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PENSANDO A INFÂNCIA ENTRE A POLÍTICA COMO ESSÊNCIA E A POLÍTICA COMO HISTÓRIA Cássia Maria Baptista de Oliveira Este artigo originou-se de reflexões, experiências e pesquisas de vários profissionais e discentes que cursaram as disciplinas de educação infantil e de estágio em duas universidades (UNESA e UFRRJ). Nesses contextos educacionais complexos, que requerem saberes e conhecimentos científicos, sensibilidade, delicadeza e indagação para problematizar as situações da prática social de ensinar, fui construindo este texto. A infância e a criança “Colher com os olhos a complexidade da vida”, encontrar nos documentos a descoberta da infância fizeram Ariès 1 (1978) tornar esta mesma infância um conceito que possibilita analisar a história da sociedade em seus aspectos sociais, culturais, históricos, políticos, econômicos e institucionais, lançando a infância como um campo temático de pesquisa de natureza interdisciplinar. Após seus estudos, pode se considerar que a criança sempre existiu em todas as sociedades, em todas as épocas; o que difere são as concepções de infância, aqui entendidas como noções que explicam os vários modos de diferenciar crianças e adultos, por exemplo, a infância em cada época, a sua 1 ARIÈS,Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro:Zahar, 1978. 1

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Page 1: Pensando a Infancia

PENSANDO A INFÂNCIA ENTRE A POLÍTICA COMO ESSÊNCIA E A

POLÍTICA COMO HISTÓRIA

Cássia Maria Baptista de Oliveira

Este artigo originou-se de reflexões, experiências e pesquisas de vários

profissionais e discentes que cursaram as disciplinas de educação infantil e de estágio

em duas universidades (UNESA e UFRRJ). Nesses contextos educacionais complexos,

que requerem saberes e conhecimentos científicos, sensibilidade, delicadeza e

indagação para problematizar as situações da prática social de ensinar, fui construindo

este texto.

A infância e a criança

“Colher com os olhos a complexidade da vida”, encontrar nos documentos a

descoberta da infância fizeram Ariès1 (1978) tornar esta mesma infância um conceito

que possibilita analisar a história da sociedade em seus aspectos sociais, culturais,

históricos, políticos, econômicos e institucionais, lançando a infância como um campo

temático de pesquisa de natureza interdisciplinar. Após seus estudos, pode se considerar

que a criança sempre existiu em todas as sociedades, em todas as épocas; o que difere

são as concepções de infância, aqui entendidas como noções que explicam os vários

modos de diferenciar crianças e adultos, por exemplo, a infância em cada época, a sua

duração, as qualidades de uns e de outros e a importância vinculada às suas diferenças.

Neste sentido, a descoberta da infância na modernidade colocou a necessidade

de distinguir os conceitos de criança e de infância que foram construídos na tensão entre

as categorias psicobiológica e sócio-histórica. A categoria psicobiológica refere-se à

criança como sujeito de investigação das ciências psicológica, biológica e médica, as

quais buscaram compreender as diferentes formas que a criança assume e as etapas que

percorre para se tornar um adulto, explicando de maneira precisa e clara as

especificidades de cada uma delas. Esta categoria contribuiu para estabelecer padrões

homogêneos de comportamento, de acordo com as características etárias, físicas,

afetivas e psíquicas das crianças. Nessa caracterização evolucionista, está a ideia de

concepção de infância em progressão, que vê a criança como ser incompleto que se

1 ARIÈS,Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro:Zahar, 1978.

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define em função de algo que é evoluído: o adulto; a criança é um vir-a-ser, é o futuro

da nação. Tal concepção vem sendo problematizada, uma vez que a criança não é

simples organismo em desenvolvimento, mas um sujeito que tem direitos,

posicionamentos, talentos, vontades, sonhos, desejos.

A categoria sócio-histórica trata a criança como sujeito de investigação das

ciências psicológica, antropológica, sociológica, histórica, linguística e filosófica,

entendendo-a como produtora de cultura e por ela produzida. Nesta caracterização, que

busca analisar a criança em seu contexto, com suas diferenças e singularidades em cada

tempo e espaço, está a ideia de ser produtor, criador, com capacidade de ser ativo,

introduzindo a concepção de infância em sua dimensão histórica e cultural, mas

colocando o conceito de infância em face de duas categorias que estão em constante

transformação: tempo e espaço.

