responsabilidade extracontratual de pessoas publicas 4º, g)

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1 O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa 1 CARLOS CADILHA Sumário 1. Unificação da competência contenciosa dos tribunais administrativos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Administração: unidade de jurisdição vs dualidade de regime substantivo. 2. Culpa do lesado por não utilização da via processual adequada. 3. Obrigatoriedade do exercício do direito de regresso. 4. Responsabilidade por facto ilícito: repartição de responsabilidade entre a Administração e os titulares de órgãos, funcionários e agentes e funcionamento anormal do serviço. 5. Âmbito normativo da ilicitude: ilegalidade substantiva vs ilegalidade formal. 6. Critério de aferição da culpa: presunção de culpa leve para a prática de actos jurídicos ilícitos e incumprimento de deveres de vigilância. 7. Responsabilidade pelo risco. 8. Indemnização pelo sacrifício. 9. Conclusão 1. O novo regime de responsabilidade patrimonial das entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, desde há muito aguardado, introduziu alterações muito significativas no regime substantivo da responsabilidade civil pelo exercício da função administrativa, revogando e substituindo, nesse âmbito, o Decreto- Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, e os artigos 96º e 97º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, que anteriormente disciplinavam essa matéria ( 2 ), e veio estabelecer, pela primeira vez, em termos sistemáticos, o regime de responsabilidade civil por danos derivados da função legislativa e da função jurisdicional. O enquadramento legislativo unitário em matéria de responsabilidade civil por actuação dos poderes públicos tem como contraponto, no plano processual, a unificação da jurisdição em relação às diferentes formas de responsabilidade civil estadual, que foi levada a efeito pela reforma contencioso administrativo de 2002. Na verdade, o ETAF operou um alargamento da competência contenciosa dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito público, através de três diferentes vias: (a) uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da actividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, sem qualquer prévia distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada (artigo 4º, nº 1, alínea g), segmento inicial); (b) passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função legislativa, bem como do funcionamento da administração da justiça, aqui se incluindo não apenas o deficiente funcionamento do serviço de justiça, mas também o erro judiciário imputável a tribunais administrativos 1 O mesmo texto foi entretanto publicado na Revista do CEJ por referência a uma outra intervenção sobre a mesma matéria no âmbito de uma acção de formação levada a efeito pelo CEJ. 2 ) O Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1969, instituía o regime geral de responsabilidade administrativa, ao passo que os artigos 96º e 97º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, continham disposições específicas sobre a responsabilidade funcional das autarquias locais e responsabilidade pessoal dos respectivos titulares de órgãos e agentes, que, na parte aí não regulada, deveriam ser integradas pelo regime comum daquele outro diploma.

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Responsabilidade extracontratual

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    O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades pblicas pelo exerccio da funo administrativa 1

    CARLOS CADILHA

    Sumrio 1. Unificao da competncia contenciosa dos tribunais administrativos no mbito da responsabilidade civil extracontratual da Administrao: unidade de jurisdio vs dualidade de regime substantivo. 2. Culpa do lesado por no utilizao da via processual adequada. 3. Obrigatoriedade do exerccio do direito de regresso. 4. Responsabilidade por facto ilcito: repartio de responsabilidade entre a Administrao e os titulares de rgos, funcionrios e agentes e funcionamento anormal do servio. 5. mbito normativo da ilicitude: ilegalidade substantiva vs ilegalidade formal. 6. Critrio de aferio da culpa: presuno de culpa leve para a prtica de actos jurdicos ilcitos e incumprimento de deveres de vigilncia. 7. Responsabilidade pelo risco. 8. Indemnizao pelo sacrifcio. 9. Concluso

    1. O novo regime de responsabilidade patrimonial das entidades pblicas, aprovado pela Lei n. 67/2007, de 31 de Dezembro, desde h muito aguardado, introduziu alteraes muito significativas no regime substantivo da responsabilidade civil pelo exerccio da funo administrativa, revogando e substituindo, nesse mbito, o Decreto-Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1967, e os artigos 96 e 97 da Lei n. 169/99, de 18 de Setembro, que anteriormente disciplinavam essa matria (2), e veio estabelecer, pela primeira vez, em termos sistemticos, o regime de responsabilidade civil por danos derivados da funo legislativa e da funo jurisdicional.

    O enquadramento legislativo unitrio em matria de responsabilidade civil por actuao dos poderes pblicos tem como contraponto, no plano processual, a unificao da jurisdio em relao s diferentes formas de responsabilidade civil estadual, que foi levada a efeito pela reforma contencioso administrativo de 2002.

    Na verdade, o ETAF operou um alargamento da competncia contenciosa dos tribunais administrativos em matria de responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito pblico, atravs de trs diferentes vias: (a) uniformizou o mbito da jurisdio no que se refere responsabilidade decorrente da actividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questes de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito pblico, sem qualquer prvia distino entre actos de gesto pblica e actos de gesto privada (artigo 4, n 1, alnea g), segmento inicial); (b) passou a incluir no mbito da jurisdio administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exerccio da funo legislativa, bem como do funcionamento da administrao da justia, aqui se incluindo no apenas o deficiente funcionamento do servio de justia, mas tambm o erro judicirio imputvel a tribunais administrativos 1 O mesmo texto foi entretanto publicado na Revista do CEJ por referncia a uma outra interveno sobre a mesma matria no mbito de uma aco de formao levada a efeito pelo CEJ. 2) O Decreto-Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1969, institua o regime geral de responsabilidade administrativa, ao passo que os artigos 96 e 97 da Lei n. 169/99, de 18 de Setembro, continham disposies especficas sobre a responsabilidade funcional das autarquias locais e responsabilidade pessoal dos respectivos titulares de rgos e agentes, que, na parte a no regulada, deveriam ser integradas pelo regime comum daquele outro diploma.

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    (artigo 4, n. 1, alnea f), 2 parte, e n. 3, alnea a)); (c) passou igualmente a abarcar na competncia dos tribunais administrativos a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicvel o regime especfico da responsabilidade do Estado, pretendendo-se assim abranger as entidades privadas de mo pblica que possam exercer poderes de autoridade ou cuja actividade seja regulada por disposies ou princpios de direito administrativo (artigo 4, n. 1, alnea i)).

