programa bolsa família: efeitos no desempenho escolar e na

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LUÍS CARLOS SANTOS OLIVEIRA PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: EFEITOS NO DESEMPENHO ESCOLAR E NA SUPERAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIÁRIOS EM FEIRA DE SANTANA-BA (2006-2012) Feira de Santana-Ba 2014

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    LUS CARLOS SANTOS OLIVEIRA

    PROGRAMA BOLSA FAMLIA: EFEITOS NO

    DESEMPENHO ESCOLAR E NA SUPERAO DA

    VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIRIOS EM

    FEIRA DE SANTANA-BA

    (2006-2012)

    Feira de Santana-Ba

    2014

  • LUS CARLOS SANTOS OLIVEIRA

    PROGRAMA BOLSA FAMLIA: EFEITOS NO

    DESEMPENHO ESCOLAR E NA SUPERAO DA

    VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIRIOS EM

    FEIRA DE SANTANA-BA

    (2006-2012)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Educao da Universidade Estadual de

    Feira de Santana, como requisito para a obteno do grau

    de Mestre em Educao, sob a orientao da Prof Dr

    Antonia Almeida Silva.

    Feira de Santana-Ba

    2014

  • Ficha Catalogrfica Biblioteca Central Julieta Carteado

    Oliveira, Lus Carlos Santos

    O48p Programa Bolsa Famlia : efeitos no desempenho escolar e na superao

    da vulnerabilidade social de beneficirios em Feira de Santana-BA (2006-

    2012) / Lus Carlos Santos Oliveira. Feira de Santana, 2014.

    147 f. : il.

    Orientadora: Antonia Almeida Silva.

    Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Feira de Santana, Programa

    de Ps-Graduao em Educao, 2014.

    1. Educao Polticas sociais. 2. Desempenho escolar. 3. Programa Bolsa

    Famlia Feira de Santana, BA. I. Silva, Antonia Almeida, orient. II. Universidade

    Estadual de Feira de Santana. III. Ttulo.

    CDU: 37:304(814.22)

  • LUIS CARLOS SANTOS OLIVEIRA

    PROGRAMA BOLSA FAMLIA: EFEITOS NO DESEMPENHO ESCOLAR E NA

    SUPERAO DA VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIRIOS EM FEIRA DE

    SANTANA-BA

    (2006-2012)

    Trabalho apresentado para Defesa de Dissertao, como requisito para obteno do grau de

    Mestre em Educao, tendo a seguinte banca examinadora:

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Antonia Almeida Silva Orientadora

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Maria Cristina Dantas Pina UESB

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante UEFS

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Fani Quitria Nascimento Rehem UEFS

    Feira de Santana, 13 de agosto de 2014.

    Resultado: __________________________________

  • Dedico este trabalho primeiramente aos meus

    avs Teodoro e Maria (in memorian), minha

    me Bernadete e ao meu irmo Wellington.

    Dedico tambm aos milhares de beneficirios

    do Programa Bolsa Famlia, estes homens e

    mulheres que cotidianamente lutam pela

    sobrevivncia em um pas que tem em sua

    histria a marca da desigualdade.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradecer reconhecer que no vivemos nem caminhamos ss. E mais, que no

    processo de construo e constituio humana o outro tem importante papel. O homem como

    ser social ao se relacionar constri e reconstri conhecimentos, sejam eles cientficos ou no.

    Os primeiro passos em direo ao ingresso no Programa de Ps-graduao em Educao da

    Universidade Estadual de Feira de Santana comearam com o incentivo aos estudos por

    pessoas que mesmo no estando fisicamente presentes foram os principais responsveis pela

    minha constituio enquanto profissional e, principalmente, enquanto homem.

    Ao dedicar este momento aos agradecimentos o fao em primeiro lugar Deus, fora

    espiritual que guia e fortalece nos momentos em que nos encontramos diante de barreiras que

    se apresentam intransponveis. Aos meus avs Teodoro e Maria que, embora no estejam

    presentes fisicamente, com seus legados de patriarca e matriarca de uma extensa famlia

    souberam exemplarmente nos mostrar o caminho da honestidade, perseverana, altrusmo,

    dentre tantas outras qualidades que, mais do que ensinar, demonstraram coerentemente ao

    longo de suas vidas. minha me que, demonstrando preocupao com as diversas vezes que

    me via altas horas da madrugada estudando, cuidadosamente me pedia para descansar.

    Exemplo da mulher guerreira brasileira. Ao meu irmo Wellington pelo cuidado ao longo

    desses anos no mestrado, sempre se preocupando quando por diversas vezes via-me cansado

    diante das longas jornadas de trabalho e estudo.

    minha orientadora, professora Antonia Almeida Silva, que mesmo diante das

    dificuldades encontradas para concluso deste trabalho acreditou que seria possvel realizar o

    estudo. Exemplo de profissional coerente e comprometida com a profisso mostrou, ao longo

    destes anos, por meio de sua prtica o que ser professor e a importncia da pesquisa no

    processo constante da formao docente. Obrigado por acreditar e me fazer acreditar que seria

    (e foi) possvel.

    s professoras Maria Cristina Dantas Pina, Ludmila Cavalcanti e Fani Quitria por

    aceitar participar como membros da banca de defesa, dedicando seu tempo leitura deste

    trabalho e pelas importantes contribuies ao desenvolvimento da pesquisa e ao processo de

    crescimento e amadurecimento enquanto pesquisador.

    Neste processo de insero no mundo da pesquisa cientfica os dilogos estabelecidos

    com algumas pessoas contriburam tambm para a escrita da dissertao. Agradeo ao

    primo/irmo Adriano pela companhia e pelas altas conversas madrugada adentro, alm das

  • contribuies com livros cujas marcas dissolvem-se ao longo do texto. A Val pelo apoio e

    colaborao tanto nos momentos de desabafo quanto de descontrao importantes para

    quebra de tenso.

    turma 2 do Mestrado cujos debates em sala de aula foram importantes para uma

    melhor compreenso das teorias que nos ajudam a compreender a realidade e, em especial, a

    educao. Neste movimento no poderia deixar de agradecer a contribuio dos professores

    que a partir de perspectivas tericas diversas foram fundamentais para a escrita do presente

    texto: Denise, Ludmila, Marinalva e Wellington, espero encontr-los mais vezes nas incurses

    pela pesquisa cientfica.

    Embora tenha ingressado na segunda turma do mestrado, o contato com a terceira

    turma assim como nas discusses em sala de aula os debates ps-aula foram enriquecedores,

    tanto teoricamente quanto em termos de confraternizao e celebrao da vida. Neste

    processo o Quatro Estaes se configurou como palco privilegiado de troca e construo de

    conhecimentos como tambm de descontrao.

    No poderia deixar de reconhecer a importncia dos funcionrios da secretaria do

    Mestrado Hlio e Aletheia pelo apoio dado para o cumprimento dos prazos e desenvolvimento

    dos trabalhos. Assim como o apoio prestado pela professora Mirela enquanto representante da

    coordenao do PPGE/UEFS.

    Por fim, e no menos importante, agradeo a colaborao da equipe da unidade escolar

    onde foi realizada a coleta de dados desta pesquisa em especial a diretora da escola e as

    funcionrias que trabalham na secretaria. Agradecimento especial s mes beneficirias do

    Programa Bolsa Famlia que aceitaram participar das entrevistas e cujos depoimentos foram

    de grande relevncia para compreenso do objeto de estudo.

    Ciente de que posso ter deixado de mencionar a contribuio de vrias outras pessoas,

    deixo aqui os sinceros agradecimentos a todos que direta ou indiretamente ajudaram-me no

    processo de formao enquanto professor-pesquisador.

    Muito obrigado!

  • Em perspectiva histrica ampla, a sociedade em movimento apresenta-se como uma vasta

    fbrica das desigualdades e antagonismos que constituem a questo social. A prosperidade da

    economia e o fortalecimento do aparelho estatal parecem em descompasso com o

    desenvolvimento social. Isto , a situao social de amplos contingentes de trabalhadores

    fabrica-se precisamente com os negcios, a reproduo do capital. As dificuldades agudas da

    fome e desnutrio, a falta de habitao condigna e as precrias condies gerais de sade so

    produtos e condies dos mesmos processos estruturais que criam a iluso de que a economia

    brasileira moderna, ou que o Brasil j a oitava potncia econmica do mundo ocidental e

    cristo. (IANNI, 1994, p. 92)

  • RESUMO

    A presente pesquisa problematizou a relao estabelecida entre o Programa Bolsa Famlia

    PBF - e a educao no sentido de compreender se o mesmo exerce efeitos na vida escolar de

    seus beneficirios, bem como seus possveis efeitos na superao da situao de

    vulnerabilidade social de famlias beneficirias. O estudo foi orientado pela seguinte questo:

    quais as diretrizes do PBF para a educao e em que medida elas se efetivam como

    mecanismos operatrios no desempenho escolar dos beneficirios e na promoo da

    superao da vulnerabilidade social? Em face desta questo, a pesquisa teve por objetivo

    analisar se e como o Programa Bolsa Famlia gera efeitos no desempenho escolar e na

    superao da situao de vulnerabilidade social das famlias beneficirias. Com o aporte

    metodolgico da pesquisa qualitativa e por meio da anlise de contedo, a pesquisa utilizou

    como instrumentos de coleta de dados fontes documentais como atas de resultados finais dos

    estudantes entre os anos 2006 e 2012, listas de estudantes beneficirios na unidade escolar

    entre 2006 e 2012, legislao referente ao PBF e avaliaes realizadas pelo Ministrio do

    Desenvolvimento Social. Alm das fontes documentais foram realizadas entrevistas

    semiestruturadas com cinco mes de estudantes beneficirios, selecionadas entre as que

    possuam maior tempo no Programa, bem como aplicao de questionrio direo da escola.