Kuhlmann (2004)2 considera que a história da infância seria, então, a “a história

da relação da sociedade, da cultura, dos adultos com essa classe de idade, e a história da

criança seria a história da relação das crianças entre si e com os adultos, com a cultura e

a sociedade”. Para Sarmento e Pinto3 (1997), a infância é uma constituição social que

assinala o conjunto de representações sociais e de crenças, e para a qual se estruturaram

dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social. Esta

“assinala os elementos de homogeneidade deste grupo minoritário, e as crianças, como

referentes empíricos cujo conhecimento exige a atenção dos fatores de diferenciação e

heterogeneidade”.

De acordo com Postman4 (1999), a concepção de infância que surge na

modernidade está relacionada ao reaparecimento das ideias romanas – educação,

valorização da capacidade de ler e escrever, vergonha – que haviam desaparecido na

Idade Média. Ele destaca que os romanos tomaram emprestado dos gregos a noção de

escolarização e desenvolveram uma compreensão da infância associada à de vergonha.

2 JR KUHLMANN, Moysés. Infância e Educação Infantil uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998.

3 PINTO, Manuel & SARMENTO, Manuel Jacinto. "As crianças e a Infância: definindo

conceitos, delimitando o campo". As Crianças: contextos e identidades. Universidade

do Minho, Centro de Estudos da Criança. Braga, Portugal: Ed. Bezerra, 1997. p. 9-29.

4 POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Grafia, 1999.

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Page 3: Pensando a Infancia

Os romanos pensaram a infância a partir das ideias de proteção e cuidado, de

escolarização e de elas estarem a salvo dos segredos dos adultos, principalmente os

sexuais. Na modernidade, estes pontos reaparecem de forma a distinguir a criança do

adulto, mas com um olhar desconhecido pelos gregos, pois os gregos desconheciam o

olhar de cisão entre mundo infantil e mundo adulto, entre sagrado e profano, entre bem-

estar individual e bem-estar comunitário.

A descoberta da infância na modernidade resultou na concepção de infância

imbuída das noções de inocência, pureza, graciosidade, traduzidas por paparicação e

abrangendo a ideia de desenvolvimento, que carrega as noções de imperfeição e

incompletude, traduzidas por moralização. Estas concepções estão vinculadas ao projeto

moderno que acreditava ser fundamental que se “educassem as crianças tornando-as

moralmente melhores, pois afinal elas são o ‘futuro’ de uma sociedade livre e

esclarecida”5 (Gagnebin). Estas ideias estão relacionadas à institucionalização da

infância, que ocorreu com o surgimento do capitalismo, da imprensa e da ciência

moderna, ou seja, as infâncias são imagens criadas por conceitos construídos pelas

ciências, que fundamentaram práticas sociais que se mostraram consistentes e

comprometidas com o projeto da modernidade. Nesta perspectiva, a infância é um dos

principais personagens do projeto moderno que condensa as suas ideias fundamentais:

progresso, emancipação, individualidade, trabalho e tempo/espaço.

Na modernidade leve, a infância passa a ser compreendida como grupo social,

grupo de geração, grupo etário e como coletivo nominal, segundo uma discussão sobre

ela que contrapõe o natural e a história, o inato e o adquirido, a independência e a

dependência. Enquanto coletivo nominal, explica as formas de atendimento à criança

através de diversas modalidades oferecidas por inúmeros programas instituídos por

organizações internacionais e nacionais e movimentos sociais. Ambos, organizações e

movimentos, disseminaram ideias e imagens de infância que oscilam entre políticas

assistenciais, educacionais e jurídico-policiais, mas articulando-as a um processo de

institucionalização da criança como forma de educação e proteção à infância.

Os estudos da infância mostram um corpo de trabalhos explorados pela

antropologia, a psicologia, a história, a sociologia, a filosofia, a linguística, os quais

anunciam a diversidade de linhas teóricas no interior de cada área, o que afetou o fazer

5 GAGNEBIN, Jeanne Marie. INFÂNCIA E EXISTÊNCIA AUTÊNTICA. Disponível em www.webartigos.com/articles/4301/1

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Page 4: Pensando a Infancia

científico, os discursos das ciências, o pensamento e as práticas sociais. Estas áreas de

conhecimento cunharam uma base teórico-metodológica que possibilitou estudos

capazes de compreender as infâncias em sua relação com a história e a cultura. Como

resultado, houve o reconhecimento de que as crianças e os grupos infantis – de uma

escola, de uma rua, de um grupo de brincadeiras, de uma classe social, de gênero, de

etnia e de geração em seus diferentes contextos – criam uma cultura viva e transformam

os produtos da moderna “indústria cultural” em algo próprio e diverso daquilo que lhes

foi oferecido.

