pedro pomar uma vida em vermelho

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  • PEDRO POMARuma vida em vermelho

    Wladimir Pomar

  • PEDRO POMARuma vida em vermelho

    Wladimir Pomar

  • Wladimir Pomar

  • PEDRO POMARuma vida em vermelho

    Wladimir Pomar

    So Paulo, 2013

  • Copyright Wladimir PomarPrimeira edio: EJR Xam Editora Ltda., 2003.

    Segunda edio: Editora Fundao Perseu Abramo, 2013.

    Fundao Perseu AbramoInstituda pelo Diretrio Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.

    DiretoriaPresidente: Marcio Pochmann

    Vice-presidenta: Iole IladaDiretoras: Ftima Cleide e Luciana MandelliDiretores: Artur Henrique e Joaquim Soriano

    Editora Fundao Perseu AbramoCoordenao editorial

    Rogrio ChavesAssistente editorial

    Raquel Maria da CostaCoordenao desta edio

    Valter PomarReviso e preparao de originais

    Ceclia LuedemannPedro Estevam da Rocha Pomar

    Edio de arte, capa e editorao eletrnicaCaco Bisol

    P784p Pomar, Wladimir. Pedro Pomar : uma vida em vermelho / Wladimir Pomar. So Paulo : Editora Fundao Perseu Abramo, 2013. 360 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7643-134-3

    1 1. Pomar, Pedro, 1913-1976. 2. Comunistas - Brasil - Biografia. 3. Comunismo - Brasil. 4. Revolucionrios - Brasil - Biografia. 5. Brasil - Poltica e governo - Sc. XX. I. Ttulo. 2 3 CDU 929:329.14(81) CDD 920.9364131

    (Bibliotecria responsvel: Sabrina Leal Araujo CRB 10/1507)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Este livro obedece s regras do Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Editora Fundao Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 244

    04117-091 So Paulo SP BrasilTelefone: (11) 5571 4299 Fax: (11) 5571-0910

    Correio eletrnico: [email protected]

    Visite a pgina eletrnica da Fundao Perseu Abramowww.fpabramo.org.br

    www.efpa.com.br

  • Para todos os que conviveram com Pomar e sabem queo homem foi muito maior do que sua biografia.

  • SUMRIO

    Apresentao edio digital 9Apresentao 1 edio impressa 15 Nunca ests s com o povo mido 19

    2 Possante a lei, necessidade o mais 31 3 Mas quem me segue nunca tem repouso 494 O que se ignora o que mais faz falta 61

    5 Sem erros jamais chegas razo 736 Em tudo h formao e vida ativa 83

    7 Contudo, nunca a morte apario bem vista 93 8 Se queres ser, s por tua prpria mo 105

    9 Cem iluses e um raio de verdade 11910 Entre homens sentirs ser homem 133

    11 Revelas-me a mim mesmo 14712 Toda a misria humana aqui me oprime 163

    13 S vejo como se atormenta o humano ser 17914 Nossas aes nos obstruem o curso da vida 19315 Hs de saber viver, assim que em ti confiares 207

    16 Parte da parte eu sou 217 17 Qual barro aguado molho o ouro e o transmudo 229

    18 a fbrica do pensamento, qual mquina de tecimento 241 19 Do esprito me vale a direo 251

    20 De outra interpretao careo 26121 Com o hbito que vem o apreo 275

    22 Erra o homem, enquanto a algo aspira 287 23 curto o tempo, longa a arte 301

    24 Ecos de outrora esto no nada imersos 31725 Esse a quem amo, quem almeja o impossvel 329

    26 Haveis de ser sempre o que sois 343Referncias Bibliogrficas 353

  • APRESENTAO DA EDIO DIgITAl

    Entre os que tiveram papel relevante na histria dos comunistas brasileiros, Pedro Pomar parece ir ganhando, com o tempo, crescente relevncia. A primei-ra tentativa de no deixar a memria de sua vida cair no esquecimento ocorreu em 1980, com o lanamento da coletnea Pedro Pomar. Somente bem depois, em 2003, aps uma extensa pesquisa iniciada anos antes, que conseguimos lanar a primeira edio, impressa, de Pedro Pomar Uma Vida em Vermelho. Uma dcada depois, por motivo do centsimo aniversrio do nascimento de Pomar, o jornalista Osvaldo Bertolino, com o apoio da Fundao Maurcio grabois, lanou Pedro Po-mar Ideias e Batalhas. E a Fundao Perseu Abramo decidiu publicar esta edio digitalizada de Pedro Pomar Uma Vida em Vermelho.

    Como frisamos na Apresentao da primeira edio impressa deste livro, Pomar era no s um comunista revolucionrio profissional, cuja sobrevivncia dependia do trabalho partidrio e dos recursos pecunirios decorrentes, mas igual-mente algum que se dedicava completa e totalmente perspectiva e ao de transformar a sociedade e mudar as condies de trabalho e de vida das classes que considerava exploradas e oprimidas pela burguesia e por outras classes dominantes.

    A sua vida familiar e a sua vida pessoal eram irremediavelmente subor-dinadas quele profissionalismo especial de vida, de tal modo que no era pos-svel distinguir um lado poltico e um lado humano. O seu ser poltico era impregnado de humanismo. Por isso, era to apegado a autores como goethe, Shakespeare e Marx, para os quais nada do que humano era indiferente. E o ser humano de Pomar era um ser poltico, no qual chocavam-se, harmonizavam--se, dissolviam-se e amalgamavam-se as qualidade e defeitos de sua poca, de seu povo e de seu partido.

    Em muitas ocasies, ele parecia ser um intelectual orgnico fora de lugar. Numa poca em que a autoridade do poder partidrio era norma entre a maio-ria dos dirigentes comunistas, a maior parte deles intelectuais, ele era capaz de procurar convencer, com argumentos compreensveis, queles que divergiam das orientaes partidrias. Isso, mesmo no caso de ele prprio tambm discordar delas. Era de sua natureza.

    Tambm por isso, nos trabalhos escritos de Pomar preciso distinguir o que era a explanao de uma deciso partidria daquilo que ele prprio pensava a respeito. Ele era e sempre foi um homem de partido. Isto , algum que se submetia s decises da maioria, e das direes partidrias, mesmo no concordando com elas. E que era capaz de aplicar tais decises tanto na elaborao terica quanto na

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  • prtica cotidiana. Essa atitude foi posta prova em muitos momentos de sua vida. evidente que essa distino no fcil. Ela necessita de um extenuante proces-so de garimpagem e de comparao entre, por um lado, documentos elaborados nos processos de debate interno, e por outro lado documentos que exprimem as decises coletivas.

    Pomar nunca abandonou, na preocupao e na prtica partidria, a con-vico de que revolues e aes transformadoras dependem da participao de grandes massas. Essa convico ganhou consistncia nos anos 1940, quando ele se tornou o principal dirigente do comit estadual do Partido Comunista (PCB) em So Paulo, e se convenceu de que a mobilizao de grandes massas s seria possvel se o partido estivesse enraizado nas fbricas, bairros, escolas, sindicatos, associaes e outras formas de organizao da base da sociedade.

    Em outras palavras, sem estar ligado, atravs de inmeros fios, laos e pon-tes, s massas trabalhadoras, populares e democrticas, conhecendo suas reivin-dicaes, suas demandas e sua fora, a ao do partido seria o que ele costumava chamar de blanquista. Isto , poderia gerar aes heroicas, mas que levariam ine-vitavelmente ao fracasso e a danos na organizao partidria e na conscincia das grandes massas. Para evitar isso, a preocupao permanente do partido deveria ser a criao de bases polticas, onde quer que seus militantes estivessem. Essa linha de pensamento esteve presente durante a fase de reestruturao partidria dos anos 1940; na fase de ascenso das lutas operrias dos anos 1950; durante o processo de criao e organizao do PCdoB nos anos 1960; e na preparao e posterior avaliao da luta armada, nos anos 1960-1970.

    Mesmo nos anos 1960, em que a luta armada era chamada de quinta tarefa mas, na prtica, se tornava crescentemente a primeira, deve-se em grande parte a Pomar o fato de a 6 Conferncia Nacional do PCdoB adotar uma ttica de alian-a com as mais diversas foras polticas antiditatoriais, propugnando a convocao de uma Assembleia Nacional Constituinte. Essa ttica se tornou predominante nas aes de quase todas as foras antiditatoriais no final dos anos 1970 e incio dos anos 1980.

    O problema consistiu sempre no fato de que a linha de pensamento que preconiza a participao inarredvel das grandes massas inatacvel do ponto de vista terico, mas pode ser colocada de lado na atividade prtica, criando uma contradio cujos resultados s se tornam visveis com o desastre. A histria dos comunistas e outros revolucionrios, no Brasil e no resto do mundo, est coalhada de fracassos relacionados falta de aplicao rigorosa daquela linha de pensa mento em suas atividades prticas.

    A poltica de luta armada contra a ditadura militar foi um exemplo trgico dessa dicotomia entre a ausncia de uma prtica de construo de bases polticas e a prtica das aes militares. Isso nada tem a ver com o fato de que a luta armada

    Pedro Pomar, uma vida em vermelho10

  • no Brasil, que levou morte heroica muitos combatentes revolucionrios, co-munistas e no comunistas, deu sua contribuio de sangue para que a ditadura militar colocasse a nu sua brutalidade antipopular e antidemocrtica e apressasse seu fim. Hoje, essa contribuio comea a ser admirada pelas novas geraes que tomam conhecimento dela, mas no desfaz o fato de que foi derrotada.

