perspectiva de vygotsky. são paulo: quebra nozes, londrina...
TRANSCRIPT
http://www.uepg.br/gppepe/
Citar como: Mainardes, J. Cenários de aprendizagem: instâncias interativas na sala de aula. In: MARTINS, J. B. (Org.). Na perspectiva de Vygotsky. São Paulo: Quebra Nozes, Londrina: Edições Cefil, 1999. p. 27-49.
Cenários de aprendizagem: instâncias interativas na sala de aula
Jefferson Mainardes
O presente artigo pretende somar-se aos estudos dessa publicação, trazendo uma
contribuição produzida a partir do nosso exercício profissional, numa escola pública estadual,
nas séries iniciais do Ensino Fundamental1. Durante os anos de 1996 e 1997, trabalhamos
com alunos da 1ª e 2ª etapas do Ciclo Básico de Alfabetização - CBA, em regime de
contraturno, um período de estudos complementares destinado a alunos que necessitam de
maior tempo para a apropriação dos conteúdos, convencionalmente vistos como alunos que
apresentam "dificuldades de aprendizagem".
No planejamento das situações de ensino buscamos o estabelecimento de um clima
favorável, através de dinâmicas interativas variadas; situações de cooperação, ações
partilhadas e resolução conjunta; resgate do desejo e interesse pelo aprender. As contribuições
da abordagem histórico-cultural, de Lev S. Vygotsky e a Psicogenética de Henri Wallon,
constituíram-se em aspectos centrais na formulação e proposição das situações de ensino, bem
como nos procedimentos de análise da prática docente. Adicionalmente, outros autores
forneceram princípios explicativos para o trabalho pedagógico, tais como as formulações de
João Wanderley Geraldi, Heloysa Dantas, Janusz Korczak, Bruno Bettelheim.
O encaminhamento dos alunos para o contraturno era decidido em conjunto com as
professoras do turno e a supervisora da escola. O trabalho pedagógico priorizava conteúdos
das áreas de Língua Portuguesa e Matemática, num atendimento rotativo. Os alunos eram
dispensados na medida em que superavam as dificuldades que apresentavam e substituídos
1 - Em 1997 este trabalho configurou-se como uma Investigação Pedagógica do Projeto Vale Saber, da Secretaria de Estado da Educação, à qual agradecemos pelo apoio e financiamento.
2
por outros, mas também ocorriam remanejamentos completos, sempre decididos pelo coletivo
da escola.
Para viabilizar o acompanhamento dos alunos, servimo-nos de observações dos
avanços dos alunos no que se refere ao domínio dos conhecimentos, avaliações escritas e ou
orais, diálogo com as professoras do turno e conversações com as próprias crianças. Outras
observações descritivas ou reflexivas eram registradas em "diário de campo" (falas das
crianças, reação delas frente às atividades propostas, histórias lidas ou contadas, anotações
gerais). Além disto, algumas situações e atividades foram fotografadas e gravadas em vídeo
ou em áudio. As situações mais significativas eram transcritas em forma de episódios,
seguidos de análise, buscando articular as situações destacadas com o referencial teórico que
subsidiava a pesquisa-ação.
Entendemos pesquisa-ação como aquela que permite a investigação e a busca de
possíveis soluções para os problemas (de aprendizagem, neste caso) a partir da reflexão sobre
a própria prática docente. Para Elliott (apud Carvalho & Simões), a pesquisa em educação
deve vir dos problemas vividos pelo profissional envolvido na prática educacional. Assim
sendo, a pesquisa não deve ser tratada como uma atividade separada da prática da educação e
do contexto sócio-cultural mais amplo. A idéia do professor como pesquisador2 vem sendo
difundida por John Elliott, cujo pensamento está vinculado ao de Lawrence Stenhouse3.
Elliott (apud Pereira, 1998) explica que tanto ele quanto Stenhouse estavam comprometidos
com a idéia de que a mudança curricular satisfatória dependia do desenvolvimento das
capacidades de auto-análise e reflexão dos professores. Por isso, o mais importante era
estimular a sensibilidade dos professores a respeito dos contextos concretos para os quais
tinham que desenvolver a prática dos princípios pedagógicos. Elliott também aponta que uma
das circunstâncias que reforçam a separação entre pesquisadores externos e professores4 é a
2 - Além de “professor pesquisador”, outras expressões têm sido utilizadas nos últimos tempos: professor reflexivo (Schön, Zeichner, Gómez in Nóvoa, 1992), profissional autônomo (Nóvoa, 1992). Também a concepção do professor como construtor do saber (Kramer, 1994) parece aproximar-se da concepção/categoria professor-pesquisador. 3 - Uma análise do pensamento destes autores pode ser encontrada no livro “Cartografias do trabalho docente”, organizado por Geraldi, Fiorentini e Pereira (1998). 4 - ZEICHNER (1998) emprega os termos "professor-pesquisador" e "professor acadêmico", argumentando que há necessidade de superar a dicotomia existente entre eles. Muitos professores sentem que a pesquisa educacional conduzida por acadêmicos é irrelevante para suas vidas nas escolas. Ele propõe que estes últimos e
3
de ver o pesquisador externo como especialista não comprometido com as práticas educativas
e os professores somente como aplicadores de conhecimentos, por não possuírem “as
características próprias para a pesquisa”, isto é, o domínio de métodos e técnicas. Outra
circunstância refere-se à dimensão epistemológica, “onde o conhecimento válido é o que se
refere às regularidades observáveis nas práticas sociais e onde a auto-compreensão dos que
estão dentro do sistema não serve de parâmetro para o conhecimento válido” (op.cit p.172).
Na proposta do professor como pesquisador, este é considerado capaz de determinar o melhor
para seu exercício profissional, por meio da permanente reflexão das situações educativas,
problemas e propostas de solução. Os convencionais programas de formação, “atualização”,
“capacitação”, “aperfeiçoamento” parecem desconsiderar o conhecimento adquirido na
experiência direta, bem como as possibilidades do professor tornar-se também um “construtor
de saberes”, um pesquisador, um profissional reflexivo.
No Brasil, as perspectivas e possibilidades do professor como pesquisador têm sido
defendidas por diversos autores: Carvalho & Simões (1996), Maldaner (1997), Garcia (1998),
Dickel (1998), Pereira (1998), entre outros. O que parece fundamental na efetivação desta
perspectiva é a constituição de grupos de pesquisa que congreguem professores motivados e
dispostos a tomarem sua própria prática como objeto de reflexão e análise. Os pesquisadores
“externos”, por meio da pesquisa-ação, podem dar sustentação para o fortalecimento de
grupos desta natureza, estimulando processos de reflexão e expressão de individualidade na
tomada de decisões (autoria e autonomia contextualizada). Atitudes de pesquisa, registro e
avaliação sobre a própria experiência docente precisam ser estimuladas entre professores/as.
