito do atendi-mento para crianças com lesões neu-rológicas graves e se a direção do tra-tamento visava ou não a integralidadedo sujeito, articulada a uma históriafamiliar singular, ou se se ocupavaapenas de procurar consertar o órgãoafetado, independentemente da crian-ça e de sua família que ali se apresen-tavam.

Dessa forma, pude vislumbraruma nova conduta terapêutica, bus-cando articular os aspectos do desen-

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volvimento ao da estruturação psíqui-ca, a partir do qual foi possível esta-belecer uma posição ética, conside-rando a constituição do sujeito nadireção do tratamento, independen-temente da lesão neurológica de baseque a criança apresentasse.

Aspectos estruturais einstrumentais dodesenvolvimento

Apesar de a estruturação psíqui-ca do sujeito não residir no orgânico,postulado que fundamenta a necessi-dade de um psicanalista na clínica paracrianças com problemas de desen-volvimento (Coriat, 1997), algumaslesões, síndromes ou má-formaçãopodem levar a criança a apresentarmenor permeabilidade à recepção dasmarcas que provém do Outro(Jerusalinsky, 2006).

Freud (1916-1917/1996) não ig-norou o aspecto orgânico quandodescreveu o conceito de constitucional,

relacionado ao geneticamente herda-do e às influências das experiênciasinfantis. Na clínica de crianças comtranstornos neuromotores, torna-sefundamental um olhar atento sobreestruturação subjetiva, a fim de pen-sar até que ponto a limitação que acriança apresenta comporta causasorgânicas, psicológicas, cognitivas e desubjetivação na relação com o Outro.Daí a importância de considerar osaspectos estruturais e instrumentais

do desenvolvimento como sustentamCoriat e Jerusalinsky (2001). Para eles,quando se fala em desenvolvimentotorna-se necessário diferenciar as ar-ticulações que constituem o sujeito(aspectos estruturais) dos instrumen-tos de que esse se vale para realizarseus intercâmbios com o meio (aspec-tos instrumentais). O desenvolvimen-to, portanto, é dependente tanto daestrutura orgânica, maturação do sis-tema biológico, como da estruturapsíquica, visto que durante a infânciao sujeito está em plena constituição.Juntas essas duas estruturas formamos aspectos estruturais do desenvol-vimento, representando as bases paraa constituição do sujeito e para queoutros instrumentos (linguagem,aprendizagem, psicomotricidade,brincar, atividades de vida diária esocialização) venham a se organizar.

As aquisições instrumentais dodesenvolvimento (caminhar, falar,pular, chutar, atividades da vida diá-ria...) não representam condição paraa constituição do sujeito: uma crian-ça com uma deficiência física, que estáimpedida organicamente de caminhar,não será menos sujeito que outracriança que dispõe de um aparatoneuromotor íntegro. Para a criançacom problemas orgânicos advir comosujeito, é preciso que se cumpram asmesmas premissas que seriam neces-sárias em uma criança organicamen-te sem lesão (Coriat, 1997). Entretan-to, na clínica constatamos queindependentemente do tipo de pato-logia que acomete a criança, as lesões

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no real do corpo surtem efeitos quevão além do dano orgânico que com-portam. As significações que o défi-cit orgânico adquire ou os efeitos ima-ginários atrelados ao diagnóstico,deficiência ou síndrome, podem re-sultar em uma série de obstáculos àestruturação psíquica da criança.

O bebê em cena

Levin (2008b) coloca que um fi-lho antes de nascer representa umahipótese, um projeto e uma promes-sa. Uma hipótese, pois suporta umenigma do que exatamente será; umprojeto, em função dos planos que ospais geram a partir do seu nascimen-to e uma promessa, não somente defuturo e transcendência, mas de umideal, o qual vem ressignificar o pró-prio ideal dos pais e dos avós.

Quando o bebê nasce, tudo aqui-lo que se antecipou em espera comopromessa, hipótese e projeto de ide-al, passa a tomar forma no corpo de-samparado e desorganizado do re-cém-chegado. Tantas expectativas secolocam paradoxalmente às condi-ções reais e simbólicas do pequenino,o qual responde apenas com reflexosarcaicos e automáticos.

Porém, será sobre os reflexosarcaicos do bebê que a “Loucura ne-cessária das mães”, descrita por Win-nicott (1956) citada por Laznik (1997)provocará os pontos de encontro en-tre o que é da ordem do desenvolvi-

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mento (estrutura orgânica) e do campo da linguagem (estrutura psí-quica), propiciando, dessa forma, que advenha um sujeito. O bebê,ao ser tomado numa posição antecipada, não fica reduzido a suareal fragilidade e dependência corporal. A ilusão antecipadora(Laznik, 1997) geralmente sustentada pelos pais, é fundamental paraa constituição subjetiva do mesmo. Atraído pelo desejo, o Outroantecipa no seu bebê uma existência subjetiva que ainda não estáconstituída, mas que virá instalar-se justamente porque foi suposta.É um processo que se dá por meio da metáfora do espelho, demodo que o bebê percebe, no espelhamento psíquico que sua mãelhe propõe, uma unicidade corporal que é, a princípio, apenas ima-ginária. Esse momento constitutivo, que Lacan (1998a) descrevecomo Estádio do Espelho, antecipa, por intermédio do olhar e dapalavra do Outro, ao bebê uma imagem unificada de seu corpo, afim de organizar e sustentar sua imaturidade corporal.