    O campo de coleta de dados ocorreu na unidade escolar cujo cognome adotado para a

    pesquisa foi Caminho das Letras, localizada no municpio de Feira de Santana-Ba. Algumas

    categorias de anlise foram importantes no movimento de compreenso do objeto de pesquisa,

    sendo elas a concepo de pobreza e vulnerabilidade social. Sob uma perspectiva crtica da

    anlise de nossas polticas sociais, em especial das polticas focalizadas, entre as quais se

    insere o PBF, no sentido de explorar as contradies inerentes mesmas, o quadro terico

    associado s fontes consultadas, permitem inferir que na contramo das garantias sociais

    anunciadas pela Constituio de 1988, a vinculao da educao como condicionalidade do

    Programa Bolsa Famlia, insere-se no contexto das polticas neoliberais que ganham corpo em

    nosso pas na dcada de 90 do sculo passado, tendo por influncias marcantes na rea

    educacional a vinculao da educao como preparao para o trabalho e qualificao de mo

    de obra como meio de ativao para o mercado de trabalho. Os resultados da pesquisa

    evidenciaram que as taxas de abandono escolar dos estudantes beneficirios apresentaram

    declnio no perodo investigado. Estabelecendo comparao entre estudantes beneficirios e

    no beneficirios na unidade escolar, constataram-se tambm entre os estudantes beneficirios

    altas taxas de reprovao alm de taxas de abandono superiores s dos estudantes

    beneficirios em todos os anos analisados. Acompanhando especificamente o desempenho

    dos filhos das cinco mes entrevistadas constatou-se entre os mesmos a recorrncia de

    abandono escolar e alta taxa de reprovao escolar.

    Palavras-chave: Programa Bolsa Famlia, educao, pobreza, vulnerabilidade social.

  • ABSTRACT

    This research problematized the relationship between the Bolsa Familia Program - PBF - and

    education in order to understand whether it has effects in the school life of its beneficiaries as

    well as their possible effects in overcoming the social vulnerability of beneficiary families.

    The study was guided by the following question: what are the guidelines of GMP for

    education and to what extent they become effective and operative mechanisms in the school

    performance of the beneficiaries and the promotion of overcoming social vulnerability? In the

    face of this question, the research aimed to examine whether and how the Bolsa Famlia

    Program generates effects on school performance and overcoming the social vulnerability of

    the beneficiary families. With the methodological approach of qualitative research and by

    means of content analysis, the research used as instruments for data collection documentary

    sources as minutes of final results of students between 2006 and 2012 lists of beneficiaries

    students at schools between 2006 and 2012, legislation related to GMP and evaluations

    conducted by the Ministry of Social Development. Apart from documentary sources

    semistructured interviews were conducted with five mothers of beneficiary students, selected

    among those having more time in the program, as well as a questionnaire to school officials.

    Field data collection occurred at schools whose cognomen was adopted for the research Way

    of Letters, in the city of Feira de Santana, Bahia. Some categories were important in

    understanding the movement of the object of research, they being the conception of poverty

    and social vulnerability. From a critical perspective of the analysis of our social policies,

    especially targeted policies, among which enters the PBF, to explore the contradictions

    inherent in the same, the theoretical framework associated to source data allow us to infer that

    the opposite of guarantees social announced by the Constitution of 1988, linking education as

    conditionality of Bolsa Famlia, is within the context of neoliberal policies gain traction in our

    country in the 90s of last century, with the notable influences in education linking the

    education as preparation for work and qualification of manpower as a means of activation for

    the labor market. The survey results showed that the dropout rates of students beneficiaries

    showed decline in the investigated period. Establishing a comparison between beneficiaries

    and non students at schools, it was also found between high student beneficiaries failure rates

    beyond dropout rates higher than those of students beneficiaries in all years analyzed.

    Specifically following the performance of the five children interviewed mothers was found

    between the same recurrence and high dropout rate of school failure.

    Keywords: Bolsa Familia Program, education, poverty, social vulnerability.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Mapa localizao Feira de Santana-Ba .................................................................. 71

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Quantitativo de matrculas (2006 a 2012) .............................................................. 74

    Tabela 2: Nmero de Matrculas na Educao Bsica por Dependncia Administrativa........75

    Tabela 3: IDEB-FEIRA DE SANTANA (Anos finais do ensino fundamental) .....................76

    Tabela 4: IDEB-BAHIA (Anos finais do ensino fundamental) ..............................................76

    Tabela 5: IDEB-BRASIL (Anos Finais do Ensino Fundamental) ......................................... 77

    Tabela 6: IDEB - Unidade Escolar Caminho das Letras (Anos finais do ensino fundamental)..

    .................................................................................................................................................. 77

    Tabela 7: Caractersticas das mes participantes da pesquisa ............................................... 90

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: Folha de Pagamento Bolsa Famlia por Estado maio/2012 ................................19

    Quadro 2: Feira de Santana: estabelecimentos de ensino por dependncia administrativa ....73

    Quadro 3: Feira de Santana: matrculas por dependncia administrativa ..............................73

    Quadro 4: Desempenho escolar dos estudantes beneficirios (2007-2009) .........................110

    Quadro 5: Desempenho escolar dos estudantes beneficirios (2010-2012) .........................110

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    BE Bolsa Escola

    BF Bolsa Famlia

    BM Banco Mundial

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CEE Comunidade Econmica Europeia

    CEP Comit de tica em Pesquisa

    CEPAL Comisso Econmica Para A Amrica Latina E O Caribe

    DASAGI Departamento de Avaliao da Secretaria de Avaliao e Gesto da

    Informao

    EJA Educao de Jovens e Adultos

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    MDS Ministrio do Desenvolvimento Social

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PBE Programa Bolsa Escola

    PBF Programa Bolsa Famlia

    PRM Programas de Renda Mnima

    PTR Programa de Transferncia de Renda

    UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana

    UFBA Universidade Federal da Bahia

  • UnB Universidade de Braslia

    UNEB Universidade do Estado da Bahia

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ......................................................................................................... 18

    2. POBREZA, VULNERABILIDADE SOCIAL E PROGRAMAS DE RENDA

    MNIMA: RELAES E CONTRADIES.................................................................... 31

    2.1. CONCEPES DE POBREZA E A SUA PRODUO/REPRODUO .............. 31

    2.2. A POBREZA NO BRASIL: DIMENSES HISTRICAS E POLTICAS............... 41

    2.3. VULNERABILIDADE SOCIAL COMO CATEGORIA DE ANLISE DO

    COMBATE A POBREZA....................................................................................................... 45

    2.4. RENDA MNIMA COMO POLTICA PBLICA NO BRASIL: CONCEPES E

    AES A PARTIR DA DCADA DE 1990.......................................................................... 48

    2.5. DO PROGRAMA BOLSA ESCOLA AO BOLSA FAMLIA: CONSOLIDAO

    DAS POLTICAS FOCALIZADAS....................................................................................... 51

    3. BOLSA FAMLIA E PERSPECTIVAS EDUCACIONAIS:

    CONDICIONALIDADES E ESTRATGIAS DE OPERACIONALIZAO............... 58

    3.1. AS CONCEPES DE EDUCAO E AS PERSPECTIVAS DE EMANCIPAO

    DO PBF.................................................................................................................................... 58

    3.2. GESTO DO ACOMPANHAMENTO DA CONDICIONALIDADE

    EDUCAO........................................................................................................................... 64

    3.3. AVALIAES E CUMPRIMENTO DA CONDICIONALIDADE EDUCAO...

    ...................................................................................................................................................67

    4. FEIRA DE SANTANA E O DESEMPENHO ESCOLAR DE ESTUDANTES

    BENEFICIRIOS.................................................................................................................. 71

    4.1. FEIRA DE SANTANA: A PRINCESINHA DO SERTO E O CENRIO DA

    POBREZA............................................................................................................................... 71

    4.2. A ESCOLA E OS INDICADORES EDUCACIONAIS: INTERFACES COM O

    CENRIO MUNICIPAL......................................................................................................... 74

    4.3. CRUZANDO DADOS: DESEMPENHO ESCOLAR DE ESTUDANTES

    BENEFICIRIOS E NO BENEFICIRIOS........................................................................ 80

    5. EFEITOS DO PROGRAMA BOLSA FAMLIA NA VIDA DE SEUS

    BENEFICIRIOS ................................................................................................................. 88

  • 5.1. OS SUJEITOS DAS ENTREVISTAS: PRIMEIROS CONTATOS .......................... 88

    5.2. ARRIMO DE FAMLIA: PERFIL DAS MES BENEFICIRIAS DA

    PESQUISA............................................................................................................................... 89

    5.3. O LUGAR DA TRANSFERNCIA DE RENDA NA VIDA DOS BENEFICIRIOS

    .................................................................................................................................................. 93

    5.4. EDUCAO PARA QU? RELAO ENTRE AS FAMLIAS E A

    ESCOLA.................................................................................................................................100

    5.5. PROBLEMAS EDUCACIONAIS NA VISO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ..

    .................................................................................................................................................105

    5.6. APROXIMANDO OLHARES: ANALISANDO O DESEMPENHO ESCOLAR DE

    DEZ ESTUDANTES BENEFICIRIOS.............................................................................. 109

    6. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 115

    7. REFERNCIAS ...................................................................................................... 121

    8. FONTES DOCUMENTAIS ................................................................................... 127

    9. APNDICES ................................................................................................................................................. 130

  • 18

    1. INTRODUO

    O presente trabalho Programa Bolsa Famlia: efeitos no desempenho escolar e na

    superao da vulnerabilidade social de beneficirios em Feira de Santana-Ba (2006-2012) pe

    em relevo a relao entre o Programa Bolsa Famlia e o desempenho escolar de seus

    beneficirios do municpio de Feira de Santana-Ba, bem como problematiza relao entre

    educao e sada da situao de vulnerabilidade das famlias pertencentes ao Programa.

    Constituindo-se atualmente uma das polticas de maior alcance no Brasil, o Programa

    Bolsa Famlia PBF foi criado no ano de 2003, a partir da unificao dos Programas Bolsa

    Escola, Bolsa Alimentao e Auxlio gs, completando em 2013 dez anos de existncia. De

    acordo com a Lei 10.836 de 09 de janeiro de 2004 (BRASIL, 2004), o Bolsa Famlia BF -

    tem por objetivos a promoo do acesso rede de servios pblicos, em especial, de sade,

    educao e assistncia social; o combate a fome e promoo da segurana alimentar e

    nutricional; o estmulo emancipao sustentada das famlias que vivem em situao de

    pobreza e extrema pobreza e o combate a pobreza.

    Enquanto Programa de Transferncia Direta de Renda - PTR, o PBF se prope a

    beneficiar famlias em situao de pobreza e de extrema pobreza no Brasil. A transferncia de

    renda, as condicionalidades e programas complementares constituem seus trs principais

    eixos de atuao. Segundo os termos do Programa a transferncia de renda tem por finalidade

    o alvio imediato da pobreza. J as condicionalidades so situadas como contrapartidas dos

    beneficirios tanto para a incluso quanto para a permanncia no Programa e como tal

    vinculam o acesso ao benefcio a uma pauta de obrigaes em relao a direitos sociais

    bsicos nas reas de educao, sade e assistncia social. Os programas complementares, por

    sua vez, apresentam-se como meios para o desenvolvimento das famlias tendo em vista a

    superao da situao de vulnerabilidade.

