projeto societario contra hegemonico educacao do campo

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Projeto societário contra-hegemônico e educação do campo: Desafios de conteúdo, método e forma. Gaudêncio Frigotto 1 Só a classe operária pode converter a ciência de dominação numa força popular (...) A ciência só pode desempenhar o seu genuíno papel na República do trabalho. ((Marx, 1871, citado em Moura, 1997, p. 71) A epígrafe acima situa, de forma clara e inequívoca, que os processos educativos e a construção do conhecimento estão organicamente vincados às relações sociais e que, na sociedade capitalista cindida em classes sociais antagônicas 2 , esses processos são marcados por uma disputa em seu conteúdo, método e forma. Tanto a ciência quanto a educação somente poderão desempenhar seu papel de qualificação da vida e dilatação do tempo efetivamente livre, criativo e, portanto, de emancipação humana em sociedades que rompam, pela raiz, a estrutura de classes. Este entendimento nos indica que a luta contra-hegemônica por uma educação emancipadora é parte da mesma luta de emancipação no conjunto das relações sociais no interior das sociedades capitalistas. Trata-se de uma luta que atinge todas as esferas da vida e que abrange o plano econômico-social, político, cultural, científico, educacional e artístico. Neste texto, cujo objetivo básico foi o de estimular o debate na abertura do I Seminário de Pesquisa em Educação do Campo: Desafios teóricos e práticos, vou ater-me a três aspectos e uma breve conclusão. Primariamente delinearei um inventário do que nos trouxe até aqui numa sociedade de capitalismo dependente que exacerba a desigualdade, a violência e a criminalização dos movimentos sociais e populares. Classe dominante que acresce à violência da expropriação especificamente capitalista da classe trabalhadora o estigma e os métodos da herança dos quase quatro séculos de escravidão. Em sequência, 1 . Doutor em Ciências Humanas - Educação. Professor do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). In: MONARIM. Antonio. Educação do campo. Reflexões e perspectivas. 1ª. ed. Florianópolis: Insular, 2010, p. 19- 46. 2 . As classes sociais não são uma invenção arbitrária e nem uma coisa. São produtos históricos de relações sociais de poder, de força e de violência que cindem o gênero humano. A sociedade ou modo de produção capitalista se constituiu nos seu fundamento estrutural por duas classes fundamentais e por frações e grupos sociais a elas articuladas: os proprietários privados dos meios e instrumentos de produção e os trabalhadores interditados de terem esses meios e de disporem somente sua força de trabalho para ser negociada em troca de bens essenciais à sua reprodução ou de remuneração monetária que lhes faculte, quando alguém compra esta sua força de trabalho, a comprar seus meios de vida. O antagonismo de interesses com a classe detentora do capital, tenha-se ou não a consciência do mesmo, também não é arbitrário, mas expressa o modo estrutural de relações socais que impedem, interditam ou mutilam os direitos mais elementares da classe trabalhadora.

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Page 1: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

Projeto societário contra-hegemônico e educação do campo: Desafios de conteúdo, método e forma.

Gaudêncio Frigotto1

Só a classe operária pode converter a ciência de

dominação numa força popular (...) A ciência só pode

desempenhar o seu genuíno papel na República do

trabalho. ((Marx, 1871, citado em Moura, 1997, p. 71)

A epígrafe acima situa, de forma clara e inequívoca, que os processos educativos

e a construção do conhecimento estão organicamente vincados às relações sociais e que,

na sociedade capitalista cindida em classes sociais antagônicas2, esses processos são

marcados por uma disputa em seu conteúdo, método e forma. Tanto a ciência quanto a

educação somente poderão desempenhar seu papel de qualificação da vida e dilatação do

tempo efetivamente livre, criativo e, portanto, de emancipação humana em sociedades

que rompam, pela raiz, a estrutura de classes.

Este entendimento nos indica que a luta contra-hegemônica por uma educação

emancipadora é parte da mesma luta de emancipação no conjunto das relações sociais no

interior das sociedades capitalistas. Trata-se de uma luta que atinge todas as esferas da

vida e que abrange o plano econômico-social, político, cultural, científico, educacional e

artístico.

Neste texto, cujo objetivo básico foi o de estimular o debate na abertura do I

Seminário de Pesquisa em Educação do Campo: Desafios teóricos e práticos, vou ater-me a

três aspectos e uma breve conclusão. Primariamente delinearei um inventário do que nos

trouxe até aqui numa sociedade de capitalismo dependente que exacerba a desigualdade, a

violência e a criminalização dos movimentos sociais e populares. Classe dominante que

acresce à violência da expropriação especificamente capitalista da classe trabalhadora o

estigma e os métodos da herança dos quase quatro séculos de escravidão. Em sequência,

1. Doutor em Ciências Humanas - Educação. Professor do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em

Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). In:

MONARIM. Antonio. Educação do campo. Reflexões e perspectivas. 1ª. ed. Florianópolis: Insular, 2010, p. 19-

46. 2. As classes sociais não são uma invenção arbitrária e nem uma coisa. São produtos históricos de relações

sociais de poder, de força e de violência que cindem o gênero humano. A sociedade ou modo de produção

capitalista se constituiu nos seu fundamento estrutural por duas classes fundamentais e por frações e grupos

sociais a elas articuladas: os proprietários privados dos meios e instrumentos de produção e os trabalhadores

interditados de terem esses meios e de disporem somente sua força de trabalho para ser negociada em troca de

bens essenciais à sua reprodução ou de remuneração monetária que lhes faculte, quando alguém compra esta sua

força de trabalho, a comprar seus meios de vida. O antagonismo de interesses com a classe detentora do capital,

tenha-se ou não a consciência do mesmo, também não é arbitrário, mas expressa o modo estrutural de relações

socais que impedem, interditam ou mutilam os direitos mais elementares da classe trabalhadora.

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buscarei evidenciar que o descaso pela educação pública no Brasil está vincado ao tipo de

opção do projeto societário dominante e que no âmbito substantivo continuam no atual

governo eleito com base popular e com a demanda de mudanças estruturais. Como último

tópico, assinalo alguns aspectos no plano da concepção teórica, do conteúdo, do método e da

forma da educação do campo3, que podem, no espaço das contradições, construir processos

educativos e de conhecimento emancipatórios e, enquanto tal, são portadores de mediações

que qualificam a práxis na luta contra-hegemônica pela superação do projeto societário de

capitalismo dependente e das relações sociais capitalistas. Nas considerações finais, busco

sublinhar alguns elementos que indicam que o projeto societário e educacional defendido e

lutado na prática pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra ( MST) engendra o

gérmen mais avançado da luta contra-hegemônica hoje no Brasil, não só para a educação do

campo, mas para a classe trabalhadora no seu conjunto..

1. Brasil projeto de capitalismo dependente: “Sociedade

desigualitária sem remissão”.

O pensador italiano Antônio Gramsci, um dos grandes intelectuais do século XX que

lutou teórica e praticamente na construção do socialismo, assinalava que o processo de

construção de análise crítica da realidade implica inicialmente um inventário e a pergunta:

qual o tipo histórico de conformismo e de homem-massa do qual fazemos parte? (Gramsci,

1978, p. 12). No plano político-social este inventário remete, para esse pensador,

necessariamente a apreensão do movimento conjuntural vinculado ao tecido estrutural de uma

determinada formação social. Mediante este procedimento é possível distinguir as mudanças e

embates que mudam a realidade existente para conservá-la daquelas mudanças que se

colocam numa agenda de confrontação e superação da ordem existente. A questão prévia é,

pois, perguntar-se de que conformismo somos conformistas. Ou seja, na formação hostórico-

social brasileira quais os projetos de sociedade e de educação nos trouxeram até aqui, em que

contexto conjuntural nos encontramos e como se anuncia o futuro?

