primeiro capítulo filosofia do cérebro

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FILOSOFIA DO CÉREBRO João de Fernandes Teixeira 2012

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Primeiro capítulo do livro Filosofia do Cérebro, publicado em 2012 pela Editora Paulus e agora também disponível como e-book.

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FILOSOFIA DO CREBRO

Joo de Fernandes Teixeira

2012

o antigo dualismo da alma e do corpo foi substitudo pelo dualismo do crebro e do restante do corpo

John Dewey

Sumrio

O crebro e a filosofia

Conscincia, corpo e liberdade

O crebro como problema filosfico

A neurofilosofia

Concluso

O CREBRO E A FILOSOFIA

Este pequeno livro visa iniciar o leitor em uma rea ainda pouco explorada no Brasil: a reflexo sobre a neurocincia e seus fundamentos, o que tem levado, nas ltimas dcadas, a uma expanso da temtica da filosofia. A neurocincia uma disciplina relativamente jovem, que adquiriu grande importncia a partir dos anos 1990, a chamada dcada do crebro. Essa dcada marca uma descoberta fundamental: a da neuroimagem. Ela foi a contribuio mais recente e mais importante para que a neurocincia se tornasse neurocincia cognitiva, ou seja, uma investigao das bases neurais da atividade psicolgica de alguns animais e, em especial, a dos seres humanos. Desde o surgimento da neuroimagem, quase todas as semanas jornais e revistas passaram a publicar imagens coloridas do crebro que correspondem descoberta da localizao de mais algum tipo de atividade mental cujas bases neurais eram at ento desconhecidas. As tcnicas de neuroimagem ou de imageamento do crebro surgiram na metade da dcada de 1990. Seu pioneiro foi o radiologista americano Marcus Raichle, cujas pesquisas levaram ao desenvolvimento do PET (Positron Emission Tomography) e do fMRI (Functional Magnetic Resonance Imaging) ou ressonncia magntica do crebro. O livro publicado por Raichle (escrito em conjunto com Michael Posner) em 1997, Images of Mind, fez grande sucesso na poca.O entusiasmo pelas teorias biolgicas da conscincia se acentuou aps a inveno dessas novas tecnologias. At pouco tempo, a nica maneira de se examinar o crebro humano era atravs de autpsias realizadas aps a morte de pacientes que apresentavam alguma disfuno cognitiva. O crebro era, praticamente, uma caixa preta.Foi esse panorama que mudou radicalmente com o aparecimento do PET e do fMRI. Eles proporcionam imagens do crebro vivo, quase em tempo real, o que nos permite visualizar como ele funciona. As imagens coloridas do PET e do fMRI correspondem a nveis de atividade neural. O paciente submetido a essas tcnicas deve relatar a execuo de alguma atividade cognitiva e, em seguida, seu crebro escaneado, o que permite a localizao dessa atividade no tecido cerebral. As imagens obtidas pelo PET detectam a atividade neural atravs das variaes metablicas que ocorrem no crebro. Eventos neurais requerem oxignio, que, por sua vez, requer afluxo sanguneo. A suposio a de que, onde esse afluxo aumenta, est ocorrendo atividade neural. Esta, por sua vez, est correlacionada com atividade mental.Uma das propostas estabelecer uma identidade ponto-a-ponto entre, por um lado, as reas cintilantes obtidas pela neuroimagem e, por outro, as funes cognitivas. Essa identidade, em princpio, permitiria um mapeamento da mente no crebro.O impacto dessas novas tecnologias de observao do crebro sobre a imagem que o homem tem de si mesmo no sculo XXI muito grande. Para a nova neurocincia, que surgiu na dcada do crebro, somos apenas uma imensa coleo de neurnios, que evoluiu ao longo de milhares de anos, e cuja atividade , em ltima anlise, regida por genes ou protenas que, em sua interao com o meio ambiente, acabam tendo um papel decisivo sobre nossa mente e nosso comportamento. O materialismo teria, finalmente, triunfado sobre as concepes do eu que o associam a algum tipo de alma imortal. Como sugeriu o neurocientista indo-americano Vylanour Ramachandran, a herana platnica que nos v como uma alma aprisionada no corpo