Além disso, as aquisições instrumentais (hábitos de vida diária,comunicação, aprendizagem e psicomotricidade) também são de-pendentes dessa ilusão antecipadora que é endereçada ao bebê. Atra-vés dela, por exemplo, os pais introduzem ofertas e demandas,enlaçadas em um circuito de desejo não anônimo, propiciadoras detais realizações.

Toda essa “loucura necessária das mães” é fundamental a fimde transformar essa libra de carne, como bem define Coriat (1997)o organismo de um bebê, ao estatuto de sujeito desejante. Porém, oque acontece quando o nascimento de um filho questiona o idealantecipado por seus pais?

Quando o nascimento de um filho questiona oideal

Na clínica dos transtornos neuromotores, constatamos que ailusão antecipadora, fundamental para emergência do sujeito, mui-tas vezes, está ausente ou vacilante em pais de crianças com algumadeficiência. Percebe-se como esses pais têm dificuldade em suporum saber e apostar nas aquisições instrumentais de seus filhos. A“loucura necessária das mães”, em que a mãe ao interpretar umgesto, um balbucio, um choro, um sorriso, um olhar como mensa-gens significantes endereçadas a ela, traduz realizações instrumen-

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tais que ainda não estão aí, para queum dia possam advir, pode apresen-tar-se fragilizada.

Ressignificar o ideal parental quese encontra questionado com o nas-cimento de um filho com lesão orgâ-nica será o grande desafio que os paise a criança terão que realizar. Inevi-tavelmente, essa criança e seus paisse confrontarão, ao longo do desen-volvimento e inserção social, com ofilho ideal e esperado, tornando otrabalho de elaboração de luto im-prescindível.

Para Levin (2001), o trabalho deelaboração do luto é fundamental naclínica dos transtornos neuromotores,visto que o terapeuta, a criança e afamília se encontram muitas vezesdiante de um real imposto pela pato-logia em questão de difícil modifica-ção. Nesses casos, estamos diante deum limite intransponível, pois jamaispoderemos curar a paralisia cerebral,a síndrome genética, a malformaçãocongênita entre tantas outras patolo-gias permanentes, contudo, isso nãoimpede que concentremos nossos es-forços a fim de resgatar o sujeito quesempre surge para além da sua lesão.

O trabalho de luto nos pais énecessário, pois em algum momento,eles se confrontarão com a criançaideal que não veio e nem chegará. Seo trabalho de pesar não acontecer, háo risco de transformar o tempo dainfância numa fase sem limite, tornan-do a criança num eterno bebê. Na clí-nica testemunhamos crianças maisvelhas carregadas no colo dos pais em

lugar de serem transportadas numcarrinho adaptado, pois esse meio detransporte denuncia a deficiência dofilho. Além disso, se o trabalho de lutonão acontecer, a criança, além de su-portar o peso da sua organicidade,estará sempre confrontada com acriança “normal” e idealizada que nãonasceu. É essencial que os pais pos-sam elaborar essa morte fantasmáti-ca, a fim de transformar a criança quenasceu com transtornos neuromoto-res em representante do amor paren-tal em lugar de um ser patológico,cujo nome é substituído pelo nomeda síndrome, do diagnóstico ou dadeficiência.

Por outro lado, o trabalho de lutona criança só é possível se os pais su-portam e elaboram a dor que a pato-logia no filho lhes causa. O trabalhode pesar na criança é uma construçãode saberes, ela perguntará sobre a cau-sa e o motivo de seu padecimento.Inevitavelmente, em algum momen-to, sua problemática será contextua-lizada no brincar. Na brincadeira, acriança poderá colocar a patologia emoutro personagem, representandoque ela não é a lesão em si, mas suaportadora.

Já, o trabalho de luto no terapeu-ta é essencial, uma vez que esta clíni-ca nos impõe a impossibilidade decura quanto à patologia que a criançaporta. Não se trata de ignorar a pato-logia ou a deficiência, mas de umaposição clínica que toma cada crian-ça e sua lesão como singulares einseridas num contexto e numa his-

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tória própria em lugar de determinarou prejulgar as possibilidades da crian-ça tanto em relação ao desenvolvi-mento como em relação à estrutura-ção subjetiva.

Para isso, é necessário que o te-rapeuta “suspenda” seu saber a fimde que o laço transferencial com acriança não fique condicionado aoque é da ordem da patologia, da sin-tomatologia ou do diagnóstico. Difí-cil tarefa de “suspender” o saber jus-tamente quando nossa formação nosensinou a curar e a consertar, e talvezum dos grandes desafios que este tra-balho clínico nos impõe.

Por fim, o trabalho de elabora-ção de luto na instituição também éimportante para que não se torne paracriança um lugar definitivo, mas detrânsito, pois somente com o térmi-no de um ciclo é possível ressignifi-car outro.