Um breve percurso pela produção de alguns clássicos e contemporâneos do

pensamento crítico social brasileiro4 nos permite traçar os elementos estruturantes do

3 . Embora o título se refira à educação do campo irei discuti-la dentro de um plano mais amplo da educação. Ao

longo do I Seminário de Pesquisa em Educação do Campo: desafios teóricos e práticos, mais de 80 trabalhos

debatem ângulos específicos da educação do campo. 4 . Boa parte das ideias apresentadas neste item e, mesmo, ao longo de todo o texto, direta ou indiretamente, está

presente em outros trabalhos publicados em periódicos ou coletâneas. Ver, especialmente, Frigotto (2006). Sua

reiteração compre um duplo objetivo: dar base para as questões levantadas e socializá-las, enquanto síntese e

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inventário do que nos conduziu a um projeto de capitalismo dependente e, na síntese de

Francisco de Oliveira, a uma sociedade desigualitária sem remissão5. Desigualdade esta que

se expressa pela escandalosa concentração de capital e de riqueza, pelo latifúndio, super-

exploração e sua contrapartida que joga milhões de brasileiros na pobreza absoluta,

analfabetismo, pífia escolaridade básica e a negação ao acesso à terra, moradia, saneamento

básico, saúde, cultura e transporte público.

O traço que, talvez, mais dissimula o caráter de violência das relações de classe no

Brasil nos é revelado por Sérgio Buarque de Holanda7 em Raízes do Brasil. Com efeito, o

título nos convida a desvelar os traços profundos de nossas heranças, sobretudo, culturais na

figura do “homem cordial”, na aversão à impessoalidade e seus reflexos no plano social,

econômico e político mediante o personalismo, o populismo, o clientelismo e o

patrimonialismo ou da apropriação privada dos bens públicos.

Nada mais evidente da reiteração destes traços doque o trânsito de figuras como José

Sarney, no passado recente presidente do partido que avalizou o golpe civil-militar de 1964,

primeiro presidente da transição da ditadura à democracia restrita e, atualmente, presidindo o

Senado brasileiro e referência das alianças de um governo cujo presidente foi um operário

metalúrgico e líder sindical. Não se trata de particularizar e reduzir o problema na figura de

Sarney, mas, pelo contrário, de sublinhar a marca comum à classe dominante brasileira,

mesmo e, sobretudo, a fração que hoje vocifera para tirar do poder o antigo aliado.

Ribeiro (2000), em Sociedade contra o social , explicita a marca desta classe que

privatiza a sociedade e onde a corrupção se constitui num elemento estruturante desta

privatização. Não por acaso o social é definido como o espaço dos pobres e das políticas

assistencialistas e a sociedade, sendo a economia e seus condutores. A sociedade veio a

designar o conjunto dos que detêm o poder econômico, ao passo que o ‘social’ remete, na

fala dos mesmos governantes ou dos publicistas, a uma política que procura minorar a

miséria.” (op.cit. p.19).

No âmbito político esta tradição cultural se expressa, em momentos de crise e riscos

para a classe dominante, por ditaduras e reiterados golpes institucionais e, em tempos de

democracia restrita, por mudanças pelo alto que alteram a realidade na sua superfície e

numa linguagem mais direta, a um maior numero de interlocutores, especialmente aos movimentos sociais,

sindicais e populares. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas

“originais”; significa também, e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las por

assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem

intelectual e moral. (Gramsci, 1978, p. 13) 5 . Francisco de Oliveira é um dos pensadores contemporâneos que de forma m ais incisiva nos ajuda a fazer este

inventário. A síntese que aqui nos referimos na qual explicita o projeto societário brasileiro, desigual e sem

remissão, a encontramos em Oliveira, 2003.

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mantém e reforça as estruturas produtoras da desigualdade.. Nos termos das análises de

Coutinho com base nas categorias gramscianas, o que se reitera no Brasil são as estratégias

da revolução passiva, processos de cooptação e, na atual conjuntura, o transformismo6 .

Trata-se de estratégias políticas que mascaram, negam ou esmaecem o conflito e antagonismo

de classe e estabelecem alianças de classes na manutenção das estruturas dominantes7.

O projeto societário que se afirma ao longo de nossa história vai definindo três

características estruturantes destacadas por Caio Prado Júnior (1966), primeiro intelectual

que se valeu do método materialista histórico para analisar a formação social, econômica e

cultural do Brasil. A primeira é o mimetismo que se caracteriza por uma colonização

intelectual onde prevalece a cópia das teorias e ideias dos centros hegemônicos, hoje, das

teses dos organismos internacionais e de seus intelectuais e técnicos, também da ideia de que

não precisamos produzir ciência e tecnologia e podemos importá-la. A segunda é opção pelo

crescente endividamento externo e a forma de efetivá-lo pelas frações dominantes da

burguesia brasileira. E, por fim, a última, a abismal assimetria entre o poder e ganhos do

capital e do trabalho configurando uma das forças-de-trabalho de maior nível de exploração

do mundo.

Furtado (1966, 1982 e 1992, o pesquisador e autor que mais publicou sobre a

formação econômico-social brasileira e sobre a especificidade do nosso desenvolvimento.

Uma de suas conclusões originais e base para análises de outros pensadores críticos que nos

dão o inventário do que nos conduziu até o presente é de que o subdesenvolvimento não é uma

etapa do desenvolvimento, mas uma forma específica de construção de nossa sociedade. Ao

longo de sua obra, situa a sociedade brasileira dentro do seguinte dilema: a construção de

uma sociedade ou de uma nação onde os seres humanos possam, produzir dignamente a sua

existência ou a permanência num projeto de sociedade que aprofunda sua dependência

subordinada aos grandes interesses dos centros hegemônicos do capitalismo mundial. É neste

6 . Carlos Nelson Coutinho, sem dúvida, é o autor que mais contribui tanto para traduzir e divulgara no Brasil a

Obra completa de Antônio Gramsci, quanto e, especialmente, o esforço de produzir, à luz das formulações deste

importante intelectual para as lutas dos movimentos sociais e da classe trabalhadora na construção do

socialismo, análises do processo político e cultural brasileiro. Ver, sobretudo, Coutinho, (1992, 1999, 2000 e

2002) 7 . Benevides ( 1984) nos mostra que a estratégia de "conciliação" dos grupos ou frações de classe se reitera

desde o Império com a conciliação, " no Gabinete Paraná (1853) conservadores e liberais". Isto se repete em

1848 após a Revolução Praieira; em 1932, após a Revolução Constitucionalista e na Constituição de 1946, "que

derrubou a ditadura sem substituir os instrumentos do Estado Novo. As análises que assinalaremos a seguir de

Francisco de Oliveira sobre o Governo Lula da Silva talvez nos permitam afirmar, guardadas as especificidades e

natureza da realidade atual do Brasil hoje, esta estratégia de conciliação continua viva .

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horizonte que Furtado faz a crítica ao "modelo brasileiro" de capitalismo modernizador e

dependente, uma constante do passado e do presente.