    A prtica da luta armada poderia ter contribudo ainda mais para o fim da ditadura se houvesse construdo bases polticas em muitas regies do pas e houvesse adotado a estratgia defensiva de resistncia. No entanto, desligadas da realidade poltica das massas populares, e confundindo a luta armada restrita dos posseiros com a luta contra o regime, as foras guerrilheiras do Araguaia adota-ram uma estratgia ofensiva de combate frontal s foras repressivas, na errnea suposio de que as condies objetivas para a revoluo estavam maduras e as massas seguiriam os combatentes.

    A crtica cuidadosa de Pomar, tanto guerrilha do Araguaia, quanto s outras formas de guerrilha que no contaram com bases de massa, tinha como fio condutor aquela linha de pensamento sobre o papel das massas, que considerava como um dos princpios da ao partidria. Crtica tanto mais cautelosa quanto aquela avaliao colocava em risco a unidade do partido, j que alguns dirigentes de ento se articulavam e trabalhavam no sentido de repetir a mesma poltica que levara a guerrilha ao desastre.

    Tal unidade era fundamental. Sem ela seria difcil reorganizar o partido, adotar a ttica de fingir-se de morto, para escapar da sanha da represso, enfrentar as novas polticas de distenso da ditadura, colocar de lado o boicote s eleies, comeando a apoiar candidatos do MDB, e retomar o trabalho sindical. Embora Pomar continuasse repetindo que a ditadura no seria derrotada sem a luta arma-da, na prtica ele procurava preparar o partido para novas condies ainda no totalmente claras no horizonte poltico brasileiro.

    O massacre de 16 de dezembro de 1976, no bairro da lapa, em So Paulo, destruiu todo o processo em curso e criou uma situao partidria totalmente nova. Tal situao se mostrou ainda mais complexa quando Pomar, no final da reunio da direo do PCdoB, confidenciou que Jover Teles, por questes de segurana do partido no Rio de Janeiro, no deveria ter sido convocado. Em vista das explicaes esquivas dadas por Jover na reunio da comisso executiva, Pomar considerava que a direo do partido corria o risco de cair a qualquer momento, pela ao repressiva das Foras Armadas, e que seria necessrio escla-recer quem autorizara um emissrio do Comit Central, Srgio Miranda, a passar quele dirigente o ponto de encontro.

    logo depois do massacre, alguns dirigentes que se encontravam no exte-rior atriburam a queda da reunio a um possvel liberalismo de Pomar diante das regras de segurana clandestina. Essa suposio se manteve forte apesar do co-

    Apresentao edio digital 11

  • municado de um dos dirigentes presos na operao do Exrcito, de que havia mais de uma evidncia de que Jover praticara um ato de traio. Preferiu-se afirmar que esse preso havia falado tudo durante os interrogatrios, com o intuito de desquali-fic-lo. Porm, a verdade que, embora os dirigentes comunistas presos na ocasio tenham sido brutalmente torturados, no houve prises posteriores. Vale dizer, o Exrcito no conseguiu obter deles informaes que permitissem novas capturas.

    Somente aps a anistia, em 1979, com a descoberta casual de Jover em Porto Alegre, vivendo ainda com nome clandestino, houve mudana na aprecia-o das causas da queda da reunio de dezembro de 1976. Porm, mesmo assim, jamais foi esclarecida a responsabilidade pela convocao de Jover Teles para as reunies da comisso executiva e do Comit Central do PCdoB. Apesar da re-velao de Pomar em contrrio, Srgio Miranda manteve sua verso de que fora autorizado pela comisso de organizao e, ao falecer em 2012, levou consigo a verdade para o tmulo.

    A suposio de Pomar de que havia risco de queda concretizou-se imedia-tamente, com o assassinato dele, de ngelo Arroyo e de Joo Baptista Drummond, e com a priso dos demais membros da reunio, com exceo de Jover Teles e de Jos gomes Novaes. Este, por uma eventualidade, escapou de ser preso por sair da casa na mesma viagem do traidor, a quem os rgos de represso deixaram fugir, cumprindo o trato de no realizar uma queima de arquivo, como s vezes aconte-cia. Desse modo, foi possvel identificar mais rapidamente quem havia passado ao Exrcito as informaes sobre a reunio do Comit Central. O que permitiu supe-rar as acusaes levianas feitas a Pomar, referentes a uma suposta responsabilidade direta sua na descoberta da casa da lapa.

    Por outro lado, paradoxalmente, continuam em voga algumas hipteses sobre mudanas do pensamento de Pomar a respeito de outras questes que per-maneceram pendentes, ou foram superadas de modo diferente do que ele pensava. Embora sejam hipteses impossveis de verificao, podendo ser utilizadas apenas como construes retricas, elas tentam justificar polticas contra as quais Pomar se rebelava. Para ajudar as novas geraes a conhecerem boa parte da histria do desenvolvimento capitalista no Brasil e das dificuldades da luta de classes, seria muito mais coerente fazer a crtica histrica de seu pensamento real, em compara-o com a realidade de seu tempo.

    No final de sua vida, ele teve a coragem de prestar uma sentida e ele-vada homenagem aos que tombaram na guerrilha do Araguaia. Ao mesmo tempo, no vacilou em apontar que uma guerrilha desligada da ao de gran-des massas, e sem base poltica, estaria fadada derrota. Tal viso se chocava, ento, contra a tentativa de retomar a mesma poltica de preparao militar desligada da construo de bases polticas de massa. Olhando em retrospecti-va, esta poltica foi varrida pelas mudanas que sacudiram o Brasil. Mas a maior

    Pedro Pomar, uma vida em vermelho12

  • parte do pensamento de Pomar manteve suas condies superiores de adapta-o emergncia de uma forte classe trabalhadora industrial e aos demais acon-tecimentos que levaram democratizao do pas e ao fim o regime militar. Portanto, Pomar merece ser homenageado, no centsimo aniversrio de seu nasci-mento, principalmente pelo que foi, fez e deixou escrito para as geraes futuras. Em meio aos cenrios de sua poca, ele levantou preocupaes sobre questes humanas universais, como a necessidade de carter e de princpios ideolgicos, de estudar as cincias e a realidade concreta das sociedades humanas, em especial da sociedade brasileira, e de obter cultura para servir ao povo e classe trabalhadora, e no para deleite prprio. E sustentou, principalmente, a necessidade de evitar a tendncia de erigir pessoas e grupos heroicos como salvadores do povo. Este, tendo frente a classe trabalhadora, deveria ser encarado como o nico capaz de salvar a si prprio e, massivamente, construir uma nova sociedade.

    Wladimir PomarRio de Janeiro, agosto de 2013

    Apresentao edio digital 13

  • APRESENTAO DA 1 EDIO IMPRESSA

    A fim de imaginarmos, de forma aproximadamenteprecisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada

    de estudar sua poca, fase em que podemos at mesmo ignor-la, para depois, a ela retornando, encontrar o maior agrado

    na sua contemplao. J. W. goethe, carta a K. F. Zelter, 1828

    A ideia de elaborar uma biografia de Pedro Pomar nasceu de caminhos varia-dos e inesperados. Inicialmente, na tentativa, quase imediata, de no deixar que sua morte trgica casse no esquecimento, com a publicao, em 1980, do livro Pedro Pomar, organizado por luiz Maklouf Carvalho, com uma apresentao feita por mim, depoimentos de Clvis Moura, Joo Amazonas, Reinaldo laforgia (Arnaldo Mendez) e uma coletnea de textos do prprio Pomar. Depois, no longo e nem sempre indolor amadurecimento a que fomos forados, em virtude de comentrios esparsos e da historiografia publicada no Brasil, que nos apresentavam um homem diferente do que conhecramos.

    Talvez o primeiro desses comentrios, simples e sincero na sua forma, mas agudo em seu contedo, tenha sido o de Milton Temer quando me perguntou, numa roda de amigos e companheiros, no final dos anos 1980: Que diria o velho Pomar se visse o filho como dirigente petista? A inteno pode ter sido outra, mas aquilo soou a meus ouvidos como que diria o velho, sectrio, mandonista e stalinis-ta Pomar se visse seu filho como dirigente de um partido democrtico como o PT?.

    Nos anos posteriores, ao tomar conhecimento paulatino das memrias e re-constituies histricas do Partido Comunista Brasileiro, PCB (o Partido Comu-nista do Brasil, PCdoB, por um vis preconceituoso que s vezes acomete nossos historiadores, ainda no foi objeto de muitos estudos idnticos), fui-me dando conta de que, invariavelmente, meu pai era um homem fora do lugar em pratica-mente todas elas. No se tratava de nada premeditado, tendencioso ou malvolo, a no ser raramente, mas de desinformao mesmo, de desconhecimento da prpria histria vivida, em virtude das condies de clandestinidade e de um sistema orga-nizativo que funcionava como espelho deformante da realidade refletida.

  • Seja tambm por isso, seja por outros motivos, meus filhos comearam a pressionar-me para prepararmos uma biografia do av. Um pequeno projeto foi esquematizado em 1994, mas os custos previstos para as pesquisas e o trabalho de elaborao mostraram-se elevados para as condies em que vivamos. Embora continussemos reunindo documentos e entrevistando pessoas que haviam conhe-cido ou convivido com Pomar, no se poderia dizer que isso viesse a levar, mesmo a mdio prazo, ao texto que desejvamos.

    A partir de 1996, a possibilidade de contarmos com a indenizao a que as famlias dos mortos e desaparecidos polticos vtimas da ditadura militar (1964-1985) tiveram direito pois Pedro Pomar fora assassinado por foras policiais e militares em 16 de dezembro de 1976, no bairro da lapa, em So Paulo abriu as condies para que acelerssemos aquela atividade e pudssemos ter a biografia pronta ao se completarem 25 anos de sua morte. Foi o que fizemos a partir do momento em que tal indenizao materializou-se, ainda que apenas em parte, isto devido a um processo judicial que contestou a utilizao daqueles recursos nos trabalhos de preparao da biografia.

