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19 REAL OU VIRTUAL? URBANO OU RURAL? REPENSANDO A CARACTERIZAÇÃO ESPAÇO-TERRITORIAL DO DESENVOLVIMENTO Christian Ganzert - USP 1. Introdução conceitual: Espaço físico-territorial na era da redescoberta do território Os arranjos produtivos regionais se estabeleceram em torno da necessidade de fomentar processos que garantissem a eclosão de inovações, para manter níveis de competitividade de mercado, gerando melhorias em produtos e processos. Autores como Gertler (2003) afirmam que o processo de inovação, seja incremental ou total, dependem do conhecimento tácito em maior quantidade do que do conhecimento explícito, registrado em algum tipo de suporte. São as trocas de experiências entre pesquisadores, e a vivência derivada dessa interação, que proporcionam a possibilidade de combinar múltiplos conhecimentos e deriva-los em algo que possa oferecer vantagens competitivas às organizações. Segundo Howells (2002), baseando-se em estudo empírico sobre o assunto, “a transferência de conhecimento tácito é sensível à distância” (HOWELLS, 2002, p. 880). Significa dizer que a busca por inovações, uma vez baseada no conhecimento tácito, necessita da aproximação dos agentes promotores das inovações necessárias à competitividade. Essa aproximação, embora possa ser substituída parcialmente pela utilização dos dispositivos comunicacionais telemáticos, tende a possuir maior eficiência quando os agentes ocupam o mesmo espaço físico. Essa é a razão do estabelecimento dos clusters, definidos por Porter (1992) como concentrações geográficas de empresas de determinado setor e os demais agentes correlatos a elas conectados, tais como universidades e fornecedores. Dalsgaard (2001) enxerga os clusters como “redes de firmas e instituições de conhecimento com estruturas em condições comuns. Suas inter-relações criam competências

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REAL OU VIRTUAL? URBANO OU RURAL? REPENSANDO A

CARACTERIZAÇÃO ESPAÇO-TERRITORIAL DO

DESENVOLVIMENTO

Christian Ganzert - USP

1. Introdução conceitual: Espaço físico-territorial na era da redescoberta

do território

Os arranjos produtivos regionais se estabeleceram em torno da

necessidade de fomentar processos que garantissem a eclosão de inovações,

para manter níveis de competitividade de mercado, gerando melhorias em

produtos e processos. Autores como Gertler (2003) afirmam que o processo de

inovação, seja incremental ou total, dependem do conhecimento tácito em

maior quantidade do que do conhecimento explícito, registrado em algum tipo

de suporte. São as trocas de experiências entre pesquisadores, e a vivência

derivada dessa interação, que proporcionam a possibilidade de combinar

múltiplos conhecimentos e deriva-los em algo que possa oferecer vantagens

competitivas às organizações.

Segundo Howells (2002), baseando-se em estudo empírico sobre o

assunto, “a transferência de conhecimento tácito é sensível à distância”

(HOWELLS, 2002, p. 880). Significa dizer que a busca por inovações, uma vez

baseada no conhecimento tácito, necessita da aproximação dos agentes

promotores das inovações necessárias à competitividade. Essa aproximação,

embora possa ser substituída parcialmente pela utilização dos dispositivos

comunicacionais telemáticos, tende a possuir maior eficiência quando os

agentes ocupam o mesmo espaço físico. Essa é a razão do estabelecimento

dos clusters, definidos por Porter (1992) como concentrações geográficas de

empresas de determinado setor e os demais agentes correlatos a elas

conectados, tais como universidades e fornecedores. Dalsgaard (2001)

enxerga os clusters como “redes de firmas e instituições de conhecimento com

estruturas em condições comuns. Suas inter-relações criam competências

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compartilhadas, possibilitando uma produção com relativamente alto valor

agregado” (DALSGAARD, 2001,p. 351).

De acordo com os estudos de Markusen, Hall e Glasmeier (1986), quatro

séries de variáveis devem explicar o surgimento de concentrações regionais de

empresas voltadas para oferecimento de produtos em torno de uma mesma

base tecnológica. Seriam classificadas em: condições amenas pra o

estabelecimento de famílias (bom clima, boas opções para educação), meios

de acesso (estradas, portos e aeroportos), desenvolvimento econômico

(serviços de assistência ao negócio, disponibilidade de agentes financeiros) e

fatores sócio-políticos (nível médio de renda, equidade social, gastos públicos

em tecnologia). Entretanto, todas essas condições, ainda que combinadas, não

garantem o sucesso da região enquanto geradora de inovações. É necessário

combinar elementos típicos do estabelecimento de Sistemas Regionais de

Inovação e criar meios para que estes possam se integrar de forma a favorecer

a dinâmica de criação.

Segundo Edquist (2005), um sistema de inovação “compreende todos os

determinantes do processo de inovação” (EDQUIST, 2005, p. 182). No caso

dos Sistemas Regionais de Inovação, percebemos a notória presença de três

peças fundamentais: indústrias, centros de pesquisa e universidades. Sem a

integração desses participantes indispensáveis, fica difícil imaginar processos

de inovação realizados em escala regional.