    Centrando a ateno na responsabilidade civil pelo exerccio da funo administrativa que constitui o objecto do presente trabalho -, a primeira nota que importa salientar que apontada unidade de jurisdio no corresponde uma unidade de regimes jurdicos substantivos.

    o que desde logo decorre do disposto no artigo 1, n. 2, do diploma em presena, que define o respectivo mbito de aplicao, no que se refere responsabilidade civil pelo exerccio da funo administrativa, por referncia s aces e omisses adoptadas no exerccio de prerrogativas de poder pblico ou reguladas por disposies ou princpios de direito administrativo, excluindo todas as demais situaes em que a Administrao actue em paridade com quaisquer outros sujeitos privados. Tal significa que, embora a jurisdio administrativa passe a ser competente para a apreciao de todas as questes de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito pblico, independentemente de saber se tais questes se regem por um regime de direito pblico ou por um regime de direito privado, o certo que se mantm a diversidade de regimes jurdicos substantivos consoante o acto causador do dano se caracterize como um acto de gesto pblica ou como um acto de gesto privada, pelo que, na definio do direito aplicvel no caso concreto, o juiz administrativo ter de seguir, conforme os casos, o regime de direito pblico previsto na presente lei ou o regime de direito privado constante dos artigos 483 e segs. do Cdigo Civil.

    Este mesmo princpio , alis, aplicvel responsabilidade pessoal directa dos titulares de rgos, funcionrios e agentes administrativos, como se depreende do disposto no artigo 1, n 3, visto que estes apenas respondem por danos resultantes de actos funcionais, isto , por actos praticados no exerccio das suas funes e por causa desse exerccio (em consonncia com o que tambm determina o artigo 271, n. 1, da Constituio), ficando sujeitos a uma responsabilidade pessoal de direito privado que, neste caso, implica a remisso do litgio para o tribunal comum quando os actos respeitem sua vida privada, ainda que ocasionalmente tenham sido praticados no local de trabalho ou durante o horrio de servio.

    A norma do artigo 1, n. 5, ao estender o regime de responsabilidade administrativa, previsto nesta lei, s pessoas colectivas de direito privado, por aces ou omisses que adoptem no exerccio de prerrogativas de poder pblico ou que sejam reguladas por disposies ou princpios de direito administrativo, coloca tambm em equao a possvel diversidade de regimes substantivos a que podero encontrar-se sujeitos estas entidades.

    O preceito vem dar concretizao prtica j mencionada disposio do artigo 4, n. 1, alnea i), do ETAF, que atribui aos tribunais administrativos a competncia para a apreciao de litgios que tenham por objecto a [r]esponsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicvel o regime especfico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito pblico. Por outro lado, a delimitao das situaes em que sujeitos privados podero encontrar-se submetidos a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, podero ser demandados em aces de responsabilidade civil perante os tribunais administrativos, efectuada, em termos genricos, no referido artigo 1, n. 5, por

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    referncia a actuaes que envolvam o exerccio de prerrogativas de poder pblico ou que sejam reguladas por disposies ou princpios de direito administrativo.

    Note-se que a simetria entre a formulao verbal do n. 2 (para precisar o conceito de funo administrativa) e do n. 5 (para delimitar os casos em que sujeitos privados podem encontrar-se abrangidos pelo regime de responsabilidade civil de direito pblico) apenas aparente. As pessoas colectivas de direito pblico, salvo indicao legal expressa em contrrio, esto subordinadas ao direito administrativo e, desde logo, aos princpios constitucionais que regem a actividade administrativa (artigos 22, 266, 268, 269 e 271 da CRP). Inversamente, as pessoas colectivas de direito privado, criadas pelo Estado ou por outras entidades pblicas para realizarem tarefas de interesse pblico, bem como os particulares que sejam chamados a colaborar com entidades pblicas para o exerccio dessas tarefas (v. g., os concessionrios), regem-se, em regra, pelo direito privado, e apenas esto vinculadas ao direito administrativo, por determinao expressa da lei, na medida em que, para a execuo de tarefas pblicas de que sejam incumbidas, lhe sejam outorgadas prerrogativas de autoridade ou imposta a observncia de deveres especiais (3). O direito administrativo , assim, o direito excepcional das entidades privadas que integram a Administrao Pblica, e s no estrito mbito em que actuem de acordo com essa disciplina que podero encontrar-se abrangidas pelo regime de responsabilidade administrativa da presente lei (4).

    2. Dois outros aspectos gerais do regime jurdico de responsabilidade civil do

    Estado merecem especial destaque: a culpa do lesado, a que se refere o artigo 4, e a obrigatoriedade do exerccio do direito de regresso por parte da Administrao, a que alude o artigo 6.

    O primeiro dos mencionados preceitos introduz um princpio de conculpabilidade ou de co-responsabilidade resultante de facto imputvel ao prprio lesado, quando este tenha contribudo para a produo ou o agravamento dos danos, conferindo ao tribunal a faculdade de conceder, reduzir ou excluir a indemnizao com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequncias que delas tenham resultado.