Corroboram a tese de Furtado, aprofundando-a e contrariando o pensamento conservador

dominante e de grande parte do pensamento da esquerda , Florestan Fernandes e Francisco

de Oliveira rechaçam a tese da estrutura dual da sociedade brasileira que atribui nossos

impasses para nos desenvolvermos a existência de um país cindido entre o tradicional, o

atrasado, o subdesenvolvido e o moderno e desenvolvido, sendo as características primeiras

impeditivas do avanço da segunda. Pelo contrário, mostram-nos estes autores a relação

dialética entre o arcaico, atrasado, tradicional, subdesenvolvido, e o moderno e o

desenvolvido na especificidade ou particularidade de nossa formação social capitalista.

O que se reitera para Fernandes (1968) no plano estrutural é que as crises entre as

frações da classe dominante acabam sendo superadas mediante processos de rearticulação do

poder da classe burguesa numa estratégia de conciliação de interesses entre o arcaico e o

moderno. Trata-se, para Fernandes, de um processo de “modernização do arcaico”.

Dentro da mesma perspectiva Francisco de Oliveira (2003) nos mostra que é a

imbricação do atraso, do tradicional e do arcaico com o moderno e desenvolvido que

potencializa a nossa forma específica de sociedade capitalista dependente e de nossa inserção

subalterna na divisão internacional do trabalho. Mais incisivamente, os setores denominados

de atrasado, improdutivo e informal, se constituem em condição essencial do núcleo integrado

ao capitalismo orgânico mundial. Assim, a persistência da economia de sobrevivência nas

cidades, uma ampliação ou inchaço do setor terciário ou da "altíssima informalidade" com

alta exploração de mão-de-obra de baixo custo são funcionais à elevada acumulação

capitalista, ao patrimonialismo e à concentração de propriedade e de renda.

Ao atualizar, quatro décadas depois, a sua obra Crítica à razão dualista, Oliveira

(2003) nos revela que o que se tornou hegemônico foi a permanência de um projeto de

sociedade que aprofunda sua dependência subordinada aos grandes interesses dos centros

hegemônicos do capitalismo mundial. Esta opção hegemônica, em termos de consequências

societárias, a expressa recorrendo à metáfora do ornitorrinco.

Para Oliveira, a imagem do ornitorrinco faz a síntese emblemática das mediações do

tecido estrutural de nosso subdesenvolvimento e a associação subordinada da classe burguesa

brasileira aos centros hegemônicos do capitalismo e os impasses a que fomos sendo

conduzidos no presente. Uma particularidade estrutural de nossa formação econômica, social,

política e cultural, que nos transforma num monstrengo social.

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As relações de poder e de classe que foram sendo construídas no Brasil, observa

Oliveira, permitiram apenas parcial e precariamente a vigência do modo de regulação fordista

tanto no plano tecnológico quanto no plano social. Da mesma ocorre no presente na atual

mudança científico-técnica de natureza digital-molecular, que imprime uma grande

velocidade à competição e à obsolescência dos conhecimentos. Isto destaca Oliveira, torna

nossa tradição da cópia ainda mais inútil. Uma sociedade, portanto, que na divisão

internacional do trabalho dominam as atividades ligadas ao trabalho simples de baixo valor

agregado.

O conceito de capitalismo dependente que combina elevada concentração de riqueza

e capital e de desigualdade desenvolvido especialmente por Florestan Fernandes define o

caráter de nossa especificidade histórica na sua raiz mais profunda. Trata-se de uma categoria

ou um conceito que nos permite explicitar o caráter ideológico da “teoria” da modernização e

os limites da teoria da dependência com as abordagens centro-periferia e o confronto entre

nações, ao situar o núcleo explicativo na relação de classes e no conflito de classe no sistema

capitalista. Capitalismo dependente expressa que não se trata de dualidade e, também, não é

um confronto entre nações, mas a aliança e associação subordinadas da fração brasileira da

burguesia com as burguesias dos centros hegemônicos do sistema capital na consecução de

seus interesses.

Esta mesma categoria permite compreender, de forma mais precisa, um processo

histórico de desenvolvimento desigual e combinado. A aliança dependente e subordinada da

burguesia brasileira com os centros hegemônicos do capital tem como resultado a combinação

de nichos de alta tecnologia, elevadíssimos ganhos do capital, concentração abismal de capital

e de renda e super-exploração do trabalhador e uma concentração de miséria e de mutilação

dos direitos elementares a grande maioria.

Sob esse tecido estrutural foram se desenhando conjunturas que Otávio Ianni (19 )

define com a metáfora do pêndulo. Um jogo de forças que oscilou entre a construção de um

país autônomo relacionado com o mundo com soberania nacional, com reformas estruturas

para criar um forte mercado interno e melhor distribuição de renda e um projeto de

dependência externa.

Fiori ( 2000) num sucinto texto, descreve três projetos societários que conviveram e

lutaram entre si durante todo o século XX. O liberalismo econômico centrado na política

monetarista ortodoxa e na defesa intransigente do equilíbrio fiscal.. Este projeto sempre se

contrapôs ao que Fiori denomina de nacional desenvolvimentismo ou desenvolvimentismo

conservador, presente na Constituinte de 1891 e nos anos 30, e, mais enfaticamente, opunha-

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se ao projeto de desenvolvimento econômico nacional e popular. Esta terceira alternativa, de

forma passageira, teve presente no Governo João Goulart com a política desenhada pelo

ministro do Planejamento Celso Furtado, interrompido pelo golpe civil-militar de 1964.

Destaca, todavia, que este projeto teve enorme presença no campo da luta ideológico-cultural

e das mobilizações democráticas.

As forças reunidas em torno deste projeto (liberais sociais, socialistas, comunistas)

representadas em partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos foram as que lutaram pela

derrota da ditadura de 1964. A questão que nos importa é sobre a natureza da transição e em

que situação se encontram estas forças contra-hegemônicas?

O balanço das últimas três décadas é de que o pêndulo, ao longo do mandato de

Fernando Henrique Cardoso, afirmou o projeto monetarista fiscal e de sociedade de

capitalismo dependente de desenvolvimento desigual e combinado. Isso através, sobretudo, da

privatizando o patrimônio público e sedimentando o Brasil como plataforma do capital

especulativo e afirmação das forças atrasadas, sustentáculos do latifúndio e do agro negócio

na mão de grandes grupos e empresas internacionais.

Passados quase sete anos do Governo do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva,

eleito por uma base social herdeira do projeto nacional popular, pode-se afirmar que não

houve mudanças estrutural do projeto dominante da classe burguesas brasileira. A opção que

vem se solidificando é do nacional desenvolvimentismo conservador e que, ao contrário de

ruptura com classe dominante e seu projeto societário e governa condicionado por ela8. O

efetivo avanço nas políticas assistenciais e, em parte, redistributivas, sem mudanças

estruturais podem tornar-se um ovo de serpente e, uma vez mais, reiterar políticas

personalistas, patrimonialistas que alimentam e reiteram o projeto societário das mais

desiguais e violentos do mundo.

Em recente entrevista à Revista Piauí Oliveira (2009) retoma uma artigo de 2007

escrito na mesma revista - Hegemonia às avessas - no qual, baseado no pensamento de

Gramsci sobre socialização da política, buscava fazer uma provocação aos caminhos

seguidos pelo governo Lula da Silva que, avalizado por uma intensa participação popular, ao

chegar ao poder faz o avesso do mandato de classes recebido nas urnas.