    Antes mesmo de empreendermos o trabalho de elaborao propriamente dito, demo-nos conta, mais at do que quando convivemos com Pomar, que a maior parte de sua vida correu paralela e integrada vida do PCB e, depois, do PCdoB. Pomar no era apenas um comunista revolucionrio profissional, no sen-tido de que sua sobrevivncia dependia do trabalho partidrio e dos recursos pecu-nirios da advindos, mas um ser humano que se dedicava completa e totalmente perspectiva e ao de transformar a sociedade e mudar as condies de trabalho e de vida das classes que considerava exploradas e oprimidas pela burguesia e por outras classes dominantes.

    A sua vida familiar e a sua vida pessoal eram irremediavelmente, ento, subordinadas quele profissionalismo especial de vida, lampejos que emergiam de sua vida comunista, mas que tambm estavam iluminados por ela. Em Pomar no possvel distinguir um lado poltico e um lado humano. O seu ser po-ltico era impregnado de humanismo: talvez por isso fosse to apegado a goethe, Shakespeare e Marx, aos quais nada do que humano lhes era indiferente. E o ser humano de Pomar era um ser poltico, no qual chocavam-se, harmonizavam-se, dissolviam-se e amalgamavam-se as qualidades e defeitos de sua poca, de seu povo e de seu partido.

    Em tais condies (e buscando seguir a recomendao de goethe que consta da epgrafe acima), enveredamos pela histria do PCB e do PCdoB, os partidos de Pomar, ao mesmo tempo um e vrios outros. E caminhamos por longos trechos da histria de nosso pas e de nosso povo, assim como das influncias externas

    Pedro Pomar, uma vida em vermelho16

  • que agiam sobre eles, na esperana de compreender a poca, as possibilidades e os limites que condicionavam os sonhos, a vida e as aes de Pomar.

    Foram inmeras as pessoas que me ajudaram nessa tarefa, concedendo entrevistas, transmitindo informaes, fornecendo documentos, sem os quais provavelmente no teramos tido condies de trazer luz vrias das facetas que compunham a personalidade de nosso biografado.

    Deixo registrados meus agradecimentos aos antigos militantes comunis-tas Apolonio de Carvalho, Armnio guedes, Carlos Alberto Ferrinho, Carlos Aveline, Davi Rosenberg, Jorge lemos, Joseph Schneider, luiz Vergatti, Ma-noel Costa e Maurcio Caldeira Brant, pelas entrevistas que concederam; a Carlos Eduardo Carvalho, Fernanda Coelho, Horcio Martins de Carvalho e Mariaugusta Caio Salvador, por nos fornecerem memrias escritas; a Antonio Draetta, pelas fotografias que cedeu.

    Minha gratido se estende aos paraenses de bidos, Santarm e Belm, que muito ajudaram o autor. Adelson Moraes, Antonio Arajo Aquino, Cha-guita Pantoja, Dantas Feitosa, Edmilson Rodrigues Brito, Haroldo Amaral de Souza (que nos cedeu a correspondncia de Pedro e Roman e diversas foto-grafias), Haroldo Tavares da Silva, Herclito Andrade, Joo Augusto Picano Farias, Joo Oliveira, Jos Figueiredo, Jos Figueiredo DAssumpo (Zeca), Manuelina Arajo Aquino, Olavo Marinho, Orlandina Ferreira (Dinoca), Oziel Martucelli, Paulo Andr Barata, Rochele Ferreira Martucelli, Waldir de Azevedo Bentes e Pery Arajo Filho (Perizinho, falecido em 2001).

    Sou grato, ainda, a Joo Candido Portinari e ao Projeto Portinari, pela colaborao valiosa e espontnea; ao militante comunista e ex-deputado lucia-no lepera; aos pesquisadores Marcos Del Roio e Paulo Fontes, pelas sugestes; a Plnio de Arruda Sampaio, por seu depoimento; a Rogrio Yamamoto, por sua ajuda na preparao da iconografia; jornalista Rosa Maria de Paiva leal, pela pesquisa nas Cadernetas de Prestes; aos funcionrios do Museu de Piura (Peru), em especial a Juan Zurita; a Teresa luna Revoredo de Cossio e luis Cossio Marino, pela hospitalidade; a Carmen Souza, Hlio Campos Mello, Nair Benedicto, Samuel Iavelberg e Vladimir Sacchetta, pelas fotografias que enriquecem este trabalho.

    Sem a colaborao voluntria de Pedro Estevam, Vladimir Milton, Valter e Rachel Pomar dificilmente teria sido possvel realizar as pesquisas necessrias ao trabalho e corrigir muitas das imprecises dos rascunhos originais.

    Sem os documentos da polcia poltica e dos servios militares de infor-mao, colocados nossa disposio pelo Arquivo do Estado de So Paulo e pelo Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, e sem o relativamente rico

    Apresentao 1 edio impressa 17

  • acervo bibliogrfico j existente no Brasil sobre os movimentos sindicais, po-pulares e sobre os comunistas, dificilmente teria sido possvel tentar a pintura dos cenrios de poca.

    De qualquer modo, cabe apenas ao autor toda a responsabilidade pelas interpretaes decorrentes. S espero que os leitores saibam perdoar os possveis deslizes filiais num trabalho em que, para ser inteiramente isento, o autor deveria manter distanciamento adequado em relao a seu objeto de estudo.

    Wladimir Pomar Rio de Janeiro, 25 de setembro de 2001

    Pedro Pomar, uma vida em vermelho18

  • 1 NUNCA ESTS S COM O POVO MIDO

    Os vestgios de meus dias, na Terra passados Nem em milnios podero ser apagados.

    J. W. goethe (Fausto)

    1976, So Paulo: dezembro, noite do dia 11 1973-1974, Brasil. A gente cr que empurra, e vai sendo empurrada

    Mrio seguia alerta pelas ruas da Vila Mariana, na parte que descambava para o Parque do Ibirapuera. Sempre gostara de manter seu escritrio por ali. Por um lado, a iluminao era insuficiente, fazendo com que todas as pessoas parecessem pardas, como gatos matreiros esgueirando-se pelas sombras. Por outro, havia uma boa mistura de sobrados residenciais e pequenas casas de comrcio, com muita gente circulando pelas ruas, principalmente no horrio que ia das seis at oito e meia, nove horas da noite. Alguns, apressados, talvez ansiosos para chegar logo em casa, ou atrasados para algum encontro, nem sequer olhavam para os lados. Outros, simplesmente passeando, fazendo hora para algum programa mais tarde, como ele prprio, ou indo para um bar, beber uma cerveja e bater papo com os amigos.

    Sentia-se mais seguro onde havia mais gente. Preferia andar de nibus, ou trafegar no meio dos aglomerados humanos, como uma sardinha no cardume. Mas no se permitia baixar a guarda e, como um coelho arisco, arriscava olhadas rpidas para verificar se estava sendo seguido ou observado. Nos seus sessenta e trs anos, Mrio vivera pelo menos trinta e dois na clandestinidade, nos subterrneos da vida poltica, como militante comunista. Agora, no final do ano da graa de 1976, vivendo em So Paulo, quase como um nufrago solitrio em mar revolto, atravessava um dos perodos mais difceis e cruciais de sua existncia. Tinha que selecionar cuidadosamente os encontros com outros companheiros, em pontos de rua, escritrios itinerantes, durante os quais conversava o essencial.

    Pressentia o cerco apertar-se. Sua organizao, o Partido Comunista do Bra-sil (PCdo B), transformara-se em alvo preferencial da mquina repressiva do gover-

  • no. Nutria a certeza de que essa mquina, como um triturador ensandecido, esta-va determinada a destru-los. No comeo, a represso poltica os considerou um grupo inexpressivo, sem muito peso no universo das organizaes revolucionrias. Depois, dera-se conta de que o PCdoB, com a guerrilha do Araguaia, fora capaz de pregar um susto inesperado ao regime. E passara a desmantel-lo por partes, ao mesmo tempo que liquidava as demais. At o ponto em que j no havia muita coisa a destruir entre as organizaes clandestinas de oposio ditadura e, do partido que ajudara a reorganizar em 1962, restara muito pouco.

    Considerava-se condenado morte. No, no era uma simples suposio. Em 1968, recebeu um recado claro e direto de um militar de alta patente do Exrcito:

    Saiam do pas, no haver contemplaes, nem prisioneiros. De l para c, as quedas e os assassinatos de militantes das organizaes

    clandestinas, mesmo daquelas no envolvidas com a resistncia armada, vieram num crescendo. Mal ou bem, com as medidas de segurana e com a deciso de no cometer aes armadas urbanas, muito menos assaltos a bancos, que amea-avam transformar-se em simples banditismo, seu partido no sofrera golpes profundos por algum tempo. Mas, desde 1972, aps os organismos de represso militar e policial descobrirem que o partido preparava, de fato, a guerrilha rural, eles descarregaram sua fria, como uma avalanche destruidora, sobre a parte da direo que se encontrava nas cidades, enquanto realizavam suas campanhas militares contra os guerrilheiros.

    Cortavam a cabea para liquidar o corpo. Os rgos de represso tinham uma longa experincia e uma incomparvel folha corrida de degoladores, que atravessava a histria. Mrio lembrou-se dos bandeirantes mercenrios contra os quilombolas, do esquartejamento do Inconfidente mineiro, do enforcamento dos alfaiates insurretos e do fuzilamento dos padres confederados nordestinos. Reme-morou as cabeas cortadas dos balaios e cabanos do norte, dos paraguaios, dos federalistas gachos, e dos camponeses de Canudos, Contestado e Pau de Colher. O assassinato de posseiros em Porecatu e Trombas-Formoso era apenas a conti-nuidade histrica de uma prtica que vinha da poca colonial. Com a ditadura militar, voltara a ser transformada em poltica terrorista de Estado.