As possibilidades de reacoplamento entre crianças e infâncias têm sido possíveis

em função de as pesquisas desenvolverem o sentido de culturas infantis, tomando as

crianças como referenciais em seus contextos, com suas diferenças e singularidades em

cada tempo e espaço. Estas pesquisas trazem a voz das crianças por meio de diferentes

metodologias, que apontam para a possibilidade de deslocar a leitura das infâncias do

ponto de vista adultocêntrico para o ponto de vista das crianças. Assim, indicam que

existem diferentes modos de viver essa etapa da vida, além de mostrarem um amplo

repertório de interesses, saberes científicos e desafios da pesquisa com crianças.

Dessa perspectiva, entende-se que não se dá voz à criança, mas se reconhece que

ela tem voz, desejos, talentos, capacidades e sonhos. As vozes das crianças não são

compreendidas como comprovação científica, nem como revelação de uma verdade

escondida, exemplificação ou ilustração do pensamento, mas como narrativas, como

interlocução. De tal modo que a própria pesquisa seja considerada uma arte de narrar

que nos convida, como nos diz Baptista6 (2008:63),

a continuar contando e usando-a artesanalmente, que nos leva a subverter o brilho das diferenças como produção de culturas, que não promete nada e nem nos preenche vazios de existência, [...] [sendo uma] presença disruptiva que nega a eternidade tanto da dor quanto da alegria e dessa forma provoca transtornos: são fulgurantes, efêmeros, portadores de uma destruição necessária da qual não sabem o que advirá, porém acreditam que destruir certezas invioláveis vale a pena, pois caminhos inesperados serão criados.

A partir deste entendimento, algumas questões fundamentais são colocadas para

a pesquisa que toma as narrativas das crianças. Estas questões referem-se ao uso e ao

tratamento das vozes das crianças e das histórias contadas por elas, aos diferentes

6 BAPTISTA,Luis Antônio.Walter Benjamin e os anjos de Copacabana. Disponível na Revista Educação Especial: Biblioteca do Professor nº 7 . Benjamin A Educação contra a barbárie.

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Page 5: Pensando a Infancia

modos de “recolher” a voz da criança, à condução do diálogo entre sujeito-criança e

sujeito-pesquisador, sem nenhuma hierarquização.

Desta maneira, a pesquisa aponta para um repensar sobre o modo de ser adulto e

de ser criança na contemporaneidade. Só assim poderemos compreender o olhar de

indignação, espanto e horror da erotização da infância; as crianças na rua; as crianças

trabalhadoras; as crianças desaparecidas e vendidas; as crianças trafegando drogas e

usando armas “em guerras”; as crianças abandonadas; as crianças que cometem crimes,

assaltos, roubos e fazem uso de drogas; os anúncios com as crianças-modelo; as

crianças consumidoras; as crianças sozinhas ou mandando em seus pais; as crianças que

anunciam o enfraquecimento da autoridade. Inúmeros autores em nossos dias

empenham-se em escrever sobre o desaparecimento da infância.

Neste sentido, Gagnebin7 (opus cit.) afirma que na atualidade ocorre o processo

inverso dos “moldes a que assistimos, no projeto moderno”. Na modernidade pesada,

ocorreu o desaparecimento das crianças reais pela necessidade de infantilizá-las no

processo de institucionalização e houve o aparecimento da infância portadora de uma

essência. Na modernidade leve, surgem as crianças reais, e “as infâncias que

desapareceram são aquelas construções fruto das representações dos adultos: infância

inocente, livre, pura, boa, passiva, sem voz, fraca moralmente, dependente”. Ou seja,

esta é a concepção de infância fundada na essência, que está associada a noções de

graciosidade, pureza, inocência e imperfeição que contribuíram para as instituições

educacionais trabalharem com o conceito homogêneo e abstrato de criança, sem

considerá-la inserida em seu contexto familiar, social e histórico. Já as noções de

carência, desvio, perigo contribuíram para as escolas trabalharem o contexto de vida das

crianças pobres por meio da discriminação da própria criança e da família, apresentando

componentes ideológicos que ajudaram a rotular, a estigmatizar e a discriminar ainda

mais essas crianças, suas famílias e o lugar onde moram.