A conclusão a que chega nesta entrevistas, reiterando outras análises sua mais amplas

(Oliveira, 2004 e 2007), nos traz elementos que devem se constituir em agenda de reflexão

8 . O que se sinaliza aqui não é que no contexto que assumiu o governo Lula pudesse efetivar uma mudança

brusca de natureza socialista. O que se indica que tinha base social para, a exemplo de Evo Morales da Bolívia,

e Rafael Corrêa do Equador e Hugo Chaves, efetivar mudanças para confrontar as estruturas que produzem uma

“sociedade desigualitária sem remissão”.

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para aqueles que lutam por um projeto societário e educacional contra-hegemônico no Brasil.

Para Oliveira o governo de Fernando H. Cardoso desestruturou o Estado para implementar o

projeto privatista e o governo Lula desestrutura a sociedade fragmentando o acúmulo de mais

de meio século das forças de esquerda.

No horizonte contra-hegemônico, por certo, não á solidez no caminho do quanto

pior melhor ou do retorno às forças que venderam o pais sob o governo Fernando Henrique

Cardoso. Mas, também, não se pode referendar projetos de poder parlamentar de cunho

personalista e que não tenham, na força popular organizada sua referência. Os ensinamentos

de Gramsci, neste particular nos indicam que a trincheira fundamental de luta situa-se no

plano de organização das forças e movimentos sociais que não buscam diluir ou mascarar os

conflitos e antagonismos de classe, mas confrontá-los.

1. Educação Básica pública do campo e da cidade: Direito social e subjetivo negado

ou mutilado

O sucinto percurso do processo histórico que nos conduziu até o presente, cuja marca

específica é de capitalismo dependente, nos permite compreender as (im)possibilidades dos

embates no campo educacional. A mesma travessia dolorosa em que nos encontramos no

âmbito do projeto societário no seu plano cultural, econômico-social e político atinge

frontalmente o campo educacional. Um desafios que tem especificidade no campo e na

cidade, mas que se sintetiza no desafio da republica do trabalho ou da classe trabalhadora.

O retrato de precariedade da educação básica como direito social e subjetivo no

Brasil, como o equivalente a quatro populações do Uruguai de analfabetos absolutos. O Brasil

convive, em pleno século XXI ,com mais de 14 milhões de brasileiros analfabetos o que

equivale a 10,5% da população maior de 15 anos, um ensino fundamental precário um ensino

médio que atinge, também precariamente, apenas metade da população de jovens que

constitucionalmente o tem por direito.

O Brasil é o país econômica e politicamente mais importante da América Latina e

o único em que o ensino médio não é, de fato, obrigatório, embora conste na Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional como sendo a etapa final da educação básica. Ele

se constitui numa ausência socialmente construída, na sua quantidade e qualidade e é o

indicador mais claro da opção da formação dominantemente para o trabalho simples e da não

preocupação com as bases da ampliação da produção científica, técnica e tecnológica.

Aproximadamente 50% dos jovens têm acesso ao ensino médio e, destes, apenas a metade na

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idade adequada. A aproximadamente 60% dos que chegam ao ensino médio o fazem no turno

noturno em precaríssimas condições. Desagregados por região e pela classificação urbano e

rural, estes dados assumem outras dimensões da desigualdade. Nos assentamentos da

Reforma Agrária, especialmente no norte de nordeste, as escolaridade oferecida não cumpre a

lei da obrigatoriedade do ensino fundamental.

Esta situação não é fruto de uma fatalidade, mas uma produção social construída

historicamente pela classe burguesia brasileira. O seu projeto societário resulta d um consenso

atrasado do ponto de vista da classe burguesa do capitalismo hegemônico ao qual se vincula

de forma associada, mas subordinada.

Isto nos permite sustentar que este projeto de capitalismo dependente impediu e

impede, por diferentes mecanismos, a universalização da educação escolar básica

(fundamental e média), pública, laica e unitária, mesmo nos limites dos interesses de um

capitalismo avançado dentro de um projeto de autonomia nacional. Ou seja, burguesia

brasileira nunca se colocou de fato o projeto de uma escolaridade e formação técnico-

profissional para a maioria dos trabalhadores para prepará-los para o trabalho complexo que a

tornasse, enquanto classe detentora do capital, em condições de concorrer com o capitalismo

central.

Por isso uma classe que se pautou pela cópia de tecnologia e não pelo investimento em

educação básica e desenvolvimento de pesquisa básica; utilizou-se do endividamento externo

para seus projetos secundarizando o desenvolvimento do mercado interno; e, mantém uma

estrutura assimétrica descomunal entre os ganhos do capital e os salários dos trabalhadores.

Tomando-se como referência as década de 1930 podemos perceber que o Brasil

conviveu com duas ditaduras que somadas perfazem três décadas e, nos períodos de

democracia restrita, permanentes golpes institucionais. A constituição de 1986, muito embora

tenha tido avanços os mesmos foram sendo esmaecidos na prática ao longo da década de 1990

sob a férrea adesão às políticas do ajuste neoliberal.

Dois pensadores críticos ao projeto societário dominante, Antônio Cândido e

Florestan Fernandes, nos evidenciam o caráter limitado das reformas educacionais das

décadas de 1930 e de 1980. Cândido, referindo-se aos ideais educacionais dominantes na

década de 1930 conclui:

Tratava-se de ampliar e “melhorar” o recrutamento da massa votante e de enriquecer

a composição da elite votada. Portanto, não era uma revolução educacional, mas uma

reforma ampla, pois o que concerne ao grosso da população a situação pouco se alterou. Nós

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sabemos que (ao contrário doque pensavam aqueles liberais)9 as reformas da educação não

geram mudanças essenciais na sociedade, porque não modificam a sua estrutura e o saber

continua mais ou menos u como privilégio. São as revoluções verdadeiras que possibilitam as

reformas de ensino em profundidade, de maneira a torná-lo acessível a todos, promovendo a

igualitarização das oportunidades. Na América Latina, até hoje isto só ocorreu em Cuba a

partir de 1959 (Cândido, 1984, p. 28)

Quaro décadas depois, Florestan Fernandes, um dos grandes batalhadores por

reformas sociais que não apenas reformassem a estrutura social brasileira, mas a alterasse

pela raiz e defensor das teses dos movimentos sociais e organizações científicas que

defendiam um projeto educacional que desse base à mudanças esturrais, chega, em relação à

Constituição de 1988, a conclusão similar a de Antônio Cândido: A educação nunca foi algo

de fundamental no Brasil, e muitos esperavam que isso mudasse com a convocação da

Assembleia Nacional Constituinte. Mas a Constituição promulgada em 1988, confirmando

que a educação é tida como assunto menor, não alterou a situação (Fernandes, 1992).

O desfecho da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases e do Plano Nacional de

Educação, ao longo da década de 1990, em ambos os casos derrotando as forças vinculadas a

um projeto nacional popular que postulava mudanças estruturais na sociedade e na educação,

vieram confirmar que permanece inalterado até o presente as análises de Antônio Cândido e

Florestan Fernandes.10

O que as análises críticas no campo educacional nos indicam é que após 1930 as

propostas educacionais inovadoras foram aquelas vincadas às lutas por mudanças no projeto

societário dominante no Brasil. Do período entre a Ditadura Vargas o golpe civil-militar de

1964, o livro a Pedagogia do Oprimido de Freire (1974) efetiva uma síntese , mormente na

educação popular, das lutas que articulavam a educação a reformas de base.