    Enquanto enuncia um princpio geral, a norma tem plena correspondncia com a do artigo 570 do Cdigo Civil, que igualmente consagra uma regra de concorrncia de culpa entre o lesado e o autor do dano. A originalidade daquele artigo 4 , contudo, a de incluir entre os comportamentos culposos, que podero determinar a reduo ou

    3) Sobre todos estes aspectos, PEDRO GONALVES, Entidades Privadas com Poderes Pblicos, Coimbra, Almedina, 2005, pgs. 289-301. 4) Questo muito diversa da que foi agora analisada a de saber se uma aco de responsabilidade civil pode ser intentada conjuntamente contra uma entidade pblica e uma entidade privada, quando se encontrem co-envolvidas no mbito de uma mesma relao jurdico-administrativa. Esta uma questo processual e no de direito substantivo. Isto , no artigo 1, n. 5, coloca-se a possibilidade de entidades privadas entre as quais um concessionrio - serem civilmente responsabilizadas segundo um regime de direito pblico, o que pressupe naturalmente que tais entidades possam ser demandadas individualmente em processo indemnizatrio a intentar perante os tribunais administrativos; pelo contrrio, a formulao de um pedido, no mbito de um mesmo processo, contra uma pessoa colectiva pblica e um sujeito privado configura uma situao de litisconsrcio voluntrio passivo, pelo que, nesse caso, tudo est apenas em saber se a relao jurdico-administrativa respeita a ambos de demandados em termos de a respectiva responsabilidade civil poder ser apreciada e dirimida no mbito do mesmo processo (para mais desenvolvimentos, CARLOS FERNANDES CADILHA, Dicionrio de Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2006, entrada Interveno de terceiros, pgs. 298 e segs.).

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    excluso da indemnizao, a prpria negligncia processual do lesado por no ter utilizado a via processual adequada eliminao do acto jurdico lesivo (5).

    Concebida nestes amplos termos, a culpa do lesado afigura-se susceptvel de contrariar o princpio da tutela jurisdicional efectiva (entendido no apenas como uma garantia de existncia de um meio processual adequado tutela do direito, mas como a possibilidade de escolher, de entre os meios processuais legalmente admissveis, aquele que o interessado considere ser o mais ajustado pretenso judiciria tal como a configura) (6); para alm de que pe em causa o princpio da parificao dos meios processuais administrativos, consagrado no artigo 268, n. 4, da Constituio, no ponto em que limita a autonomia da aco de indemnizao e esvazia o alcance prtico da norma do artigo 38 do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos (que prev a apreciao incidental da ilegalidade de um acto administrativo que no possa j ser impugnado).

    Todas estas consideraes levam a concluir que o juiz, na apreciao em concreto da culpa do lesado, dever efectuar uma interpretao conforme Constituio, que obvie a que o uso da faculdade prevista no artigo 4, com base na existncia de uma conduta processual negligente, possa pr em causa, na prtica, o direito de acesso justia.

    Alm do mais, a culpa do lesado deve ser avaliada segundo o princpio da causalidade adequada, implicando que a conduta processual do lesado possa ser caracterizada como uma condio da produo do dano ou do seu agravamento e que essa que seja normalmente adequada a produzir qualquer desses efeitos. E, por outro lado, h-de ser imputvel ao lesado a ttulo de culpa, o que pressupe a exigibilidade de uma outra conduta, isto , que o lesado, enquanto destinatrio de um acto administrativo lesivo, devesse reagir, desde logo, atravs de um meio processual prprio, que pudesse evitar que os danos viessem a ocorrer ou a subsistir na sua esfera jurdica.

    Neste plano, interessa ter em linha de conta que o alargamento dos meios processuais e a incluso de medidas cautelares de tutela antecipatria, e no apenas conservatria, por efeito da entrada em vigor do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos, veio introduzir novos factores de variabilidade na apreciao da diligncia processual do lesado, que o juiz no pode deixar de tomar em considerao quando deva dar aplicao ao disposto naquele preceito (7).

    3. O artigo 6 prev a obrigatoriedade do exerccio do direito de regresso, por

    parte das pessoas colectivas pblicas, em relao aos titulares de rgos, funcionrios e agentes, nos casos em que ele se encontra especialmente previsto no diploma (n. 1), e, para esse efeito, impe secretaria do tribunal que tiver proferido a condenao em responsabilidade civil o dever de remeter certido da sentena entidade administrativa competente para adoptar as providncias necessrias efectivao desse direito 5) Neste ponto, o preceito reproduz o princpio anteriormente consignado no artigo 7 do Decreto-Lei n. 48051, embora explicitando na linha do entendimento jurisprudencial entretanto firmado que a conduta processual omissiva ou negligente do lesado, quando deixe de impugnar ou deixe de impugnar eficazmente um acto administrativo lesivo releva apenas no plano da culpa, gerando a mera reduo ou excluso da indemnizao devida. 6) Neste sentido, CARLOS FERNANDES CADILHA, Os poderes do juiz e o princpio da tipicidade das formas processuais, in Revista do CEJ, 2 semestre de 2007, n. 7, pg. 22. 7) E em qualquer caso nunca ser aceitvel imputar ao lesado uma conduta processual negligente quando este tenha interposto intencionalmente uma aco de indemnizao, preferindo-a a um outro meio processual admissvel, se essa aco era, no caso, ainda, uma via processual adequada (sobre este aspecto, CARLOS FERNANDES CADILHA, Os poderes do juiz e o princpio da tipicidade das formas processuais, citado, pg. 22).

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    (entendendo-se como tal o titular de poderes de direco, de superviso, de superintendncia ou de tutela).

    As situaes em que h lugar ao exerccio do direito de regresso e que se encontram cobertas pelo regime de obrigatoriedade aqui previsto, encontram-se elencadas nos artigos 8, 11, n. 2, e 14 deste diploma, e no se refere responsabilidade pelo exerccio da funo administrativa fundada em facto ilcito, que aqui interessa especialmente considerar, abrange aces ou omisses cometidas por titulares de rgos, funcionrios e agentes com dolo ou com diligncia e zelo manifestamente inferiores queles a que se encontravam obrigados em razo do cargo (artigo 8, n. 1).

    Deve comear por dizer-se que o direito de regresso uma mera decorrncia do disposto nos artigos 22 e 271 da Constituio, que consagram, de um lado, a responsabilidade solidria da Administrao, e, de outro, a responsabilidade pessoal dos titulares de rgos, funcionrios e agentes (8). E o prprio n. 5 do artigo 271 que remete para a lei ordinria a regulamentao dos termos em que esse direito pode ser exercido por parte da pessoa colectiva pblica.

