resgatando o silêncio das entrelinhas - poemas de guantanamo

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  • 7/25/2019 Resgatando o Silncio Das Entrelinhas - Poemas de Guantanamo

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    BALEIA NA REDE Estudos em arte e sociedade

    ISSN 1808 -8473 - Vol. 9, n. 1, 2012

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    RESGATANDO O SILNCIO DAS ENTRELINHAS:ENTENDENDO O DITO QUE NO FOI DITO

    Marcus Tulius FrancoMORAIS1

    Resumo: A partir da releitura dos Poemas de Guantnamo: os presos falam (Poemsfrom Guantnamo: The Detainees Speak), procuro discutir e trazer tona o que ospoemas escritos por prisioneiros, tidos como terroristas responsveis pelo atentado de11 de setembro de 2001, quiseram, mas no puderam dizer. Apresentados ao mundo

    pelo professor de direito da Northern Illinois University College, Marc Falkoff, os

    poemas por ele selecionados e traduzidos tiveram de ser submetidos censura doPentgono. Evidencio que os poemas, analisados principalmente sob a perspectiva decada uma das biografias que o editor apresenta sobre cada um dos prisioneiros,oferecem ao mundo um legado literrio proveniente do contexto que produziu, sobcircunstncias atrozes, uma potica da dignidade humana. Demonstro como os

    prisioneiros de Guantnamo so vtimas de um Estado arbitrrio e como esses poemastrazem luz figuras de humanidade contra a fbrica de crueldade da Guerra aoTerrorismo. Procurando resgatar o que foi perdido na traduo e na censura doPentgono, me alio, como tradutor, ao editor, a fim de dar mais fora ao que os poemastentam dizer.

    Palavras-chave: Guantnamo; Poemas de Guantnamo; Direitos Humanos; 11 deSetembro; Terrorismo.

    Introduo

    Alm de despertar nosso interesse particular pelo tema, os Poemas de

    Guantnamotambm nos fazem questionar a relao da traduo potica com a censura

    estadunidense. Para tanto, antes de iniciarmos a anlise potica e tradutria, gostaramosde elucidar alguns pontos do cenrio poltico dos Estados Unidos (E.U.A.), que nos

    permitiro entender como possivelmente se deu a traduo de alguns poemas escritos

    por prisioneiros muulmanos isolados no Campo de Deteno da Baa de Guantnamo,

    criado pelo Estado de George W. Bush, na ilha de Cuba.

    1 estudou Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de Braslia (UnB), e Literatura Alem, naUniversidade Livre de Berlim (FU-Berlin). TraduziuA lenda do santo beberro, de Joseph Roth; de Hans

    Henny Jahnn,A noite de chumboe Treze histrias singulares; de Frank Wedekind,Mine-Haha ou Sobre aeducao corporal das meninas. Atualmente faz Ps-Graduao em Estudos da Traduo, naUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-Mail: [email protected]

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    O ataque terrorista s torres gmeas do World Trade Center de 11 de setembro de

    2001, em Nova York, por extremistas da al-Qaeda, aumentou o dio j existente no seio

    da populao norte-americana contra rabes e muulmanos. A partir do nine-eleven

    multiplicaram-se, em vrias cidades dos E.U.A., as agresses, as ofensas e as

    humilhaes contra indivduos do mundo rabe, desencadeando uma onda de prises, na

    maioria dos casos sem ordem judicial, deixando ainda mais delicada a j fragilizada

    relao entre os E.U.A. e os Estados muulmanos, como o Ir e o Iraque.

    A orientao de Osama Bin Laden, lder e fundador da organizao terrorista al-

    Qaeda, contra os E.U.A., tem origem no aparato blico dos E.U.A. na guerra do Golfo.