Não pro acaso Freire e outros intelectuais que articulavam a luta educacional as lutas

sociais, foram perseguidos e exilados. A ditadura de 1968 efetivou um ciclo de reformas

educacional, da pré-escola à pós-graduação, ajustando o sistema educacional ao ideário

economicista sob a égide da ideologia do capital humano11

.

As lutas pelo fim da ditadura e os embates da década de 1980 no processo

constituinte e, em seguida, da nova Lei de Diretrizes da Educação Nacional, reavivaram um

9 . Cândido, no artigo, refere-se a reformas propostas por Sampaio Dória em 1920; Lourenço Filho no Ceará

(1924) e Fernando Azevedo ( 928) no Distrito Federal , base para o que se desenvolveria no Governo Provisório

após 1930 com a criação do Ministério de Educação e Saúde, confiado Francisco Campos que fora o reformador

da instrução pública em Minas Gerais. 10

. Para uma crítica à nova LDB e ao Plano Nacional de Educação ver Saviani (1998) 11

. No livro A produtividade da escola improdutiva, Frigotto, 1984), o leitor poderá encontra um balanço

crítico do significado do economicismo na educação neste período.

Page 11: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

11

novo alvorecer das lutas sociais por um novo projeto societário e de educação. No plano das

concepções a qualidade da educação, pela primeira vez, é disputada no horizonte da

formação, omnilateral ou politécnica e da escola unitária. Trata-se de concepções vinculadas

à luta pela superação das relações sociais e educacionais capitalistas.

O golpe que viria agora seria mais profundo. Transitamos da ditadura civil militar á

ditadura do mercado ( Frigotto, 2002) Neste contexto passa-se a cobrar da instituição escola,

e dos processos educativos, um pragmatismo ultra-individualista. Educar o indivíduo isolado

que luta por seu lugar a qualquer preço, seguindo os ditames do mercado. Margaret Teacher

traduziu este ideário sentenciando que não via a sociedade, mas sim os indivíduos. Um ideário

que postula, pois, que não há lugar para todos, mas apenas para os mais competentes, para os

que primam por uma “qualidade total”.

Com efeito, a partir da década de 1990, sob o ideário neoliberal, os grandes

formuladores das reformas educativas são os organismos internacionais vinculados ao

mercado e ao capital. São eles que infestam o campo educativo com as noções de sociedade

do conhecimento, qualidade total, polivalência, formação flexível, pedagogia das

competências, empregabilidade e empreendedorismo.

Ao longo da década de 1990 sob o governo Fernando Henrique Cardoso, mediante as

reformas do Estado e privatizações, sela-se a definição do projeto de sociedade de capitalismo

dependente. O Ministro da Educação por oito anos, Paulo Renato de Souza, um intelectual

vinculado e dirigente de organismos internacionais, efetiva sob a ditadura do mercado as

reformas educativas que articulam os interesses das classes dos centros hegemônicos do

sistema capital e, de forma associada e subordinada, da classe burguesa brasileira.

A acensão ao poder em 2002 do ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva, com forte

apoio dos movimentos sociais e populares, mesmo sabendo-se dos limites dentro dos quais a

conquista do governo se dera, não há como negar que até os mais céticos esperavam

mudanças que paulatinamente alterassem, no plano social e educacional, o projeto societário

historicamente dominante de caráter radicalmente desigualitário. Depois de sete ano de

mandato o balanço, sem concessões, de Francisco de Oliveira em várias análises e, de forma

mais incisiva no breve texto avesso do avesso, evidencia-se que a socialização da política foi

adiada e com ela a possibilidade de ampliação de forças sociais que lutam por um efetivo

projeto contra-hegemônico na sociedade e na educação.

Não é difícil reconhecer que há mudanças tanto no projeto econômico-social quanto

e educacional em relação ao governo que o precedeu. As políticas distributivas, em vários

programas, projetos e ações incluem milhões de brasileiro, antes excluídos, de poderem

Page 12: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

12

atender as necessidades básicas. Mas, são mudanças dentro da ordem que reitera, com

particularidades conjunturais, o desenvolvimentismo conservador e com ele, por processos de

transformismo de forças antes ligadas à luta da classe trabalhadora a uma aliança com as

forças que produzem a sociedade desigualitária e sem remissão e não a confrontação clara e

aberta com estas forças.

Também no plano educacional além da expansão de Universidades públicas de escolas

técnicas, dezenas de programas e ações especialmente voltados para grupos específicos de

jovens e adultos são um fato incontestável. Mas se trata de uma profusão de programas,

projetos e ações sem foco num projeto societário e educacional contra-hegemônico. A intensa

expansão vem se dando no âmbito da educação profissional sem romper, contudo, com o

histórico dualismo. O exemplo mais emblemático situa-se na revogação do Decreto 2.208/97

e a promulgação do Decreto 5.154/04. Decreto, cujo competente relator do parecer no

Conselho Federal de Educação foi o mesmo que relatou o 2.208.12

. As alterações propostas no

ensino médio inovador em 2009, não por acaso, também foram relatadas pelo mesmo

conselheiro ligado historicamente ao Sistema S ( SENAI, SENAC, SESI etc.)13

.

Dentro dos rumos que assumiu o governo Lula, as lutas da década de 1980 que

congregava as forças sociais contra a ditadura e a retomada pela construção de um projeto

nacional popular e da educação básica politécnica, pública, laica, universal, gratuita e unitária

foram sendo diluídas. Não cabe neste artigo, além do que assinalamos, analisar as razões do

porque o rumo assumido pelo governo Lula foi pela conciliação de classes ou pelo avesso do

avesso na análise de Francisco de Oliveira aqui referida14

. Isto, sem dúvida, constitui-se em

profundo golpe para a luta contra-hegemônica do projeto sociedade e de educação dos

movimentos populares e sociais e da classe trabalhadora no seu conjunto.. Todavia, por mais

duro seja o golpe, o risco é de render-se no conjuntural. O alcance da teoria, neste particular, é

decisivo para não derivar para o pessimismo imobilizador ou para o ativismo voluntarista.

Cabe, neste particular, o movimento de inventariar, para além do conjuntural, as

contradições, cada vez mais insanáveis do sistema capitalista no seu conjunto e as

particularidades que as mesmas assumem em nossa realidade; avaliar a força teórico-prática

12

. Ver a esse respeito o balanço de Política da educação básica e profissional do Governo Lula ( Frigotto,

Gaudêncio, Ciavatta, Maria e Ramos, Marise, (2005). 13

. Uma observação sempre necessária a esse respeito é de que os milhares de trabalhadores que vendem sua

força de trabalho nestas instituições constituem-se parte da classe trabalhadora.. O esforço pedagógico é o

mesmo em relação à classe trabalhadora no seu conjunto: processos formativos e educativos que ampliem a

massa de trabalhadores que não só pertencem à classe trabalhadora, mas tem consciência deste pertencimento e

qual é, pois, seu lado de luta. 14

. O leitor que queira ter os pontos básicos da análise que fazemos sobre esta opção e das referências de varias

análises que nos permitem aprofundar a compreensão deste golpe na esperança de mudanças estruturais, pode

consultar o texto Brasil e a política econômico-social: entre o medo e a esperança (Frigotto, 2005).

Page 13: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

13

do movimentos populares e sociais que buscam um projeto social contra-hegemônicos; e,

vislumbrar onde se situa, no campo educacional , no conteúdo, método e forma , os indícios

da contra-hegemonia. Ater-me-ei, aqui , apenas ao último aspecto. Trata-se de buscar

perceber onde se situam processos educativos que, no plano das contradições, desenvolvam

capacidade analítica e afirmação de sujeitos emancipados que qualificam as lutas para a

superação do sistema capitalista.