Esta problematização trazida por Gagnebin (ibidem) é um desafio para que nos

dispamos das definições apriorísticas que engessam as crianças e as infâncias em

modelos, e para “desaprendermos” as certezas que convertem a verdade em dogmas. Tal

visão nos levou a refletir sobre as práticas pedagógicas que levaram mais à reprodução

do que à invenção, práticas estas que foram afirmando certezas, verdades absolutas e

7 GAGNEBIN, Jeanne Marie. INFÂNCIA E EXISTÊNCIA AUTÊNTICA. Disponível em www.webartigos.com/articles/4301/1

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Page 6: Pensando a Infancia

arrogâncias que nos encaminham para esquecer que a experiência é a matéria-prima da

narrativa que,

tecida na passagem, no entrelaçamento dos fragmentos de histórias de muitas vidas, não se mostra passível de completar-se, fechar-se ou de esgotar-se. Tampouco, pretende erigir nova ordem, novos monumentos. A narrativa incita à montagem, incita ao recolhimento destes fragmentos que saltarão da voz do narrador, permitindo-se desdobrar em muitas outras histórias e recontar-se inúmeras vezes (Benjamin apud Rodrigues, 2006 8).

Práticas (des)aprendidas

A cultura do lúdico nas práticas pedagógicas aponta para a valorização do ato de

brincar, da brincadeira em si e do jogo, aparecendo como expressão da tensão entre a

infância fundada na essência e a infância fundada na história.

A valorização do brincar coincide com a institucionalização das crianças em

escolas infantis, momento em que o lúdico ora aparece como atividade espontânea, no

sentido de algo natural da criança; ora como metodologia educacional, um meio para

atingir determinados fins. Desse modo, o brincar é pedagogizado e introduzido nas

instituições escolares com a intenção de torná-las mais prazerosas, mudando assim a

forma de organizar a brincadeira, que aparece ora como conteúdo com objetivos

educacionais; ora como espaço de desenvolvimento e aprendizagem; ora como processo

de apropriação; ora como relação com o mundo; ora como modos de ensinar e aprender,

propiciando novas e interessantes relações e interações entre as crianças e destas com o

conhecimento.

Para falar da cultura do lúdico a partir de uma perspectiva educacional, torna-se

necessário examinar os discursos pedagógicos que valorizam o lúdico. Barbosa9 (2006),

destaca a grande influência de Rousseau no campo educacional. Ele compreendeu a

educação como um processo que deve caminhar par a par com o próprio

desenvolvimento da criança, focando a brincadeira como um comportamento natural

dela e que expressa uma verdade mais essencial do que as verdades racionais dos

conhecimentos constituídos. Para ele, a criança revela a verdade e desvenda o sentido

8 RODRIGUES, Ana Cabral. Subjetividades e espaços: narrativas incompletas. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006.

9 BARBOSA, Maria Carmen Silveira. POR AMOR E POR FORÇA ROTINAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL.Porto Alegre:Artmed,2006.

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Page 7: Pensando a Infancia

do mundo de modo espontâneo, fundando uma concepção de infância como portadora

de uma essência. De certa forma, ele retoma os princípios utilizados por Comenius, para

destacar que a educação deve favorecer o desenvolvimento livre e espontâneo da

criança, a qual possui imensa capacidade de criação.

Froebel10 (2002) assinala que o principal requisito para o sucesso das crianças é

ouvir o seu conhecimento. Para ela realizar o autoconhecimento com liberdade, ele

elege os brinquedos e os jogos como instrumentos que vão mediá-lo, além de considerar

que eles geram desenvolvimento e servem para que ela expresse como vê o mundo.

A partir deles a cultura do lúdico passa a ser valorizada pelas práticas

pedagógicas, que são utilizadas como parte da metodologia educacional e introduzidas

nas escolas infantis com a intenção de levar a criança a aprender com prazer, baseando-

se na sua atitude espontânea, que é vista como condutora do conhecimento. Desse ponto

de vista, o brincar produz as vivências do prazer de estar aprendendo.

O tempo da escola transforma-se em tempo pedagógico, que é estruturado pelos

elementos constitutivos das rotinas, que são: a organização do espaço, o uso do tempo, a

seleção e as propostas de atividades, a seleção e a oferta de materiais, como foram

apresentados por Barbosa (2006).