A Tecnologia de Informação, responsável pela intensificação dos fluxos

informacionais ocorrida nos últimos quarenta anos, tem atrelada a ela uma

indústria de alta competitividade responsável por manter a dinâmica de

melhoria constante das técnicas de comunicação humana e processamento de

informações. Algumas das nações e regiões que iniciaram a implantação de

arranjos produtivos em Tecnologia da Informação passaram a ter destaque no

novo cenário do espaço mundial globalizado. O papel do desenvolvimento da

TI para os Estados Unidos, por exemplo, foi tão importante que, segundo

Drucker (1987), salvou a economia americana da estagnação prevista pelos

padrões cíclicos de obsolescência tecnológica de Kondratieff (SCHUMPETER,

1982, 1983; KONDRATIEFF; DANIELS, 1984), não somente pela mudança do

paradigma tecnológico, mas também pela inovação dos arranjos produtivos e

pelo empreendedorismo (DRUCKER, 1987), tal qual o modelo encontrado no

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Vale do Silício. Esses fatores mostraram ao mundo a importância dessa região

produtiva muito particular, em um setor de alta competitividade, baseado na

inovação e no conhecimento. A era da informação havia chegado, através da

aplicação produtiva e social de produtos de uma nova indústria, a indústria de

TI. A região que melhor representa essa nova indústria é justamente o Vale de

Santa Clara, onde se constituiu o cluster de TI mais importante do mundo.

Antes mesmo da invenção do transistor em 1946 pela Bell Labs

(CHANDLER;

CORTADA, 2003), a região surgia como um importante marco referencial para

a emergente indústria da recente “Tecnologia da Informação” (ou simplesmente

TI). O Vale do Silício californiano, apelido concedido ao maior cluster de TI do

mundo, com a maior parte de sua extensão situada no condado de Santa

Clara, tem como pedra fundamental a fundação da Hewlett-Packard em Palo

Alto, em janeiro de 1939 (LÉCUYER, 2006). Dois jovens estudantes de

Stanford montaram em uma garagem, patrocinados pelo reitor da universidade,

uma microempresa de engenhocas eletrônicas que iniciaria a tendência de

empreendedorismo da região e criaria o “mito da garagem”, ideia

fundamentada no sucesso econômico de vários empreendimentos que

começaram com pouco ou nenhum capital nas residências de estudantes

universitários (MALONE, 2007). Esse tipo de fenômeno econômico se

reproduziu mais de uma

vez, gerando grandes corporações como Microsoft e Apple.

Bangalore, na Índia, mostrou-se uma região conectada com o

empreendedorismo

observado no Vale do Silício (VENKATARAMAN, 2004). Como mostra

Saxenian (2000), isso não era fruto de uma coincidência, pois uma enorme

quantidade de pesquisadores indianos imigrou para trabalhar no Vale do Silício

entre as décadas de 1970 e 1980. A este fenômeno, Saxenian (1994) deu o

nome de Brain Drain. Surgiu um momento em que os imigrantes começaram a

voltar para a Índia, ora “contaminados” pela cultura do empreendedorismo.

Instalaram-se em algumas regiões de destaque tecnológico, em especial na

região de Bangalore, iniciando o processo intitulado por Saxenian (2006) como

Brain Circulation, no qual os talentos explorados por anos a fio pelas empresas

americanas voltaram aos seus lares e constituíram uma revolução na indústria

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local de TI. Saxenian (2006) nomeia esses novos empreendedores como os

“novos argonautas”.

Bangalore se tornou um notável cluster de TI, principalmente no que

tange ao setor de serviços e desenvolvimento de softwares (KEELEY, 2007;

CASTELLS, 1999;

PRASHANTHAM, 2008). O sucesso da região pode ser equiparado com outros

eventos

parecidos ao redor do mundo, tendo como pano de fundo a ação constante do

empreendedorismo.

A formação de clusters se mostrou colaborativa com o crescimento do

setor de TI em nível internacional. Frente ao sucesso observado em regiões da

Ásia, tal como Bangalore (Índia), a exemplo do modelo americano do Vale do

Silício, outros países passaram a incentivar a formação de clusters

tecnológicos. O que mais chama a atenção para o surgimento de um centro de

excelência produtiva de TI em Bangalore é a notável distância de sua

economia daqueles padrões encontrados nos Estados Unidos. Enquanto o

Vale do Silício está localizado no país que detém a maior economia do mundo,

representante emblemático do sistema de produção capitalista, a Índia está

bem aquém do desenvolvimento financeiro e econômico americano. O sucesso

de Bangalore mostra que há mais questões envolvidas na formação de um

cluster tecnológico de excelência do que a mera disponibilidade de recursos

materiais e uma economia essencialmente capitalista.