    Concretizando o regime de exerccio do direito de regresso, o n. 3 do artigo 8 confere aos titulares de poderes de direco, de superviso, de superintendncia ou de tutela a competncia para a adopo das providncias necessrias efectivao desse direito, e o n. 4 permite que o processo prossiga, entre a pessoa colectiva pblica e o titular de rgo, funcionrio e agente, aps a prolao da deciso de condenao em indemnizao, para efeito de apurar a existncia de dolo ou culpa grave (que constitui o pressuposto do direito de regresso) e eventualmente condenar no reembolso do montante indemnizatrio.

    Este prolixo sistema legal pressupe a prvia compreenso de diversos factores: (a) em primeiro lugar, o prosseguimento do processo apenas tem lugar quando a sentena condenatria no tiver j apurado o grau de culpa do titular de rgo, funcionrio ou agente, e, designadamente, quando a aco no tenha sido interposta conjuntamente contra a pessoa colectiva pblica e o seu servidor ou a questo relativa ao direito de regresso no tenha j sido suscitada, no processo, por via do incidente de interveno provocada; (b) por outro lado, o prosseguimento do processo, em aplicao do disposto no artigo 8, n. 4, no poder ser determinado automtica e oficiosamente pelo juiz, dependendo antes de requerimento da entidade pblica que figurar como primitivo ru, que dever identificar a pessoa ou pessoas contra quem o processo dever continuar e definir o objecto do pedido, por forma a que os chamados possam exercer o direito de contraditrio; (c) a possibilidade de utilizao desse mecanismo legal, destinando-se a permitir, por razes de economia processual, discutir a matria relativa ao direito de regresso na prpria aco indemnizatria, no impede que a Administrao, quando a aco tenha sido originariamente interposta apenas contra ela, possa usar os poderes que lhe confere a lei processual civil, requerendo o chamamento do funcionrio atravs do incidente de interveno provocada; (d) alm de que o no uso dessa faculdade no obsta a que a entidade pblica proponha uma aco de regresso autnoma, a que especialmente alude o artigo 37, n. 2, alnea f), do CPTA.

    4. No que se refere aos pressupostos da responsabilidade civil, a nova Lei

    adoptou alguns dos critrios jurisprudenciais que haviam sido construdos no domnio 8) Sublinhe-se, em todo o caso, que em relao a titulares de rgos, funcionrios e agentes, o direito de regresso apenas opera em sede de responsabilidade por facto ilcito, assim se compreendendo que no mbito da responsabilidade pelo risco, o direito de regresso apenas possa ser exercido em relao a terceiros que tenham concorrido para a produo ou agravamento dos danos (artigo 11, n. 2).

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    do regime anterior, clarificou, em termos consonantes com a Constituio, o critrio de repartio de responsabilidade entre a Administrao e os titulares de rgos, funcionrios e agentes, e introduziu algumas solues jurdicas inovatrias, sendo todos estes aspectos que interessar analisar de seguida.

    O artigo 22 da Lei Fundamental, ao consagrar um princpio de responsabilidade patrimonial, em forma solidria, da Administrao, parece ter inconstitucionalizado o regime de responsabilidade pessoal exclusiva dos titulares de rgos, funcionrios e agentes decorrente do artigo 3, n. 1, do Decreto-Lei n. 48051, impondo a necessidade de uma reformulao legislativa do regime de repartio de responsabilidade entre a Administrao e os seus servidores (9).

    E esse conceito que surge consagrado nos artigos 7 e 8 do novo regime de responsabilidade civil do Estado: o Estado e as demais pessoas colectivas de direito pblico so exclusivamente responsveis pelos danos que resultem de aces ou omisses ilcitas, cometidas com culpa leve (artigo 7, n. 1); os titulares de rgos, funcionrios e agentes respondem pessoalmente quando tenham actuado com dolo ou culpa grave, funcionando, neste caso, a responsabilidade solidria da pessoa colectiva pblica, embora com a possibilidade de esta exercer o direito de regresso (cfr. artigos 7, n. 1, e 8).]

    H assim duas importantes novidades: deixa de existir uma responsabilidade exclusiva do servidor pblico, que o antigo artigo 3, n. 1, do Decreto-Lei n. 48051 tornava aplicvel relativamente aos actos que excedessem os limites das funes (10); a Administrao sempre responsvel no plano das relaes externas, ou por responsabilidade prpria e exclusiva ou em forma de responsabilidade solidria, tornando-se no entanto obrigatrio, neste caso, o exerccio do direito de regresso.

    Por outro lado, pela primeira vez no direito positivo, a nova lei contempla a responsabilidade administrativa por funcionamento anormal do servio, que o artigo 7. n. 4, define como correspondendo a todas aquelas situaes em que, atendendo s circunstncias e a padres mdios de resultado, fosse razoavelmente exigvel ao servio uma actuao susceptvel de evitar os danos produzidos.

    O legislador faz aqui apelo a elementos subjectivos que integram o conceito de culpa, pelo que a articulao desta norma com o antecedente n. 3, permite considerar consagrada a chamada a culpa do servio, abarcando as modalidades de culpa colectiva, atribuvel a um deficiente funcionamento do servio globalmente considerado, e a culpa annima, resultante de um concreto comportamento de um agente cuja autoria no seja possvel determinar.

    Note-se que o funcionamento anormal do servio s gera obrigao de indemnizar se existir um comportamento antijurdico susceptvel de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos. Da a referncia que lhe feita no artigo 9, n. 2, a 9) A inconstitucionalidade das normas dos artigos 2 e 3 do Decreto-Lei n. 48051, face ao princpio da responsabilidade solidria decorrente do artigo 22 da Constituio, foi j defendida na doutrina (RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, pg. 122) e declarada, no que concerne especificamente norma do artigo 3, n. 2, pela acrdo do STJ de 6 de Maio de 1986 (in BMJ n. 357, pg. 392). Sobre esta temtica, ver, tambm, MARIA DA GLRIA GARCIA, A Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Pblicas, pgs. 69-70. 10) Por actos que tiverem excedido os limites das suas funes deveriam entender-se os actos praticados no exerccio de funes ou por causa desse exerccio, mas que envolvam abuso de autoridade ou excesso de poder, bem como os casos extremos de incompetncia ou de desvio de procedimento, e, em geral, os actos dirigidos satisfao de interesses pessoais (neste sentido, CARLOS FERNANDES CADILHA, Responsabilidade da Administrao Pblica, in Revista do Ministrio Pblico n. 86, pg. 9 (nota 6); acrdo do STA de 22 de Novembro de 1994, Processo n. 33332, in AP-DR de 18 de Abril de 1997, pg. 8256).