    Na razia desencadeada, em pouco mais de um ano os aparelhos de represso prenderam um grande nmero de militantes e praticamente a metade do Comit Central (CC). Abateram, sem qualquer contemplao e sob torturas terrveis, Da-nielli, lincoln, guilhardini, Frutuoso e Bicalho Roque. No Araguaia liquidaram o Maurcio e mais de sessenta companheiros, alguns muito jovens. Da sua gerao, ainda vivendo clandestinamente no pas, haviam sobrado o Cid, o Rui e ele. Jota e Valdir eram da segunda gerao, que tambm j sofrera um bocado de baixas. As medidas de proteo que haviam adotado mostraram-se ineficazes, incapazes de proteger o partido do sistema de extorso de confisses sob torturas brutais.

    Pedro Pomar, uma vida em vermelho20

  • O diabo, pensava, que havia companheiros aferrados ideia de que a fria repressiva era apenas sinal da fraqueza do regime. Para eles, bastaria reorganizar o dispositivo militar, numa regio favorvel, para espalhar o incndio revolucionrio pelos cerrados, florestas e cidades. O milagre econmico e a derrota do Araguaia no lhes ensinara nada. Cid e Jota, mesmo por motivos diferentes, teimavam em no aceitar a influncia poltica do milagre e em no reconhecer o significado da derrota no sul do Par. Achavam que as condies objetivas para o desencadea-mento da luta armada, como uma fruta que chega ao ponto de ser comida sem o travo da cica, continuavam maduras. No caso do Araguaia, aceitavam apenas a existncia de erros militares e tticos, facilmente evitveis no futuro. Queriam comear tudo de novo, do mesmo jeito.

    O Rui, por seu lado, recusava-se a sair do Rio de Janeiro e podia cair a qual-quer momento. Seu dispositivo era um queijo suo, com mais furos que ralador de mandioca. No Rio de Janeiro foram paulatinamente desbaratados o Comit Martimo, o pessoal que formou a Ala Vermelha, a Unio da Juventude Patritica, o Comit Rural, at descerem a espada sobre o Comit Regional leste e liquida-rem com vrios membros do Comit Central. Mesmo assim, o Rui ainda jurava de ps juntos que estava seguro. E o Cid, para fazer mdia, ainda concordava com ele.

    O pessoal da AP (Ao Popular), que se incorporara ao partido h pouco, era um bom reforo humano. Mas tambm vinha de uma srie de perdas e divi-ses, pegara o bonde do partido andando e se desconjuntando, e tinha dificuldade em situar-se no debate interno. No, no estava fcil implantar uma poltica para proteger a organizao. Tinham que definir uma nova ttica geral, transmiti-la rapidamente a todos que haviam restado e, no trabalho de organizao, fingir-se de morto, ligar-se e incorporar-se vida e ao cotidiano do povo, se dispersar, e evitar ajuntamentos por um longo perodo, para no sofrer golpes, e sobreviver.

    No dava mais para fazer reunies como a que teriam nos prximos dias. Mas como evit-las antes de definir a poltica? E como definir a ttica sem com-pletar a avaliao crtica do Araguaia, que j ia para dois anos? Era uma roda-viva e Mrio pressentia que acabariam caindo antes de conseguir tais definies.

    E Santa, sua mulher, como ficaria? Sobreviveria? Tivera que pinar as car-tidas para evitar o rompimento do aneurisma cerebral, sem qualquer garantia de sobrevida. O mdico falara em um ms! trs! seis! Um ano? Quem sabia? Podia perd-la a qualquer momento. No teria mais a companheira que estivera sempre com ele, havia mais de quarenta anos. Primeiro, cheia de vigor, entusiasmo juvenil e muito amor. Depois, com um crescente travo de amargura por no entender as divises e as injustias internas. Em hiptese alguma a deixaria nessa situao para se ausentar do pas e ir Albnia e China, como a direo acertara. Cid tivera que se curvar evidncia e, mesmo a contragosto, ir em seu lugar. Fora difcil conseguir outro passaporte e montar o esquema de sada, mas afinal funcionara.

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  • Mrio notou que estava adiantado para o ponto de encontro. O jeito era continuar andando, olhando vitrinas como pssaro ciscando em busca de miga-lhas, testando se no arrastava nenhum rabo estranho e divagar sobre os perigos que os rondavam. Quanto mais o ditador de planto falava em distenso, mais tenazmente o sistema militar aplicava a poltica de limpar o terreno, varrendo dele os lderes da oposio revolucionria. Tornara-se uma constncia a eliminao e o desaparecimento das lideranas clandestinas que haviam restado aps a matana promovida por Mdici.

    Militantes da AlN (Ao libertadora Nacional) foram fuzilados num cam-po de futebol em gois, na presena de todo mundo, sob a justificativa de que eram terroristas. Ningum sabia onde estavam presos Honestino, Wright e ou-tros dirigentes da Ao Popular Marxista-leninista. lamarca havia sido fuzilado e Onofre e os demais dirigentes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionria) esta-vam desaparecidos. Com certeza haviam cado e sido liquidados. O partido tivera o cuidado de alertar a VPR sobre o trabalho policial do Anselmo. Arruda conver-sara com Onofre no Chile, mostrara por a + b que o Cabo era agente infiltrado, mas ele simplesmente no quisera ouvir.

    O mesmo ocorreu com o Partido, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). No quis nem conversar sobre o fato de que a guerra suja do regime no era apenas contra os grupos armados, mas contra todos os que se opunham, at frouxamen-te, ao regime. Acreditou na conversa do golbery e no anncio da distenso, sem compreender que ela se destinava a consolidar o domnio dos grupos no poder por meio da democratizao entre eles, mas no da democratizao geral. Assim desa-pareceram Capistrano, Maranho, Massena, Hiran, Elson, Nestor Vera e Bonfim, todos companheiros com quem militara durante muitos anos. Rui Frazo, que viera da AP para o PCdoB, recebera o recado das quedas que o punham em peri-go, mas no acreditou que corria perigo iminente. Pegaram-no em plena feira de Petrolina, na frente de vrias testemunhas, e desapareceram com ele.

    As direes das organizaes revolucionrias estavam sendo ceifadas de seus quadros mais experientes, com uma meticulosidade digna dos matadores em srie, uma espcie de soluo final para impedir que desempenhassem qualquer papel ativo na reorganizao popular e de esquerda, caso o regime militar tivesse que recuar. Calculava que j deveriam existir mais de trezentos militantes abatidos, dos quais somente uns cinquenta em combate real. Os demais haviam sido aprisio-nados e, aps torturas e sevcias, assassinados. Muitas famlias no tiveram nem a chance de resgatar os corpos de seus entes.

    Mrio sempre acompanhara com ateno as notcias e informaes sobre quedas, no s do partido, mas das demais organizaes clandestinas. Ainda man-tinha contatos sigilosos com amigos e simpatizantes de velha data que trabalhavam na mquina pblica e, em alguns casos, at mesmo muito prximos dos sistemas

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  • de informao. No os abria para ningum e, quando era inquirido sobre a fonte da informao de quedas, torturas e assassinatos, simplesmente respondia:

    Algum falou para um companheiro. Realizava, ento, esforos at temerrios para que essas informaes fos-

    sem tornadas pblicas e para que as instituies que ainda possuam condies de atuao legal fossem avisadas e procurassem fazer alguma coisa em defesa dos presos. Pressionava os membros do partido no exterior a informar os exilados e suas organizaes sobre quedas ou problemas de infiltrao policial. lia com aten-o as cpias dos processos dos presos polticos preparados em cartrio, mesmo entendendo que ali s se encontrava uma parte do que a mquina repressora sabia. E ficava cada dia mais apreensivo com o fato de que a ditadura conseguira fazer um mapeamento minucioso de todas as organizaes revolucionrias, inclusive de seu partido. Pouco adiantaram os alertas de que se tratava de uma guerra em que as convenes humanitrias nada valiam. O que sobrara estava por um fio.

    Apesar de tudo, tambm nunca estivera to esperanoso. Os milicos haviam acreditado em seu prprio milagre econmico e prometido um Brasil Potncia. Mas um e outro assemelhavam-se mais a uma tempestade e a um pesadelo de vero. A produo industrial e a produo bruta do pas ainda eram elevadas mas, como as mars, estavam em refluxo. A construo civil, com o dinheiro do Fundo de garantia dos Trabalhadores transformado em crditos do Banco Nacional de Habitao (BNH), multiplicara os apartamentos de luxo e as moradias para as classes mdias, arrastando o crescimento das indstrias de material de transporte, material eltrico e de bens durveis. Isso havia impulsionado a siderurgia, a meta-lurgia, a mecnica, a construo naval e aeronutica, a qumica.

    De trambolhada com a conquista da Copa do Mundo de 1970, a propagan-da oficial levou o povo a crer que o crescimento desses setores, de 15%, 20% ou mais ao ano, seria para sempre. Estariam, ento, criadas as condies para distri-buir entre todos o bolo da riqueza. Primeiro crescer, depois distribuir, foi o mote cunhado pelo czar da economia, Delfim Netto, e repetido sem cessar. E muita gente depositou sua f nesse milagre, ignorando o que se passava com as indstrias produtoras para o mercado de baixa renda, como a txtil, a de produtos alimenta-res, a de vesturio e a de calados, que cresciam bem mais devagar e, mesmo assim, porque exportavam grande parte da produo.

    A propaganda do Brasil Potncia s falava da transformao do Brasil de pas exportador de produtos primrios para um potente exportador de manufa-turados. De importador de carros, navios, aparelhos domsticos, havamos nos tornado produtores e exportadores de tudo isso. Como acreditar que o futuro no era risonho?