    No incio dos anos 80, Bin Laden e seus sequazes do Egito e da Arbia Saudita lutaram

    no Afeganisto, ao lado dos norte-americanos, contra a Rssia. Naqueles anos, osE.U.A. supriram Bin Laden com armamentos e munio; todavia, diante da guerra do

    Golfo, levada a cabo pelos americanos, Bin Laden voltou-se contra eles e denunciou a

    presena militar norte-americana na regio como uma afronta ao Isl. Nos anos que se

    seguiram, Bin Laden construiu uma rede de terrorismo internacional formada por vrias

    organizaes. No incio dos anos 90 aconteceram os primeiros ataques suicidas

    coordenados pela al-Qaeda a instituies americanas, culminando com os atentados de

    11 de setembro de 2001. Extremistas dessa organizao terrorista colidiram dois aviescom as Torres Gmeas do World Trade Center, em Nova York; um terceiro avio caiu

    contra o Pentgono, em Arlington, Virgnia, nos arredores de Washinton D. C.; e um

    quarto avio caiu em um campo prximo de Shanksville, na Pensilvnia. No houve

    sobreviventes em qualquer um dos voos, e o total de mortos nos ataques foi de 2.996

    pessoas.

    Bin Laden assumiu a responsabilidade dos ataques e os Estados Unidos

    responderam com o lanamento da Guerra ao Terror.

    2

    A essa altura, o presidente GeorgeW. Bush deu incio a um experimento em territrio cubano com a justificativa de

    defender seu prprio pas. Suas ordens militares resultaram em prises e investigao de

    cidados no americanos. O Conselho de Segurana das Naes Unidas decretou uma

    Resoluo (UN-Resolution 1373), fundada no Artigo7 UN-Charta (Medidas a serem

    tomadas em caso de ameaas contra a segurana do Estado, quebra da paz ou ataques

    2Cf: http://de.wikipedia.org/wiki/Terroranschl%C3%A4ge_am_11._September_2001_in_den_USA(Acesso em 15/12/2011).

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    terroristas), para o combate ao terrorismo internacional.3

    Com a recusa do Taliban, aliado da organizao al-Qaeda, de se entregar aos

    Estados Unidos, estes declararam guerra contra o Afeganisto. No dia 7 de outubro de

    2001, os Estados Unidos deram incio Operao Enduring Freedom.4 Consequncia

    disso foi a priso, principalmente no Afeganisto, no somente de pessoas envolvidas

    nos combates, mas tambm de pessoas suspeitas de pertencerem a al-Qaeda.5Muitos

    prisioneiros foram levados para Cuba sem direito a uma justificativa dos motivos que os

    levaram priso, sendo-lhes inclusive vetado direito jurisprudncia.6Oficiais norte-

    americanos justificaram esse procedimento por se tratar da priso dos piores e mais

    perigosos terroristas7 do mundo, afirmando ainda que o Campo de Deteno de

    Guantnamo no estaria sujeito jurisdio norte-americana por se encontrar em solocubano.8

    Em 11 de janeiro de 2002, ocorreu o primeiro deslocamento de prisioneiros para

    o Campo X-Ray de Guantnamo, no sudeste de Cuba, com cerca de cento e vinte

    prisioneiros muulmanos. Segundo relatos dos E.U.A., esse primeiro grupo era formado

    por alguns dos mais importantes representantes de Bin Laden, como tambm por

    homens que tinham responsabilidade direta com os atentados de 11 de setembro. O

    novo crcere foi instalado com formas especiais de penalidades extremas para osinterrogatrios. Um exemplo disso o isolamento dos prisioneiros em celas escuras

    com temperaturas baixssimas; outro exemplo, o uso de violncia fsica e da brutalidade

    da Extreme Reaction Force. Soldados armados com escudos, cacetes de borracha e

    sprayde pimenta so os algozes responsveis pelo cumprimento das torturas contra os

    chamados foras da lei9, partidrios da al-Qaeda, que veem nos E.U.A. o inimigo

    nmero 1 do Isl e o nico caminho de mostrar essa ameaa e a nica lngua que o

    3Cf: http://www.documentarchiv.de/in/2001/res_un-sicherheitsrat_1373.html (Acesso em 23/10/2011).4Cf: http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Krieg_der_USA_gegen_den_Terrorismus (Acesso em23/10/2011).5Rose,Guantanamo Bay, 49. Cf. tambm: Human Rights Watch Report http://hrw.org/backgrounder/usa/gitmo1004/ gitmo1004.pdf (Acesso em 02/11/2011).6Cf: http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR510452003 (13. 12. 2004); tambm: Human RightsWatch Report em http://hrw.org/ backgrounder/usa/gitmo1004/gitmo1004.pdf (Acesso em 20/11/2011).7Cf:Anistia Internacional (Amnesty International), AI Index: AMR. Cf. tambm:http://web.amnesty.org/library/Index/ENGAMR511302004 (Acesso em 17.10.2011); ou

