repensando a geografia escolar

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2. Jos William Vesentini 2 JOS WILLIAM VESENTINI REPENSANDO A GEOGRAFIA ESCOLAR PARA O SCULO XXI EP Editora Pliade So Paulo 2009 3. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 3 Copyright 2009, Jos William Vesentini Direitos Reservados. Proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorizao expressa do autor e do editor. Capa: Dbora Gomes Dscio. Revisado pelo autor. Ficha de Catalogao Vesentini, Jos William V575r Repensando a geografia escolar para o sculo XXI / Jos William Vesentini. - So Paulo: Pliade, 2009. 161 p. Bibliografia ISBN: 978-85-7651-110-6 1. Geografia Estudo e ensino I. Ttulo CDU 91 (Bibliotecria responsvel: Elenice Yamaguishi Madeira CRB 8/5033) Conselho Editorial Pliade Profa. Dra. Beatriz Lage - USP Profa. Dra. Ldia Almeida Barros - UNESP Prof. Dr. Erasmo de Almeida Nuzzi - Fund. Csper Lbero Prof. Dr. Flvio Calazans - UNESP Prof. Dr. Gustavo Afonso Schmidt de Melo - USP Prof. Dr. Jos Henrique Guimares - USP Prof. Dr. Lus Barco - USP Prof. Dr. Maurizio Babini - UNESP Prof. Dr. Nelson Papavero - USP Prof. Dr. Ricardo Baptista Madeira - UniFMU Prof. Dr. Roberto Bazanini - IMES-SC Editora Pliade Rua Apac, 45 - Jabaquara - CEP: 04347-110 - So Paulo/SP [email protected] - www.editorapleiade.com.br Fones: (11) 2579-9863 (11) 2579-9865 2009 4. Jos William Vesentini 4 Sumrio Prefcio ..................................................................................... 5 Introduo: uma apologia do ensino da geografia... e da histria, da sociologia, da filosofia, da educao fsica e artstica................................................... 11 A escola para o sculo XXI..................................................... 33 O ensino da geografia na escola do sculo XXI .................... 69 Consideraes finais ............................................................. 113 Respondendo a algumas dvidas comuns (FAQs)............... 121 Bibliografia ........................................................................... 155 5. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 5 Prefcio Esta obra o resultado provisrio de um longo percurso. Ela comeou a nascer com a elaborao de um ensaio, O novo papel da escola e do ensino de Geografia na poca da Terceira Revoluo Industrial, que publicamos em 19961 . Mesmo esse artigo tem uma histria: foi o resultado de reflexes que surgiram em uma disciplina optativa, Geografia crtica e ensino, que ministramos durante mais de uma dcada, a partir do final dos anos 1980, para alunos de graduao e tambm centenas de professores das redes pblica e particular de ensino, que a cursaram por iniciativa prpria (isto , sem nenhum apoio do Estado ou das escolas onde lecionavam) visando a algum tipo de atualizao, pois j eram formados e no necessitavam mais de crditos acadmicos no Departamento de Geografia na USP. Nessa disciplina, discutimos inmeros textos coletneas organizadas por Jacques Dellors, obras de Edgar Morin, Paulo Freire, Yves Lacoste, Perrenoud, Piaget, Gardner, Vygotsky, Ferreiro e outros, inclusive vrios educadores e gegrafos brasileiros (vide a bibliografia, no final deste livro) como tambm um sem nmero de experincias educacionais concretas relatadas pelos alunos/professores que lecionavam em escolas de orientaes variadas: cursinhos pr-vestibulares, supletivos (que depois foram denominados EJA educao de jovens e adultos), com orientao pedaggica montessoriana, piagetiana, perrenoudiana, jesutica etc. Concomitantemente a 1 In: Revista Terra Livre, n. 11-12. 6. Jos William Vesentini 6 esse dilogo, sempre acompanhei as mudanas geopolticas e geoeconmicas no globo inclusive essa nossa principal linha de pesquisas, ligada geografia poltica , com as radicais alteraes no mapa-mundi aps 1989, a transio da produo fordista para a ps-fordista, as redefinies no mercado de trabalho com a terceira revoluo industrial, a emergncia e expanso de uma nova questo ambiental2 , a crise do mundo socialista e da bipolaridade, a par do surgimento de uma nova ordem mundial3 etc. Pouco a pouco, foi ficando manifesto que vivemos, desde pelo menos meados dos anos 1970, numa poca de profundas e rpidas mudanas sociais, econmicas e polticas alm, evidentemente, de culturais e demogrficas que engendram novos desafios para a escola, para a educao formal. Sem dvida que essas mutaes histricas tambm impactam a educao no sentido amplo do termo: os meios de comunicaes, a tica e os valores culturais, o modelo familiar, com o declnio da famlia patriarcal etc. Mas o que nos interessa nesta obra, como tambm naquele referido curso lecionado por mais de dez anos, a educao formal e o ensino da geografia. O sistema escolar e, talvez mais ainda, o ensino da geografia, na medida em que esta disciplina deve levar o aluno a compreender o mundo em que vivemos no imune a todas essas transformaes. Ao contrrio do que pensam alguns, ele no consiste fundamentalmente em aplicar ideias 2 Sobre esse tema, vide nosso livro Geografia, natureza e sociedade. So Paulo, Contexto, 1988. 3 Cf. VESENTINI, J. W. A Nova Ordem Mundial, So Paulo, tica, 1992; e tambm Nova Ordem, Imperialismo e Geopoltica Global, Campinas, Papirus, 2003. 7. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 7 pedaggicas deste ou daquele autor, tampouco desta ou daquela ideologia (uma noo j meio desgastada e at mesmo questionvel nos dias de hoje4 ). Existem, sim, autores com propostas pedaggicas alternativas, s vezes at irreconciliveis (embora isso seja meio raro), como tambm existem orientaes mais progressistas e outras mais tradicionalistas. Mas isso no implica em ideologias no sentido usual do termo (burguesa versus proletria, por exemplo) e muito menos que o ensino se resuma aplicao desta ou daquela proposio. Toda proposta ou filosofia pedaggica tem que se adequar realidade da escola, dos alunos, do meio social onde estes vivem. Essa adequao no consiste num procedimento simples e, sim, numa recriao, num processo complexo no qual ideias de uma filosofia com frequncia se imiscuem com noes ou orientaes oriundas de outras ou advindas de conhecimentos prticos, da experincia dos docentes no processo educativo. Mais do que isso, a eficcia de qualquer proposta pedaggica nunca per se, pelos seus mritos inerentes, e, sim, pela sua maior ou menor adequao s demandas sociais, s necessidades de uma poca, de uma sociedade especfica e logicamente contextualizada no tempo e no espao. Nada dessas vulgaridades panfletrias do tipo o ensino apropriado para o capitalismo como se existisse um 4 Veja-se, sobre isso, os comentrios de FOUCAULT, M. (Microfsica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, especialmente pp.7-9) a respeito da inadequao da noo de ideologia para um pensamento, digamos assim, complexo, aquele que busca superar a ideia simplista de verdade (a essncia ou o sentido da histria) versus os equvocos ou interpretaes deformadoras (as ideologias) e tambm a crena que os nicos conflitos que movem a histria so os classistas. 8. Jos William Vesentini 8 nico capitalismo independente da poca e do lugar, com necessidades invariveis , que amide encontramos em alguns escritos. Tampouco o oposto e complementar: a escola socialista, numa viso mecanicista na qual cada modo de produo teria um modelo apropriado de ensino, fazendo, com isso, tbula rasa das experincias concretas, no plural, das lutas e conquistas democrticas. Devemos pensar num ensino voltado para um futuro melhor e possvel, isto , que podemos vislumbrar j no presente, que, de certa forma, uma decorrncia deste no sentido de realizar suas melhores potencialidades. Um futuro melhor, tanto para o social como um todo o avano da democracia, da cidadania ativa, dos direitos sociais, culturais, ambientais quanto tambm para os educandos o desenvolvimento de suas inteligncias mltiplas, de suas capacidades, habilidades e atitudes apropriadas para essa sociedade democrtica, que vo permitir, portanto, uma auto-realizao. Este o principal objetivo deste livro: perscrutar essas potencialidades educativas do nosso tempo, com nfase no ensino da geografia potencialidades decorrentes da terceira revoluo industrial, da globalizao e da formao de sociedades multitnicas e multiculturais. Talvez, ele peque por otimismo. Mas, no fundo realista no sentido de sistematizar determinadas mudanas e prticas que efetivamente ocorrem na realidade, mesmo que ainda no sejam hegemnicas. Cabe ao leitor avaliar a sua pertinncia em funo da realidade na qual vive; cabe, enfim, aos professores e educadores avaliarem a sua relevncia em funo de suas prticas, de seus alunos, de suas escolas e das mudanas que nelas ocorrem. Afirmamos que este livro tem um longo percurso; um percurso que no se encerrou com aquela referida experincia docente, 9. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 9 com a troca de ideias com os alunos e professores durante nosso curso Geografia crtica e ensino. Ele prosseguiu com as dezenas de palestras e mini-cursos que realizamos em diversos recantos do Brasil, em encontros e congressos de gegrafos e/ou de educadores, em eventos patrocinados por universidades, por escolas, diretorias ou por secretarias estaduais de educao, tanto nos anos 1990 quanto nesta primeira dcada do sculo. Nesse sentido, somos gratos aos comentrios, s sugestes e s crticas que recebemos em todos esses eventos, por parte de professores do ensino fundamental e mdio ou, eventualmente, superior. Mesmo sendo engendrado por uma reflexo pessoal, todo conhecimento no fundo social no sentido de fruto de uma inter-comunicao, de um processo dialgico no qual se ensina e se aprende ao mesmo tempo. No podemos negligenciar que, no final das contas, conforme observou com sua usual perspiccia um dos maiores nomes da cincia do sculo XX: Educao aquilo que fica depois que voc esquece o que a escola ensinou. (ALBERT EINSTEIN). 10. Jos William Vesentini 10 11. 