21088416 historia social da infancia no brasil

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FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Histria social da infncia no Brasil. 3. ed. rev. e ampl. So Paulo: Cortez, 2001.

Para uma sociologia histrica da infncia no Brasil Marcos Cezar de Freitas (p.11-18) p. 12 Se fssemos arriscar uma viso panormica do sculo XX atravs de tais documentos [cito abaixo alguns listados pelo autor], com suas variveis descritivas, normativas e ideolgicas, poderamos sinalizar o seguinte dado: as carncias infantis de toda ordem tm sido associadas a uma questo maior que a do desenvolvimento econmico (em muitos casos de tipo industrial) reconhecido como chave para a soluo de tais problemas. O autor cita como exemplos relatrios da UNICEF e de instituies brasileiras sobre a situao da infncia. Menciona o recenseamento escolar apresentado por Sampaio Dria (1921), as consideraes do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais sobre crianas faveladas em escolas pblicas (1959), o relatrio da UNICEF sobre Infncia nos pases em desenvolvimento (1964) e outro sobre A situao mundial da infncia em 1995. (...) fao meno a esse tpico para salientar que a infncia como questo pblica, assim como a escola e a sade, etc., cada vez mais tem sido cada vez mais tem sido considerada um dado subordinado ao tema desenvolvimento, de modo que, ao se considerar qus os poderes governamentais esto incapacitados para gerir e fomentar o desenvolvimento econmico, reiterase, paulatinamente, dos mesmos poderes a obrigao de pensar aqueles temas como questo de Estado. Ao meu ver, isso um risco civilizao ou, para dizer de outra forma, um alimento substancioso barbrie.

p. 13 No arriscado dizer que a histria social da infncia no Brasil tambm a histria da retirada gradual da questo social infantil (com seus corolrios educacionais, sanitaristas etc.) do universo de abrangncia das questes de Estado.

p. 15

O advento da Repblica (...) ensejou uma revalorizao da infncia, uma vez que o imaginrio republicano reiterava de diversas maneiras a imagem da criana como herdeira do novo regime que se instalava.

p. 15-18 Marcos Cezar de Freitas apresenta os autores e as discusses dos prximos captulos do livro.

A infncia no sculo XIX segundo memrias de viagem Miriam L. Moreira Leite (p. 19-52) p.20 A criana passa a ser visvel quando o trabalho deixa de ser domiciliar e as famlias, ao se deslocarem e dispersarem, no conseguem mais administrar o desenvolvimento dos filhos pequenos. ento que as crianas transformam-se em menores, e como tal rapidamente congregam as caractersticas de abandonados e delinqentes. Continuao do texto anterior. No sculo XIX, criana, por definio, era uma derivao das que eram criadas pelos que lhe deram origem. Era o que se chamava crias da casa, de responsabilidade (nem sempre assumida inteira ou parcialmente) da famlia consangunea ou da vizinhana.

p.20-21 Em textos estatsticos da poca, pouco confiveis, segundo a autora, as crianas, como as mulheres, tm a sua insero no grupo familial configurada muitas vezes pela / ocultao no interior do grupo. (...) as denominaes adotadas para designar os dados so frequentemente ambguas e disfaram preconceitos raciais, tradicionais e de classe. Lembre-se que crianas sem pai podem ser rfos, filhos ilegtimos, expostos, ou ter um pai ausente. A denominao de bastardos, com todas as conotaes do termo, pesa sobre elas como um decreto de excluso. Abandonados, mendigos e infratores frequentemente foram confundidos sob o nome de menor, que nunca designa filhos de famlias das camadas mdias e altas, e tem conotaes negativas desqualificantes. Continuao do trecho anterior. Alm de no serem ainda um foco de ateno especial, as crianas eram duplamente mudas, nas palavras de Katia de Queirs (Del Priori, 1992). No eram percebidas, nem ouvidas. Nem falavam, nem delas se falava.

p.21 Para o cdigo filipino, que continuou a vigorar at o fim do sculo XIX, a maioridade se verificava aos 12 anos para as meninas e aos 14 para os meninos, mas para a Igreja Catlica, que normatizou toda a vida das famlias nesse perodo, 7 anos j a idade da razo.

p. 25 Marcas do sculo XIX: o sistema escravista de trabalho, a educao informal e a fragilidade da vida humana (alto ndice de morbidade e mortalidade). As febres e o clera dizimaram arraiais em pnico, j castigados pela multiplicao de casos de bcio, cegueira e tuberculose, afora as doenas infantis e adultas de que no se conheciam as causas.

p. 25 / 26 As memrias mostram aspectos internos e s vezes marcas psicolgicas deixadas por essa presena da morte no cotidiano das famlias. Do pormenores dos processos de preparao para a vida adulta, entre as crianas brancas e as negras. As mes como mestras naturais, as primas ensinado canto e piano, as amas recontando as tradies das famlias e dos escravos, os tios abrindo as bibliotecas / e introduzindo sobrinhos e netos nos autores, encomendando livros na cidade e na corte, ou se propondo a dar aulas de geografia e de fsica. As mes ensinavam as meninas e as escravas a rezar, a fazer renda, a costurar. Os oficiais ensinando a ferrar animais, a fazer sapatos, a construir cercas. As doceiras a fazer doces e flores artificiais, a dissecar animais e plantas, a fazer e enfeitar pratos.

A roda dos expostos e a criana abandonada na Histria do Brasil. 1726-1950 Maria Luiza Marcilio (p. 53-79) p. 53 A roda de expostos foi uma das instituies brasileiras de mais longa vida, sobrevivendo aos trs grandes regimes de nossa Histria. Criada na Colnia, perpassou e multiplicou-se no perodo imperial, conseguiu manter-se durante a Repblica e s foi extinta definitivamente na recente sacada de 1950! Sendo o Brasil o ltimo pas a abolir a chaga da escravido, foi ele igualmente o ltimo a acabar com o triste sistema da roda dos enjeitados. Quase por sculo e meio, a roda de expostos foi praticamente a nica instituio de assistncia criana abandonada em todo o Brasil. bem verdade que, na poca colonial, as municipalidades deveriam, por imposio das Ordenaes do Reino, amparar toda criana abandonada em seu territrio. No entanto, essa assistncia, quando existiu, no criou nenhuma entidade especial para acolher os pequenos desamparados. As cmaras que ampararam seus expostos limitaram-se a pagar um estipndio irrisrio para que amas-de-leite amamentassem e criassem as crianas. Rodas de expostos: sistema inventado na Europa medieval, na Itlia, para evitar que as crianas fossem abandonadas no lixo, em porta de igrejas, em casa de famlias abastadas etc. e acabassem morrendo antes de serem encontradas. O sistema garantia o anonimato de quem entregava a criana.

p. 54 As primeiras rodas de expostos foram instaladas em Portugal no final da Idade Mdia. O sistema foi adotado em todo o imprio ultramarino. No Brasil, durante o perodo colonial, no sculo XVIII, foram instaladas rodas nas trs principais cidades: Salvador, depois Rio de janeiro e, por ltimo, no Recife. Antes das rodas, os bebs, que deveriam ser cuidados pelas municipalidades, acabavam, na verdade, sendo criados por famlias, por caridade ou porque tinham interesse na mo de obra gratuita da criana quando ela crescesse.

p. 55 (...) a quase totalidade destes pequenos expostos nem chegavam [sic] idade adulta. A mortalidade dos expostos, assistidos pelas rodas, pelas cmaras ou criados em famlias substitutas, sempre foi a

mais elevada de todos os segmentos sociais do Brasil, em todos os tempos incluindo neles os escravos (...). A referncia do dado est publicada em: MARCILIO, M. L. Abandoned Children in Brazil: Infant mortality rates in the 19th Century. In: Seminar on Child and Infant Mortality in the Past. International Union for the Scientific Study on Population. Committee on Historical Demography. Montreal, Canad, 1992. 12 p. (Mimeo.) Vendo o fenmeno do abandono de crianas na perspectiva histrica ampla, abrangente, podemos afirmar, sem incorrer em grandes erros, que a maioria das crianas que os pais abandonaram no foram assistidas [sic] por instituies especializadas. Elas foram acolhidas por famlias substitutas. No entanto, bem entrado neste nosso sculo, ltimo deste milnio, os chamados at bem recentemente filhos de criao no tinham seus direitos garantidos pela lei.

p. 56 / 57 Origens da roda de expostos: relacionada ao surgimento das confrarias de caridade. A confraria do Santo Esprito nasceu em Montpellier, sul da Frana (1160 e 1170), junto a um hospital, para assistir aos pobres, peregrinos, doentes e expostos. O papa Inocncio II, chocado com o nmero de bebs encontrados mortos no Tibre, transferiu essa irmandade para Roma, criando o Hospital de Santa Maria in Saxia (1202-1204) (...). / Nascia assim o primeiro hospital destinado a acolher as crianas abandonadas e assisti-las. Nele foi organizado um sistema institucional de proteo criana exposta que logo seria copiado nas principais cidades italianas e em toda a Europa. Sculos depois seria exportado para outros continentes.

p. 57 O Hospital de Roma os expostos entravam a partir de uma roda e era era rigorosamente vedada a busca de informaes sobre o expositor. Forma da roda: Sua forma cilndrica, dividida ao meio por uma divisria, era fixada no muro ou na janela da instituio. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor depositava a criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e a criana j estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que um beb acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente retirava-se do local, sem ser identificado.

p. 57/58 Esses cilindros, nos mosteiros, j eram usados para colocar mensagens e comida para os religiosos enclausurados, evitando qualquer contato com o mundo exterior. Como os mosteiros medievais recebiam crianas doadas por seus pais, para o servio de Deus os chamados oblatos -, muitos pais que queriam abandonar um filho utilizaram a roda dos mosteiros para nela depositarem o beb. Esperavam eles que o pequeno no s teria os cuidados dos monges, como seria batizado e poderia receber uma educao aprimorada (como no caso do oblato). [Pargrafo] Desse uso indevido das rodas dos mosteiros, surgira o uso da roda para receber expostos, fixadas nos muros dos hospitais que / foram sendo criados a partir dos sculos XII e XII, para cuidar dos meninos abandonados.

p. 58 Em Portugal, as primeiras instituies de assistncia direta criana surgiram por iniciativa das mulheres da alta nobreza, infantas e rainhas. As instituies foram mantidas por esforos da sociedade, do clero e da Coroa. A primeira casa de expostos foi fundada em 1273, pela rainha D. Beatriz, esposa de D. Afonso II chamava-se Hospital de meninos rfos de Lisboa.

p. 59 Em 1543, por decreto do D. Manuel, a Santa Casa de Misericrdia de Lisboa passou a incorporar em seus compromissos a assistncia infncia abandonada e a institucionalizar esse servio, dentro da melhor forma de assistncia caritativa. (...) Em 1657 uma casa de expostos foi fundada em Lisboa, para assistir aos expostos deixados na roda. Essa sistemtica foi seguida por outras Misericrdias do Reino. Continuao, em outro pargrafo, do trecho anterior. A tradio passou para o Brasil quando, no sculo XVIII, se reivindicou coroa a permisso de se estabelecer uma primeira roda de expostos na cidade de Salvador da Bahia, junto sua Misericrdia e nos moldes daquela de Lisboa.