A dimensão do tempo pedagógico não se refere apenas ao tempo cronológico,

mas a uma pluralidade de tempos: tempo da informação; tempo da inovação; tempo de

interações; tempo do brinquedo e do jogo; tempo para desenvolver a autoestima; tempo

de dizer sim à vida; tempo de organizar esperanças; tempo vivencial da tristeza e da

alegria de estar aprendendo.

Ângela Borba, em seu texto O Brincar como um modo de ser e estar no mundo

(2007)11, demonstra que existem

inúmeras possibilidades de incorporar a ludicidade na aprendizagem, mas para que a atividade pedagógica seja lúdica é importante que permita a fruição, a decisão, a escolha, as descobertas, as perguntas e as soluções por parte das crianças e dos adolescentes, do contrário, será compreendida apenas como exercício.

10ARCE, Alessandra. A PEDAGOGIA NA “ERA DAS REVOLUÇÕES” uma análise do pensamento de Pestalozzi e Froebel.Campinas: Autores Associados,2002.

11 ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS. Orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. 2007.

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Page 8: Pensando a Infancia

Entretanto, a cultura do lúdico na contemporaneidade traz a experiência do

tempo efêmero, evidenciando que, na prática pedagógica, ela deve ser analisada através

da perspectiva da infância fundada na história, o que implica pensar a relação entre

criança, cultura do lúdico e escola a partir da condição de humanização do ser humano,

do bem-estar comum e da felicidade. A cultura do lúdico na prática pedagógica como

expressão da essência aponta para a certeza de ela ser o espaço seguro de cultura e

conhecimento da criança, existindo na aprendizagem e no desenvolvimento de modo

espontâneo.

A cultura do lúdico na prática pedagógica como expressão da história e da

cultura indica que as crianças brincam com a história, isto é, com a dimensão do tempo.

Os brinquedos são a materialização da historicidade contida nos objetos, ou seja, o

brinquedo descortina o passado miniaturizando o presente. Assim, o brinquedo é

lembrança da possibilidade de transmitir, de traduzir a cultura e a história. Desta forma,

a cultura do lúdico nos convida a pensar a infância fundada na história.

O diálogo entre cultura do lúdico e infância envolve uma reflexão sobre a

produção cultural para as crianças (os objetos que são oferecidos a elas), sobre as novas

formas de interação com o brinquedo e sobre a capacidade de elas lidarem, criarem e

recriarem culturas, de inovarem e transformarem aquilo que lhes é oferecido em produto

cultural (como as crianças se relacionam com os objetos).

A industrialização, ao tornar o brinquedo mais “atraente”, distancia-o de seu

valor como instrumento de brincar, pois ele passa a servir de exibição ou enfeite. Assim,

ele se desvia da brincadeira viva. Na contemporaneidade, os brinquedos informatizados,

como as bonecas digitais e os animais de estimação computadorizados, levantam muitas

novas questões sobre a relação da criança com o brinquedo. Entretanto, esta relação

apresenta os desafios da cultura do consumo que perpassam a educação, que podem ser

examinados a partir da relação da criança com os brinquedos computacionais. Tal

relação anuncia que as crianças brincam para responder aos seus próprios anseios, ou

seja, as crianças estabelecem expectativas de ligações emocionais com os brinquedos

computacionais, assim como temos expectativas e ligações afetivas com as pessoas.

Tradicionalmente, as crianças projetavam “os estados de espírito” em seus brinquedos.

Hoje, para se relacionar com o brinquedo, a criança tem que se relacionar com seu

“estado de espírito”.

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Page 9: Pensando a Infancia

Para dar atenção ao presente, Benjamin apud Gagnebin12 (2006) sugere a

memória. Para o autor, ela envolve lembrar o que se quer esquecer. Nesse sentido, a

memória no pensamento benjaminiano significa adotar a perspectiva de que “são as

experiências tensas e infelizes que se vivem no presente que nos tornam mais atentos ao

mundo em que vivemos”. Esta perspectiva é fundamental para pensar a questão através

do diálogo das crianças com os brinquedos dispostos em prateleiras, que difundem o

“jardim de infância global”, o qual os transformam em imagens que prometem

felicidade, infantilizando a espécie humana.