    Heimrich/Gelinski, Frankfurter Allgemeine Zeitung, 11. Mrz 2004; ouLeicht, Die Zeit, 15/2004,http://zeus.zeit.de/text/2004/15/Essay_Leicht (Acesso em 10.11.2011).8

    Cf: Gerichtshof prft Rechte der Hftlinge, Frankfurter Allgemeine Zeitung, 22.04.2004.9Cf:Human Rights Watch Report, Guantanamo: Detainee Accountshttp://www.hrw.org/backgrounder/usa/gitmo1004/ (Acesso em 20.11.2011).

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    Ocidente entende a lgica da violncia; Dschihad10, a nica opo.11

    O governo Bush manteve cerca de 800 detentos em Guantnamo, oriundos de

    diversas nacionalidades. Hoje so cerca de 380. A situao jurdica desses prisioneiros

    de combatente inimigo (enemy combatant), sem fazer jus aos direitos e garantias

    previstos na Constituio norte-americana, nem receber os benefcios das Convenes

    de Genebra.12Quase uma dcada aps a remoo dos prisioneiros para o local, no foi

    realizado um julgamento sequer. A priso, para seus crticos, se tornou um smbolo do

    desrespeito aos direitos humanos por parte dos Estados Unidos em sua chamada

    "Guerra ao terrorismo". E como atestam os poemas de Guantnamo, discutidos a seguir,

    de fato, o aprisionamento desses terroristas provou ser no mnimo arbitrrio, injusto e

    desumano.

    Do copinho ao papel

    No primeiro ano de deteno, os prisioneiros no tinham acesso caneta e papel,

    ento alguns escreveram poesia com pasta de dente e creme de barbear, ou gravavam

    seus versos em copinhos de poliestireno. Autoridades americanas procuraram, durante

    muito tempo, sufocar as vozes dos indivduos que eles mantm, at hoje, nesse limboilegal. A partir de 2002, materiais para escrever passaram a ser permitidos a alguns dos

    detentos; no entanto, provavelmente grande parte dos escritos jamais ser divulgado. As

    instncias militares norte-americanas probem a circulao dos textos fora da priso.

    Marc Falkoff, advogado de 17 prisioneiros de Guantnamo e professor de

    Direito do Northern Illiinois University College, E.U.A., reuniu vinte e dois poemas de

    seus clientes e publicou-os pela Universidade de Iowa, E.U.A., em 2007, com o ttulo

    Poemas de Guantnamo: os presos falam (Poems from Guantnamo: The DetaineesSpeak). Falkoff no teve permisso de incluir todos os poemas na edio, alm de que

    cada verso teve de ser submetido ao escrutnio do Pentgono. Em 2006, o Pentgono

    explicou que vrios poemas foram censurados porque essa poesia do crcere apresenta

    10Dschihadem rabe significa guerra santa islmica.11Cf:Hoffman, Studies in Conflict & Terrorism, 2003.

    12As Convenes de Genebra so uma srie de tratados formulados em Genebra, na Sua, definindo as

    normas para as leis internacionais relativas ao Direito Humanitrio Internacional. Esses tratados definemos direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou no, em tempo de guerra.

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    um risco para a segurana nacional por causa do contedo e da forma. Os poemas,

    escritos em sua maioria em rabe, foram traduzidos para o ingls sob a superviso do

    Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Segundo o organizador, as tradues no

    fazem jus s sutilezas e s cadncias dos originais. (Falkoff, 2007, p. 5). No prefcio

    edio, Marc Falkoff fala do projeto da edio: Comecei pensando no poder das

    palavras e da poesia, e que o pblico deveria ler os poemas que meus clientes

    escreveram. (Falkoff, 2011, p. 4). O Pentgono no esclareceu o que significa esse

    perigo encerrado nos poemas, furtando-se de explicar se o perigo estava no poder das

    palavras ou se havia risco de os poemas conterem mensagens codificadas destinadas a

    possveis terroristas em operao.