Para isso, significativas melhorias das condições do trabalho docente apresentam-se como
necessárias: carga horária menos excessiva, valorização salarial e profissional, acesso a
bibliografias atualizadas, apoio de pesquisadores externos, recursos pedagógicos adequados
etc.
Contraturno: um espaço para o atendimento das necessidades básicas de aprendizagem
O contraturno surgiu como uma das medidas que integrava a proposta inicial do CBA
do Paraná (1988), tendo sido mantido no CBA de 4 anos (a partir de 1994)5. Nos primeiros
as universidades em geral, precisam assumir um compromisso com as escolas (com o sentido de melhorá-las) e com os professores que têm uma visão "de dentro da escola".
4
documentos oficiais, foi definido como um acréscimo de horas diárias a mais de estudo para
alunos que não haviam se apropriado dos conteúdos necessários. Já os atos legais que
regulamentam o CBA no Paraná (Resoluções nº 744/88, 6.342/93 e 585/95), afirmam que o
contraturno destinava-se a alunos "defasados" na apropriação dos conteúdos. No entanto, a
idéia de que este atendimento destina-se a alunos que necessitam de “mais tempo” parece ser
mais adequada para designar o tipo de concepção que deve nortear o trabalho pedagógico a
ser desenvolvido, principalmente a partir da perspectiva teórica assumida nesta pesquisa.
Deve-se destacar que esta última concepção pode também ser encontrada em outros
documentos da Secretaria de Estado da Educação - SEED (PARANÁ, 1991).
A eliminação da reprovação nas séries iniciais, tal como propõe a organização por
ciclos, gera maior heterogeneidade nas classes, criando a necessidade da implementação de
estratégias que atendam os diferentes níveis dentro das mesmas. O fato de constituir-se de
turmas menores (máximo de 12 alunos) e com rotatividade de alunos, o contraturno viabiliza
o atendimento destas diferenças de modo mais adequado, o que nem sempre é garantido em
classes regulares. Neste espaço (e também nas classes regulares) parece fundamental
proporcionar mediações intensas e situações de interação, constituição de um clima de classe
positivo, rompendo com a uniformidade, “fechamento” e mecanização das relações de ensino
que ainda caracterizam o trabalho pedagógico em muitas classes de séries iniciais.
O contraturno tem sido bastante valorizado no contexto escolar e percebido como uma
estratégia extremamente favorável para a construção do sucesso escolar. A seguir
apresentamos alguns recortes, resultados e reflexões da pesquisa realizada durante (e sobre) o
nosso próprio exercício profissional, destacando o trabalho com a Língua Portuguesa.
O clima de classe
“Não faz mal. Amamos as crianças. Apesar de tudo, elas são a doçura,
a esperança e a luz da nossa vida, nossa alegria e nosso repouso. Nada
de sobrecarregá-las, atormentá-las; elas se sentem livres e felizes...”
5 - A respeito do Ciclo Básico de Alfabetização no Paraná, ver Negri (1994) e Mainardes (1995).
5
“Não humilhar, não maltratar, não torná-la escrava do dia seguinte,
não apagar os seus entusiasmos, não apressá-la, não pressionar. (...)
Ela [a criança] faz tudo com afeto. E tem razão.”
(KORCZAK)
As palavras de Janusz Korczak6 citadas acima serviram de base para a constituição do
clima de classe no contraturno. Buscamos fazer com que o ambiente fosse sempre
aconchegante, baseado no respeito e diálogo. A rotina de classe incluía, inicialmente, a
narrativa ou leitura de uma história (principalmente contos de fadas), algumas vezes com
utilização de fantoches que as crianças também podiam manusear. Dependendo do interesse
delas, eram realizadas atividades de desenho, pintura, produção de textos, atividades de
oralidade, dramatizações a partir da história apresentada, como conseqüência natural do
processo. Em seguida, os alunos escolhiam livros para manuseio e leitura individual ou em
duplas.
Algumas histórias lidas ou narradas aproximavam-se das vivências pessoais das
crianças e incluíam contos de Grimm e Andersen, bem como outros livros de literatura
infantil. Dos contos do repertório clássico, as crianças demonstraram grande preferência por
Cinderela, Rapunzel, Branca de Neve, João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, A Bela
Adormecida (de Irmãos Grimm); O Patinho Feio, As Novas Roupas do Imperador
(Andersen), Os Três Porquinhos, Pinóquio. Da literatura infantil mais recente, as preferências
foram por “Dumbo”, “Menina bonita do laço de fita” e “O elefantinho malcriado” (Ana Maria
Machado), “A casinha do tatu” (Elza Sallut), “A palavra feia de Alberto” (Audrey Wood), “A
margarida friorenta” (Fernanda Lopes de Almeida), “Macaquinho” (Ronaldo Simões Coelho),
“O gato Pororoca” (Maria Heloisa Penteado).
Ocorriam diversos processos de identificação das crianças com as histórias lidas ou
narradas. Abramovich (1989), Bettelheim (1985), Dantas & Prado (1994) mostram que as
crianças tendem a identificar-se com histórias que estão relacionadas às suas vivências e
conflitos pessoais, desejando ouvi-las repetidas vezes. Existe um acervo significativo de
6 - O educador, médico, humanista, escritor Janusz Korczak [pseudônimo de Henryk Goldsmit], nasceu em Varsóvia em 1878 e morreu em 1942, durante a 2ª Guerra Mundial. Judeu, recusou a salvação e preferiu ser arrastado ao famigerado campo de concentração de Treblinka. Morreu assassinado pelos nazistas junto com um grupo de 200 crianças órfãs retiradas do gueto de Varsóvia, que não quis abandonar.
6
trabalhos que analisam os contos de fadas do ponto de vista literário, sociológico, psicológico
e psicoterapêutico. Diversos estudos das perspectivas freudiana (Fromm, 1973; Bettelheim,
1985) e junguiana (Franz, 1981; Pavoni, 1989; Bonaventure, 1992) apontam a importância
terapêutica dos contos de fadas na solução de conflitos internos e na formação da
personalidade7.
Dantas (1994) e Dantas & Prado (1994), a partir da psicogenética de Henri Wallon,
apontam a importância da leitura como “tratamento expressivo-catártico” (poder curativo da
palavra) que ocorre principalmente quando a criança ouve ou lê uma história que diz respeito
às suas histórias pessoais (conflitos, sofrimentos, dramas etc). Estas autoras destacam a
importância dos contos de fadas e outros textos literários que abordem vivências próximas às
das crianças8.