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    propsito do conceito de ilicitude ([t]ambm existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do servio, segundo o disposto no n. 3 do artigo 7.).

    O sentido til do n. 3 do artigo 7 , pois, o de esclarecer que a pessoa colectiva pblica responde pelos danos produzidos quando, havendo uma actuao danosa ilcita, ela no possa ser imputvel aos titulares de rgos funcionrios e agentes, ou porque no foi possvel individualizar o responsvel, ou porque a responsabilidade se dilui na actividade operativa do servio considerado no seu conjunto. E naturalmente, havendo, nesse caso, uma responsabilidade exclusiva da Administrao, no h lugar a direito de regresso.

    5. Referindo-se ilicitude, o artigo 9 adopta uma formulao que permite

    abranger quer a ilicitude objectiva (aces ou omisses () que violem disposies ou princpios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem tcnica ou deveres objectivos de cuidado) quer a ilicitude subjectiva (de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos).

    A aluso violao objectiva de normas e princpios jurdicos, por um lado, e de regras de ordem tcnica e de deveres de cuidado, por outro, evidenciam que a leso antijurdica pode derivar da ilegalidade administrativa que poder consistir na violao de normas ou princpios jurdicos ou de uma qualquer actuao material desconforme ao direito em que se inclui a inobservncia de normas tcnicas ou de um dever geral de cuidado (11).

    Por outro lado, a referncia aos direitos e interesses legalmente protegidos, que consta do artigo 9, n. 1, in fine, com o que se ter pretendido abranger no apenas os direitos subjectivos, mas tambm os interesses individuais reflexamente protegidos pela norma, parece significar que a ilicitude no se configura apenas atravs da violao de normas substantivas, mas pode resultar tambm da violao de normas procedimentais (que regulam a competncia do rgo, a forma do acto administrativo ou aspectos processuais da formao da vontade administrativa). No est excludo, neste contexto, que uma ilegalidade meramente formal (inserindo-se no conceito de ilicitude por ter implicado a violao de norma destinada a proteger o interesse do particular) possa gerar o dever de indemnizar desde que o vcio detectado constitua causa adequada do dano que tenha sido invocado, o que torna o reconhecimento do direito dependente de uma anlise casustica que, em face das circunstncias concretas, permita imputar o dano indemnizvel ao tipo de ilegalidade cometida. Desde logo, h lugar a um direito indemnizatrio quando o vcio meramente formal possa ter infludo no sentido da deciso de modo a permitir concluir que, se no fosse cometido, a soluo jurdica do caso pudesse ser favorvel ao interessado.

    A ilicitude pode consistir, alm disso, na violao de normas comunitrias, como ser o caso da emisso de actos ou regulamentos administrativos que contrariem directivas comunitrias de efeito directo, sendo essa a consequncia que dimana de o incumprimento do direito comunitrio poder ser imputvel a qualquer dos poderes 11) Assim se compreende, tambm, a desnecessidade de introduzir a distino entre actos jurdicos e actos materiais, contrariamente ao que sucedia na correspondente norma do Decreto-Lei n. 48051. A indemnizabilidade de danos resultantes de actos jurdicos ou de actos materiais est implcita na dicotomia estabelecida entre a violao de disposies ou princpios constitucionais, legais ou regulamentares (que constitui motivo de ilegalidade quando esteja em causa um acto jurdico) e a infraco dessas normas e princpios e ainda das regras de ordem tcnica ou deveres objectivos de cuidado (que tem especfica aplicao em relao a actividades materiais ou tcnicas) Esta explicitao, por referncia ao antigo artigo 6 do Decreto-lei n. 48051, em MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, II vol., 9 edio, pg. 1225.

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    pblicos estaduais, e, portanto, tambm, no mbito do exerccio da actividade administrativa (12).

    Fora do conceito de ilicitude ficam as ilegalidades sanveis e, designadamente, a preterio ou inobservncia de trmites procedimentais que se degradam em formalidades no essenciais, e bem assim, todas as ilegalidades no invalidantes, como o caso dos vcios que no implicam a anulao contenciosa por efeito da aplicao, pelo tribunal, do princpio do aproveitamento do acto administrativo (13).

    6. A previso, no artigo 10, de um critrio prprio de aferio de culpa, no

    domnio da responsabilidade da Administrao (n. 1), bem como a referncia especfica a situaes de presuno de culpa (n.s 2 e 3), permite uma maior clarificao legislativa, possibilitando tambm a identificao de certas especificidades relativamente ao regime geral da lei civil.

    Ao determinar que a culpa dos titulares de rgos, funcionrios e agentes deve ser apreciada pela diligncia e aptido que seja razovel exigir, em funo das circunstncias de cada caso, de um titular de rgo, funcionrio ou agente zeloso e cumpridor, o n. 1 do artigo 10 parte de uma concepo de culpa em abstracto ( semelhana do que sucede na lei civil com a correspondente disposio do artigo 487, n. 2), sem perder de vista as circunstncias particulares do caso concreto, mas tomando como referente, no j o bonus pater familias, mas o titular mdio de rgo ou o funcionrio mdio. Tem-se em conta, por conseguinte, que o facto susceptvel de gerar o dever de indemnizar foi praticado no exerccio de funes ou por causa desse exerccio (tratando-se, por isso, de uma responsabilidade funcional), pelo que interessa avaliar a conduta do agente (em termos de verificar se merece a censura ou a reprovao do direito), no por referncia ao homem comum, mas atendendo especial qualidade da pessoa que praticou o acto.

    Um aspecto inovador do novo regime legal consiste no estabelecimento de uma presuno de culpa leve para a prtica de actos jurdicos ilcitos (artigo 10, n. 2) e para o incumprimento de deveres de vigilncia (artigo 10, n. 3).