    Por trs dessa propaganda escondia-se uma realidade pouco lisonjeira. As importaes de manufaturados estrangeiros haviam aumentado muito, uma de-

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  • monstrao de que o pas no produzia bens de produo e nem dominava todas as cadeias produtivas e tecnologias necessrias. Nosso crescimento dependia, em grande parte, do endividamento externo e dos investimentos estrangeiros. Se estes falhassem, estaramos em maus lenis. Haviam se tornado necessrios como as sanguessugas, que aliviam os doentes, mas podem lev-los morte.

    O poder aquisitivo do mercado de baixa renda, formado pelos trabalha-dores sem qualificao profissional e pelos migrantes desamparados do campo, com salrios comprimidos ou simplesmente sem salrios, era uma miragem. O povo que inchava as grandes cidades mal conseguia comprar o que necessitava para comer. Somente os trabalhadores especializados e as classes mdias instrudas conseguiam salrios razoveis para participar do mercado, comprar bens durveis e completar a imagem de uma economia pujante e em expanso.

    A maioria dos trabalhadores e das camadas populares amontoava-se em fa-velas e periferias urbanas e vegetava na misria, aguardando a repartio do bolo, na suposio de que a ditadura iria realizar o milagre da multiplicao dos pes. Quanta iluso! At Mdici, num desses momentos de lucidez que s vezes acomete os tiranos, reconhecera que a economia ia bem, mas os pobres estavam mal.

    Mrio no se conformava com a incapacidade da oposio, tanto a clandes-tina quanto a consentida, de desmascarar a teia de iluses construda em torno do milagre econmico brasileiro. Por isso, quando a crise do petrleo de 1973 se aba-teu como uma tormenta sobre os fluxos de capitais e levou os pases importadores do ouro negro, como o Brasil, a se confrontarem com fortes desequilbrios em suas balanas externas, vislumbrou que os panos coloridos que encobriam a economia brasileira seriam descerrados.

    No Brasil, sempre que h crise e os de baixo no tm fora, so eles que pagam a conta. lembram do acordo de Taubat?, dizia, rememorando como os la-tifundirios socializaram as perdas do caf com o restante da sociedade, enquanto se apropriavam dos ganhos.

    Na crise de 1973, os principais ndices mundiais entraram em convulso e, em 1974, o crescimento das naes capitalistas desabou. As exportaes dos pases industrializados caram, enquanto as dos subdesenvolvidos declinaram ainda mais. Em compensao, os exportadores de petrleo acumularam saldos superiores a 500 bilhes de dlares. No querendo investir essa dinheirama na industrializao de seus prprios pases, nem deix-la ser corroda pela inflao mundial, entrega-ram-na de mo beijada ao sistema financeiro internacional, que a transformou em petrodlares para serem emprestados a juros aparentemente atrativos. Os Estados Unidos, que estremeciam com dficits descomunais, lanaram no mercado inter-nacional ttulos do seu Tesouro, como quem joga confete em dia de carnaval, cap-tando boa parte do dinheiro em oferta no mundo. Conquistaram, assim, o poder de exportar sua inflao, por meio do controle dos prprios juros.

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  • J a economia brasileira, em 1973, tivera um dficit de mais de 1 bilho de dlares em sua balana de pagamentos. Ao mesmo tempo, vira a inflao retor-nar, com os preos se elevando, e perdera a capacidade de continuar importando mquinas e equipamentos indispensveis ao crescimento da produo. Diante do naufrgio iminente, o Estado militar se aferrou oferta de petrodlares, no s como uma boia de salvao, mas como o novo rebocador capaz de levar o projeto Brasil Potncia e os lemas Brasil: ame-o ou deixe-o e Pra frente, Brasil a seu destino manifesto. Como o visionrio que acredita na materialidade do que a prpria mente produz em sonhos, transformou a boia em superpetroleiro e sups poder continuar ditando os rumos da economia, decidir a vida e a morte das em-presas, definir os setores que deviam ou no ser beneficiados pelos investimentos e subsdios e determinar os privilegiados do milagre.

    Sua burocracia tinha frente militares acostumados a vencer jogos de guer-ra, que se concebiam infalveis na conduo de homens e coisas. Eram eles que dirigiam as empresas estatais e ocupavam as quase quatro centenas de postos mais importantes do pas. Por meio de sua hierarquia verticalizada, tinham olhos e ou-vidos em todos os rgos pblicos e empresas estatais, suas divises de segurana e informao, sem cujo aval ningum era admitido e, por seu despacho, muitos eram demitidos, na melhor das hipteses. Essa imensa rede de espionagem e re-presso, a comunidade de informaes, transbordava suas malhas para toda a sociedade, por intermdio de 250 mil agentes e cerca de 1 milho de colaborado-res, para manter o comandante em chefe, o general de planto na Presidncia da Repblica, a par dos acontecimentos e a salvo de surpresas aliengenas.

    Apesar disso, ainda durante o governo Mdici, que preferia ser conheci-do como O Sanguinrio em lugar de O Benevolente, comearam a aparecer os primeiros sinais de resistncia popular, paralela resistncia armada. Setores da Igreja, remanescentes de grupos de esquerda, e tambm setores das organizaes clandestinas, passaram a realizar um trabalho de conscientizao e de organizao nas fbricas, nos bairros urbanos e nas zonas rurais. Os sindicatos de trabalhadores rurais se disseminaram ainda mais. Surgiram aes populares contra os salrios achatados, o custo de vida e a falta de liberdade sindical. Multiplicaram-se as ope-raes tartaruga e outras formas de presso dos trabalhadores. Mrio se animava com todas e estimulava seu partido a participar delas, integrar-se com as camadas populares e avanar medida que a estratgia do regime militar mostrasse suas debilidades e suas distores.

    Membros do partido comearam a participar de diretorias sindicais, comuni-dades de base e associaes populares de diversos tipos, num trabalho de longo prazo. Mrio tambm estava convencido de que as medidas adotadas pelo governo geisel para superar os desequilbrios da economia e completar a indstria de base do pas eram muito vulnerveis aos ventos internacionais e acabariam agravando a situao do pas.

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  • Duvidava que os investimentos do II Plano Nacional de Desenvolvimen-to em infraestrutura, explorao petrolfera, minerao, indstria petroqumica e siderurgia renovassem a pauta de importaes e exportaes e fossem capazes, ao mesmo tempo, de abastecer o mercado interno, eliminar a escassez e compe-tir no mercado internacional. O endividamento externo, de 5 bilhes de dlares em 1973, 12 bilhes em 1974 e provavelmente 24 bilhes em 1976, tornaria a carga do petroleiro Brasil maior do que o peso lquido de sua estrutura, acaban-do por afund-lo.

    Tambm tinha a sensao difusa de que a burguesia, a nativa e a estrangeira, parecia haver se dado conta de que o milagre se esgotava e de que teria prejuzos com os privilgios que o governo militar de planto propiciava ao setor estatal. Acostumada a privatizar os lucros, essa burguesia no gostara de ver as grandes esta-tais receberem os principais investimentos do plano de desenvolvimento e poderem se transformar em corporaes com capacidade de disputar o mercado internacio-nal. Eugnio gudin, um inatacvel para os homens do regime, verbalizou com con-tundncia as preocupaes burguesas diante da estatizao crescente da economia.

    E foi alm. Exigiu que as Foras Armadas retornassem sua tradicional con-dio de Poder Moderador, uma experincia legada por Pedro II, e devolvessem ao Poder Judicirio as garantias de inteira independncia, com o restabelecimento da vigncia dos direitos fundamentais. Admitia que se promulgassem leis eficazes de salvaguarda do regime, mas contra os subversivos, no contra as elites dirigentes, que deveriam ter participao entre os responsveis pelo poder e pelas decises e rumos do pas. Em consequncia, participao proporcional nos investimentos financiados pelo Estado.

    Mrio ficou impressionado com o vulto da campanha de gudin contra a estatizao e de sua repercusso entre os setores empresariais e a imprensa. Era de uma hipocrisia pura. Sem a estatizao, a burguesia no teria tido o milagre, nem teria se aproveitado dos lucros que ele proporcionara aos setores privados. Ento, essa grita era sinal de que a crise deveria ser mais profunda do que aparentava. Mas no acreditava que a elite endinheirada chegasse s vias de fato com os militares. Como sempre, eles chegariam a algum tipo de conciliao por cima, a um acordo oligrquico, cuja conta os pobres deveriam pagar, de uma forma ou outra. geisel, com sua distenso, estava disposto a ceder algo na poltica. Como dissera, podia aumentar a participao das elites responsveis, mediante um gradual, mas se-guro aperfeioamento democrtico, que conduzisse a um consenso bsico e institucionalizao acabada dos princpios da revoluo de 1964.

    Prometera, ento, transformar os instrumentos excepcionais permanentes de segurana em instrumentos potenciais de ao repressiva ou de conteno, at que fossem superados por salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucio-nal. No parecia disposto, porm, a ceder na economia. Dava sinais de que julga-

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  • va a burguesia imediatista, com seu hbito de satisfazer-se ou desgrenhar-se com o lucro ou o prejuzo do dia, sem enxergar os cenrios de longo prazo. No a su-punha, pois, capaz de completar a industrializao nem de enfrentar a conjuntura que se armava no mundo.

    Havia guerras no Oriente Mdio e no sudeste da sia, a acelerao dos preos do petrleo, as tentativas norte-americanas de sair da decadncia econ-mica e aumentar seu poder de concorrncia no mercado internacional, a queda dos preos das matrias-primas e o aumento dos excedentes financeiros. Para o prussiano geisel, somente com uma determinao frrea e centralizada, tpica do estilo militar, seria possvel conduzir a economia e enfrentar com sucesso todas as turbulncias j em curso.

