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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
LUS CARLOS SANTOS OLIVEIRA
PROGRAMA BOLSA FAMLIA: EFEITOS NO
DESEMPENHO ESCOLAR E NA SUPERAO DA
VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIRIOS EM
FEIRA DE SANTANA-BA
(2006-2012)
Feira de Santana-Ba
2014
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LUS CARLOS SANTOS OLIVEIRA
PROGRAMA BOLSA FAMLIA: EFEITOS NO
DESEMPENHO ESCOLAR E NA SUPERAO DA
VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIRIOS EM
FEIRA DE SANTANA-BA
(2006-2012)
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Educao da Universidade Estadual de
Feira de Santana, como requisito para a obteno do grau
de Mestre em Educao, sob a orientao da Prof Dr
Antonia Almeida Silva.
Feira de Santana-Ba
2014
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Ficha Catalogrfica Biblioteca Central Julieta Carteado
Oliveira, Lus Carlos Santos
O48p Programa Bolsa Famlia : efeitos no desempenho escolar e na superao
da vulnerabilidade social de beneficirios em Feira de Santana-BA (2006-
2012) / Lus Carlos Santos Oliveira. Feira de Santana, 2014.
147 f. : il.
Orientadora: Antonia Almeida Silva.
Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Feira de Santana, Programa
de Ps-Graduao em Educao, 2014.
1. Educao Polticas sociais. 2. Desempenho escolar. 3. Programa Bolsa
Famlia Feira de Santana, BA. I. Silva, Antonia Almeida, orient. II. Universidade
Estadual de Feira de Santana. III. Ttulo.
CDU: 37:304(814.22)
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LUIS CARLOS SANTOS OLIVEIRA
PROGRAMA BOLSA FAMLIA: EFEITOS NO DESEMPENHO ESCOLAR E NA
SUPERAO DA VULNERABILIDADE SOCIAL DE BENEFICIRIOS EM FEIRA DE
SANTANA-BA
(2006-2012)
Trabalho apresentado para Defesa de Dissertao, como requisito para obteno do grau de
Mestre em Educao, tendo a seguinte banca examinadora:
__________________________________________________
Prof. Dr. Antonia Almeida Silva Orientadora
__________________________________________________
Prof. Dr. Maria Cristina Dantas Pina UESB
__________________________________________________
Prof. Dr. Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante UEFS
__________________________________________________
Prof. Dr. Fani Quitria Nascimento Rehem UEFS
Feira de Santana, 13 de agosto de 2014.
Resultado: __________________________________
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Dedico este trabalho primeiramente aos meus
avs Teodoro e Maria (in memorian), minha
me Bernadete e ao meu irmo Wellington.
Dedico tambm aos milhares de beneficirios
do Programa Bolsa Famlia, estes homens e
mulheres que cotidianamente lutam pela
sobrevivncia em um pas que tem em sua
histria a marca da desigualdade.
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AGRADECIMENTOS
Agradecer reconhecer que no vivemos nem caminhamos ss. E mais, que no
processo de construo e constituio humana o outro tem importante papel. O homem como
ser social ao se relacionar constri e reconstri conhecimentos, sejam eles cientficos ou no.
Os primeiro passos em direo ao ingresso no Programa de Ps-graduao em Educao da
Universidade Estadual de Feira de Santana comearam com o incentivo aos estudos por
pessoas que mesmo no estando fisicamente presentes foram os principais responsveis pela
minha constituio enquanto profissional e, principalmente, enquanto homem.
Ao dedicar este momento aos agradecimentos o fao em primeiro lugar Deus, fora
espiritual que guia e fortalece nos momentos em que nos encontramos diante de barreiras que
se apresentam intransponveis. Aos meus avs Teodoro e Maria que, embora no estejam
presentes fisicamente, com seus legados de patriarca e matriarca de uma extensa famlia
souberam exemplarmente nos mostrar o caminho da honestidade, perseverana, altrusmo,
dentre tantas outras qualidades que, mais do que ensinar, demonstraram coerentemente ao
longo de suas vidas. minha me que, demonstrando preocupao com as diversas vezes que
me via altas horas da madrugada estudando, cuidadosamente me pedia para descansar.
Exemplo da mulher guerreira brasileira. Ao meu irmo Wellington pelo cuidado ao longo
desses anos no mestrado, sempre se preocupando quando por diversas vezes via-me cansado
diante das longas jornadas de trabalho e estudo.
minha orientadora, professora Antonia Almeida Silva, que mesmo diante das
dificuldades encontradas para concluso deste trabalho acreditou que seria possvel realizar o
estudo. Exemplo de profissional coerente e comprometida com a profisso mostrou, ao longo
destes anos, por meio de sua prtica o que ser professor e a importncia da pesquisa no
processo constante da formao docente. Obrigado por acreditar e me fazer acreditar que seria
(e foi) possvel.
s professoras Maria Cristina Dantas Pina, Ludmila Cavalcanti e Fani Quitria por
aceitar participar como membros da banca de defesa, dedicando seu tempo leitura deste
trabalho e pelas importantes contribuies ao desenvolvimento da pesquisa e ao processo de
crescimento e amadurecimento enquanto pesquisador.
Neste processo de insero no mundo da pesquisa cientfica os dilogos estabelecidos
com algumas pessoas contriburam tambm para a escrita da dissertao. Agradeo ao
primo/irmo Adriano pela companhia e pelas altas conversas madrugada adentro, alm das
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contribuies com livros cujas marcas dissolvem-se ao longo do texto. A Val pelo apoio e
colaborao tanto nos momentos de desabafo quanto de descontrao importantes para
quebra de tenso.
turma 2 do Mestrado cujos debates em sala de aula foram importantes para uma
melhor compreenso das teorias que nos ajudam a compreender a realidade e, em especial, a
educao. Neste movimento no poderia deixar de agradecer a contribuio dos professores
que a partir de perspectivas tericas diversas foram fundamentais para a escrita do presente
texto: Denise, Ludmila, Marinalva e Wellington, espero encontr-los mais vezes nas incurses
pela pesquisa cientfica.
Embora tenha ingressado na segunda turma do mestrado, o contato com a terceira
turma assim como nas discusses em sala de aula os debates ps-aula foram enriquecedores,
tanto teoricamente quanto em termos de confraternizao e celebrao da vida. Neste
processo o Quatro Estaes se configurou como palco privilegiado de troca e construo de
conhecimentos como tambm de descontrao.
No poderia deixar de reconhecer a importncia dos funcionrios da secretaria do
Mestrado Hlio e Aletheia pelo apoio dado para o cumprimento dos prazos e desenvolvimento
dos trabalhos. Assim como o apoio prestado pela professora Mirela enquanto representante da
coordenao do PPGE/UEFS.
Por fim, e no menos importante, agradeo a colaborao da equipe da unidade escolar
onde foi realizada a coleta de dados desta pesquisa em especial a diretora da escola e as
funcionrias que trabalham na secretaria. Agradecimento especial s mes beneficirias do
Programa Bolsa Famlia que aceitaram participar das entrevistas e cujos depoimentos foram
de grande relevncia para compreenso do objeto de estudo.
Ciente de que posso ter deixado de mencionar a contribuio de vrias outras pessoas,
deixo aqui os sinceros agradecimentos a todos que direta ou indiretamente ajudaram-me no
processo de formao enquanto professor-pesquisador.
Muito obrigado!
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Em perspectiva histrica ampla, a sociedade em movimento apresenta-se como uma vasta
fbrica das desigualdades e antagonismos que constituem a questo social. A prosperidade da
economia e o fortalecimento do aparelho estatal parecem em descompasso com o
desenvolvimento social. Isto , a situao social de amplos contingentes de trabalhadores
fabrica-se precisamente com os negcios, a reproduo do capital. As dificuldades agudas da
fome e desnutrio, a falta de habitao condigna e as precrias condies gerais de sade so
produtos e condies dos mesmos processos estruturais que criam a iluso de que a economia
brasileira moderna, ou que o Brasil j a oitava potncia econmica do mundo ocidental e
cristo. (IANNI, 1994, p. 92)
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RESUMO
A presente pesquisa problematizou a relao estabelecida entre o Programa Bolsa Famlia
PBF - e a educao no sentido de compreender se o mesmo exerce efeitos na vida escolar de
seus beneficirios, bem como seus possveis efeitos na superao da situao de
vulnerabilidade social de famlias beneficirias. O estudo foi orientado pela seguinte questo:
quais as diretrizes do PBF para a educao e em que medida elas se efetivam como
mecanismos operatrios no desempenho escolar dos beneficirios e na promoo da
superao da vulnerabilidade social? Em face desta questo, a pesquisa teve por objetivo
analisar se e como o Programa Bolsa Famlia gera efeitos no desempenho escolar e na
superao da situao de vulnerabilidade social das famlias beneficirias. Com o aporte
metodolgico da pesquisa qualitativa e por meio da anlise de contedo, a pesquisa utilizou
como instrumentos de coleta de dados fontes documentais como atas de resultados finais dos
estudantes entre os anos 2006 e 2012, listas de estudantes beneficirios na unidade escolar
entre 2006 e 2012, legislao referente ao PBF e avaliaes realizadas pelo Ministrio do
Desenvolvimento Social. Alm das fontes documentais foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com cinco mes de estudantes beneficirios, selecionadas entre as que
possuam maior tempo no Programa, bem como aplicao de questionrio direo da escola.
O campo de coleta de dados ocorreu na unidade escolar cujo cognome adotado para a
pesquisa foi Caminho das Letras, localizada no municpio de Feira de Santana-Ba. Algumas
categorias de anlise foram importantes no movimento de compreenso do objeto de pesquisa,
sendo elas a concepo de pobreza e vulnerabilidade social. Sob uma perspectiva crtica da
anlise de nossas polticas sociais, em especial das polticas focalizadas, entre as quais se
insere o PBF, no sentido de explorar as contradies inerentes mesmas, o quadro terico
associado s fontes consultadas, permitem inferir que na contramo das garantias sociais
anunciadas pela Constituio de 1988, a vinculao da educao como condicionalidade do
Programa Bolsa Famlia, insere-se no contexto das polticas neoliberais que ganham corpo em
nosso pas na dcada de 90 do sculo passado, tendo por influncias marcantes na rea
educacional a vinculao da educao como preparao para o trabalho e qualificao de mo
de obra como meio de ativao para o mercado de trabalho. Os resultados da pesquisa
evidenciaram que as taxas de abandono escolar dos estudantes beneficirios apresentaram
declnio no perodo investigado. Estabelecendo comparao entre estudantes beneficirios e
no beneficirios na unidade escolar, constataram-se tambm entre os estudantes beneficirios
altas taxas de reprovao alm de taxas de abandono superiores s dos estudantes
beneficirios em todos os anos analisados. Acompanhando especificamente o desempenho
dos filhos das cinco mes entrevistadas constatou-se entre os mesmos a recorrncia de
abandono escolar e alta taxa de reprovao escolar.