Existem, por outro lado, autores que apontam a dimensão ideológica presente nos
contos de fada, tais como a fixação de lugares que o sujeito deve ocupar (“As fadas”, de
Perrault; “O patinho feio”, de Andersen); conotações disciplinadoras de manutenção da
ordem social vigente; padrões burgueses etc (Zilbermann & Magalhães, 1982).
Após a audição da história e os eventuais desdobramentos, os conteúdos eram
desenvolvidos a partir de situações de ensino como leitura, produção de texto, operações,
resolução de problemas. As atividades mais descontraídas (audição de histórias, desenho,
pintura, dramatizações, música, jogos) estimulavam as crianças, estabeleciam um clima de
confiança, tornando-as mais seguras e abertas ao aprendizado.
7 - Betellheim (1985) demonstra que os contos de fadas (considerados por ele como “obras de arte”) ajudam as crianças a lidarem com problemas psicológicos do crescimento e da integração de sua personalidade. Por apresentarem elementos capazes de despertar-lhes curiosidade e atenção, possibilita-lhes um convívio mais saudável com as questões da natureza emocional. Segundo o autor, tais histórias carregam em si uma mensagem positiva de luta contra as dificuldades da vida (que são inevitáveis) e de incentivo para enfrentá-las. Para Fromm (1973), as imagens pictóricas ou palavras destas histórias constituem-se em “matéria prima” para o entendimento da experiência íntima do sujeito. Da perspectiva junguiana, autores como Franz (1981), Pavoni (1989), Bonaventure (1992) concluíram que esta literatura fornece caminhos para interpretar e analisar os problemas da vida humana, contribuindo de forma significativa para a formação da personalidade da criança. 8 - Para Dantas & Prado (1994: 101), “os contos de fada do repertório clássico são um caminho seguro para a elaboração dos conflitos básicos infantis”, pois neles se trata da rejeição, da pobreza, do ciúme entre irmãos, perdas, orfandade, sentimento de pequeneza diante do mundo, esperteza etc. Para as mesmas autoras, a literatura infantil moderna também é capaz de mobilizar temas muito próximos das vivências cotidianas.
7
Constituindo-se num grupo menor, o contraturno favorece um contato mais próximo
com a criança, facilitando aos professores a identificação de dificuldades, singularidades,
vicissitudes biográficas, tensões e ansiedades dos alunos. Cria-se, nestas condições, um clima
propício para o atendimento das necessidades básicas de aprendizado dos alunos, nem sempre
garantida em classes numerosas. Muitas crianças necessitam de auxílio maior, mais próximo e
mais afetivo para o aprendizado, algumas vezes bloqueado pela ansiedade e angústia
decorrentes da ‘imperícia’9, das cobranças feitas pelo/a professor/a do turno e do sentimento
de não estar acompanhando colegas de classe. Ao perceberem-se conseguindo resolver
operações, lendo ou produzindo um texto, embora com alguma ajuda, tornam-se mais
confiantes e seguras, resgatando seu desejo e interesse em aprender.
Dantas (1994), baseada na teoria de Henri Wallon, afirma que a temperatura afetiva
será sempre um elemento catalisador da atividade cognitiva do aluno e, “sem vínculo afetivo
não há aprendizagem”. Para Wallon, a afetividade deve ser vista de forma mais ampla e
abrangente, não somente como relação afetiva entre professor/a-alunos/as, mas enquanto toda
uma rede de relações, sentimentos e emoções que afetam os sujeitos favorecendo ou não a
transição da subjetividade para a objetividade. Para PIMENTEL (1989), a aprendizagem
envolve, além da inteligência, aspectos orgânicos, corporais, afetivos e emocionais, sendo o
vínculo afetivo entre professor - alunos fundamental para o sucesso na aprendizagem.
Quando o aluno não consegue aprender mobiliza-se o sentimento de incapacidade e ele "passa
a viver sua ignorância com todo o significado que ela possa ter e se apropria dela como forma
de justificar o seu fracasso”(op. cit, p.23).
Muitas crianças apresentavam um sentimento derrotista com relação à capacidade de
aprender, repetindo afirmações como “Eu não sei fazer”, “A professora disse que eu não
sei”, “Eu não consigo fazer sozinho”. À medida em que recebiam auxílio, pistas e
orientações, que realizavam atividades em parceria com o professor ou colegas, percebiam
que conseguiam ler, escrever, efetuar operações, sentiam-se felizes e satisfeitas. Com muitas
crianças foi preciso encontrar formas de “resgatar o processo de aprender”, mostrando-lhes
que eram capazes e que estavam sendo auxiliadas. Elogio, estímulo e apoio na realização das
9 - Imperícia, para Wallon (1975: 126) é definida no contexto da discussão sobre o movimento: “Dizemos que alguém é inábil quando não consegue executar o que gostaria de fazer ou aquilo que gostaríamos de lhe ver fazer”. No entanto, o próprio autor considerou tal conceito apropriado para definir as dificuldades encontradas todos os dias entre adultos e crianças, e por que não, entre alunos e professores.
8
atividades mostraram-se muito salutares para este resgate. Tais posturas exigem dos/das
professores/as um maior controle da ansiedade.
No entanto, algumas situações contraditórias ocorriam. Alguns alunos saíam-se bem
no contraturno e continuavam apresentando dificuldades no turno: “Aqui eu acerto, lá na sala
eu não consigo fazer”. Talvez o auxílio favorecido no contraturno trouxesse segurança na
realização da atividade. Outro aspecto importante é que, no contraturno, as atividades eram
gradativas, claramente orientadas e em número mais reduzido do que no turno. Procurávamos
também dar tempo para a criança pensar, perguntar e refazer.
O trabalho com alunos da 1ª etapa do CBA
O atendimento dos alunos da 1ª etapa iniciava-se geralmente no mês de maio. As
crianças mostravam-se sempre receptivas às atividades propostas. No entanto, algumas
apresentavam um sentimento de incapacidade para aprender bastante arraigado. No início
falavam pouco, demonstravam pouco interesse pelo manuseio dos livros, pelas atividades de
desenho e pintura. Pareciam estar aprisionadas às dificuldades que encontravam. Na medida
em que ouviam narrativas, desenhavam, cantavam, manuseavam fantoches, participavam nas
atividades com os jogos pedagógicos, que eram solicitadas a falar, contar, expressar
sentimentos, tornavam-se mais tranqüilas, alegres e interessadas. O aparente “bloqueio” que
demonstravam ia-se desfazendo e elas abriam-se para o aprendizado.