    Mrio achava que o regime no iria alm dessas promessas e que a burguesia se reacomodaria com algumas migalhas, mas mudou de opinio quando viu os resultados das eleies de novembro de 1974. Percebeu que as urnas haviam mos-trado no s uma diviso mais profunda das foras no poder, mas principalmente uma agradvel propenso popular para votar contra o regime, medida que ia fi-cando claro que o milagre s beneficiara alguns, deixando a maioria em situao pior do que se encontrava antes.

    As pessoas comeavam a enxergar que as cidades haviam inchado, em vez de crescer, com os mais de 25 milhes de camponeses expulsos dos campos. Os trabalhadores sentiam que trabalhavam mais para comprar a mesma feira que fa-ziam anos atrs. As epidemias, que se alimentavam da misria, multiplicavam-se, espalhando a apreenso e o medo. Durante um bom tempo a propaganda realizou o milagre de enganar a maioria, mas as eleies legislativas daquele ano tinham mudado os ventos. At candidatos da Aliana Renovadora Nacional (Arena) pro-curaram mostrar-se de oposio, fazendo discursos radicais contra os militares.

    O PCdoB tomara a deciso de apelar ao voto nulo, que afinal chegara a 6 milhes, mas no era realista deixar de reconhecer que candidatos ao Senado, desconhecidos at ento, como Orestes Qurcia e lvaro Dias, que atacaram aber-tamente a ditadura, levaram o MDB (Movimento Democrtico Brasileiro) a ter uma votao bem superior da Arena. Naquele mesmo ano, uma oposio sin-dical, com participao de liberais e esquerdistas, vencera as eleies no Sindicato dos Jornalistas de So Paulo. Ento, j no era s a esquerda revolucionria que estava na oposio e se movimentava.

    Apesar disso, as evidncias eram muito confusas. Pressionado pela burgue-sia e tambm pela surda resistncia popular, o poder militar ainda prometia dis-tenso. Por outro lado, ao longo de 1975, alm de continuar a caa implacvel aos militantes clandestinos, eliminando muitos deles fisicamente, usava de toda a truculncia contra a oposio liberal e legal. Cassou o mandato de parlamenta-res, demitiu ou aposentou juzes e funcionrios do Judicirio, anunciou o fim da

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  • poltica de distenso e declarou abertamente que a democracia era uma frmula ultrapassada e inadequada para o Brasil. Procurava mostrar, assim, que a oposio tivera foras para vencer uma eleio, mas no as tinha para mais nada.

    Cometeu, porm, no s um srio erro de avaliao, como um ato que demonstrava curtos-circuitos na sua cadeia de comando. No arrasto de assas-sinatos e prises de dirigentes do PCB, em outubro de 1975, o Destacamento de Operaes de Informaes - Centro de Operaes de Defesa Interna (DOI--Codi) suicidou Vladimir Herzog. O velrio do jornalista transformou-se num movimento de protesto. Personalidades da oposio, dos mais diferentes cantos do pas, deslocaram-se para So Paulo de forma espontnea e destemida. O culto ecumnico da catedral da S reuniu milhares de pessoas, apesar da presso poli-cial, na primeira manifestao urbana de massa, aps a decretao do Ato Insti-tucional no 5 (AI-5). Em novembro, 1.004 jornalistas assinaram um manifesto denunciando as absurdas concluses do inqurito policial-militar que tentava corroborar a verso do suicdio.

    Tornava-se claro que setores amplos das classes mdias e da intelectuali-dade pareciam haver perdido o medo do monstro repressor. Este, em tais condi-es, para continuar com sua ditadura, teria que prender e matar aos milhares, no mais seletivamente. E isto poderia ter consequncias difceis de prever. Nova morte no DOI-Codi de So Paulo, desta vez de um operrio, Manoel Fiel Filho, s fez aumentar o isolamento do regime e o tom dos protestos contra as torturas e os assassinatos. geisel viu-se obrigado a demitir o comandante do II Exrcito, o duro Ednardo Dvilla Mello, e colocar em seu lugar o general Dilermando gomes Monteiro, com a promessa de dar um basta s aes descontroladas da comunidade de informaes e represso.

    Mrio no se iludia. O pecado do DOI de So Paulo no fora ter assassi-nado mais dois subversivos do PCB. Fora haver liquidado dois militantes que no ocupavam posio de direo. Pior, no caso de Herzog, um militante que tinha uma insero profissional e social cuja eliminao causaria problemas com os quais o regime tinha dificuldades crescentes em tratar. Era justamente isso que geisel no perdoara em Ednardo. Uma falta de controle e de afinao com seu plano estratgico de limpar o terreno de forma estudada e seletiva.

    Assim, antes que o movimento poltico de contestao ao regime se am-pliasse, que o general de planto fosse obrigado a convocar uma Constituinte, decretar a anistia aos presos polticos e revogar a lei de Segurana Nacional, e que fosse desmontado o Servio Nacional de Informaes (SNI) e o aparelho de represso poltica, o partido no poderia nem pensar em depor as armas. O inimigo no ia mais to bem das pernas e no poderia continuar dominando por muito tempo da mesma forma, mas ainda era suficientemente forte para causar prejuzos incalculveis.

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  • O mais importante, nessas condies, era salvaguardar o partido, faz-lo incorporar-se ao movimento operrio, popular e democrtico, coloc-lo numa situao em que pudesse interferir positivamente no novo movimento social e poltico que despontava no pas. A luta armada seria determinada por esse curso, e no por dispositivos conspirativos. Por que era to difcil entender isso?

    A noite era fresca e propcia a essas divagaes, embora j estivessem em dezembro. Imerso em seus pensamentos, Mrio no deixava porm de realizar as paradas necessrias, olhar as vitrinas decoradas para o Natal, ler as manchetes dos jornais e revistas pendurados nas bancas, e vasculhar as ruas com os olhos. Corpo esguio e ereto, com os ombros levemente recurvados, ele usava o mesmo terno surrado de sempre. Uma boina preta cobria a cabea calva. Paradoxalmente, mantinha a elegncia dos que, mesmo empobrecidos, jamais perdem a postura. Olhando-o, ningum pensaria que ali estava um homem procurado e jurado de morte pelo regime militar.

    Porm, ao contrrio dos mopes vaidosos, que nunca usam culos diante do espelho, no se deixava enganar por sua aparncia. Dava volteios, prestava ateno nas pessoas e nos carros, procurava indcios de que algum acompanhava seus pas-sos, fazia de tudo para certificar-se de que estava realmente com a retaguarda livre, sem rabo. Nos ltimos anos redobrara as precaues.

    medida que se aproximava do ponto em que deveria encontrar Maria, para ser levado ao aparelho da reunio, ficava ainda mais atento. No se permitia descuidos. Entrou pela rua Humberto I e foi se aproximando da quadra que fazia esquina com a avenida Rodrigues Alves. Maria deveria estar vindo em sentido con-trrio. Certo, l vinha ela. Parou ao ver o gesto de que estava tudo bem. Comeou a voltar devagar sobre os prprios passos at que ela o alcanou e seguiram juntos, sem qualquer palavra, para pegarem o carro algumas esquinas adiante.

    Somente ao entrar e sentar-se no banco de trs, Mrio saudou Maria e Jaques, o motorista. Fechou ento os olhos, como fazia sempre, entregando-se totalmente aos cuidados dos dois.

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  • 2 POSSANTE A lEI, NECESSIDADE O MAIS

    Cercada de perigos assim a vivncia Dessas crianas, adultos e velhos a se agitar.

    J.W. goethe (Fausto)

    1976, So Paulo, dezembro: noite do dia 11 1913 e antes, Par: os tempos passados

    A clandestinidade tinha algumas regras de ouro, inviolveis. Casas uti-lizadas para reunies, os aparelhos, principalmente das direes, apenas eram conhecidas pelo dirigente responsvel e pelos que nela moravam, os caseiros. Os demais, sem exceo, no deveriam saber sua localizao. Eram conduzidos de olhos fechados, e de olhos fechados eram retirados do carro at se encontrarem dentro do imvel. A confiana era, ento, total. Cada um que fosse levado a algum desses aparelhos, como um cego conduzido por um So Bernardo, ficava completamente merc das medidas de segurana adotadas pelos companhei-ros que conheciam o trajeto e a casa.

    Mas, como tudo na vida, havia um outro lado. Tanto os responsveis pelo aparelho, quanto os que eram levados para l, dependiam da ateno e dos cuida-dos que cada um destes ltimos, como uma raposa perseguida por ces, empregava em seu deslocamento para encontrar-se com os que o transportariam para a casa. Vrios aparelhos haviam cado, ou foram estourados, como comunicava a ditadura, por descuido de camaradas que foram seguidos e permitiram, sem notar, sua loca-lizao pelos rgos da represso poltica. Quanto mais esta apertava seus cravelhos contra as organizaes do partido, mais difcil ficava manter os aparelhos e maior deveria ser a preveno com a segurana dos militantes.

    O aparelho para o qual Mrio estava sendo levado pertencia direo cen-tral do partido e estava sob a responsabilidade do Cid, alis Joo Amazonas. Era tambm onde este morava, juntamente com a Maria, nome de guerra de Elza Monnerat; a Mara, alis Maria Trindade; o Jaques, alis Joaquim Celso de lima; e o Jota, que vinha a ser ngelo Arroyo. Maria e Cid desempenhavam o papel

  • de donos da casa, enquanto Mara e Jaques o de casal de empregados. Jota no aparecia para ningum de fora, s saa em casos excepcionais e tambm ignorava a localizao da casa. Sua condio de sobrevivente do Araguaia, caado como uma ona acuada, exigia cuidados especiais.