Palavras-chave: Programa Bolsa Famlia, educao, pobreza, vulnerabilidade social.
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ABSTRACT
This research problematized the relationship between the Bolsa Familia Program - PBF - and
education in order to understand whether it has effects in the school life of its beneficiaries as
well as their possible effects in overcoming the social vulnerability of beneficiary families.
The study was guided by the following question: what are the guidelines of GMP for
education and to what extent they become effective and operative mechanisms in the school
performance of the beneficiaries and the promotion of overcoming social vulnerability? In the
face of this question, the research aimed to examine whether and how the Bolsa Famlia
Program generates effects on school performance and overcoming the social vulnerability of
the beneficiary families. With the methodological approach of qualitative research and by
means of content analysis, the research used as instruments for data collection documentary
sources as minutes of final results of students between 2006 and 2012 lists of beneficiaries
students at schools between 2006 and 2012, legislation related to GMP and evaluations
conducted by the Ministry of Social Development. Apart from documentary sources
semistructured interviews were conducted with five mothers of beneficiary students, selected
among those having more time in the program, as well as a questionnaire to school officials.
Field data collection occurred at schools whose cognomen was adopted for the research Way
of Letters, in the city of Feira de Santana, Bahia. Some categories were important in
understanding the movement of the object of research, they being the conception of poverty
and social vulnerability. From a critical perspective of the analysis of our social policies,
especially targeted policies, among which enters the PBF, to explore the contradictions
inherent in the same, the theoretical framework associated to source data allow us to infer that
the opposite of guarantees social announced by the Constitution of 1988, linking education as
conditionality of Bolsa Famlia, is within the context of neoliberal policies gain traction in our
country in the 90s of last century, with the notable influences in education linking the
education as preparation for work and qualification of manpower as a means of activation for
the labor market. The survey results showed that the dropout rates of students beneficiaries
showed decline in the investigated period. Establishing a comparison between beneficiaries
and non students at schools, it was also found between high student beneficiaries failure rates
beyond dropout rates higher than those of students beneficiaries in all years analyzed.
Specifically following the performance of the five children interviewed mothers was found
between the same recurrence and high dropout rate of school failure.
Keywords: Bolsa Familia Program, education, poverty, social vulnerability.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Mapa localizao Feira de Santana-Ba .................................................................. 71
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Quantitativo de matrculas (2006 a 2012) .............................................................. 74
Tabela 2: Nmero de Matrculas na Educao Bsica por Dependncia Administrativa........75
Tabela 3: IDEB-FEIRA DE SANTANA (Anos finais do ensino fundamental) .....................76
Tabela 4: IDEB-BAHIA (Anos finais do ensino fundamental) ..............................................76
Tabela 5: IDEB-BRASIL (Anos Finais do Ensino Fundamental) ......................................... 77
Tabela 6: IDEB - Unidade Escolar Caminho das Letras (Anos finais do ensino fundamental)..
.................................................................................................................................................. 77
Tabela 7: Caractersticas das mes participantes da pesquisa ............................................... 90
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Folha de Pagamento Bolsa Famlia por Estado maio/2012 ................................19
Quadro 2: Feira de Santana: estabelecimentos de ensino por dependncia administrativa ....73
Quadro 3: Feira de Santana: matrculas por dependncia administrativa ..............................73
Quadro 4: Desempenho escolar dos estudantes beneficirios (2007-2009) .........................110
Quadro 5: Desempenho escolar dos estudantes beneficirios (2010-2012) .........................110
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BE Bolsa Escola
BF Bolsa Famlia
BM Banco Mundial
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CEE Comunidade Econmica Europeia
CEP Comit de tica em Pesquisa
CEPAL Comisso Econmica Para A Amrica Latina E O Caribe
DASAGI Departamento de Avaliao da Secretaria de Avaliao e Gesto da
Informao
EJA Educao de Jovens e Adultos
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira
LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional
MDS Ministrio do Desenvolvimento Social
ONU Organizao das Naes Unidas
PBE Programa Bolsa Escola
PBF Programa Bolsa Famlia
PRM Programas de Renda Mnima
PTR Programa de Transferncia de Renda
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
UFBA Universidade Federal da Bahia
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UnB Universidade de Braslia
UNEB Universidade do Estado da Bahia
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SUMRIO
1. INTRODUO ......................................................................................................... 18
2. POBREZA, VULNERABILIDADE SOCIAL E PROGRAMAS DE RENDA
MNIMA: RELAES E CONTRADIES.................................................................... 31
2.1. CONCEPES DE POBREZA E A SUA PRODUO/REPRODUO .............. 31
2.2. A POBREZA NO BRASIL: DIMENSES HISTRICAS E POLTICAS............... 41
2.3. VULNERABILIDADE SOCIAL COMO CATEGORIA DE ANLISE DO
COMBATE A POBREZA....................................................................................................... 45
2.4. RENDA MNIMA COMO POLTICA PBLICA NO BRASIL: CONCEPES E
AES A PARTIR DA DCADA DE 1990.......................................................................... 48
2.5. DO PROGRAMA BOLSA ESCOLA AO BOLSA FAMLIA: CONSOLIDAO
DAS POLTICAS FOCALIZADAS....................................................................................... 51
3. BOLSA FAMLIA E PERSPECTIVAS EDUCACIONAIS:
CONDICIONALIDADES E ESTRATGIAS DE OPERACIONALIZAO............... 58
3.1. AS CONCEPES DE EDUCAO E AS PERSPECTIVAS DE EMANCIPAO
DO PBF.................................................................................................................................... 58
3.2. GESTO DO ACOMPANHAMENTO DA CONDICIONALIDADE
EDUCAO........................................................................................................................... 64
3.3. AVALIAES E CUMPRIMENTO DA CONDICIONALIDADE EDUCAO...
...................................................................................................................................................67
4. FEIRA DE SANTANA E O DESEMPENHO ESCOLAR DE ESTUDANTES
BENEFICIRIOS.................................................................................................................. 71
4.1. FEIRA DE SANTANA: A PRINCESINHA DO SERTO E O CENRIO DA
POBREZA............................................................................................................................... 71
4.2. A ESCOLA E OS INDICADORES EDUCACIONAIS: INTERFACES COM O
CENRIO MUNICIPAL......................................................................................................... 74
4.3. CRUZANDO DADOS: DESEMPENHO ESCOLAR DE ESTUDANTES
BENEFICIRIOS E NO BENEFICIRIOS........................................................................ 80
5. EFEITOS DO PROGRAMA BOLSA FAMLIA NA VIDA DE SEUS
BENEFICIRIOS ................................................................................................................. 88
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5.1. OS SUJEITOS DAS ENTREVISTAS: PRIMEIROS CONTATOS .......................... 88
5.2. ARRIMO DE FAMLIA: PERFIL DAS MES BENEFICIRIAS DA
PESQUISA............................................................................................................................... 89
5.3. O LUGAR DA TRANSFERNCIA DE RENDA NA VIDA DOS BENEFICIRIOS
.................................................................................................................................................. 93
5.4. EDUCAO PARA QU? RELAO ENTRE AS FAMLIAS E A
ESCOLA.................................................................................................................................100
5.5. PROBLEMAS EDUCACIONAIS NA VISO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ..
.................................................................................................................................................105
5.6. APROXIMANDO OLHARES: ANALISANDO O DESEMPENHO ESCOLAR DE
DEZ ESTUDANTES BENEFICIRIOS.............................................................................. 109
6. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 115
7. REFERNCIAS ...................................................................................................... 121
8. FONTES DOCUMENTAIS ................................................................................... 127
9. APNDICES ................................................................................................................................................. 130
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18
1. INTRODUO
O presente trabalho Programa Bolsa Famlia: efeitos no desempenho escolar e na
superao da vulnerabilidade social de beneficirios em Feira de Santana-Ba (2006-2012) pe
em relevo a relao entre o Programa Bolsa Famlia e o desempenho escolar de seus
beneficirios do municpio de Feira de Santana-Ba, bem como problematiza relao entre
educao e sada da situao de vulnerabilidade das famlias pertencentes ao Programa.
Constituindo-se atualmente uma das polticas de maior alcance no Brasil, o Programa
Bolsa Famlia PBF foi criado no ano de 2003, a partir da unificao dos Programas Bolsa
Escola, Bolsa Alimentao e Auxlio gs, completando em 2013 dez anos de existncia. De
acordo com a Lei 10.836 de 09 de janeiro de 2004 (BRASIL, 2004), o Bolsa Famlia BF -
tem por objetivos a promoo do acesso rede de servios pblicos, em especial, de sade,
educao e assistncia social; o combate a fome e promoo da segurana alimentar e
nutricional; o estmulo emancipao sustentada das famlias que vivem em situao de
pobreza e extrema pobreza e o combate a pobreza.
Enquanto Programa de Transferncia Direta de Renda - PTR, o PBF se prope a
beneficiar famlias em situao de pobreza e de extrema pobreza no Brasil. A transferncia de
renda, as condicionalidades e programas complementares constituem seus trs principais
eixos de atuao. Segundo os termos do Programa a transferncia de renda tem por finalidade
o alvio imediato da pobreza. J as condicionalidades so situadas como contrapartidas dos
beneficirios tanto para a incluso quanto para a permanncia no Programa e como tal
vinculam o acesso ao benefcio a uma pauta de obrigaes em relao a direitos sociais
bsicos nas reas de educao, sade e assistncia social. Os programas complementares, por
sua vez, apresentam-se como meios para o desenvolvimento das famlias tendo em vista a
superao da situao de vulnerabilidade.