p. 60-62 A roda da Bahia foi instalada em 1726. Na cidade do Rio de Janeiro foi instalada a segunda, em 1738. A ltima roda do perodo colonial foi instalada no Recife em 1789. Aps a Independncia,

uma roda foi instalada em So Paulo, em 1825. Em 1828, a chamada Lei dos Municpios eximia os municpios que tivesse Misericrdias a dar assistncia aos expostos. Essa funo ficaria a cargo das Misericrdias, mudando a nfase da roda: antes, ela tinha carter de caridade; com a lei, passou a ser uma ao filantrpica, associando-se ao Estado.

p. 64 Essa mesma lei [dos Municpios v. trecho anterior] foi feita tambm para incentivar a iniciativa particular a assumir a tarefa de criar as crianas abandonadas, liberando as municipalidades desse servio. Com base nela surgiram, dentro do novo esprito filantrpico e utilitarista, algumas rodas de expostos Quase todas essas foram de diminutas dimenses e de precrias condies para assistir os pobres pequenos enjeitados.

p. 65 Em Pernambuco, a lei provocou a abertura de uma segunda roda, dessa vez em Olinda, chamada filial da do Recife. H registro dessa roda em relatrio de Presidente de Provncia em 1846.

p. 68. Em meados do sculo XIX, seguindo os rumos da Europa liberal, que fundava cada vez mais sua f no progresso contnuo, na ordem e na cincia, comeou forte campanha para a abolio da roda dos expostos. Esta passou a ser considerada imoral e contra os interesses do Estado. Aqui no Brasil igualmente iniciou-se movimento para sua extino. Ele partiu inicialmente dos mdicos higienistas, horrorizados com os altssimos nveis de mortalidade reinantes dentro das casas de expostos. Vidas teis estavam sendo perdidas para o Estado. Mas o movimento insere-se tambm na onda pela melhoria da raa humana, levantada com base nas teorias evolucionistas, pelos eugenistas. Continuao do trecho anterior, em outro pargrafo. Os esforos para extinguir as rodas no pas tiveram adeso dos juristas, que comeavam a pensar em novas leis para proteger a criana abandonada e para corrigir a questo social que comeava a perturbar a sociedade: a da adolescncia infratora. Por sua vez os homens de letras apontavam em romances sociais a imoralidade da roda. A autora cita como exemplo a A luneta mgica, de Joaquim Manoel de

Macedo. O movimento pela extino das rodas no Brasil no foi to forte e no conseguiu extingui-las no sculo XIX. A autora no diz quando a roda do Recife deixou de funcionar, mas as de So Paulo, Salvador e Porto Alegre s foram deixadas em 1950, sendo as ltimas do gnero existentes nessa poca em todo o mundo ocidental.

p. 68 / 69 As rodas de expostos foram, assim, muito poucas em nmero, insuficientes para atender demanda de todas as pocas. Para / comear, foram criadas tardiamente, apenas no sculo XVIII e, mesmo assim, at incios do sculo XIX, s havia roda em trs cidades capitais. Foi, portanto, um fenmeno essencialmente urbano e pontual.

p. 69-70 Grande parte dos expostos morria nas ruas, sem assistncia. Outra grande parte era acolhida por famlias substitutas, que nem sempre era rica (muitos no tinham escravos).

p. 70 As crianas expostas em casa de famlias muitas vezes eram recenseadas, na lista de habitantes de finais do sculo XVIII e princpios do XIX junto com a lista dos filhos legtimos da famlia, sem distino. Isso pode mostrar que, nestes casos, a famlia os havia incorporado como filhos. Este fato era recorrente entre os roceiros e sitiantes pobres, que praticamente nenhuma preocupao tinham com a transmisso de propriedades. A herana sempre foi o n para a aceitao dos expostos (e dos filhos naturais) como filhos pelas famlias. Est na essncia do sistema dominante. (...) as famlias estreis ou que s puderam ter um ou dois filhos, acabavam adotando uma criana abandonada.

p. 73

A maior parte das crianas abandonadas no ia para as rodas, mas essa o setor de infncia que tem melhor documentao. Esta instituio manteve sempre uma variedade de livros de registro individuais das crianas expostas sob sua proteo. Na maioria dos casos, os expostos era acompanhados em toda sua vida, registrando-se nos livros os importantes momentos de sua vida e da morte.

p. 74 A roda foi instituda para garantir o anonimato do expositor, evitando-se, na ausncia daquela instituio e na crena de todas as pocas, o mal maior, que seria o aborto e o infanticdio. Alm disso, a roda poderia servir para defender a honra das famlias cujas filhas teriam engravidado fora do casamento. Alguns autores atuais esto convencidos de que a roda serviu tambm de subterfgio para se regular o tamanho das famlias, dado que na poca no havia mtodos eficazes de controle de natalidade.

Continuao do trecho anterior, em outro pargrafo. A criana depositada na roda, recolhida pela rodeira, era logo batizada. Fazia-se um inventrio de todos os eventuais pertences que trazia consigo, inscrevia-se no livro de entrada dos expostos cada uma das peas de vesturio e objetos que vestia (...). Transcreviam-se os bilhetes ou escritinhos que eventualmente o expositor deixava preso roupa do beb. No livro de entrada dos expostos, j registravam a criana com seu nome de batismo, e por vezes suas condies de sade aparentes. A cada criana reservava-se uma pgina do grande livro de registro de entradas, pois todas as eventualidades de sua vida seriam cronologicamente a inscritas (data da morte e causa mortis, sadas para casas de ama, para prestar servios, casamento, emancipao da casa etc.). Poucas foram as rodas que tinham condies de asilar as crianas. Normalmente, os bebs era entregues a amas de leite, com quem podia ficar at os 3 anos ou at os 7 ou 12 anos, quando podiam ser exploradas para o trabalho (remunerado ou em troca de comida). As amas, enquanto ficavam com as crianas, recebiam um pequeno estipndio.

p. 75 Fraudes no sistema. No foi raro o caso de mes levarem seus filhos na roda e logo a seguir

oferecerem-se como amas-de-leite do prprio filho, s que agora ganhando para isso. Alm disso, dentro da tradio do Direito Romano, toda criana escrava depositada na roda tornava-se livre; no entanto, muitos senhores mandaram suas escravas depositarem seus filhos na roda, depois irem busc-los para serem amamentados com estipndio e, funda a criao paga, continuarem com as crianas como escravas. (...) Freqente ainda era a ama-de-leite no declarar a morte de uma criana Santa Casa e continuar por algum tempo recebendo o seu salrio de ama, como se o beb estivesse vivo. Como as Misericrdias no podiam abrigar todas as crianas que voltavam do perodo de criao em casas de amas, e como estas s em minoria aceitavam continuar criando as crianas, passado o perodo em que recebiam salrios grande parte das crianas ficava sem ter para onde ir. Acabavam perambulando pelas ruas, prostituindo-se ou vivendo de esmolas ou de pequenos furtos.

p. 76 Para evitar essa situao, a roda buscava casa de famlias que pudessem receber as crianas como aprendizes de algum ofcio, no caso dos meninos (sapateiro, caixeiro, balconista, ferreiro etc.), ou como empregadas domsticas, no caso das meninas. Os meninos tambm podiam ser enviados para as Companhias de Aprendizes Marinheiros ou de Aprendizes do Arsenal de Guerra, verdadeiras escolas profissionalizantes dos pequenos desvalidos, dentro da dura disciplina militar. No estaleiro a criana vivia ao lado de presos, escravos e degredados. Sua alimentao era to fraca, base quase s de farinha de mandioca, que acabavam definhando e muitos morrendo. A menina, devido preservao da honra e castidade, era alvo de maiores preocupaes pela Santa Casa. Para elas foram criadas junto s maiores Misericrdias um Recolhimento de meninas rfs e desvalidas que estiveram sempre muito ligadas s casas de expostos.

p. 77 Houve tentativas de soluo da questo dos expostos. No Recife, na Bahia e em Fortaleza, foram criadas colnias agrcolas orphanologicas, seguindo o modelo das colnias de Mettray, da Frana, ou de Red Hill, da Inglaterra.

p. 78 Fim do sculo XIX, incio do XX: incio da fase assistencialista filantrpica, que foi preponderante no Brasil at os anos 1960. A caridade, confrontada com uma nova realidade econmica e social, foi absorvendo objetivos e tticas de filantropia, como as prevenes das desordens por exemplo; a filantropia, por sua vez, no abandonou inteiramente os preceitos religiosos. A filantropia surgia como modelo assistencial, fundamentada na cincia, para substituir o modelo da caridade. Nesses termos, filantropia atribuiu-se a tarefa de organizar a assistncia dentro das novas exigncias sociais, polticas econmicas e morais, que nascem com o incio do sculo XX no Brasil. (...) A assistncia filantrpica, particular ou pblica, imperava [a parti dos anos 1930]. Entre as entidades filantrpicas surgidas nos anos 1930 esto o Rotary Club e a Liga das Senhoras Catlicas. p. 79 S a partir dos anos de 1960, houve funda mudana de no modelo e de orientao na assistncia infncia abandonada. Comeava a fase do estado de Bem-Estar, com a criao da FUNABEM (1964), seguida da instalao, em vrios estados, das FEBEMs. Com a Constituio Cidad de 1988, inseriam-se em nossa sociedade os Direitos Internacionais da Criana, proclamados pela ONU nos anos de 1950. Com o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) de 1990 e a LOAS [Lei Orgnica da Assistncia Social, Lei n 8.742/93] (1993), o Estado assume enfim sua responsabilidade sobre a assistncia infncia e adolescncia desvalidas, e estas tronam-se sujeitos de Direito, pela primeira vez na Histria.