O processo de alfabetização foi sistematizado a partir do trabalho com os nomes dos
alunos, montagem do alfabeto, utilização de jogos para o reconhecimento das letras do
alfabeto, jogos de montar palavras. Utilizávamos também cartões com desenhos e letras
móveis para montagem de palavras, leitura partilhada de textos curtos (poesias, trovas e
músicas infantis). Posteriormente, quando os alunos já haviam dominado o reconhecimento
do próprio nome, das letras do alfabeto e já haviam vivenciado de forma partilhada tanto a
leitura quanto a escrita de textos, prosseguíamos o processo de sistematização partindo de
textos diversos: músicas infantis, poesias, trovas.
9
Os textos selecionados eram primeiramente apresentados aos alunos, depois lidos (ou
cantados) com eles e em seguida, lidos em duplas e individualmente. A partir do texto
desenvolvíamos atividades de oralidade, dramatizações simples, desenhos, identificação de
palavras. Após todo este trabalho, as palavras eram reconhecidas com facilidade pelas
crianças. Juntos escolhíamos uma delas para trabalharmos. Mostrávamos as sílabas da
palavra, ensinávamos o traçado das letras, localizando-as no alfabetário da classe. A partir das
sílabas da palavra e das já conhecidas, íamos formando novas palavras. As crianças eram
estimuladas a formar novas palavras individualmente ou com auxílio e, coletivamente,
elaborávamos listagem de palavras que elas eram estimuladas a ler. Todo este processo era
permeado de atividades de oralidade.
A montagem de palavras com os cartões (as letras eram móveis e ficavam afixadas em
cada cartão) era uma das atividades preferidas das crianças. Elas ajudavam-se entre si, pediam
auxílio para o professor ou para outras crianças.
As atividades de escrita ocorreram desde o início, pela escrita em parceria (co-autoria).
Na medida em que o domínio emergia, estimulávamos a escrita “individual” a partir dos
desenhos que faziam, dos carimbos que escolhiam, de gravuras escolhidas e recortadas pelas
próprias crianças. No entanto, tais atividades não eram tão “individuais”. O tempo todo
auxiliavam-se mutuamente, perguntavam, apontavam letras uns para os outros. As crianças
demonstravam muito interesse em usar o quadro. Diante dele, elas aceitavam com menor
resistência a tarefa de escrever palavras ou frases. A atividade de desenho também, em muitos
casos, resultou na emergência da escrita, inclusive de pequenos textos.
Ao apresentar a idéia de zona de desenvolvimento proximal, VYGOTSKY (1984, p.
98) diz que “aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer
sozinha amanhã”. Com base nesta perspectiva, realizávamos a leitura partilhada. Inicialmente
líamos com elas e depois convidávamos para que lessem em duplas. Utilizávamos uma
diversidade de textos (músicas, poesias, livros infantis). Neste caso, o papel da mediação do
outro foi uma peça chave. A “leitura partilhada” desencadeada pela interação criança-criança
e professor-aluno/aluna foi uma estratégia fundamental para promover o avanço em direção
ao domínio da leitura. As crianças adquiriam maior confiança quando liam com o professor
ou com colegas, soltando-se e avançando no domínio da mesma. O fato das mesmas crianças
10
terem permanecido vários meses (de maio a novembro), possibilitou a constatação de tais
avanços. Até mesmo livros infantis com textos mais extensos eram utilizados para a leitura
partilhada. As crianças, no ato de ler, como demonstram Bettelheim & Zelan (1984) buscam o
significado10. Elas têm verdadeira atração pelo significado e desejam adquirir a capacidade de
verdadeiramente ler. Muitos destes textos mais extensos já eram conhecidos das crianças, pois
haviam sido lidos ou contados no momento inicial das aulas. Neste partilhamento, liam uma
ou outra palavra autonomamente enquanto outras eram lidas para elas (pelo professor ou outra
criança), mas nos dois casos apreendiam o significado. Tratava-se de uma estratégia eficaz,
mas extremamente lenta. O final da aula muitas vezes interrompia aquelas sessões de leitura
na qual estavam envolvidas. Elas chegavam a lamentar estas interrupções e queriam
prosseguir, deixando nítida a mudança de atitudes que apresentavam em comparação com
aquelas observadas no início da freqüência ao contraturno. A leitura partilhada exige do/da
professor/a o controle da ansiedade. É preciso dar tempo à criança, permitindo que ela
estabeleça as relações e prossiga na leitura. Nas correções da produção escrita enfatizávamos
a comparação e reescrita de palavras com inadequações.
O trabalho com alunos da 2ª etapa do CBA
Em Língua Portuguesa foram desenvolvidas atividades de leitura, produção de textos,
reestruturação coletiva e reescrita individual de textos (a partir das mediações do professor).
Todas as aulas eram iniciadas com a narrativa ou leitura de um conto ou história infantil. Em
seguida, os alunos escolhiam livros para leitura, numa variedade grande de títulos que
colocávamos à disposição. No início, os alunos mais manuseavam e observavam as figuras
do que propriamente liam. Porém, na seqüência, passaram a demonstrar interesse em lê-los
integralmente, embora algumas vezes necessitassem de ajuda. Assim, além de oportunizar um
avanço no “reconhecimento”, atingia-se também a “compreensão”11 e o gosto pela leitura.
10 - Reconhecemos que há diferenças na concepção de "significado" na Psicanálise e no modelo histórico-cultural. 11 - Para Geraldi (1993), são duas as categorias essenciais da leitura: reconhecimento e compreensão. O reconhecimento (decodificação) é condição necessária para que se dê a leitura, mas não é condição suficiente. Já a compreensão pressupõe interação, produção de sentidos, diálogo com texto/autor.
11
Outra estratégia empregada foi a leitura diária de um texto, selecionado pela sua
qualidade e extensão (fábula, narrativa, poesia, letra de música etc). Inicialmente fazíamos a
leitura (ou pedíamos às crianças que lessem sozinhas). Posteriormente líamos juntos, depois
em duplas e, por último, individualmente. Os textos eram explorados com conversações e
quando possível, eram dramatizados. Após esta tarefa conjunta, os alunos escolhiam
livremente textos para leitura individual ou em duplas. Líamos também com eles (leitura
partilhada). Os avanços dos alunos na leitura foram muito positivos; a fluência, interesse e
segurança na leitura melhoravam progressivamente. A interpretação de texto era realizada, na
maioria das vezes, em atividades orais.