    O subttulo do livro, Os detentos falam, aponta para a seguinte questo: so, defato, os poetas que falam atravs de sua escritura, no sentido de revelar vidas

    individualizadas? So essas vozes, de fato, as vozes dos poetas? Em que sentido esses

    poemas falam, vetados pela censura oficial, traduzidos por linguistas sob censura e

    aprovados pelo Pentgono de acordo com seus prprios juzos? Assim, um possvel

    subttulo poderia ser Os prisioneiros mudos, ou, quem sabe, O Pentgono fala.

    Apesar da severa censura militar, os poemas so assombrosamente crticos.Pela

    primeira vez, a fala das prprias vtimas, enfatiza Weyers, diretor do Landestheaterem Memmingen, Alemanha.13Aos poemas mesclam-se as breves biografias. Na pgina

    64 da edio dePoemas de Guantnamo, o bardo muulmano Abdullah Thani Faris AL

    Anazi escreve:

    As palavras do poeta so a fonte da nossa fora;Seu verso a salvao dos nossos coraes doridos.14

    Depois de se vincular a uma organizao missionria islmica chamada Jamaat

    AL-Tablighi, Usama Hassan Ahmed Abu Kabir, jordaniano, foi preso no Afeganisto,

    detido por foras antitalibans e entregue a militares norte-americanos. Uma das

    justificativas de sua priso que ele usava um relgio Casio digital, marca

    supostamente beneficiada por membros da al-Qaeda, e alguns desses modelos so

    usados como detonadores de bombas. Kabir permanece em Guantnamo, onde escreveu

    verdade? (Is it true?):

    13

    Cf:http://www.focus.de/kultur/buecher/poems-from-guantanamo_aid_234181.html(Acesso em20.11.2011)14The poets words are the font of our power; / His verse is the save for our pained hearts.

    http://www.focus.de/kultur/buecher/poems-from-guantanamo_aid_234181.htmlhttp://www.focus.de/kultur/buecher/poems-from-guantanamo_aid_234181.htmlhttp://www.focus.de/kultur/buecher/poems-from-guantanamo_aid_234181.htmlhttp://www.focus.de/kultur/buecher/poems-from-guantanamo_aid_234181.html
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    verdade que a erva cresce outra vez aps a chuva? verdade que as flores surgiro na Primavera? verdade que os pssaros migraro para casa outra vez?

    verdade que o salmo nada contra a corrente?15

    Jumah al-Dossari, 33 anos de idade, do Barein, foi preso pelas foras

    paquistanesas no final de 2001; em seguida, foi levado para os Estados Unidos. Os

    militares levaram-no para Guantnamo, onde sofreu maus-tratos e esteve isolado dos

    outros prisioneiros. Jumah al Dossari tentou suicdio doze vezes na priso e nega ter

    qualquer conexo com al-Qaeda e o terrorismo. Muitos prisioneiros j tentaram

    suicdio, descritos pelos militares como incidentes de guerra assimtrica (asymmetric

    warfare). Oolhar introspectivo de Dossari o testemunho da existncia ameaada. Em

    seu Poema da morte (Death Poem), lemos:

    Tomem meu sangueTomem minha mortalha eOs restos do meu corpo.Tomem fotografias do meu cadver na sepultura, solitrio.

    Enviem-nas ao mundo,

    Para os juzes ePara as pessoas de conscincia,Enviem-nas aos homens de princpio e aos justos.

    E os deixem suportar o fardo da culpa diante do mundo,Dessa alma inocente.Deixem-nos suportar o fardo diante de seus filhos e diante da histria,Desta alma desolada, sem pecados,Desta alma que sofre nas mos dos protetores da paz.16

    Outros poemas denunciam a interdioos protetores da paz, nas palavras do

    poetada justia; por outro lado, os poemas atestam a humanidade dos seus autores,

    vilipendiados pelo governo estadunidense e tratados como os piores dos piores

    malfeitores do planeta.