A cidade de menores: uma utopia dos anos 30 Mariza Corra (p. 81-99) p. 83 / 84 Depois da Primeira Guerra, vrios tratados internacionais estabeleceram novas regras de convivncia entre os pases membros da Sociedade das Naes, e um dos resultados desses tratados foi a aprovao de uma Declarao dos Direitos da Criana, na Conferncia de Genebra, em 1921 [no site da ONU conta que foi em 1924]. No Brasil, o que se decretou foi um Cdigo de Menores, em 1927, do qual constava a proibio do trabalho de / crianas at 12 anos e sua impunidade at os 14 anos. Dos 14 aos 18 anos, as crianas poderiam ser internadas em estabelecimentos especiais (...). As crianas da categoria dos 14 aos 18 anos, desde ento numa espcie de limbo legal, sero transformadas em menores, e os estabelecimentos especiais destinados a elas, bem como os agentes sociais que delas deveriam se encarregar, passam a ser objeto da ateno de mdicos e juristas, de psiclogos e pedagogos. E, ainda que houvesse algumas divergncias a respeito do modo como deveria se distribuir o peso desse cuidado, ora com nfase no Estado, ora na sociedade, ora na Igreja, (...)e, dois pontos cruciais parece ter havido concordncia entre eles: primeiro, a questo do menor abandonado era tambm uma questo de institucionalizao, e, em segundo lugar, os agentes preferenciais nesse cuidado institucional seriam mulheres.

p. 84 Categorias vistas quase como sinnimos desde que se tratou de sua participao no mercado de trabalho, os menores e as mulheres sero dissociados medida que se ampliam os deveres da me em relao aos seus filhos, medida que as mulheres reclamam para sai a ampliao da definio de maternidade para alm dos limites do lar e so chamadas a ocupar funes maternas fora dele. Dissociam-se tambm medida que a categoria menor passa a ser quase sinnimo de menor abandonado e de delinqente em potencial.

p. 84 / 85 Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. Boa parte da retrica sobre a ampliao dos deveres da me era resultado da influncia do discurso higienista a respeito da famlia, mas no s: assim como as mes so chamadas a observar / os desvios de personalidade de seus filhos, numa poltica de preveno tpica da atuao mdica na poca, as professoras primrias so tambm

conclamadas a observar seus alunos problema. a partir da rede formada pelas escolas primrias que sero postas em prtica certas medidas preconizadas pelas propostas higienistas.

p. 86 (...) principalmente s mes que se destinam seus conselhos [os conselhos higienistas]: a infncia a idade de ouro da higiene mental e a maior responsabilidade desta educao higinica cabe s mes. (...) A figura da me vai se desdobrar na da professora primria e na da assistente social, profisso que se formava na poca, no bojo de uma srie de atividades filantrpicas lideradas por mulheres (...).

p. 87-90 Nos anos 1930, surgem os primeiros cursos de servio social, com quadros de estudantes entre senhoras e moas catlicas. A profissionalizao do servio social vestia-se do halo da continuidade da funo materna. Citando IAMAMOTO e CARVALHO (1982): A partir dos aspectos materiais de sua interveno, o Servio Social deixa de ser uma forma de distribuio / controlada da exgua caridade particular das classes dominantes para constituir-se numa das engrenagens de execuo das polticas sociais do Estado e corporaes empresariais. [IAMAMTO, Marilda; CARVALHO, Raul de. Relaes sociais e servio social no Brasil: esboo de uma interpretao histrico-metodolgica. So Paulo: Cortez, Celats, Lima, 1982]

p. 91 Leondio Ribeiro, mdico simpatizante das prticas higienistas da Itlia fascista (que apontava causas biolgicas- como certos tipos de doenas - para a criminalidade), foi um dos responsveis pelo projeto da Cidade dos Menores, um local para onde as crianas abandonadas e de rua seriam levadas. O projeto, do arquiteto Adelardo Caiuby, era conjugado com o de um presdio para adultos. Citando Leondio Ribeiro [Archivos, 1938]: Para isso tive a felicidade de contar com a colaborao de um grupo de especialistas, entre engenheiros, mdicos e juristas, que gentilmente esto cooperando comigo, a fim de tornar possvel dotar a nossa cidade de um sistema completo e

eficiente de assistncia, no s dos criminosos de hoje, o que importante, mas principalmente dos de amanh, que so os menores abandonados e delinquentes. [grifo meu]

p. 94 A cidade de menores era to utpica quanto outras construes planejadas pelo governo na poca: menos monumental do que o Palcio da Cultura e a Cidade Universitria, projetadas por arquitetos italianos, compartilhava com elas uma viso total e totalizante do que seria a vida dos que deveriam habit-la.

p. 94-95 A cidade dos menores seria habitada por crianas a partir dos 6 anos, que morariam nela at os 21. Habitariam nela 1 mil habitantes, sem contar os funcionrios. A cidade comportaria vrios edifcios, descritos minuciosamente: portaria, almoxarifado, centro educacional, oficinas, cinema, lar dos egressos (onde ficariam os que fossem alocados em empregos externos), hospital, capela, cassino dos funcionrios (para o lazer dos que trabalhariam com as crianas), lavanderia, estdio e o lar. O lar e a base do sistema e comportaria 36 crianas sob a direo de um casal. No lar, com dois pavimentos, no trreo haveria sala de jantar, cozinha, despensa, sala de leitura, biblioteca, um apartamento do vigilante e um quarto de observao. No andar superior, haveria trs dormitrios com doze camas cada, um apartamento para o casal, banheiros e rouparia. Cada lar ficaria em um lote separado.

p. 95 A descrio do arquiteto, quando comparada s prelaes do especialista, parece mais um sonho de higiene do que de higienizao; parecia tratar-se de criar uma comunidade onde tudo funcionasse (ele no esqueceu as rvores, nem o lixo), como no funcionada na vida real c fora. Um simulacro do lar (at com armrios embutidos), da famlia (expressa tambm na privacidade reservada ao casal), da vizinhana, do qual destoam no entanto os laboratrios e o quarto de observao (sem maiores explicaes) que evoca imagens tristes, expulsas do projeto, mas que teimam em voltar at na advertncia de Nelson Hungria [jurista penalista] a respeito do modo como seriam tratados os que fossem enviados penitenciria, que era tambm modelo. (...) a expectativa

parece ser de continuidade: os criminosos de amanh sendo socializados, na cidade dos menores, para a longa carreira que os aguardava na penitenciria: a cada um de acordo com sua tendncia, ou predisposio.

p. 95 / 96 Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. Tanto o projeto arquitetnico que, de fato, lembra mais alguns condomnios contemporneos do que o sonho benthamiano de vigilncia / do sculo XIX, quanto a proposta mdica nele embutida, entretanto, parecem estar em demasiado desacordo com a sociedade na qual pretendem se instalar: a proposta higienista supe, afinal, uma sociedade higienizada, material e ideologicamente. Como conciliar o banho de gua quente, a boa e farta comida, a roupa limpa, na penitenciria e na cidade, com as condies de vida c fora?

p. 96 Continuao em outro pargrafo. Se essa, como tantas outras utopias desse perodo de nossa histria, sobreviveu apenas no papel, nem por isso refletir sobre ela tem menos importncia do que se as perspectivas sombrias de controle completo dos indivduos em instituies educacionais, de sade, de punio, tivessem, casa uma, logrado obter sucesso. Em certa medida, elas foram todas muito bem-sucedidas em mbitos menos espetaculares: nos currculos das escolas de medicina, particularmente na constituio da medicina legal; nos currculos das faculdades de educao e de servio social, particularmente na constituio da psicologia educacional; nas instituies penitencirias e naquelas de segregao de crianas, particularmente no que se refere a uma disseminao difusa da idia de predisposio, to cara aos idelogos dos anos 30 e to presente na nossa vida cotidiana. E a vitria da idia de que o menor (j sinnimo de menor abandonado) um delinquente em potencial pode ser aferida todos os dias, em nossos meios de comunicao de massa.

Arquitetura escolar republicana: a escola normal da praa e a construo de uma imagem de criana Carlos Monarcha (p. 101-140) p. 102 Preocupados com a acolhida dos 'recm-chegados' vida republicana os novos -, os republicanos paulistas configuram uma arquitetura escolar caudatria do imaginrio da poca e promovem, por meio de um discurso elaborado em estilo alto e idealizados pleno da impresso do novo e do messianismo poltico -, a construo de uma imagem de criana, subitamente valorizada e representada como herdeira da Repblica recm-instalada.

p. 103 Cidade de So Paulo cresce. No terrenos altos, so construdos boulevards para as reas burguesas, ao estilo neoclssico e ecletista. As reas alagadias so reservadas aos bairros operrios.

p. 104 Na abertura da Repblica, So Paulo despede o passado colonial e monrquico para transformar-se em uma cidade cosmopolita, que concentra as funes de capital econmica, administrativa, poltica e cultural do estado de So Paulo. Entretanto, o tecido arquitetnico, a atmosfera cosmopolita e a retrica republicana dissimulam a presena de uma atmosfera saturada de tenes causadoras de luto e desolao: acumulao progressiva das populaes, irrupo de epidemias, pobreza e indigncia das massas urbanas, especulao imobiliria, escassez de imveis e alta dos aluguis; e, no mbito mais geral da nao, o jacobinismo poltico e a guerra civil a Revolta da Armada, a Revoluo Federalista e a Revolta de Canudos. Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. A imagem contrastada e opressiva da cidade de So Paulo torna-se algo inverossmil, deixando entrever a existncia de mundos opostos: um centro urbano com boulevards aristocrticos e luminosos, convivendo com aglomeraes operrias constitudas por ruas sombrias e confusas, com populaes encurraladas em cortios.

p. 104 / 105

Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. Nesse momento histrico de mudanas aceleradas, consolida-se o poder de uma classe social ativa, em ascenso para uma posio de domnio econmico e espiritual e interessada em aprofundar a experincia republicana, empenhando-se arduamente na separao entre esfera pblica e esfera privada. (...) / [pargrafo] Em outras palavras, os republicanos paulistas representantes do governo para o povo organizam um investimento poltico e cultural com vistas *a ordenao do corpo social, segundo os valores republicanos: as instituies poltico administrativas so representadas como impessoais e objetivam restaurar e resgatar uma origem e uma soberania esquecidas. Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. No mbito desse investimento social, poltico e cultural, ao Estado cabe assumir a funo de preceptor dos novos: o povo e a criana, ambos representados como portadores da menoridade intelectual e social. Cristaliza-se, assim, a concepo de governo poltico como administrao de coisas e a noo de liberdade como satisfao das necessidades materiais, fazendo da poltica uma arte cientfica.

p. 105 / 106 Dentre as inmeras idealizaes e concretizaes que visam a estabilizar e perpetuar o regime recm-instalado, ressaltam-se aquelas relativas instruo pblica, que nesse momento assume caractersticas / de uma quase religio cvica, cuja finalidade dotar a sociedade de coeso, mediante a educao dos novos povo e criana recm-chegados vida republicana. (...) Tomados de sbita ternura e sentimento de justia social, os republicanos explicitam um vago pensamento socialista informado pelas diferentes teorias positivistas do sculo XIX comtismo, darwinismo, spencerianismo, entre outros. Mediante um sacerdcio esclarecido e filantrpico, anseiam por levas as luzes ao povo-criana, a fim de incorporar esses novos ordem social, por meio do trabalho regular e da instruo.

p. 107 Interessante. Segundo a tradio do mundo ocidental, as praas so ocupadas por instituies representativas da autoridade espiritual, representada pelas igrejas e catedrais e, por vezes,

seminrios e conventos, e do poder temporal, representado pelo executivo, legislativo e judicirio. Poder temporal e autoridade espiritual disputam entre si a conduo dos destinos dos habitantes da cidade. A localizao da Escola Normal de So Paulo em uma praa pblica aparentemente predomnio do poder temporal sobre a autoridade espiritual indicativa da fuso entre o secular e o religioso, originando uma quase religio cvica, presidida por sacerdotes laicos, a qual se instala e se expande na cultura escolar urbana paulista da virada do sculo [XIX para XX].

