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50 CARTA FUNDAMENTAL REPORTAGEM desenvolvimento da criança”, afirma Bianca Correa, professora do curso de Pedagogia da USP-Ribeirão Preto e pesquisadora das questões relacionadas à gestão escolar. De 2011 a 2012, o aumento de matrícula em creche e na pré-escola foi de 4,5%. A es- timativa do MEC é que o déficit de creches e pré-escolas é de 19.766. Até 2014, o governo federal se propôs a construir 6 mil unidades, em parceria com os municípios – até o mo- mento, foram entregues 760 unidades, ou- tras 562 estão em execução, 602 em licitação e 1.391 em planejamento. Em investimento, a educação infantil ainda é a que menos recebe recursos em comparação com outras moda- lidades. No entanto, cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apon- tam que o investimento federal na educação infantil saltou de 256 milhões de reais para cerca de 1 bilhão de reais entre 2011 e 2012. Outro fator explica o déficit de atendi- mento e a baixa qualidade encontrada em A favor da infância Ampliação do atendimento e melhora da qualidade do Ensino Infantil são os principais desafios da primeira meta do novo Plano Nacional de Educação POR ISABELA MORAIS E TORY OLIVEIRA A meta para a educação infantil do próximo decênio é univer- salizar o atendimento às crian- ças de 4 a 5 anos e garantir que metade dos brasileiros de 0 a 3 anos tenha uma vaga em creches até 2020. Diante do atual cenário - 81% da população de 4 e 5 anos é atendida e 18% de 0 a 3 anos – é um passo importante na democratização do acesso a essa modalidade de ensino historica- mente negligenciada. No entanto, o sucesso para cumprir uma das 20 metas do novo Pla- no Nacional de Educação (PNE), em tramita- ção no Senado Federal, dependerá de fatores complexos, como formação de professores, in- vestimento em novas estruturas e mudanças de paradigma, a começar pela prioridade de- dicada à educação de crianças de 0 a 5 anos. É notável que a educação dessas crianças ganhou posição de destaque: antes tida como um espaço de assistencialismo, hoje a educa- ção infantil é caracterizada como uma eta- pa importante para o desenvolvimento da criança. Isso ocorreu devido a dois fatores principais: a alteração nos modelos de famí- lia e do papel da mulher e a ampliação nos es- tudos com foco na educação infantil no Bra- sil e no exterior. “As pesquisas mostram que, ao contrário do que se imaginava, estar em uma escola coletiva, com bons profissionais e recursos ajuda na aprendizagem e no Cálculos do Ipea mostram que o investimento saltou de 256 milhões para 1 bilhão de reais. Mas a educação infantil ainda é a modalidade que recebe menos recursos CUIDADOS EXTRAS Quanto menor a criança, maior o custo de manutenção •CFReportagemED.INF_46.indd 50 26/02/13 18:37

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Ampliação do atendimento e melhora da qualidade do Ensino Infantil são os principais desafios da primeira meta do novo Plano Nacional de Educação. Reportagem divulgada na versão impressa da revista Carta Fundamental 46, de março de 2013.

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reportagem

desenvolvimento da criança”, afirma Bianca Correa, professora do curso de Pedagogia da USP-Ribeirão Preto e pesquisadora das questões relacionadas à gestão escolar.

De 2011 a 2012, o aumento de matrícula em creche e na pré-escola foi de 4,5%. A es-timativa do MEC é que o déficit de creches e pré-escolas é de 19.766. Até 2014, o governo federal se propôs a construir 6 mil unidades, em parceria com os municípios – até o mo-mento, foram entregues 760 unidades, ou-tras 562 estão em execução, 602 em licitação e 1.391 em planejamento. Em investimento, a educação infantil ainda é a que menos recebe recursos em comparação com outras moda-lidades. No entanto, cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apon-tam que o investimento federal na educação infantil saltou de 256 milhões de reais para cerca de 1 bilhão de reais entre 2011 e 2012.

Outro fator explica o déficit de atendi-mento e a baixa qualidade encontrada em

a favor da infânciaAmpliação do atendimento e melhora da qualidade do Ensino Infantil são os principais desafios da primeira meta do novo Plano Nacional de EducaçãoPor I sab e l a M o r aI s e To ry o lIve I r a

A meta para a educação infantil do próximo decênio é univer-salizar o atendimento às crian-ças de 4 a 5 anos e garantir que metade dos brasileiros de 0 a 3

anos tenha uma vaga em creches até 2020. Diante do atual cenário - 81% da população de 4 e 5 anos é atendida e 18% de 0 a 3 anos – é um passo importante na democratização do acesso a essa modalidade de ensino historica-mente negligenciada. No entanto, o sucesso para cumprir uma das 20 metas do novo Pla-no Nacional de Educação (PNE), em tramita-ção no Senado Federal, dependerá de fatores complexos, como formação de professores, in-vestimento em novas estruturas e mudanças de paradigma, a começar pela prioridade de-dicada à educação de crianças de 0 a 5 anos.