    Segundo o Ministrio do Desenvolvimento Social - MDS, o Programa Bolsa Famlia

    atende mais de 13 milhes de famlias1. Em dez anos de existncia, o PBF vem se

    constituindo como programa de transferncia de renda de maior alcance em termos de

    populao atendida.

    1 Disponvel em: Acesso em 25 de mai. de 2014.

    http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2012/maio/bolsa-familia-inclui-novos-beneficiarios-em-maiohttp://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2012/maio/bolsa-familia-inclui-novos-beneficiarios-em-maio

  • 19

    Quadro 1: Folha de Pagamento Bolsa Famlia por Estado maio/2012

    Estado Famlias Total

    AC 68.843 9.774.520,00

    AL 428.484 53.022.944,00

    AM 322.170 44.782.274,00

    AP 51.773 7.403.038,00

    BA 1.778.406 212.610.431,00

    CE 1.095.955 130.649.826,00

    DF 85.190 9.225.892,00

    ES 192.234 22.626.416,00

    GO 337.435 39.869.004,00

    MA 940.458 121.070.263,00

    MG 1.166.787 137.509.774,00

    MS 136.641 16.425.546,00

    MT 175.497 21.019.508,00

    PA 791.848 106.039.438,00

    PB 499.642 59.438.286,00

    PE 1.139.185 135.216.519,00

    PI 446.770 53.450.305,00

    PR 436.750 50.238.510,00

    RJ 745.476 88.858.796,00

    RN 357.123 42.170.010,00

    RO 113.753 14.201.362,00

    RR 46.777 6.353.831,00

    RS 449.248 53.166.586,00

    SC 138.388 16.502.566,00

    SE 263.618 31.978.209,00

    SP 1.186.610 137.358.984,00

    TO 134.975 16.701.596,00

    Total Geral 13.530.036 1.637.664.434,00 Fonte: MDS

    O quadro acima nos d uma viso no apenas do alcance do programa em termos de

    famlias atendidas, mas, principalmente, da distribuio das famlias atendidas no Brasil,

    reflexo das desigualdades existentes entre as diversas regies deste pas de dimenses

    continentais. Embora seja o estado da federao com a maior populao absoluta2, So Paulo

    2 De acordo com o Censo do IBGE, em 2010 o estado de So Paulo contava com 41.262.199 de habitantes, a

    Bahia com 14.016.906 e Pernambuco com 8.796.448 de habitantes. Disponvel em <

    http://www.ibge.gov.br/estadosat/> Acesso em 25 de mai. de 2014.

    http://www.ibge.gov.br/estadosat/

  • 20

    ocupa a segunda posio em termos de nmero de famlias atendidas. O estado da Bahia,

    embora ocupe o quarto lugar no Brasil em termos populacionais, o estado que mais possui

    famlias beneficirias do Programa, com 1.778.406 famlias. Alm da Bahia, mais dois

    estados da regio nordeste do pas ultrapassam a casa de um milho de famlias beneficirias,

    Pernambuco e o Cear, com 1.139.185 e 1.095.955 de famlias, respectivamente.

    Apesar do alcance do PBF em termos de famlias atendidas, as interpretaes sobre o

    mesmo, longe de se mostrarem unssonas, vm sendo marcadas por dissensos. Verifica-se

    nesse cenrio, de um lado aqueles que aprovam e apoiam a iniciativa, justificando a

    capacidade de melhoria nas condies de vida das famlias beneficirias (muitas das quais tm

    nessa fonte a nica renda familiar); outros pela capacidade de movimentao dos comrcios e

    servios locais, contribuindo para a gerao do que chamam de novos postos de trabalho; os

    que consideram o potencial do recurso monetrio recebido promover empoderamento das

    mulheres beneficirias, alm daqueles que defendem a capacidade de manter estudantes na

    escola e o carto de vacinao dos filhos em dia.

    Neste cenrio, algumas produes acadmicas tm problematizado o Programa a partir

    da concepo de sociedade a que se prope. Dentre eles Lazani (2011) ressalta alguns

    detalhes ideolgicos na formulao do PBF. Primeiramente, por destinar-se s famlias pobres

    e extremamente pobres, caracterizando-o como um programa assistencial, carregado de

    estigma, e que por isso se distancia da capacidade de diminuir as desigualdades bem como

    promover aumento de segurana entre todas as classes, visto que, para ser beneficirio,

    necessrio que a famlia esteja na base mais baixa da pirmide social. Segundo, defende que

    transferncia de renda um mecanismo de alvio imediato da pobreza e no um mecanismo

    permanente de reduo de desigualdades mais abrangente. Terceiro, acredita que a reduo da

    concentrao de renda, quase insignificante, no diz respeito apenas ao do Bolsa Famlia.

    Por fim, afirma desconhecer evidncia emprica de que os beneficirios consigam postos de

    trabalho mais qualificados, o que, segundo ele, contradiz o propsito do Programa de

    promover emancipao dos beneficirios (LAZANI, 2011).

    A discusso sobre a possibilidade do PBF se configurar em instrumento de

    distribuio de renda considerada por Lazani (2011) como um paradoxo, visto que para ele,

    apesar de ter um peso relativamente importante na diminuio da pobreza e da misria

    extrema, sozinho incapaz de produzir transformaes mais substanciais a mdio e longo

    prazo. Ainda segundo o autor, em que pese o valor transferido, considerado pequeno, e da

    instabilidade de permanncia no Programa, o mesmo vem representando um alvio material

    significativo para as famlias das regies mais pobres do pas, o que leva apreender o PBF

  • 21

    nas suas contradies, nos seus limites e possibilidades de combater a pobreza imediata, assim

    como da possibilidade de se expandir para o conceito de cobertura financeira nos moldes

    universal, como defendido por Lazani (2011) e Silva (2007).

    Tal intepretao tambm levou Silva (2006) a tecer algumas crticas, classificando-o

    como um programa que se aproxima de uma orientao poltica neoliberal e assistencial.

    Segundo ela, os resultados alcanados no parecem ser capazes de ultrapassar a manuteno

    das grandes desigualdades sociais e parecem se direcionar para a criao de um estrato de

    pobres situados num patamar de indigncia ou mera sobrevivncia, com impactos duvidosos

    sobre a interrupo do ciclo vicioso de reproduo da pobreza (SILVA, 2007, p. 38).

    Para Silva (2007), embora o Programa Bolsa Famlia tenha sido importante na

    unificao dos Programas de Transferncia de Renda existentes e muito j ter feito em termos

    de nmero de atendimentos e de recursos investidos, alguns obstculos ainda se colocam tanto

    no que se refere execuo da proposta, quanto modificao de uma cultura ainda

    persistente em alguns lugares de prticas clientelistas e conservadoras e quanto necessidade

    de alterar substancialmente o quadro de pobreza, sobretudo quando se trata da questo de

    promoo da autonomia das famlias.

    Neste mesmo movimento, Ferreira (2010), objetivando desenvolver uma anlise do

    PBF na compreenso do perfil de poltica social do programa, concluiu que a massificao

    do PBF no significou alterao qualitativa substancial na sua natureza de programa

    focalizado, seletivo e compensatrio, inspirado em pressupostos neoliberais (FERREIRA,

    2010, p. 130). Assim como Lazani (2011), autores como Silva (2006) e Silva (2007) associam

    tambm o Programa concepo de poltica social marcada pela influncia da perspectiva

    neoliberal, acreditando que sequer consegue responder s necessidades mais elementares de

    subsistncia das famlias.

    Em perspectiva analtica diversa, Bichir (2010), considera que a participao dos

    adultos no mercado de trabalho maior entre os beneficirios do que no restante da

    populao. Embora a autora busque no mercado de trabalho a justificativa para localizar o

    sucesso do PBF, tal defesa esconde armadilhas dentre as quais a que diz respeito ao tipo de

    trabalho que estes beneficirios esto sujeitos, tendo em vista que para continuar no Programa

    existe um patamar de renda per capta que, ultrapassado, implica em sua excluso. Assim, se

    esto no mercado de trabalho e ainda com as condies exigidas para continuar recebendo o

    benefcio, depreende-se que esto sujeitos a postos e condies de trabalho precrios,

    incapazes de promover a sada deste trabalhador da situao de vulnerabilidade.

  • 22

    A autora supracitada reconhece ainda que o PBF um programa bem focalizado e com

    cobertura de grande flego. Entretanto, questiona as potencialidades e as limitaes do

    Programa em termos de seus impactos sobre a reduo da pobreza e da desigualdade,

    acreditando que o debate deve apontar para a necessidade de articulao do Programa com

    outras polticas sade, educao, gerao de emprego e renda, entre outras (BICHIR,

    2010).

    Weissheimer (2006) levanta alguns questionamentos referentes possibilidade de um

    programa como o BF ser implementado como uma poltica eficaz de reduo das

    desigualdades sociais a partir de solues clssicas de mercado. Em que pese a pertinncia do

    questionamento feito pelo autor no que concerne s possibilidades do Programa promover

    reduo das desigualdades sociais, o mesmo justifica o sucesso do Programa por meio de

    afirmaes de rgos comprometidos com a reproduo da estrutura de produo capitalista,

    como o Banco Mundial BM. Dentre as justificativas do sucesso do PBF apontado pelo autor

    encontra-se a do presidente do BM: antes de tudo estou impressionado com as dificuldades

    pelas quais passam essas pessoas, como trabalham duro, e o esforo que fazem para ter uma

    dignidade to alta em face das circunstncias (WEISSHEIMER, 2006, p. 49). Entretanto,

    rgos como o BM so corresponsveis pela estrutura de desigualdades s quais famlias

    como as beneficirias pelo PBF esto sujeitas.

    Rego (2013, p. 13), por sua vez, acredita que as mes beneficirias passaram a ser

    sujeitos de relativo empoderamento realizado por meio do dispositivo de transferncia de

    renda. E que, ao garantir a sobrevivncia dos beneficirios, o Programa Bolsa Famlia resulta

    na humanizao de seus destinatrios, a qual representa, a seu ver, um passo necessrio e

    decisivo no seu processo de autonomizao. Entretanto, estudos como estes, que tomam a

    transferncia monetria de recursos como capazes de dar poder s mes beneficirias, no

    problematizam os limites deste poder na sociedade capitalista. Pauta-se, assim, em uma

    liberdade de compra ilusria que destoa da concepo de liberdade defendida no presente

    trabalho, sobre a qual falaremos adiante.