As “elegantes” vitrines funcionam como vozes que são escutadas como o canto

de uma sereia intermediando o diálogo entre os produtores do consumo e os

consumidores crianças. Assim, o consumo anuncia a imagem como fonte de valorização

do tempo instantâneo. Este diálogo destaca os modos de ser criança e de ser adulto, a

relação entre eles e as novas formas de interação da criança com os brinquedos. Estes

objetos aparecem em diversos contextos no cotidiano infantil: como objetos potenciais

de solidão e consolação; como objetos que estimulam a autonomia ou a associação do

coletivo; como objetos de realização, cooperação e progresso; como novidade; como

objetos de distração ou informativos.

Deste ponto de vista, compreende-se que a criança não é apenas sujeito de

direito, mas ocupa uma posição a partir da qual se interpretam as práticas de cuidado e

proteção; se lê o desenvolvimento infantil, a aprendizagem, as próprias crianças e as

infâncias. Considera-se que a cultura do lúdico traz a possibilidade de refletir sobre as

subjetividades singulares que são produzidas na escola infantil por meio da prática

pedagógica. Este entendimento implica pensar a infância a partir da tensão entre a que é

fundada como essência e a que é fundada na história, para que se promovam o diálogo

com as crianças e as novas formas de convívio.

A infância fundada na essência e a infância fundada na história

Na infância fundada na essência, a cultura do lúdico é lembrada como uma

espécie de culto que se volta para o passado para tomar a vida da criança no presente

12 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

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Page 10: Pensando a Infancia

com base na essência. Na infância fundada na história, a cultura do lúdico é lembrada

com sentido de rememoração para colocar o presente em análise. Esta implica que em

“vez de repetir aquilo que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e

ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda

não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (Gagnebin, 2006:55).

Na primeira, as crianças reais evidenciam o processo que envolve o

aprimoramento da essência para que se estabeleça um diálogo com o outro, colocando

em análise a essência. Na segunda, as crianças reais evidenciam o processo que envolve

a desbanalização, a desestabilização, a não-fixação no passado, aquilo que pode nos

ajudar a continuar a dar sentido humano ao mundo, colocando em análise o presente.

A infância fundada na essência visa identificar a diferença do modo de ser

criança para resgatar a inocência perdida a partir da retirada da criança de ambientes que

apresentam ameaça ao seu desenvolvimento, apontando a natureza humana como uma

referência para examinar os conflitos e os desafios singulares contemporâneos que

perpassam a educação. Tal perspectiva objetiva promover respeito e tolerância aos

diferentes como tarefa política e ética da educação.

Estes conflitos aparecem quando se abordam temáticas como crianças vítimas de

violência; a inclusão de crianças portadoras de necessidades especiais; os novos arranjos

familiares; os conflitos de gerações entre os profissionais, crianças e pais; o tempo que

as crianças permanecem na escola e na casa sem a presença dos pais devido às

transformações no mundo do trabalho; as relações das crianças com os adultos (pais e

profissionais) e os grupos de pares; a noção de autoridade; e a divisão de papéis

familiares, que vem modificando as relações entre homens e mulheres e destes com os

filhos.

Na infância fundada na essência, esses conflitos exibem a vida privada no

espaço público, introduzindo de modo dramático a essência humana ao mesmo tempo

como perigo e remédio. A essência humana aparece como perigo no momento em que

as crianças anunciam o enfraquecimento da autoridade derivada dos males causados

pelas maleficências e pelos malfeitores humanos que habitam a cidade.

A essência humana torna-se remédio para estes males quando concebe o

desenvolvimento do sujeito como a estrada que revela a sua cura. Esta cura se pretende

alcançar com a confiança na crença como âncora, porque se pressupõe que a crença é

aquilo que possibilitará ao indivíduo sentir-se protegido e seguro. A proteção e a

segurança são os caminhos que levam à transformação da descrença em crença, da

10

Page 11: Pensando a Infancia

desesperança em esperança, da intolerância em tolerância à diferença. Em outras

palavras, a busca da proteção e da segurança traduz a incerteza, a insegurança e a falta

de garantias e de proteção como as principais fontes do mal-estar da civilização

contemporânea.