    Relativamente aos actos jurdicos da Administrao, a jurisprudncia declarava, ainda que sem grande desenvolvimento doutrinrio, que a violao de normas legais ou regulamentares desde logo arrasta uma presuno judicial de negligncia (14). Os tribunais no afirmavam, portanto, uma presuno de culpa, mas limitavam-se a admitir a demonstrao da culpa atravs da utilizao, como meio de prova, da presuno judicial: por simples conjectura, o julgador deduzia de um facto conhecido (o erro na aplicao ou interpretao de uma norma) um facto incerto (a culpa na emisso do acto administrativo ilegal). No entanto, a culpa comporta um juzo de censura e representa, por isso, algo mais do que a mera constatao da ilegalidade. Ademais, sendo a culpa aferida pela diligncia de um funcionrio mdio, dificilmente se compreenderia que esse funcionrio incorresse em conduta culposa sempre que se tivesse limitado a adoptar, na apreciao do caso concreto, uma das solues plausveis de direito. Da que, em relao prtica de actos jurdicos, fosse necessrio indagar a existncia a culpa em funo do circunstancialismo concreto em que o acto tivesse sido praticado.

    12) Cfr. MARIA JOS RANGEL DE MESQUITA, Responsabilidade do Estado por incumprimento do direito da Unio Europeia: um princpio com futuro, CJA n. 60, pgs. 64 e 68. 13) Neste sentido, CARLOS FERNANDES CADILHA, O Regime Geral da Responsabilidade Civil da Administrao, CJA n. 40, pg. 27, nota 32. 14) Cfr. acrdo do STA de 2 de Novembro de 1993 (Processo n. 31842), in AP-DR de 15 de Outubro de 1996, pg. 5911.

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    O estabelecimento de uma presuno legal de culpa leve no domnio da responsabilidade da Administrao por danos resultantes da prtica de actos jurdicos vem clarificar um pouco as coisas e traz importantes consequncias. A presuno legal de culpa envolve, antes de mais, a inverso do nus da prova, fazendo recair sobre a Administrao o encargo de demonstrar que agiu sem culpa (artigo 344 do Cdigo Civil). Nestes termos, a presuno legal aqui estabelecida no equivale a uma objectivao da culpa, mas to somente determina um agravamento da posio processual da Administrao, que ter de comprovar que se empenhou na procura da soluo legal. E no ser sequer difcil conceber algumas circunstncias desculpalizantes da ilegalidade: sistema legislativo imperfeito; proliferao de legislao extravagante; prolixidade das disposies legais aplicveis; divergncia na jurisprudncia sobre a mesma questo jurdica; inflexo do entendimento jurisprudencial aps a prolao do acto administrativo impugnado (15). Em contrapartida, no est excludo, como se depreende do segmento inicial do n. 2 do artigo 10, que possa vir a demonstrar-se que o autor de um acto administrativo actuou com dolo ou a culpa grave na escolha da soluo jurdica. Voltam a funcionar, para esse efeito, os critrios gerais do nus da prova, pelo que o juiz, para concluir pela existncia de qualquer dessas formas de culpa, no poder bastar-se com um non liquet probatrio, e ter de lanar mo de ilaes que se baseiem nas regras da experincia e de normalidade. Um especial juzo de censura poder ser formulado pelo tribunal nos casos em que a Administrao incorre em erro de interpretao de normas de sentido preciso e inequvoco ou quando opta - como por vezes sucede - por contrariar o entendimento pacfico e reiterado dos tribunais sobre uma dada questo jurdica (16). Por outro lado, o artigo 10, n. 3, ao prever uma presuno de culpa leve sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilncia pretende consagrar a orientao jurisprudencial j firmada no domnio do Decreto-Lei n. 48051 quanto culpa in vigilando, remetendo para um regime similar ao dos artigos 491 e 493, n. 1, do Cdigo Civil (17). Ficam excludas, deste modo, a presuno de culpa em relao a danos resultantes do exerccio de actividades perigosas, a que se reporta o n. 2 do artigo 493 do Cdigo Civil, e relativamente aos quais se encontra prevista uma forma de responsabilidade objectiva, nos termos descritos no artigo 11 desta lei, bem como todas as demais situaes de presuno de culpa consignadas no Cdigo Civil, e especialmente no artigo 492 (18).

    15) Neste sentido, CARLOS FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das demais Entidades Pblicas, Coimbra Editora, 2008, pg. 167. 16) Sobre este aspectos, MARGARIDA CORTEZ, Responsabilidade civil da Administrao por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omisso Culposa do Lesado, Coimbra Editora, 2000, pgs. 104-105. 17) Em concreto, a jurisprudncia comeou por admitir a presuno de culpa relativamente a diversas situaes em que existisse um encargo de vigilncia por parte de entidades publicas, reportando-se a danos causados pela existncia de obstculos na via pblica, deficiente conservao das vias, queda de rvores, runa de edifcio ou ruptura de condutas. Veja-se, entre as mais recentes decises, os acrdos do STA de 10 de Maio de 2006 (Processo n. 121/06), de 4 de Abril de 2006 (Processo n. 1116/05), de 9 de Maro de 2006 (Processo n. 837/03), de 16 de Fevereiro de 2006 (Processo n 1039/05), de 3 de Novembro de 2005 (Processo n 792/05), de 19 de Outubro de 2005 (Processo n. 394/05), de 29 de Junho de 2005 (Processo n 566/04), de 19 de Maio de 2005 (Processo n 590/04), de 26 de Abril de 2005 (Processo n 245/05) e de 7 de Abril de 2005 (Processo n 856/04). 18) Nesse sentido, a ressalva constante do segmento inicial do n. 3 do artigo 10 (Para alm dos demais casos previstos na lei), deve entender-se como referindo-se unicamente aos casos especialmente previstos em legislao extravagante que tenham aplicao na responsabilidade civil extracontratual da Administrao, e no a outros que constem da lei geral civil.