A clínica de crianças comtranstornos neumotores

Ao longo da minha experiênciaclínica como fisioterapeuta neurope-diátrica, assim como durante o cursode especialização em atendimento clí-nico – ênfase psicanálise, encontrei,em ambas disciplinas, inúmeros per-calços teóricos e práticos referentes àclínica de crianças com transtornosneuromotores. No referencial teóri-co da fisioterapia, testemunhava umafalta de preocupação absoluta com a

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estruturação psíquica, delegando taisquestões, quando se tornavam presen-tes, exclusivamente à psicologia. Já naPsicanálise, percebia uma carência deteorias relativas aos aspectos instru-mentais do desenvolvimento, assimcomo da maturação do sistema bio-lógico, obstaculizando o acesso tera-pêutico a muitas dessas crianças. Apartir de tais observações, busqueifazer uma ponte entre os propósitosda fisioterapia neuropediátrica e al-guns conceitos psicanalíticos na ten-tativa de articular terapeuticamentetanto aspectos da estruturação psíqui-ca como aspectos neuropsicomotoresnecessários na intervenção de crian-ças com transtornos neuromotores.

Não se trata de propor uma es-pecialidade clínica universal, que dêconta de todos os aspectos estrutu-rais e instrumentais que compõem odesenvolvimento. Nada mais distan-te de nossa proposta, visto que na clí-nica de crianças com transtornos neu-romotores a interlocução com asdiferentes disciplinas torna-se impres-cindível. Tampouco se trata de umaintervenção por intermédio de umterapeuta único, como sustentado naClínica em EP, que recebe uma ha-bilitação para isso por meio de umaformação específica e conta com aindiferenciação dos aspectos instru-mentais nos três primeiros anos devida.

Na verdade, trata-se de promo-ver uma aproximação entre discipli-nas aparentemente tão distantes, masigualmente necessárias quando nos

ocupamos de crianças com transtor-nos neuromotores, como a paralisiacerebral. Por mais que o interesse daPsicanálise esteja voltado para a es-truturação psíquica da criança, quan-do nos colocamos diante de um pe-queno paciente com sequelas gravesde Paralisia Cerebral, torna-se indis-pensável recorrer a manuseios e po-sicionamentos que possam oferecermaior estabilidade e controle sobre osmovimentos àquela criança. Da mes-ma forma, na fisioterapia é essencialque o clínico, paralelamente a suasintervenções, proponha e sustentecondições para a constituição de umsujeito desejante e esteja atento aosofrimento não apenas físico, maspsíquico da criança e de sua família.

A proposta desta clínica diz res-peito, portanto, ao tratamento e in-tervenção de crianças com patologiasneurológicas, as quais cronologica-mente não contam com uma Clínicaem EP, apresentando atrasos no de-senvolvimento neuropsicomotor comou sem outras deficiências associadas.Esta proposta clínica é atravessadapelo corte epistemológico operadopela Psicanálise desde o qual cons-tatamos que até mesmo as reaçõesaparentemente motoras não são in-dependentes da constituição subje-tiva. Procura-se, portanto, articularnum mesmo espaço clínico conhe-cimentos oriundos da teoria psica-nalítica, referentes à constituição dosujeito psíquico, com conhecimen-tos provenientes da f isioterapianeuropediátrica.

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A partir desta articulação, o mo-vimento produzido pela criança nãoé mais tomado como um simples atomotor resultante de um reflexo oudesprovido de intencionalidade, maspassa a ser lido e visto como um ges-to revestido de significantes e, por-tanto, produtor de subjetividade.

Lacan (1979), em O seminário, li-

vro 1, assinala que o gesto humano estádo lado da linguagem e não à mani-festação motora. Entretanto, paraisso, é condição que alguém se colo-que na função de reconhecer tal ges-to como gesto, como ocorre nosmovimentos do recém-nascido, emque a mãe, ou quem estiver nesse fun-cionamento, interpreta os movimen-tos do filho como dor, fome, sono,atribuindo ao seu bebê “saberes” queela não partilha, interpretando-ocomo um gesto portador de um di-zer. É exatamente essa leitura parti-cular que diferencia o reflexo de umgesto. Portanto, o gesto pode ser de-finido como um movimento dado aver a um outro (Levin, 2008a).

O Outro toma o ref lexo depreensão manual, por exemplo, reali-zado pelo bebê como um gesto sig-nificante, e não como uma respostamotora a um determinado estímulo.Ele fala, brinca, sorri e monta umcontexto dentro de uma cena, supon-do uma produção subjetiva do pró-prio bebê. É o Outro, por meio daleitura e montagem de cena e de con-texto, quem dá o estatuto de gesto ede produção subjetiva aos movimen-tos do bebê.

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Para a discussão das ideias acima descritas, proponho tomar-mos como ilustração dois recortes clínicos, cujas crianças foramaqui nomeadas de Ana Cristina e Guilherme. O primeiro recorteclínico se refere ao “acordar” de uma clínica e o modo como essamenina Ana Cristina me tomou de angústia, motivando-me a bus-car outros saberes, os quais me inspiraram na criação desta propos-ta terapêutica. Já o segundo recorte clínico é um testemunho decomo esta clínica de crianças com transtornos neuromotores vemse sustentando e dos desafios constantes que esta proposta terapêu-tica nos impõe.