Segundo o Ministrio do Desenvolvimento Social - MDS, o Programa Bolsa Famlia
atende mais de 13 milhes de famlias1. Em dez anos de existncia, o PBF vem se
constituindo como programa de transferncia de renda de maior alcance em termos de
populao atendida.
1 Disponvel em: Acesso em 25 de mai. de 2014.
http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2012/maio/bolsa-familia-inclui-novos-beneficiarios-em-maiohttp://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2012/maio/bolsa-familia-inclui-novos-beneficiarios-em-maio
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19
Quadro 1: Folha de Pagamento Bolsa Famlia por Estado maio/2012
Estado Famlias Total
AC 68.843 9.774.520,00
AL 428.484 53.022.944,00
AM 322.170 44.782.274,00
AP 51.773 7.403.038,00
BA 1.778.406 212.610.431,00
CE 1.095.955 130.649.826,00
DF 85.190 9.225.892,00
ES 192.234 22.626.416,00
GO 337.435 39.869.004,00
MA 940.458 121.070.263,00
MG 1.166.787 137.509.774,00
MS 136.641 16.425.546,00
MT 175.497 21.019.508,00
PA 791.848 106.039.438,00
PB 499.642 59.438.286,00
PE 1.139.185 135.216.519,00
PI 446.770 53.450.305,00
PR 436.750 50.238.510,00
RJ 745.476 88.858.796,00
RN 357.123 42.170.010,00
RO 113.753 14.201.362,00
RR 46.777 6.353.831,00
RS 449.248 53.166.586,00
SC 138.388 16.502.566,00
SE 263.618 31.978.209,00
SP 1.186.610 137.358.984,00
TO 134.975 16.701.596,00
Total Geral 13.530.036 1.637.664.434,00 Fonte: MDS
O quadro acima nos d uma viso no apenas do alcance do programa em termos de
famlias atendidas, mas, principalmente, da distribuio das famlias atendidas no Brasil,
reflexo das desigualdades existentes entre as diversas regies deste pas de dimenses
continentais. Embora seja o estado da federao com a maior populao absoluta2, So Paulo
2 De acordo com o Censo do IBGE, em 2010 o estado de So Paulo contava com 41.262.199 de habitantes, a
Bahia com 14.016.906 e Pernambuco com 8.796.448 de habitantes. Disponvel em <
http://www.ibge.gov.br/estadosat/> Acesso em 25 de mai. de 2014.
http://www.ibge.gov.br/estadosat/
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20
ocupa a segunda posio em termos de nmero de famlias atendidas. O estado da Bahia,
embora ocupe o quarto lugar no Brasil em termos populacionais, o estado que mais possui
famlias beneficirias do Programa, com 1.778.406 famlias. Alm da Bahia, mais dois
estados da regio nordeste do pas ultrapassam a casa de um milho de famlias beneficirias,
Pernambuco e o Cear, com 1.139.185 e 1.095.955 de famlias, respectivamente.
Apesar do alcance do PBF em termos de famlias atendidas, as interpretaes sobre o
mesmo, longe de se mostrarem unssonas, vm sendo marcadas por dissensos. Verifica-se
nesse cenrio, de um lado aqueles que aprovam e apoiam a iniciativa, justificando a
capacidade de melhoria nas condies de vida das famlias beneficirias (muitas das quais tm
nessa fonte a nica renda familiar); outros pela capacidade de movimentao dos comrcios e
servios locais, contribuindo para a gerao do que chamam de novos postos de trabalho; os
que consideram o potencial do recurso monetrio recebido promover empoderamento das
mulheres beneficirias, alm daqueles que defendem a capacidade de manter estudantes na
escola e o carto de vacinao dos filhos em dia.
Neste cenrio, algumas produes acadmicas tm problematizado o Programa a partir
da concepo de sociedade a que se prope. Dentre eles Lazani (2011) ressalta alguns
detalhes ideolgicos na formulao do PBF. Primeiramente, por destinar-se s famlias pobres
e extremamente pobres, caracterizando-o como um programa assistencial, carregado de
estigma, e que por isso se distancia da capacidade de diminuir as desigualdades bem como
promover aumento de segurana entre todas as classes, visto que, para ser beneficirio,
necessrio que a famlia esteja na base mais baixa da pirmide social. Segundo, defende que
transferncia de renda um mecanismo de alvio imediato da pobreza e no um mecanismo
permanente de reduo de desigualdades mais abrangente. Terceiro, acredita que a reduo da
concentrao de renda, quase insignificante, no diz respeito apenas ao do Bolsa Famlia.
Por fim, afirma desconhecer evidncia emprica de que os beneficirios consigam postos de
trabalho mais qualificados, o que, segundo ele, contradiz o propsito do Programa de
promover emancipao dos beneficirios (LAZANI, 2011).
A discusso sobre a possibilidade do PBF se configurar em instrumento de
distribuio de renda considerada por Lazani (2011) como um paradoxo, visto que para ele,
apesar de ter um peso relativamente importante na diminuio da pobreza e da misria
extrema, sozinho incapaz de produzir transformaes mais substanciais a mdio e longo
prazo. Ainda segundo o autor, em que pese o valor transferido, considerado pequeno, e da
instabilidade de permanncia no Programa, o mesmo vem representando um alvio material
significativo para as famlias das regies mais pobres do pas, o que leva apreender o PBF
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21
nas suas contradies, nos seus limites e possibilidades de combater a pobreza imediata, assim
como da possibilidade de se expandir para o conceito de cobertura financeira nos moldes
universal, como defendido por Lazani (2011) e Silva (2007).
Tal intepretao tambm levou Silva (2006) a tecer algumas crticas, classificando-o
como um programa que se aproxima de uma orientao poltica neoliberal e assistencial.
Segundo ela, os resultados alcanados no parecem ser capazes de ultrapassar a manuteno
das grandes desigualdades sociais e parecem se direcionar para a criao de um estrato de
pobres situados num patamar de indigncia ou mera sobrevivncia, com impactos duvidosos
sobre a interrupo do ciclo vicioso de reproduo da pobreza (SILVA, 2007, p. 38).
Para Silva (2007), embora o Programa Bolsa Famlia tenha sido importante na
unificao dos Programas de Transferncia de Renda existentes e muito j ter feito em termos
de nmero de atendimentos e de recursos investidos, alguns obstculos ainda se colocam tanto
no que se refere execuo da proposta, quanto modificao de uma cultura ainda
persistente em alguns lugares de prticas clientelistas e conservadoras e quanto necessidade
de alterar substancialmente o quadro de pobreza, sobretudo quando se trata da questo de
promoo da autonomia das famlias.
Neste mesmo movimento, Ferreira (2010), objetivando desenvolver uma anlise do
PBF na compreenso do perfil de poltica social do programa, concluiu que a massificao
do PBF no significou alterao qualitativa substancial na sua natureza de programa
focalizado, seletivo e compensatrio, inspirado em pressupostos neoliberais (FERREIRA,
2010, p. 130). Assim como Lazani (2011), autores como Silva (2006) e Silva (2007) associam
tambm o Programa concepo de poltica social marcada pela influncia da perspectiva
neoliberal, acreditando que sequer consegue responder s necessidades mais elementares de
subsistncia das famlias.
Em perspectiva analtica diversa, Bichir (2010), considera que a participao dos
adultos no mercado de trabalho maior entre os beneficirios do que no restante da
populao. Embora a autora busque no mercado de trabalho a justificativa para localizar o
sucesso do PBF, tal defesa esconde armadilhas dentre as quais a que diz respeito ao tipo de
trabalho que estes beneficirios esto sujeitos, tendo em vista que para continuar no Programa
existe um patamar de renda per capta que, ultrapassado, implica em sua excluso. Assim, se
esto no mercado de trabalho e ainda com as condies exigidas para continuar recebendo o
benefcio, depreende-se que esto sujeitos a postos e condies de trabalho precrios,
incapazes de promover a sada deste trabalhador da situao de vulnerabilidade.
-
22
A autora supracitada reconhece ainda que o PBF um programa bem focalizado e com
cobertura de grande flego. Entretanto, questiona as potencialidades e as limitaes do
Programa em termos de seus impactos sobre a reduo da pobreza e da desigualdade,
acreditando que o debate deve apontar para a necessidade de articulao do Programa com
outras polticas sade, educao, gerao de emprego e renda, entre outras (BICHIR,
2010).
Weissheimer (2006) levanta alguns questionamentos referentes possibilidade de um
programa como o BF ser implementado como uma poltica eficaz de reduo das
desigualdades sociais a partir de solues clssicas de mercado. Em que pese a pertinncia do
questionamento feito pelo autor no que concerne s possibilidades do Programa promover
reduo das desigualdades sociais, o mesmo justifica o sucesso do Programa por meio de
afirmaes de rgos comprometidos com a reproduo da estrutura de produo capitalista,
como o Banco Mundial BM. Dentre as justificativas do sucesso do PBF apontado pelo autor
encontra-se a do presidente do BM: antes de tudo estou impressionado com as dificuldades
pelas quais passam essas pessoas, como trabalham duro, e o esforo que fazem para ter uma
dignidade to alta em face das circunstncias (WEISSHEIMER, 2006, p. 49). Entretanto,
rgos como o BM so corresponsveis pela estrutura de desigualdades s quais famlias
como as beneficirias pelo PBF esto sujeitas.
Rego (2013, p. 13), por sua vez, acredita que as mes beneficirias passaram a ser
sujeitos de relativo empoderamento realizado por meio do dispositivo de transferncia de
renda. E que, ao garantir a sobrevivncia dos beneficirios, o Programa Bolsa Famlia resulta
na humanizao de seus destinatrios, a qual representa, a seu ver, um passo necessrio e
decisivo no seu processo de autonomizao. Entretanto, estudos como estes, que tomam a
transferncia monetria de recursos como capazes de dar poder s mes beneficirias, no
problematizam os limites deste poder na sociedade capitalista. Pauta-se, assim, em uma
liberdade de compra ilusria que destoa da concepo de liberdade defendida no presente
trabalho, sobre a qual falaremos adiante.