A educação para além do capital visa uma ordem social qualitativamente diferente.

Agora não só é factível lançar-se pelo caminho que nos conduz a essa ordem como é também

necessário e urgente. Pois as incorrigíveis determinações destrutivas da ordem existente

tornam imperativo contrapor aos inconciliáveis antagonismos estruturais do sistema capital

uma alternativa concreta e sustentável para a regulação da reprodução metabólica social, se

quisermos garantir as condições elementares da sobrevivência humana. O papel da

educação, orientado pela única perspectiva efetivamente viável de ir além do capital, é

absolutamente crucial para esse propósito ( Mészáros, 2005, p. 71-72).

Para este autor os processos educativos que tem a tarefa de ir além do capital

articulam-se, indissociavelmente, ao trabalho associado como criador e reprodutor da vida

biológica e possibilidade de dilatação da emancipação humana. Na realidade brasileira de

hoje encontramos experiências que lutam nesta direção15

. A mais orgânica e ampla e, por isso

a mais combatida pela classe burguesa brasileira, é a do projeto societário e educativo do

Movimento dos Sem Terra. Por articular a educação a mudanças radicais no projeto societário

é ali que vislumbramos os elementos mais avançados de uma educação que busca ira além do

capital e, portanto, contra hegemônica ao projeto social e educacional de capitalismo

dependente no Brasil.

3 – Educação para o campo, no campo e do campo: Alienação ou emancipação?

Vários pensadores filiados à concepção de Marx da realidade nos indicam que a

linguagem e a cultura são parte da materialidade histórica e da disputa contra-hegemônica.

Raymond Williams, ao tratar da relação cultura e sociedade fala-nos da tarefa contra-

hegemônica do que denominou de materialismo cultural.

15

. Por certo os 84 e quatro trabalhos de pesquisa selecionados, partilhados e discutidos no I Seminário de

pesquisa em educação do campo: desafios teóricos e prático, são uma pequena amostra de que há uma

construção capilar contra-hegemônica que segue construindo caminhos..

Page 14: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

14

Podemos então afirmar que a dominação essencial de determinada classe na

sociedade mantém-se não somente, ainda que certamente se for necessário, pelo poder, e não

apenas, ainda que sempre pela propriedade. Ela se mantém também inevitavelmente pela

cultura do vivido: aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, que é

continuamente renovada em todas as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas

e no interior de significados definidos.(( Williams, 2007, p. 14).

As preposições para, no e do campo, aparentemente inocentes, na realidade expressam

na histórica da educação dos homens e mulheres do campo, o vetor entre processos educativos

alienadores, mantenedores da ordem do capital, e processos educativos que pautam o horizonte

da emancipação humana e das formas sociais que cindem o gênero humano. O ponto nodal

aqui não é de nos agarrarmos a um significado semântico destas três preposições e sim o seu

conteúdo histórico e o que ele expressa em termos de disputa no plano educativo.

Educação para o campo e no campo, expressam as concepções e políticas do Estado, ao

longo de nossa história, que se alinham à perspectiva da educação como extensão ou na

perspectiva ruralismo pedagógico16

. Assim educação escolar para o campo constitui-se no

estender modelos e conteúdos e métodos pedagógicos planejados de forma centralizada e

autoritária ignorando a especificidade e particularidade dos processos sociais, produtivos,

simbólicos e culturais da vida do campo.

Por outro lado, educação no campo, mantem o sentido extensionista e cresce-lhes a

dimensão do localismo e particularismo. Trata-se da visão de que as crianças, jovens e adultos

do campo estão destinadas a uma educação menor destinada às operações simples do trabalho

manual e, também com a perspectiva de que permaneceriam para sempre no campo.

Desconhece que os processos produtivos, no campo e na cidade, tendem a “industriar-se” cada

vez mais dentro de uma mesma base tecnológica. Nega-se, nesta perspectiva uma educação

escolar unitária (síntese do diverso) e, portanto, com a universalidade historicamente possível

do conhecimento em todas as esferas e áreas da vida humana, independentemente de residir no

campo ou na cidade.

A denominação de educação do campo engendra um sentido que busca confrontar, há

um tempo, a perspectiva colonizadora extensionista, localista e particularista e as concepções e

métodos pedagógicos de natureza fragmentária e positivistas. Este confronto, que se expressa

na forma semântica, só é possível de ser entendido social e humanamente no processo de

16

. Na coletânea organizada por Jacques Terrien e Maria. N. Damasceno (1993) e no texto de Adônia Prado,

(1995) encontram-se análises que explicitam estas concepções e políticas.

Page 15: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

15

construção de um movimento social e de um sujeito social e político – Movimento dos Sem

Terra (MST) – que disputa um projeto social e educacional contra-hegemônico.

Por buscarem uma leitura histórica e não linear da realidade o processo educativo

escolar articula-se com a luta por uma nova sociedade e por isso com os processos formativos

mais amplos articulando ciência, cultura, experiência e trabalho. Como expressa Caldart (2000,

200ª e 2008) numa obra que se constitui numa primeira grande síntese teórico-prática da

pedagogia do MST trata-se de uma pedagogia que não começa na escola, mas na sociedade e

volta para a sociedade, sendo a escola um espaço fundamental na relação entre o saber

produzido nas diferentes práticas sociais e o conhecimento científico.17

Na educação e pedagogia do campo parte-se da particularidade e singularidade dadas

pela realidade de homens e mulheres que produzem suas vidas no campo. Todavia, não se

postula o localismo e nem o particularismo mediante os quais se nega a construção e o acesso

do conhecimento e de uma universalidade histórica rica, porque síntese do diálogo e da

construção de todos os espaços onde os seres humanos produzem sua vida. Educação e

conhecimento que apontam para uma sociedade sem classes, fundamento da superação da

dominação e alienação econômica, cultural, política e intelectual.

Por certo há contradições, ambiguidades, e lacunas neste processo de travessia onde

velho e novo ainda se misturam. É dentro deste espaço contraditório do velho e do novo que se

explicitam as diferentes experiências de trabalho cooperativo, produção associada e as

diferentes experiências educativas – escola itinerante, pedagogia da alternância, etc., - e que

não podem ser tomadas como modelos naturalizados18

Por isso há desafios a enfrentar no plano do conteúdo, método e forma desses

processos educativos. Desafios que demandam o debate fraterno, sem ortodoxia doutrinária,

porém com radicalidade teórica.. Nesse debate, creio que seu sentido maior do debate vai na

direção doque Raymond Williams sobre a tarefa da crítica militante na luta pela hegemonia

cultural que é aprender e ensinar uns aos outros as conexões que existem entre formação

política e econômica e, talvez, mais difícil, formação educacional e formação de sentimentos

e de relações, que são os nossos recursos em qualquer forma de luta ( Willians, op.cit. p. 15).

17

. Ver, para ampliar este entendimento e sob diferentes aspectos, CALDART (2008), ROCHA e Martins (orgs)

2009) 18

. E dentro deste entendimento que interpreto as ricas e pertinentes reflexões de Célia Regina Vendramini,

intelectual militante que pesquisa questões sociais, culturais e educacionais do campo no debate da exposição

do presente texto na abertura do I Seminário de Pesquisa em educação do Campo: Desafios teóricos e práticos.

Célia apontava, justamente, a necessidade de interrogar e tomar como contraditórias experiências como a da

pedagogia da alternância na medida em que se pode estar sonegando aos jovens do campo tempos outros de sua

formação humana mais ampla.