tende a acabar. Somos apenas nossos crebros; e nossas diferenas individuais nada mais so do que pequenas diferenas cerebrais. O impacto da neurocincia sobre questes filosficas tradicionais tambm muito grande. A neurocincia sugere que o problema mente-crebro, do qual se ocuparam as filosofias e as religies, logo ser resolvido pela cincia. A mente o crebro e, hoje em dia, na comunidade cientfica, poucos se atrevem a questionar essa proposio. Se ainda h crenas religiosas que pregam a distino entre mente e crebro, a neurocincia nos diz que elas podem no ser nada alm de eventos cerebrais ou at mesmo experincias induzidas no crebro humano a partir da ingesto de algumas drogas com efeitos especficos. Nessa nova perspectiva, a neurocincia torna-se a cincia fundamental, usurpando a posio que a fsica manteve por vrias dcadas. Pois, da neurocincia podemos esperar compreender a organizao de todo conhecimento humano, incluindo, at mesmo, o modo como o crebro humano produz a prpria fsica, at ento considerada como o saber fundamental ao qual se esperava que um dia todas as cincias pudessem ser reduzidas. Tudo cedeu neurocincia. No se atribui mais um papel determinante cultura e histria individual na produo do transtorno mental, mas, ao contrrio, o transtorno cerebral que considerado o produtor das distores na cultura e nas histrias individuais. Entende-se que a explicao neurocientfica deve prevalecer sobre outros tipos de explicaes, pois ela considerada a mais cientfica. neste ponto que a neurocincia comeou a disputar o espao da psicologia e da psicanlise, criando um conflito que no se resolver to cedo. Nem mesmo criaes mais recentes, como a neuropsicanlise, parecem poder dar conta desses atritos.A neurocincia est to impregnada nas sociedades contemporneas que j afetou at a linguagem popular. As pessoas no ficam mais tristes, mas deprimidas. No ficam mais furiosas, elas surtam. Para tristeza e fria ministram-se drogas que podem evit-las. A angstia existencial, tpica do sculo XX, no mais vista como resultado da condio humana, mas apenas como um estado patolgico transitrio que pode ser eliminado atravs de novas medicaes biopsiquitricas, resultantes da pesquisa neurocientfica. Mas, as ambies cientficas, cada vez mais abrangentes, da neurocincia se expandiram tambm para a filosofia, levando ao surgimento de uma nova disciplina, a neurofilosofia. Seu propsito tratar problemas filosficos a partir da neurocincia. A neurofilosofia aposta que outras questes, alm do problema mente-crebro, podero ser solucionadas pela neurocincia em um futuro prximo. Entre tais questes, esto tambm includas as de ordem tica, j que a neurocincia tomou para si a explicao do comportamento e das decises dos seres humanos. Origina-se, da, uma subseo importante da neurofilosofia, que a neurotica. Contudo, apesar de todas essas ambies, a reflexo filosfica sobre os limites da investigao neurocientfica ainda se mantm como tarefa fundamental para os filsofos. Se h filosofia da cincia, ela deve abranger tambm a neurocincia e nos conduzir em direo a uma filosofia da neurocincia. Esse tipo de reflexo tem como proposta discutir questes bsicas, como, por exemplo: O que o crebro? Quando falamos dele, estamos nos referindo a uma entidade fsica ou a uma construo terica? Haver leis da neurocincia da mesma maneira que h leis da fsica? O que significa explicar um fenmeno mental em termos neurocientficos? Ser que basta localiz-lo no crebro a partir de tcnicas de neuroimagem? A filosofia da neurocincia deve manter uma via de mo dupla com a neurofilosofia. Os filsofos no podem mais ignorar a neurocincia, principalmente aps os trabalhos de Paul e Patrcia Churchland, que passaram a ser conhecidos como o casal Churchland. No mais possvel falar de memria, de conscincia, e de outros fenmenos mentais como se fazia h cem anos, pois agora eles so investigados empiricamente. Da mesma maneira que espao e tempo deixaram de ser assuntos de filsofos e foram apropriados pelos fsicos, mente, conscincia, memria, etc, deixaram de ser domnio