Os estudos acima apontam para quadros distintos em termos de anlise do Programa
visto que enquanto alguns salientam os aspectos imediatos causados na vida material de seus
beneficirios, outros vo alm do como o Programa se apresenta para verificar as bases
ideolgicas em que se assentam e, por assim dizer, lgica de organizao enquanto poltica
social em contexto neoliberal. Neste sentido, a anlise de polticas e programas sociais requer
ateno especial aos interesses que esto por trs das aes dos governos, visto que tanto a
criao como a implementao de programas carregam consigo intencionalidades daqueles
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que se encontram envolvidos no processo. Esta reflexo se aplica tambm ao Bolsa Famlia
que no lugar de uma poltica de Estado3 constitui-se ainda como poltica de governo, visto que
o mesmo, da forma como operado, no se constitui uma proposta que compromete
diferentes agentes da sociedade civil e da sociedade poltica no delineamento de polticas
sociais sistmicas mas caracteriza-se como um programa pontual que, apesar de aes
objetivas, vem sendo relacionado a conjunturas e prticas polticas de governos especficos.
Neste sentido, apresenta-se como um programa emergencial e sem garantias de continuidade.
Os dissensos presentes nos argumentos sobre o PBF, a exemplo da concepo acima,
revelaram-se tambm presentes nas produes acadmicas sobre o mesmo. Assim, no
processo de levantamento das produes acerca do Programa Bolsa Famlia, constatamos que
os debates tm perpassado por diversas reas do conhecimento como servio social, sade,
economia e educao. Das produes acadmicas sobre o tema no banco de teses e
dissertaes da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior Capes -
entre os anos de 2001 e 2012, foram encontrados 46 trabalhos sobre o Programa Bolsa
Famlia. Do levantamento pode-se constatar que grande parte das produes sobre o tema
foram apresentadas em universidades do Centro-sul do Brasil, mais especificamente em So
Paulo (14), Rio de Janeiro (12), Braslia (05), Minas Gerais (02), Santa Catarina (02) e Rio
Grande do Sul (01). Na regio Nordeste identificadas produes nas universidades do
Maranho (04), Paraba (02), Pernambuco (02) e Cear (01); enquanto que na regio Norte,
apenas no Par, 01 produo. Dentre esses trabalhos apenas um diz respeito anlise do PBF
na Bahia.
No contexto das pesquisas desenvolvidas entre os anos 2001 e 2012 que tiveram por
objeto de estudo o Programa Bolsa Famlia, abro espao aqui para ressaltar que dentre os
fatores que motivaram a presente pesquisa encontra-se o trabalho desenvolvido por mim e que
resultou na monografia de final de curso de ps-graduao latu sensu, no curso de
Especializao em Educao e Pluralidade Sociocultural, da Universidade Estadual de Feira
de Santana, Sob o ttulo Programa Bolsa Famlia: uma anlise de resultados educacionais de
bolsistas do Distrito de Maria Quitria (OLIVEIRA, 2008). A pesquisa objetivou analisar se e
em que medida o Programa Bolsa Famlia vinha cumprindo seu objetivo de manter os
3 Ao contrrio de uma concepo de Estado restrita sociedade poltica (aparelho coercitivo), compreendemos
aqui o Estado em sentido amplo, como resultado da correlao de foras entre sociedade poltica e sociedade
civil, esta formada precisamente pelo conjunto das organizaes responsveis pela elaborao e/ou difuso das
ideologias (incluindo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos polticos, os sindicatos, as organizaes
profissionais, a organizao material da cultura - revistas, jornais, editoras, meios de comunicao de massa etc.)
(COUTINHO, 1999).
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estudantes na escola e se esta permanncia tinha implicaes em termos de sucesso escolar. A
pesquisa apontou para dois caminhos. O primeiro constatou um avano em termos de
permanncia dos estudantes na escola durante o ano letivo e o segundo que os resultados dos
estudantes neste mesmo perodo indicou fragilidades em termos de aprendizado necessrio ao
menos para o acesso s sries seguintes, evidenciando altas taxas de reprovao escolar.
Em que pese a considervel produo sobre o tema chama ateno que a maior
populao beneficiria do Programa Bolsa Famlia, a baiana, ainda seja to pouco estudada.
Ao lado disso observa-se tambm que, entre todos os estudos realizados as reas de Economia
e Administrao (11), englobam o maior nmero de trabalhos, seguidas pelas reas de Servio
Social (08), Polticas Pblicas (07), Sociologia (06), Educao (06), Sade (05), Psicologia
(02) e Comunicao Social (01).
Dos dados acima podemos depreender que apesar do expressivo nmero de produes
sobre o Programa Bolsa Famlia, as pesquisas acadmicas na rea educacional (de acordo com
o banco de dados para o perodo consultado), mostraram-se incipientes entre os anos 2001 e
2012.
Os dados acima apresentados acerca da produo sobre o Programa Bolsa Famlia
denota carncia de estudos sobre o tema, em especial na rea de Educao e principalmente
nas instituies de ensino superior do nordeste do Brasil, regio onde a concentrao de renda
e pobreza violenta, as distores educacionais saltam aos olhos e se localiza o maior nmero
dos beneficirios do Programa.
Partindo de tal constatao bem como da reviso bibliogrfica sobre o PBF a presente
pesquisa pe em relevo os efeitos do PBF no desempenho escolar de seus beneficirios. Neste
sentido, a pesquisa orientou-se pela seguinte questo: quais as diretrizes do PBF para a
educao e em que medida elas se efetivam como mecanismos operatrios efetivos no
desempenho escolar dos beneficirios e na promoo da superao da vulnerabilidade social?
Tal questo, longe de assumir um ideal de educao que a potencializa como fora motriz do
desenvolvimento ou mesmo como principal elemento de correo das desigualdades sociais,
como pretendem as abordagens no crticas da educao (Cf. Saviani, 1989) volta-se para o
tensionamento desta viso e problematiza a relao escolarizao-superao da
vulnerabilidade, preconizada pelo Programa. Portanto, em dilogo com as estratgias
anunciadas pelo PBF, voltamo-nos para a apreenso e anlise dos indicadores educacionais,
confrontando o desempenho escolar dos beneficirios e dos no beneficirios, bem como a
percepo dos sujeitos implicados, particularmente as mes, sobre os efeitos do Programa nas
suas vidas.
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Em face dessa questo o estudo assumiu como objetivo geral analisar se e como o
Programa Bolsa Famlia gera efeitos no desempenho escolar e na superao da situao de
vulnerabilidade social das famlias beneficirias. Como suporte ao alcance do objetivo
supracitado, bem como da questo levantada, a pesquisa est orientada pelos seguintes
objetivos especficos:
1. Caracterizar a populao atendida pelo Programa;
2. Identificar as formas de acompanhamento dos beneficirios pelos rgos
competentes;
3. Analisar as avaliaes realizadas pelos rgos governamentais referentes ao
cumprimento da condicionalidade educao.
Neste movimento, algumas categorias de anlise foram importantes para interpretao
dos dados e no processo de apreenso dos efeitos do Programa na vida de seus beneficirios:
os conceitos de pobreza e de vulnerabilidade social.
A categoria pobreza entendida em dilogo com a advertncia feita por Pereira
(2006), segundo a qual o conceito de pobreza necessariamente prescritivo, poltico e moral,
visto que o seu estudo deve sempre implicar algo a se feito com vista a combat-la (p. 236).
Neste sentido, abordar a pobreza enquanto categoria de anlise, mais do que conceb-la
apenas como conceito analtico, implica sua compreenso como fenmeno socialmente
produzido e que, no contexto em que vivemos tem filiao e exige tomada de posicionamento
frente aos efeitos gerados por ela em quantidade expressiva de nossa populao.
Dada a complexidade e ausncia de consenso da definio da pobreza, esta torna-se
um conceito poltico, alm de que, o seu enfrentamento implica conflitos de interesses e
correlaes de foras (PEREIRA, 2006, p. 246). Prescritivo e moral, por exigir alm de
respostas prticas, a necessidade de posicionamento em relao a ele. A autora considera
ainda que por ser o extremo inaceitvel da desigualdade, no pode se restringir uma
preocupao de acadmicos e polticos, mas uma responsabilidade moral, da qual nenhum
governo deve abrir mo.
Neste entendimento, em oposio explicao das suas causas como consequncias de
inadaptaes dos indivduos, ou de provveis desvios, entendemos a pobreza como fenmeno
intensificado pela emergncia e reconfigurao do capitalismo. Significa dizer que a pobreza,
como produto social, o resultado de complexas foras sociais, como as aes de classes e de
instituies que interagem dentro de uma particular ordem social e econmica (ALVES,
2010). Autores como Marx (1996), Ianni (1994), Pereira (2006), Pereira (2012), Alves (2010)
nos ajudam ento a compreender a pobreza relacionada lgica de funcionamento do sistema
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produtivo, do mercado de trabalho, do sistema de educao e de formao, assim como do
sistema de distribuio de rendimentos e do poder na sociedade.
As discusses relacionadas pobreza esto presentes nos discursos e documentos
oficiais que balizam o Programa Bolsa Famlia, assim como a situao de vulnerabilidade
social de seus beneficirios. Assim sendo, a vulnerabilidade social constitui-se categoria de
anlise da busca pelo Programa de emancipao das famlias vulnerveis por meio da ativao
para o mercado de trabalho, sendo que a educao passa a ser usada como instrumento nesse
processo. Assim, necessria se fez a compreenso do conceito de vulnerabilidade que
fundamenta o Programa e que tem relao direta na tentativa de retirada da populao situada
na faixa da pobreza e da extrema pobreza desta condio para que caminhem com as
prprias pernas.
Baseados nas anlises trazidas por Monteiro (2011), levamos em considerao a
compreenso dos fatores estruturais inerentes lgica capitalista como uma das principais
responsveis pela vulnerabilidade qual grande parte de nossa populao est sujeita. Neste
movimento, as anlises desenvolvidas por Pereira (2012) nos ajudam a compreender o pano
de fundo que sustenta a defesa do desenvolvimento de ativos pelo PBF. Assim, analisamos a
relao entre o PBF e a sada da situao de vulnerabilidade social a partir das contradies
ali presentes.