p. 109 A localizao da Escola Normal de So Paulo na Praa da Repblica uma aluso superioridade moral e intelectual e vitalidade da Repblica. O conjunto funciona imaginariamente como um centro de comunho cvica que convoca os homens sensveis e as almas de boa vontade a partilharem de uma sociedade composta de cidados, que, alm de se reconhecerem como iguais, esto envolvidos na edificao de um mesmo porvir.

p. 112 A escala monumental, a elegncia severa e a sobriedade na decorao do edifcio sugerem reciprocidade entre grandeza dimensional e grandeza moral: a arquitetura transforma-se em pedagogia eloqente que ensina aos indivduos os princpios da sociedade perfeita. Dessa maneira, os instituidores da Repblica acrescentam imagens s idias. O estilo arquitetnico do edifcio, poca, era dita renascentista moderno, o que proclamava, imaginariamente, a filiao dos republicanos paulistas Renascena europia.

p. 113 A escala monumental, o estilo histrico, o isolamento do edifcio ornamentado por oito esttuas de olhar fixo e ptreo alegorias das Artes e das Cincias -, circundado por jardins sinuosos e gradis de ferro artisticamente trabalhados, e a iluminao produzida por lmpadas de arco voltaico, todos esses aspectos conferem aparncia europia ao conjunto arquitetnico, simbolizando para os homens da poca a presena do mundo moderno e seus princpios fundamentais: civilizao, tcnica, progresso, laicidade, igualdade e democracia. (...) para os instituidores da Repblica, essa cellula mater da instruo pblica e da sociedade

representa, sobretudo, um falanstrio, na acepo ampla do termo: conjunto de estruturas arquitetnicas, administrativas, econmicas e morais, sobra o qual se assentar a sociedade transparente envolvida na abundncia e trabalho atraente, conduzida por um governo poltico, que se dissolve na 'administrao das coisas', substituindo-se a servido e os conflitos sociais pela harmonia e moralidade pblica, mediante a instruo dos novos. Definio de falanstrio do dicionrio Priberam online: s. m. Edifcio que, no sistema de Fourier, deve habitar a falange com as trs condies de economia, utilidade e magnificncia. [Disponvel em: . Acesso em: 8 out 2009]

p. 118 Sob a proteo e a inspirao da Repblica alegorizada na figura feminina [ficava no hall do prdio da escola]-, essas almas em formao atravs do estudo e da introspeco so envolvidas pelos smbolos nacionais a bandeira e o hino nacional -, pelo culto aos heris emergentes Tiradentes e Silva Jardim e pela voga dos livros de leitura de Felisberto de Carvalho e do livro Corao: dirio de um aluno, Edmundo de Amicis.

p. 122 Coerentemente com sua viso de mundo, os republicanos paulistas configuram uma arquitetura escolar que, reunindo o grandioso e o funcional, promove a construo de uma imagem de criana. Diferentemente da representao produzida pela psicologia da infncia da poca presente, sobretudo, nas teorizaes sobre mtodos de / ensino, nos programas escolares e, de forma difusa, na literatura escolar -, que procura caracterizar a 'marcha do esprito' da criana, associando crescimento biolgico e aptides de cada ciclo de idade, a imagem da criana segundo os cnones do discurso republicano, elaborado em estilo alto e idealizador, assume, sobretudo, natureza sociolgica e poltica. Nesse momento histrico, representado como Ano 1 da nova era, o discurso republicano, pleno de messianismo poltico, promove uma sbita valorizao da criana, representando-a como herdeira da Repblica, alegorizada esta na figura da mulher amorosa e abnegada. Para esse ponto de vista, cabe ao Estado exercer o papel de preceptor dos novos, subtraindo-os do mbito do privado, do familiar e afetivo e conduzindo-os para o mbito do pblico, social e poltico. Em outras palavras,

esse discurso convida os novos a herdarem o novo regime e a protagonizarem, no transcorrer de suas vidas, uma histria fabular, cujo enredo deve ser a liberdade e o progresso.

A LBA, o Projeto Casulo e a Doutrina de Segurana Nacional Flvia Rosemberg (p. 141161) p. 141 O Brasil, como outros pases subdesenvolvidos, tem sido bombardeado com assessorias, recomendaes, propostas de organismos internacionais e intergovernamentais. Sua presena na elaborao e implantao de polticas sociais nas reas da infncia e dos direitos reprodutivos tem sido marcante: tm sido atrizes no jogo de tenses, conflitos e coalizes que marcam as polticas sociais brasileiras destinadas pobreza. Continuao do trecho anterior, em outro pargrafo. Nesse texto, procuro mostrar como se deu o infeliz casamento entre organismos intergovernamentais e o governo militar no Brasil no campo da educao infantil de massa dos anos 70. O casamento foi possvel porque o namoro ocorreu na paisagem da guerra fria, e a aliana compartilhada foi a concepo chave de 'participao da comunidade' para a implantao de programas destinados s crianas pobres.

p. 142 A autora localiza na guerra fria como o fermento para a produo do pressuposto societrio que embasou a Doutrina de Segurana Nacional (DSN) e a proposta de Desenvolvimento de Comunidade (DC). p. 143 A verso brasileira da Doutrina de Segurana Nacional e Desenvolvimento constitua um corpo terico, integrando, segundo Moreira Alves (1984), trs grandes teorias: uma teoria sobre o potencial geopoltico do Brasil e seu papel na poltica mundial; uma teoria de guerra, incluindo a a subverso interna; um modelo especfico de desenvolvimento econmico associado e dependente combinando elementos da economia keynesiana ao capitalismo de Estado (Moreira Alves, 1984, p.20) Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. A tese geopoltica que sustentou as DSNs na Amrica Latina foi a da diviso do mundo em dois grandes blocos polticos e de poder, o Ocidente cristo e democrtico e o expansionismo sovitico comunista. A tese geopoltica brasileira sustentava uma concepo de Nao como um todo homogneo,

dotado de uma nica vontade, sem conflitos ou interesses divergentes (). As diferenas sociais observadas foram atribudas existncia de regies e de populaes 'desintegradas' do processo nacional de desenvolvimento.

p. 144 A DSN postulava que vivia-se [sic] um momento de guerra total entre o Ocidente cristo e o Oriente comunista; para o Brasil, alinhado ao Ocidente, os objetivos nacionais confundiam-se com a defesa do Ocidente e o combate ao comunismo. Para a DSN, a guerra total era sem quartel, no se restringindo mais esfera militar, envolvendo a vida poltica, econmica e cultural.

p. 145 A verdadeira segurana, para a DSN, pressupunha um processo de desenvolvimento econmico e social: 'econmico porque o poder militar est tambm essencialmente condicionado base industrial e tecnolgica do pas. Social, porque mesmo um desenvolvimento econmico satisfatrio, se acompanhado de excessiva concentrao de renda e crescente desnvel social, gera tenses e lutas que impedem a boa prtica das instituies e acabam comprometendo o prprio desenvolvimento econmico e a segurana do regime'. Citando o Marechal Castello Branco.

p. 145/146 (...) as polticas de assistncia entre elas o Projeto Casulo (...) so parte das estratgias de combate guerra psicolgica [atribuda aos comunistas]. Atuar nos bolses de pobreza, chamados 'bolses / de ressentimentos (Silva Pinto, 1984, p.11), constituiria medida preventiva ao expansionismo do 'comunismo internacional'. () Da o carter preventivo que orientou tais programas em detrimento de uma concepo de poltica social que respondesse a direitos de cidadania. Cita como referncia o estudo Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil, de Safira B. Ammann (Cortez, 1982)

p. 146 Proximidade entre a DSN e a ideologia do DC: viso bipolarizada do mundo (combate entre democracia e comunismo) e concepo de sociedade que se rege pelos supostos do equilbrio e da harmonia. O objetivo era melhorar as condies econmicas, sociais e culturais das comunidades, integr-las vida nacional e capacit-las para contribuir plenamente para o progresso do pas (ONU apud Ammann, 1982, p.25).

p. 146/147 Desta concepo de sociedade, a existncia de desigualdades sociais explicada atravs de processos de causao circular: os pobres estariam, por insuficincia, desintegrados do processo de desenvolvimento. Para pr fim a esta desintegrao seria necessrio atuar, de forma integrada (nas reas de sade, alimentao, educao), principalmente junto s crianas (). Esta concepo de pobreza e de programas para recuperao de crianas pobres parece ter sido, tambm, adotada pelo UNICEF at pelo menos 1979, Ano Internacional da Infncia (...)

p. 147 Em 1970, foi criada a Coordenao dos Programas de Desenvolvimento de Comunidade (CPDC) (). O DC e a participao comunitria constituam, no perodo, estratgias propostas para a integrao social e nacional de pessoas ou regies desintegradas do processo de desenvolvimento. Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. Com base nesse fundamento, criaram-se programas, acionaram-se mecanismos, destinaram-se incentivos visando integrao regional e social. Com a participao da comunidade no custeio dos programas. Construo de um modelo federal e de massa de pr-escola, baseado nesses princpios.

p. 150

Em 1967, o Departamento Nacional da Criana (DNCr) elabora o Plano de assistncia ao prescolar, inspirado em conferncia da UNICEF da qual participou em 1965, em Santiago, no Chile. Nesse documento esto presentes as orientaes que guiaram as propostas governamentais de prescola de massa elaboradas no Brasil durante a dcada de 70 e parte da de 80.

p. 151 O DNCr props, no Plano, a construo de centros de recreao, que s foram implantados em 1977: o Projeto Casulo. Suas caractersticas foram: objetivos de assistncia e de desenvolvimento integral da criana, que ampliaram a perspectiva exclusiva de preparao para a escolaridade obrigatria, mas que adotaram uma forte conotao preventiva; perspectiva de atendimento de massa, ampliando a cobertura a baixo custo, o que seria conseguido atravs de construes simples, uso de espaos ociosos ou cedidos pela comunidade e a participao de trabalho voluntrio ou semivoluntrio de pessoas leigas (a comunidade). () Tratou-se, portanto, de um modelo centralmente elaborado que ignorou particularidades e contradies nacionais ou regionais, fossem elas econmicas, culturais, polticas ou propriamente educacionais e que, no obstante, necessitava para sua implantao de adeso local (governamental ou comunitria) sem que fosse acompanhado da contrapartida central de alocao suficiente de verbas. A LBA. O programa de educao pr-escolar de massa o Projeto Casulo foi implantado em 1976 pela LBA, rgo federal de assistncia social. A LBA havia sido criada em 1942, associada ao esforo de guerra, como rgo de apoio aos pracinhas e suas famlias. Considerada como criadora e criatura do servio social no Brasil, a LBA desenvolveu, at a implantao do Projeto Casulo, uma srie de programas destinados maternidade e infncia, localizados, no extensivos, com base no voluntariado.