Os dois exemplos mostram que, seja na Índia ou nos Estados Unidos, a

condição para atingir a excelência na atuação em mercados de alta tecnologia

é promover a inovação continua, gerando competitividade. Quando voltamos a

atenção para o âmbito regional, o empreendedorismo se torna peça chave da

competitividade, oxigenando as estruturas organizacionais para manter o

ineditismo necessário ao processo de inovação, não somente no âmbito

produtivo, mas também no que tange as questões administrativas e de

relacionamento com o mercado. Os clusters, enquanto configurações

produtivas, mostram-se ideais para a transferência de conhecimento tácito,

dada a proximidade entre os agentes de inovação, além de favorecerem a

competitividade – outro fator que impulsiona o processo de pesquisa e

desenvolvimento – pela concorrência entre agentes internos. Ou seja, até

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mesmo a indústria da tecnologia que permitiu o estabelecimento de novos

conceitos sobre o termo espaço, ainda necessita da proximidade física de seus

agentes para que haja compartilhamento de conhecimento tácito e implemento

competitivo em seus processos e produtos.

Castells (1999) assume a importância do encurtamento das distâncias

entre agentes de inovação quando afirma, baseado nos estudos de Saxenian

(1994), que “conversas noturnas em bares e restaurantes, como o Walker's

Wagon Wheel Bar e o Grill in the Mountain View, fizeram mais pela difusão da

inovação tecnológica do que a maioria dos seminários de Stanford."

(CASTELLS, 1999, p. 72). O conceito de comunidade não se perdeu com a

reformulação do conceito de espaço, mas ainda está atrelado à sensibilidade

da distância quando o foco é a produção da inovação. Percebe-se daí a

necessidade de coabitar, segundo os parâmetros produtivos do capitalismo,

tanto nos espaços do mundo real quanto na virtualidade do mundo digital.

2. Rediscussão do espaço e da virtualidade na temática

desenvolvimentista

O espaço, segundo Kellerman, “pode ser considerado uma das noções

primárias da

geografia” (KELLERMAN, 2002, p. 30). A ocupação humana do espaço faz

surgir novos conceitos sobre o mesmo, todos embebidos em um ponto de vista

antropomórfico, considerando-o condicionado à manutenção das diversas

necessidades da sociedade humana. Dessa maneira, o espaço que antes era

considerado um termo que expressasse conceitos relacionados a uma

determinação física natural, torna-se algo subjetivo e relegado à atuação

humana – tal como o “espaço dos fluxos” de Castells (1999). A tecnologia de

informação trouxe novos adendos culturais, que acabaram por aproximar o

conjunto de símbolos típicos de diferentes culturas de uma “cultura do meio”,

ou seja, a cultura que margeia a utilização dos mecanismos de comunicação

informatizados. O surgimento destes mecanismos não ocorreu do dia para a

noite, nem tampouco com a mera inserção da referida tecnologia informacional

no meio social. Como definiu Santaella (2003):

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A cultura digital não brotou diretamente da cultura de massas, mas foi sendo semeada por processos de produção, distribuição e consumo comunicacionais a que chamo de “cultura das mídias”. Esses processos são distintos da lógica massiva e vieram fertilizando gradativamente o terreno sociocultural para o surgimento da cultura digital ora em curso. (SANTAELLA, 2003, p. 13)

Segundo Santaella (2003), houve um período determinante entre as

culturas de massa e digital que tornou possível que a última surgisse. Podemos

considerar a cultura de massa como um desdobramento da chamada

“sociedade de consumo”. Nesta, era necessário que fossem inseridos na

cultura tradicional elementos que pudessem alavancar o consumo de artigos

produzidos por uma indústria cada vez mais sedenta de mercados. Segundo

Ewen (1976), a sociedade de consumo “surgiu na década de 1920, não como

uma progressão suave dos padrões anteriores e menos ‘desenvolvidos’ de

consumo, mas como um recurso agressivo de sobrevivência empresarial”

(EWEN, 1976, p. 54). A cultura de massa veio a dar suporte a este

tipo de relação entre indústria e mercado. Era necessário incitar o consumo,

transformar os cidadãos em consumidores. Isso acabou impactando nas

formas tradicionais de cultura, como nos mostra Santaella (2003):

O advento da cultura de massas a partir da explosão dos meios de reprodução técnico-industriais – jornal, foto, cinema – seguida da onipresença dos meios eletrônicos de difusão – rádio e televisão – produziu um impacto até hoje atordoante naquela tradicional divisão de cultura em erudita, culta, de um lado, e cultura popular, de outro. (SANTAELLA, 2003, p. 52)

O período que caracteriza em Santaella (2003) a cultura das mídias

serve para

individualizar a produção cultural. Enquanto a produção cultural era

massificada, as opções de escolha de obtenção de produtos culturais do

indivíduo médio da sociedade estavam reduzidas face às características de

massificação dos veículos e suportes de informação. O salto quântico que

redirecionaria os rumos da sociedade para uma cibercultura necessitava de

apoio sobre um novo modelo cultural que individualizasse o consumo de

produtos culturais. Esta cultura das mídias, que intermedeia o processo de

transição da cultura de massas para a cibercultura, encontra representação

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simbólica no vídeo-tape, na TV a cabo, entre outros. Como define Santaella

(2003):

novas sementes começaram a brotar no campo das mídias com o surgimento de equipamentos e dispositivos que possibilitaram o aparecimento de uma cultura do disponível e do transitório (...) Essas tecnologias, equipamentos e linguagens criadas para circularem neles têm como principal característica propiciar a escolha e consumo individualizados, em oposição ao consumo massivo. São esses processos comunicativos que considero como constitutivos de uma cultura das mídias. (SANTAELLA, 2003, p. 15-16)