Metodologia e Fontes
A presente pesquisa, de natureza qualitativa, foi realizada sob uma concepo crtica
tendo em vista a perspectiva de explorar as contradies, interesses e vises de mundo que
envolvem o objeto de estudo. Para compreenso do objeto em sua complexidade os
instrumentos de coleta de dados abrangeram a pesquisa documental, uso de questionrio e de
entrevistas semiestruturadas. Com estes instrumentos procuramos, atravs do resgate histrico
desde o ingresso no Programa, identificar se o PBF influenciou na vida dos beneficirios, com
especial ateno ao desempenho escolar dos estudantes. Sabendo que a cada indivduo ou
grupo de indivduos correspondem histrias de vida distintas, influenciadas por diversos
aspectos de seu contexto, os procedimentos revelaram-se importantes para maior aproximao
com a trajetria escolar dos beneficirios em relao com questes de ordem econmico-
social e cultural que interferem na vida das pessoas, simultaneamente, de forma individual e
coletiva.
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Os primeiros passos do desenvolvimento da pesquisa, aps a levantamento da
bibliografia sobre o tema, foi o mapeamento dos documentos relativos ao Programa Bolsa
Famlia e aos estudantes beneficirios. Para a apreenso dos significados destes, foi
importante o desenvolvimento da pesquisa documental. Bardin (1977) ao abordar a anlise
documental, a define como
Uma operao ou um conjunto de operaes visando representar o contedo de um
documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar num estado
ulterior a sua consulta e referncia. Enquanto tratamento da informao contida nos
documentos acumulados, a anlise documental tem por objetivo dar forma
conveniente e representar de outro modo essa informao, por intermdio de
procedimentos de transformao (p. 40).
Assim sendo, considerando que os documentos no so neutros, mas produzidos em
determinado contexto, a pesquisa documental foi importante para a compreenso dos
processos sociais que envolvem o objeto de estudo. O tratamento das informaes contidas
nos documentos consultados, como ressalta Bardin (1977), foram fundamentais para a
posterior anlise da relao entre o Programa Bolsa Famlia e sua influncia na vida dos
beneficirios.
Neste movimento, os documentos impressos e digitais (a exemplo de leis e decretos
federais, como da criao e regulamentao do Programa Bolsa Famlia) forneceram dados
referentes s caractersticas do Programa Bolsa Famlia, sua concepo enquanto programa
social, os critrios de incluso/excluso, as condicionalidades, resultados, nmero de
beneficirios, valores do benefcio etc. Ainda foram consultados relatrios anuais acerca do
Programa do Governo Federal e do Ministrio da Educao no que concerne avaliao da
educao. Sobre o procedimento metodolgico da pesquisa documental Demo (1992), chama
ateno para que, ao analisar dados, devamos ficar atentos s omisses, isto , ao que no se
explicita de imediato, ao no revelado e o que encobrem, pois (...) o mesmo dado pode
permitir ilaes contraditrias, dependendo de seu encaixe terico (DEMO, 1992, p. 14).
Alm da utilizao da pesquisa documental, fizemos uso de entrevistas
semiestruturadas. Estas, segundo Trivios (1987), consistem na entrevista que parte de certos
questionamentos bsicos, apoiados em teorias e hipteses que interessam pesquisa, que, em
seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipteses que vo surgindo
medida que se recebem as respostas do informante (TRIVIOS, 1987, p. 146). De acordo
com o autor tal procedimento favorece no s a descrio dos fenmenos sociais, mas
tambm sua explicao e a compreenso de sua totalidade.
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A opo pela realizao de entrevista semiestruturada justifica-se por valorizar, de um
lado, o direcionamento que propiciado pela entrevista estruturada e, por outro, a
flexibilidade que a entrevista no estruturada permite diante da possibilidade do imprevisto.
Constitui-se, assim, de acordo com Neto (1994), uma articulao entre as duas modalidades.
As entrevistas, alm da compreenso dos efeitos do Programa na vida dos beneficirios
(considerando o cruzamento das entrevistas com dados estatsticos e fontes documentais),
permitiram tambm a apreenso da percepo dos usurios sobre o benefcio, alm de
apreender as relaes estabelecidas entre as famlias e a escola, possibilitando o cruzamento
das informaes contidas nos documentos, as prestadas pela escola bem como com as
informaes veiculadas pelo Programa.
Para a apreenso dos efeitos do PBF na vida dos beneficirios, a realizao das
entrevistas foi de grande relevncia por revelar aspectos que demarcam as contradies das
polticas focalizadas pautadas em condicionalidades. Assim, para alm dos aspectos
aparentemente perceptveis em termos materiais, imediatos, outros elementos foram
apreendidos a partir dos depoimentos das mes beneficirias e que revelam questes que
perpassam pelas concepes de pobreza, sociedade e educao do Programa.
Da realizao da pesquisa documental bem como das entrevistas emergiram algumas
questes que suscitaram a necessidade de elaborao de um questionrio aplicado direo da
escola a fim de que o objeto de estudo fosse melhor investigado. Tal questionrio diz respeito
relao da escola e suas responsabilidades frente ao Programa.
No que concerne ao municpio de Feira de Santana enquanto local de realizao da
pesquisa, apesar dos dados expressivos em relao ao quantitativo de escolas e de matrculas,
a escolha do mesmo justificou-se pelas informaes referentes ao percentual de pessoas na
situao de extrema pobreza que, de acordo com o Boletim de Informaes do Ministrio do
Desenvolvimento Social, indicava que o municpio contava com 37.986 pessoas na extrema
pobreza, isto levando em considerao que Ministrio do Desenvolvimento Social
considerava extrema pobreza aqueles indivduos que recebem menos de R$70,00 mensais
(BRASIL, 2013).
A delimitao do perodo estudado, antes prevista para o perodo de 2003 (ano de
criao do PBF) a 2012 (ano em que se iniciou a presente pesquisa), a partir da busca dos
documentos sobre movimentao escolar dos beneficirios passou a abranger apenas o
perodo 2006-2012. Isso se deveu ao fato de no localizar no local de realizao da pesquisa,
nem na escola nem na coordenao local do PBF no municpio de Feira de Santana,
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informaes sobre a movimentao escolar dos estudantes beneficirios entre os anos 2003 e
2005.
Os sujeitos da pesquisa constituem-se de estudantes beneficirios do PBF e de cinco
mes de estudantes beneficirios, estas ltimas participantes das entrevistas. A coleta de
dados empricos se deu em uma escola integrante da rede estadual de educao, situada em
Feira de Santana, e que para efeitos desta pesquisa recebeu o cognome de Caminho das
Letras. Esta escola, localizada em um bairro popular do municpio, de acordo com dados
fornecidos pela prpria instituio, teve 657 alunos matriculados no ano de 2012, operando
nos turnos matutino, vespertino e noturno, neste ltimo, apenas com Educao de Jovens e
Adultos (EJA).
Os critrios utilizados para identificao e seleo das cinco mes que colaboraram
com este estudo foram o tempo no Cadastro nico4 e a disposio para colaborar com a
pesquisa aps a apresentao dos objetivos da mesma e do esclarecimento sobre os usos dos
depoimentos. Em relao ao tempo, observou-se as mes que tinham mais longa durao no
Programa e a partir desse critrio foi possvel localizar dez mes que atendiam aos critrios
estabelecidos, das quais, cinco participaram das entrevistas5. No que diz respeito
participao das mes nas entrevistas importante salientar o medo presente nas mesmas de
que a pesquisa pudesse de alguma forma comprometer o recebimento do Benefcio. Neste
sentido, diante do compromisso tico aqui assumido desde o acesso aos primeiros
documentos utilizados, foi-lhes explicado toda questo tica envolvendo a pesquisa bem
como a responsabilidade pelos dados coletados, deixando claro que a mesma no dizia
respeito a estudo de ordem institucional do governo6.
Para registrar as falas das entrevistas fizemos uso de gravaes por meio de
equipamento eletrnico, sendo as mesmas catalogadas e arquivadas separadamente, recebendo
cada uma o nome fictcio adotado por elas mesmas, os quais encontram-se na anlise das
entrevistas presentes no ltimo captulo.
O trabalho est dividido em quatro captulos, alm da introduo e consideraes
finais. No primeiro captulo, analisamos historicamente os conceitos de pobreza bem como a
pobreza no Brasil e sua relao com o surgimento dos programas de renda mnima como
4 Institudo pelo decreto n 6.135, de 26 de junho de 2007, o Cadastro nico constitui instrumento de
identificao e caracterizao socioeconmica das famlias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente
utilizado para seleo de beneficirios e integrao de programas sociais do Governo Federal voltados ao
atendimento desse pblico (BRASIL, 2007). 5 Levando em considerao a aceitao por livre e espontnea vontade e comparecimento entrevista no dia
agendado. 6 Visto que muitas, por achar em princpio, que se tratava de pesquisa do MDS por diversas vezes queixavam-se
do valor recebido.
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forma de superao. Discutindo a pobreza e, em especial, a pobreza no Brasil, situamos o
surgimento dos Programas de Renda Mnima PRMs como tentativa do governo minimizar
os seus efeitos. Problematizamos, por conseguinte, o conceito de vulnerabilidade social e sua
utilizao no cenrio das polticas sociais brasileiras, em especial o BF. Ainda neste captulo,
analisamos as caractersticas do Programa Bolsa Famlia, sua criao, implementao e
consolidao no cenrio das polticas sociais brasileiras.
No segundo captulo problematizamos algumas concepes de educao, assim como
as perspectivas de emancipao do Programa Bolsa Famlia para, em seguida, identificar e
analisar as formas de operacionalizao, controle e acompanhamento dos objetivos e
diretrizes do mesmo, com especial ateno condicionalidade educao.
No terceiro captulo, apresentamos o local onde se realizou a pesquisa emprica, bem
como os sujeitos nela envolvidos e como o Programa se articula com a unidade escolar
Caminho das Letras. A partir dos dados coletados nas atas de resultados finais, analisamos o
desempenho escolar dos estudantes beneficirios do Programa na escola a fim de verificar
como este se processou entre 2006 e 2012.