    Os estudos acima apontam para quadros distintos em termos de anlise do Programa

    visto que enquanto alguns salientam os aspectos imediatos causados na vida material de seus

    beneficirios, outros vo alm do como o Programa se apresenta para verificar as bases

    ideolgicas em que se assentam e, por assim dizer, lgica de organizao enquanto poltica

    social em contexto neoliberal. Neste sentido, a anlise de polticas e programas sociais requer

    ateno especial aos interesses que esto por trs das aes dos governos, visto que tanto a

    criao como a implementao de programas carregam consigo intencionalidades daqueles

  • 23

    que se encontram envolvidos no processo. Esta reflexo se aplica tambm ao Bolsa Famlia

    que no lugar de uma poltica de Estado3 constitui-se ainda como poltica de governo, visto que

    o mesmo, da forma como operado, no se constitui uma proposta que compromete

    diferentes agentes da sociedade civil e da sociedade poltica no delineamento de polticas

    sociais sistmicas mas caracteriza-se como um programa pontual que, apesar de aes

    objetivas, vem sendo relacionado a conjunturas e prticas polticas de governos especficos.

    Neste sentido, apresenta-se como um programa emergencial e sem garantias de continuidade.

    Os dissensos presentes nos argumentos sobre o PBF, a exemplo da concepo acima,

    revelaram-se tambm presentes nas produes acadmicas sobre o mesmo. Assim, no

    processo de levantamento das produes acerca do Programa Bolsa Famlia, constatamos que

    os debates tm perpassado por diversas reas do conhecimento como servio social, sade,

    economia e educao. Das produes acadmicas sobre o tema no banco de teses e

    dissertaes da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior Capes -

    entre os anos de 2001 e 2012, foram encontrados 46 trabalhos sobre o Programa Bolsa

    Famlia. Do levantamento pode-se constatar que grande parte das produes sobre o tema

    foram apresentadas em universidades do Centro-sul do Brasil, mais especificamente em So

    Paulo (14), Rio de Janeiro (12), Braslia (05), Minas Gerais (02), Santa Catarina (02) e Rio

    Grande do Sul (01). Na regio Nordeste identificadas produes nas universidades do

    Maranho (04), Paraba (02), Pernambuco (02) e Cear (01); enquanto que na regio Norte,

    apenas no Par, 01 produo. Dentre esses trabalhos apenas um diz respeito anlise do PBF

    na Bahia.

    No contexto das pesquisas desenvolvidas entre os anos 2001 e 2012 que tiveram por

    objeto de estudo o Programa Bolsa Famlia, abro espao aqui para ressaltar que dentre os

    fatores que motivaram a presente pesquisa encontra-se o trabalho desenvolvido por mim e que

    resultou na monografia de final de curso de ps-graduao latu sensu, no curso de

    Especializao em Educao e Pluralidade Sociocultural, da Universidade Estadual de Feira

    de Santana, Sob o ttulo Programa Bolsa Famlia: uma anlise de resultados educacionais de

    bolsistas do Distrito de Maria Quitria (OLIVEIRA, 2008). A pesquisa objetivou analisar se e

    em que medida o Programa Bolsa Famlia vinha cumprindo seu objetivo de manter os

    3 Ao contrrio de uma concepo de Estado restrita sociedade poltica (aparelho coercitivo), compreendemos

    aqui o Estado em sentido amplo, como resultado da correlao de foras entre sociedade poltica e sociedade

    civil, esta formada precisamente pelo conjunto das organizaes responsveis pela elaborao e/ou difuso das

    ideologias (incluindo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos polticos, os sindicatos, as organizaes

    profissionais, a organizao material da cultura - revistas, jornais, editoras, meios de comunicao de massa etc.)

    (COUTINHO, 1999).

  • 24

    estudantes na escola e se esta permanncia tinha implicaes em termos de sucesso escolar. A

    pesquisa apontou para dois caminhos. O primeiro constatou um avano em termos de

    permanncia dos estudantes na escola durante o ano letivo e o segundo que os resultados dos

    estudantes neste mesmo perodo indicou fragilidades em termos de aprendizado necessrio ao

    menos para o acesso s sries seguintes, evidenciando altas taxas de reprovao escolar.

    Em que pese a considervel produo sobre o tema chama ateno que a maior

    populao beneficiria do Programa Bolsa Famlia, a baiana, ainda seja to pouco estudada.

    Ao lado disso observa-se tambm que, entre todos os estudos realizados as reas de Economia

    e Administrao (11), englobam o maior nmero de trabalhos, seguidas pelas reas de Servio

    Social (08), Polticas Pblicas (07), Sociologia (06), Educao (06), Sade (05), Psicologia

    (02) e Comunicao Social (01).

    Dos dados acima podemos depreender que apesar do expressivo nmero de produes

    sobre o Programa Bolsa Famlia, as pesquisas acadmicas na rea educacional (de acordo com

    o banco de dados para o perodo consultado), mostraram-se incipientes entre os anos 2001 e

    2012.

    Os dados acima apresentados acerca da produo sobre o Programa Bolsa Famlia

    denota carncia de estudos sobre o tema, em especial na rea de Educao e principalmente

    nas instituies de ensino superior do nordeste do Brasil, regio onde a concentrao de renda

    e pobreza violenta, as distores educacionais saltam aos olhos e se localiza o maior nmero

    dos beneficirios do Programa.

    Partindo de tal constatao bem como da reviso bibliogrfica sobre o PBF a presente

    pesquisa pe em relevo os efeitos do PBF no desempenho escolar de seus beneficirios. Neste

    sentido, a pesquisa orientou-se pela seguinte questo: quais as diretrizes do PBF para a

    educao e em que medida elas se efetivam como mecanismos operatrios efetivos no

    desempenho escolar dos beneficirios e na promoo da superao da vulnerabilidade social?

    Tal questo, longe de assumir um ideal de educao que a potencializa como fora motriz do

    desenvolvimento ou mesmo como principal elemento de correo das desigualdades sociais,

    como pretendem as abordagens no crticas da educao (Cf. Saviani, 1989) volta-se para o

    tensionamento desta viso e problematiza a relao escolarizao-superao da

    vulnerabilidade, preconizada pelo Programa. Portanto, em dilogo com as estratgias

    anunciadas pelo PBF, voltamo-nos para a apreenso e anlise dos indicadores educacionais,

    confrontando o desempenho escolar dos beneficirios e dos no beneficirios, bem como a

    percepo dos sujeitos implicados, particularmente as mes, sobre os efeitos do Programa nas

    suas vidas.

  • 25

    Em face dessa questo o estudo assumiu como objetivo geral analisar se e como o

    Programa Bolsa Famlia gera efeitos no desempenho escolar e na superao da situao de

    vulnerabilidade social das famlias beneficirias. Como suporte ao alcance do objetivo

    supracitado, bem como da questo levantada, a pesquisa est orientada pelos seguintes

    objetivos especficos:

    1. Caracterizar a populao atendida pelo Programa;

    2. Identificar as formas de acompanhamento dos beneficirios pelos rgos

    competentes;

    3. Analisar as avaliaes realizadas pelos rgos governamentais referentes ao

    cumprimento da condicionalidade educao.

    Neste movimento, algumas categorias de anlise foram importantes para interpretao

    dos dados e no processo de apreenso dos efeitos do Programa na vida de seus beneficirios:

    os conceitos de pobreza e de vulnerabilidade social.

    A categoria pobreza entendida em dilogo com a advertncia feita por Pereira

    (2006), segundo a qual o conceito de pobreza necessariamente prescritivo, poltico e moral,

    visto que o seu estudo deve sempre implicar algo a se feito com vista a combat-la (p. 236).

    Neste sentido, abordar a pobreza enquanto categoria de anlise, mais do que conceb-la

    apenas como conceito analtico, implica sua compreenso como fenmeno socialmente

    produzido e que, no contexto em que vivemos tem filiao e exige tomada de posicionamento

    frente aos efeitos gerados por ela em quantidade expressiva de nossa populao.

    Dada a complexidade e ausncia de consenso da definio da pobreza, esta torna-se

    um conceito poltico, alm de que, o seu enfrentamento implica conflitos de interesses e

    correlaes de foras (PEREIRA, 2006, p. 246). Prescritivo e moral, por exigir alm de

    respostas prticas, a necessidade de posicionamento em relao a ele. A autora considera

    ainda que por ser o extremo inaceitvel da desigualdade, no pode se restringir uma

    preocupao de acadmicos e polticos, mas uma responsabilidade moral, da qual nenhum

    governo deve abrir mo.

    Neste entendimento, em oposio explicao das suas causas como consequncias de

    inadaptaes dos indivduos, ou de provveis desvios, entendemos a pobreza como fenmeno

    intensificado pela emergncia e reconfigurao do capitalismo. Significa dizer que a pobreza,

    como produto social, o resultado de complexas foras sociais, como as aes de classes e de

    instituies que interagem dentro de uma particular ordem social e econmica (ALVES,

    2010). Autores como Marx (1996), Ianni (1994), Pereira (2006), Pereira (2012), Alves (2010)

    nos ajudam ento a compreender a pobreza relacionada lgica de funcionamento do sistema

  • 26

    produtivo, do mercado de trabalho, do sistema de educao e de formao, assim como do

    sistema de distribuio de rendimentos e do poder na sociedade.

    As discusses relacionadas pobreza esto presentes nos discursos e documentos

    oficiais que balizam o Programa Bolsa Famlia, assim como a situao de vulnerabilidade

    social de seus beneficirios. Assim sendo, a vulnerabilidade social constitui-se categoria de

    anlise da busca pelo Programa de emancipao das famlias vulnerveis por meio da ativao

    para o mercado de trabalho, sendo que a educao passa a ser usada como instrumento nesse

    processo. Assim, necessria se fez a compreenso do conceito de vulnerabilidade que

    fundamenta o Programa e que tem relao direta na tentativa de retirada da populao situada

    na faixa da pobreza e da extrema pobreza desta condio para que caminhem com as

    prprias pernas.

    Baseados nas anlises trazidas por Monteiro (2011), levamos em considerao a

    compreenso dos fatores estruturais inerentes lgica capitalista como uma das principais

    responsveis pela vulnerabilidade qual grande parte de nossa populao est sujeita. Neste

    movimento, as anlises desenvolvidas por Pereira (2012) nos ajudam a compreender o pano

    de fundo que sustenta a defesa do desenvolvimento de ativos pelo PBF. Assim, analisamos a

    relao entre o PBF e a sada da situao de vulnerabilidade social a partir das contradies

    ali presentes.