Ana Cristina e o despertar de uma clínica –recorte clínico I

Ana Cristina ingressou à fisioterapia neuropediátrica com 5 anos,diagnóstico de paralisia cerebral e com outros comprometimentosassociados: quadro de disfagia2, problemas na comunicação verbal,assim como em função da presença de um tônus postural anormal,era incapaz de se manter sentada independentemente e tampoucode ficar em ortostase ou deambular sem ajuda.

Ana Cristina, em razão da encefalopatia, era dominada por re-flexos tônicos desencadeados eminentemente por movimentoscervicais que a imobilizavam momentaneamente em padrões anor-mais de extensão ou flexão total. Qualquer tentativa sua de brincar,a qual exigia um olhar para cima ou para baixo, era interrompidapor tais respostas reflexas. Além disso, brincadeiras que exigissemapreensão bimanual, como segurar uma bola, também se tornavampraticamente impossíveis em razão da permanência do reflexo pri-mitivo RTCA (Reflexo Tônico Cervical Assimétrico)3.

Contudo, Ana Cristina não se mantinha indiferente aos atendi-mentos, que no início eram marcados pelo choro excessivo comoforma de recusa aos procedimentos convencionais que visavam uni-camente à restauração ou à manutenção do esquema corporal en-fermo. O choro e a recusa dessa menina foram decisivos à mudançana direção do tratamento e da minha prática clínica como fisiotera-peuta. Tomada de angústias, incertezas e sentindo o referencialfisioterapêutico esvaziado em pleno ato clínico, recorri a outros sa-beres, assim como me deixei ensinar por essa menina.

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Apesar das limitações orgânicase da impossibilidade de se expressarverbalmente, Ana Cristina se comu-nicava eminentemente pelo olhar.Através dele, estabelecemos ummeio de comunicação entre nós, quemais tarde recebeu a contribuição dosorriso. Com o olhar da menina e aleitura materna, pude ir reconhecen-do atividades e brincadeiras que a in-teressavam.

Assim, ao longo dos atendimen-tos, as atividades terapêuticas quenada implicavam o desejo e a posiçãosubjetiva da criança, mas o consertoou a recuperação de um corpo defi-ciente, foram substituídas por brin-cadeiras conduzidas pela própriacriança, sem esquecer a especificida-de da intervenção instrumental emquestão. Era possível obter uma mes-ma resposta motora com brincadei-ras sugeridas pela própria menina,sem a necessidade de exercícios re-petitivos pré-programados ou de brin-cadeiras impostas pela terapeuta.Quando era preciso uma intervençãomais específica como alongamentosmusculares ou mobilizações articula-res, percebia que, ao falar com a me-nina e ao lhe explicar a necessidadede tal intervenção, ela aceitava e tole-rava com tranquilidade tais manipu-lações, sem desrespeitar sua opiniãoquando contrária a tal procedimento.

Contudo, o mais impressionan-te desta clínica foi testemunhar comoAna Cristina foi apropriando-se e(in)corporando alguns de seus refle-xos tônicos. Os reflexos patológicos

que antes interrompiam o seu brin-car ganharam o estatuto de gestos,tornando-se funcionais. Por intermé-dio de uma resposta reflexa ao movi-mento de cabeça que a colocava emextensão corporal total, ela respon-dia afirmativamente a uma pergunta.Entretanto, isso foi possível graças aum Outro que se colocou na posiçãode interrogar a produção de tal mo-vimento, não tomando-o como umaresposta anônima de um reflexo de-sencadeado, mas interpretando e re-conhecendo-o como um gesto.

A “ilusão antecipadora” susten-tada pelo Outro foi essencial na trans-formação dos movimentos reflexosda menina em gestos e na estrutura-ção da imagem corporal. Entretanto,para isso foi preciso haver na anteci-pação simbólica um caráter hipotéti-co e não assertivo ou imperativo dosmovimentos dados a ver pela crian-ça. É preciso que a palavra lançadado lugar do Outro seja hipotética, istoé, credite à criança um saber. Quan-do uma mãe interroga seu bebê, elasupõe que ele seja capaz de com-preender, assim como de responder,outorgando-lhe um saber que é dife-rente do seu (Bergès, 2008).

Mesmo dispondo de um equipa-mento deficiente, com extensas limi-tações orgânicas, Ana Cristina, porintermédio da presença do Outro,outorgou funcionamento ao seu apa-rato neuromotor, inscrevendo-secomo sujeito desejante. Este caso clí-nico ilustra que a limitação física podeimpor obstáculos para a estruturação

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e o desenvolvimento da criança, mas não desvia da característica desujeito do desejo.