Por fim, no quarto e ltimo captulo, analisamos os efeitos do Bolsa Famlia na vida
de beneficirios da unidade escolar Caminho das Letras em relao perspectiva anunciada
pelo Programa de superao da vulnerabilidade social e as possveis implicaes da educao
neste processo. Iniciamos com a anlise das entrevistas com cinco mes beneficirias do
Programa para, em seguida, questionar a educao como vetor de superao da
vulnerabilidade social.
Nas consideraes finais retomamos o objetivo e a questo da pesquisa para
estabelecer sntese dos resultados obtidos a partir da anlise dos dados.
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2. POBREZA, VULNERABILIDADE SOCIAL E PROGRAMAS DE
RENDA MNIMA: RELAES E CONTRADIES
Este captulo analisa historicamente a pobreza, seus conceitos e sua relao com o
surgimento dos programas de renda mnima. Aqui discutimos a pobreza, em especial, a
pobreza no Brasil e neste contexto, o surgimento dos PRMs como poltica governamental de
minimizao dos efeitos da pobreza. Como expresso de polticas dessa natureza o captulo
apresenta um panorama dos programas de renda mnima, com nfase no surgimento do
Programa Bolsa Famlia PBF que, entre os objetivos anunciados, visa a promoo da
autonomia e a emancipao e, por meio desta, a superao da situao de vulnerabilidade de
seus beneficirios, com consequente sada da pobreza.
2.1. CONCEPES DE POBREZA E A SUA PRODUO/REPRODUO
Atualmente os efeitos da pobreza encontram-se disseminados em diversos espaos.
Convivemos com seus resultados diariamente e os mesmos so constantemente explicitados
nas diversas mdias. Por vezes sua presena to constante que chega a ser vista por alguns
como algo natural, sem sada ou soluo. Outras vezes o pobre vulgarmente concebido
como aquele tomado pela preguia, pelo comodismo ou dependente de programas sociais
promovidos pelo governo, sendo, por conseguinte, estigmatizado. Entretanto, a pobreza, longe
de ser algo natural, tem origem e filiao.
Assumindo a desigualdade social como construo social e, portanto, que remonta a
perodos e contextos datados, para efeitos deste trabalho localizamos o fenmeno da pobreza
a partir da emergncia do modo de produo capitalista. Este marco torna-se significativo por
se tratar de um perodo com mudanas profundas nas relaes sociais e, sobretudo, no
trabalho, posto que o trabalhador passou da condio de conhecedor de todo processo de
produo para o de fora de trabalho alienada, obrigando-se a vend-la em troca de sua
manuteno e sobrevivncia. Agregado a isto, foi sob o capitalismo que a pobreza se
constituiu como uma questo poltico-social. De acordo com Lavinas,
A pobreza institui-se como questo social, tanto na Europa quanto na Amrica
Latina, apesar de evidente defasagem no tempo, concomitantemente ao surgimento
das grandes cidades, quando as condies precrias das populaes recm-chegadas
do campo inspiravam preocupao e receio, suscitando intervenes do setor
pblico em prol da instituio de uma nova ordem social. Ela institui-se, portanto, ao
demandar meios para uma regulao eficaz. A moderna sociedade capitalista em
gestao necessitava imperiosamente integrar o proletariado e forjar a classe
trabalhadora (2002, p. 25).
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Ressalte-se que a integrao do proletariado sociedade, como visto acima, no se
daria ao acaso, mas dentro do movimento de ajustamento da mo de obra ociosa
organizao nova sociedade em formao. Como registra Marx (1996), para que se
promovesse a estabilidade da ordem social em ascenso, aqueles que demonstrassem
comportamentos desviantes eram severamente punidos. Assim, muitos camponeses no
absorvidos pelas vagas das manufaturas, praticando ento a mendicncia, passaram a ser
regulados, inclusive, por leis.
Os expulsos pela dissoluo dos squitos feudais e pela intermitente e violenta
expropriao da base fundiria, esse proletariado livre como os pssaros no podia
ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto
no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu modo
costumeiro de vida no conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente sbita na
disciplina da nova condio. Eles se converteram em massas de esmoleiros,
assaltantes, vagabundos, em parte por predisposio e na maioria dos casos por fora
das circunstncias. Da ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do sculo
XV e durante todo o sculo XVI, uma legislao sanguinria contra a
vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente
punidos pela transformao, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A
legislao os tratava como criminosos voluntrios e supunha que dependia de sua
boa vontade seguir trabalhando nas antigas condies, que j no existiam (MARX,
1996, p. 356).
Entretanto, por trs da punio dos que praticavam a vagabundagem, supostamente
de forma voluntria, como demonstrou Marx, existia a inteno de favorecer a manuteno do
exrcito de mo-de-obra indispensvel reproduo do capital, em franco movimento de
constituio. A partir do sculo XVI verificamos ento na Europa, a formao de exrcito de
reserva que vai compor uma das caractersticas do sistema produtivo que comea a ganhar
corpo: a produo da pobreza em massa, oriunda do processo de apropriao da riqueza pela
burguesia em ascenso. Como o mercado de trabalho no absorvia as grandes levas de
desempregados e mesmo os que eram absorvidos estavam em condies precrias, a pobreza
passou a fazer parte da dinmica social em nveis cada vez maiores. O pobre, longe de ter
reconhecida sua situao de vtima do processo foi encarado como parte responsvel por sua
condio.
Neste sentido,
No momento em que uma determinada classe social se apoderou das riquezas e dos
meios de produo, e outra no possua nada mais alm de sua fora de trabalho, a
pobreza at ento conhecida por alguns, tornou-se de massa. E mais, os pobres que
se multiplicavam no eram considerados vtimas e merecedores de proteo de vida,
mas, ao contrrio, culpados pela sua condio (PEREIRA, 2006, p. 240).
Na mesma direo de Pereira (2006), Codes (2008, p. 07), assinala que inicialmente a
preocupao com a pobreza encontrava-se refletida na tnica daquelas leis que consistiam em
organizar a caa aos vagabundos e em obrigar ao trabalho todos aqueles sos de corpo e
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capazes de realizar atividades laborais. neste contexto que verificamos como uma das
primeiras, seno primeira, inciativas governamentais voltadas reduo dos impactos da
pobreza na sociedade, as chamadas Poor Laws, ou Lei dos Pobres. As Poor Laws
ocorreram entre 1531 e 1601 na Inglaterra como recurso poltico de proteo elementar
fora de trabalho. Tal lei em nada alterava a situao de pobreza em que se encontrava a
maioria da populao no possuidora dos meios de produo. Como destaca Marx,
Recorde-se como essa lei foi aplicada no campo: sob a forma de esmolas, a parquia
complementava o salrio nominal at a soma nominal necessria mera vida
vegetativa do trabalhador. A proporo entre o salrio pago pelo arrendatrio e o
dficit salarial coberto pela parquia mostra-nos duas coisas: primeiro a queda do
salrio abaixo de seu mnimo; segundo, o grau em que o trabalhador rural era um
composto de assalariado e indigente, ou o grau em que se o transformou em servo de
sua parquia (1996, p. 303).
Recebendo salrios abaixo do mnimo, gerava no trabalhador cada vez maior
dependncia parquia, a quem cabia complementar o salrio recebido. Devido baixa
possibilidade de superao da situao de indigncia, tornava-se o que Marx chama de servo
de sua parquia. Tal condio contribua para que estes, ao recorrer s cidades em busca de
trabalho, engrossassem as filas de desempregados e, em consequncia, contribusse para a
reduo dos salrios, dada a oferta de mo de obra.
A partir das polticas desenvolvidas pela Lei dos Pobres a pobreza passou a figurar
objeto das primeiras tentativas de se compreender as causas e de se mensurar sua dimenso
constituindo-se tambm nos discursos literrios e nas primeiras enquetes sociais. Concebia-se
a pobreza ento a partir da ideia de necessidades mnimas, cunhada na noo de subsistncia.
Pode-se afirmar que o padro de subsistncia descende daquele tratamento
dado aos pobres na poca das Poor Laws, quando suas necessidades eram
medidas por quantidades de po, farinha de po ou dinheiro equivalente,
havendo, em algumas parquias, a permisso para que se adicionassem
outras necessidades s referidas medidas. Balizando-se nos resultados dos
trabalhos elaborados por nutricionistas, esta abordagem definia como pobre
a famlia cuja renda no fosse suficiente para obter o mnimo necessrio para
sua manuteno meramente fsica (CODES, 2008, p. 11).
As politicas de ajuste social no tocante pobreza pautavam-se assim na concepo de
que aos pobres bastava o suficiente manuteno de suas necessidades bsicas (para a poca),
diga-se de passagem, satisfao das necessidades alimentcias mnimas para a sobrevivncia.
Esta situao est documentada como na passagem a seguir, que ilustra a concepo de
pobreza a partir da noo de subsistncia.
Durante a crise algodoeira, em 1862, o dr. Smith foi encarregado pelo Privy Council
de fazer uma investigao sobre o estado de nutrio dos desgraados trabalhadores
do algodo em Lancashire e Cheshire. Longos anos de observao tinham-no levado
concluso de que, para evitar doenas causadas pela fome (starvation diseases),
a alimentao diria de uma mulher mdia deveria conter ao menos 3.900 gros de
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carbono e 180 gros de nitrognio; a alimentao diria de um homem mdio
necessitaria ao menos de 4.300 gros de carbono e 200 gros de nitrognio, para as
mulheres aproximadamente tanto material nutriente quanto est contido em 2 libras
de bom po de trigo, para os homens 1/9 a mais, para a mdia semanal de mulheres
e de homens adultos ao menos 28.600 gros de carbono e 1.330 gros de nitrognio.
Seu clculo foi confirmado na prtica de modo surpreendente pela coincidncia com
a lastimvel poro de alimento a que a situao de calamidade tinha reduzido o
consumo dos trabalhadores do algodo. Eles obtinham semanalmente, em dezembro
de 1862, 29.211 gros de carbono e 1.295 de nitrognio. (MARX, 1996, p. 283).