    No Poema de copinho 1 (Cup Poem I), Shaikh Abdurraheem Muslim Dost

    15Is it true that the grass grows again after rain? / Is it true that the flowers will rise up in the Spring? / Isit true that birds will migrate home again? / Is it true that the salmon swim back up their stream?16Take my blood. / Take my death shroud and / The remnants of my body. / Take photographs of mycorpse at the grave, lonely. / Send them to the world, / To the judges and / To the people of conscience, /

    Send them to the principled men and the fair-minded. / And let them bear the guilty burden, before theworld, / Of this innocent soul. / Let them bear the burden, before their children and before history, / Ofthis wasted, sinless soul, / Of this soul which has suffered at the hands of the protectors of peace.

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    pergunta:

    Que primavera essa,Em que no h flores eO ar est cheio de um cheiro pestilento?17So denominados Poemas de copinho por terem sido gravados no fundo de

    copinhos de isopor. Poemas escritos assim geralmente eram passados de cela em cela

    para serem memorizados pelos prisioneiros. Muitos deles encontraram na poesia uma

    forma de manter a sanidade, memorizar os sofrimentos e preservar a humanidade

    atravs de atos de criao. Os copos eram coletados com o lixo do dia. De Shaikh Dost

    no sobrou muita coisa. Dos vinte e cinco mil versos de poesia confiscados do poeta,

    voltaram para suas mos apenas alguns deles. Por que me deram caneta e papel seplanejaram fazer isso?, perguntou Dost a um reprter. Cada palavra era, para mim,

    como uma criana: insubstituvel.18. O poeta, jornalista e ensasta paquistans, autor de

    vinte livros, passou quase trs anos em Guantnamo com seu irmo Ustad Badruzzaman

    Badr. Em 2006, pouco depois de ele e seu irmo terem publicado suas memrias sobre a

    priso de Guantnamo, foi novamente detido pela Inteligncia paquistanesa e, desde

    ento, encontra-se desaparecido.

    Sami al Haj, nascido no Sudo, trabalhava como jornalista cobrindo o conflito

    no Afeganisto para a rede de televiso AL-Jazeera quando, em 2001, foi detido e

    torturado na Base Area de Bagram e em Kandahara, antes de ser transferido para

    Guantnamo em junho de 2002. Militares alegaram que ele trabalhava como jornalista

    para rebeldes Chechenos e para al-Qaeda. Em seu poema Humilhado nas correntes

    (Humiliated in the shackles), registrou:

    [...]

    Fui humilhado nas correntes.Como posso agora compor versos? Como posso agora escrever?

    Depois das correntes e das noites e do sofrimento e das lgrimas,Como posso escrever poesia?19

    [...]

    Sem evidncias legais para sua deteno, Sami al Haj foi solto em 2008, seis

    17What kind of spring is this, / Where there are no flowers and / The air is filled with a miserable smell?18

    Each word was like a child to meirreplaceable.19I was humiliated in the shackles. / How can I now compose verses? How can I now write? / After theshackles and the nights and the suffering and the tears, / How can I write poetry?

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    anos depois de seu encarceramento.

    Nos versos do poema A meu Pai (To my Father), Abdullah Thani Faris al

    Anazi, que teve ambas as pernas amputadas, lamenta sua dor:

    [...]

    Pai! Isto um crcere de injustia.Sua iniquidade arranca pranto das montanhas.

    No sou criminoso nem culpado de ofensa alguma.[...]E fui vendido como um carneiro cevado.20

    Em seguida, sua acusao sobre a priso injustificada se transforma em

    resistncia:

    [...]Por Deus, mesmo se me acorrentassem,Eu jamais trairia minha f.21

    Atualmente sabemos que cerca de oitocentas pessoas passaram pela priso e que

    uma de cada cinco no pertencia a qualquer movimento terrorista, como no caso do

    afego Mohamed Ismail que, em 2002, ao ser detido e entregue aos americanos, tinha14 anos, e seu propsito era to-somente conseguir um trabalho na cidade.

    Os textos dos poetas encarcerados vo desde poemas combativos at versos que

    destilam impotncia, desespero e desamparo. Os poemas so documentos da dor do

    cativeiro, da solido e da inutilidade da vida.