Page 16: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

16

O primeiro destes desafios, sintetizado por Lênin como intelectual e líder a revolução

socialista de 1917 na Rússia, é de que sem teoria revolucionária não há possibilidade de

projeto revolucionário. Trata-se de aprofundar o método dialético histórico que nos permite,

se bem conduzido, a compreender como a realidade humana se produz e para alem das

aparências d quais as ações que, na sociedade desigualitária que vivemos, se fazem

necessárias para transformá-la.

Da mesma forma que há necessidade de superação dos determinismos e mecanicismos

há que se superar o canto da sereia que seduziu grande parte da esquerda do mundo e

brasileira, o pós-modernismo e sua visão fragmentária do capitalismo tardio. Esta superação

pode constituir-se em instrumental potente para identificar as contradições fundamentais, em

todas as esferas da sociedade e trabalhá-las para o avanço do projeto societário e de educação

escolar e formação científico-técnica contra-hegemônicos do campo e da cidade.

Neste particular é crucial ter em conta o balanço crítico de Florestan Ferandes (1995)

sobre as dificuldades do avanço da luta revolucionária no Brasil. Fernandes sinaliza que o

campo de esquerda tem, por vezes, compensando essas dificuldades pela "exaltação teórica"

ou "revolucionarismo subjetivo". Trata-se, em outros termos, da ênfase no embate teórico e

ideológico, que é fundamental, mas se isolado das lutas sociais concretas em vez de fazê-las

avançar as retarda. .

Uma perspectiva dialética e histórica concorre para que se possa superar a separação

entre educação, escola e sociedade, formação geral e específica e técnica e política. Vale

dizer, superar processos de educação escolar retóricos, generalistas e escolástico ou da

educação escolar dualista, fragmentária e da formação profissional estreita e adestradora que

ensina fazer bem feito e calado o que o mercado, o capital ou a classe dominante necessitam e

mandam fazer.

Definir o conteúdo que permite à criança e jovens do campo construir as bases de

leitura do mundo em todas os campos de conhecimento – por isso que se chama educação

básica – não é tarefa fácil. Implica estudo árduo, como nos lembra Gramsci, organização e

trabalho coletivo. E a base no conhecimento são os conceitos que engendram, em sua unidade,

a compreensão do diverso. Trata-se de explicitar, no plano do pensamento e do conhecimento,

os processos reais da vida em todas as suas dimensões. Trata-se de uma formação politécnica

ou tecnológica que possibilite o desenvolvimento omnilateral (de todas as dimensões) de vida

humana19

19

. Para um aprofundamento da perspectiva da educação politécnica ou tecnológica e ominilateral ver Saviani (

2003) e sobre o embate no Brasil das perspectivas em disputa na educação básica no Brasil ver: Frigotto (1984 e

2003).

Page 17: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

17

E qual o método que mobiliza a criança, o jovem e adulto nos processo formativos e

de aprendizagem? Aqui o risco é do modismo ou de pensar que a “parafernália” técnica é

sinônimo de método ativo. Não se trata de não utilizar tecnologia, mas em que contexto e sob

que base a utilizamos nos processos de construção do conhecimento. O que se pode afirmar é

de que nenhum método pedagógico será efetivo se não atingir o mundo de preocupação, de

necessidade e os saberes e experiências que as criança, jovem e adultos trazem do

aprendizado na vida para o espaço escolar. Este é o ponto de partida e também de chegada

redefinido, ampliado, de qualquer processo pedagógico que tenha em sua base uma

compreensão histórica da realidade e do seu conhecimento. Esta é a lição maior do livro

clássico de Paulo Freire – Pedagogia do oprimido - que traduz a síntese de um tempo

histórico que articulam as lutas por reformas de base no Brasil aos processos formativos e

educativos dos adultos.

A forma ou modo de educar, para ser emancipatório, necessariamente tem que ser

democrático. Neste particular os desafios são de várias ordens. Primeiro o de não confundir

democracia com igualdade matemática. Faz parte do processo educativo entender a diferentes

responsabilidades do ser criança, jovem e adulto e os diferentes tempos destas

responsabilidades. Assim também na relação aluno e professor, escola e comunidade, etc. O

que sustenta uma relação democrática é, sem dúvida, a existência de critérios claros,

explícitos e construídos coletivamente. Pior que um critério precário e não ter critérios, pois ai

impera o autoritarismo.

O desafio se torna mais complexo se não nos dermos conta que somos herdeiros de

uma cultura escravocrata, autoritária e repleta de preconceitos vincados no núcleo constituinte

das sociedades de classe. As denominações de dotado, superdotado, inteligente, não

inteligente são a expressão de mascaramento de oportunidades desiguais, desde o ventre

materno, nas sociedades estruturalmente desiguais. Daí que uma rica diferença entre os seres

humanos só pode desenvolver-se em sociedades que permitam a cada ser humano ter as

mesmas condições de produção da existência e de compreender de que todos tem o dever do

trabalho produtivo não explorado para, em cada tempo histórico, responder às necessidades

vitais, sociais e culturais. Esta internalização ou socialização é crucial desde a infância. E é

este o sentido fundamental que Marx e Engels indicaram do trabalho como princípio

educativo. Sem esta internalização e socialização, como nos indica Gramsci, forma-se

crianças e jovens, particularmente da classe dominante, como fossem mamíferos de luxo.

É também deste pensador italiano de quem o ditador Mussolini desejava parar o

cérebro, podemos retirar duas indicações organicamente relacionadas no horizonte

Page 18: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

18

articulação entre teórica, conteúdo, método e forma dos processos de educação do campo, no

horizonte de um projeto societário contra-hegemônico.

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente grande

descobertas “originais”; significa também, e sobretudo ( grifos meus) difundir criticamente

verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las, portanto, em bases

vitais, em elemento e coordenação de ordem moral e intelectual. (Gramsci, op. cit, p. 13)

Neste primeiro nível do papel do intelectual militante, Gramsci, nos dá uma

diretriz metodológica e didática: Não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos

(variando literariamente a sua forma): a repetição e o meio mais eficaz para agir sobre a

mentalidade popular ( ibid. p. 2)

Todavia, para que haja a possibilidade efetiva de mudanças o desafio dialético e da

efetiva democracia é de qualificar a quantidade, isto é desenvolver processo formativos e

pedagógicos que transforme cada trabalhador do campo e da cidade, em sujeito não somente

pertencente à classe, mas com consciência de classe que lhes indica a necessidade de superar

a sociedade de classes. A tarefa concomitante à primeira é, pois, de trabalhar

incessantemente para elevar intelectualmente as camadas populares cada vez mais vastas,

isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na

criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que

permaneçam em contato com ela para tornarem-se os seus sustentáculos. Esta segunda

necessidade, quando satisfeita, é o que realmente modifica o panorama ideológico de uma

época. (ibid, p.27)

4 - A título de conclusão: por que o MST é criminalizado pela classe dominante

brasileira?

Um inventário de como a grande imprensa brasileira e grande parte de pensamento

político, jurídico e intelectual do Brasil tratam o MST ao longo de suas quase três décadas de

existência, mostra-nos um articulado movimento de demonização e de criminalização. Dois

fatos recentes mostram o crescimento de uma investida sem precedentes, agora dentro dos

aparelhos do Estado. Em 24.06.2008, numa audiência pública, foi revelado o teor da ata do

Ministério Público do Rio Grande do Sul de 10.12.2007 na qual se acusa o MST de estar

promovendo a guerrilha e com apoio externo. Agora, em outubro de 2009, com o apoio

massivo da bancada ruralista e dos representantes dos detentores do capital no Brasil,

instaurou-se a Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso Nacional.