p. 152 Os pobres so sempre ameaa... O discurso da LBA para atuao junto infncia pobre conteve, desde sua criao, um forte componente preventivo, adequando o estilo ao perodo em questo. Assim, ao final da II Guerra Mundial, a perspectiva preventiva, que justificava a atuao do rgo junto infncia, aparece com conotaes eugnicas: a LBA orientava sua atividade e seus recursos 'na defesa de nossa raa, cuidando das mes e das crianas, os homens de amanh' (LBA, Boletim, 1946, p.10-1); posteriormente, sua ao em prol da infncia destinava-se a evitar 'a ociosidade e a

mendicncia, vistos como consequncia do abandono infantil e da decadncia moral do meio' (LBA, Boletim, 1960, p.15). No momento da criao do Projeto Casulo, o discurso da preveno adquiriu nova conotao: a da segurana nacional, pois os pobres poderiam ameaar a integrao nacional.

p. 154 A primeira avaliao do projeto, efetuada no ano seguinte [1978] ao de sua implantao, evidenciava j seus problema estruturais decorrentes do modelo a baixo custo com apoio da comunidade: falta de pessoal capacitado; pouco conhecimento da cultura das famlias atingidas a cujo nvel educacional e econmico era atribudas dificuldades no desenvolvimento de atividades; inadequao do espao fsico e falta de gua nos locais em que a creche era implantada; falta de verbas e recursos humanos, materiais e equipamentos (). Ou seja, j se percebia a dificuldade de implantao de um programa apoiado em grande parte nos recursos de comunidades pobres.

p. 155 (...) a pr-escola de massa, atendimento pobre para pobre, estava sendo usada, tambm, como alternativa mais barata educao primria. () mesmo respondendo a uma reivindicao das mulheres (como acontecera no Brasil), pode reforar e gerar novas discriminaes contra as mulheres, as crianas pobre e negras, quando sua expanso ocorre atravs dos chamados modelos 'alternativos' destinados ao pobre. Abaixo, excerto do texto: Escola Superior de Guerra. Departamento de Estudos. TG 4-76. 4 Trabalho de Grupo. Anlise de conjuntura/interna. (Campo Psicossocial). CSG. SUBGRUPO3. Previdncia Social. Pargrafo 9 Relativamente Assistncia Social, muito pouco tem sido feito, mormente se levarmos em conta o carter preponderante paternalista de nossos programas, que no correspondem s necessidades dos assistidos, cujo nmero, segundo recente pronunciamento ministerial, da ordem de 25 milhes de pessoas, quase totalmente carentes em termos de alimentao, habitao, vesturio, estado sanitrio etc. (cont. em outro pargrafo) , o chamado quarto estrato da nossa sociedade, exatamente a grande maioria da clientela para a qual dirigida a LBA, com a misso de tentar obter o ingresso desse

enorme contingente de brasileiros ainda desassistidos na economia de mercado.

A produo social da identidade do anormal Jos Geraldo Silveira Bueno (p. 163-185) p. 163 Se a identidade social do anormal, como uma construo histrica, mantm alguma continuidade no transcurso da civilizao, a de que, em todas as pocas, o meio social identificou, por algum critrio, indivduos que possuam alguma(s) caracterstica(s) que no fazia(m) parte daquelas que se encontravam entre a maior parte dos membros desse mesmo meio no pela simples presena de uma diferena, mas pelas consequncias que tais diferenas acarretavam s possibilidades de participao desse sujeito na construo coletiva de sobrevivncia e reproduo de diferentes grupamentos sociais, em diferentes momentos histricos.

p. 164 A concepo hegemnica moderna de anormalidade social tem utilizado como base o paradigma biolgico, na medida em que essa cincia j teria chegado a alto nvel de certeza na distino entre o estado normal e o patolgico, ao considerar a doena como um desvio do estado habitual (de sade), este ltimo manifestado pela sua maior frequncia, que corresponderia s condies de vida, isto , de dua prpria manuteno.

p. 168 O termo norma remonta ao latim, o qual, por sua vez, equivalente ao termo grego rtos, e se refere, fundamentalmente, gramtica, isto , regulamentao do uso da lngua, o que demonstra a preocupao do homem na busca de regularidades em suas aes (CF. Canguilhem, 1982, p. 216). Entretanto, o processo de normalizao inerente s exigncias da sociedade industrial constitui algo radicalmente novo por atingir as mais diferentes atividades humanas () (...) se o termo norma remonta Antiguidade, seu derivado normal surge, na Europa, apenas no sculo XVIII, mais precisamente na Frana, em 1759 e, mais do que isso, foi incorporado linguagem popular a partir de vocabulrios especficos de duas instituies, a instituio escolar e a instituio sanitria, cujas reformas ocorrem em consequncia da mesma causa, ou seja, da

Revoluo Francesa (). Ambas exprimem uma exigncia de racionalizao.

p. 169 Se, por um lado, a escola normal se constitui na instituio social em que se ensina a ensinar, em que se instituem os mtodos pedaggicos e se procura formar os responsveis pela transmisso de conhecimentos suficientes para a integrao das novas geraes s exigncias das novas relaes sociais baseadas na industrializao, e o hospital vai se caracterizando no como o lugar da recluso, para que o doente desenganado aguarde a morte, mas, crescentemente, como a instituio privilegiada, com recursos humanos e equipamentos que possibilitem a recuperao da normalidade do doente, surgem, por outro lado, instituies que tm como funo bsica o isolamento de uma parcela da populao que, por caracterstica peculiares da sua anormalidade, no tm, em ltima instncia, possibilidade de ser curada: os hospcios e as instituies para deficientes.

p. 169-182 Consideraes sobre a histria das escolas voltadas para crianas com deficincia, na Europa e no Brasil.

As polticas e os espaos para a criana excepcional Gilberta Jannuzzi (p. 187-227) No li.

Infncia de papel e tinta Marisa Lajolo (p. 229-250) p. 229 Interessante! Enquanto objeto de estudo, a infncia sempre um outro em relao quele que a nomeia e a estuda. As palavras infante, infncia e demais cognatos, em sua origem latina e nas lnguas da derivadas, recobrem um campo semntico estreitamente ligado ideia de ausncia de fala. Esta noo de infncia como qualidade ou estado de infante, isto , d'aquele que no fala, constri-se a partir dos prefixos e radicais lingusticos que compem a palavra: in = prefixo que indica negao; fante = princpio presente no verbo latino fari, que significa falar, dizer.

p. 230 Continuao, em outro pargrafo e outra pgina, do trecho anterior. No se estranha, portanto, que esse silncio que se infiltra na noo de infncia continue marcando-a quando ela se transforma em matria de estudo ou de legislao. Continuao do trecho anterior. Assim, por no falar, a infncia no se fala e, no se falando, no ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam. E, por no ocupar esta primeira pessoa, isto , por no dizer eu, por jamais assumir o lugar do sujeito do discurso, e, consequentemente, por constituir sempre um ele/ela nos discursos alheios, a infncia sempre definida de fora. Continuao em outro pargrafo. Esta reificao da infncia, no entanto, cristalizada desde a origem das falas que dela se ocupam, no privilgio exclusivo dela, infncia. Junto com crianas, mulheres, negros, ndios e alguns outros segmentos da humanidade foram ou continuam sendo outros eles e outras elas no discurso que os define. At que esperneiam, acham a voz e, na fora do grito, mudam de posio no discurso que, ao falar deles e delas, acaba constituindo-os e constituindo-as. De objeto passam a sujeito, ou melhor dizendo, passam a sujeito e objeto simultaneamente, que as posies se alternam no engendramento do discurso. Continuao em outro pargrafo. Assinalar, no entanto, a alienao a que est desencontrada a posio discursiva confina a infncia, ao contru-la e defini-la, no diminui a fora das categorias e definies pelas quais se fala da infncia, quando a questo, como aqui, no nem ontologia nem epistemologia da infncia: infncia como feminino ou negritude no so substncias ou seres de existncia autnoma (): negritude, feminino e infncia so categorias que s vivem no espao social em que so estabelecidas, negociadas, desestabilizadas e reconstrudas.

Continuao em outro pargrafo. Ou seja: muito embora os seres humanos tenham sempre nascido frgeis, pequeninos e leves e quando sobrevivem... - tenham sempre ganhado altura e peso ao longo de muitos anos at que ficam fortes e seu tamanho se estabiliza, e seja sua idade contada por anos, por luas, por chuvas, o significado de ser um ser humano deste ou daquele tamanho, com muita ou com pouca altura, varia enormemente de um lugar para outro, de um tempo para outro

p. 231 So tantas infncias quantas foram idias, prticas e discursos que em torno dela e sobre ela se organizem. reas de conhecimento que se ocupam, mais do que as outras, com a infncia: psicologia, biologia, psicanlise e pedagogia.

p. 232 Foi, alis, atravs de diferentes formulaes destas disciplinas que comearam a circular diferentes concepes de infncia: primeiro, vendo a criana como um adulto em miniatura; depois, concebendo-a como um ser essencialmente diferente do adulto, depois... Fomos acreditando sucessivamente que a criana a tabula rasa onde se pode inscrever qualquer coisa, ou que seu modo de ser adulto predeterminado pela sua carga gentica, ou ainda que as crianas do sexo feminino j nascem carentes do pnis que no tm (...) etc. A autora acrescenta tambm a Literatura construindo a imagem da infncia. Em conjunto, artes e cincia vo favorecendo que a infncia seja o que dizem que ela ... e, simultaneamente, vo se tornando o campo a partir do qual se negociam novos conceitos e novos modos de ser infncia.

p. 233 Falando da literatura brasileira, mas acho que se aplica a outras reas tambm. J vai longe o tempo em que se podia acreditar numa imagem idlica de infncia. Evocada numa perspectiva otimista e saudosa, o incio da vida humana costumava traduzir-se em imagens ingnuas, naturais e positivas. Imagem construda fortemente pela poesia romntica. Esta representao ednica da

infncia parece ter calado to fundo no imaginrio brasileiro (em funo, talvez, da frequncia com que compareceu a antologias e manuais escolares) que se transformou em clich, conjunto empoeirado de metforas, que acorre boca de que quer que se prepare para falar da infncia. Representao, lembra a autora, que fez calar outras.

p. 233 - 236 Fala da criana citada, embaadamente, coberta por panos, aparecendo s as pernas, na carta de Pero Vaz de Caminha. Tambm comenta, dessa vez mais detidamente, o filho de Iracema, do romance de Jos de Alencar, que levado Europa com o pai portugus aps a morte da me.

p. 236 Interessante e importante! A fragilidade da infncia foi e continua sendo artifcio retrico poderoso em nossa cultura. Com a lgrima que arranca dos olhos do leitor, o sentimentalismo que a imagem da infncia, particularmente da infncia desvalida, provoca, costuma patrocinar a adeso de coraes sensveis a ideias e causa variadas: s vezes, at, a causas altas e nobres e lcidas. Como, alis, fez o autor de Iracema, ao reforar o recado de seu livro, simultaneamente nostlgico e nacionalista, com a incluso, na histria, da fragilidade de uma criana rf e migrante.