A proposta deste novo trabalho clínico não consiste em excluiro método terapêutico do tratamento, mas colocá-lo a serviço dasituação psíquica que se encontra a criança. É uma nova posiçãofrente à clínica que nos obriga a reformular nossa técnica e nossateoria a partir do que a criança produz e enuncia. Adaptações àstécnicas convencionais, que não seguem um protocolo e tampoucosão pré-programadas, de tal modo que é um estilo singular criado edescoberto no próprio ato clínico juntamente com a criança. Talpostura ética é possível, pois não ficamos, exclusivamente, aderidosà teoria que sustenta o trabalho, assim como, a modalidade terapêu-tica não é previamente estabelecida em função do diagnóstico, pa-tologia, sintomatologia descritos no laudo médico. Ao assumirmosessa postura, suspendemos o nosso saber tanto sobre a criança comosobre a patologia orgânica que apresenta, possibilitando um traba-lho de elaboração de pesar diante do incurável e irreparável impos-to pela organicidade.

Não se trata, portanto, de ignorar o trabalho instrumental, daimportância de uma prática específica, mas de extrapolar e “brin-car” com a técnica ensinada, tornando-a flexível suficiente a fim deque possam surgir e circular interrogantes a partir do corpo e dodizer da criança. Se o clínico, como assinala Yañez (1990), sente-secompleto no seu saber técnico, exprime um poder que submete ealiena, na criança e seus pais, a possibilidade de vir a construir seupróprio saber, anulando o principal objetivo, o surgimento do sujei-to e seus desejos.

Uma de nossas estratégias terapêuticas consiste em procurar,por intermédio do espelho que unifica e diferencia4, ajudar essascrianças a construírem uma imagem de unidade corporal e não defragmentos defeituosos de modo que um dos objetivos clínicos ini-ciais será verificar se a criança que está diante de nós estruturou ounão sua imagem corporal5 (Levin, 2001), pois para Dolto (2007) épossível coabitar num mesmo sujeito esquema corporal6 enfermo eimagem corporal íntegra.

Dessa forma, tal proposta clínica diferencia-se da FisioterapiaNeuropediátrica convencional, pois seu interesse não está dirigidoapenas ao reparo ou manutenção de um esquema corporal, ocupan-do-se, também, com a estruturação de imagem corporal da criança.Tampouco se trata de uma clínica psicanalítica, visto que intervém

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nos aspectos instrumentais do desen-volvimento, tão necessários na clíni-ca de crianças maiores com transtor-nos neuromotores.

Guilherme e a clínica decrianças com transtornosneuromotores – recorteclínico II

Guilherme chegou à fisioterapianeuropediátrica com 5 anos após con-cluir tratamento em EP. Com um qua-dro clínico de Paralisia Cerebral, omenino ainda apresentava uma defi-ciência visual, com dificuldade em fi-xar o olhar, além de crises convulsivas.Apresentando um atraso generaliza-do no desenvolvimento neuropsico-motor, o garoto não sustentava a ca-beça, explorava e manipulava osobjetos oralmente e aparentava pre-ferência por brinquedos sonoros.Quanto ao seu olhar, este não busca-va o Outro, o que gerava dúvidas so-bre até que ponto era consequênciada deficiência visual ou um testemu-nho de como Guilherme vinha seconstituindo psiquicamente.

Diante de tantas dificuldades or-gânicas que deixavam o corpo domenino completamente indefeso, tor-nou-se imprescindível a presença dospais na cena terapêutica. Como sus-tenta Levin (2001) essa especificida-de clínica muitas vezes nos colocadiante desta necessidade e deste de-safio. Afinal, não é a idade cronológi-

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ca da criança que vai indicar a participação ou não dos pais no espa-ço clínico. Quando se aponta a necessidade da presença dos paisjunto ao filho na cena terapêutica, não se trata de propor um trata-mento em EP ou para a primeira infância. Por mais que muitasdessas crianças não andem, tenham dificuldades de se movimentar,de realizar atividades funcionais, precisando quase que de maneiraconstante da presença do outro, elas não são mais bebês ou criançaspequenas. Porém, são crianças que ainda necessitam da presença dofuncionamento parental, pois sua patologia orgânica de base deixao corpo num estado de fragilidade e desorganização semelhante aocorpo de um recém-nascido (Levin, 2001).

A presença do casal parental, ou de quem exerça essas funções,é fundamental para leitura dos movimentos nos dados a ver pelacriança. Muitas vezes, os pais estão tão envolvidos com a fragilidadeorgânica do filho, de modo a atender suas necessidades e lhe proporcondições de subsistência, que não reconhecem as demandas subje-tivas que a criança exprime nas suas funções. Uma das finalidadesdesta clínica será deslocar o véu da patologia que nubla o olhar dospais, a fim de que possam acolher esse filho para além das necessi-dades e atenções biológicas. Um olhar que apenas dá a sustentaçãoorgânica vital à criança não é suficiente para tornar um movimentoreflexo ou um espasmo em gesto. A inclusão dos pais na cena clíni-ca possibilita que eles percebam o filho como um sujeito desejanteapesar da condição orgânica que apresenta. Eles passam, esponta-neamente, a reconhecer, por exemplo, um sorriso, um olhar ou umareação tônica da criança como mensagens significantes endereça-dos a eles, assim como passam a responder por tais demandas.