    Metodologia e Fontes

    A presente pesquisa, de natureza qualitativa, foi realizada sob uma concepo crtica

    tendo em vista a perspectiva de explorar as contradies, interesses e vises de mundo que

    envolvem o objeto de estudo. Para compreenso do objeto em sua complexidade os

    instrumentos de coleta de dados abrangeram a pesquisa documental, uso de questionrio e de

    entrevistas semiestruturadas. Com estes instrumentos procuramos, atravs do resgate histrico

    desde o ingresso no Programa, identificar se o PBF influenciou na vida dos beneficirios, com

    especial ateno ao desempenho escolar dos estudantes. Sabendo que a cada indivduo ou

    grupo de indivduos correspondem histrias de vida distintas, influenciadas por diversos

    aspectos de seu contexto, os procedimentos revelaram-se importantes para maior aproximao

    com a trajetria escolar dos beneficirios em relao com questes de ordem econmico-

    social e cultural que interferem na vida das pessoas, simultaneamente, de forma individual e

    coletiva.

  • 27

    Os primeiros passos do desenvolvimento da pesquisa, aps a levantamento da

    bibliografia sobre o tema, foi o mapeamento dos documentos relativos ao Programa Bolsa

    Famlia e aos estudantes beneficirios. Para a apreenso dos significados destes, foi

    importante o desenvolvimento da pesquisa documental. Bardin (1977) ao abordar a anlise

    documental, a define como

    Uma operao ou um conjunto de operaes visando representar o contedo de um

    documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar num estado

    ulterior a sua consulta e referncia. Enquanto tratamento da informao contida nos

    documentos acumulados, a anlise documental tem por objetivo dar forma

    conveniente e representar de outro modo essa informao, por intermdio de

    procedimentos de transformao (p. 40).

    Assim sendo, considerando que os documentos no so neutros, mas produzidos em

    determinado contexto, a pesquisa documental foi importante para a compreenso dos

    processos sociais que envolvem o objeto de estudo. O tratamento das informaes contidas

    nos documentos consultados, como ressalta Bardin (1977), foram fundamentais para a

    posterior anlise da relao entre o Programa Bolsa Famlia e sua influncia na vida dos

    beneficirios.

    Neste movimento, os documentos impressos e digitais (a exemplo de leis e decretos

    federais, como da criao e regulamentao do Programa Bolsa Famlia) forneceram dados

    referentes s caractersticas do Programa Bolsa Famlia, sua concepo enquanto programa

    social, os critrios de incluso/excluso, as condicionalidades, resultados, nmero de

    beneficirios, valores do benefcio etc. Ainda foram consultados relatrios anuais acerca do

    Programa do Governo Federal e do Ministrio da Educao no que concerne avaliao da

    educao. Sobre o procedimento metodolgico da pesquisa documental Demo (1992), chama

    ateno para que, ao analisar dados, devamos ficar atentos s omisses, isto , ao que no se

    explicita de imediato, ao no revelado e o que encobrem, pois (...) o mesmo dado pode

    permitir ilaes contraditrias, dependendo de seu encaixe terico (DEMO, 1992, p. 14).

    Alm da utilizao da pesquisa documental, fizemos uso de entrevistas

    semiestruturadas. Estas, segundo Trivios (1987), consistem na entrevista que parte de certos

    questionamentos bsicos, apoiados em teorias e hipteses que interessam pesquisa, que, em

    seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipteses que vo surgindo

    medida que se recebem as respostas do informante (TRIVIOS, 1987, p. 146). De acordo

    com o autor tal procedimento favorece no s a descrio dos fenmenos sociais, mas

    tambm sua explicao e a compreenso de sua totalidade.

  • 28

    A opo pela realizao de entrevista semiestruturada justifica-se por valorizar, de um

    lado, o direcionamento que propiciado pela entrevista estruturada e, por outro, a

    flexibilidade que a entrevista no estruturada permite diante da possibilidade do imprevisto.

    Constitui-se, assim, de acordo com Neto (1994), uma articulao entre as duas modalidades.

    As entrevistas, alm da compreenso dos efeitos do Programa na vida dos beneficirios

    (considerando o cruzamento das entrevistas com dados estatsticos e fontes documentais),

    permitiram tambm a apreenso da percepo dos usurios sobre o benefcio, alm de

    apreender as relaes estabelecidas entre as famlias e a escola, possibilitando o cruzamento

    das informaes contidas nos documentos, as prestadas pela escola bem como com as

    informaes veiculadas pelo Programa.

    Para a apreenso dos efeitos do PBF na vida dos beneficirios, a realizao das

    entrevistas foi de grande relevncia por revelar aspectos que demarcam as contradies das

    polticas focalizadas pautadas em condicionalidades. Assim, para alm dos aspectos

    aparentemente perceptveis em termos materiais, imediatos, outros elementos foram

    apreendidos a partir dos depoimentos das mes beneficirias e que revelam questes que

    perpassam pelas concepes de pobreza, sociedade e educao do Programa.

    Da realizao da pesquisa documental bem como das entrevistas emergiram algumas

    questes que suscitaram a necessidade de elaborao de um questionrio aplicado direo da

    escola a fim de que o objeto de estudo fosse melhor investigado. Tal questionrio diz respeito

    relao da escola e suas responsabilidades frente ao Programa.

    No que concerne ao municpio de Feira de Santana enquanto local de realizao da

    pesquisa, apesar dos dados expressivos em relao ao quantitativo de escolas e de matrculas,

    a escolha do mesmo justificou-se pelas informaes referentes ao percentual de pessoas na

    situao de extrema pobreza que, de acordo com o Boletim de Informaes do Ministrio do

    Desenvolvimento Social, indicava que o municpio contava com 37.986 pessoas na extrema

    pobreza, isto levando em considerao que Ministrio do Desenvolvimento Social

    considerava extrema pobreza aqueles indivduos que recebem menos de R$70,00 mensais

    (BRASIL, 2013).

    A delimitao do perodo estudado, antes prevista para o perodo de 2003 (ano de

    criao do PBF) a 2012 (ano em que se iniciou a presente pesquisa), a partir da busca dos

    documentos sobre movimentao escolar dos beneficirios passou a abranger apenas o

    perodo 2006-2012. Isso se deveu ao fato de no localizar no local de realizao da pesquisa,

    nem na escola nem na coordenao local do PBF no municpio de Feira de Santana,

  • 29

    informaes sobre a movimentao escolar dos estudantes beneficirios entre os anos 2003 e

    2005.

    Os sujeitos da pesquisa constituem-se de estudantes beneficirios do PBF e de cinco

    mes de estudantes beneficirios, estas ltimas participantes das entrevistas. A coleta de

    dados empricos se deu em uma escola integrante da rede estadual de educao, situada em

    Feira de Santana, e que para efeitos desta pesquisa recebeu o cognome de Caminho das

    Letras. Esta escola, localizada em um bairro popular do municpio, de acordo com dados

    fornecidos pela prpria instituio, teve 657 alunos matriculados no ano de 2012, operando

    nos turnos matutino, vespertino e noturno, neste ltimo, apenas com Educao de Jovens e

    Adultos (EJA).

    Os critrios utilizados para identificao e seleo das cinco mes que colaboraram

    com este estudo foram o tempo no Cadastro nico4 e a disposio para colaborar com a

    pesquisa aps a apresentao dos objetivos da mesma e do esclarecimento sobre os usos dos

    depoimentos. Em relao ao tempo, observou-se as mes que tinham mais longa durao no

    Programa e a partir desse critrio foi possvel localizar dez mes que atendiam aos critrios

    estabelecidos, das quais, cinco participaram das entrevistas5. No que diz respeito

    participao das mes nas entrevistas importante salientar o medo presente nas mesmas de

    que a pesquisa pudesse de alguma forma comprometer o recebimento do Benefcio. Neste

    sentido, diante do compromisso tico aqui assumido desde o acesso aos primeiros

    documentos utilizados, foi-lhes explicado toda questo tica envolvendo a pesquisa bem

    como a responsabilidade pelos dados coletados, deixando claro que a mesma no dizia

    respeito a estudo de ordem institucional do governo6.

    Para registrar as falas das entrevistas fizemos uso de gravaes por meio de

    equipamento eletrnico, sendo as mesmas catalogadas e arquivadas separadamente, recebendo

    cada uma o nome fictcio adotado por elas mesmas, os quais encontram-se na anlise das

    entrevistas presentes no ltimo captulo.

    O trabalho est dividido em quatro captulos, alm da introduo e consideraes

    finais. No primeiro captulo, analisamos historicamente os conceitos de pobreza bem como a

    pobreza no Brasil e sua relao com o surgimento dos programas de renda mnima como

    4 Institudo pelo decreto n 6.135, de 26 de junho de 2007, o Cadastro nico constitui instrumento de

    identificao e caracterizao socioeconmica das famlias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente

    utilizado para seleo de beneficirios e integrao de programas sociais do Governo Federal voltados ao

    atendimento desse pblico (BRASIL, 2007). 5 Levando em considerao a aceitao por livre e espontnea vontade e comparecimento entrevista no dia

    agendado. 6 Visto que muitas, por achar em princpio, que se tratava de pesquisa do MDS por diversas vezes queixavam-se

    do valor recebido.

  • 30

    forma de superao. Discutindo a pobreza e, em especial, a pobreza no Brasil, situamos o

    surgimento dos Programas de Renda Mnima PRMs como tentativa do governo minimizar

    os seus efeitos. Problematizamos, por conseguinte, o conceito de vulnerabilidade social e sua

    utilizao no cenrio das polticas sociais brasileiras, em especial o BF. Ainda neste captulo,

    analisamos as caractersticas do Programa Bolsa Famlia, sua criao, implementao e

    consolidao no cenrio das polticas sociais brasileiras.

    No segundo captulo problematizamos algumas concepes de educao, assim como

    as perspectivas de emancipao do Programa Bolsa Famlia para, em seguida, identificar e

    analisar as formas de operacionalizao, controle e acompanhamento dos objetivos e

    diretrizes do mesmo, com especial ateno condicionalidade educao.

    No terceiro captulo, apresentamos o local onde se realizou a pesquisa emprica, bem

    como os sujeitos nela envolvidos e como o Programa se articula com a unidade escolar

    Caminho das Letras. A partir dos dados coletados nas atas de resultados finais, analisamos o

    desempenho escolar dos estudantes beneficirios do Programa na escola a fim de verificar

    como este se processou entre 2006 e 2012.