O surgimento da cultura das mídias começa dar significado às redes no

ambiente cultural da sociedade. Essas redes se dão pela liberdade de escolha

e valorização das diferenças propiciadas pelo contato individualizado com a

produção cultural. Segundo Santaella (2003), as mídias possuem participação

fundamental no processo de preparação para a cultura digital porque:

tendem a se engendrar como redes que se interligam e nas quais cada mídia particular (...) tem sua função que lhe é específica. É a cultura como um todo que a cultura das mídias tende a colocar em movimento, acelerando o tráfego entre suas múltiplas formas, níveis, setores, tempos e espaços. (SANTAELLA, 2003, p. 53)

Percebe-se na análise de Santaella (2003) que o espaço não ganhou

nova aparência para os olhos do agente humano em um passe de mágica. Foi

necessário um processo gradual de reformulação cultural, oriundo da

vinculação de novos elementos advindos da esfera tecnológica para o cerne

cultural, tornando viável a adoção de uma “cultura do meio”. No âmbito da

atuação humana sobre o espaço, o coletivo no imaginário individual, outrora

reforçado por dispositivos massificados de comunicação, deu espaço a uma

segmentação tão brutal que chegou à customização total do consumo de

produtos informacionais. A era das mídias abriu as portas para um tipo de

concepção individualizada do ambiente coletivo, do espaço físico e da coisa

pública em função da independência do indivíduo quanto ao acesso dos

conteúdos. As tecnologias telemáticas teriam, a partir de então, como interligar

de forma mais coesa os grupos e os indivíduos sob um mesmo referencial

cultural, oriundo do meio de comunicação/informação. E esse referencial

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cultural, longe de se esmerar na massificação, baseia-se em elementos que,

claramente, ressaltam a individualidade e a diferenciação individual.

O espaço físico, apesar de se opor conceitualmente aos “espaços

virtuais”, passou a se pautar, pelo menos a partir da metade do século XX, nos

mesmos elementos frios e objetivos, assépticos e absolutamente funcionais,

desprendidos de uma caracterização cultural comunitária e favorável às

necessidades do capitalismo e suas premissas, que enxergamos se

reproduzindo no mundo virtual.

A cultura do meio talvez não tenha seu embrião na tecnologia, mas na

objetividade da funcionalidade dos ambientes humanos. Isso pode ser

explicado pela dinâmica do não-lugar, presente em Augé (2000). Foi,

possivelmente, transposta para o meio digital por um tipo de afinidade eletiva

respaldada pela racionalidade do conceito de eficiência comunicacional,

essencial para os processos de produção do informacionalismo. Então, em

gênese, o ambiente virtual – que também pode ser enxergado como a ausência

de “espaço entre os espaços” – fez com que se desenvolvessem adendos

culturais que já estavam presentes, ao menos em sua forma embrionária, na

temática da objetividade do capitalismo.

A relação do homem com o espaço físico, outrora dada pela cultura,

passa a dividir a atenção do indivíduo com as relações estabelecidas com o

novo tipo de espaço, que também possui uma cultura, mas asséptica e

desprovida de uma historicidade regional ou étnica. E assim, as linhas

conceituais que amarram a ação do indivíduo com os dois tipos de espaço se

confundem, gerando impressões idênticas para todo tipo de relação

estabelecida para todo tipo de espaço. No imaginário coletivo – um coletivo

obviamente fragmentado pelo frenético movimento contínuo de individualização

do homem no informacionalismo – o espaço “virtual” se torna algo como o

prolongamento do espaço físico, onde a subjetividade da informação se

destaca da objetividade do suporte, que não deixa de habitar o mundo real.

Isso faz com que os conceitos de espaço, seja qual for sua orientação,

deixem de contemplar a verdade tátil de que o “ciberespaço é uma alucinação

consensual experimentada todos os dias por bilhões de operadores legítimos

(...) é uma representação gráfica de dados extraídos dos bancos de cada

computador no sistema humano” (HILLIS, 1999, p. 22).

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3. A problemática da caracterização urbano-rural

A discussão acerca da urbanização dos países recentemente

industrializados tem ganhado maior destaque com o crescimento da

importância desses no comércio internacional. A mesma discussão abre alas

para a busca de uma nova definição do território urbano, considerando todas

as suas particularidades e perspectivas. Na tentativa de delimitar as

características específicas da urbanidade, surge, a reboque, a necessidade de

redesenhar as fronteiras conceituais do ambiente rural, termo que há muito tem

sido abordado como a oposição natural do que é urbano. Muito além da

oposição semântica praticada no senso comum, rural e urbano são termos que

expressam conceitos complementares, principalmente quando seu uso ocorre

no plano da análise social-econômica.