11 Introduo: uma apologia do ensino da geografia... e da histria, da sociologia, da filosofia, da educao fsica e artstica Apologia, como se sabe, um vocbulo de origem grega que significa defesa, louvor ou justificativa de algum ou de alguma coisa. As apologias mais antigas e ainda hoje notveis foram a que Plato fez de Scrates e a de Pricles em relao democracia ateniense. Mas por que o ensino da geografia requer uma apologia? Porque vivemos em tempos sombrios, pelo menos no que diz respeito atividade educativa no Brasil. Vem ocorrendo uma hipervalorizao de um ensino teoricamente pragmtico, voltado essencialmente para ensinar os rudimentos da matemtica e da lngua portuguesa, a par da depreciao de todas as demais disciplinas escolares. Um recente ministro da educao quando no cargo, afirmou, sem pejo, que os vestibulares em todo o pas deveriam cobrar somente aquelas duas disciplinas escolares, sendo todo o resto superficial, pouco importante para um educando que est terminando o ensino mdio. Conforme a notcia amplamente veiculada pela mdia, ele expressou a seguinte opinio: 12. Jos William Vesentini 12 Podemos fazer s duas provas - matemtica e portugus. Quem souber isso sabe tudo. O aluno, para fazer um curso universitrio, no precisa de tudo aquilo que se coloca nos vestibulares: geografia, qumica. Isso ele aprende l dentro1 . fato que, logo depois, quando seus assessores o alertaram sobre a impopularidade da declarao, em especial quando se lanou candidato presidncia da Repblica, o ento ex- ministro tentou se desdizer afirmando que no foi exatamente aquilo que ele havia pronunciado. Mas o dito bastante claro e no deixa margem para dvidas e, alm disso, foi gravado por inmeros reprteres e reproduzido, com essas mesmas palavras, em praticamente toda a mdia nacional na ocasio. Propostas estapafrdias como essa, infelizmente, no constituem fatos isolados na vida poltica e cultural brasileira dos ltimos anos. Nem mesmo o pioneirismo deve ser atribudo ao ex-ministro. Inmeros secretrios estaduais de educao j afirmaram tal sandice, tanto antes quanto depois da fala do ministro da educao do incio do primeiro mandato de Lula como presidente. E tambm nos Estados Unidos do governo George W. Bush (2001-2008) foi implantada uma poltica educacional na qual o importante mesmo era aprender o ingls e a matemtica. Tambm os meios de comunicao, em geral, contribuem para estes tempos sombrios. A maior parte das colunas supostamente educativas dos nossos jornais e revistas 1 Declarao de Cristvo Buarque publicada na Folha de S. Paulo de 03/04/2003 e em outros jornais do pas nessa mesma data. Por sinal, o ex- ministro um dos raros polticos preocupados com a melhoria da qualidade do ensino no Brasil. Mas at ele tem essa falta de clareza a respeito de uma educao formal apropriada para o nosso tempo. 13. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 13 existem rarssimas excees assinada por pessoas com ideias pedaggicas (mal digeridas) da poca do fordismo e da escola tcnica, com frequncia, divulgando juzos absurdos como esse, alm de inmeros outros semelhantes ou at piores. Um pretenso educador, que escreve geralmente parvoces na revista Veja, concorda com a ideia propalada por Buarque e vai mais alm, argumentando que os baixos salrios pagos aos professores no Brasil pouco tm a ver com a sofrvel qualidade do nosso sistema escolar; segundo ele, nosso professorado ganha at mais que a mdia em termos internacionais (sic) e, nem por isso, estamos acima da mdia no que diz respeito ao aprendizado dos educandos2 . No incomum que jornalistas com colunas supostamente educativas em revistas e jornais, de forma dissimulada ou no, enalteam aquelas referidas redes de ensino que vendem franquias, utilizando subterfgios como: recebi um inteligente e-mail de um aluno do Positivo, um aluno do COC ou do Objetivo ganhou um concurso no sei do que geralmente promovido ou patrocinado pela prpria escola etc. Ao mesmo tempo, eles disparam frequentes vituprios contra o ensino pblico e gratuito e, em especial, contra os professores, vistos como os culpados pela precariedade do nosso sistema escolar. Nesse bojo, no qual a preocupao essencial o desempenho 2 Ponto de vista: Cludio de Moura Castro, in Veja, 13/02/2008. bem verdade que este colunista, ao contrrio de alguns outros, no esconde que tem ligaes com uma das empresas que vendem franquias, tais como as redes Pitgoras, Objetivo, Positivo, COC, Anglo, Expoente e algumas outras. So redes de escolas particulares que trabalham com apostilas totalmente voltadas para os vestibulares e cujas aulas, geralmente expositivas, so repeties de contedos tradicionais e at mesmo, algumas vezes, panfletrios, ao perceberem que um discurso pseudocrtico atrai certo pblico. 14. Jos William Vesentini 14 nos vestibulares, ensino das cincias humanas (histria, geografia, sociologia), das artes e da filosofia, passa a ser alvo de rabiosos ataques. Como se a finalidade da escola fosse a de to somente ensinar a escrever e a contar ou fazer alguns clculos. Isso faz parte do clima intelectual predominante no Brasil dos ltimos anos O grande problema que esse vis est se tornando hegemnico. No fosse isso, seria at mesmo perda de tempo mencionar tais concepes pedaggicas arcaicas, as quais, no mximo, serviriam para divertir os leitores. Mas nos ltimos anos, infelizmente, elas vm ganhando terreno no debate cultural e poltico brasileiro. E se expandem mesmo na prtica, isto , nas legislaes e no cotidiano da sala de aula de escolas particulares e inclusive pblicas. No apenas este ou aquele jornalista ou algum poltico isolado, deste ou daquele partido especfico, que propala essas quimeras. So pessoas oriundas de diversas vertentes poltico-partidrias e ideolgicas tanto de esquerda como de direita, se que essas noes tm alguma serventia para nossa realidade atual. Aquela primeira ideia, apregoada por um ex-ministro do PT, encontrou repercusso numa secretaria estadual da educao controlada pelo PSDB, um partido que, na teoria, possui propostas divergentes do PT. [Embora s na teoria, ou melhor, no discurso poltico-eleitoral, pois, na prtica, no apenas a poltica econmica do governo Lula um prosseguimento da poltica anterior, do PSDB, mas tambm a poltica educacional possui uma inegvel continuidade de filosofia e de prticas: os PCNs, os exames avaliativos (mesmo que alguns tenham mudado de nome), a nfase em tecnologia (colocar computadores e banda larga em todas as escolas pblicas) e nunca em qualificao e valorizao do professorado etc]. No 15. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 15 Estado de So Paulo, foi decretado que, a partir de 2008, todas as disciplinas escolares assim no ensino fundamental como no mdio nada mais so do que auxiliares para o ensino da matemtica ou da lngua portuguesa. Os professores de todas as disciplinas receberam apostilas com o formato de um jornal onde h o contedo para ser ensinado nos trs primeiros meses do ano: na geografia praticamente s mapas, escalas, fusos horrios (com inmeros clculos para o aluno treinar matemtica); na histria, na sociologia e na filosofia quase que s textos curtos para os alunos treinarem a compreenso do que est escrito (auxiliando, desse modo, o aprendizado do portugus), e assim por diante3 . Sem dvida que essa mais uma das extravagantes experincias tal como a aprovao automtica de todos os alunos independentemente do seu aprendizado ou do desenvolvimento de suas capacidades que constantemente so colocadas em prtica no Brasil, dando a impresso de que o sistema escolar no algo srio, mas, sim, um campo meio abandonado onde se faz de tudo (ou de nada), no qual se pratica sem aparentes consequncias as ideias mais doidivanas, normalmente se colocando o pessoal de mais baixo nvel para gerenciar a esposa, a cunhada ou a amante de um poltico importante, um cabo eleitoral de peso, um poltico de menor 3 Secretaria da Educao do Estado de So Paulo. Jornal do Aluno. Edio Especial da Proposta Curricular. So Paulo, fevereiro de 2008. Existem verses dessa apostila para 5 e 6 Sries, para 7 e 8, para o 1 ano do ensino mdio e para o 2 e 3 anos do ensino mdio. Todas as escolas estaduais receberam cpias para distribuir aos professores e alunos e, como j mencionamos, todas as demais disciplinas viraram auxiliares para o ensino da matemtica ou da lngua portuguesa. 16. Jos William Vesentini 16 expresso ou de um partido aliado que precisa ter um cargo no governo etc. interessante notar que essa proposio basicamente similar ao que ocorreu nos Estados Unidos a partir do governo Bush (isto , o filho, George W. Bush, cujo governo se iniciou em 2001 e foi at o final de 2008, aps uma reeleio em 2004). L tambm se procurou4 reorientar a poltica educacional num sentido diferente do que prevaleceu (e ainda prevalece, em grande parte) desde os anos 1990, quando a partir do governo Clinton, de documentos da ONU, do Banco Mundial e especialmente da Unesco5 , foi se popularizando a ideia de um ensino menos conteudista e mais voltado para o desenvolvimento de habilidades, atitudes ou competncias por parte dos educandos: o aprender a aprender, a ser, a fazer, a conviver. 4 Escrevemos procurou porque o sistema educacional norte-americano de fato descentralizado, com cada cidade elaborando a partir de debates com a comunidade a sua poltica educacional, que pode ou no coincidir com as recomendaes federais. L o governo federal dispe de pouco menos de 30% do total dos recursos pblicos arrecadados a cada ano (impostos, taxas...), sendo que os municpios ficam com cerca de 40% desse total. diferente do Brasil, onde de fato (embora no de direito) h uma centralizao na medida em que o governo federal dispe de grande parte desses recursos (quase 70% do total, ficando os municpios com apenas 11%, em mdia), o que significa que a imensa maioria dos municpios depende da transferncia de verbas federais. 5 Cf. DALLORS, J. (Org.). Educao: um tesouro a descobrir, documento da Unesco editado no Brasil pelo MEC em conjunto com a editora Cortez, em 1996. Foi elaborado por uma equipe de dezenas de educadores e vrias partes do mundo e que serviu de inspirao para os PCNs do Brasil e de vrias novas propostas curriculares em dezenas de outros pases em distintos continentes (na Europa, Amrica Latina, sia, etc.). 17. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 17 O governo Bush, como se sabe, foi fortemente marcado pelo neoconservadorismo6 e por influncias religiosas da direita evanglica e ultraconservadora norte-americana. Ele buscou redirecionar no apenas a poltica externa dos Estados Unidos, que se tornou muito mais agressiva e unilateral, mas tambm boa parte da poltica interna. Por exemplo: diminuiu os impostos pagos pelos mais ricos; tentou, e em parte conseguiu, mudar a composio da suprema corte com vistas a torn-la mais conservadora e avessa a inmeros direitos sociais de homossexuais, das mulheres, de minorias tnicas que estavam se expandindo at ento. E, logicamente, procurou dar uma guinada conservadora na poltica educacional, a qual, sob o governo de Bill Clinton (1993-2001), tinha conhecido uma renovao com a elaborao dos novos Standards7 , com o final da disciplina estudos sociais (e ampliao das aulas de geografia e histria, agora separadas), enfim com uma preocupao em modernizar o sistema escolar norte-americano. Comeando com a legislao No Child Left Behind Act (Nenhuma criana deixada para trs), de 2001, o governo Bush encetou uma estratgia de promover as escolas que 6 A respeito da influncia neoconservadora no governo Bush (2001-8), cf. as anlises de FUKUYAMA, F. O dilema americano. Democracia, poder e o legado do neoconservadorismo. RJ, Rocco, 2006; e MEAD, W. R. Poder, terror, paz e guerra. RJ, Jorge Zahar editor, 2006; 7 No tocante geografia, conforme mostram com detalhes HARDWICK, S. W. e HOLTGRIEVE, D. G. (Geography for Educators, New, Jersey, Prentice Hall, 1996), um novo currculo isto , Standard foi aprovado em 1994 aps alguns anos de discusses que envolveram professores de todo o pas. Esse novo currculo aponta para uma geografia bem menos conservadora, com a incluso de temas como geopoltica, sistemas econmicos, relaes sociedade-natureza (com seus problemas), relaes de gnero, estudos de caso (o local de vivncia dos alunos) etc. 18. Jos William Vesentini 18 apresentem melhores resultados, ou, em outras palavras, que tenham maiores mdias em testes que medem a assimilao dos contedos de matemtica e de ingls por parte dos alunos. Isso representou uma volta para trs, uma revalorizao do ensino conteudista onde os contedos que importam de fato seriam o aprender e a ler e escrever e a contar , com um correlato menosprezo pelas outras funes da escola: socializar, desenvolver atitudes e valores democrticos, cultivar as mltiplas inteligncias, combater todas as formas de preconceito etc. Ao mesmo tempo, essa estratgia educacional do governo Bush significou tambm uma desvalorizao dos contedos e prticas das demais disciplinas escolares: geografia, histria, sociologia, filosofia, artes, educao fsica e, inclusive embora em menor grau , as cincias naturais: biologia, fsica e qumica. Por sinal, no ensino das cincias (no ensino elementar) e da biologia (no ensino mdio), essa onda neoconservadora que se propalou pelos Estados Unidos de 2001 at 2008 tentou reiteradamente enfraquecer o ensino da evoluo e da gentica, isto , do neodarwinismo. As escolas pblicas foram encorajadas a ministrarem o design inteligente ou seja, uma volta pretensamente sofisticada explicao bblica para a origem do universo, da vida e do ser humano , praticamente uma volta Idade Mdia, ao perodo anterior revoluo cientfica iniciada no sculo XVII! Apesar das declaraes ou opinies pouco fundamentadas de alguns educadores, jornalistas e polticos brasileiros, segundo as quais o ensino no conteudista fracassou (o que significa, para um bom entendedor, que devemos reforar o ensino tradicional, mas agora valorizando mais ou quase que somente a matemtica e o portugus), o que fracassou de fato e de forma retumbante foi essa poltica neoconservadora. Ela malogrou tanto na poltica externa, na econmica e mais ainda 19. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 19 na educacional. Na primeira, basta lembrar o atoleiro em que os Estados Unidos se meteram no Iraque e no Afeganisto, a par da enorme perda de popularidade desse pas no mundo e em especial no Oriente Mdio, fato que fez recrudescer o terrorismo. Na poltica econmica, o resultado mais visvel foi a recesso deflagrada a partir de setembro de 2008 com o colapso nos emprstimos imobilirios nos Estados Unidos, que atingiu o setor financeiro global e produziu uma retrao na produo com aumento do desemprego e da inflao, queda vertiginosa do valor do dlar, subida nos preos internacionais dos alimentos e, notadamente, uma incapacidade da poltica conservadora, cuja soluo sempre diminuir os impostos pagos pelos mais ricos, em minimamente diminuir os efeitos dessa crise. E, no que se refere poltica educacional conservadora e conteudista, inmeros educadores, associaes de docentes e institutos de pesquisas de boas universidades norte-americanas demonstraram nos ltimos anos que essa estratgia, inaugurada com o No Child Behind Act, produziu resultados catastrficos para o sistema escolar do pas e, consequentemente, para a formao dos jovens. Os testes como o NAEP, aplicado a cada ano nas escolas norte- americanas para medir o seu progresso e, assim, receber verbas de acordo com o seu desempenho, avaliam basicamente contedos e, em especial, contedos de matemtica e ingls, ignorando os cuidados com o corpo, a sensibilidade, a criatividade, o esprito crtico, a sociabilidade etc. Isso gerou distores. Como constataram vrias pesquisas, a desvalorizao da educao fsica nas escolas, por exemplo, levou a um significativo aumento no ndice de obesidade entre 20. Jos William Vesentini 20 os estudantes norte-americanos, inclusive crianas8 . Como no podia deixar de ocorrer, o fato de as escolas pblicas receberem maiores ou menores verbas de acordo com o desempenho de seus estudantes nesses testes de contedo fez com que elas ou pelo menos uma boa parte delas se voltassem exclusivamente para esse objetivo, tornando-se assim cursos preparatrios, o que as degradou. Alm disso, nessas escolas os estudantes com maiores dificuldades de aprendizagem so deixados de lado, e as minorias tnicas (com as suas culturas especficas) so ignoradas9 . Enfim, os verdadeiros objetivos da escola preparar o aluno para a vida, contribuir para desenvolver suas competncias ou habilidades, ou inteligncias mltiplas, formar cidados no sentido pleno do termo so relegados a um 8 Cf. Trickey, H. No child left out of the dodgeball game? In CNN.com. Capturado em maro de 2008. Convm notar que nos Estados Unidos e tambm na Frana, Alemanha, Japo etc. a disciplina escolar educao fsica no consiste somente em praticar esportes ou ginstica, mas tambm aprender noes de alimentao balanceada e vida saudvel. Esse teste NAEP (National Assessment of Educational Progress) existe nos Estados Unidos desde 1969 e no avalia somente essas duas disciplinas, mas tambm histria, geografia, biologia (ou cincias, no ensino elementar) etc. A nfase no ingls e na matemtica e tambm maiores ou menores verbas para as escolas de acordo com o desempenho de seus alunos nessas duas disciplinas comeou com o governo Bush. 9 Veja-se sobre esses itens depoimentos de inmeros professores e educadores na revista Teacher Magazine, cujo endereo eletrnico www.teachermagazine.org/; e tambm o estudo coordenado por ANEY, W. Evidence on Education under NCLB (and How Florida Boosted NAEP Scores and Reduced the Race Gap). Center for the Study of Testing, Evaluation and Education Policy. Lynch School of Education. Boston College, 2007. A fortiori, o nome correto para essa poltica deveria ser All Child left behind [Todas as crianas deixadas para trs], pois tem um vis massificador e no leva em conta a individualidade de cada educando. 21. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 21 segundo plano. At mesmo os alunos mais talentosos por exemplo, com aptides especiais para a msica, a pintura, a histria e at mesmo para inovaes tecnolgicas no so incentivados e, muito pelo contrrio, so encarados como um problema a ser reprimido nesses cursos preparatrios para os testes10 . Como afirmou, a partir de uma pesquisa em centenas de escolas pblicas norte-americanas, um professor universitrio especialista em psicologia educacional: A presso para que todos obtenham notas mais altas nos testes e a demanda para que todos os alunos exibam alta proficincia em leitura, matemtica e [em parte] cincias est provocando reverberaes em todos os nveis da educao, resultando em alunos estressados na ltima srie do ensino mdio, alunos violentos na 8. srie, alunos com dficit de ateno na 3, e alunos de 4 anos que tiveram suas infncias roubadas. No se pode permitir que essa situao continue. hora de retornarmos s grandes questes do crescimento humano e da aprendizagem: Como podemos ajudar cada criana a alcanar o seu verdadeiro potencial?11 Em sntese, como declarou o educador David Elkind12 , nos dias de hoje existem basicamente dois grandes modelos ou tipos diferentes de escola em confronto: aquela voltada para 10 Cf. CLOUD, J. The Genius Problem, in Time, 27 July 2007, p. 40-46. 11 ARMSTRONG, T. As melhores escolas. Porto Alegre, Artmed, 2008, p.16. 12 In ARMSTRONG, op. cit., apresentao. 22. Jos William Vesentini 22 resultados, ou melhor, para o desempenho de seus alunos nos testes que medem a assimilao de contedos; e a escola voltada para fazer com que os educandos pensem por conta prpria, independentemente dos slogans, das ideias preconcebidas ou estandardizadas. Sem dvida que dentro de cada um desses tipos podem existir nuanas ou algumas diferenas neste ou naquele aspecto: aquela primeira pode ser de inspirao pentecostal ou evanglica, mrmon, to somente mercantil ou meramente tradicionalista; e a segunda pode ser inspirada nas demandas da sociedade nesta poca de revoluo tcnico-cientfica, nas ideias de Piaget, Montessori, Pestalozzi, Gardner ou qualquer outro educador do mesmo calibre. O primeiro tipo de escola conteudista qualquer que seja o contedo a ser memorizado, sejam os nomes de capitais, de unidades do relevo ou de rios, sejam os modos de produo e as formaes scio-econmicas ou scio-espaciais. A segunda, mesmo no eliminando os contedos (algo impossvel, pois a partir deles que se vai refletir, discutir, extrapolar, deduzir etc.), enfatiza mais o desenvolvimento das atitudes, habilidades e competncias. Naquele primeiro tipo de escola, o contedo o objetivo final, isto , a assimilao disto ou daquilo, sejam informaes ou conceitos. No segundo tipo, o contedo um instrumento para atingir os verdadeiros objetivos educacionais. Na escola conteudista, o que se almeja um bom desempenho em determinados testes ou exames. O educando, aqui, visto como cabea, memria, assimilao de contedos. Naquele segundo tipo de escola, o objetivo outro: formar cidados plenos, pessoas que desenvolvam as suas potencialidades, que aprendam a (con)viver numa sociedade democrtica. Isso significa que se trabalha o ser humano na sua plenitude no apenas a inteligncia vista de forma tradicional, como assimilao de contedos escolares, e sim 23. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 23 como sociabilidade, equilbrio emocional, ausncia de preconceitos, criatividade, raciocnio lgico, esprito crtico, sensibilidade esttica e artstica etc. ou seja, as mltiplas inteligncias. O primeiro tipo de escola, mais tradicional, valoriza to somente e mesmo assim de forma muito parcial dois tipos de inteligncia, a lgico-matemtica e a lingustica, negligenciando completamente as demais inteligncias do ser humano: a espacial, a musical, a fsico-cinestsica, a interpessoal, a intrapessoal, a naturalista, a espiritual, a existencial e outras13 . Esses dois tipos ou modelos de escola esto em confronto hoje nos Estados Unidos, principalmente, e tambm em vrios outros pases, inclusive no Brasil, mesmo que por aqui, como sempre, estejamos vrios anos atrasados nas discusses e principalmente nas prticas mais avanadas. Mas, alm dessa diferena digamos assim ideolgica (na falta de um termo melhor), na qual a escola conteudista defendida pelos (neo)conservadores ou pela direita e a escola das competncias, habilidades, atitudes etc., pelos liberais ou pela 13 Cf. GARDENER, Howard. Inteligncia, um conceito reformulado, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 56-85. O autor, tido como criador da ideia de mltiplas inteligncias, no plural, inicialmente detectou sete delas, sendo que posteriormente incluiu mais trs, deixando ainda em aberto a possibilidade de se descobrirem outras. Tambm proferiu srias crticas escola tradicional que s valoriza aqueles dois tipos clssicos de inteligncias, que antes eram confundidos e tidos como uma nica inteligncia no singular. Assinalou ainda que todas as inteligncias so interdependentes, uma ajudando no desenvolvimento de outras, e que no nada aconselhvel valorizar principalmente a matemtica e o idioma ptrio. 