Assim como ocorreu com os alunos da 1ª etapa, a leitura partilhada contribuiu muito
na apropriação da leitura e sua fluência. Realizar esta tarefa com o apoio do outro (professor
ou outra criança) permite, principalmente para as crianças que apresentam mais dificuldades,
a resolução conjunta, a criação de zonas de desenvolvimento proximal e o resgate da
autoconfiança.
Nas atividades de leitura, evitávamos qualquer forma de cobrança ostensiva, deixando-
os bastante à vontade e possibilitando-lhes a escolha de textos após a leitura coletiva. A
liberdade de escolha de textos e livros infantis pelas próprias crianças foi uma estratégia
eficaz para o desenvolvimento do interesse pela leitura. As crianças escolhiam textos movidas
por seus gostos, necessidades e padrões de preferência peculiares. Tanto na 1ª quanto na 2ª
etapa, víamos a leitura de textos literários como atividade que extrapola o mero
"reconhecimento", pois ela permite “a compreensão de diferentes visões de mundo; aquisição
de conhecimentos; oportunidade de descobertas, idealizações e reflexões; exercício da
consciência crítica; vivência de emoções; viagens pelo imaginário, pelo subjetivo e intimista;
análises de estilos e linguagens; convivência com a arte e com o estético, etc” (Bragatto Filho,
1995: 91). Além disto, entendíamos que a leitura possui um “potencial terapêutico” (Dantas,
1994), principalmente quando as crianças identificam-se com personagens e situações.
Buscou-se tratar a leitura como atividade prazerosa e partilhada, a partir da qual
poderiam acontecer diálogos, produção de desenhos, de textos etc. Naquele ambiente mais
flexível, aberto e menos apressado, as crianças melhoravam a capacidade de leitura,
interessando-se por ela, gostando de ler e manusear os livros. Colocada de modo muito
12
formal, com textos pouco significativos, num clima de cobrança, a leitura acaba por tornar-se
cristalizada e seu aprendizado e domínio, algumas vezes, bloqueado.
Na produção de textos foram empregadas propostas variadas. Inicialmente
utilizávamos de “histórias em quadrinhos”, que auxiliavam na ordenação das idéias e no
planejamento do texto. Conversávamos sobre a seqüência e elaborávamos em conjunto um
texto coletivo que era registrado no quadro. Em seguida elaborávamos uma lista de possíveis
títulos, que eram colocados em votação. As crianças vibravam com a escolha dos títulos.
Concluído o texto, o mesmo era lido coletivamente e individualmente pelos alunos que
expressassem o desejo de lê-lo. Geralmente a maioria das crianças lia o texto, sem resistência.
Antes de ser apagado, destacávamos aspectos como parágrafos, pontuação, diálogos, título
etc. Em seguida, os alunos passavam a escrever o seu texto. Muitas vezes as crianças
relatavam oralmente o que iam escrever. Conforme demonstra Meserani (1995), a
intertextualidade (existência de relações entre textos escritos) ocupa um papel fundamental na
constituição do escritor. Para ele, a intertextualidade escolar se processa em três categorias:
reprodução, paráfrase (reprodutiva e criativa) e criação (redação escolar criativa). Geralmente
as produções dos alunos (reprodução e paráfrase) baseavam-se muito no texto produzido
coletivamente e, aos poucos, tornavam-se mais criativas. Demonstravam a incorporação da
distribuição do texto no papel, uso adequado de parágrafo, pontuação, uso adequado da letra
maiúscula e presença do título. Deve-se destacar neste processo, a influência da atividade
coletiva na produção individual (diálogos sobre as ilustrações escolhidas, atividades de
oralidade, produção de texto coletivo, leitura do texto, destaque de aspectos gramaticais e
sintáticos do texto, produção individual). Buscando evitar a simples “reprodução” do texto
coletivo, estimulávamos as crianças a (re)elaborarem a idéia, acrescentarem elementos novos
ou mesmo romperem com o texto elaborado coletivamente. Algumas crianças rapidamente
soltavam-se na escrita, conseguindo produzir textos criativos.
A correção destes textos era feita diretamente com cada criança, que reescrevia
palavras e trechos, a partir da mediação oferecida. Quando a estrutura toda precisava ser
alterada, era proposta a reescrita completa do mesmo, mas sempre com oferecimento de
apoio. Embora a reprodução e paráfrase reprodutiva tenham sido as estratégias mais
utilizadas, a maioria dos alunos demonstrou avanços significativos na elaboração textual.
Muitos textos espontâneos emergiam a partir das atividades de desenho, das leituras dos
13
contos e histórias. Outra proposta utilizada foi a produção de textos em duplas e a
complementação de textos com lacunas. As crianças demostravam ainda grande motivação
para a produção de textos a partir de carimbos por eles escolhidos, cujos desenhos eram
cuidadosamente coloridos.
A produção de textos encaminhada desta forma priorizava a qualidade dos textos e das
mediações, secundarizando a quantidade. As situações de resistência à produção de textos,
demonstradas inicialmente por algumas crianças, tornavam-se raras e, quando manifestadas,
eram entendidas como normais. Neste caso, buscávamos estimulá-las para esta atividade.
Passamos pela experiência de propormos outras tarefas (desenho, pintura, leitura, jogos) que
acabavam dirigindo-se para a produção escrita ou ainda propúnhamos à criança que
acompanhasse outra (s) criança (s) na realização da atividade, o que resultava no
envolvimento e participação na elaboração textual. Para Vygotsky (1984), "o caminho do
objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa" (p.33). Esta afirmação
evidencia de modo mais explícito o lugar das mediações e interações sociais no processo de
internalização, implicitamente abordado em diversos textos de Vygotsky. O "papel do outro"
(também marcadamente presente nas formulações de Henri Wallon) eram inúmeras vezes
percebidos no cotidiano do trabalho pedagógico aqui relatado. A ação partilhada e resolução
conjunta desencadeava operações de troca, "empréstimos", colaborações mútuas, estímulo à
produção (escrita, neste caso). Assim, intervenções do outro (professor e alunos) e
fornecimento de pistas explícitas mostraram-se eficazes na elaboração da escrita, atividade
esta muitas vezes desprazeroza, inicialmente, para algumas crianças. A motivação para a
realização das atividades propostas (escrita, leitura, operações, desenho, narratividade,
dramatizações, manuseio de fantoches) emergia mais facilmente dos processos interativos
propostas ou negociados pelas próprias crianças. É preciso destacar que, além do aspecto
cognitivo presente nesta mediação, estabeleciam-se relações afetivas (proximidade, atenção
dispensada à criança, atendimento específico de suas necessidades de aprendizagem). Nem
sempre o oferecimento de pistas e colaboração é possível em classes regulares, seja pelo
número de alunos em classe, modos de ação e concepções dos/das professores/as etc.