p. 236/237 Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. Esta utilizao da imagem da infncia, como reforo de teses que interessam ao mundo adulto, antiga na literatura ocidental (...). / Exemplo na literatura francesa: Le tour de la France par deux garons, da dcada de 1870, a historinha de dois rfos que deixam a Alscia-Lorena, ocupada pela Alemanha, em busca de familiares no resto da Frana. A autora v, no livro, a superposio dos valores famlia e ptria - a perda de uma coincide com a perda da outra e, por efeito de simetria, a reconquista da outra traz de troco aquela uma perdida.

p. 237

Exemplo semelhante ao livro francs, dessa vez na literatura brasileira: Atravs do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim. Os meninos Carlos e Alfredo vivem peripcias percorrendo o Brasil atrs do pai, tido como morto. A tarefa do livro era difundir a ideia de um Brasil grande e unido. Na histria, os meninos partem do Recife e chegam at uma estncia gacha, passando pela Amaznia.

p. 237/238 Um livro italiano - Cuore, de De Amicis (1886) , em forma de dirio de um menino, relata episdios vividos por crianas de escola. O livro, considera a autora, instrumento importante para uma Itlia que unifica, nos coraes e nas mentes fisgados na leitura do livro, o Estado e o territrio nacionais que Garibaldi unificava no campo de batalha e na poltica. O livro foi traduzido para o portugus em 1891. / (...) sua popularidade tal, que, em sua poca, mais do que o francs Le tour de la France, a histria italiana que se torna uma espcie de modelo da literatura infantil e, enquanto modelo, matriz de uma relao estreita entre literatura infantil e diferentes projetos nacionais. , pelo menos, nesta direo que aponta o comentrio que em 1916 Monteiro Lobato, que se preparava para fundar a literatura infantil brasileira moderna, faz para Godofredo Rangel, relativamente inadequao entre o livro italiano e o pblico brasileiro:E de tal pobreza a to besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciao de meus filhos. Mais tarde s poderei dar-lhes o Corao de Amicis um livro tendente a formar italianinhos. [Monteiro Lobato, J. B. A barca de Gleyre. II vol. 7. ed. So Paulo, Brasiliense, 1956]

p. 239 Para a autora, a obra infantil de Monteiro Lobato pode seu um bom exemplo verde-amarelo de suporte infantil a propostas nacionais. No polo da positividade, as histrias do pica-pau amarelo parecem fazer do stio de Dona Benta um modelo social para o Brasil posterior a 1930, o que de certa forma d obra infantil lobatiana papel de relevo no projeto de formao, reconstruo ou modernizao do pas em que se empenha o escritor. Fica, por isso, sugestivo observar como a presena de crianas em obras no infantis do mesmo Lobato muda de registro e traz para o texto lobatiano uma tecla amarga de desesperana, j assinalada a propsito do texto de Alencar. Para explicar essa ltima caracterstica, a autora expe e discute trechos do conto Negrinha, publicado em 1920 no livro homnimo.

p. 240 / 241 Entre as caractersticas levantadas pela autora, a que mais me chamou ateno foi a caracterizao da negrinha pela animalizao. (...) neste conto de Lobato prossegue a vinculao, j insinuada pelo texto de Alencar, entre mundo infantil e mundo animal. Crianas mestias, com sangue indgena ou africano, nestas / duas representaes separadas por um intervalo de mais de um sculo [o filho de Iracema, de Alencar, e a Negrinha, de Lobato], sofrem igualmente o inevitvel rebaixamento a que a sociedade brasileira confina mestios, negros e ndio, menorizados que na prtica da vida em sociedade, quer como se v na representao que desta vida em sociedade faz a literatura.

p. 243 / 244 Poema de Manuel Bandeira, Meninos carvoeiros, apontado pela autora como outra representao negativa da infncia, uma constante na literatura brasileira. O texto foi publicado em 1921, em Ritmo dissoluto. Nele, ao lado da misria, pobreza e abandono j constituintes do conto 'Negrinha' de Lobato, surge o trabalho infantil. / No texto tambm h a aproximao do mundo das crianas com o mundo dos bichos (no espelhamento das crianas raquticas e com os burros magrinhos).

p. 244 No poema de Bandeira, aparece uma velhinha que recolhe os carves que caem do cho, estando mais excluda socialmente do que os prprios carvoeiros, por no participar das foras produtivas, mesmo as marginalizadas. A parte em que a velhinha aparece na narrativa, sugestivamente, est entre parentes. (...) no nova a aproximao entre infncia e velhice: esta aliana de extremos tem vida longa na tradio da cultura infantil, manifestando-se, por exemplo, nas incontveis figuras de ancis contadeiras de histrias cuja linhagem, inaugurada pela mre l'oye de Perrault (1697), cruza sculos e fronteiras e chega at as mes pretas do Nordeste brasileiro, como os vultos que o mesmo Bandeira evoca em tantos poemas e autobiografias.

p. 244-246 A autora cita e comenta o texto testemunhal e autobiogrfico Minha Vida, de Carolina Maria de Jesus, transcrito no livro A Cinderela negra, de Jos Carlos Sebe Bom-Meihy e Robert Levine. O texto falar de um episdio da vida da menina na escola, quando ela ouviu, pela primeira vez, seu nome civil. Ela queria sair da sala para mamar (aos sete anos) e foi alvo de chacota (e agresso fsica) da professora, que a deu reguadas na perna.

p. 246-249 Comenta a letra de Pivete, de Chico Buarque e Francis Hime. Narrativa/rotina de meninos abandonados que vivem em ambientes urbanos: vender chiclete no sinal, roubar carros, usar drogas, sonhar que Pel, Man (Garrincha) e Ayrton (Senna).

p. 249 Concluso: a infncia na literatura brasileira mais de sofrimento do que de saudosismo/idlica.

Histria da infncia no pensamento social brasileiro. Ou, fugindo de Gilberto Freyre pelas mos de Mrio de Andrade Marcos Cezar de Freitas (p. 251-268) p. 251/252 Citao da obra Ordem e progresso, de Gilberto Freyre, sobre a relao da infncia e do brinquedo no final do sculo XIX. Brinquedos (objetos?) j como forma de distino. [Me parece que, hoje, no mais o ter o objeto que trs distino, mais o poder comprar cada vez mais objetos]. Maria Joaquina da Conceio, mulher do povo e analfabeta, nascida em Goiana, na Provncia de Pernambuco, em 1885, e neta bastarda de certo senhor de Goiana, chamado M. P., em cujo sobrado viu pela primeira vez a luz do dia, diz que as meninas pobres naquela parte do interior da ento Provncia de Pernambuco que ela conheceu, brincavam com bonecas de pano. Mas brincar com boneca de pano era sinal de ser menina de gente inferior. Ela que bem ou mal nascera em sobrado, no tolerou nunca boneca de pano: sempre brincou com boneca de loua. Boneca velha, j gasta de ter servido de filha a menina rica, mas de loua. Mesmo porque suas amigas e companheiras de brinquedo eram todas iais brancas (). / Mas boneca toda de loua: nem sequer metade de loua e metade de pano, como havia algumas, mais baratas que as s de loua, que eram em geral louras e de olhos azuis. E francesas. Europeias.

p. 252 A criana, numa sociedade em permanente projeo para o futuro, destinada a vir-a-ser, facilmente tornou-se componente descritivo de um complexo social no qual o estar-e,-formao da criana misturava-se a um estar-em-construo com o qual a 'personalidade' do pas tornava-se objeto de reflexo.

p. 253 A incompletude natural da criana [diria eu, Andra, no a de qualquer pessoa?] projetada como metfora da nao inconclusa, e a 'peculiaridade' da nao inconclusa o recurso argumentativo com o qual a histria social da infncia torna-se depositria dos exemplos de um quotidiano no qual tudo fratura, fragmento e disperso.

p. 253/254 As representaes da infncia tm se multiplicado paralelamente construo da autoridade argumentativa de uma srie de disciplinas, / discursos e pareceres que, a partir de uma evocao qualquer da cincia, classificam a criana, destinando a ela a condio de ser () um objeto de estudo.

p. 254 () as representaes da infncia tambm so elementos decisivos na configurao das cincias e das disciplinas a elas relacionadas. Quem fala em nome da criana? Sua educabilidade escolar vem luz, por exemplo, pelas 'mos da pedagogia', mas uma pedagogia tomada de assalto no sculo XX pela psicologia, a qual tornou a cincia da educao, muitas vezes, um laboratrio do comportamento. Com quais argumentos defende-se a criana no mbito das leis? Frequentemente, o universo disciplinar do direito 'tomado de assalto', desde o fim do sculo XIX, pela medicina legal a qual tornou a criana, antes de tudo, o 'menor de idade'.

p. 254-255 (...) a autoridade intelectual com a qual h muitos sculos a criana tem sido abordada, em muitos casos, decorre da superposio de cincia sobre cincia, / de campo epistemolgico sobre campo epistemolgico e o resultado muitas vezes corresponde a um acervo de imagens sobre a infncia impregnado de certa 'fantasmagoria'. Fantasmagoria quer designar, aqui, a situao do ator social que se v no espelho e no reconhece a prpria imagem.

p. 255/256 O autor vai se ater, a partir deste ponto do texto, sobre o que ele considera formas de violncia simblica na constituio da chamada histria social da infncia no Brasil. / Os exemplos so de trs clssicos de Gilberto Freyre: Casa-grande e senzala; Sobrados e mocambos; Ordem e progresso. O objetivo da 'aferio do acervo de imagens' comentar a constncia com que a representao se automatiza em relao ao representado e a coincidncia que faz com que o mesmo fato se repita nos documentos jurdicos, nas cincias humanas e nas classificaes que arriscam uma descrio geral da infncia.

p. 256-260 Anjo: as crianas mais pequenas. [Sobrados e mocambos] Moleque leva-pancada: moleque leva-pancada, escravo criana que era o brinquedo e companheiro do menino branco. [Casa grande & senzala, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1984, p. 50] Menino diabo: dos seis ou sete anos aos dez, no era nem anjo nem gente grande, os mais castigados da casa depois dos escravos e do moleque leva-pancada; idade que no carecia de cuidados. [Sobrados e mocambos] Homenzinho: homnculo, de nove ou dez anos, obrigados a se comportarem como gente grande e a usarem marcas de adultos (cabelo bem penteado, colarinho duro, cala cumprida, roupa preta, botina preta, andar grave, gestos sisudos, ar tristonho de quem acompanha enterro [Casa grande & senzala, p. 441]

p. 260 A sociedade patriarcal e escravocrata entendia (toda ela?) a criana como anjo, demnio, parceiro de folguedo do senhor, senhor / do folguedo do escravo etc.