24. Jos William Vesentini 24 esquerda14 , existe ainda uma questo mercantil, uma questo do dinheiro envolvido e de quem vai se apossar dele. A recente expanso dessas ideias educativas tradicionais no Brasil no se deve apenas influncia dos Estados Unidos do governo Bush isto , do neoconservadorismo , mas tambm e principalmente a interesses materiais. Em primeiro lugar, trata-se da defesa da indstria dos vestibulares, essa atividade que gera vultosos lucros e cargos importantes e bem remunerados no Brasil e que inclui no apenas os cursinhos pr-vestibulares como tambm as fundaes que cuidam dos vestibulares. Essa indstria se sente ameaada pelos novos critrios que comeam a ser implementados em algumas boas universidades para selecionar seus alunos, os quais no valorizam to somente o contedo assimilado e sim outros 14 bom deixar claro que o significado de direita e esquerda varia muito de acordo com o tempo e o espao, com o contexto afinal. Por exemplo: ser liberal nos Estados Unidos, principalmente, e tambm em partes da Europa Ocidental, ser de esquerda, embora aqui na Amrica Latina, devido enorme influncia de um marxismo vulgar, isso seja visto como direitista. E ser estatizante e centralista, repudiando completamente o mercado, aqui normalmente tido como atributo da esquerda, embora nos Estados Unidos esta fique horrorizada com tais ideias autoritrias. Mas no final das contas, no estamos aqui preocupados com o significado desses problemticos rtulos polticos e, sim, com a oposio entre esses dois tipos de escolas. O importante que os defensores da escola conteudista so conservadores no sentido de valorizarem o aprendizado passivo, sem questionarem de onde vieram tais ou quais conceitos ou informaes que devem ser assimilados e reproduzidos nos exames. Os defensores da escola de competncias, atitudes e habilidades, por sua vez, so progressistas no sentido de combaterem preconceitos (inclusive de orientao sexual, algo abominado pelos conservadores), de reconhecerem e at estimulares as diferenas (mas no as desigualdades) e o direito de ser diferente. 25. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 25 fatores ligados justia social ou a novos tipos de avaliao: cotas para estudantes de escolas pblicas, para descendentes de africanos e/ou de indgenas, currculo escolar acompanhado por entrevistas com os candidatos, o desempenho dos estudantes nos exames do Enem etc. Em segundo lugar algo que tem um peso muito maior , trata-se da defesa e da expanso daquelas referidas empresas educativas que vendem franquias, aquelas indstrias que crescem no Brasil h pelo menos uns 20 anos, abrindo novas escolas ou vendendo seus nomes e apostilas para outras. Sabemos que muitos polticos importantes (deputados, senadores e at, eventualmente, ministros ou secretrios estaduais, alm de outros) so donos, scios ou representantes dessas empresas (ou eleitos com o seu apoio), as quais, alm disso, contratam jornalistas para promoverem a sua causa na mdia. Essas empresas tm uma filosofia educacional (se que podemos usar esse conceito) claramente conteudista: sua propaganda basicamente enaltece os alunos que se saram bem neste ou naquele teste, principalmente neste ou naquele exame vestibular para as melhores universidades. Esse fato leva muitos pais de alunos a quererem que a escola de seus filhos tambm tenha essa mesma orientao, pois no final das contas desejam que estes ingressem num curso superior, de preferncia de boa reputao. Essa propaganda, via de regra, falsa e enganosa, mas o que importa que funciona, ou seja, atrai matrculas. Inmeras pesquisas em universidades de renome no pas (USP, Unicamp, UNB, UFRJ e vrias outras), feitas por diretrios acadmicos de alunos, por associaes de professores e at por alguns institutos de pesquisa, mostraram cabalmente que no verdade que essas empresas coloquem proporcionalmente mais 26. Jos William Vesentini 26 alunos do que outras escolas com orientao diferente, inclusive algumas boas escolas pblicas. Na verdade, essas empresas Objetivo, COC, Positivo, Pitgoras etc. , em termos percentuais colocam menos alunos nesses vestibulares importantes, nos quais h maior procura, do que algumas boas escolas pblicas e menos ainda do que as boas escolas particulares que seguem outras filosofias (isto , escolas montessorianas, piagetianas, inspiradas total ou parcialmente nas ideias de Steiner, de Wygotsky, de Perrenoud etc.). Ipso facto, inclusive raro encontrar algum ex-aluno dessas empresas em cursos disputados nas melhores universidades do pas. Isso mais grave ainda quando recordamos que cada uma dessas redes de escolas possui no total dezenas ou at centenas de milhares de alunos que a cada ano finalizam o ensino mdio. Ou seja, elas possuem uma quantidade muitssimo maior de alunos tentando ingressar num curso superior do que algumas escolas de menor porte, que, contudo, aprovam mais alunos nos vestibulares com maior concorrncia. Como j testemunhamos inmeras vezes pelo depoimento de estudantes universitrios que se destacaram no vestibular da USP, onde lecionamos , essas empresas via de regra precisam pagar para algum vestibulando, que passou em primeiro lugar neste ou naquele curso famoso e bastante procurado, para que ele declare que foi aluno de alguma escola franqueada. Normalmente, ele recebe algum tipo de gratificao um carro novo ou algo semelhante para que o seu nome saia nos jornais e/ou em outdoors como um ex-aluno desta ou daquela empresa que vende franquias (uma delas em especial, com sede em So Paulo, utiliza constantemente esse tipo de estratgia promocional). Mas as notcias sobre esse fato pouco saem na mdia, embora com frequncia possam ser encontradas em 27. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 27 jornais universitrios, em boletins de algum diretrio acadmico que fez uma enquete ente os calouros para averiguar onde eles estudaram etc. Em contrapartida, a propaganda dessas empresas, que mentem desavergonhadamente dizendo que foram as que mais aprovaram neste ou naquele vestibular da USP, da UFRJ ou da Unicamp, saem todos os anos em vrias pginas de jornais e revistas, nos outdoors que poluem as vias pblicas, na rdio, na televiso etc. Joseph Goebbels, ministro nazista para a propaganda, j dizia nos anos 1930 que uma mentira repetida constantemente torna-se verdade. Se analisarmos o desempenho das escolas no Enem exame nacional de ensino mdio elaborado e aplicado desde 1998 pelo MEC vamos constatar que extremamente difcil encontrar alguma dessas empresas que trabalham com apostilas e vendem franquias na lista das melhores escolas15 . Esse fracasso se torna 15 No ranking das 20 melhores escolas brasileiras dos exames do Enem de 2006, 2007 e 2008 isto , com os alunos que tiraram as maiores mdias nesses exames , no encontramos nenhuma dessas redes que vendem franquias. Foram em mdia 15 escolas particulares e 5 pblicas (geralmente escolas de aplicao de universidades ou escolas federais), sendo que todas elas usam bons livros didticos, tm atividades em perodo integral e possuem metodologias diferenciadas com a aplicao das ideias de bons educadores. Quando olhamos a lista por municpio, notamos abismados que essas redes Objetivo, COC etc. , que todos os anos anunciam com estardalhao que aprovaram a maioria dos alunos nos vestibulares mais concorridos, no constam sequer da lista das 50 melhores escolas de So Paulo! Essa lista varia pouco de um ano para outro, com praticamente as mesmas escolas ocupando as melhores posies no ranking, havendo somente variaes na posio de cada uma. Pode-se consultar a lista de escolas de todo o Brasil, ou por municpio, no endereo eletrnico do Inep: http://www.enem.inep.gov.br/ 28. Jos William Vesentini 28 mais acentuado quando lembramos que essas empresas, em geral, lidam com alunos de classe mdia alta, que via de regra no trabalham (portanto, teoricamente, tm mais tempo para estudar), possuem computadores pessoais em casa, tm mais recursos para viajar, comprar livros, ir ao cinema, ao teatro etc., elementos que sabidamente reforam o desempenho escolar. E o Enem um exame avaliativo do nvel dos alunos do ensino mdio de qualidade indiscutivelmente superior aos vestibulares, inclusive os melhores (ou menos ruins) deles, pois constitudo por questes que no exigem apenas memorizao de contedos ou de frmulas e, sim, raciocnio, extrapolao e aplicao de conceitos, deduo ou induo etc. (por exemplo: questes com textos, grficos e mapas para serem interpretados, sendo que a resposta j se encontra neles prprios, bastando usar determinadas competncias ou habilidades para encontr-las, algo aparentemente simples mas que engendra um baixssimo ndice de acertos, principalmente por parte de alunos de escolas tradicionais e conteudistas). O mais importante que no to fcil inventar uma propaganda enganosa quanto ao resultado no Enem tal como se faz com os vestibulares, pois o prprio MEC, atravs do INEP, elabora e coloca na internet a lista das escolas cujos alunos tiveram os melhores (e os piores) desempenhos16 . Alm disso, ao contrrio da imensa maioria dos vestibulares, o aluno que se inscreve no Enem tem que declarar antecipadamente em que escola estudou ou estuda, e isso ser reproduzido nos resultados do Enem, atrapalhando os planos das empresas que caam os primeiros colocados para convenc-los a deixar sair seus nomes como ex- alunos delas. 16 Vide o site do Inep citado na nota de rodap anterior. 29. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 29 Apesar disso, notamos que at em escolas pblicas essa orientao mercantilista e pragmtica est avanando. Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, de 13/04/2008 (Caderno A, p. 30), por exemplo, mostrou que pelo menos 150 municpios paulistas contratam sistemas apostilados privados para as escolas pblicas de suas redes, o que representa 23% das 645 cidades do Estado. Como diz a reportagem, essas cidades gastam juntas, no mnimo, R$ 100 milhes por ano para receberem material didtico e uma assessoria, sendo que na verdade essas escolas recebem livros didticos do governo federal por intermdio do MEC (e eventualmente recebem livros didticos da Secretaria Estadual da Educao), de muito melhor qualidade que as apostilas. Esses compndios, ao invs de serem utilizados, muitas vezes ficam amontoados e abandonados em alguma sala ou so jogados fora. Qual a real motivao para isso? Sem dvida que no dispor de um material didtico de qualidade superior. Os livros distribudos pelo MEC ou por alguns governos estaduais sempre passam antes por uma avaliao realizada por equipes de professores universitrios reconhecidamente competentes em suas reas. As apostilas, por sua vez, no passam por nenhuma avaliao externa de qualidade. Elas, em geral, possuem erros conceituais grotescos, alm de copiarem trechos inteiros de alguns livros didticos sem citar a fonte, adaptando ou resumindo os contedos e principalmente as atividades para tentarem descaracterizar o plgio e realizarem uma adequao ao formato das apostilas e orientao pedaggica conteudista, o que gera inmeros equvocos nos conceitos. Por que esse desperdcio de recursos financeiros comprar material didtico quando o governo j o distribui gratuitamente para as escolas pblicas? No vamos afirmar taxativamente nada para no incorrer em injustias (ou abrir brecha para algum processo 30. Jos William Vesentini 30 judicial), mas ser que no existe alguma forma de desvio de recurso pblico, de algum levando uma percentagem desse valor por baixo do pano, isto , de forma no declarada legalmente? apenas uma interrogao... Nosso objetivo neste livro, enfim, mostrar o novo papel da escola e do ensino no sculo XXI, na poca da terceira revoluo industrial e da globalizao. Procuraremos evidenciar a renovada importncia que, como veremos, cresce com a globalizao e com a problemtica ambiental de um determinado tipo de ensino da geografia nas escolas elementares e mdias. Da geografia sim, embora sem nunca menosprezar as demais disciplinas escolares nem mesmo a matemtica e a lngua portuguesa, que inegavelmente so fundamentais para a formao plena do aluno e, no final das contas, esto sendo instrumentalizadas por essa concepo mercantil e neoconservadora de educao. Sem dvida que os nossos alunos devem aprender a ler e a escrever corretamente, e a realizar com competncia as operaes matemticas que so imprescindveis na vida cotidiana de todos. Ningum questiona esse fato. S que a escola no se resume a isso. A escola uma instituio na qual os jovens devem aprender a serem cidados plenos, isto , cidados ativos e no meramente passivos, devendo ainda aprender a cuidar do seu corpo e do meio ambiente, a conhecer o mundo em que vivemos em todas as suas escalas geogrficas, a dominar pelo menos os rudimentos da metodologia cientfica, a discernir o que confivel no amontoado de informaes falsas ou enganosas que recebemos a cada dia, alm de desenvolver e aprimorar as suas inteligncias mltiplas, as suas habilidades, competncias e atitudes democrticas de respeito aos outros, de ausncia de preconceitos, de aprender a conviver, de aprender a trabalhar em equipe e a liderar de forma positiva etc. 31. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 31 A escola no ou no deve ser um local onde somente se aprende contedos, principalmente aqueles do idioma ptrio (seja o ingls ou o portugus) e de matemtica. Isso tambm uma de suas funes, mas no a mais importante. Como mostraremos nos captulos a seguir, a escola do sculo XXI deve ser integral e voltada para o ser humano em sua plenitude, isto , no para se sair bem neste ou naquele exame ou teste e sim para se sair bem na vida social, na condio de ser humano completo. Isso por exigncias ou demandas tanto da sociedade democrtica, da globalizao, das mudanas demogrficas (com o progressivo envelhecimento da populao) e da economia (com o avanar da revoluo tcnico-cientfica e das novas necessidades do mercado de trabalho). Na verdade, a escola conteudista de inspirao neoconservadora, que se apega a contedos exigidos por determinados exames ou a vestibulares, uma reao fundamentalista e talvez momentnea contra esse avano da escola integral e voltada para desenvolver o ser humano em sua plenitude, em suas mltiplas inteligncias e competncias. Uma reao sem a menor dvida imbuda de interesses monetrios, que perduram por muito tempo e colocam os interesses de alguns acima dos da sociedade. Com esse intuito, alguns jornalistas so contratados para constantemente promoverem a sua causa na mdia, alm da propaganda que a cada semana ocupa pginas inteiras em revistas e jornais de grande tiragem. Por esse motivo ela conta com o apoio constante e explcito de uma boa parcela da mdia no pas. Uma reao que deve ser combatida por todos que almejam um Brasil melhor, mais justo e democrtico, mais moderno enfim. 32. Jos William Vesentini 32 33. 33 A escola para o sculo XXI Sabemos que o sistema escolar moderno nasceu com a revoluo industrial e tambm com a formao e a expanso dos Estados nacionais. O primeiro sistema escolar de fato, nascido com a sociedade moderna, iniciou-se no final do sculo XVIII e se popularizou no sculo seguinte. A escola do sculo XIX era voltada, basicamente, para inculcar a ideologia nacionalista e preparar os jovens para a economia de mercado em expanso. A escola do sculo XX, por sua vez, foi o sistema escolar da segunda revoluo industrial. De uma forma geral, ela continuou com aquelas funes, mas acrescentou outras, principalmente a de proporcionar um mnimo de formao tcnica ou profissionalizante, em especial no ensino mdio. Tanto a escola do sculo XIX como a do sculo XX eram conteudistas, valorizando mais os conceitos e as informaes do que as competncias, habilidades ou atitudes dos alunos. s vezes, como no caso das escolas tcnicas ou fordistas do sculo XX, elas valorizavam o aprendizado de macetes de determinadas profisses. A escola do sculo XXI, como tentaremos demonstrar, ser a primeira salvo raras excees de escolas isoladas (por exemplo, inspiradas nas ideias de Frbel ou Pestalozzi no sculo XIX, de Freinet, Montessori, Piaget ou Vygotsk no sculo XX etc.) que no 34. Jos William Vesentini 34 enfatizar basicamente o contedo e, sim, a formao do ser humano em sua plenitude. Nas linhas a seguir, mostraremos de forma sucinta como cada poca enfatizou tal ou qual aspecto na escola. Daremos nfase ao mercado de trabalho que, sem dvida sempre foi, desde pelo menos a revoluo industrial iniciada em meados do sculo XVIII (e que marcou a consolidao do capitalismo como sistema hegemnico e, na verdade, criou os primeiros sistemas escolares pblicos em todo o mundo), o grande condicionante da atividade educativa: o grande condicionante sob a tica do Estado e, consequentemente, das polticas educacionais. Mas isso no quer dizer que no existiram outras influncias: culturais, polticas e ideolgicas, no sentido de projetos pedaggicos alternativos; influncias que tambm foram sentidas, em maior ou menor proporo dependendo do lugar e poca, que sempre fizeram o sistema escolar sofrer inflexes neste ou naquele sentido. A escola do sculo XIX Na verdade, o sistema escolar pblico e obrigatrio para as massas populares foi em grande parte fruto da consolidao ou construo dos Estados nacionais no sculo XIX e tambm da primeira revoluo industrial, por sinal dois processos coevos e inseparveis. A revoluo industrial se iniciou na Inglaterra em meados do sculo XVIII e prosseguiu tendo se espalhado para outros Estados europeus, alm de para o Japo, a Rssia e os Estados Unidos at o final do sculo XIX. Ela foi marcada pela hegemonia britnica, pelo carvo como principal fonte de energia e pela grande concentrao da atividade industrial em termos do espao mundial. As principais indstrias eram as 35. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 35 txteis e as de bens de consumo no durveis. Ela criou a diviso internacional do trabalho entre as naes exportadoras de bens manufaturados e as outras, a maioria, exportadoras de matrias-primas com preos em geral sensivelmente inferiores aos primeiros. A indstria moderna, nascida com a primeira revoluo industrial, contribuiu para acolher as massas trabalhadoras que migravam do campo para as cidades, e tambm para modernizar o campo, expulsando pessoas. Mas essa ressocializao das pessoas, que se tornavam moradores urbanos, implicou em novos valores (de tempo e espao, de felicidade, de futuro desejvel etc.) e tambm na adoo de determinados hbitos (de manipular dinheiro no dia a dia, por exemplo). Esses valores e hbitos necessitaram de uma nova instituio para serem inculcados nas novas geraes: o sistema escolar, formado tanto pelas redes de escolas pblicas quanto pelas particulares, mas que passaram a ser submetidas a um controle estatal. A escola implantada no final do sculo XVIII e principalmente no sculo XIX, inicialmente nos pases europeus e em alguns outros (Estados Unidos e Japo) que tambm acompanharam a industrializao clssica daquele momento, tambm era uma instituio voltada para enaltecer ou reforar o patriotismo. Isso porque a ideia de mercado nacional ganhava fora e impulsionava as mudanas poltico-territoriais que criaram ou consolidaram os Estados-naes contemporneos. Como mencionamos, ela tambm era direcionada para inculcar um novo sistema de valores e de hbitos mais adequados sociedade mercantil, produtora de mercadorias. Tempo como valor de troca (se gasta e no mais se vive), espao como lugares geometrizados e fixados por uma diviso do trabalho, um mnimo de matemtica (afinal se mexia cada vez mais com dinheiro, com contas), um idioma ptrio ou oficial (os outros 36. Jos William Vesentini 36 viravam dialetos) a ser aprendido, uma histria e uma geografia chauvinistas: esses foram os alicerces bsicos da escola da primeira revoluo industrial. O fundamental no era fornecer uma preparao tcnica ou profissionalizante (como ocorreria mais tarde, no sculo XX) e nem mesmo distribuir diplomas. O mais importante era alfabetizar as massas, algo que inclua no s aprender a ler e escrever o bsico no idioma ptrio, mas tambm ter um mnimo de habilidade em matemtica e determinadas informaes em cincias, histria e geografia. Muito diferente da escola ou melhor, das pouqussimas escolas, que no formavam uma rede e muito menos um sistema predominante no Ocidente da Idade Mdia at o final do sculo XVIII, que era uma instituio para poucos (somente para filhos da nobreza, ou de parte dela), particular (da Igreja) e voltada primordialmente para ensinar o latim e a teologia. O final do sculo XVIII e, principalmente, o sculo XIX, dessa forma, criaram o sistema escolar tal como conhecemos nos dias de hoje. Isto , engendraram pouco a pouco uma obrigatoriedade de se colocar todas as crianas nas escolas, no ensino fundamental. Construiu-se um currculo mais ou menos padronizado, elaborado e fiscalizado pelo Estado. Estabeleceu- se os graus de ensino (elementar, mdio e universitrio), que formam uma pirmide, os certificados ou diplomas (que devem ser reconhecidos pelo poder pblico), e assim por diante. Um sistema ligado ao Estado nacional que tambm era construdo ou se consolidava nesse perodo. Ao mesmo tempo, um sistema de ensino adequado s novas demandas do mercado de trabalho com a urbanizao, a industrializao e a proletarizao da fora de trabalho. 37. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 37 A escola do sculo XX A segunda revoluo industrial mudou um pouco esse quadro. Ela foi iniciada no final do sculo XIX, embora seja de fato tpica do sculo XX. Foi marcada por certo espalhamento ou expanso espacial (nos pases ditos desenvolvidos e tambm em alguns da periferia) da atividade industrial e pela hegemonia dos Estados Unidos. A principal fonte de energia foi o petrleo e as indstrias de vanguarda nesse perodo eram as automobilsticas e outras normalmente ligadas a ela: petroqumicas, siderrgicas, metalrgicas etc. Dois traos marcantes dessa segunda revoluo industrial foram o taylorismo e o fordismo. O taylorismo, ou administrao cientfica, de forma simplificada, consistiu numa tcnica de gerenciamento que controlava bem mais os trabalhadores ou funcionrios com vistas a ampliar a produtividade do trabalho. Dividir para reinar foi o seu lema, e com isso produziu um controle rgido sobre o tempo necessrio a uma dada tarefa, automatizando os gestos a partir do exemplo de operrios modelos. Quanto ao fordismo, ele pode ser definido fundamentalmente pelo lema Produo em massa e consumo em massa. Ou seja, identificado com a linha de montagem, com a produo em grande escala e estandardizada, com a concentrao tcnico-administrativa e o gigantismo (maior melhor). Isso tudo leva a um enorme desperdcio no uso de recursos naturais. Primeiro se fabrica e depois se vende e para isso existia a publicidade, cuja funo era criar necessidades , e, no processo de fabricao, o importante no a qualidade e, sim, a quantidade, mesmo que haja uma enormidade de refugos, de mercadorias que sero inutilizadas na medida em que foram mal produzidas. Tanto o taylorismo quanto o fordismo aprofundaram a diviso do 38. Jos William Vesentini 38 trabalho nas empresas (e tambm entre elas, notadamente o fordismo), exigindo, assim, funcionrios mais especializados, isto , que s faziam um tipo especfico de servio. Isso evidentemente gerou impactos na escola. O sistema escolar da segunda revoluo industrial significou, alm do prosseguimento da alfabetizao das massas (o ensino pblico e obrigatrio iniciado no final do sculo XVIII), uma extenso desse ensino at o nvel mdio e principalmente uma criao e expanso das escolas tcnicas ou profissionalizantes. Foi uma poca de valorizao dos diplomas, da especializao (no confundir com qualificao) da mo de obra e dos cursos tcnicos ou fordistas, isto , que ensinavam procedimentos ou macetes de uma dada profisso. A fora de trabalho tpica da segunda revoluo industrial foi o operrio ou funcionrio especializado, diferentemente do operrio sem grande especializao do sculo XIX. S que ocorreu uma diminuio no tempo de trabalho. Na primeira revoluo industrial, a mdia diria de trabalho era de 12, 14 ou at 16 horas. Em contrapartida, no transcorrer do sculo XX, graas ao aumento da produtividade do trabalho, em grande parte possibilitada pelo taylorismo e pelo fordismo (alm das lutas trabalhistas, evidentemente, que afinal das contas concretizaram essa possibilidade aberta pela evoluo tcnica), essa mdia atingiu o ponto ideal de 8 horas. Na escola do sculo XX, o fundamental era a aplicabilidade do saber, a razo pragmtica. Nas escolas normais isto , as que no eram fordistas ou profissionalizantes , os alunos e principalmente os seus pais preocupavam-se essencialmente com o futuro vestibular, isto , com o ingresso na universidade (qualquer que fosse a forma desse vestibular: exames que cobram contedos assimilados ou currculo escolar do 39. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 39 candidato). Em outras palavras, eles se preocupavam de fato com o futuro mercado de trabalho, pois ingressar numa boa faculdade era valorizado de forma direta pelo maior ou menor rendimento que esse tipo de diploma proporcionaria1 . At mesmo no ensino fundamental e mdio normal ou no profissionalizante, a preocupao sempre foi e continua sendo, pelo menos no Brasil, com a utilidade, em termos mercantis, do conhecimento, sendo secundria a sua importncia para desenvolver as potencialidades do educando. A ideia predominante na escola fordista, na escola que predominou dos anos 1920 at pelo menos a dcada de 70, era a de que se aprendia a trabalhar, ou se aprendia uma profisso na escola (da os cursos profissionalizantes terem sido enaltecidos nessa poca), ou ento a escola tinha algum defeito. Infelizmente, at hoje alguns inclusive jornalistas e pretensos educadores ainda cultivam esse imaginrio, principalmente em pases perifricos como o nosso. 1 Em grande parte, isso at hoje assim, principalmente no Brasil. Quando se examina a relao candidato/vaga nos vestibulares, se constata que h uma correlao entre as profisses que em geral so mais valorizadas em termos de rendimentos e uma maior procura por parte dos candidatos. Isso fica bastante evidente com as variaes temporais, isto , profisses pouco valorizadas que se tornaram bem remuneradas com o transcorrer do tempo, das mudanas no mercado de trabalho, cuja procura por parte dos vestibulandos aumenta proporcionalmente. Cursos de publicidade ou mesmo jornalismo, por exemplo, nos anos 1970 quase no tinham procura nos vestibulares e, hoje, esto entre os mais disputados. Ocorre tambm o inverso: nos anos 1970 o curso de geologia na USP, por exemplo, era bastante procurado nos vestibulares (mais de 40 candidatos por vaga) e mais recentemente, em 2007-8, em face de uma crise no mercado de trabalho, a procura diminuiu sensivelmente (menos de 8 candidatos por vaga). 40. Jos William Vesentini 40 A escola da terceira revoluo industrial Vivemos, atualmente, a expanso da terceira revoluo industrial, tambm conhecida como produo ps-fordista ou revoluo tcnico-cientfica. Ela j marcante nos Estados Unidos, no Japo, em pases da Europa Ocidental e em vrios outros, embora ainda conviva com o final (e a permanncia de inmeros traos) da segunda revoluo industrial. Alguns elementos so definidores desta nova revoluo industrial e tecnolgica. Primeiro, o final gradativo da hegemonia norte- americana e da era do petrleo. Segundo, mais importante, o advento e a constante expanso de novos setores industriais de ponta ou de vanguarda tais como a informtica e as telecomunicaes, a biotecnologia, a robtica, a microeletrnica etc. , que substituem as indstrias petroqumicas, siderrgicas e automobilsticas como as que definem o ritmo de desenvolvimento da sociedade moderna. O declnio da hegemonia dos Estados Unidos j uma realidade, embora contestada por alguns. Por um lado, h o avano da China, principalmente, como tambm do Japo e dos tigres asiticos. Por outro lado, existe a consolidao e a expanso da Unio Europeia, que se constitui hoje na nova maior economia (e mercado) do globo. Isso sem esquecer a (ainda frgil) recuperao da Rssia, ou mesmo da progressiva e segura ascenso da ndia. lgico que os Estados Unidos, nesta primeira dcada do sculo, ainda prosseguem como a grande potncia poltico-militar e uma das grandes potncias econmicas do globo. Na verdade, ainda a maior economia nacional do planeta, embora em vias de ser ultrapassada pelo rpido crescimento chins. Mas no mais a grande potncia mundial, ou a superpotncia solitria, como afirmou Samuel Huntington nos anos 1990, pois aos poucos vai se esboando 41. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 41 na ordem mundial uma nova multipolaridade, mesmo que ela tenha sido aparentemente obnubilada pela fracassada poltica unilateral do governo Bush. Novas indstrias, no sentido amplo do termo (pois a indstria de transformao cede a cada dia seu papel motor para os servios modernos: a produo de softwares para computadores torna-se mais importante que a fabricao de hardwares; a pesquisa biotecnolgica representa j um valor maior que a produo agrcola; o engendramento de designs, de ideias, de procedimentos etc., ganha um crescente espao monetrio em consonncia com uma desvalorizao da fabricao material de objetos) j constituem os setores de vanguarda nos dias atuais. A informtica e a robtica, a biotecnologia (impulsionada em especial pela engenharia gentica), a microeletrnica, a qumica fina, as telecomunicaes e as indstrias de novos materiais: esses so setores que dependem muito mais da cincia e da tecnologia e as utilizam muito mais quando comparados com aqueles outros setores ou indstrias (txteis, automobilsticos etc.), que foram de vanguarda ou tpicos da primeira ou da segunda revoluo industrial. Nestes novos setores de ponta, o fundamental so as ideias, as pesquisas, o trabalho cerebral e criativo, ficando a mo de obra barata e inclusive a especializada em segundo plano. Estes so setores que revolucionam mais uma vez toda a sociedade: eles no consistem somente na fabricao e venda de computadores, robs, bugigangas eletrnicas (desde o cd-player ao marca- passos miniaturizado), organismos produzidos em laboratrios ou novos remdios oriundos da manipulao dos genes, mas modificam radicalmente os valores e os comportamentos bsicos da sociedade moderna. 42. Jos William Vesentini 42 A robotizao, que j avanou muito, ir se expandir ainda mais nos prximos anos e dcadas, continuando a revolucionar o mercado de trabalho, eliminando em grande parte (em alguns lugares totalmente) a necessidade da fora de trabalho barata e desqualificada. Ademais, ela possibilita uma sensvel reduo na jornada de trabalho para a mo de obra restante, que, em grande parte, deve ser altamente qualificada. Mas falamos em possibilitar e no em determinar ou condicionar. A concretizao dessa reduo, embora possvel pela tecnologia e fundamental para combater o desemprego, vai depender basicamente das lutas sociais e das polticas que elas gerarem e no apenas da robotizao ou do progresso tcnico. As indstrias de novos materiais junto com a biotecnologia reduzem de vez o peso ou importncia do espao fsico (inclusive solo agriculturvel) e das matrias-primas em geral, tanto de origem agrcola como mineral (inclusive petrleo)2 , possibilitando que um pequeno pas quase sem solos ou minrios possa se tornar o maior produtor e exportador mundial de alimentos ou de insumos industriais, ou ainda que a cidade no precise mais do campo. Os computadores, juntamente com as fibras ticas e as telecomunicaes em 2 Devemos entender esse fato como uma tendncia e no como algo inexorvel. Sem dvida que certas matrias-primas podem at se valorizar bastante (basta ver o petrleo ou at mesmo os minrios em geral em 2007-8, ou os alimentos em 2008), mas isso se deve a fatores circunstanciais. Tais fatores foram o peso e a unio de um cartel, no caso do petrleo, ajudado pela catastrfica guerra no Iraque, alm do acelerado e atpico crescimento da ndia e principalmente da China, que de repente ampliaram enormemente a demanda por energia, minrios, alimentos etc. Mas, com a crise deflagrada a partir de setembro de 2008, novamente o preo das commodities em geral, inclusive petrleo, desabaram no mercado internacional. 43. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 43 geral, esto transformando profundamente os escritrios, os bancos, as residncias e os prprios meios de comunicaes, que se tornam cada vez mais segmentados e interativos. No lugar de uma grande rede de TV ou de um jornal nacional de imensa tiragem, por exemplo, a tendncia agora a formao de centenas ou milhares de canais por assinatura ou por segmentos sociais, milhares de jornais ou revistas locais ou voltados para um pblico especfico, que inclusive pode contribuir ativamente para a sua linha editorial. A segunda revoluo industrial concentrou capitais e procedimentos, criou gigantescas organizaes, padronizou, massificou enfim. J a revoluo tcnico-cientfica comea a descentralizar, a desmassificar, a fragmentar, a dar mais autonomia aos funcionrios e s empresas coligadas, antigas filiais. No lugar do fordismo e da linha de montagem, temos agora, de forma crescente, a produo flexvel e o just-in-time. No lugar da centralizao, a terceirizao e a descentralizao. No lugar da padronizao e do consumo em massa estandardizado, temos o crescimento da personalizao, da produo la carte. No lugar do desperdcio de recursos e matrias-primas, temos agora uma preocupao com o controle de qualidade e com a fabricao somente do que for necessrio3 . 3 ampla a bibliografia que aborda, sob diversos ngulos, a terceira revoluo industrial e seus impactos sociais. Podemos mencionar, como obras acessveis, os livros de KENNEDY, P. Preparando para o sculo XXI, Rio de Janeiro, Campus, 1993; THUROW, L. O futuro do capitalismo, Rio de Janeiro, Rocco, 1996; LUTTWAK, E. Turbocapitalismo. So Paulo, Nova Alexandria, 2001; CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999; e SCHAFF, A. A sociedade informtica, Editora da UNESP, So Paulo, 1991. 