Por sua vez, a Revoluo Industrial iniciada na Inglaterra fornece o campo de gestao
de todo aparato necessrio explorao de grandes levas de trabalhadores que nada mais
detm para sua sobrevivncia alm do que a fora de trabalho. Na medida em que aumentava
a acumulao de capital, verificava-se igualmente aumento em sua concentrao e
centralizao. O fosso existente entre aqueles que mais tinham e os que pouco ou nada
possua aumentava vertiginosamente, expressando uma das contradies do modo de
produo que emergia.
uma das caractersticas mais melanclicas da situao social do pas, diz
Gladstone, que com um decrscimo na capacidade de consumo do povo e um
acrscimo nas privaes e na misria da classe trabalhadora, h ao mesmo tempo
acumulao constante de riqueza nas classes altas e crescimento constante de capital
(MARX, 1996, p. 280).
O relato de Marx, a partir da situao descrita por Gladistone, ministro da Cmara dos
Comuns, em 13 de fevereiro de 1843, nos d uma ideia dos nveis de privaes a que estava
sujeita a populao trabalhadora inglesa, bem como das contradies inerentes acumulao
capitalista. Se de um lado cabia aos trabalhadores as privaes na manuteno de suas vidas,
por outro, s classes altas cabia a acumulao de capital base da explorao da fora de
trabalho daqueles. Neste cenrio, embora Gladstone denunciasse a concentrao de riqueza
nas mos de uns poucos, alguns anos depois, em 1863, minimizava a situao dos pobres, ao
tentar justificar provveis benefcios a estes advindos deste processo.
De 1842 a 1852, o rendimento tributvel deste pas cresceu 6%. (...) Nos 8 anos de
1853 a 1861, se partirmos da base de 1853, ele cresceu cerca de 20%. O fato to
espantoso que chega a ser quase inacreditvel. (..) Esse aumento embriagador de
riqueza e poder (...) est totalmente limitado s classes possuidoras (...) mas deve ser
indiretamente vantajoso para a populao trabalhadora, porque barateia os artigos de
consumo geral; enquanto os ricos se tornaram mais ricos, os pobres, em todo caso,
se tornaram menos pobres. Que os extremos da pobreza tenham diminudo, no ouso
afirmar (MARX, 1996, p. 281).
Diante de tal constatao Marx afirma:
Que anticlmax capenga! Se a classe trabalhadora continuou pobre, apenas
proporcionalmente menos pobre, ao produzir um aumento embriagador de
riqueza e poder para a classe proprietria, ela continua sendo, em termos relativos,
igualmente pobre. Se os extremos da pobreza no diminuram, eles aumentaram,
pois aumentaram os extremos da riqueza (1996, p. 281).
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Como bem destacara Marx, o fato de ter ocorrido reduo nos preos dos produtos no
tem relao em termos de alterao no quadro da pobreza visto que o aumento na acumulao
de capital implica em maior explorao da fora de trabalho e extrao da mais valia. Se os
ricos tornam-se mais ricos, os pobres por sua vez continuam pobres. Os dados referentes
Inglaterra nos sculos XVIII e principalmente no sculo XIX retratam bem a vida dos
trabalhadores no s das cidades, mas tambm do campo. Muitos trabalhadores, dadas as
baixas remuneraes e elevao das condies de sobrevivncia, viviam em situao de
indigncia, em diversos aspectos da vida cotidiana. Neste sentido, alguns aspectos da situao
de indigncia em que se encontravam os pobres na Inglaterra so ilustrados por Marx a partir
de um relatrio apresentado pelo Dr. Simon, funcionrio mdico do Privy Council7. Segundo
o Dr. Simon:
Muito antes de a insuficincia alimentar ter passado a gravitar no plano da higiene,
muito antes de o fisilogo pensar em contar os gros de nitrognio e carbono, entre
os quais oscila a vida e a morte por inanio, a economia domstica j ter sido
despojada de todo conforto material. O vesturio e o aquecimento ter-se-o tornados
ainda mais escassos do que a comida. Nenhuma proteo suficiente contra o rigor do
inverno; reduo do espao de moradia a um grau que gera enfermidades ou as
agrava; ausncia quase total de utenslios domsticos ou de mveis; a prpria
limpeza ter-se- tornado custosa ou difcil. Se, por dignidade pessoal, ainda se tenta
mant-la, cada uma dessas tentativas representa suplcios adicionais de fome. O lar
h de ser onde o teto for mais barato; em reas onde a polcia sanitria d menos
fruto, mais lamentvel o sistema de esgoto, menor o trfego, mxima a imundcie
pblica, mais miservel ou pior o suprimento de gua e, em cidades, maior a falta de
luz e ar. Tais so os perigos sanitrios a que a pobreza inevitavelmente est sujeita,
quando essa pobreza inclui carncia alimentar. Se a soma desses males constitui
perigo de terrvel magnitude para a vida, a mera carncia alimentar j em si mesma
horrvel (MARX, 1996, p. 285-286).
A situao relatada acima nos d pistas da situao de indigncia de boa parte da
classe trabalhadora de ento, que vai da prpria incapacidade de manuteno alimentar a
problemas sanitrios que causou a morte de muitos trabalhados com a proliferao de doenas
infectocontagiosas. Quando o trabalhador no consegue satisfazer a fome, diversos outros
aspectos de sua vida, como vesturio, utenslios domsticos e muitas vezes a prpria moradia
j ter sido dele retirada.
A conexo interna entre o tormento da fome das camadas mais laboriosas de
trabalhadores e o consumo esbanjador, grosseiro ou refinado, dos ricos, baseado na
acumulao capitalista, s se desvela com o conhecimento das leis econmicas.
diferente a situao habitacional. Qualquer observador isento percebe que, quanto
mais macia a centralizao dos meios de produo, tanto maior a consequente
aglomerao de trabalhadores no mesmo espao; que, portanto, quanto mais rpida a
acumulao capitalista, tanto mais miservel a situao habitacional dos
trabalhadores (MARX, 1996, p. 286).
7 Conselho Secreto, rgo especial junto ao rei da Inglaterra, constitudo por ministros e outros dignatrios
burocrticos e religiosos. O Conselho Secreto foi criado no sculo XIII.
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Longe de representar fatos isolados, a situao de precariedade sofrida pelos
trabalhadores constituiu fruto do processo de acumulao de capital em um processo de
violenta intensificao da produo de relaes humanas desiguais em que os no
proprietrios so subalternizados. Extensas horas e precariedade nas condies de trabalho,
consequente reduo das horas dedicadas famlia, pssimas condies de moradia e
alimentao, compem um cenrio em que continuar a viver passou a representar o anseio de
muitos dos que estavam em situao de indigncia.
As situaes acima no diziam respeito apenas Inglaterra, mas tambm a outras
regies da Europa, principalmente as do Reino Unido, como o relato abaixo de um inspetor de
fbrica ingls sobre a situao de um trabalhador da manufatura irlandesa.
Em minha recente inspeo ao norte da Irlanda, diz o inspetor de fbrica ingls
Robert Baker, chamou-me a ateno o esforo de um operrio qualificado irlands
para dar educao a seus filhos apesar de sua penria de meios. Reproduzo
literalmente suas declaraes, conforme as recebi de sua boca. Que ele seja um
trabalhador qualificado, percebe-se, se digo que ele empregado para artigos
destinados ao mercado de Manchester. Johnson: Sou um beetler e trabalho das 6
horas da manh s 11 da noite, de segunda a sexta. Aos sbados terminamos s 6 da
tarde, e temos 3 horas para refeies e descanso. Tenho 5 filhos. Por esse trabalho,
ganho 10 xelins e 6 pence por semana; minha mulher trabalha tambm e ganha 5
xelins por semana. Minha filha mais velha, de 12 anos, cuida da casa. Ela nossa
cozinheira e nica servial. ela quem prepara os mais jovens para a escola. Minha
mulher se levanta comigo e sai comigo. Uma menina que passa por nossa casa nos
acorda s 5 1/2 da manh. No comemos nada antes de ir para o servio. A criana
de 12 anos cuida das crianas pequenas durante o dia. Tomamos o desjejum das 8
horas e para isso vamos para casa. Temos ch uma vez por semana; seno temos
uma papa (stirabout), s vezes de farinha de aveia, s vezes de farinha de milho,
conforme o que conseguimos arranjar. No inverno, acrescentamos um pouco de
acar e gua nossa farinha de milho. No vero colhemos algumas batatas que
plantamos num pedacinho de terra e, quando elas acabam, voltamos para a papa. (...)
Assim vo as coisas, dia aps dia, domingos e dias teis, o ano todo. Estou sempre
exausto noite, quando termino o servio do dia. S comemos um pedao de carne
excepcionalmente, mas muito raro (MARX, 1996, p. 334).
Este quadro ilustra as condies de vida do operariado do Reino Unido, permeado por
interferncias na prpria estrutura familiar. Para que os pais possam trabalhar, as crianas
responsabilizam-se pelo servio domstico quando no so tambm obrigadas a trabalhar nas
fbricas. Extensas horas de trabalho, sem garantias trabalhistas, precrias condies de
alimentao e moradia denunciam o grau de explorao a que estava sujeita a populao
trabalhadora.
vista do cenrio acima, compreendemos que a partir dos desajustes sociais
provocados pela nova organizao social promovida pela expanso capitalista que a temtica
da pobreza ganha contornos especficos que nos desafiam a pensar o passado e o presente em
face das relaes sistmicas entre a produo da pobreza e a acumulao capitalista. A sada
de grandes levas de trabalhadores do campo rumo s cidades em busca de meios de
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sobrevivncia promoveu na Europa novos arranjos sociais que levou os Estados a buscarem
solues para o restabelecimento e manuteno da ordem social.
Diante das mazelas em que se encontrava a classe trabalhadora inglesa, estudos foram
motivados no intuito de verificar as dosagens de dieta alimentar necessrias a um bom
funcionamento da mquina humana. Note-se que o estudo tratou como coincidncia os
resultados do comparativo entre o que era considerado como o mnimo necessrio
sobrevivncia de homens e mulheres mdios e a proximidade com o que os trabalhadores
de fato consumiam. Entretanto, o que se verifica neste cenrio uma concepo da pobreza
pautada na ideia da subsistncia, ou seja, do fornecimento dos mnimos necessrios
manuteno dos aspectos fsicos dos indivduos. E mais, revela a situao de explorao e
desproteo social a que estavam sujeitos os milhares de trabalhadores. Trabalhando e
habitando locais insalubres, recebendo baixos salrios e extensas jornadas de trabalho, sem
direito a frias e com acesso precrio sade e educao.