A infância fundada na história trata a diferença dos modos de ser criança como a

lembrança de que os discursos dos saberes humanos têm a dimensão de incompletude e

de singularidade, e vivem dessa fragilidade, isto é, há “uma retomada sem fim, um

caminhar sempre reiniciado, uma multiplicidade de percursos” (Gagnebin: 2006). A

partir deste ponto de vista, a vida no presente nos convida a pensá-la fora das amarras

que nos fixam ao passado, mas ouvindo o apelo do passado para estarmos atentos ao seu

chamamento de felicidade, o que significa a transformação do presente para que a

história cumpra a exigência da transmissão no tempo-agora. Nesse sentido, o paradigma

teológico do pensamento benjaminiano funciona

como aquilo que não propiciaria uma resposta (religiosa) às perguntas dos homens; antes seria, pelo contrário, o que abala os edifícios tão bem construídos dos sistemas lógicos, especulativos ou políticos. Aí também o caráter destruidor benjaminiano está agindo para preservar a possibilidade da salvação (Gagnebin, 1999:20113).

A nosso ver, a infância fundada na história envolve compreendê-la a partir da

privatização da existência e do esvaziamento do espaço público, entendendo-os como

rastros que funcionam para anunciar os modos de existência e de embate à “crescente

miséria produzida pelo capitalismo contemporâneo”.

Nesta perspectiva, a infância fundada na história significa a escrita de um projeto

ético para colocar a potência de vida como forma privilegiada de reflexão sobre os

modos de viver, afirmando esta potência associada ao cuidado de si, como foi

formulado por Foucault14 (2001), que pensou este conceito através da relação entre

subjetividade e verdade (como produção de um saber).

A potência de vida está ligada à ética como um tipo privilegiado de reflexão

sobre as formas de vida, como modos possíveis de se problematizarem os processos de

subjetivação contemporâneos. Deste ângulo, a relação entre infância, cultura do lúdico e

escola infantil se funda na potência de vida. Esta significa novas formas de cooperação,

13 GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin". USP Estudos Avançados 37, Dossiê Memória, v.13, n.37, set./dez. 1999.

14 FOUCAULT, Michel. L’herméneutique du sujet: cours au Collège de France, 1981-1982. Paris: Seuil/Gallimard, 2001.

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Page 12: Pensando a Infancia

de laço, de capacidade de inventar outros desejos e crenças que retirem a vida como

suporte do capital, o qual desenha uma cultura do individualismo capaz de afetar cada

vez mais a riqueza da biopotência do coletivo, da biopolítica da multidão. Pelbart15

(2003) afirma que o termo biopolítica foi apresentado por Foucault para designar uma

das modalidades de exercício do poder sobre a vida. Para ele, a biopolítica é a entrada

do corpo e da vida no domínio do poder, fazendo do poder-saber um agente de

transformação da vida humana. Deleuze16 (2006), inspirado em Foucault, explicita que o

poder sobre a vida deveria responder ao poder da vida, à potência política da vida.

Enfim, debruçar sobre os fragmentos de história acenados pela relação entre

infância, cultura do lúdico e escola infantil significa entender conexões entre tempo,

subjetividade e imagem, como lembrou Benjamin apud Baptista (2008). É uma imagem

dialética da história que tem relação com a experiência, o tempo histórico e a memória.

Nesta perspectiva, a linguagem tem o sentido de arte de narrar, e a cultura, de

“ferramenta combativa às ideias desejosas de eternidade, ou de nada produzido pelo

mundo, onde tudo morreu, foi esgotado, sepultado, exigindo apenas vaidosos

pessimismos solitários”, como tão bem lembrou Baptista (2008).

Benjamin queria mostrar com a imagem dialética que o presente é sempre o

entrelaçamento entre o amortecido e o vivo. Por isso, interessa-se pelos fenômenos que

se libertam da escuridão.

A sua proposta metodológica de dialética da história e da cultura visa justamente isso. Dialética que junta o passado e o presente numa intensidade temporal diferente de ambos; dialética também porque o passado, neste seu ressurgir, não é repetição de si mesmo, tampouco pode o presente, nesta relação de interpelação pelo passado, continuar igual a si mesmo. Ambos continuam a ser passado e presente, no entanto, diferentes de si mesmo na imagem fugitiva que, ao reuni-los, indica a possibilidade de sua redenção (Benjamin apud Baptista. 2008: 66)

No pensamento benjaminiano isto pode ser compreendido como o presente

acolhendo o apelo do passado para deixar “abertura à pequena porta pela qual poderia

entrar o Messias, que funciona como aquilo que abala os edifícios tão bem construídos

dos sistemas lógicos”.

15 PELBART, Peter Pál. Vida capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

16 FERREIRA, Marcelo Santana et. al. "Ensaios sobre o pensamento contemporâneo". Proclama, 2006. Disponível em [email protected]

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