Enquanto a maioria das pesquisas aponta para a existência de um

movimento crescente de migração para os centros urbanos, principalmente nas

últimas cinco décadas, outros ideólogos acreditam que a metodologia

empregada para caracterizar a urbanidade tem sido equivocada, por tratar

apenas da contenção espacial do ambiente urbano. A crítica usualmente

presente nos estudos acerca dos termos rural e urbano é de que não há uma

medida expressa do nível de penetração dos elementos típicos do ambiente

rural naquilo que é considerado ambiente urbano, e vice-versa. Tal

caracterização híbrida derivou naquilo que se alcunhou pelo neologismo

“rurbano”, termo que expressa a dificuldade em separar um conceito de outro

pela mera observação do espaço social. O uso do termo remete a Sorokin,

Zimermann e Garopin (1930; 1986), e já não configura um conceito novo, mas

bastante evidenciado desde o segundo quartil do século XX. Trata-se da

constatação de um imbróglio ao maniqueísmo da oposição entre rural e

urbano, ainda presente no senso comum e evidenciado na própria produção

cultural humana desde a tomada de consciência do fenômeno civilizatório,

tendo como exemplo a obra de ficção de Queirós (2006) de publicação

póstuma em 1901, intitulada “A Cidade e As Serras”.

O romance de Queirós faz uma crítica da vida na cidade, como

demonstrado na epígrafe, exaltando as qualidades da vida no campo e

evidenciando as diferenças do estilo de vida e cultura dos dois ambientes. Mas

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a dicotomia construída pelo imaginário popular no uso dos termos rural e

urbano não traz em sua essência a explicação acerca da conformação de seus

conceitos. Enquanto o ambiente urbano está usualmente associado à ideia do

progresso positivista, o rural está conectado, ao menos no imaginário popular,

ao sossego de uma vida tradicionalista associada ao baixo desenvolvimento

tecnológico, social e econômico. Entretanto, a realidade cada vez mais

afirmada nas economias emergentes é de um progresso rural paralelo ao

desenvolvimento do meio urbano. Dessa forma, torna-se cada vez mais difícil

enxergar a diferença entre os termos, mais uma vez remetendo ao rurbano de

Sorokin, Zimermann e Garopin (1930; 1986).

Em meio à problemática da contenção conceitual dos termos rural e

urbano, propõe-se neste artigo uma nova perspectiva de delimitação territorial,

através da busca de uma metodologia de avaliação que não se prenda apenas

ao escopo espacial ou censitário, abrangendo também tópicos como a

produção de riqueza e a apropriação de elementos culturais típicos dos

conceitos. Por conta da necessidade de arbitrar a transformação de

percepções subjetivas em instrumentais práticos de ordem quantitativa, busca-

se aqui a conceituação dos problemas concernentes ao tema, para uma futura

busca de dispositivos não paramétricos, que tornariam possíveis as aferições

de resultados expressos em valores, mas que também sofreriam,

invariavelmente, a influência da percepção humana individualizada. Dessa

forma, o trabalho desempenhado não ignora a volatilidade do aparato, mas o

torna declarado nas figuras dos indivíduos que viabilizariam, em um momento

posterior ao deste artigo, a constituição do método de caracterização mais

compatível com a sistêmica social.

4. Do Rural ao Urbano – Um resgate conceitual da avaliação dos

conceitos à sua perspectiva sistêmica

A dicotomia entre rural e urbano encontra sua retomada no alvorecer da

idade moderna, quando se resgataram valores e ideias oriundas da forma de

organização dos clássicos gregos (COULANGES, 1975). A idade média pode

ser entendida, dessa forma, como um hiato que adicionou novos elementos

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aos conceitos apropriados, a partir dos séculos XIII e XIV, pela renascente

civilização ocidental daquilo que era parte da cultura helênica. Esses adendos

foram fundamentais para a modernização dos procedimentos técnicos,

oriundos da civilização oriental, e culminariam na expansão da gênese do

capitalismo nos séculos que se seguiram até a consolidação do sistema no

século XIX (HOBSBAWM, 2006). Como perspectiva de legitimação ao

processo produtivo capitalista, o positivismo exerceu o papel de pano de fundo

ideológico para uma série de mudanças resultantes da busca pelo excedente

desencadeada no âmbito produtivo, validada por um novo perfil ético coerente

com a retomada do conceito da urbe (WEBER, 2008).

Dizer que o conceito de civilização é algo concebido a partir da era

moderna é privar-se das origens daquilo que viria a ser para a renascença o

arcabouço filosófico e político. A noção de urbe advém do período clássico,

mas sofre profundas transformações a partir dos eventos migratórios iniciados

com a Revolução Industrial. Somente a partir da associação do proletariado e

da indústria às cidades é que se atribui o seu sentido mais usual nos dias de

hoje, atrelado ao progresso tecnológico da transformação produtiva mediada

pela máquina. A urbe de nossos dias é diferente da urbe grega, mas seu

alicerce ainda é o mesmo. Trata-se da convergência de interesses em torno de

uma territorialidade de identidade específica, valores definidos pela

produtividade e cultura penetrada pelas exigências do mercado.