Diversos pressupostos que foram válidos para Língua Portuguesa também serviram
para a Matemática, tais como: clima tranqüilo; relações amistosas com alunos/alunas;
demonstrações para o coletivo dos alunos; constante oferecimento de auxílio na resolução das
14
atividades; ênfase na qualidade e não na quantidade de atividades; valorização dos acertos e
não dos “erros”, proposição de situações de troca, partilha e resolução conjunta (entre os
alunos); diversificação de atividades e posturas como forma de evitar a monotonia e o cansaço
excessivo etc. A respeito das situações de ensino planejadas, pode-se destacar a análise de
Gallimore & Tharp (1996), baseada na teoria de Vygotsky: “Hoje, há muito pouco ensino nas
escolas (...) Em lugar de dar assistência ao desempenho, a supervisão escolar usualmente se
limita a dirigir e avaliar. (...) Em nenhum nível encontramos suficiente assistência,
correspondência, atividade produtiva conjunta ou construção de significados e valores
compartilhados” (p.184). O que estes autores sugerem é que, numa atividade coletiva ou sob
orientação (de adultos ou mesmo de crianças mais experientes), as crianças conseguem fazer
atividades mais complexas do que poderiam realizar sozinhas. Em inúmeras situações
constatamos, efetivamente, a aplicação deste princípio. Nestas situações de troca entre os
alunos/alunas percebemos que, algumas vezes, elas/elas desejavam executar pelo outro, ao
invés de apenas prestar o auxílio necessário. Entretanto, as relações de ensino e as instâncias
interativas configuram-se e modificam-se de acordo com as condições contextuais no decorrer
do processo, trazendo novos modos de realizar tarefas específicas e, conseqüentemente,
transformando a execução pelo outro em outras estratégias.
Outro ponto que merece discussão é o da quantidade/qualidade. A apresentação de um
número mais reduzido de operações, problemas ou outras tarefas, trazia maior tranqüilidade,
segurança e disposição na realização destas. Na medida em que resolviam com sucesso, outras
atividades eram propostas. Para diversos alunos/alunas, o procedimento da “resolução
partilhada” prolongou-se por um período maior. Isto gerou a preocupação se aquelas crianças
não estariam tornando-se muito dependentes da presença e auxílio do outro. No entanto, na
maioria dos casos, estas intervenções resultaram no aprendizado daqueles conteúdos por parte
dos/das alunos/alunas.
Procurávamos encarar os "erros" dos/das alunos/as com naturalidade, procedendo a
partir deles novas intervenções. Geralmente as crianças angustiam-se quando os “erros” são
evidenciados. Ao invés de destacá-los, procurávamos fornecer novas pistas, questionamentos,
bem como novos problemas e apoio para a sua resolução. A valorização e reconhecimentos
dos “acertos” resgatava a auto-estima e autoconceito dos alunos que passavam a
considerarem-se capazes de aprender e de acertar.
15
Algumas conclusões
As dificuldades não são só das crianças ... são da escola [nossas] também12
As dificuldades que as crianças apresentam precisam ser vistas também como
dificuldades da escola, dos professores e demais profissionais que nela atuam, principalmente
no sentido de saber/aprender lidar com elas, enfrentando-as como perfeitamente superáveis
por meio de estratégias adequadas. As crianças apresentam necessidades de aprendizagem,
diferentes ritmos e tempos. Apresentam vicissitudes biográficas e características específicas
que nem sempre são consideradas pela escola. É preciso ter interesse pela criança e
demonstrá-lo, bem como buscar recursos metodológicos que supram suas dificuldades de
aprendizado. Inúmeras teorias subsidiam mudanças substanciais nas relações de ensino; estas
precisam ser compreendidas pelos/pelas professores/as para efetivamente serem incorporadas
nas práticas pedagógicas.
Valorizar os avanços, apostar nas crianças
É possível perceber no contexto escolar uma tendência à supervalorização das
dificuldades das crianças (bem como de carências, problemas emocionais, problemas de
saúde, de atitudes, de comportamentos etc) e, em contrapartida, pouco destaque aos avanços
que conseguem. Comentários ou demonstrações que salientem a dificuldade, lentidão, “erros”
e outras formas de “desqualificação” do processo de aprendizagem parecem prejudiciais.
Nesta experiência, percebemos que o reconhecimento explícito dos avanços- mesmo que
aparentemente sutis– colaborou muito para o resgate e/ou elevação do autoconceito e
continuidade do processo de aprendizagem. A idéia de que a criança "ainda não sabe"
permite-nos compreender a aprendizagem como processo dinâmico e rico de possibilidades.13
12 Expressão utilizada por Tosin e Barreto, 1988. 13 - Esteban (1992) reflete sobre o “ainda não saber” como espaço potencial de construção de conhecimentos, mediador entre o não saber e o saber e, portanto, relacionado à produção do sucesso ou fracasso dos alunos.
16
Afetividade e cognição: “dois núcleos que se retroalimentam”14
Conforme definido no início do trabalho, buscávamos constituir um clima de classe
favorável, onde o vínculo afetivo fosse o catalisador da atividade educativa. Das reflexões de
Dantas (1994), baseadas na Psicogenética de Henri Wallon, extraímos alguns princípios que
nortearam o trabalho pedagógico:
a) a aprendizagem pressupõe vínculo afetivo entre professor/a-alunos/as;
b) a atuação pedagógica individualizada é uma estratégia muito produtiva para baixar
angústias e descobrir interesses;
c) as atividades de leitura e escrita têm também um potencial expressivo (assim como o
desenho, a pintura, a dança) e auxiliam na transição da subjetividade para a objetividade
(inteligência). Histórias de sofrimento pessoal e experiências escolares traumáticas podem
reter energia na subjetividade, cujo "destravamento" permitirá o livre fluir da inteligência. A
criança precisa "falar de si, desenhar e dançar suas emoções, ler histórias sobre personagens
com vivências próximas das suas, escrever cartas a quem as responda" (p.49);
d) a terapia pela aprendizagem (e não para a aprendizagem), indica que aprender é algo que
faz bem às crianças, principalmente para aquelas com histórias de sofrimento pessoal e
dificuldades de aprendizagem.