Mas se no passado as Poor Laws tiveram o seu papel de assegurar o mnimo para a
sobrevivncia dos pobres e, no sculo XIX, as condies sub-humanas descritas por Marx
(1996) que continuaram em evidncia, as realidades poltico-sociais registradas acima no
passaram inclumes pelo tempo. Expresso disso pode ser notada ao final da Primeira Grande
Guerra (1914-1918), com o Tratado de Versalhes, o qual consagrou alguns direitos
trabalhistas e previdencirios, bem como no perodo ps Segunda Guerra (1939-1945),
quando os pases do capitalismo central passaram a ampliar os sistemas de proteo social aos
indivduos em ocasies em que perdessem suas fontes de renda (FALEIROS, 1986, p. 19).
Esse sistema de seguridade social garante servios e benefcios do Estado ao
cidado, desde o seu nascimento at a sua morte, a partir de contribuies
especficas em lei. (...) chamado por uns Welfare State ou Estado de Bem Estar e,
por outros, Estado de Providncia ou Estado Assistencial, pelo qual o Estado garante
ao cidado a oportunidade de acesso gratuito a certos servios e a prestao de
benefcios mnimos para todos (FALEIROS, 1986, p. 20).
Neste cenrio o Estado se apresenta como regulador do mercado. Assim, para que
possibilite populao o bem-estar, deve manter os mecanismos do mercado de trabalho e as
relaes capitalistas de produo. Entretanto, essa regulamentao estatal no fruto de uma
evoluo do humanismo, mas das prprias contradies e conflitos de uma sociedade que
produz incessantes riscos para a vida das pessoas e o esgotamento da fora de trabalho
(FALEIROS, 1986, p. 26).
Longe de se constituir em Estado voltado classe proletria, tal regulao tem
fundamento em ideais liberais progressistas visando a manuteno do processo global de
acumulao da riqueza capitalista, fazendo frente s crises econmicas e ameaas sociais.
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Busca-se desta forma assegurar o lucro dos capitalistas que historicamente tendem a baixar
pela forte disputa entre eles e pelo confronto de capital com o trabalho. Para que se garantisse
o pleno emprego, John Keynes defendeu inclusive o aumento dos gastos pblicos a fim de dar
trabalho aos desempregados e auxlios para estimular a demanda (FALEIROS, 1986).
Entretanto, embora as limitaes de um Estado providencial no capitalismo, as
garantias advindas da so fruto da luta entre as duas classes em disputa a partir do processo
de industrializao europeu: burguesia e proletariado. Quanto a isto Pereira (2006) afirma que
esta nova forma de regulao no mais se pauta na represso e punio, mas na cidadania.
Assim, o Welfare State europeu8, apesar de manter a classe trabalhadora na mesma situao
desigual, ofereceu proteo social e segurana no trabalho (PEREIRA, 2006, p. 241).
Apesar dos ganhos advindos deste processo, a ideia de manuteno do pleno emprego
no se sustentou nem se sustenta diante das prprias contradies do sistema capitalista, visto
que o desemprego inerente ao prprio processo de acumulao. Na medida em que gera
extenso exrcito de reserva promove por sua vez reduo dos salrios. Embora o Estado de
Bem-Estar tenha promovido a garantia de direitos sociais, no alterou o quadro de pobreza
tanto nos pases de capitalismo central, como nos perifricos.
medida que a pobreza se expande, seu entendimento tambm vai ganhando novos
contornos. Na dcada de 1960 do sculo XX verificamos, dentre as conceituaes, a das
necessidades insatisfeitas, referindo-se existncia de um padro mnimo de condies de
vida. Neste entendimento, vivem na pobreza absoluta ou na indigncia todos aqueles cujo
padro de consumo situa-se abaixo do mnimo vital em razo do seu dficit de renda
(LAVINAS, 2002, p. 35). Percebemos ento a renda como parmetro de conceituao do
limite entre o ser e o no ser pobre. Est diretamente associada ideia de sobrevivncia
fsica, satisfao de mnimos sociais reproduo da vida com um mnimo de dignidade
humana (PEREIRA, 2006, p. 233).
J na dcada de 1970, no debate europeu, verifica-se a concepo de pobreza relativa,
a qual passa a figurar como medida para identificar a posio social do pobre conforme o
padro mdio de consumo da populao como um todo.
pobre, relativamente ao conjunto da populao, quem se situa abaixo desse padro
mdio de consumo, no s do ponto de vista do seu dficit de renda, mas tambm do
no acesso a bens e servios. Passa-se de uma abordagem centrada exclusivamente
na renda para um enfoque mais amplo, o da falta de recursos. O hiato ou diferencial
que separa o pobre desse padro mediano expressa a intensidade da pobreza
(LAVINAS, 2002, p. 36).
8 Lembrando Pereira (2012) no existe e nunca existiu um padro unvoco de Estado de BemEstar nos pases
capitalistas centrais, por isso a expresso Welfare State europeu.
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A renda deixa ento de ser caracterizada como nico elemento de definio do pobre
para incluir o que se chama de recursos. Isto caracteriza no apenas a renda auferida pelo
indivduo ou grupo de indivduos, mas tambm a capacidade de acesso a determinados bens e
servios. Pouco tempo depois, em 1976, pobres passam a ser entendidos pela comunidade
Econmica Europeia CEE como todos os indivduos e famlias cujos recursos, de to
escassos, os excluem dos modos de vida, hbitos e atividades normais do Estado onde vivem
(LAVINAS, 2002, p. 36). De acordo com Pereira (2006), diz respeito satisfao de
necessidades em relao ao modo de vida de determinada sociedade, tendo vinculao
relao entre pobreza e distribuio das riquezas socialmente produzidas. Dessa forma,
enquanto houver desigualdade e estratificao social, uma percentagem da populao ser
sempre pobre em relao a algum grupo mais privilegiado, no importando o grau de riqueza
da nao considerada (PEREIRA, 2006, p. 233).
A negao do acesso a direitos sociais essenciais existncia humana (como sade,
alimentao, habitao, saneamento bsico, educao) bem como aqueles que as sociedades
passam a considerar como bsicos s atividades dirias (como acesso internet, meios de
transporte, aparelhos e equipamentos eletrnicos voltados comunicao e acesso
informao) imputa nos indivduos impedidos de acess-los, sensao de alheamento, de
excluso, visto que estes provocam sentimentos de rejeio, perda de identidade, falncia dos
laos comunitrios e sociais, resultando numa retrao das redes de sociabilidade, com quebra
dos mecanismos de solidariedade e reciprocidade (LAVINAS, 2002, p. 37).
Os conceitos de pobreza que at a dcada de 1970 ganhavam os contornos at aqui
apresentados, a partir do esgotamento do Estado de Bem estar europeu, em meados dessa
dcada, tambm sofrem os efeitos das orientaes pautadas no Estado mnimo e na negao
dos direitos sociais, consoante a prevalncia do princpio do Workfare sobre o Welfare e da
substituio das polticas universais pelas focalizadas; da reduo dos gastos sociais; da
primazia da lgica do mercado sobre a das necessidades sociais e bem como do mrito
empreendedor dos indivduos em detrimento dos direitos (PEREIRA, 2006; PEREIRA,
2012). Tal passagem insere-se nas transformaes do cenrio econmico advindos da crise
enfrentada pelo capitalismo.
Com efeito, em meados dos anos 1970, ao findar o ciclo expansivo da economia
internacional, iniciado no segundo psguerra, todo o mundo capitalista conheceu uma nova crise, que se revelou estrutural e se prolonga at os dias de hoje, crise esta
causada por desequilbrios entre acumulao e consumo e pela transformao do
excedente produzido pela economia real em capital financeiro (PEREIRA, 2012, p.
731).
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As polticas sociais (e neste movimento as formas de conceber a pobreza, e por assim
dizer o pobre) tambm passam a ser fomentadas visando atender as demandas inerentes s
transformaes pelas quais vem passando o capitalismo. Assim, ao pobre imposta a
autorresponsabilizao por seu fracasso, o que demanda dos mesmos autossatisfazerem suas
necessidades sociais; ou, ento, a darem algo em troca pelos auxlios pblicos recebidos,
como se fossem eternos devedores, e no credores, de vultosas dvidas sociais (PEREIRA,
2012, p. 738).
O Estado provedor, garantidor de direitos sociais cede lugar ao Estado que deposita no
indivduo a responsabilidade pelos seus atos, pautando-se na concepo de que o alcance do
bem estar depende do quo o indivduo se dedicou para alcana-lo, sendo operada a mesma
lgica em casos de fracasso, insucesso e, sendo assim, de pobreza, misria ou indigncia.
Em verdade, o predomnio contemporneo da tica da autorresponsabilizao no
contexto mundial da poltica social mostra que est havendo um contnuo e
crescente esvaziamento do padro capitalista de Estado social de direito em favor do
padro capitalista de Estado neoliberal meritocrtico, laborista, ou do que a literatura
especializada vem chamando de transio do Welfare State para o Workfare State.
o que, com outras palavras, LicWacquant (2007) vem falando da substituio do
Estado Social pelo Estado Penal, principalmente quando se refere aos Estados
Unidos, por sinal o pas precursor da ideologia do work fare (bemestar em troca de
trabalho, no importa qual) em substituio ao welfare (bemestar incondicional, como direito). (PEREIRA, 2012, p. 738).
O Workfare State acima referido assenta-se nas correntes de pensamento que
remontam concepes patolgicas de explicao das causas da pobreza. Centradas no
indivduo, s polticas sociais cabem a correo de possveis comportamentos desviantes, seja
por meio da cobrana de contrapartidas dos beneficirios da assistncia social pblica, para
livrlos da dependncia desta, seja na ativao imperiosa desses beneficirios para a sua
insero no mercado de trabalho com vista a sua autossustentao. (PEREIRA, 2012, p.
747). De aco