É notável que a educação dessas crianças ganhou posição de destaque: antes tida como um espaço de assistencialismo, hoje a educa-ção infantil é caracterizada como uma eta-pa importante para o desenvolvimento da criança. Isso ocorreu devido a dois fatores principais: a alteração nos modelos de famí-lia e do papel da mulher e a ampliação nos es-tudos com foco na educação infantil no Bra-sil e no exterior. “As pesquisas mostram que, ao contrário do que se imaginava, estar em uma escola coletiva, com bons profissionais e recursos ajuda na aprendizagem e no

Cálculos do Ipea mostram que o investimento saltou de 256 milhões para 1 bilhão de reais. Mas a educação infantil ainda é a modalidade que recebe menos recursos

cuidados extras Quanto menor a criança, maior o custo de manutenção

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algumas localidades. “A sociedade brasilei-ra discrimina e não trata a criança peque-na como cidadã”, opina Fúlvia Rosemberg, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e coordenadora do Núcleo de Estudos de Relações de Gênero, Raça e Idade.

A extensão demográfica da área rural e a dispersão da população do campo também ajudam a explicar as baixas taxas de aten-dimento. Segundo Fúlvia, a população me-nos atendida pelo sistema educacional bra-sileiro é a de 0 a 2 anos de idade. No entan-to, região, renda familiar, educação fami-liar, escolaridade e trabalho da mãe, além de etnia e localização da residência são va-riáveis que influenciam no acesso.

As maiores desigualdades acontecem se-gundo a localização, renda e etnia. Segundo o Unicef, na faixa etária de 0 a 3 anos, nas áreas urbanas, 20,2% das crianças fre-quentam creches. O número na zona ru-ral é de 8,8%. Nas famílias mais pobres,

11,8% estão matriculadas na Educação Infantil, enquanto entre os mais ricos a taxa é de 34,9%. O porcentual de matrí culas entre crianças brancas é de 19,9% e entre as negras, 16,6%.

Entre 4 e 6 anos, a desigualdade não é di-ferente. Entre os mais ricos, a frequência chega a 93,6%, nos mais pobres é de 75,2%. Ainda na pré-escola, o contraste se man-tém entre campo (73,1%) e cidade (83,1%) e entre brancos (82,6%) e negros (80%).

De acordo com Bianca Correa, a discre-pância de frequência entre as faixas etá-rias pode ser explicada, em partes, pe-lo custo do atendimento. “Quanto menor a criança, maior o custo de manutenção. São menos alunos por professor e também precisa ter lactário, lavanderia, pessoas que cuidem especificamente da alimen-tação e uma série de exigências para um atendimento minimamente humano que encarecem muito a manutenção.”

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Qualidade, ainda um desafio Shirlei Aparecida do Carmo seguiu os pas-sos da mãe na carreira docente. Moradora do Jardim Ângela, na zona sul de São Pau-lo, começou a lecionar na Educação Infantil aos 19 anos. Logo depois, ingressou no Ensi-no Superior e se formou em Pedagogia. Ho-je, Shirlei trabalha nas Emeis Chácara So-nho Azul e Vila Remo, próximas à divisa de São Paulo com Itapecerica da Serra. Há 13 anos na carreira, a professora afirma que as políticas públicas passaram a valorizar o caráter educacional dessa etapa de ensino, mas que a população ainda tende a enxergar a Educação Infantil como um espaço assis-tencialista. “Há uma crescente caracteriza-ção da Educação Infantil por parte dos pais como um depósito”, diz.

Para Bianca Correa, esse tipo de olhar ain-da é muito presente: “Sempre existiu e ainda existe uma ideia de que aquele serviço ofe-recido é uma dádiva do poder público e não um direito da família”. A visão da especia-lista reflete a trajetória da Educação Infan-til no Brasil. Embora os primeiros estabele-cimentos do gênero tenham sido criados no País no fim do século XIX, a passagem da creche e da pré-escola da assistência social para a educação é recente, feita de forma gradual e, muitas vezes, parcial.

Os primeiros passos datam do início da década de 1970, catalizados principalmen-te pela urbanização, pelo ingresso das mu-lheres no mercado de trabalho e pelas mu-danças na configuração das famílias. Es-ses movimentos levaram a um aumento da demanda por vagas em estabelecimen-tos de ensino para as crianças. Movimen-tos a favor dos direitos da criança e do aces-so à educação desde os primeiros anos de vida, estabelecidos em documentos como a Declaração dos Direitos da Criança (1959), também contribuíram para essa mudança.

A repercussão acabou refletindo na Cons-tituição Federal de 1988, que estabeleceu as creches como um direito das crianças e um dever do Estado. Em 1996, o artigo 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional incluiu efetivamente a Educação Infantil co-mo primeira etapa da Educação Básica, es-tabelecendo como finalidade o desenvolvi-

mento integral (físico, psicológico, intelec-tual e social) da criança até os 5 anos de ida-de. A oferta de ensino em creches ou pré-es-colas foi separada por critério etário: até os 3 anos na creche e até os 5 na pré-escola. As-sim, de forma gradual, a creche e a pré-esco-la começaram a se desvencilhar da esfera da assistência social e passaram para a educa-ção. Tal transição, porém, não aconteceu de maneira uniforme em todo o País.