Page 19: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

19

Resposta do sentido mais amplo desta investida a encontramos numa crônica, de rara

clareza e linguagem direta, de Luiz Fernando Veríssimo – Injustiça e desordem ( Veríssimo,

2008), referindo-se ao posicionamento do Ministério Público do Rio Grande do Sul na

referida ata. Crônica que ganha mais sentido agora com a CPI aberta no Congresso.20

Veríssimo inicia seu o texto expondo a posição de Goethe que diante da conturbada

França da Revolução Francesa e do bonapartismo, preferia a injustiça à desordem .

Entrando no mérito da questão agrária na qual o MST é resultado e sujeito que luta para

mudá-la , Veríssimo dá uma resposta aos adeptos da criminalização do MST

Você não pode pensar na questão agrária brasileira, por exemplo, sem cedo ou

tarde ter que se perguntar se prefere a injustiça ou a deserdem.

A injustiça no caso é flagrante e escandalosa. Mesmo que se aceitem todas as teses

sobre o desvirtuamento do movimento dos sem-terra e se acate a demonização dos seus

líderes, militantes e simpatizantes, a dimensão do movimento é uma evidência literalmente

gritante do tamanho da iniqüidade fundiária no Brasil, que ou é uma ficção que milhares de

pessoas resolveram adotar só para fazer barulho, ou é uma vergonha nacional. A iniqüidade

que criou essa multidão de deserdados no país com a maior extensão de terras aráveis do

mundo é a mesma que expulsou outra multidão para as ruas e favelas das grandes cidades,

deixando o campo despovoado para o latifúndio e o agronegócio predatório.

A demora de uma reforma agrária para valer, tão prometida e tão adiada, só agrava

a exclusão e aumenta a revolta. Quem acha que a desordem é pior que a injustiça tem do que

se queixar e a que recorrer (Veríssimo, 2008, p.1

A iniquidade e a desordem agrária têm números oficiais. De acordo com o último

Senso Agrário do IBGE a concentração fundiária aumentou na última década. Os

estabelecimentos rurais que têm mais de mil hectares ocupam 43% do espaço total enquanto

as pequenas propriedades, com menos de 10 hectares, ocupam apenas 2,7% .

Os que preferem a injustiça à desordem, no contexto desta análise, são os que, direta ou

indiretamente, produziram a iniquidade social, um monstrengo social ou uma sociedade

desigualitária sem remissão. O direito universal à vida, que supõe o direito ao trabalho, e, no

caso, o direito à posse da terra, num país continental e de latifúndios, é submetido ao direito

privado e de muitas propriedades em litígio com a lei, como é o caso da empresa de

Sucocítrico Cutrale que se tornou o fato ícone da exploração das grandes redes de televisão e

imprensa escrita para pressionar a CPI. Entretanto, como denuncia o Manifesto Público de

20

. Duas outras crônicas de Veríssimo complementam a visão da iniquidade a que se refere citação abaixo.

Uma sobre O MST e a reforma agrária (Veríssimo 2001) e a outra – Fora Povo – publicada no Jornal Zero

Horas nº 15350 de 03 de agosto de 2007.

Page 20: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

20

intelectuais em defesa do MST, o que imprensa sonega e, com isso escolhe seu lado , é de

que a titularidade das terras da empresa é contestada pelo Incra e pela Justiça. Trata-se de

uma grande área chamada Núcleo Monções, que possui cerca de 30 mil hectares. Desses 30

mil hectares, 10 mil são terras públicas reconhecidas oficialmente como devolutas e 15 mil

são terras improdutivas. Ao mesmo tempo, não há nenhuma prova de que a suposta

destruição de máquinas e equipamentos tenha sido obra dos sem-terra.

Do mesmo modo a criminalização do projeto educacional do MST é criminalizado e

por todos os meios se tenta inviabilizá-lo, resulta do fato de que o mesmo o articula, sem

rodeiros, a um projeto de classe contra-gemônico. Uma luta de uma sociedade humanamente

emancipada com uma educação emancipadora. Ou como assinala Mézaros: (...) apenas

dentro de uma perspectiva de ir além do capital, o desafio de universalizar o trabalho e a

educação, em sua indisolubilidade, surgirá na agenda histórica. ( Mészáros, op. cit. P.68) .

Por certo, se fosse um projeto corporativo e não de classe, não mercaria, certamente, a

criminalização. O que incomoda, e isso sinaliza o seu avanço qualitativo e quantitativo, é de

que este horizonte se coloca para a classe trabalhadora. A criminalização se radica no fato de

que milhares de jovens e adultos, em todo o Brasil, em universidades e instituições públicas

tem a oportunidade de, como trabalhadores e militantes, qualificar suas lutas e direitos21

. O

medo é que isso vá tomando corações e mentes na convicção de que a educação e a ciência

somente podem desempenhar o seu genuíno papel se articuladas permanentemente à luta pela

construção da República do Trabalho. Nela, a terra, as máquinas, a ciência, o conhecimento,

a cultura, a educação a arte são meios pata qualificar a vida em todas as suas dimensões e não

propriedade privada para mutila-la.

Os que preferem a injustiça à desordem é que gostariam que todos pensassem que as

relações sociais capitalistas não são histórica, mas naturais – ou elas representam o ideal e o

fim da história. O que incomoda é que o MST pauta o que historiador Eric Hobsbawm

assinala depois da derrota do socialismo real – não o fim da história, mas o convite para

renascer das cinzas.

Os socialistas estão aqui para lembrar ao mundo que em primeiro lugar devem vir

as pessoas e não a produção. As pessoas não podem ser sacrificadas. ( ...)Especialmente

aquelas que são apenas pessoas comuns. (...) É delas que trata o socialismo; são elas que o

socialismo defende. (Hobsbawm, 1992:268) E isto implicará uma investida contra as

fortalezas centrais da economia de mercado de consumo. Exigirá não apenas uma sociedade

21

. A inscrição de mais de 150 trabalhos e experiências de pesquisa sobre educação do campo e seus desafios

teóricos e práticos é uma amostra do que estamos sinalizando.

Page 21: Projeto societario contra hegemonico educacao do  campo

21

melhor que a do passado, mas como sempre sustentaram os socialistas, um tipo diferente de

sociedade. (...) É por esse motivo que (o socialismo) ainda está no programa. (ibid. p. 270)

Um projeto societário contra-hegemônico que busque efetiva sustentabilidade à vida

humana com igualdade de condições e proteja suas bases ambientais demandam processos

educativos, em todas as esferas da práxis humana, e, em particular, no chão da escola pública

do campo e da cidade que desenvolva conhecimentos, saberes e valores vinculados à utopia

da superação das relações sociais capitalistas que privatizam o que é de toda a humanidade. É

neste sentido que o socialismo está em pauta e é por isso que Hobsbawm, no projeto para

renascer das cinzas, com o acumulo de conhecimento e experiência e o testemunho de quase

um século de vida nos mostra que o “desenvolvimento sustentável” não pode operar através

do mercado, mas deve operar contra ele. Por certo, este horizonte é de todo ao contrário do

que apregoa a ideologia e os processos educativos e de conhecimento dominantes e por isso

combatido e criminalizado.

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