Estes e outros princípios inspiraram a organização de espaços de interlocução (para a
socialização das histórias pessoais do professor e alunos/alunas), o interesse em conhecer
mais a “biografia” das crianças, a seleção de histórias próximas às vivências delas, a
proposição de atividades que envolvessem a expressão de sentimentos e emoções (desenho,
pintura, dança, dramatização, movimentos). Tais atividades possibilitaram a diversas crianças,
no decorrer do processo, o resgate do interesse e do prazer em aprender; a aquisição de maior
autoconfiança; sentimento de segurança; redução da sensação de “medo”; eliminação de
resistências. As interações sociais que se estabelecem no contexto escolar não são
integralmente harmônicas e, desta forma, os conflitos também ocorriam, mas cuidávamos
para que não fossem desgastantes (ou entrópicos segundo Wallon), que resultam em perda de
energia, de tempo e que corroem os vínculos afetivos. O vínculo afetivo positivo possibilitou
14 - Expressão utilizada por Dantas (1994, p. 47).
17
maior abertura nas relações interpessoais, diminuindo a ocorrência de sentimentos e situações
como medos, resistências, hostilidades, desânimo.
Multiplicidade e variedade de experiências
Para que os alunos sintam-se estimulados a freqüentar o contraturno e para que as
atividades não sejam repetitivas, cansativas, é preciso proporcionar experiências ricas,
múltiplas e variadas: contato com livros infantis diversificados; materiais concretos; jogos;
atividades de desenho, pintura, dramatização, manuseio de fantoches, modelagem, oralidade,
músicas etc. Para Vigoskii (1987), quanto mais ricas forem as experiências proporcionadas às
crianças, mais ricas serão também a imaginação e a fantasia. Assim, se desejamos que
escrevam com criatividade, tenham interesse pela leitura, é preciso empregar estratégias que
sejam interessantes para as crianças e que as impulsionem para o aprendizado.
Interações sociais e construção de conhecimentos
A perspectiva histórico-cultural em Psicologia destaca a natureza constitutiva das
interações sociais. As interações professor-alunos/as e as entre pares (na leitura partilhada ou
cooperativa; na produção de textos em parceria e em duplas; na resolução de operações,
jogos, montagem de palavras em duplas ou em pequenos grupos) exerceram importante papel
para o domínio de conhecimentos. Tratava-se da tentativa de compor um “cenário de
atividade”, marcado pela interação, colaboração, intersubjetividade, sistematização, mediação
e desempenho assistido (Gallimore & Tharp, 1996: 185).
Despertamento de gostos e interesses
As mediações pedagógicas oferecidas, consideradas longitudinalmente, resultaram na
aquisição de conhecimentos, mas também no despertamento de gostos e interesses pela leitura
de livros infantis, produção gráfica (desenhos), escrita espontânea (textos livres, bilhetes) e
narrativas orais. Na leitura, por exemplo, observamos a transição do simples manuseio (“ver
18
as figuras”) para a leitura efetiva dos mesmos. A participação do outro (professor e alunos/as)
permeava tanto a emergência quanto o desenvolvimento de tais gostos e interesses.
Considerações finais
O trabalho com crianças que necessitam de maior tempo para apropriação dos
conteúdos evidencia, além do papel da mediação, das interações sociais e das ações
partilhadas, a importância dos aspectos afetivos presentes nas relações de ensino. Vygotsky
(1987) critica a separação entre intelecto e afeto na psicologia: "a separação entre intelecto e
afeto, enquanto objetos de estudo é uma das principais deficiências da psicologia tradicional
(...)" (p. 6). Na mesma direção, Wallon considera que a relação entre emoção e razão (assim
como entre afetividade e inteligência, subjetividade e objetividade) é de oposição e, ao mesmo
tempo, de filiação: são dois núcleos que se retroalimentam. Ao nos depararmos com as
dificuldades que as crianças encontram no processo de aprendizagem podemos assumir
posturas diferenciadas de cobrança ou de apoio. A primeira, geralmente tende a aumentar o
grau de angústia decorrente da imperícia, podendo ocasionar um forte sentimento de
incapacidade para aprender. Já a segunda postura parece mais adequada pois aumenta a
autoconfiança da criança e, conseqüentemente, sua maior disposição para o aprendizado e
mediações do/da professor/a ou mesmo das outras crianças.
As formulações de Vygotsky e Wallon contribuem em diversos aspectos para o
trabalho pedagógico, sendo estas contribuições bastante promissoras no trabalho com crianças
que necessitam de maior tempo para o aprendizado. Ao educarmos estamos atuando na
dimensão da formação humana: há necessidade, portanto, de entendermos a criança numa
perspectiva mais ampla, buscando suprir as necessidades que apresentam. O contraturno (ou
propostas semelhantes de “complementação de estudos”) reveste-se de grande importância no
atendimento destas necessidades.
Enquanto um espaço de pesquisa, marcada pela permanente ação-reflexão-ação, esta
experiência mostrou-nos a riqueza do processo de aprendizagem; a felicidade e alívio que o
domínio traz às crianças; a importância das ações partilhadas, da resolução conjunta de
problemas, do clima de classe, das fontes motivadoras para a aprendizagem, do trabalho
coletivo e articulado na escola.
19
É preciso lutar para que todos os professores tenham melhores condições de trabalho
(menor carga horária, melhores salários, apoio para a realização de pesquisas sobre a própria
prática, assessoramento permanente com orientações consistentes), bem como para que
possam ampliar o domínio de teorias que efetivamente possam trazer elementos para
mudanças substanciais no trabalho de sala de aula.
Em trabalho anterior (MAINARDES, 1998), apresentamos algumas contribuições de
pesquisas ancoradas na perspectiva vygotskyana para o trabalho pedagógico. No Brasil,
inúmeros trabalhos destacam as contribuições de Vygotsky e Wallon para a atividade
educativa15. Ambos buscaram construir teorias e princípios explicativos para o
desenvolvimento, aprendizagem e constituição do sujeito. Mais que isso, estavam
comprometidos com transformações sociais, incluindo aí as relações de ensino no contexto
escolar. Assim, tomá-los como fonte inspiradora constititui-se um desafio e, ao mesmo tempo,
uma tarefa primordial na instauração da escola latente em nosso desejo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989. BETTELHEIM, Bruno; ZELAN, Karen. Psicanálise da alfabetização: um estudo psicanalítico
do ato de ler e aprender. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Paulinas, 1992. BRAGATTO FILHO, Paulo. Pela leitura literária na escola de 1º grau. São Paulo: Ática,
1995. CAMARGO, Denise de. As emoções no processo de aprendizagem. PUC/SP. (Tese de
Doutorado), 1997.
15 - Sobre os trabalhos alicerçados na teoria de Vygotsky, ver o levantamento publicado nesta mesma obra. Na perspectiva walloniana podemos destacar os trabalhos de CAMARGO, 1997; CORDEIRO, 1995; DANTAS, 1992, 1993, 1994; DANTAS, & PRADO, 1994; DÉR, 1997; GALVÃO, 1995, 1996; NUNES, 1995; PEREIRA, 1992; PINHEIRO, 1995.