Segundo Mendes (2002), “a cidade é um lugar de encontros” (MENDES,

2002, p. 153). Essa afirmativa se apoia na raiz da existência das cidades, uma

zona de confluência das relações humanas de ordem econômica, social e

política, de onde transbordam novos elementos para a cultura local, regional e

nacional. O mesmo pensamento se aplica à noção de comunidade, tendo em

mente que a cidade é formada por um tipo específico de comunidade, na qual

valores são desenvolvidos e transformados em torno da produção social e a

emergência das relações humanas sob o espaço comum. É necessário

reconhecer que há diferenças evidentes entre os modelos de comunidades

estabelecidos em torno da urbanidade e em torno da ruralidade, as quais são

percebidas principalmente por peculiaridades que definem tais espaços. Até

mesmo os problemas sociais típicos são diferenciados nos dois ambientes,

influenciando no comportamento psiquicamente induzido dos indivíduos. Blazer

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et al. (1985) mostra que nítidas diferenças na incidência de desordens

psiquiátricas em indivíduos oriundos dos meios urbano e rural, o que valida a

existência de uma distinção entre os dois ambientes e sua interação com a

percepção do ambiente social.

Os modelos de vida dos dois espaços são tão nitidamente diferentes que

exercem diferentes impactos na psique de seus habitantes. Entretanto, em

sintonia com a crítica lírica de Queirós (2006), é notória a impossibilidade de

estabelecimento de um padrão evolutivo entre os conceitos urbano e rural.

Como salienta Abramovay (2000), “ruralidade não é uma etapa do

desenvolvimento social a ser superada com o avanço do progresso e da

urbanização. Ela é e será cada vez mais um valor para as sociedades

contemporâneas” (ABRAMOVAY, 2000, p.26). Significa dizer que associar o

urbano ao desenvolvimento natural do ambiente rural é um erro conceitual. A

ideia de desenvolvimento associado à urbanidade encontra críticas em outros

trabalhos, que corroboram a ideia de que o meio urbano é um fenômeno

crescente da modernidade, e inclui em seu rol de elementos representativos o

dispêndio energético e o ritmo acelerado de produção. A análise de Harris

(1998) mostra que países de maior consolidação do modelo urbano, como os

EUA da década de 1970, chegam a consumir cerca de 60 vezes mais energia,

por habitante, do que países essencialmente rurais da mesma época, como a

Índia (HARRIS, 1998).

Nesse ponto é necessário que seja revisto o conceito de

desenvolvimento que melhor se aplica a este trabalho. Amartya Sen condiciona

o desenvolvimento como a gradação de acesso à liberdade de ação do

indivíduo em um sistema social (SEN, 2000). Dessa forma, o conceito de

desenvolvimento não pode se limitar à condição estreita de análise empírica do

desempenho econômico de uma determinada circunscrição geopolítica. O

paradigma de desenvolvimento humano delineado por Sen (2000) encontra um

paralelismo com peculiaridades adjacentes ao conceito de desenvolvimento

local elucidado por Martinelli e Joyal (2004), onde se observa que o

desenvolvimento que realmente interessa é aquele que enseja a melhoria de

vida das pessoas de uma determinada localidade, sob a premissa da

sustentabilidade e redução da dependência (MARTINELLI; JOYAL, 2004).

Dessa forma, não basta encarar o desenvolvimento como o mero acúmulo de

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renda de uma determinada localidade, mas sim a análise de como essa renda

pode contribuir para a ampliação do acesso, individual e coletivo, às

alternativas de ação social no âmbito de uma dada circunscrição espacial.

Essas características do conceito de desenvolvimento aqui utilizado

permitem a constatação de que pode haver desenvolvimento de âmbito rural ou

urbano. Ainda que um ambiente não se caracterize plenamente como um

desses dois tipos, sendo na realidade posicionado em uma gradação entre

eles, é possível verificar que em ambos há a possibilidade de melhoria de

acesso à liberdade de ação aos indivíduos que compõem o tecido social de sua

localidade. Significa dizer que o desenvolvimento, tal qual delimitado

anteriormente, pode ocorrer no meio urbano ou no meio rural, diferentemente

da típica vinculação do progresso social e técnico apenas ao meio urbano que

se verifica na atribuição de peso de valor positivo ao que é oriundo da cidade.

Contrariando o senso comum, que vincula o desenvolvimento à urbanização,

como salienta Veiga (2004), “a visão de uma inelutável marcha para a

urbanização

como única via de desenvolvimento só pode ser considerada plausível por

quem desconhece a imensa diversidade que caracteriza as relações entre

espaços rurais e urbanos dos países que mais se desenvolveram” (VEIGA,

2004, p. 26).

Há, dessa forma, uma relação estreita entre os termos, mas não é

possível caracterizá-los como opostos. Recentemente, até mesmo a ideia de

continuum (na qual se consideram os termos como partes indissociáveis de um

todo) tem sido rediscutida entre os teóricos da área, enumerando suas notórias

diferenças e dicotomias. Entretanto, segundo Tavares (2007), “as zonas

urbanas, suburbanas e rurais são cada vez mais interdependentes e os

problemas de uma delas também interferem nas outras” (TAVARES, 2007,p.