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    Uma questo que cumpre ainda esclarecer a relativa remisso feita no n. 4 do artigo 10, em caso de pluralidade de responsveis, para o regime do artigo 497 do Cdigo Civil. Este preceito da lei civil estabelece o regime de responsabilidade solidria quando forem vrias as pessoas responsveis pelos danos (n. 1), acrescentando que o direito de regresso entre os responsveis existe na medida das respectivas culpas e das consequncias que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsveis (n. 2).

    O que aqui est, todavia, em questo, so apenas as hipteses em que o dano possa ser atribudo a vrias causas e estas sejam imputadas a diferentes pessoas responsveis, no abrangendo j as situaes em que a lei define para uma nica causa do dano uma forma de responsabilidade solidria entre os diversos responsveis ou aquelas em que para a produo do dano possa tambm ter contribudo a culpa do prprio lesado. A situao paradigmtica aquela em que possa configurar-se uma concorrncia de culpas entre o ente pblico enquanto dono da obra e um concessionrio ou empreiteiro particular, em relao a danos resultantes da execuo de obras pblicas.

    Fora do mbito de aplicao do artigo 497 do Cdigo Civil fica a responsabilidade solidria entre uma pessoa colectiva pblica e um seu titular de rgo, funcionrio ou agente, quando estes pratiquem aces ou omisses ilcitas com dolo ou com diligncia e zelo manifestamente inferiores queles a que se encontravam obrigados (caso em que o regime de responsabilidade o previsto no artigo 8, n.s 2, 3 e 4, com referncia ao artigo 6). Aqui a pessoa colectiva pblica funciona como garante do pagamento, e no como co-responsvel pelo facto causador do dano, pelo que o direito de regresso que pode exercer se destina a obter o reembolso da integralidade da indemnizao em que tenha sido condenada como devedora solidria.

    7. O artigo 11 consagra ainda uma forma de responsabilidade pelo risco do Estado e das demais pessoas colectivas pblicas por danos decorrentes de actividades, coisas ou servios administrativos especialmente perigosos, em correspondncia com o que j estabelecia o artigo 8 do Decreto-Lei n. 48051, mas com importantes inovaes: em primeiro lugar, deixou de se estabelecer qualquer limitao indemnizatria por referncia exigncia de prejuzos especiais e anormais (n. 1); por outro lado, mantendo-se a possibilidade de reduo ou excluso da indemnizao com base em concorrncia de culpa de terceiro, passa a prever-se, nesse caso, a responsabilidade em forma solidria do ente pblico, ainda que com direito de regresso (n. 2) 19. No se condicionando agora o dever reparatrio verificao de um dano especial e anormal, funciona um princpio de ressarcimento de todos os danos, desde que se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade, tudo se passando, nesse plano, como se tratasse de uma indemnizao por facto ilcito. Nestes termos, so indemnizveis os prejuzos que resultem do funcionamento de servios (coisas ou actividades) especialmente perigosos, de acordo com os critrios definidos no artigo 3 para a obrigao de indemnizar e mesmo que haja uma grande nmero de lesados e se trate de prejuzos de pequena gravidade, no havendo qualquer obstculo ressarcibilidade inclusive de danos no patrimoniais, desde que estes, pela sua gravidade, meream a tutela do direito (artigo 496, n. 1, do Cdigo Civil). Tal no significa que o dano no deva ser individualizado. Dever tratar-se de um dano que

    19) Note-se que a responsabilidade solidria no aqui imposta por aplicao do princpio estabelecido no artigo 22 da Constituio, visto que no estamos no mbito de uma relao de servio, podendo mostrar-se justificada, no plano da poltica legislativa, por consideraes ligadas solvabilidade do direito indemnizatrio quando os danos devam ser imputados, em grande parte ou na sua integralidade, culpa de terceiro.

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    incida sobre a esfera jurdica de um indivduo ou de uma pessoa colectiva e, como tal possa ser invocado como uma desvantagem patrimonial ou um efeito negativo de carcter pessoal. No est, por outro lado, em causa, na responsabilidade pelo risco, o eventual funcionamento anormal do servio segundo a perspectiva que decorre do artigo 7, n. 4. O funcionamento anormal do servio pressupe a ilicitude da actividade administrativa e a imputao de uma conduta objectivamente culposa, ainda que no seja possvel provar que um determinado funcionrio ou agente tenha actuado com dolo ou negligncia, pelo que o fundamento do direito ressarcitrio , nessa hiptese, a responsabilidade aquiliana. Ao contrrio, a responsabilidade pelo risco aquela que decorre de um funcionamento normal do servio, quando este, pela sua prpria natureza, susceptvel de expor terceiros a uma situao tpica de perigo e assim originar danos indemnizveis (20). Note-se, em todo o caso, que o tribunal no est impedido de convolar em responsabilidade pelo risco um pedido indemnizatrio fundado originariamente em facto ilcito, julgando eventualmente procedente a aco com um fundamento jurdico diverso daquele que foi invocado na petio inicial. De facto, a convolao da responsabilidade delitual em responsabilidade pelo risco implica apenas uma nova subsuno jurdica dos factos tal como foram alegados pelo autor na petio, a que o juiz poder proceder ao abrigo do disposto no artigo 664 do CPC. Assim, nada obsta a que o tribunal, perante a inconcludncia probatria relativamente a algum dos requisitos essenciais da obrigao de indemnizar fundada em responsabilidade delitual (v.g., por se no provar a existncia de facto ilcito ou a conduta culposa), possa averiguar se se verificam, com base nos factos apurados, os pressupostos da responsabilidade pelo risco e, em caso afirmativo, condenar no pedido (21).