    Por fim, no quarto e ltimo captulo, analisamos os efeitos do Bolsa Famlia na vida

    de beneficirios da unidade escolar Caminho das Letras em relao perspectiva anunciada

    pelo Programa de superao da vulnerabilidade social e as possveis implicaes da educao

    neste processo. Iniciamos com a anlise das entrevistas com cinco mes beneficirias do

    Programa para, em seguida, questionar a educao como vetor de superao da

    vulnerabilidade social.

    Nas consideraes finais retomamos o objetivo e a questo da pesquisa para

    estabelecer sntese dos resultados obtidos a partir da anlise dos dados.

  • 31

    2. POBREZA, VULNERABILIDADE SOCIAL E PROGRAMAS DE

    RENDA MNIMA: RELAES E CONTRADIES

    Este captulo analisa historicamente a pobreza, seus conceitos e sua relao com o

    surgimento dos programas de renda mnima. Aqui discutimos a pobreza, em especial, a

    pobreza no Brasil e neste contexto, o surgimento dos PRMs como poltica governamental de

    minimizao dos efeitos da pobreza. Como expresso de polticas dessa natureza o captulo

    apresenta um panorama dos programas de renda mnima, com nfase no surgimento do

    Programa Bolsa Famlia PBF que, entre os objetivos anunciados, visa a promoo da

    autonomia e a emancipao e, por meio desta, a superao da situao de vulnerabilidade de

    seus beneficirios, com consequente sada da pobreza.

    2.1. CONCEPES DE POBREZA E A SUA PRODUO/REPRODUO

    Atualmente os efeitos da pobreza encontram-se disseminados em diversos espaos.

    Convivemos com seus resultados diariamente e os mesmos so constantemente explicitados

    nas diversas mdias. Por vezes sua presena to constante que chega a ser vista por alguns

    como algo natural, sem sada ou soluo. Outras vezes o pobre vulgarmente concebido

    como aquele tomado pela preguia, pelo comodismo ou dependente de programas sociais

    promovidos pelo governo, sendo, por conseguinte, estigmatizado. Entretanto, a pobreza, longe

    de ser algo natural, tem origem e filiao.

    Assumindo a desigualdade social como construo social e, portanto, que remonta a

    perodos e contextos datados, para efeitos deste trabalho localizamos o fenmeno da pobreza

    a partir da emergncia do modo de produo capitalista. Este marco torna-se significativo por

    se tratar de um perodo com mudanas profundas nas relaes sociais e, sobretudo, no

    trabalho, posto que o trabalhador passou da condio de conhecedor de todo processo de

    produo para o de fora de trabalho alienada, obrigando-se a vend-la em troca de sua

    manuteno e sobrevivncia. Agregado a isto, foi sob o capitalismo que a pobreza se

    constituiu como uma questo poltico-social. De acordo com Lavinas,

    A pobreza institui-se como questo social, tanto na Europa quanto na Amrica

    Latina, apesar de evidente defasagem no tempo, concomitantemente ao surgimento

    das grandes cidades, quando as condies precrias das populaes recm-chegadas

    do campo inspiravam preocupao e receio, suscitando intervenes do setor

    pblico em prol da instituio de uma nova ordem social. Ela institui-se, portanto, ao

    demandar meios para uma regulao eficaz. A moderna sociedade capitalista em

    gestao necessitava imperiosamente integrar o proletariado e forjar a classe

    trabalhadora (2002, p. 25).

  • 32

    Ressalte-se que a integrao do proletariado sociedade, como visto acima, no se

    daria ao acaso, mas dentro do movimento de ajustamento da mo de obra ociosa

    organizao nova sociedade em formao. Como registra Marx (1996), para que se

    promovesse a estabilidade da ordem social em ascenso, aqueles que demonstrassem

    comportamentos desviantes eram severamente punidos. Assim, muitos camponeses no

    absorvidos pelas vagas das manufaturas, praticando ento a mendicncia, passaram a ser

    regulados, inclusive, por leis.

    Os expulsos pela dissoluo dos squitos feudais e pela intermitente e violenta

    expropriao da base fundiria, esse proletariado livre como os pssaros no podia

    ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto

    no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu modo

    costumeiro de vida no conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente sbita na

    disciplina da nova condio. Eles se converteram em massas de esmoleiros,

    assaltantes, vagabundos, em parte por predisposio e na maioria dos casos por fora

    das circunstncias. Da ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do sculo

    XV e durante todo o sculo XVI, uma legislao sanguinria contra a

    vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente

    punidos pela transformao, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A

    legislao os tratava como criminosos voluntrios e supunha que dependia de sua

    boa vontade seguir trabalhando nas antigas condies, que j no existiam (MARX,

    1996, p. 356).

    Entretanto, por trs da punio dos que praticavam a vagabundagem, supostamente

    de forma voluntria, como demonstrou Marx, existia a inteno de favorecer a manuteno do

    exrcito de mo-de-obra indispensvel reproduo do capital, em franco movimento de

    constituio. A partir do sculo XVI verificamos ento na Europa, a formao de exrcito de

    reserva que vai compor uma das caractersticas do sistema produtivo que comea a ganhar

    corpo: a produo da pobreza em massa, oriunda do processo de apropriao da riqueza pela

    burguesia em ascenso. Como o mercado de trabalho no absorvia as grandes levas de

    desempregados e mesmo os que eram absorvidos estavam em condies precrias, a pobreza

    passou a fazer parte da dinmica social em nveis cada vez maiores. O pobre, longe de ter

    reconhecida sua situao de vtima do processo foi encarado como parte responsvel por sua

    condio.

    Neste sentido,

    No momento em que uma determinada classe social se apoderou das riquezas e dos

    meios de produo, e outra no possua nada mais alm de sua fora de trabalho, a

    pobreza at ento conhecida por alguns, tornou-se de massa. E mais, os pobres que

    se multiplicavam no eram considerados vtimas e merecedores de proteo de vida,

    mas, ao contrrio, culpados pela sua condio (PEREIRA, 2006, p. 240).

    Na mesma direo de Pereira (2006), Codes (2008, p. 07), assinala que inicialmente a

    preocupao com a pobreza encontrava-se refletida na tnica daquelas leis que consistiam em

    organizar a caa aos vagabundos e em obrigar ao trabalho todos aqueles sos de corpo e

  • 33

    capazes de realizar atividades laborais. neste contexto que verificamos como uma das

    primeiras, seno primeira, inciativas governamentais voltadas reduo dos impactos da

    pobreza na sociedade, as chamadas Poor Laws, ou Lei dos Pobres. As Poor Laws

    ocorreram entre 1531 e 1601 na Inglaterra como recurso poltico de proteo elementar

    fora de trabalho. Tal lei em nada alterava a situao de pobreza em que se encontrava a

    maioria da populao no possuidora dos meios de produo. Como destaca Marx,

    Recorde-se como essa lei foi aplicada no campo: sob a forma de esmolas, a parquia

    complementava o salrio nominal at a soma nominal necessria mera vida

    vegetativa do trabalhador. A proporo entre o salrio pago pelo arrendatrio e o

    dficit salarial coberto pela parquia mostra-nos duas coisas: primeiro a queda do

    salrio abaixo de seu mnimo; segundo, o grau em que o trabalhador rural era um

    composto de assalariado e indigente, ou o grau em que se o transformou em servo de

    sua parquia (1996, p. 303).

    Recebendo salrios abaixo do mnimo, gerava no trabalhador cada vez maior

    dependncia parquia, a quem cabia complementar o salrio recebido. Devido baixa

    possibilidade de superao da situao de indigncia, tornava-se o que Marx chama de servo

    de sua parquia. Tal condio contribua para que estes, ao recorrer s cidades em busca de

    trabalho, engrossassem as filas de desempregados e, em consequncia, contribusse para a

    reduo dos salrios, dada a oferta de mo de obra.

    A partir das polticas desenvolvidas pela Lei dos Pobres a pobreza passou a figurar

    objeto das primeiras tentativas de se compreender as causas e de se mensurar sua dimenso

    constituindo-se tambm nos discursos literrios e nas primeiras enquetes sociais. Concebia-se

    a pobreza ento a partir da ideia de necessidades mnimas, cunhada na noo de subsistncia.

    Pode-se afirmar que o padro de subsistncia descende daquele tratamento

    dado aos pobres na poca das Poor Laws, quando suas necessidades eram

    medidas por quantidades de po, farinha de po ou dinheiro equivalente,

    havendo, em algumas parquias, a permisso para que se adicionassem

    outras necessidades s referidas medidas. Balizando-se nos resultados dos

    trabalhos elaborados por nutricionistas, esta abordagem definia como pobre

    a famlia cuja renda no fosse suficiente para obter o mnimo necessrio para

    sua manuteno meramente fsica (CODES, 2008, p. 11).

    As politicas de ajuste social no tocante pobreza pautavam-se assim na concepo de

    que aos pobres bastava o suficiente manuteno de suas necessidades bsicas (para a poca),

    diga-se de passagem, satisfao das necessidades alimentcias mnimas para a sobrevivncia.

    Esta situao est documentada como na passagem a seguir, que ilustra a concepo de

    pobreza a partir da noo de subsistncia.

    Durante a crise algodoeira, em 1862, o dr. Smith foi encarregado pelo Privy Council

    de fazer uma investigao sobre o estado de nutrio dos desgraados trabalhadores

    do algodo em Lancashire e Cheshire. Longos anos de observao tinham-no levado

    concluso de que, para evitar doenas causadas pela fome (starvation diseases),

    a alimentao diria de uma mulher mdia deveria conter ao menos 3.900 gros de

  • 34

    carbono e 180 gros de nitrognio; a alimentao diria de um homem mdio

    necessitaria ao menos de 4.300 gros de carbono e 200 gros de nitrognio, para as

    mulheres aproximadamente tanto material nutriente quanto est contido em 2 libras

    de bom po de trigo, para os homens 1/9 a mais, para a mdia semanal de mulheres

    e de homens adultos ao menos 28.600 gros de carbono e 1.330 gros de nitrognio.

    Seu clculo foi confirmado na prtica de modo surpreendente pela coincidncia com

    a lastimvel poro de alimento a que a situao de calamidade tinha reduzido o

    consumo dos trabalhadores do algodo. Eles obtinham semanalmente, em dezembro

    de 1862, 29.211 gros de carbono e 1.295 de nitrognio. (MARX, 1996, p. 283).