p. 261/262 No se pretende aqui, e nem seria possvel, desqualificar a reconstituio portentosa de Freyre. Mas falta algo de relativizao em relao aos preconceitos e prottipo de cada poca. Falta quebrar a imagem da criana como depositria das conciliaes atrozes da sociedade. / () Ora, a criana localizada naquele e noutros contextos com o mesmo esprito que rege a obra do autor como um todo: o de que mesmo as relaes humanas mais brutais se permitem conciliao e ao hibridismo. E essa sociedade o produto da mistura permanente de suas brutalidades, cuja forma resultante apresenta um escravocrata menos brutal e um escravo um pouco menos reduzido condio de coisa. E a criana transita por esse mundo e reconstituda atravs do acervo de representaes que a prpria poca forneceu sobre ela. Nela todos os antagonismos se atenuam.

p. 261 Importante! () o campo das representaes deve ser entendido como aquele que contm os elementos necessrios constituio de um outro campo, no qual est a possibilidade de investigar a violncia simblica que se pronuncia contra a criana (). Dessa forma, a violncia subjetiva deve deixar de ser considerada um 'aspecto inevitvel' da sociedade a partir dessa ou daquela caracterstica peculiar de sua formao poltica e econmica. Essa uma observao que se deve fazer narrativa de Freyre: se a violncia fsica na sociedade brasileira patriarcal era uma constante, a violncia simblica e subjetiva no devem ser reconstitudas 'apena' como expresses menores da opresso cotidiana.

p. 263 O autor alerta que, nas representaes sobre a criana, ela sempre vista de fora, como personagem. Observar o observador da infncia/nao nos domnios da esfera privada suscitou imagens fortes, utilizadas de forma recorrente na composio de um domnio narrativo no qual, tanto a 'criana/pas' quanto o 'pas/criana', foram vistos por dentro e revelaram ad intra a violncia como componente das conciliaes mais danosas do quotidiano.

p. 263/264 Todavia, mesmo que muito brevemente, possvel recuperar como contraponto, outras imagens e representaes da infncia / relacionadas s possibilidades de 'ocupao' e definio da esfera pblica, tendo por base o trato especial das necessidades propriamente infantis. Esse ponto de vista, diferente do de Freyre, era o de Mrio de Andrade, no Departamento de Cultura da cidade de So Paulo. Ele props a criao de parques infantis na cidade, ambientes ldicos para educao da criana e da cidade como um todo. Os Parque Infantis representavam a criana como componente 'disciplinador' da cidade que, ento, se metropolizava. O impotente 'leva-pancadas' de outrora ressurgia idealizado como o componente suavizador das formas do urbanismo e revestia-se, ento, da importncia, de ser considerado o seu contedo (in)tenso.

p. 264/265 Interessante! Como cuidado preventivo em relao possibilidade da metrpole tornar-se um conjunto de irracionalidades, o Departamento de Cultura colocava a criana no corao da reconfigurao urbana que andava ento a galope. A questo da oferta do brinquedo pblico, a disponibilizao do equipamento pblico, o Parque, / enfim, eram entendidos como responsabilidades maiores junto a quem devia tornar o espao urbano um laboratrio experimental da humanizao da brasilidade. Diante desse projeto, percebia-se que, na esfera pblica, a criana no estava mais condenada passividade. S essa convico era suficiente para torn-la uma personagem mais dona de si, ainda que nos limites da trama andradiana. () A imagem da infncia sugerida a da potencialidade: ela o componente submerso na materialidade de uma cultura necessitada de (re)humanizao. () Os Parques ofereciam uma advertncia multiplicao das iniciativas imobilirias, acrescentando cultura material metropolitana 'clares de brincadeira' que no poderiam ser danificados. [grifo meu] Essa, segundo o autor, tambm era uma forma de entender a criana como o corao da cidade.

p. 266 Havia uma preocupao em relao manuteno do espao ao ar livre para a criana, e o consequente apreo ao divertimento entendido como recurso pedaggico.

p. 266/267 (...) a exposio simples, quase singela, do papel a ser desempenhado pelos Parques Infantis, possibilita perceber que o cuidado s subjetividades necessariamente presentes na formao da criana conduz a um universo discursivo sobre a infncia essencialmente diferente do conjunto de representaes no qual o folguedo e o riso so tomados como pistas de um mundo no qual a violncia doce e branda. Se a cidade ldica a anttese discursiva do entre muros, no qual o menino foi o 'leva-pancadas', a construo da liberdade e da democracia considerando a ocupao dos espaos / livres conforme os moldes andradianos, permite a inverso de um registro simblico.

p. 267

Trecho bonito, pargrafo de concluso do texto. Nos anos trintas do sculo XX, antigos 'levapancadas' era [sic] ento senhores procurando pelas portas da cidadania. Quantos no tero sonhado com a cidade infante quando ainda eram personagens da casa-grande e da senzala? Desde os anos vintes, separados pela distncia de um pas continental, dois jovens intelectuais brilhantes escreviam suas impresses sobre a cultura brasileira. Se as personagens pudessem saltar entre os livros, quantas no teriam pulado os muros dos sobrados a procura do mato-virgem, onde um 'preto retinto filho do medo da noite' foi parido feio no 'murmurejo do Uraricoera' e nos tornou a todos, desde ento, macunamas errantes, procurando nas cidades os parque infantis que nos roubaram.

A infncia no Brasil pelos olhos de Monteiro Lobato Ivan Russef (p. 269-289) No li.

Quando a histria da educao a histria da disciplina e da higienizao das pessoas Marta Maria Chagas de Carvalho (p. 291-309) p. 291 Histria da educao como histria da disciplinarizao das pessoas (higienizao como modo de disciplina); escola como instituio intrinsecamente disciplinar, e a modernidade como sociedade da escolarizao. A autora se prope a analisar duas modalidades de constituio da infncia como objeto de interveno disciplinar, nas primeira quatro dcadas do sculo XX, a partir dos discursos que buscaram legitimar-se enquanto saber pedaggico de tipo novo, moderno, experimental e cientfico

p. 292 A autora se prope a trabalhar com duas metforas da disciplina: disciplina como ortopedia e disciplina como eficincia. Em duas figuras que introduzem a leitura de Vigiar e punir, l-se: L'orthopdie ou l'art de prvenir et de corriger dans les enfants les difformits du corps. Em ambas as gravuras, de N. Andry, a arte de preveno e correo referida imagem da linha reta. Na primeira, uma rgua com a inscrio Haec est regula recti prope-se como arte da preveno, como regra e suposto da harmonia reinante em uma cena de governana infantil. Na segunda, a famosa rvore torta, toda amarrada por um grossa corda a um pau reto firmemente fincado no solo, explicita a ortopedia como arte de correo da deformao. Num e noutro caso, cnone e deformao configuram o campo das prticas de preveno e correo. Nas imagens, o que se explicita como objeto da arte da ortopedia no a falta de forma, no o uniforme, mas a deformao de uma forma cannica. Em ambas as figuras, a reta regra e norma que constitui o desvio e a deformidade como sua confirmao. [o ltimo grifo foi meu]

p. 292-294 Instalao, em 1914, do Laboratrio de Pedagogia Experimental, no Gabinete de Psicologia e Antropologia Pedaggica, anexo Escola Normal Secundria de So Paulo. Pretendia-se, com ele,

desenvolver estudos cientficos, tericos e prticos, sobre pedagogia e sobre as crianas.

p. 294 O objetivo do Laboratrio era a medio para a construo de um conhecimento cientfico do indivduo. A ideia de que as diferenas entre os educando requerem 'meios absolutamente vrios de educao', devendo ser 'objeto de um estudo e tratamento particular' que, desse ponto de vista, comanda a constituio de uma pedagogia cientfica. Assentada em uma pluralidade de prticas de mediao, tal pedagogia se contrapunha 'velha pedagogia, () abstrata, dogmtica, absoluta', que sonhava 'poder generalizar todos os princpios, universalizar todos os meios, como se todos os indivduos pudessem para comodidade do pedagogista e do professor, adaptar-se frma de um s modelo decretado'. Os trechos citados so de [Thompson, Oscar. O futuro da pedagogia cientfico. In: O Laboratrio de Pedagogia Experimental, So Paulo, Tip. Siqueira, Nagel & Comp., 1914], publicado poca de um curso promovido no gabinete, com o professor italiano Ugo Pizzoli.

p. 295 Exemplo de prtica da cincia do indivduo: a Carteira Biogrfica Escolar. A carteira deveria ser generalizada a todos os grupos escolares e abranger registros acerca da vida do aluno nos cinco anos de curso. Deveria ser elaborada e assinada pelo diretor do estabelecimento, pelos professores das classes e pelo mdico escolar. Deveria ser conservada durante todo o perodo escolar do aluno pelo diretor, que ao final do curso a entregaria ao governo. Constando de nove pginas, a Carteira reunia fotografias anuais do aluno e inmeros registros de mensuraes resultantes de 'observaes antropolgicas' e 'fisio-psicolgicas', alm de anotaes registradas como 'dados anamnsticos da famlia' e 'notas anamnsticas', estas ltimas obtidas por exame mdico. Procedimentos de identificao escolar que mesclam cincias que lhes era contemporneas antropologia, psicologia, biologia, medicina e psiquiatria. Era um dispositivo de conhecimento sobre o aluno e de constituio da criana enquanto aluno, dispositivo de produo da individualidade na confluncia das medidas e dos 'dados' de observao constitudos como ndices de normalidade, anormalidade ou regenerescncia. Compleio fsica, tipo racial, traos morais, marcas de hereditariedade, ambiente familiar constituam um roteiro de observao e medida e forneciam as tpicas de registro na Carteira Biogrfica Escolar. No cruzamento dessas medidas e

observaes que ganhava contorno o carter especfico do aluno.

p. 296/297 Pizzoli representa o campo epistemolgico da pedagogia atravs de uma rvore. Nas razes esto as cincias que do subsdios educao: sociologia, legislao escolar, histria da escola, anatomia, fisiologia, antropologia, psicologia, higiene individual, higiene coletiva, higiene da casa e da escola, ortofrenia, pedologia, pediatria e arte didtica. As razes convergem para o tronco, a Pedagogia, cincia da educao humana. Do tronco, emergem dois processos de educao a educao normal, representada por vrias galhos, com muitas folhas e fruto; e a educao emendatria, anormal ou corretiva, representada por galho com folhas raquticas e frutos murchos. / As prticas educacionais emendatrias sero voltadas para criminosos, amorais, tarados, idiotas, cretinos, imbecis, surdos-mudos, cegos de nascena e deficientes fsicos.

p. 297 Na Pedagogia Cientfica, conhecer o indivduo era enquadrar o indivduo no tipo e ler nos corpos sinais que uma cincia determinista constitua como ndices de normalidade, anormalidade, ou degenerao. Era classificar o tipo segundo divises inscritas na natureza, que repartiam e hierarquizavam a humanidade. E era ao que indica a recorrncia da tpica da degenerao operar com os parmetros postos pelas teorias raciais que, desde finais do sculo anterior, vinhamse constituindo na linguagem principal dos intelectuais brasileiros, no seu af de pensar as possibilidades de progresso para o pas e legitimar as hierarquias sociais.