    Na ausncia de Cid, em viagem ao exterior, Mrio era o dirigente responsvel, mas isso no lhe dava a prerrogativa de romper a regra da clandestinidade. Olhos fechados, ouviu Maria lhe comunicar que todos j haviam entrado, maneira de dizer que todos os que iam participar daquela reunio haviam sido levados do mesmo modo que ele. Ela era sempre a encarregada de conduzir os dirigentes para o aparelho e, terminadas as reunies, retir-los de l e solt-los em diversos pontos da cidade.

    Nos anos 1950, quando s havia um partido comunista como corrente he-gemnica na esquerda brasileira, Maria se notabilizara por praticar alpinismo e ha-ver escrito na pedra lisa do morro Dois Irmos, no Rio de Janeiro, uma saudao a Stlin. Depois, no incio dos anos 1960, quando a maioria da direo do PCB adotou uma linha pacifista de colaborao com a burguesia e mudou o nome da organizao para Partido Comunista Brasileiro, ela acompanhou aqueles que ha-viam ficado contra, foram expulsos e refundaram o Partido Comunista do Brasil. Era uma ativista de primeira ordem. Por isso, e por sua fidelidade, fora deslocada para a regio do Araguaia, onde o partido preparava o dispositivo militar que servi-ria de suporte para a luta armada rural contra a ditadura. Vrias vezes voltara a So Paulo e ao Rio de Janeiro, no s para participar de reunies da direo como para conduzir, no retorno, companheiros e companheiras que tinham se apresentado como voluntrios para os destacamentos armados.

    Em abril de 1972, como uma seriema arisca, salvou-se por pouco de ser apanhada na caada montada pela primeira campanha do Exrcito no Araguaia. Ela participara da reunio do Comit Central que comemorou os 50 anos de fundao do partido e retornava ao sul do Par com dois jovens, Eduardo e Ana, que deveriam integrar-se a um dos grupos. Ao deparar-se com a campanha mili-tar, assistir deteno de Eduardo numa das barreiras e notar que a rea toda fora cercada por tropas militares e policiais, a nica coisa que a preocupou foi retornar para avisar o Cid, antes que ele pegasse o nibus e se deslocasse, sem saber, para a ratoeira montada pelo aparato repressivo da ditadura.

    Recomendou a Ana cujo verdadeiro nome era Rioco Kayano que achas-se outro meio de voltar a So Paulo, por Belm, e fez a viagem de volta com o co-rao opresso, menos pelo que estaria ocorrendo com os companheiros da regio e mais pelo perigo que ameaava Cid. Ainda teve expediente para aguard-lo na rodoviria de Anpolis, vindo de So Paulo, e sinalizar para ele, com o gesto roma-no do polegar para baixo, que o Araguaia cara. T-lo salvo nessa ocasio passou a ser o ato de que mais se orgulhava desde ento e, sempre que tinha oportunidade, repetia o relato desse fato para os demais companheiros.

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  • Mrio tratava-a com deferncia e ateno, como era seu hbito de tratar as pessoas. Mas sabia que ela era daquelas que, fiis a Cid, pretendiam evitar uma avaliao crtica da guerrilha e uma inflexo profunda do trabalho do partido. Sabia, tambm, que a exagerada demora em completar esse processo colocava a organizao diante de um risco ainda maior. Mas esperava que a reunio da Co-misso Executiva, a realizar-se no dia seguinte, e a do Comit Central, logo aps, representassem um avano expressivo.

    Jaques era o motorista e o faz-tudo. Baixo, seu jeito singelo disfarava a compleio robusta de sua origem camponesa. Eletricista de profisso, viera do Rio grande do Sul para So Paulo com a tarefa de servir de apoio aos aparelhos da direo. Pegava servios avulsos quando no havia transportes ou trabalhos do partido, o que o ajudava a manter uma boa cobertura social e ainda contribua para sua manuteno pessoal. Por sua direo passaram vrios carros de segunda mo, que comprava em seu nome e mantinha com zelo. Era ele tambm que fazia todos os consertos internos da casa, evitando a intruso de estranhos.

    Nas ocasies em que transportava militantes, invariavelmente dirigia com a cabea coberta por um bon e, como os famosos macacos da fbula, nada dizia, nada ouvia e nada enxergava em relao aos que conduzia. S rompia essa regra quando quem estava no carro era um dos dirigentes que o conheciam, como Cid, Mrio ou Jota. Mesmo assim, apenas respondia quando era perguntado e rara-mente tomava a iniciativa de dar alguma opinio. Tinha de manter-se sempre alerta para ver se no estava sendo seguido. Aprendera a entrar e sair de ruas que lhe davam uma viso ntida de sua retaguarda e propiciavam a feliz sensao de que tudo estava bem, alm de deixar completamente confuso qualquer passageiro que pretendesse, por acaso, orientar-se s cegas.

    O carro subiu pela rampa da casa e estacionou ao lado da porta da cozinha. Conduzido por Maria, olhos j abertos, mas mirando o cho, Mrio, como sempre, entrou pelo pequeno conjugado que formava a cozinha e a copa, onde Mara os rece-beu com um boa-noite amigvel. Era uma gacha cujo sangue charrua espelhava-se nos traos do rosto redondo, na tez morena e no olhar permanentemente triste dos descendentes de qualquer povo dizimado. Mrio interessou-se em saber como estava, se a sade estava em ordem, se havia algum problema a ser resolvido. No, est tudo bem, no tens com o que te preocupar, respondeu com seu sotaque caracterstico.

    Mrio seguiu ento diretamente para a sala, atravs do corredor que dava acesso ao banheiro, ao quarto lateral e sala frontal. Nesta, entretidos na leitura de textos datilografados, encontravam-se Jota, Rui (na verdade, Jover Teles), Z Antonio (Haroldo lima) e Dias (Aldo Arantes), sentados num sof e em duas poltronas de tecido cinza azulado, que rodeavam uma mesa de centro, baixa e comprida. levantaram-se quando notaram a presena do chegante, saudando-o, como de costume, em silncio.

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  • Estavam, assim, presentes os cinco membros da Comisso Executiva que iriam participar daquela reunio de dois dias. Fazia tempo que as reunies da dire-o do partido, a cada seis meses, contavam apenas com uma parte de seus mem-bros. Em caso de queda perigo cada vez mais constante no perodo recente haveria outra parte a salvo, pelo menos teoricamente, para realizar o trabalho de reorganizao. Dessa feita, alm de Cid, havia ficado de fora o Resende (Renato Rabelo), que o acompanhava na viagem ao exterior.

    As atividades dentro de um aparelho exigiam, mais do que tudo, a norma do silncio e da discrio. O mundo exterior, os vizinhos, os passantes, no deve-riam notar qualquer som diferente, qualquer movimentao estranha. Como num claustro, nos encontros entre camaradas estava excluda a efuso e, nas reunies, qualquer debate acalorado ou voz altissonante. Mrio acostumara-se a essas regras, mas no se furtava de demonstrar afeio ao cumprimentar os companheiros. Foi o que fez, antes de ir at o quarto, deixar sua pequena pasta e o palet, e voltar para a sala, trazendo uma cadeira, onde se sentou. Sem prembulos, dirigiu-se aos demais:

    Como vocs j sabem, o Cid teve que ficar de fora, em meu lugar. As razes esto ligadas a problemas meus, de ordem pessoal. Sobre a ordem do dia, acho que hoje no precisamos adiantar nada. Veremos isso amanh. Os documen-tos que esto a so as opinies dos membros do CC a respeito da avaliao do Araguaia. Alguma questo?

    Rui quis saber se ocorrera algo grave para mudar a composio da reu-nio. Estivera descontatado desde a ltima, refizera a ligao com o Zeco (Srgio Miranda, alis) em cima da hora e no tivera notcia alguma nesse meio tempo. Mrio respondeu que no, no houvera nada de grave, simplesmente a impossibi-lidade de ele prprio fazer a viagem programada. Tudo o mais fora acertado com o Cid. Rui assentiu e, como os demais, voltou leitura.

    Mrio, porm, ainda permaneceu por bom tempo perscrutando o sem-blante daquele antigo mineiro de carvo e dirigente sindical gacho, por mui-tos apelidado de Prncipe Espanhol, por seu porte altivo e sua ascendncia castelhana. Estava com a fisionomia mais grave do que da ltima vez que o vira. E deixara crescer uma barba esquisita, que lembrava a de Soljentsin, embora mais discreta. Teriam que conversar melhor sobre os pontos no cobertos e a situao do Rio de Janeiro.

    H quase dois anos, Mrio vinha se empenhando em persuadir Rui sobre a necessidade de ele deslocar-se dali, por segurana. Todas as discusses, porm, ha-viam sido infrutferas. A Comisso de Organizao concordava que a permanncia dele naquela regio era insustentvel, mas Rui agarrava-se, como uma craca, ao argumento de que estava seguro. E no arredava p. Contava com o apoio de Cid, que buscava aliados a qualquer preo e fazia concesses numa rea em que sempre primara por cuidados extremos.

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  • S h pouco Cid concordara em rever sua posio, com a condio de que ainda se tentasse um ltimo ponto para faz-lo participar da reunio da Executiva e do CC. Mrio achara uma temeridade mas, quando se deu conta, a ordem para a renovao do contato j fora dada. Ainda no conseguira esclarecer exatamente como isso se passara. S quando Cid e Resende voltassem seria possvel colocar as coisas em pratos limpos. Onde estariam eles agora? J teriam chegado a Beijing? Ou ainda estariam na Europa? No ltimo bilhete que recebera, informavam j haver sado da Albnia, preparando-se para rumar at a China. Esperavam apenas as passagens. Como eles iriam explicar a derrota do Araguaia para os chineses?