Embora a maioria dos municípios tenha feito a passagem no âmbito legal, em mui-tos casos a visão a respeito dessa faixa etá-ria não mudou. “Em alguns lugares, os pro-fessores se recusam a realizar determinadas tarefas que eles consideram assistenciais. O problema é que, nessa faixa etária, não é possível distinguir o que é cuidado e o que é educação”, analisa Bianca. Ao mesmo tem-po, é justamente no momento do cuidado que uma boa formação faz diferença. “Um profissional que sabe das questões do desen-volvimento da criança pode promover uma situação muito mais significativa do que uma troca mecânica de fralda”, opina.

Há 15 anos na Educação Infantil, Rena-ta Barbosa, 39 anos, acredita que a visão a respeito dessa etapa de ensino mudou nos últimos anos. “Antes a nossa postura era mais automática. Agora prestamos mais atenção à questão da construção da iden-tidade da criança”, conta a professora da Emei Coronel Walfrido de Carvalho. Para a

Além do grande número de alunos por sala, a falta de professores especializados, como em Educação Física ou Música, são entraves à qualidade do atendimento

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educadora, ambas as esferas – o cuidado e a educação – são complementares. “A famí-lia quer, em primeiro lugar, o cuidado das crianças com afetividade, mas eles tam-bém querem que seus filhos aprendam.”

Uma das mais antigas instituições do gê-nero na região, a Walfrido de Carvalho, lo-calizada no bairro do Tremembé, na zo-na norte de São Paulo, enfrenta desafios que retratam os problemas das escolas das grandes cidades, como o grande número de alunos, a complexidade geográfica da região e a falta de tempo para a qualificação con-tinuada dos professores. Os 538 alunos são divididos em oito salas, em dois turnos di-ferentes. Organizados em mesas com qua-tro cadeiras cada sala comporta perto de 35 crianças de 4 a 5 anos. “O grande desafio é não massificar o atendimento”, afirma Már-cia Madeira Barrozo, diretora da escola. Pa-ra ela, diante do número elevado de alunos, o mais importante é procurar trabalhar e respeitar a individualidade de cada um. “Os professores aprendem o nome, os hábitos e a história das crianças”, exemplifica.

Tanto Renata quanto outras professoras e gestoras da unidade de ensino reconhe-cem avanços, mas afirmam que a realidade ainda está longe do ideal. Para elas, além da questão do grande número de crianças por sala, a falta de bons profissionais de áreas como Educação Física ou Música são entra-ves à qualidade do atendimento.

De acordo com pesquisa da Fundação Carlos Chagas em parceria com o MEC, 30,4% das pré-escolas das principais capi-tais brasileiras não possuem níveis adequa-dos de qualidade. Entre as creches, o núme-ro chega a 49,5%. Apenas 1% das institui-ções que atendem crianças de 0 a 3 anos re-gistrou níveis considerados bons. O estudo levou em consideração elementos como es-paço e mobiliário, rotinas de cuidado pesso-al, atividades, interação entre alunos e pro-fessores e equipe pedagógica. Os melhores resultados foram alcançados pelas unidades que atendem exclusivamente crianças da Educação Infantil, possuem melhor infra-estrutura e contam com maior número de equipamentos e recursos complementares.

Outra preocupação é a qualificação dos professores. Maria Letícia do Nascimento, da Faculdade de Educação da USP, comenta que é comum a figura dos auxiliares, pessoas sem formação que lidam diretamente com as crianças e bebês. A formação de nível mé-dio ainda é aceita na Educação Infantil, em-bora a Lei de Diretrizes e Bases da Educa-ção Nacional recomende a formação em ní-vel superior desde 1996. Para a professora, a alternativa do magistério em nível médio já deveria ter sido superada. E mesmo a for-mação superior não contempla as especifi-cidades das pré-escolas e creches. “Os cur-sos de pedagogia, em geral, dedicam pou-ca ou nenhuma atenção à formação de pro-fessores de Educação Infantil, privilegian-do a formação para o Ensino Fundamental ou propondo uma formação mista”, afirma. Segundo pesquisa da Fundação Carlos Cha-gas, menos de 5% do conteúdo dos cursos de pedagogia se referem à educação infantil.

Seja na qualidade, seja na quantidade, o desafio proposto pelo PNE para o Ensi-no Infantil permanece grande. “Conside-rando o tamanho do País e as desigualda-des regionais, para que algumas regiões al-cancem o 100% vai ser um enorme desa-fio. Acho que é possível, mas o que está cla-ro nas pesquisas de financiamento, é que os municípios sozinhos não terão condição de cumprir o que a legislação determina. O fa-to é que o governo federal precisa partici-par de modo mais incisivo”, afirma Bianca.

Mudança de olhar“Prestamos mais atenção na construção da identidade”, diz Renata

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