p. 298/299 Discriminar as crianas normais das anormais ou degeneradas era tarefa que se instalava no mago da pedagogia cientfica que, segundo Thompson, deveria 'confrontar e distinguir os casos normais dos anormais, para cuidar de cada um segundo o seu valor exato'. Para tanto, importava no confundir 'os casos de anomalias simples com os de grave e profunda degenerao'. Pois os primeiros podem 'ser compatveis com a natureza e fim da escola', sendo-lhes facultado 'frequentar as escolas dos normais', onde seriam 'corrigidos e modificados por mtodos especiais'. J os 'degenerados' devem / ser 'excludos absolutamente das escolas dos normais, seja qual for a forma

de seu carter degenerativo'.

p. 299 Prtica humanitria [assim essa prtica era adjetivada pelos seus defensores] de distribuio cientfica das crianas por escolas, casas de correo, hospcios ou prises, a pedagogia cientfica, via-se, assim, constituda como recurso de seleo e composio da clientela escolar. A organizao de classes homogneas, um dos objetivos das prticas de medio, era recurso de maximizao dos resultados do ensino simultneo e seriado, ponto estratgico do empenho das autoridades educacionais paulistas de constituio de um sistema de educao pblica no estado. Mas, contraditoriamente, o intuito 'humanitrio' de seleo da clientela escolar indicia o horizonte ideolgico em que se inscreviam as intenes polticas republicanas de levar a educao a todos os cidados. Nesse horizonte, critrios raciais, nem sempre explicitados, traavam os limites das boas intenes republicanas, operando a distino entre populaes educveis, capazes portanto de cidadania, e populaes em que o peso da hereditariedade (leia-se, sobretudo, 'raa') era marca de um destino que a educao era incapaz de alterar. Ambiguidade de um projeto de universalizao da escola em uma sociedade excludente.

p. 300 Observar, medir, classificar, prevenir, corrigir. Em todas essas operaes, a remisso norma uma constante. A pedagogia cientfica, as prticas que a constituam e as que derivam dela, caracterizavam-se, assim, por essa remisso constante a cnones de normalidade produzidos, pelo avesso, na leitura de sinais de anormalidade ou degenerescncia que a cincia contempornea colecionava em seu af de justificar as desigualdade sociais e de explicar o progresso e o atraso dos povos pela existncia de determinaes inscritas na natureza dos homens. E por referncia a essa norma que a pedagogia se fazia, nas prticas aqui analisadas, ortopedia arte da preveno ou da correo da deformao.

p. 301/302 A partir dos anos 20, comea uma mudana no paradigma da educao, a chamada escola nova. Uma oposta otimista na natureza infantil e na educabilidade da criana insinua-se como o

enunciado principal a regular / as articulaes discursivas. As figuras da deformao, que assombravam a produo discursiva anterior e que traziam a deteco e o controle da anormalidade para o mago da pedagogia, so como que gradativamente expelidas do campo pedaggico (). seus preceitos, apesar de tambm 'tirados da prpria natureza', subordinavam-se a desgnios pedaggicos que no se viam mais to constrangidos pelos determinismos (). A nova pedagogia era otimista. Era aposta em uma sociedade nova, moderna, que as lies da guerra, mediatamente apreendidas, faziam entrever como dependente de uma nova educao, redefinida em seus princpios e largamente baseada na cincia. () [Esse otimismo pedaggico] Era aposta no poder disciplinarizador do progresso que essa 'nova compreenso' entrevia embutido no processo de racionalizao das relaes sociais sob o modelo da fbrica. A regra que organiza as novas prticas pedaggicas no deriva mais, seno mediatizadamente, da cincia. Ele metfora dos ritmos impostos aos corpos e s mentes pela vida moderna, imprio da indstria e da tcnica.

p. 303 O processo de corroso gradativa dos pressupostos que fundavam a pretenso de construir uma pedagogia cientfica no derivou apenas, entretanto, de mutaes nos paradigmas cientficos. No Brasil, ele foi decisivamente marcado pelas motivaes polticas, sociais e econmicas que confluram no chamado 'entusiasmo pela educao', movimento que reuniu intelectuais de diferentes categorias profissionais principalmente professores, mdicos e engenheiros na propaganda da 'causa educacional'.

p. 303/304 Aps a I Guerra e sob o impacto das greves operrias de 1910, houve um refluxo das correntes imigratrias apontadas como opo das teorias racistas como recurso civilizatrio [para embranquecer o Brasil]. A partir de ento, 'organizar i trabalho nacional' com o recurso da escola, 'civilizando' as populaes negras e mestias at ento consideradas inaptas para o trabalho, passa a ser o caminho alternativo para o progresso. No outro o sentido da 'descoberta' feita pelos entusiastas da educao na dcada de 1920: a de que a educao / era o 'grande problema nacional' por sua capacidade de 'regenerar' as populaes brasileiras, erradicando-lhes a doena e incluindolhes hbitos de trabalho.

p. 305 Constituir-se a sade (e a educao) como problema nacional funcionou como espcie de exorcismo de angstias alimentadas por doutrinas deterministas que, postulando efeitos nocivos da miscigenao racial e do clima, tornavam infundadas as esperanas de progresso para o Brasil, pas de mestios sob o trpico. Para os novos intrpretes do Brasil que entram em cena nos anos 20, as teorias racistas que, desde o sculo anterior, constituam a linguagem pela qual era formulada a questo nacional, so, assim, relativizadas por uma nova crena: a de que sade e educao era fatores capazes de operar a 'regenerao' das populaes brasileiras. Sade e educao eram vistos como questes indissociveis. Alm disso, as duas lutas tinham como objetivos comuns a reforma dos servios pblicos, a modernizao do pas e ampliao de possibilidades de participao poltica e de atuao profissional (...)

p. 306 Na campanha educacional, sade, moral e trabalho compunham o trinmio sobre o qual se deveria assentar a 'educao do povo' [chamada tambm 'educao integral']. () o trabalho aparece como sntese da sociedade que se pretende instaurar. Sinnimo de vitalidade, o 'trabalho metdico, adequado, remunerador e salutar' era () o antdoto para os males do pas, condensados em representaes das populaes brasileiras como indolentes e doentias. () 'Regenerar' as populaes brasileiras, por meio da higiene e da educao, era a soluo que descobriam como alternativa aos impasses postos pelos determinismos raciais. Nesse projeto, a educao era especialmente valorizada enquanto dispositivo capaz de garantir a 'ordem sem necessidade do emprego da fora e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade', e a 'disciplina consciente e voluntria e no apenas automtica e apavorada'.

p. 307 Organizao do meio escolar nos termos das (ento) novas mximas da organizao industrial. Enraizava-se, assim, no discurso pedaggico, o que Loureno Filho [um dos defensores e tericos dessa chamada 'nova escola] identificou como uma das tendncias principais da nova pedagogia o 'taylorismo na escola': inovaes pu sistemas' que visavam 'dar maior rendimento escolar do ponto de vista da organizao das classes ou cursos'. Tal tendncia concebia a escola 'como a produo das

modernas indstrias que deve ser rpida, precisa, com perdas mnimas de energia e pessoal'.

p. 308 Na escola nova. Disciplinar no mais prevenir ou corrigir. moldar. contar com a plasticidade da natureza infantil, com sua adaptabilidade, com sua capacidade natural de ajustamento a fins postos pela sociedade. Por isso, esse otimismo conta, mais do que com a natureza, com o poder disciplinador das novas exigncias postas nos novos ritmos que a tcnica e a mquina imprimem sociedade.

Para uma histria disciplinar: psicologia, criana e pedagogia Mirian Jorge Warde (p. 311332) p. 325 A literatura 'especializada', de fins do sculo XIX e incio deste, destinada aos cursos de formao do magistrio (), bem como os 'estudiosos da pedagogia', tanto na Europa quando nas Amricas, marcada pela aceitao de dois princpios: primeiro, os estudos pedaggicos so alimentados por vrias disciplinas auxiliares; segundo, a prtica pedaggica s pode desembaraar-se do 'bom senso' e da doutrina do 'dom' se aprender com a psicologia os procedimentos experimentais, bem como o seu objeto e destinatrio privilegiado: a criana.

p. 326 Incluso da criana no quadro de preocupaes cientficas: a partir do impacto das ideias evolucionistas, tendo como Baldwin [1985, Mental Development in the Child and the Race, uma explorao da doutrina evolucionista na psicologia] um de seus principais expoentes. Na dcada de 1879, no campo da psicologia norte-americana, houve um crescente interesse pelo desenvolvimento individual da mente do homem, da infncia vida adulta. Baldwin converteu esse interesse num programa especfico de estudos sobre uma psicologia da criana (ou ontognica). Em nota de rodap, a autora cita tambm a importncia de Stanley Hall para o desenvolvimento de uma psicologia da criana. Um aluno teria teria proposto, em 1893, o termo pedologia para designar um novo ramo da cincia, cujo objeto seria a criana encarada sob os mais variados aspectos.

p. 327 Para Baldwin, a psicologia tradicional era pautada na ideia de que a alma uma substncia fixa, com atributos fixos. () Nesta concepo, 'o homem era o pai da criana': o que a conscincia adulta descobre em si mesma verdade, e as mesmas faculdades devem ser encontradas na criana. () A ideia gentica inverte tudo isso, diz Baldwin: em lugar de substncia fixa, temos o crescimento e o desenvolvimento [base da chamada psicologia funcional].

p. 327/328

A chamada psicologia funcional revelar o forte impacto das ideias evolucionistas () / Para muitos deles [os primeiros psiclogos da criana, tanto europeus quanto norte-americanos], essas ideias evolucionistas significaram a passagem de uma filosofia especulativa para uma psicologia cientfica, ou a subordinao da doutrina filosfica s descobertas cientficas. Eles estavam movidos pelo interesse em desembaraar a psicologia dos procedimentos ento considerados filosficos porque 'especulativos' e faz-las mergulhar nos mtodos experimentais (...).

p. 328 Outra tese para o comeo dos estudos em torno da criana enquanto tal, independente das consequncias para a vida adulta: para Moreira Leite, tambm teriam nascido das necessidades prticas de escolarizao universal que comeou a ser implantada na Europa nos fins do sculo XIX e no incio do XX. Dois temas marcam a virada provocada pelos estudos da criana: os temas clssicos da filosofia relativos ao conhecimento reapresentam-se, na psicologia, na forma de 'inteligncia' e 'aprendizagem'. No se trata mais de perguntar sobre as condies de possibilidade do conhecimento, mas sim sobre as condies de possibilidade de aquisio de conhecimentos j produzidos. Continuao do trecho anterior em outro pargrafo. As clssicas questes do conhecimento quando enfrentadas pelas psicologias da inteligncia / cognio ou da aprendizagem convertem-se em questes de hbitos, condutas, processos adaptativos, fases do desenvolvimento cognitivo etc.