    Por sua vez, a Revoluo Industrial iniciada na Inglaterra fornece o campo de gestao

    de todo aparato necessrio explorao de grandes levas de trabalhadores que nada mais

    detm para sua sobrevivncia alm do que a fora de trabalho. Na medida em que aumentava

    a acumulao de capital, verificava-se igualmente aumento em sua concentrao e

    centralizao. O fosso existente entre aqueles que mais tinham e os que pouco ou nada

    possua aumentava vertiginosamente, expressando uma das contradies do modo de

    produo que emergia.

    uma das caractersticas mais melanclicas da situao social do pas, diz

    Gladstone, que com um decrscimo na capacidade de consumo do povo e um

    acrscimo nas privaes e na misria da classe trabalhadora, h ao mesmo tempo

    acumulao constante de riqueza nas classes altas e crescimento constante de capital

    (MARX, 1996, p. 280).

    O relato de Marx, a partir da situao descrita por Gladistone, ministro da Cmara dos

    Comuns, em 13 de fevereiro de 1843, nos d uma ideia dos nveis de privaes a que estava

    sujeita a populao trabalhadora inglesa, bem como das contradies inerentes acumulao

    capitalista. Se de um lado cabia aos trabalhadores as privaes na manuteno de suas vidas,

    por outro, s classes altas cabia a acumulao de capital base da explorao da fora de

    trabalho daqueles. Neste cenrio, embora Gladstone denunciasse a concentrao de riqueza

    nas mos de uns poucos, alguns anos depois, em 1863, minimizava a situao dos pobres, ao

    tentar justificar provveis benefcios a estes advindos deste processo.

    De 1842 a 1852, o rendimento tributvel deste pas cresceu 6%. (...) Nos 8 anos de

    1853 a 1861, se partirmos da base de 1853, ele cresceu cerca de 20%. O fato to

    espantoso que chega a ser quase inacreditvel. (..) Esse aumento embriagador de

    riqueza e poder (...) est totalmente limitado s classes possuidoras (...) mas deve ser

    indiretamente vantajoso para a populao trabalhadora, porque barateia os artigos de

    consumo geral; enquanto os ricos se tornaram mais ricos, os pobres, em todo caso,

    se tornaram menos pobres. Que os extremos da pobreza tenham diminudo, no ouso

    afirmar (MARX, 1996, p. 281).

    Diante de tal constatao Marx afirma:

    Que anticlmax capenga! Se a classe trabalhadora continuou pobre, apenas

    proporcionalmente menos pobre, ao produzir um aumento embriagador de

    riqueza e poder para a classe proprietria, ela continua sendo, em termos relativos,

    igualmente pobre. Se os extremos da pobreza no diminuram, eles aumentaram,

    pois aumentaram os extremos da riqueza (1996, p. 281).

  • 35

    Como bem destacara Marx, o fato de ter ocorrido reduo nos preos dos produtos no

    tem relao em termos de alterao no quadro da pobreza visto que o aumento na acumulao

    de capital implica em maior explorao da fora de trabalho e extrao da mais valia. Se os

    ricos tornam-se mais ricos, os pobres por sua vez continuam pobres. Os dados referentes

    Inglaterra nos sculos XVIII e principalmente no sculo XIX retratam bem a vida dos

    trabalhadores no s das cidades, mas tambm do campo. Muitos trabalhadores, dadas as

    baixas remuneraes e elevao das condies de sobrevivncia, viviam em situao de

    indigncia, em diversos aspectos da vida cotidiana. Neste sentido, alguns aspectos da situao

    de indigncia em que se encontravam os pobres na Inglaterra so ilustrados por Marx a partir

    de um relatrio apresentado pelo Dr. Simon, funcionrio mdico do Privy Council7. Segundo

    o Dr. Simon:

    Muito antes de a insuficincia alimentar ter passado a gravitar no plano da higiene,

    muito antes de o fisilogo pensar em contar os gros de nitrognio e carbono, entre

    os quais oscila a vida e a morte por inanio, a economia domstica j ter sido

    despojada de todo conforto material. O vesturio e o aquecimento ter-se-o tornados

    ainda mais escassos do que a comida. Nenhuma proteo suficiente contra o rigor do

    inverno; reduo do espao de moradia a um grau que gera enfermidades ou as

    agrava; ausncia quase total de utenslios domsticos ou de mveis; a prpria

    limpeza ter-se- tornado custosa ou difcil. Se, por dignidade pessoal, ainda se tenta

    mant-la, cada uma dessas tentativas representa suplcios adicionais de fome. O lar

    h de ser onde o teto for mais barato; em reas onde a polcia sanitria d menos

    fruto, mais lamentvel o sistema de esgoto, menor o trfego, mxima a imundcie

    pblica, mais miservel ou pior o suprimento de gua e, em cidades, maior a falta de

    luz e ar. Tais so os perigos sanitrios a que a pobreza inevitavelmente est sujeita,

    quando essa pobreza inclui carncia alimentar. Se a soma desses males constitui

    perigo de terrvel magnitude para a vida, a mera carncia alimentar j em si mesma

    horrvel (MARX, 1996, p. 285-286).

    A situao relatada acima nos d pistas da situao de indigncia de boa parte da

    classe trabalhadora de ento, que vai da prpria incapacidade de manuteno alimentar a

    problemas sanitrios que causou a morte de muitos trabalhados com a proliferao de doenas

    infectocontagiosas. Quando o trabalhador no consegue satisfazer a fome, diversos outros

    aspectos de sua vida, como vesturio, utenslios domsticos e muitas vezes a prpria moradia

    j ter sido dele retirada.

    A conexo interna entre o tormento da fome das camadas mais laboriosas de

    trabalhadores e o consumo esbanjador, grosseiro ou refinado, dos ricos, baseado na

    acumulao capitalista, s se desvela com o conhecimento das leis econmicas.

    diferente a situao habitacional. Qualquer observador isento percebe que, quanto

    mais macia a centralizao dos meios de produo, tanto maior a consequente

    aglomerao de trabalhadores no mesmo espao; que, portanto, quanto mais rpida a

    acumulao capitalista, tanto mais miservel a situao habitacional dos

    trabalhadores (MARX, 1996, p. 286).

    7 Conselho Secreto, rgo especial junto ao rei da Inglaterra, constitudo por ministros e outros dignatrios

    burocrticos e religiosos. O Conselho Secreto foi criado no sculo XIII.

  • 36

    Longe de representar fatos isolados, a situao de precariedade sofrida pelos

    trabalhadores constituiu fruto do processo de acumulao de capital em um processo de

    violenta intensificao da produo de relaes humanas desiguais em que os no

    proprietrios so subalternizados. Extensas horas e precariedade nas condies de trabalho,

    consequente reduo das horas dedicadas famlia, pssimas condies de moradia e

    alimentao, compem um cenrio em que continuar a viver passou a representar o anseio de

    muitos dos que estavam em situao de indigncia.

    As situaes acima no diziam respeito apenas Inglaterra, mas tambm a outras

    regies da Europa, principalmente as do Reino Unido, como o relato abaixo de um inspetor de

    fbrica ingls sobre a situao de um trabalhador da manufatura irlandesa.

    Em minha recente inspeo ao norte da Irlanda, diz o inspetor de fbrica ingls

    Robert Baker, chamou-me a ateno o esforo de um operrio qualificado irlands

    para dar educao a seus filhos apesar de sua penria de meios. Reproduzo

    literalmente suas declaraes, conforme as recebi de sua boca. Que ele seja um

    trabalhador qualificado, percebe-se, se digo que ele empregado para artigos

    destinados ao mercado de Manchester. Johnson: Sou um beetler e trabalho das 6

    horas da manh s 11 da noite, de segunda a sexta. Aos sbados terminamos s 6 da

    tarde, e temos 3 horas para refeies e descanso. Tenho 5 filhos. Por esse trabalho,

    ganho 10 xelins e 6 pence por semana; minha mulher trabalha tambm e ganha 5

    xelins por semana. Minha filha mais velha, de 12 anos, cuida da casa. Ela nossa

    cozinheira e nica servial. ela quem prepara os mais jovens para a escola. Minha

    mulher se levanta comigo e sai comigo. Uma menina que passa por nossa casa nos

    acorda s 5 1/2 da manh. No comemos nada antes de ir para o servio. A criana

    de 12 anos cuida das crianas pequenas durante o dia. Tomamos o desjejum das 8

    horas e para isso vamos para casa. Temos ch uma vez por semana; seno temos

    uma papa (stirabout), s vezes de farinha de aveia, s vezes de farinha de milho,

    conforme o que conseguimos arranjar. No inverno, acrescentamos um pouco de

    acar e gua nossa farinha de milho. No vero colhemos algumas batatas que

    plantamos num pedacinho de terra e, quando elas acabam, voltamos para a papa. (...)

    Assim vo as coisas, dia aps dia, domingos e dias teis, o ano todo. Estou sempre

    exausto noite, quando termino o servio do dia. S comemos um pedao de carne

    excepcionalmente, mas muito raro (MARX, 1996, p. 334).

    Este quadro ilustra as condies de vida do operariado do Reino Unido, permeado por

    interferncias na prpria estrutura familiar. Para que os pais possam trabalhar, as crianas

    responsabilizam-se pelo servio domstico quando no so tambm obrigadas a trabalhar nas

    fbricas. Extensas horas de trabalho, sem garantias trabalhistas, precrias condies de

    alimentao e moradia denunciam o grau de explorao a que estava sujeita a populao

    trabalhadora.

    vista do cenrio acima, compreendemos que a partir dos desajustes sociais

    provocados pela nova organizao social promovida pela expanso capitalista que a temtica

    da pobreza ganha contornos especficos que nos desafiam a pensar o passado e o presente em

    face das relaes sistmicas entre a produo da pobreza e a acumulao capitalista. A sada

    de grandes levas de trabalhadores do campo rumo s cidades em busca de meios de

  • 37

    sobrevivncia promoveu na Europa novos arranjos sociais que levou os Estados a buscarem

    solues para o restabelecimento e manuteno da ordem social.

    Diante das mazelas em que se encontrava a classe trabalhadora inglesa, estudos foram

    motivados no intuito de verificar as dosagens de dieta alimentar necessrias a um bom

    funcionamento da mquina humana. Note-se que o estudo tratou como coincidncia os

    resultados do comparativo entre o que era considerado como o mnimo necessrio

    sobrevivncia de homens e mulheres mdios e a proximidade com o que os trabalhadores

    de fato consumiam. Entretanto, o que se verifica neste cenrio uma concepo da pobreza

    pautada na ideia da subsistncia, ou seja, do fornecimento dos mnimos necessrios

    manuteno dos aspectos fsicos dos indivduos. E mais, revela a situao de explorao e

    desproteo social a que estavam sujeitos os milhares de trabalhadores. Trabalhando e

    habitando locais insalubres, recebendo baixos salrios e extensas jornadas de trabalho, sem

    direito a frias e com acesso precrio sade e educao.