Nesse contexto, por meio de uma escuta atenta do discursoparental e da leitura das produções corporais do menino, fui perce-bendo o interesse dele pela voz humana e por cantigas infantis, osquais, mais tarde, tornaram-se objetos de trânsitos que possibilita-ram e intermediaram a saída e o retorno ao corpo materno. A for-ma como Guilherme era carregado pela mãe, dava a sensação deque o corpo da mãe e do filho eram indiferenciados, assim comopouco favorecia a sustentação do olhar e o controle cervical.

Pontuar a mudança de tratamento, ratificando que não se trata-va mais de uma clínica de bebês por mais que contasse com a pre-sença dos pais no espaço terapêutico, assim como situar, cronologi-camente, a posição que o menino ocupava na infância, foi decisivopara elaboração do trabalho de luto nesses pais e para o tratamento

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do garoto. A partir daí, o menino deixou de dormir na mesma camado casal e passou a ocupar uma cama própria. Além disso, deixoude ganhar chocalhos e mordedores, brinquedos para bebês, paraganhar super-heróis de borracha, pois ainda mantinha uma explora-ção oral dos objetos.

Mesmo recorrendo a algumas operações constituintes utiliza-das na Clínica de Bebês e de Crianças Pequenas, esta modalidadeterapêutica não corresponde a uma Clínica em EP ou da PrimeiraInfância. Nomear tal clínica desta maneira, apenas reforçaria a difi-culdade dos pais em elaborarem o trabalho de luto e pesar pelacriança “normal” que não nasceu, colaborando com a possibilidadede que vire um eterno bebê a criança que nasceu com transtornosneuromotores. Por mais que os tempos constituintes do sujeito res-pondam a um registro temporal lógico, não há como desconsideraro tempo cronológico, o qual vai operando sucessivas transforma-ções tanto na estrutura psíquica como orgânica da criança. A tem-poralidade, no seu registro real, produz efeitos sobre o corpo dosujeito, assim como a neuroplasticidade e a permeabilidade às ins-crições significantes não são as mesmas ao longo do tempo pormais que sempre representem uma aposta. Dessa forma, o tempoconta para efeitos de intervenção terapêutica e precisa ser conside-rado, pois há implicações clínicas e éticas ao se negar a passagem dotempo.

As “conversinhas” que estabelecia com Guilherme, assim comoas cantigas infantis foram essenciais para o estabelecimento do laçoterapêutico. Por meio delas, fui adquirindo a confiança do garoto,que gradativamente permitia que eu tocasse em seu corpo e reali-zasse as intervenções fisioterapêuticas necessárias. Através das“conversinhas”, percebia que o garoto dirigia o olhar e a face nadireção da minha voz, favorecendo também a sustentação ativa dacabeça.

Observa-se, portanto, como a voz do Outro, revestida de mu-sicalidade e picos prosódicos, lembrando também o manhês7, temincidência direta no corpo da criança. A pulsão invocante foi essen-cial para a sustentação do olhar, do corpo e até mesmo do trata-mento fisioterápico do menino. Laznik (2000) descreve uma inte-ressante relação entre pulsão invocante e estabelecimento do circuitopulsional escópico e do estádio do espelho. Segundo a autora, aresposta do bebê à prosódia materna tem relação direta com o esta-belecimento do circuito pulsional escópico, pois o bebê procura

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ativamente o rosto correspondente aesta voz particular. A mesma autoraainda sustenta a hipótese de é que aexperiência de uma prosódia na vozde sua mãe, ou de outro alguém im-portante do entorno, permitindo aolactente identificar-se como sendoobjeto causa de um gozo deste Ou-tro barrado o que precede e tornapossível a constituição do estádio doespelho. A música consiste tambémem outra forma de sustentar tanto apulsão invocante como escópica, poiso olhar é convidado e convocado pe-los gestos que acompanham a canti-ga, assim como pelos diferentes sonsevocados. Além disso, os elementosda fala manhês são muito próximos doselementos musicais (Ferreira, 2001) oque justificaria o interesse aguçado domenino pelas cantigas infantis.

Contudo, essas “conversinhas”eram articuladas numa alternância,sustentando um intervalo, à medidaque se supunha que o garoto, comosujeito, tinha algo a contar ou a res-ponder. Em algumas situações, o pró-prio menino produzia vocalizações ebalbucios, enquanto em outras, con-tava com a intermediação dos pais,que se colocavam a falar pelo filho.

Aqui mais uma vez utilizou-se doconceito de ilusão antecipadora aoatribuir às vocalizações do garoto umasignificação, de modo a converter emmensagem aquilo que poderia não sermais que uma simples reação orgâni-ca. Esse trabalho interpretativo, de“tradução”, na qual a terapeuta em-prestou seus significantes a fim de

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sustentar o “diálogo” estabelecidoentre eles, pode ser qualificado comouma unidade dialógica, visto que éconstituído pelo par pergunta-respos-ta implicadas numa polaridade eu –tu como descritos em Aresi e Flores(2008). Além disso, criava-se uma al-ternância entre os falantes, existindouma interdependência entre os tur-nos, de modo que a realização do tur-no seguinte dependia da interpreta-ção do turno anterior.