    O Centro de Deteno de Guantnamo, em Cuba, construdo para combatentes

    do Taliban e al-Qaeda, tornou-se sinnimo de arbitrariedade, represso, ilegalidade,

    falta de direitos e tortura. Distante e isolada, a priso no abre suas portas parajornalistas nem para membros das Naes Unidas, e no h dilogo com os prisioneiros.

    O presidente Barack Obama, que recebeu o Prmio Nobel da Paz, parece titubear nos

    assuntos que envolvem os labirintos de Guantnamo. O advogado dos ex-presidirios

    Murat Kurnaz22 e Bernhard Docke23 e o representante da Anistia Internacional,

    20O Father, this is a prison of injustice. / Its iniquity makes the mountains weep. / I have committedno crime and am guilty of no offense. [] / I have been sold like a fattened sheep.21By God, if they were to bind my body in chains, [] I would not sell mine.22

    Cf:http://de.wikipedia.org/wiki/Murat_Kurnaz(Acesso em 05.12.2011)23Cf: Entrevista com Bernhard Docke, advogado de Murat Kurnaz: Menschenrecht als Gnadenakthttp://spreegurke.twoday.net/stories/16586138/

    http://de.wikipedia.org/wiki/Murat_Kurnazhttp://de.wikipedia.org/wiki/Murat_Kurnazhttp://de.wikipedia.org/wiki/Murat_Kurnazhttp://de.wikipedia.org/wiki/Murat_Kurnaz
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    Ferdinand Muggenthaler, sabem: No se trata de culpa ou inocncia, trata -se, porm,

    do tratamento que deve ser dado a todo ser humano. Ningum merece tortura, todos

    merecem justia.24

    Alm da lrica, Guantnamo nos apresenta um cenrio para a reflexo sobre

    nosso Estado de Direito. Em seu livro Marcos de Guerra. Las vidas lloradas, Judith

    Butler, filsofa norte-americana, fala da construo cultural baseada no respeito pela

    vida e questiona os mecanismos que estabelecem a diferena entre as vidas que devem

    ou no ser reconhecidas como dignas de luto. Vidas que definitivamente no so de

    todo ou nunca so reconhecidas como vida. O Outro faz com que o assumamos

    como um semelhante, o nosso prximo, com os mesmos direitos que qualquer ser

    humano. (Butler, 2010)Sem dvida sabemos dos terrveis ataques criminosos e injustificveis s torres

    gmeas, onde milhares de pessoas morreram. Todas essas vidas merecem ser choradas.

    As vidas de Mohamed Ismail, 14 anos de idade, e a de centenas de prisioneiros sem

    relao alguma com o terrorismo, detidos em Guantnamo e tratados de forma

    desumana, merecem ser choradas tambm.

    Paz, dizem.Paz na mente?Paz na terra?Paz de que tipo?

    Vejo-os falar, discutir, lutar ...Que tipo de paz procuram?Por que matam? O que esto planejando?

    So meras palavras? Por que discutem? to simples matar? Esse o seu plano?

    Claro que sim!Conversam, discutem, matam ...Eles lutam pela paz.25

    24http://www.spiegel.de/video/video-17095.html(Acesso em 05.12.2011)25Peace, they say. / Peace of mind? / Peace on earth? Peace of what kind? / I see them talking, arguing,

    fighting/ What kind of peace are they looking for? / Why do they kill? What are they planning? / Is itJust talk? Why do they argue? / Is it so simple to kill? Is this their plan? / Yes, of course! / They talk, theyargue, they kill/ They fight for peace.

    http://www.spiegel.de/video/video-17095.htmlhttp://www.spiegel.de/video/video-17095.htmlhttp://www.spiegel.de/video/video-17095.htmlhttp://www.spiegel.de/video/video-17095.html
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    Isso o que Shaker Abdurraheem Aamer escreve no poema Eles lutam pela

    paz (They fight for peace). Shaker Aamer, cidado da Arbia Saudita, foi preso em

    2002. Militares imputaram-lhe vnculos com al-Qaeda, aparentemente porque

    trabalhava na Fundao beneficente Al-Haramain, no Afeganisto, suspeita de desviar

    dinheiro para organizaes terroristas. Na priso, conseguiu uma concesso que

    permitiu aos detentos formar um comit de queixa para serem respaldados pela

    Conveno de Genebra. Em setembro de 2005, apenas alguns dias depois da formao

    do comit, os militares desfizeram-no. Aamer encontra-se detido at os dias de hoje.