    Mas se no passado as Poor Laws tiveram o seu papel de assegurar o mnimo para a

    sobrevivncia dos pobres e, no sculo XIX, as condies sub-humanas descritas por Marx

    (1996) que continuaram em evidncia, as realidades poltico-sociais registradas acima no

    passaram inclumes pelo tempo. Expresso disso pode ser notada ao final da Primeira Grande

    Guerra (1914-1918), com o Tratado de Versalhes, o qual consagrou alguns direitos

    trabalhistas e previdencirios, bem como no perodo ps Segunda Guerra (1939-1945),

    quando os pases do capitalismo central passaram a ampliar os sistemas de proteo social aos

    indivduos em ocasies em que perdessem suas fontes de renda (FALEIROS, 1986, p. 19).

    Esse sistema de seguridade social garante servios e benefcios do Estado ao

    cidado, desde o seu nascimento at a sua morte, a partir de contribuies

    especficas em lei. (...) chamado por uns Welfare State ou Estado de Bem Estar e,

    por outros, Estado de Providncia ou Estado Assistencial, pelo qual o Estado garante

    ao cidado a oportunidade de acesso gratuito a certos servios e a prestao de

    benefcios mnimos para todos (FALEIROS, 1986, p. 20).

    Neste cenrio o Estado se apresenta como regulador do mercado. Assim, para que

    possibilite populao o bem-estar, deve manter os mecanismos do mercado de trabalho e as

    relaes capitalistas de produo. Entretanto, essa regulamentao estatal no fruto de uma

    evoluo do humanismo, mas das prprias contradies e conflitos de uma sociedade que

    produz incessantes riscos para a vida das pessoas e o esgotamento da fora de trabalho

    (FALEIROS, 1986, p. 26).

    Longe de se constituir em Estado voltado classe proletria, tal regulao tem

    fundamento em ideais liberais progressistas visando a manuteno do processo global de

    acumulao da riqueza capitalista, fazendo frente s crises econmicas e ameaas sociais.

  • 38

    Busca-se desta forma assegurar o lucro dos capitalistas que historicamente tendem a baixar

    pela forte disputa entre eles e pelo confronto de capital com o trabalho. Para que se garantisse

    o pleno emprego, John Keynes defendeu inclusive o aumento dos gastos pblicos a fim de dar

    trabalho aos desempregados e auxlios para estimular a demanda (FALEIROS, 1986).

    Entretanto, embora as limitaes de um Estado providencial no capitalismo, as

    garantias advindas da so fruto da luta entre as duas classes em disputa a partir do processo

    de industrializao europeu: burguesia e proletariado. Quanto a isto Pereira (2006) afirma que

    esta nova forma de regulao no mais se pauta na represso e punio, mas na cidadania.

    Assim, o Welfare State europeu8, apesar de manter a classe trabalhadora na mesma situao

    desigual, ofereceu proteo social e segurana no trabalho (PEREIRA, 2006, p. 241).

    Apesar dos ganhos advindos deste processo, a ideia de manuteno do pleno emprego

    no se sustentou nem se sustenta diante das prprias contradies do sistema capitalista, visto

    que o desemprego inerente ao prprio processo de acumulao. Na medida em que gera

    extenso exrcito de reserva promove por sua vez reduo dos salrios. Embora o Estado de

    Bem-Estar tenha promovido a garantia de direitos sociais, no alterou o quadro de pobreza

    tanto nos pases de capitalismo central, como nos perifricos.

    medida que a pobreza se expande, seu entendimento tambm vai ganhando novos

    contornos. Na dcada de 1960 do sculo XX verificamos, dentre as conceituaes, a das

    necessidades insatisfeitas, referindo-se existncia de um padro mnimo de condies de

    vida. Neste entendimento, vivem na pobreza absoluta ou na indigncia todos aqueles cujo

    padro de consumo situa-se abaixo do mnimo vital em razo do seu dficit de renda

    (LAVINAS, 2002, p. 35). Percebemos ento a renda como parmetro de conceituao do

    limite entre o ser e o no ser pobre. Est diretamente associada ideia de sobrevivncia

    fsica, satisfao de mnimos sociais reproduo da vida com um mnimo de dignidade

    humana (PEREIRA, 2006, p. 233).

    J na dcada de 1970, no debate europeu, verifica-se a concepo de pobreza relativa,

    a qual passa a figurar como medida para identificar a posio social do pobre conforme o

    padro mdio de consumo da populao como um todo.

    pobre, relativamente ao conjunto da populao, quem se situa abaixo desse padro

    mdio de consumo, no s do ponto de vista do seu dficit de renda, mas tambm do

    no acesso a bens e servios. Passa-se de uma abordagem centrada exclusivamente

    na renda para um enfoque mais amplo, o da falta de recursos. O hiato ou diferencial

    que separa o pobre desse padro mediano expressa a intensidade da pobreza

    (LAVINAS, 2002, p. 36).

    8 Lembrando Pereira (2012) no existe e nunca existiu um padro unvoco de Estado de BemEstar nos pases

    capitalistas centrais, por isso a expresso Welfare State europeu.

  • 39

    A renda deixa ento de ser caracterizada como nico elemento de definio do pobre

    para incluir o que se chama de recursos. Isto caracteriza no apenas a renda auferida pelo

    indivduo ou grupo de indivduos, mas tambm a capacidade de acesso a determinados bens e

    servios. Pouco tempo depois, em 1976, pobres passam a ser entendidos pela comunidade

    Econmica Europeia CEE como todos os indivduos e famlias cujos recursos, de to

    escassos, os excluem dos modos de vida, hbitos e atividades normais do Estado onde vivem

    (LAVINAS, 2002, p. 36). De acordo com Pereira (2006), diz respeito satisfao de

    necessidades em relao ao modo de vida de determinada sociedade, tendo vinculao

    relao entre pobreza e distribuio das riquezas socialmente produzidas. Dessa forma,

    enquanto houver desigualdade e estratificao social, uma percentagem da populao ser

    sempre pobre em relao a algum grupo mais privilegiado, no importando o grau de riqueza

    da nao considerada (PEREIRA, 2006, p. 233).

    A negao do acesso a direitos sociais essenciais existncia humana (como sade,

    alimentao, habitao, saneamento bsico, educao) bem como aqueles que as sociedades

    passam a considerar como bsicos s atividades dirias (como acesso internet, meios de

    transporte, aparelhos e equipamentos eletrnicos voltados comunicao e acesso

    informao) imputa nos indivduos impedidos de acess-los, sensao de alheamento, de

    excluso, visto que estes provocam sentimentos de rejeio, perda de identidade, falncia dos

    laos comunitrios e sociais, resultando numa retrao das redes de sociabilidade, com quebra

    dos mecanismos de solidariedade e reciprocidade (LAVINAS, 2002, p. 37).

    Os conceitos de pobreza que at a dcada de 1970 ganhavam os contornos at aqui

    apresentados, a partir do esgotamento do Estado de Bem estar europeu, em meados dessa

    dcada, tambm sofrem os efeitos das orientaes pautadas no Estado mnimo e na negao

    dos direitos sociais, consoante a prevalncia do princpio do Workfare sobre o Welfare e da

    substituio das polticas universais pelas focalizadas; da reduo dos gastos sociais; da

    primazia da lgica do mercado sobre a das necessidades sociais e bem como do mrito

    empreendedor dos indivduos em detrimento dos direitos (PEREIRA, 2006; PEREIRA,

    2012). Tal passagem insere-se nas transformaes do cenrio econmico advindos da crise

    enfrentada pelo capitalismo.

    Com efeito, em meados dos anos 1970, ao findar o ciclo expansivo da economia

    internacional, iniciado no segundo psguerra, todo o mundo capitalista conheceu uma nova crise, que se revelou estrutural e se prolonga at os dias de hoje, crise esta

    causada por desequilbrios entre acumulao e consumo e pela transformao do

    excedente produzido pela economia real em capital financeiro (PEREIRA, 2012, p.

    731).

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    As polticas sociais (e neste movimento as formas de conceber a pobreza, e por assim

    dizer o pobre) tambm passam a ser fomentadas visando atender as demandas inerentes s

    transformaes pelas quais vem passando o capitalismo. Assim, ao pobre imposta a

    autorresponsabilizao por seu fracasso, o que demanda dos mesmos autossatisfazerem suas

    necessidades sociais; ou, ento, a darem algo em troca pelos auxlios pblicos recebidos,

    como se fossem eternos devedores, e no credores, de vultosas dvidas sociais (PEREIRA,

    2012, p. 738).

    O Estado provedor, garantidor de direitos sociais cede lugar ao Estado que deposita no

    indivduo a responsabilidade pelos seus atos, pautando-se na concepo de que o alcance do

    bem estar depende do quo o indivduo se dedicou para alcana-lo, sendo operada a mesma

    lgica em casos de fracasso, insucesso e, sendo assim, de pobreza, misria ou indigncia.

    Em verdade, o predomnio contemporneo da tica da autorresponsabilizao no

    contexto mundial da poltica social mostra que est havendo um contnuo e

    crescente esvaziamento do padro capitalista de Estado social de direito em favor do

    padro capitalista de Estado neoliberal meritocrtico, laborista, ou do que a literatura

    especializada vem chamando de transio do Welfare State para o Workfare State.

    o que, com outras palavras, LicWacquant (2007) vem falando da substituio do

    Estado Social pelo Estado Penal, principalmente quando se refere aos Estados

    Unidos, por sinal o pas precursor da ideologia do work fare (bemestar em troca de

    trabalho, no importa qual) em substituio ao welfare (bemestar incondicional, como direito). (PEREIRA, 2012, p. 738).

    O Workfare State acima referido assenta-se nas correntes de pensamento que

    remontam concepes patolgicas de explicao das causas da pobreza. Centradas no

    indivduo, s polticas sociais cabem a correo de possveis comportamentos desviantes, seja

    por meio da cobrana de contrapartidas dos beneficirios da assistncia social pblica, para

    livrlos da dependncia desta, seja na ativao imperiosa desses beneficirios para a sua

    insero no mercado de trabalho com vista a sua autossustentao. (PEREIRA, 2012, p.

    747). De aco