113). Dessa forma, a compreensão do conceito exige um esforço de abstração

que conceda a possibilidade de um continuum que permita a existência da

dicotomia. A partir dessa observação, é possível retomar o conceito de rurbano

caracterizado anteriormente. Toda a dificuldade de definição se dissipa sob a

mera observação de que, na verdade, não se trata de dois conceitos isolados,

opositivos ou complementares, mas de esferas de contenção de significados

que possuem relações sistêmicas entre si e entre outros conjuntos conceituais.

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Muitas das origens dos problemas que afligem às cidades advêm do campo, e

vice-versa. Há uma teia de relações entre os dois ambientes e, em certos

momentos, torna-se impossível dizer com exatidão o grau de urbanidade ou

ruralidade de uma localidade. No meio desse contexto, cabe espaço para uma

pergunta divisora de águas: a que interessa a caracterização de um ambiente

como rural ou urbano?

Todo tipo de caracterização tem, em primeiro momento, uma finalidade

didático-cognitiva e, posteriormente, servirá como referencial para

compreensão da realidade. Tentar compreender a realidade dispondo de

ferramentas conceituais dicotômicas como os termos urbano e rural é tão útil

quanto tentar compreender a cor cinza dispondo apenas das cores preto e

branco. É preciso, antes de tudo, saber que elas se misturam, e que a mistura

gera algo inteiramente novo e peculiar.

Dentro dessa lógica, Veiga (2004) relembra a proposta do conceito de

ecossistema territorial. Segundo o autor, o ecossistema territorial é “entendido

como o espaço sem o qual um ecossistema urbano não pode exercer o

conjunto de suas próprias funções vitais” (VEIGA, 2004, p. 26). Explicando a

incapacidade de dissociação entre os conceitos frente à sua conexão com a

atividade social do indivíduo, Veiga (2004) ainda percebe que:

se o ecossistema territorial é composto tanto de elementos do

ambiente físico-biológico, quanto do ambiente construído e do

ambiente antrópico, torna-se impossível, então, recusar todo e

qualquer tipo de determinismo geográfico para explicar a localização

das atividades e das populações, como pretendiam os primeiros

teóricos da economia espacial. (VEIGA, 2004, p. 26).

Essa percepção do autor está em nítida sintonia com a ideia de

Larceneux (1996) acerca da categorização do espaço urbano. Significa dizer

que, apesar da percepção das distinções entre os ambientes urbano e rural

impactar diretamente a ação humana, condicionando-a através de uma cultura

típica da vida social estabelecida naquele ambiente, é impossível determinar

com clareza uma tipificação que delimite as fronteiras entre os dois conceitos.

Dessa forma, não se trata de um continuum, tampouco de termos opostos, mas

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somente de configurações múltiplas conectadas à variável espacial da

dinâmica do tecido social.

Estudos de diversas épocas mostram as diferenças entre as práticas

salariais daquilo que é tido como ambiente rural em relação ao ambiente

urbano. Tal qual o estudo de Bacha (1979), o grande problema desse tipo de

estudo econômico é a caracterização do que é urbano e o que é rural, voltando

ao cerne da questão aqui discutida. Se o salário é reflexo do mercado de mão

de obra sob a influência do desempenho dos produtos de um determinado

setor (VARIAN, 1992), falta determinar com maior zelo se há influência interna

entre setores correlatos, definindo suas fronteiras por componentes

geopolíticas ou outro tipo de variáveis. Nesse momento, deve-se ter em mente

a característica sistêmica de comportamento econômico, onde fatores de um

subsistema impactam indiretamente em outros (CAPRA, 2006). Pode-se dizer

que, trazendo à análise sistêmica, os sistemas econômicos, ainda que sob o

escopo da análise geográfica, comportam-se como sistemas interagentes, nos

quais suas componentes independentes exercem influências entre si (BAUER,

1999).

Para que haja um estudo correto das influências exercidas entre um

setor e outro (impacto do rural sobre o urbano e impacto do urbano sobre o

rural), seria necessário encarar o tema sob a perspectiva de um modelo

analítico estrutural. Por haver a noção do impacto direto de um termo (urbano)

sobre o outro (rural), pode-se dizer que há uma relação de dependência

estrutural estabelecida, passível de ser avaliada por métodos analíticos de

influência e dependência. Alinhando o tema ao âmbito das discussões da teoria

dos sistemas aplicada ao estudo dos arranjos produtivos (rurais ou urbanos), é

possível dizer que o conceito de dependência estrutural inclui a dependência

funcional e a dependência produtiva existente entre os dois cenários. A

dependência estrutural é um conceito discutido no âmbito dos sistemas

produtivos, que soa como um termo geral frente aos termos específicos de

dependências produtiva e funcional. Enquanto a dependência funcional se

apoia na rede de veiculação do produto ao mercado, estritamente

dimensionada no escopo geográfico da distribuição de produtos e serviços e

relacionamento com clientes, a dependência produtiva está na cadeia de

fornecimento de matéria-prima e outros recursos para a composição de um

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produto ou serviço final (GUZMAN-CUEVAS; CÁCERES-CARRASCO;

SORIANO, 2009). Já a dependência estrutural é a composição dos dois tipos

anteriores, e está atrelada às condições ambientais de estabelecimento de

relações com outras unidades produtivas ou agentes econômicos, determinada

por variáveis macroeconômicas e padrões da cultura regional.