44. Jos William Vesentini 44 O que tudo isso tem a ver com a escola? Esse o contexto no qual ela se insere e que produz demandas ou necessidades que ela procura atender. Sem a menor dvida que, paralela e complementarmente a essas mudanas econmicas, sociais, demogrficas e culturais, existem mudanas ou novas experincias no sistema escolar. A escola do sculo XXI isto , a escola adequada revoluo tcnico-cientfica, que convive com a globalizao, com uma poca de migraes internacionais intensas, que formam sociedades multitnicas e multiculturais, com o envelhecimento da populao, com conflitos civilizacionais etc. , ou deve, ser bastante diferente da escola do sculo XX, a escola da poca do fordismo e da segunda revoluo industrial. Vejamos quais so os principais traos do sistema escolar adequado ao novo sculo. Novas exigncias do mercado de trabalho A escola, e consequentemente o ensino da geografia, passa por sensveis transformaes em nossos dias, em especial nas economias mais avanadas. Expande-se aos poucos a ideia de que o importante aprender a aprender e no apenas receber um diploma e nem mesmo ter uma formao tcnica. o incio do fim das escolas profissionalizantes, tpicas da era do fordismo. igualmente o declnio relativo da especializao (no sentido da pessoa ou trabalhador se especializar ou somente saber um aspecto do real, um tipo especfico de servio) e uma maior valorizao da qualificao (capacidade de pensar por conta prpria, de se reciclar, de criar coisas novas e at mesmo mudar o tipo de servio). Falamos no incio do fim e em declnio relativo porque evidente que uma coisa nunca substitui completamente a outra, mas apenas ganha maior relevo. Na verdade, normalmente elas coexistem por um 45. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 45 longo tempo que pode perdurar por mais de um sculo , embora uma em declnio e outra em ascenso. A especializao, principalmente nas atividades que exigem ps- graduao (e tambm em outras de nvel mdio do tipo controle de qualidade de alimentos, tcnicos em eletricidade ou telefonia, garons e atendentes de hotel etc.), sempre vai existir. Mas cada vez mais ela vai incluir uma abertura para o global, para se entender o todo da atividade (e no somente uma parte), alm da flexibilidade no sentido de se ajustar a constantes situaes novas que surgem constantemente, hoje muito mais que no passado. Cada vez mais essa especializao, mesmo as de nvel mdio apenas, deve ser complementada por uma reciclagem ou atualizao constante, ou seja, ajustes ou adaptaes a novas tecnologias, a novas demandas, a novos valores, a novas tcnicas no sentido do savoir-faire. Para evitar algum mal-entendido, cabe um esclarecimento. Ao realarmos as mudanas no mercado de trabalho e as suas influncias no ensino, no estamos apregoando um juzo de valor segundo o qual o sistema escolar deve caminhar e de fato nem sempre caminha atrelado a essa determinao. Porm, por mais que se valorize a importncia da escola formal para o desenvolvimento da cidadania e das potencialidades do educando algo sobre o qual nunca demais insistir e que, talvez, hoje seja mais evidente do que em qualquer outra poca , na prtica sempre h uma indissocivel ligao com a questo do trabalho. No possvel nunca ignorar o devir do aluno como adulto, isto , ele exercer uma profisso no futuro (sem dvida que tambm no se pode ignorar o devir do aluno como cidado ativo). Mas, paradoxalmente, isso no implica numa nfase na escola profissionalizante. Afirmar a influncia do mercado de trabalho no sistema escolar no significa, de maneira alguma, dar primazia escola tcnica ou fordista. Pelo 46. Jos William Vesentini 46 contrrio, acreditamos que esse tipo de escola tcnica e profissionalizante est inclusive se tornando, pelo menos em parte, obsoleta neste novo sculo. Mas a influncia do mercado de trabalho na escola, no sentido amplo do termo isto , as habilidades ou competncias, e no apenas os conhecimentos e muito menos os treinamentos especficos, que ele espera dos profissionais no se confunde com a escola profissionalizante. Esta ltima, digamos, uma simplificao, um quebra-galho. uma escola que treina e d macetes para determinadas profisses: torneiros mecnicos, datilgrafos, ferramenteiros, tcnicos de baixo nvel para o turismo, atendentes para hotis, auxiliares de cozinha, marceneiros, eletricistas etc. Profisses essas, a bem da verdade, que na sua quase totalidade ou tendem a desaparecer, a se tornarem obsoletas (casos do torneiro mecnico, do datilgrafo, do soldista industrial e de vrias outras), ou ento passam a exigir um curso superior e no mais apenas um curso tcnico de nvel elementar ou mdio. uma questo de tempo e de lugar, ou em outras palavras, da realidade scio-econmica do pas ou da regio. Inmeros exemplos ilustram essa mudana. Concursos para faxineiros em So Paulo e no Rio de Janeiro, em 2008, j exigiram dos candidatos o ensino mdio completo. Isso j existe h tempos em outros pases mais desenvolvidos que o nosso e tende a prosseguir e se expandir, pois, afinal de contas, at mesmo um faxineiro hoje tem que ter determinados conhecimentos e competncias: ter noes bem fundamentadas de higiene, saber o que e como se faz uma reciclagem do lixo, o que so lixo txico e lixo hospitalar, como manuse-los etc. Existem, ainda, os cursos superiores de gastronomia, formando chefes de cozinha que comeam a substituir os cozinheiros sem nenhum estudo, os cursos superiores de 47. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 47 turismo que formam profissionais que substituem os tcnicos com apenas o ensino mdio, e por a afora. Ademais, o mercado de trabalho como um todo no se resume a essas profisses tcnicas na verdade, tcnicos de nvel mdio, muitos dos quais j esto sendo rapidamente substitudos por robs. O mercado de trabalho exige cada vez mais pessoas com competncias ou habilidades especficas, que variam conforme a tarefa. Por exemplo, pessoas com raciocnio lgico e que saibam interpretar grficos complexos4 . Pessoas criativas e at crticas, que saibam trabalhar em equipe, que saibam liderar de forma democrtica. Gente capaz de resolver problemas novos que surgem constantemente, que domine com fluncia idiomas estrangeiros (principalmente o ingls, alm do espanhol e, mais recentemente, do mandarim), que ausculte e compreenda com facilidade os sentimentos e as aspiraes dos colegas e/ou dos clientes, e por a afora. por isso que o diploma da pessoa ser formada nesta ou naquela atividade ou rea no tem mais tanta importncia, salvo nas reas onde h uma (lamentvel e atrasada, pois prejudica a sociedade como um todo) defesa corporativa. por isso que se tornou cada vez mais comum vermos profissionais trabalhando e bem em atividades que aparentemente no tm nada a ver com a sua formao especfica, ou seja, com o seu diploma no curso X ou Y. So engenheiros e fsicos envolvidos com o mercado de capitais, gegrafos e historiadores administrando empresas de recursos humanos ou exercendo atividades na rea de relaes internacionais, 4 Recentemente, em 2007, a mdia noticiou que empresas que investem na bolsa de valores contratam fsicos e no economistas para avaliar o grau de risco de comprar aes desta ou daquela empresa porque eles possuem uma capacidade muito superior na interpretao de grficos. 48. Jos William Vesentini 48 mdicos e advogados desempenhando atividades administrativas ou, s vezes, at cuidando da fabricao de vinhos, e assim por diante. O importante de fato e qualquer gerente de recursos humanos sabe disso5 so as competncias e habilidades das pessoas, e no o seu diploma especfico. Conhecimento algo provisrio e que, nos dias atuais, muda constantemente; macetes ento, pior ainda: eles se tornam rapidamente obsoletos nesta poca de acelerao das mudanas. O importante mesmo a capacidade da pessoa em se manter atualizada, o aprender a aprender, e tambm as habilidades e competncias para tal ou qual profisso, os quais por sinal, so diferentes: algumas exigem mais criatividade; outras certa dosagem de esprito crtico; outras mais raciocnio lgico; outras, preferencialmente, inteligncia emocional ou social; outras ainda, basicamente, inteligncia fsico-cinestsica; e assim sucessivamente. O ritmo de mudanas se acelerou ultimamente, como j foi comprovado exaustivamente por inmeros autores. Isso faz com que ningum mais fique a vida inteira aplicando o que aprendeu na escola profissionalizante ou na faculdade, como ocorria at o final do sculo XX. Um professor, um engenheiro eletrnico ou um mdico formados h trs ou quatro anos j esto desatualizados, desde que no se reciclem, isto , no participem de congressos, seminrios ou cursos de atualizao 5 por isso que na contratao de profissionais, hoje em dia, no se examina to somente o diploma ou o currculo escolar dos candidatos, mas, principalmente, se procura avaliar suas competncias e habilidades para o cargo em questo (atravs de atividades como dinmica de grupo, um problema hipottico para os candidatos resolverem ou darem a sua soluo etc.). 49. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 49 e/ou de especializao (inclusive por computadores, via internet ou vdeo-conferncias), no leiam obras novas, no continuem enfim a aprender e a se atualizar. Isso ocorre ou tende a ocorrer com quase todas as profisses, devido s rpidas e inevitveis mudanas nos processos produtivos, nas tcnicas, nos equipamentos, nos mtodos, na concepo por trs da atividade6 . Podemos mencionar um exemplo banal: o datilgrafo (profisso j praticamente e rapidamente extinta, tpica da primeira e, em especial, da segunda revoluo industrial) vai sendo substitudo pelo digitador (que, alis, tambm vai sendo substitudo pelo programador ou pelo analista), que trabalha com um computador no lugar da antiga mquina de escrever. lgico que essas duas profisses o datilgrafo e o digitador so pouco qualificadas; elas exigem, no mximo, um nvel mdio de ensino, mas servem como ilustrao didtica. Pois bem: a mudana do datilgrafo para o digitador no consiste somente nem principalmente na mudana do equipamento, como imaginam alguns. Consiste, fundamentalmente, numa nova concepo de trabalho. No lugar do servio repetitivo, no qual o datilgrafo durante toda a sua vida produtiva to somente aplicava o que aprendeu num cursinho tcnico, temos agora um novo profissional que necessita se atualizar continuamente: ontem ele usava o programa Word.2, hoje o Word.8 ou o Office 2007 ou algum outro programa e, dentro de alguns meses, um novo programa de edio de texto mais avanado (e provavelmente tambm uma nova planilha 6 Veja-se, sobre o novo papel da escola, a anlise de DRUCKER, P. Sociedade ps-capitalista. So Paulo, Pioneira, 1993. E tambm as anlises de diversos especialistas in DELORS, J. (org.). A educao para o sculo XXI. Questes e perspectivas. Porto Alegre, Armed/Unesco, 2005. 