    Concluso

    Escritos atrs das grades, os poemas de Guantnamo foram compostos com a

    esperana de alcanar uma audincia alm do pequeno crculo de amigos de cela. Eles

    oferecem ao mundo rasgos da realidade de homens inocentes, detidos sem julgamento e

    presos em circunstncias questionveis. Os poemas reunidos por Marc Falkoff no

    oferecem uma leitura prazerosa; ao contrrio, revelam a violncia de um governo e sua

    arbitrariedade nas prticas de crueldade contra seres inocentes de crimes contra essa

    Nao. De acordo com documentos dos prprios militares, somente 8% dos detentos

    so acusados de fazer parte da al-Qaeda, somente 5% foram capturados por foras

    estadunidenses nos campos de batalha no Afeganisto, e menos da metade so acusados

    de cometer atos de hostilidade contra os Estados Unidos.26

    Sabemos que a traduo dos poemas seguiu determinados princpios; no entanto,

    mesmo que a censura estadunidense tenha feito uma reescritura (para no dizercensura) dos poemas, o aparato estatal, com seu time de tradutores e revisores de textos,

    no logrou suprimir a revolta, a denncia, as evidncias de abuso e os maus-tratos. J

    nos primeiros minutos, uma releitura dessa obra nos soou como um dos mais dramticos

    registros do sentimento humano diante da barbrie imposta por oficiais na mais notria

    priso dos Estados Unidos. Mesmo desconhecendo as estratgias da traduo e as

    26

    Cf: Mark Denbeaux and Joshua W. Denbeaux, Report on Guantnamo Detainees: A Profile of 517Detainees throught Analysis of Department of Defense Data. Seton Hall Public Law Research Paper nr.46,www.cfr.org/publications/9838(Acesso em 24/11/2011)

    http://www.cfr.org/publications/9838http://www.cfr.org/publications/9838http://www.cfr.org/publications/9838http://www.cfr.org/publications/9838
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    ISSN 1808 -8473 - Vol. 9, n. 1, 2012

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    escolhas lxico-gramaticais dos tradutores do Pentgono, os poemas causam-nos forte

    impacto em nossa representao da realidade. E difcil no associar os versos sofridos

    pelos detentos de Guantnamo aos versos rabiscados nas prises e arcabouos da

    ditadura e da censura no Brasil.

    Abstract: From my reading of Poems from Guantnamo: The Detainees Speak Ipropose to debate and bring to light that which the poems written by the prisonerssosupposed to be the terrorists who were responsible for the September 11, 2001, attackswanted to, but could not really say. The poems presented to the world by the ProfessorMarc Falkoff from the Northern Illinois University College of Law, as well as selectedand translated by him, were put under the censorship of Pentagon. I evince that those

    poems, analysed mainly under the perspective of each biography that the editor shows

    about each prisoner, introduce to the world a literary legacy which comes from thecontext that produced some poetry of human dignity under atrocious circumstances. Ishow how these Guantnamo prisoners are victims of an arbitrary State and how those

    poems bring to light human characters against the cruel factory of the War toterrorism. I become an ally to the editor as a translator when trying to rescue what has

    been lost during the translation and the censorship of Pentagon, in order to give somestrength to what the poems are trying to say.

    Keywords: Guantnamo; Poems from Guantnamo; Human Rights; Nine-eleven;Terrorism.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo MorenoCarrillo. Buenos Aires: Paids, 2010.

    FALKOFF, Marc. Poems from Guantnamo The Detainees Speak. Iowa City:University of Iowa Press, 2007.

    ROSE, David. Guantnamo Bay. Frankfurt a. M.: S. Fischer, 2004.

    LESS, Steven. Country Report on the USA, in: WALTER, Christian; VNEKY, Silja;RBEN, Volker, SCHORKOPF, Frank (orgs.). Terrorism as a Challenge for Nationaland International Law: Security versus Liberty?Berlin: Springer, 2004.

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