Do mesmo modo que adotar o termo dependência estrutural significa

transpor conceitos macroeconômicos para o embate temático rural/urbano, é

possível conceber seu alinhamento ao uso recorrente do termo equilíbrio

estrutural (HEIDER, 1946; NEWCOMB, 1953). A teoria do equilíbrio estrutural

foi concebida em meio a preceitos matemáticos complexos, e originou um sem

número de outras teorias no campo da sociologia e economia (WASSERMAN;

FAUST, 1994), tendo sua aplicação mais significativa no campo das ciências

comportamentais obtida por Harary (1959), baseando-se em Heider (1946). A

partir de Harary (1959) foi possível alinhar a perspectiva qualitativa de

dependência estrutural com os métodos matemáticos de verificação do

equilíbrio estrutural. Subtraindo-se a questão epistemológica relacionada às

duas formas de tratamento dos termos urbano e rural, há complementaridade

entre os conceitos, que permite sua observação como grupos interagentes a

partir de Harary (1959).

O conceito sistêmico de dependência estrutural expressa maior

abrangência do que a mera oposição dos conceitos rural e urbano. Na teoria

dos sistemas, a dependência estrutural é vista como uma propriedade inerente

a todo tipo de sistema. Tendo em vista que sistemas são estruturas de relações

entre entidades conectadas com um propósito comum (ESPEJO, 1996), deriva-

se a ideia de que cada agente conectado ao sistema depende da relação que

estabelece com o meio, e também há validade nessa perspectiva se dividirmos

esse meio em dois grandes conjuntos de características (rural e urbano), com

indivíduos localizados além de suas fronteiras. Essa dependência se

estabelece no ato de relacionar-se com outro agente, dado pela necessidade

ou conveniência de um ou de outro, no ambiente além da fronteira rural/urbana

ou dentro de suas delimitações. A própria relação depende da pré-disposição

dos agentes em se conectarem, o que significa dizer que se torna um pré-

requisito para o estabelecimento de laços no interior do sistema. De igual teor,

não há sistema sem dependência, já que toda interação gera certo grau de

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dependência (ainda que próximo do nulo) e que não há sistema sem interação.

A dependência é tão natural em um sistema, mesmo naqueles compostos por

múltiplos subsistemas, quanto a existência de relações. Capra (2002) observa

que:

Não existe nenhum organismo individual que viva em isolamento. Os

animais dependem da fotossíntese das plantas para ter atendidas as

suas necessidades energéticas; as plantas dependem do dióxido de

carbono produzido pelos animais, bem como do nitrogênio fixado

pelas bactérias em suas raízes; e todos juntos, vegetais, animais e

microorganismos, regulam toda a biosfera e mantêm as condições

propícias à preservação da vida. (CAPRA, 2002, p. 14)

Dessa forma, a dependência está presente na cadeia de relações de

sistemas complexos como a biosfera, argumento corroborado por Lovelock

(1991). Sob esse comentário, traz-se o debate dos conceitos rural e urbano a

um outro nível, aquele em que sua interação é observada de uma forma

sistêmica e interagente, sem dissociação entre os conjuntos de elementos

culturais ou de ação social que compõem sua caracterização.

5. Considerações Finais

A proposta de reavaliação da metodologia de caracterização dos

ambientes urbanos e rurais descrita neste trabalho aponta para a incorporação

do pensamento sistêmico para melhor definir os critérios de análise dos dados

levantados e seu relacionamento para originar melhores condições de

compreensão dos dois ambientes, sabendo que um possui ligações estreitas

com o outro. Na verdade, a própria concepção do urbano depende da

existência do ambiente rural. Ampliar a compreensão dessa dependência pode

melhorar o estabelecimento de novas políticas que venham a melhorar o modo

de gestão dos dois ambientes, seja no âmbito social ou econômico.

Os efeitos do informacionalismo sobre a distribuição espacial das

sociedades humanas podem ser enxergados nos fenômenos que cercam a

vida em metrópoles e regiões típicas da produção do aparato informacional.

Novos elementos se inseriram nas culturas locais, norteando a própria

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ocupação territorial humana, de acordo com as premissas da nova fase do

capitalismo. Por conta da necessidade de expansão do sistema, baseando-se

na inovação como recurso de fomento da competitividade, as organizações

buscaram se estruturar no espaço geográfico de forma a favorecer a

emergência de novas ideias, valendo-se da possibilidade de transferência do

conhecimento tácito, sensível à distância.

Em um esforço final, podemos encarar as novas tecnologias da

informação como grandes simulacros das “fendas espaciais” teorizadas pela

física, por onde somente passam informações, de variadas espécies. Se isso já

é suficiente para garantir a interação humana em alguns âmbitos, passando por

cima de diferenças culturais seculares e pelas distâncias impostas pelo espaço

físico, ainda não foi capaz de substituir alguns laços comunitários e os

fenômenos típicos que somente aparecem em sua forma original, física e táctil,

tais como a mudança e a sensibilização do homem para com o seu

semelhante.

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