20
CARVALHO, Janete M.; SIMÕES, Regina Helena S. Formação continuada do professor por meio da pesquisa da sua própria prática. Trabalho apresentado na 19ª Reunião Anual da ANPED. GT Formação de professores. 1996.
CORDEIRO, S. A. Interação professor-aluno: concepções de professores e alunos de sétimas
séries. PUC/SP, 1995. (Dissertação de Mestrado). DANTAS, Heloysa. Afetividade e a construção do sujeito na psicogenética de Wallon. In: LA
TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta K. de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
_______. Emoção e ação pedagógica na infância: contribuições de Wallon. Temas em
Psicologia, Ribeirão Preto, n. 3, p.73-76, 1993. _______. Algumas contribuições da Psicogenética de H. Wallon para a atividade educativa.
Revista de Educação da AEC, Brasília, v.23, n.91, p.45-51, abr./jun. 1994. DANTAS, Heloysa; PRADO, Elisabeth C. Alfabetização: responsabilidade do professor ou
da escola? In: AZEVEDO, Maria Amélia; MARQUES, Maria Lucia (orgs.). Alfabetização hoje. São Paulo: Cortez, 1994. p. 93-111.
DÉR, Leila C. S. Da desatenção para a atenção: uma análise walloniana da trajetória de uma
professora e seus alunos de 7ª série. Trabalho apresentado na 20ª Reunião Anual da ANPED. Caxambu-MG, 1997. (GT Ensino Fundamental).
DICKEL, Adriana. Que sentido há em se falar em professor-pesquisador no contexto atual?
Contribuições para o debate. In: GERALDI, Corinta M.G; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E. M. de A. (orgs.). Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 1998. p.33-71.
ESTEBAN, Maria Teresa. repensando o fracasso escolar. Cadernos Cedes, Campinas, n.28,
p.75-86. 1992. FRANZ, Marie L. Von. A interpretação dos contos de fada. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981. FROMM, Eric. A linguagem esquecida: uma introdução ao entendimento dos sonhos, contos
de fadas e mitos. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. GALLIMORE, Ronald; THARP, Roland. O pensamento educativo na sociedade: ensino,
escolarização e discurso escrito. In: MOLL, Luis C. Vygotsky e a educação: implicações pedagógicas da psicologia sócio-histórica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 171-199.
GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil.
Petrópolis: Vozes, 1995. _______. A questão do movimento no cotidiano de uma pré-escola. Cadernos de Pesquisa,
São Paulo, n.98, p.37-49, ago. 1996.
21
GARCIA, Regina Leite. A professora investigadora e o processo de produção de novos conhecimentos sobre a prática pedagógica. Anais do IX ENDIPE. Águas de Lindóia, 1998. p. 285-302.
GERALDI, C. Mª. G.; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E. M. de A. (orgs.). Cartografias do
trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 1998. GERALDI, João Wanderley. A constituição do sujeito leitor. In: Módulo I- Fundamentos de
estudos de linguagem. Campinas: UNICAMP/VITAE/SEE, 1993. KORCZAK, Janusz [Henryk Goldsmit]. O direito da criança ao respeito. In: KORCZAK, J.;
DALLARI, Dalmo de A. O direito da criança ao respeito. São Paulo: Summus, 1986. KRAMER, Sonia. A formação do professor como leitor e construtor do saber. In: MOREIRA,
Antonio F. B. (org.). Conhecimento educacional e formação do educador. Campinas: Papirus, 1994.
MAINARDES, Jefferson. Ciclo Básico de Alfabetização: da intenção à realidade.
FE/UNICAMP, 1995. (Dissertação de Mestrado). ________. Análise da produção brasileira na perspectiva vygotskyana. Teoria e prática da
Educação, Maringá, v.1, n.1, p.55-64, set. 1998. MALDANER, Otavio A . A formação continuada de professores: ensino e pesquisa na escola.
FE/UNICAMP, 1997. (Tese de Doutorado). MESERANI, Samir. O intertexto escolar. Sobre leitura, aula e redação. São Paulo: Cortez,
1995. NEGRI, Itelma Mirian M. Ciclo Básico: os limites de um projeto político. UNIMEP, 1994.
(Dissertação de Mestrado). NÓVOA, António (coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. NUNES, Nadir Neves. O ingresso na pré-escola: uma leitura psicogenética. In: OLIVEIRA,
Zilma de M.R. de (org.). A criança e seu desenvolvimento: perspectivas para se discutir a Educação Infantil. São Paulo: Cortez, 1995. p. 105-129.
PARANÁ. SEED. Cadernos do Ensino Fundamental. n. 4 (Alfabetização: avaliações).
Curitiba: SEED, 1991. PAVONI, Amarilis. Os contos e os mitos no ensino: uma abordagem junguiana. São Paulo:
EPU, 1989. PEREIRA, Elisabete M. de Aguiar. Professor como pesquisador: o enfoque da pesquisa-ação
na prática docente. In: GERALDI, Corinta M. G.; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E.M. de A. (orgs.). Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 1998. p. 153-181.
22
PEREIRA, Maria Izabel Galvão Gomes. O espaço do movimento: investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da teoria de Henri Wallon. FE/USP, 1992. (Dissertação de Mestrado).
PIMENTEL, Mª Auxiliadora. Sem afeto, não há alfabetização (Entrevista). Revista Nova
Escola, São Paulo. v.4, n.32, p. 22-24. ago. 1989. PINHEIRO, Mª Mersilda. Emoção e afetividade no contexto da sala de aula: concepções de
professores e direções para o ensino. PUC/SP, 1995. (Dissertação de Mestrado). TOSIN, Mara Eliana; BARRETO, Vera. Senhora mãe, seu filho vai aprender a ler. São Paulo:
Vereda - Centro de Estudos em Educação, 1988.
VIGOSKII, Lev S. La imaginación y el arte en la infancia. México: Hispanicas, 1987. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. _______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. WALLON, Henri. Psicologia e educação da infância. Lisboa: Editorial Estampa, 1975. ZILBERMANN, Regina; MAGALHÃES, Lígia C. Literatura infantil: autoritarismo e
emancipação. São Paulo: Ática, 1982. ZEICHNER, Kenneth M. Para além da divisão entre professor-pesquisador e pesquisador
acadêmico. In: GERALDI, C. Mª. G; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E. M. de A. Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 1998. p. 207-236.
* Jefferson Mainardes, Mestre em Educação pela UNICAMP, é professor de Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atuou, de 1988 a 1998, como professor de séries iniciais na Rede Estadual de Ensino do Paraná.