A posição, outras vezes, ocupa-da pelos pais ao se colocarem a falarpelo filho nos remete a operação tran-sitivista descrita por Bergès e Balbo(2002), na qual a criança e a mãe se(con)fundem, na medida que ela secoloca também na posição de filho,dividindo-se em dois: ela mesma e ele,fundando a função transitivista.

Aos poucos, percebia-se ummovimento por parte dos pais quepassaram a se interrogar e a reconhe-cer as produções do filho, voltando-se para onde aparecia um sujeito de-sejante, mesmo que algumas vezesnão passeasse de uma ilusão.

Com isso, num determinado dia,a mãe de Guilherme chega com omenino para atendimento e muitocontente relata uma interessante situa-ção: conta que na noite anterior ogaroto estava na cama dele choramin-gando e demandando colo para dor-mir, como fazia todas as noites. Acon-tece que naquela noite, a mãe domenino estava com outros interessese ocupações, não podendo atender aopedido do garoto. Por intermédio da

palavra, ela conseguiu inscrever umcorte e marcar para o filho que ele jánão era mais bebê, tendo condiçõessuficientes para dormir sem o auxíliodo corpo dela, assim como que suaatenção e desejo também se dirigiampara além dele. Relatando tal episó-dio, ela começa a se dar conta da com-preensão do filho, assim como passaa se questionar sobre sua própria vida,provavelmente esquecida num segun-do plano desde o nascimento do me-nino.

A pulsão invocante pareceu ocu-par função decisiva para a relaçãotransferencial e subjetivação do garo-to, visto que apontou para os dois re-gistros que são causação do sujeito:alienação e separação (Lacan, 1998b)e foi testemunho de como a voz fazcorpo e sujeito. Uma criança comtranstornos neuromotores além de sertomada como objeto de desejo, nãodeve ser excluída da lei simbólica quedá lugar a sua própria constituiçãocomo sujeito desejante.

Este recorte clínico ilustra comofoi preciso, durante as intervençõesfisioterapêuticas e por intermédio darelação transferencial, que se fizesseum trabalho de sustentação subjetivapara essa criança até que os pais apre-sentassem condições simbólicas paraisso. A função clínica, neste caso, foimais que favorecer um tônus posturalfuncional e evitar encurtamentos edeformidades articulares no menino,entre tantos outros objetivos fisiote-rapêuticos. O espaço clínico, portan-to, também representou sustentação

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simbólica a esses pais a fim de que pudessem operar o reconheci-mento das diferentes produções do filho, atribuindo-lhe uma auto-ria em lugar de vacilar tal reconhecimento pela presença da patolo-gia, sem excluí-lo da lei simbólica operada pela função paterna.

Entretanto, ao longo dos atendimentos, foi preciso encaminharo casal parental a um acompanhamento psicológico específico, poiseram visíveis que as questões iam além das intervenções clínicas pro-postas. É preciso que o clínico não se coloque como terapeuta uni-versal, sabendo reconhecer seus limites clínicos e transferenciais, oque torna essencial o trabalho interdisciplinar, assim como, encami-nhamentos necessários para outras especialidades.

Considerações finais

A clínica de crianças muito nos ensina a recorrer a outros cam-pos e a saberes diferentes dos nossos, tornando fundamental oenfoque interdisciplinar. Dessa forma, temos a chance de acessar ede nos apropriar de novos elementos teóricos e clínicos, aprimo-rando nossa escuta e intervenção terapêuticas, mas, sobretudo, pre-servamos a criança dos efeitos iatrogênicos da multidisciplina.

A clínica de crianças com transtornos neuromotores é uma pro-posta terapêutica que visa aproximar e articular os saberes oriundosda fisioterapia neuropediátrica à clínica psicanalítica de crianças,buscando preservar e sustentar a singularidade de cada criança, in-dependentemente da sua lesão.

Não se trata de uma clínica universal, que dê conta de todos osaspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento, nem deuma clínica em EP ou da Primeira Infância. Consiste de uma clínicade transtornos neuromotores que intervém com crianças maiores,ou seja, com aquelas que cronologicamente não são mais bebês oucrianças pequenas, mas que nem por isso, devem ser excluídas deuma intervenção terapêutica atenta e preocupada com a sua estru-turação psíquica, independentemente da abordagem instrumental.

Uma clínica de crianças com transtornos neuromotores, comoaqui foi proposta, que se ocupe da estruturação subjetiva paralela-mente a suas intervenções instrumentais nem sempre é bem aceitaou compreendida, seja na própria instituição, seja pelos pais da cri-ança, ainda muito aderidos a um modelo de clínica mecanicista, ou

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pelos próprios profissionais que nãose arriscam a percorrer, ou até mes-mo conhecer outros e novos cami-nhos.

Por fim, nesta clínica, supomosa existência de um sujeito desejanteindependentemente da sua produçãosensória-motora. Interpretamoscomo gestos, significamos e incluímosdentro de uma cena e de um contex-to os movimentos realizados pelacriança, sejam eles espasmos, reflexos,involuntários e estereotipados. Cons-truímos, portanto, na cena terapêuti-ca um espaço de ilusão, sustentado naantecipação simbólica, a fim de reco-nhecer e autenticar o movimentocomo gesto e o som como palavra.