50. Jos William Vesentini 50 eletrnica, novos programas especficos para a firma na qual trabalha etc.), e assim sucessivamente. Ou seja, ao invs de somente aplicar o que aprendeu no curso tcnico, ele agora tem que se atualizar a cada ano, ler novos manuais (sob a forma de texto ou on-line), fazer cursos de reciclagem. O que ele aprendeu no curso inicial, no qual obteve o certificado ou diploma, no tem tanta importncia na sua vida profissional, se comparado ao que ele deve aprender constantemente. Isso at mesmo num tipo de servio to trivial quanto o de digitador! Imagine, ento, outras profisses que exigem maiores estudos: elas tambm comeam a demandar reciclagens mais frequentes e profundas. No Japo, por exemplo, desde os anos 1980 que determinados profissionais mdicos, dentistas, professores, advogados, engenheiros e vrios outros so obrigados por lei a fazerem cursos de reciclagem no mnimo a cada trs anos, sob a pena de perderem a licena, isto , o direito de continuar exercendo a profisso. Outra mudana importante suscitada pelo mercado de trabalho a exigncia de uma escolarizao cada vez mais prolongada. Uma pesquisa realizada nos anos 1980 nos Estados Unidos j mostrava que, j na dcada seguinte, mais da metade (54%) dos novos empregos oferecidos a cada ano nas sociedades industrializadas demandavam, no mnimo, o terceiro grau completo, isto , uma formao universitria7 . Observamos nos ltimos anos que muitas empresas modernas abrem certo nmero de vagas (por exemplo, 1 mil) e, mesmo tendo um nmero bem maior de candidatos (por exemplo, 150 mil), no conseguem preencher todos os postos por falta de pessoal qualificado. O prprio desemprego que em alguns casos (nem sempre) aumenta com a inovao tecnolgica sem dvida 7 Cf. KENNEDY, P. Preparando para o sculo XXI. Op.cit. 51. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 51 seletivo: h, proporcionalmente, menos desempregados entre as pessoas com curso superior do que entre as que no possuem o ensino elementar completo. At mesmo o desemprego entre o pessoal com curso superior seletivo: atinge mais aqueles que no conseguem exercer outras atividades diferentes da profisso (ou do diploma) especfica na qual so formados. Pouco a pouco, deixam de existir os empregos para pessoas sem nenhuma escolaridade como j mencionamos, at para faxineiros j se comea a exigir o ensino mdio , e os empregos que restam para os seres humanos (isto , que no so exercidos por mquinas ou robs), ou que so criados pelas novas necessidades (com a expanso do turismo, das assessorias, da educao, do sistema financeiro etc.), exigem uma escolaridade maior, normalmente um curso universitrio. Alm dessa escolarizao maior, como j foi mencionado, demandam tambm flexibilidade, capacidade de exercer outras atividades ou tarefas que surgem ou so criadas nesta poca de rpidas mudanas no mundo do trabalho. De forma simplificada e esquemtica, podemos afirmar o seguinte. Que a primeira revoluo industrial exigiu somente o primrio, a alfabetizao bsica para as massas. A segunda revoluo industrial, por sua vez, requereu de forma crescente o ensino mdio e particularmente tcnico. Agora, a terceira revoluo industrial passa a reclamar o ensino de nvel superior para a maioria dos novos empregos oferecidos a cada ano. E essa exigncia se amplia constantemente, passando a cobrar a ps-graduao lato sensu (o MBA, por exemplo), o mestrado, o doutorado e at o ps-doutorado. S que no importa mais, pelo menos no muito e na maioria das profisses, o tipo de diploma de uma pessoa, o tipo de curso que escolheu. O fundamental passa a ser a formao da pessoa (no confundir com o currculo escolar ou lista de disciplinas cursadas) e no o 52. Jos William Vesentini 52 seu ttulo. Mais importante que macetes ou informaes aprender a aprender, saber se virar sozinho, pensar por conta prpria, ter iniciativa e saber tomar decises, possuir criatividade, raciocnio lgico e senso crtico bem dosado. Por isso, citando alguns exemplos, tanto faz se o profissional tem ou no um diploma de jornalista para escrever em jornais ou revistas, de gelogo ou bilogo para realizar estudos de impacto ambiental, de administrador de empresas para gerir uma firma ou uma instituio pblica, e assim por diante. Como podemos testemunhar cotidianamente atentando para milhares de exemplos, outros profissionais, com diplomas diferentes, podem (ou no) exercer melhor todas essas tarefas, alm de inmeras outras, pois o fundamental a capacidade de iniciativa, de pesquisar e ter ideias novas, de se atualizar constantemente, sendo secundrios as informaes e os macetes aprendidos na escola. bom esclarecer que os conceitos e as informaes em si continuam sendo extremamente teis no processo educativo e tambm na vida em geral, inclusive no mundo do trabalho. Mas afirmamos que eles so secundrios num sentido especfico: que no a sua assimilao o que importa de fato. Na verdade, eles so instrumentos para que os alunos pensem, extrapolem, deduzam, debatam, selecionem e reconfigurem os dados de acordo com este ou aquele objetivo ou ponto de vista. Mais importante do que reter informaes e j foi dito, com propriedade, que num nico dia de nossas vidas atualmente temos nossa disposio mais dados informativos do que nossos avs tinham durante toda a sua vida! saber selecion-las, filtr-las, aprendendo a discernir o que factvel do que propaganda, aprendendo a reter apenas o que ter utilidade na vida (e no num exame qualquer) e, principalmente, aprendendo a usar essas informaes, a 53. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 53 manipul-las no sentido de aplic-las em situaes novas, na resoluo de desafios. As mudanas demogrficas e a escola Tambm as profundas mudanas demogrficas em curso influenciam o sistema escolar, particularmente o envelhecimento da populao e as enormes migraes inter- regionais e internacionais. Essas migraes ocasionam a formao de sociedades notadamente, embora no apenas, nos Estados Unidos e na Europa , cada vez mais multitnicas e multiculturais. Existe, aqui, o perigo do racismo e de todas as formas de preconceitos perigosos para a coeso da sociedade e que, no fundo, atravancam o desenvolvimento econmico e social. Aprender a conviver com os diferentes, com os Outros, dessa forma, se constitui num valor fundamental para a sociedade e a sua sobrevivncia enquanto democracia. um valor acompanhado por atitudes que deve ser cultivado na escola, pois fundamental para a coeso social. essencial, inclusive, para evitarmos que o sculo XXI seja to sangrento quanto o sculo XX, no qual inmeras guerras e genocdios que, em grande parte, resultaram de ou foram ampliados por arraigados preconceitos contra os que so diferentes mataram centenas de milhes de seres humanos. Tais preconceitos, cabe recordar, foram amplamente difundidos pelo sistema escolar do sculo XIX e tambm, pelo menos at a Segunda Guerra Mundial, pela escola do sculo XX. fato sobejamente conhecido que a escola conteudista do sculo XIX e de grande parte do sculo XX reproduzia uma ideologia nacionalista agressiva e chauvinista. Os livros didticos de geografia, por exemplo, at 54. Jos William Vesentini 54 meados do sculo passado, costumavam trazer principalmente na Frana, na Alemanha e em outros pases europeus, de onde boa parte do mundo copiou o modelo para os seus manuais escolares o nmero de soldados e de navios de guerra da nossa ptria e tambm dos nossos vizinhos, normalmente vistos como virtuais inimigos. Esse inventrio sempre exagerava o nosso potencial blico e diminua o dos vizinhos ou possveis inimigos. No Brasil mesmo foi comum, at os anos 1970, que livros didticos divulgassem o mito do progressivo branqueamento da populao brasileira, inculcando assim um preconceito sub-reptcio contra os descendentes de indgenas e de africanos. O envelhecimento progressivo da populao em todos os pases, embora num ritmo mais acelerado nos desenvolvidos faz com que a escola do sculo XXI se torne cada vez mais voltada para adultos e idosos do que para crianas e adolescentes, tal como era no passado. No que esta ltima deixe de existir. Ela sempre vai existir, porm, em termos percentuais vai se tornando minoritria. Isso significa uma mudana radical do pblico-alvo da escola. uma consequncia do declnio das taxas de natalidade e de mortalidade, o que ocasiona uma elevao na expectativa de vida e uma diminuio da percentagem de jovens com um correlato aumento na proporo de adultos e principalmente idosos na populao total. Com isso, multiplicam-se os cursos e as escolas para a chamada terceira idade e tambm o crescente ingresso de adultos e idosos em cursos superiores, que antes recebiam quase que s jovens. O perfil dos calouros (isto , os que ingressam no primeiro ano) nas universidades j comeou a mudar h vrios anos. cada vez mais comum que pessoas com um curso optem por um segundo, ou um terceiro, ou que aposentados ingressem novamente numa faculdade. 55. Repensando a geografia escolar para o sculo XXI 55 Sem a menor dvida, em grande parte dos cursos superiores a mdia de idade dos calouros vem aumentando progressivamente nos ltimos anos, e essa tendncia deve continuar nas prximas dcadas. Alm disso, existem as alteraes no mercado de trabalho, com a revoluo informtica, robtica e organizacional, que ocasionam uma constante necessidade de reciclagem dos funcionrios, dos trabalhadores em geral, algo que tambm ajuda a mudar o pblico-alvo das escolas. Por um lado, multiplicam-se os cursos de idiomas (principalmente o ingls, devido globalizao: expanso dos negcios no exterior, das ONGs internacionais e do turismo internacional), de artesanato, de lazer programado, de artes, de cursos para a terceira idade etc. De outro lado, multiplicam-se os cursos de reciclagem (atualizao, trocas de experincia, de motivao e outros) para os profissionais de diversas reas. Cada vez mais, enfim, temos uma presena marcante de adultos e idosos no sistema escolar. Como foi dito com pertinncia, a educao do sculo XXI uma atividade para toda a vida do ser humano e no para um perodo especfico, o perodo escolar (mais ou menos dos 5 ou 7 at os 16 ou 24 anos, dependendo da pessoa e/ou da sociedade), como era no sculo XX8 . A escola e o desenvolvimento econmico e social sustentvel Por fim, temos na atualidade uma renovada importncia econmica e social da escola, que de auxiliar relativamente secundrio passou a alicerce bsico da modernidade. O sistema 8 Cf. DELLORS, J. (Org.). Educao, um tesouro a descobrir. So Paulo, Cortez/MEC/Unesco, 1998. 56. Jos William Vesentini 56 escolar na primeira e mesmo na segunda revoluo industrial era uma instituio necessria, todavia no decisiva. Era tida at mesmo como relativamente dispensvel frente a outras prioridades (as militares e, principalmente, as econmicas no sentido de produo industrial, comercial ou agrcola). Hoje esse entendimento mudou, pelo menos nos pases mais desenvolvidos, ou vem mudando de forma crescente no mundo inteiro. Atualmente, uma verdade bvia que a chave para um desenvolvimento tecnolgico e econmico nos moldes da terceira revoluo industrial se encontra num timo sistema escolar9 . A escolarizao integral e de boa qualidade se tornou no segredo do sucesso para uma sociedade que procura acompanhar a revoluo tcnico-cientfica. Integral, porque deve ocupar praticamente todo o dia do aluno, de manh e tarde, com no mnimo 9 horas de aulas dirias, tal como j ocorre h dcadas em vrios pases: Japo, Cingapura, Holanda, Dinamarca etc. Escolas de qualidade no quer dizer apenas embora tambm equipadas com laboratrios, bibliotecas, computadores disposio dos alunos e professores, conexo internet e/ou s intranets, videotecas, projetores multimdia, programas obrigatrios e bem elaborados para estudos do meio etc. Mas quer dizer, principalmente, docentes bem formados e bem remunerados, que se atualizam constantemente, que possuem no mximo 30 alunos por sala de aula e 25 horas-aula por semana (o restante do tempo, remunerado, deve ser preenchido por estudos, pesquisas, preparao de aulas, correo de trabalhos etc.). O sistema escolar, sem nenhuma dvida, essencial tanto