exclusivo da psicologia e da filosofia, e hoje tornaram-se tema de neurocincia. No mais possvel negar que a neurocincia invadiu a filosofia.Mas, poder a neurocincia dar respostas definitivas sobre questes fundamentais como as relaes entre mente e crebro, e a problemas ticos, que sempre foram um espao privilegiado dos filsofos? Esse um problema que tambm precisa ser discutido. H muito entusiasmo ingnuo entre os neurocientistas, mesmo entre os mais brilhantes como Ramachandran e Gerald Edelman. Talvez seja ainda muito cedo para afirmar que a neurocincia pode tomar o lugar da filosofia. Parece que muitos dos neurocientistas de hoje so como os filsofos anteriores a Kant, que no viam limites expanso do conhecimento. E falar de limites expanso do conhecimento no significa fazer uma aposta contra a cincia, mas de colocar os ps no cho e lembrar que da cincia talvez no seja possvel esperar respostas para questes metafsicas.No h dvida de que nas duas ltimas dcadas a neurocincia avanou mais do que na sua histria inteira. Tambm no h dvida acerca do quanto esses avanos se refletiram na vida prtica das pessoas, a comear pela quantidade de medicamentos neurolgicos e biopsiquitricos de que dispomos hoje e que podem nos trazer um alvio inegvel para vrios tipos de desconforto psquico. Em breve, a pesquisa neurocientfica nos livrar de doenas neurolgicas graves, como, por exemplo, o Parkinson e o Alzheimer. Mas, ser isso suficiente para dar neurocincia o papel de pedra filosofal, como a imprensa leiga o faz?J houve quem dissesse que a neuroimagem representou para o sculo XX aquilo que o telescpio foi para o sculo XVI quando ainda acreditvamos que a terra era o centro do universo. Novas tcnicas de observao do crebro em funcionamento, como a optogentica, desenvolvida em 2006 por Karl Deisseroth na Universidade de Stanford, prometem avanos cada vez maiores para a neurocincia. Atravs dessa nova tcnica possvel modificar geneticamente alguns neurnios de modo que quando ativados tornam-se sensveis a raios luminosos. Certamente, essa nova tecnologia permitir que aperfeioemos o mapeamento cerebral e talvez traga um salto qualitativo to importante quanto a neuroimagem. Uma das grandes vantagens da optogentica a possibilidade de ligar e desligar regies especficas do crebro, sem que ocorram efeitos colaterais, como no caso do implante de chips ou no de uso de drogas biopsiquitricas.O desenvolvimento dessas novas tcnicas nos leva a acreditar, cada vez mais, que podemos esperar muito da neurocincia nas prximas dcadas. Mas, ser que os neurocientistas no estaro reeditando, de forma ingnua e pouco se dando conta, questes filosficas que a filosofia da mente tem debatido nas ltimas dcadas? E at que ponto a ausncia dessa reflexo filosfica no pode estar influenciando a prpria maneira como a neurocincia tem sido desenvolvida nos ltimos anos? Essa uma questo polemica, debatida de forma crtica por Bennett e Hacker, os autores do livro Fundamentos Filosficos da Neurocincia, um dos textos pioneiros de filosofia da neurocincia, publicado em 2003. O pano de fundo de sua crtica poderia ser expresso pela sentenana neurocincia h mtodos experimentais, mas confuso conceitual, adaptada de Wittgenstein. Ao escrever essa sentena nas Investigaes Filosficas, em 1958, Wittgenstein se referia psicologia, dizendo que nela h mtodos experimentais e confuso conceitual. Segundo Bennett e Hacker, poderamos, hoje em dia, substituir psicologia por neurocincia sem que alterssemos quase nada a inteno crtica que motivou, originariamente, essa afirmao. Sem me deter nas anlises propostas por esses dois autores, pretendo, nos prximos captulos, apresentar e discutir as relaes entre neurocincia e filosofia, em seus vrios aspectos. No acredito que haja uma cincia de tudo, como os fsicos do sculo XX tentaram em vo encontrar, nem tampouco que tal cincia, com tanta abrangncia, seja a neurocincia atual. Desta, preciso analisar limites e pretenses e essa a tarefa que a filosofia da neurocincia, ou a nova filosofia do crebro, se prope a realizar.