CLINIC OF CHILDREN WITHNEUROMOTOR DISORDERS: WHENTHE CONCERN IS BEYOND ORGANIC

ABSTRACT

Even though the subject’s constitution doesn’t resideonly in the organic, we can’t disrespect that limitationsin the real of body can impose obstacles in the processof the constitution of the subjectivity. Based onquestions of my clinic experience as a neuropediatricphysiotherapist and on a specialization course inclinical service with emphasis in psychoanalysis, somequestions about clinical practice with children withdisabilities came up. Attesting a scarcity on thearticulation between these fields of knowledge, myattempt is to articulate knowledge of both specialtiesin order to propose a clinic that takes the child as asubject in constitution and not only concerned withthe organic real of the lesion.

Keywords: neuromotor disabilities; childpsychoanalysis; neuropediatric physiotherapy.

TÍTULO: CLÍNICA DE NIÑOS CONTRASTORNOS NEUROMOTORES:CUANDO LA PREOCUPACIÓN ESTÁMÁS ALLÁ DE LO ORGÁNICO

RESUMEN

A despecho de la constitución sujetiva no residir soloen lo orgánico, no podemos desconsiderar que laslimitaciones en lo real del cuerpo pueden imponerobstáculos en el proceso de constitución del sujeto. Apartir de cuestionamientos de mi experiencia clínicacomo fisioterapeuta neuropediátrica y de mi percursoacadémico en el curso de especialización enatendimiento clínico – énfasis psicoanálisis, fueronsurgiendo algunos interrogantes sobre la práctica clí-nica de niños con trastornos neuromotores. Percibiendouna carencia en la articulación entre esos saberes,busqué ar ticular conocimientos de las dosespecificidades a fin de proponer una clínica que tomeal niño como un sujeto en constitución y no solamentepreocupada con lo real orgánico de la lesión.

Palabras-clave: trastornos neuromotores;

psicoanálisis de niños; fisioterapia neuropediátrica.

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NOTAS

1 Consideramos primeira infância os trêsprimeiros anos de vida de uma criança. Umamodalidade clínica terapêutica exclusiva paraesse período da infância visa marcar a im-portância desse período tanto para o desen-volvimento como para a constituição subje-tiva da criança. Por mais que o tempo de serinfante faça parte da infância como um todo,não há momento algum do desenvolvimentoe da constituição do sujeito que passe pormodificações tão radicais como nos três pri-meiros anos de vida. A neurologia classificaesse momento do desenvolvimento comoperíodo crítico em razão de a plasticidadeneuronal ser mais intensa nessa idade. Já aclínica em Estimulação Precoce toma esseconceito de neuroplasticidade para funda-mentar a importância desse momento tantopara a constituição subjetiva como para a in-tervenção clínica.

2 Disfagia é uma dificuldade nos movimen-tos de deglutição de tal modo que pode levara aspirações silenciosas e, consequentemen-te, pode haver penetração de saliva e de co-mida nas vias aéreas inferiores, ocasionandocrescimento de germes patológicos que cau-sam pneumonia, podendo até mesmo levar amorte da criança (Finnie, 2000).

3 O Reflexo Tônico Cervical Assimétrico(RTCA) na criança com paralisia cerebralpode afetar todo corpo e ser o responsávelpela produção de considerável assimetria. Apermanência e a não modificação do RTCAinterfere no desenvolvimento da criança, poisatrasa atividades como levar a mão e objetosaté a boca e à linha média, manusear objetoscom as duas mãos e, até mesmo, pode impe-dir o rolar com dissociação de cinturas(Lorenzini, 2002).

4 Diante do olhar da mãe, ou de quem as-sume essa função, a criança não só se refletecomo unidade (traço unário), assim como serefrata, conferindo-lhe a posição simbólicadenominada traço uniano. A diferença entreo unário e o uniano remete a dupla face do

um: um da unidade e um da diferença, serum para o outro, mas diferente do outro(Levin, 2001).

5 Imagem corporal é singular de cada su-jeito e relacionada a sua história, podendo serconsiderada a encarnação simbólica incons-ciente do sujeito desejante (Dolto, 2007). Aimagem corporal é definida como a imagemdo corpo de um sujeito, acompanhada de suaprópria história, sendo singular e constituti-va do sujeito e inconsciente. Na ausência deimagem do corpo, não há esquema, que é pré-consciente. Para reconhecer as partes do cor-po como partes de um todo, é condição aimagem do corpo unificada (Yañez, 2001).

6 Esquema corporal é inconsciente, pré-consciente e consciente (Dolto, 2007). É oconhecimento do nosso próprio corpo, pro-veniente de informações proprioceptivas,interoceptivas e exteroceptivas. O esquemacorporal é mensurável, comparável e de or-dem evolutiva (Yañez, 2001).

7 Manhês caracteriza-se pelo modo peculiarcomo as mães costumam falar com seus be-bês, constituindo-se de traços prosódicos,estrutura sintática simplificada, presença dediminutivos e evitação de encontros conso-nantais (Ferreira, 2001).

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Recebido em maio/2010.Aceito em outubro/2011.

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