    8. A indemnizao pelo sacrifcio pode tambm constituir uma das formas de responsabilidade civil da funo administrativa, correspondendo, em certa medida, responsabilidade por actos lcitos que anteriormente se encontrava regulada no artigo 9 do Decreto-Lei n. 48051. A circunstncia de ter sido objecto de tratamento legislativo autnomo no artigo 16 da nova lei deve-se ao facto de se ter pretendido estabelecer, como requisito da indemnizao, a existncia de quaisquer razes de interesse pblico, independentemente de a aco causadora do dano se inserir na funo administrativa ou em qualquer das restantes funes do Estado (22). Ao referir-se imposio de encargos e produo de danos, o legislador pretende abranger as situaes que resultam da intencional imposio de encargos (aces de proteco sanitria, medidas de direco econmica, trabalhos pblicos de requalificao urbana, intervenes de cariz ambiental, certas medidas de polcia), e

    20) Esta distino em JESUS LEGUINA VILLA, La proteccin jurdica del administrado. Las acciones en materia de responsabilidad patrimonial de la Administracin: evolucin y principios actuales, in Responsabilidade Civil Extacontratual do Estado, Trabalhos Preparatrios da Reforma, Coimbra Editora, 2002, pg. 101. 21) Neste mesmo sentido, CARLOS FERNANDES CADILHA, Convolao da responsabilidade civil extracontratual por facto ilcito em responsabilidade pelo risco, CJA n. 57, pg. 14, em anotao ao acrdo do STA de 3 de Maio de 2005 (Processo 745/04). Sobre estes aspectos, tambm, do mesmo autor, Dicionrio de Contencioso Administrativo, citado, entrada Convolao da responsabilidade civil extracontratual por facto ilcito em responsabilidade pelo risco, pgs. 204-208. 22) Em consonncia com esse mesmo princpio, o CPTA autonomizou a indemnizao pelo sacrifcio como um dos tipos de pretenses que podem ser deduzidas atravs da aco administrativa comum (artigo 37, n. 2, alnea g)), distinguindo-a da aco de responsabilidade civil extracontratual por facto ilcito ou pelo risco, a que alude a alnea f) do mesmo preceito.

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    tambm os danos ocasionalmente ocorridos no exerccio de uma actividade lcita ou que resultem de aces praticadas em estado de necessidade administrativa.

    De notar que s so indemnizveis os encargos ou danos especiais e anormais, o que significa que esta categoria de responsabilidade civil, procurando assegurar o pagamento de uma compensao a quem tenha sido afectado na sua esfera jurdica por razes de interesse comum, visa sobretudo dar concretizao prtica a um princpio de igualdade dos cidados perante os encargos pblicos, desvalorizando a ocorrncia de danos generalizados ou de pequena gravidade que devam ser entendidos como um encargo normal exigvel como contrapartida dos benefcios que derivam do funcionamento dos servios pblicos (23).

    Contudo, a especialidade e anormalidade so requisitos do prejuzo indemnizvel, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, e no propriamente um critrio do clculo da indemnizao. Ou seja, apurado que determinados prejuzos so indemnizveis, por preencherem as caractersticas de especialidade e anormalidade, h lugar indemnizao pelo sacrifcio desde que se verifiquem os demais requisitos materiais do dever ressarcitrio. Nestes termos, a exigncia de um prejuzo ou encargo especial e anormal no obstaria s por si a que se fixasse uma indemnizao correspondente integralidade dos prejuzos ou encargos dessa natureza que tivessem sido produzidos ou impostos. Todavia, o artigo 16 manda atender, para o clculo da indemnizao, designadamente, ao grau de afectao do contedo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado. Essa indicao legislativa pressupe que se efectue uma apreciao equitativa do valor do encargo ou dano, e que, desse modo, poder no corresponder ao montante econmico que esteja efectivamente em causa. Evidencia, por outro lado, o carcter compensatrio, e no meramente reparatrio da indemnizao, o que se compadece com a considerao de que os direitos ou interesses que possam ser sacrificados, em muitos casos, pela sua prpria natureza, sero apenas susceptveis de uma avaliao pecuniria indirecta.

    Em qualquer caso, cabe ao tribunal o controlo da legitimidade do interesse pblico invocado, havendo que distinguir entre os actos ablativos ou praticados em estado de necessidade administrativa, que se encontram legitimados pela realizao do interesse pblico e que, por isso justificam a indemnizao limitada nos termos deste artigo 16 - daqueles outros actos que, de algum modo, importam um desvio aos critrios de legalidade e que caem sob a alada da responsabilidade por facto ilcito, como o caso do acto expropriativo que excede o necessrio para os fins de utilidade pblica em causa, ou da medida policial que viola os princpios da necessidade e da proporcionalidade.

    9. Em concluso, pode dizer-se que o novo texto legal operou a necessria

    adaptao, no plano do direito ordinrio, ao princpio da responsabilidade solidria da Administrao, que decorre do artigo 22 da Constituio, ao eliminar a possibilidade da existncia de uma responsabilidade pessoal exclusiva dos titulares de rgos, funcionrios e agentes (que estava prevista no antigo artigo 3, n. 1, do Decreto-Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1967), e fazendo intervir a pessoa colectiva pblica como responsvel solidrio, em caso de dolo ou culpa grave. Adoptou ainda alguns dos

    23) No regime anterior, idntica exigncia resultava do artigo 9 do Decreto-Lei n. 48051 para a responsabilidade por factos lcitos, que era tambm tornada extensiva responsabilidade pelo risco (artigo 8 desse diploma). Quanto noo de danos ou encargos especiais e anormais, ver artigo 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado. .

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    critrios jurisprudenciais que haviam sido formulados no domnio do regime anterior, mormente no tocante consagrao da culpa do servio e da presuno de culpa por incumprimento de deveres de vigilncia. Introduziu solues legislativas inovatrias como seja o estabelecimento da presuno de culpa leve na prtica de actos jurdicos ilcitos e a obrigatoriedade do exerccio do direito de regresso quando a Administrao responda solidariamente por danos resultantes de aces ou omisses praticadas por titulares de rgos, funcionrios e agentes com dolo ou culpa grave.

    No entanto, o legislador manteve o princpio da conculpabilidade por facto imputvel ao prprio lesado, com base em comportamento processual negligente, limitando-se a reproduzir, ainda que com aperfeioamentos, a soluo que provinha do regime anterior, o que se afigura poder implicar a violao do princpio da tutela jurisdicional efectiva no ponto em que ponha em causa a autonomia processual da aco de indemnizao.