    As coisas por l tambm no pareciam muito claras, dados os zigue-zagues da Revoluo Cultural. Zhu Enlai, primeiro-ministro desde a fundao da Re-pblica Popular, morrera no incio do ano. Depois haviam ocorrido os confusos conflitos na Praa Tiannamen, em Beijing, e em outros lugares da China, em abril, com manifestantes querendo homenagear Zhu e, ao que parece, protestan-do contra Jiang Qing e outros dirigentes do partido. Deng Xiaoping, que pri-meiro fora destitudo do cargo de secretrio-geral do Partido Comunista Chins (PCCh) e, depois, trazido de volta pelo prprio Mao para ser o brao direito de Zhu Enlai, como vice-primeiro-ministro, foi responsabilizado pelos conflitos e no s afastado do governo, como expulso do partido.

    logo depois falecera Zhu De, um dos grandes generais da revoluo chinesa e um dos mais ntimos companheiros de armas de Mao. E, em julho, acontecera o terrvel terremoto de Tangshan, com mais de 200 mil mortos e feridos, quando o governo chins, a pretexto de demonstrar sua capacidade, no aceitou ajuda humanitria de ningum. Em setembro morreu Mao Zedong, causando comoo nacional, deixando inacabada a Revoluo Cultural e sem definio a sucesso da primeira gerao revolucionria do PCCh pela segunda.

    Em outubro, Hua Kuofeng, que substitura Zhu Enlai na chefia do governo e fora indicado pelo prprio Mao como vice-presidente do partido, mandou pren-der Jiang Qing e outros trs membros do bir poltico, aparentemente numa dis-puta palaciana pelo poder. O verdadeiro carnaval que encheu as ruas de Beijing e outras cidades chinesas, com a notcia da priso do chamado Bando dos Quatro, foi surpreendente, principalmente levando-se em conta que quem enchia os pul-mes para proclamar que dirigia as grandes massas eram justamente os dirigentes presos. Nessas condies, o mais provvel que os chineses dessem pouca ateno ao que Cid tinha a contar e se preocupassem mais em dar sua prpria verso dos acontecimentos internos.

    Cid viajara contrafeito. No era uma misso agradvel comunicar aos co-munistas albaneses e chineses que a guerrilha do Araguaia sofrera golpes rudes e profundos. Alm disso, era tarefa que s algum dos antigos dirigentes poderia rea-lizar. Os partidos estrangeiros no compreenderiam que uma comunicao dessa

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  • envergadura fosse confiada a algum da nova safra. E, dos antigos, Jota continuava abalado com o desastre da guerrilha e, como sobrevivente, mais procurado do que qualquer outro pelos agentes da represso, enquanto Rui, desde agosto, falhara a diversos dos encontros acertados.

    De incio, Mrio aceitara realizar a viagem e fizera todos os preparativos. Nada mais natural que comunicasse o revs, j que em 1971 fora ele a levar a deciso de dar incio luta guerrilheira. Naquela ocasio, os membros da Comis-so Executiva j tinham uma ideia clara de suas opinies a respeito do trabalho no Araguaia. Haviam ouvido com evidente mal-estar sua afirmativa de que, com aquela preparao militarista, o partido substituiria as massas do povo e cometeria o erro mais grave e imperdovel de qualquer partido revolucionrio. Isso no os impedira, porm, de envi-lo. Todos conheciam muito bem sua retido e no du-vidavam de que cumpriria fielmente a deciso coletiva.

    E l foi ele, mesmo sendo contrrio ao tipo de trabalho levado a cabo nas matas do sul do Par, comunic-lo aos dirigentes de partidos estrangeiros. Na Al-bnia, exps em detalhes para Enver Hoxha, Mehmet Seshu, Ramiz Alia e outros lderes os argumentos da maioria da Executiva do PCdoB para fundamentar o incio da luta guerrilheira. A recepo foi entusistica. O Partido do Trabalho da Albnia acreditava que o caminho seguido pelo Partido Comunista do Brasil era acertado e o nico possvel. Seus dirigentes esforavam-se ao mximo para prestar apoio moral e estimular os camaradas brasileiros, sequer colocando dvidas sobre a justeza de suas decises. Afinal, eles prprios haviam iniciado a luta guerrilheira contra os ocupantes nazistas, durante a Segunda guerra Mundial, com um aten-tado contra o palanque em que se encontravam os comandantes militares alemes, passando em revista suas tropas invasoras.

    Ao mesmo tempo que admirava essa solidariedade, Mrio acabrunhava-se com o fato de que dirigentes to experientes no questionassem os pontos que lhe pareciam frgeis e inconsistentes na argumentao que apresentara a mando do partido, pelo menos para terem mais certeza de que estavam apoiando algo de futuro. Foi com esse travo na garganta que se dirigiu China, ainda s voltas com a Revoluo Cultural. l, como era de praxe, foi recebido pelo diretor do departa-mento de relaes internacionais do Comit Central do PCCh.

    As reunies com os chineses eram normalmente prolongadas, principal-mente naqueles tempos turbulentos de mudanas nas polticas interna e in-ternacional do pas. Eles prestavam informaes detalhadas de suas polticas, de modo a justific-las e medir a reao dos interlocutores. Mas nada diziam, absolutamente nada, sobre as divergncias internas. Ao mesmo tempo, procu-ravam inteirar-se das polticas dos chamados partidos irmos dos outros pases, embora evitassem imiscuir-se nos assuntos internos desses partidos. A uma das conversas de troca de informaes com o pessoal do departamento de relaes

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  • internacionais do PCCh compareceu, o que era muito raro, Kang Sheng, um dos membros do bir poltico.

    Ele foi apresentado com a devida solenidade e tomou a palavra para incen-tivar os camaradas brasileiros a manter bem alto seu esprito revolucionrio e sua capacidade de luta. Mas no era daqueles que olhavam diretamente nos olhos dos interlocutores. Enquanto falava, seus olhos vagavam, como uma mariposa espan-tada, por suas prprias mos, pelo tampo da mesa, pelas paredes, pelo teto e pelo vazio, jamais pousando no rosto e nos olhos atentos de Mrio. Sua voz denotava uma falsa suficincia e sua boca s vezes contorcia-se em esgares, dando uma im-presso desagradvel.

    Mrio no gostou dele. No gostava de quem fugia de encar-lo. Sua per-cepo e sua experincia lhe diziam que pessoas desse tipo ou no tinham carter, ou o tinham muito fraco. Alm disso, considerou que sua presena e suas pala-vras, mesmo no tendo feito qualquer referncia direta ao incio da guerrilha, haviam sido um gesto simblico de apoio explcito dos chineses poltica militar do PCdoB. Da mesma forma que uma foto s vezes valia mais do que mil palavras escritas, um gesto tambm poderia valer mais do que muitas declaraes formais. Preferia que ele houvesse sido franco como os albaneses. O resto da reunio, j sem a presena de Sheng, no acrescentou nenhuma novidade e Mrio, aps o jantar, foi dormir com a sensao de que tanto os albaneses quanto os chineses no se davam conta da aventura em que os comunistas do PCdoB iriam se meter.

    Antes das quatro da madrugada foi acordado por guo Yuanzeng, guia e intrprete do departamento, para ter uma entrevista muito importante. lavou o rosto, vestiu-se com a costumeira rapidez e acompanhou guo at o carro. No perguntou de quem se tratava, mas supunha provvel que fosse aquele mesmo membro do bir poltico com o qual no simpatizara. Pretenderia ele ser mais direto agora? Apresentar opinies e observaes que no quisera colocar sobre a mesa diante dos outros membros do departamento? E por que numa hora to estranha e inusitada?

    quela hora, as ruas e avenidas de Beijing, pouco iluminadas, tinham movi-mento escasso. J havia pessoas praticando o tai-chi-chuan em caladas e parques dos conjuntos habitacionais, mas raramente cruzavam com algum outro carro. Reconheceu apenas que estavam trafegando pela grande avenida central, que atra-vessava a praa Tiannamen, onde ficavam a Assembleia Popular Nacional e a Cida-de Proibida. Estava certo. O carro entrou por uma das avenidas ao lado da praa, rodou por algumas ruas laterais e entrou, aps ser identificado, por um porto guardado por sentinelas armados.

    Mrio saltou e foi conduzido a um vestbulo onde o aguardava ningum menos do que Zhu Enlai, que apertou fortemente sua mo direita com o hbito chins de usar as duas mos, levando-o a fazer o mesmo. Um fotgrafo estava a

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  • postos e registrou esse momento que, para o primeiro-ministro, deveria fazer parte de seu dia a dia, mas para Mrio era inesperado e histrico. Foi saudado com um sonoro ni hao e convidado a sentar-se numa das muitas poltronas que estavam dispostas pelo salo, ao mesmo tempo em que Zhu sentava-se na mais prxima. Entre as duas, uma mesinha com xcaras grandes de porcelana para o ch e, por trs dela, uma cadeira, onde guo se sentou para traduzir a conversa, da qual par-ticiparam tambm vrios outros membros do bir poltico do PCCh: Jiang Qing, Yao Wenyuan, Zhang Shunqiao, Wang Hongwen, Kang Sheng, entre outros.

    Mrio sempre achara que os homens eram como estrelas, cada qual com sua grandeza. Zhu Enlai certamente era uma daquelas de brilho mais intenso, mas impressionava principalmente pela serenidade, simplicidade e tratamento afvel. Vestido com a tradicional tnica Mao de cor cinza clara, abotoada at em cima, comeou perguntando se Mrio fizera boa viagem, se estava sendo bem tratado e se j tivera oportunidade de apreciar o caos em que a China se transformara com a Revoluo Cultural. Acrescentou logo que o caos era bom, porque rompia com os velhos hbitos, pensamentos e tradies, abrindo terreno para novos, mais moder-nos e avanados. A China, aduziu, estava em meio a um processo revolucionrio e, infelizmente, no era possvel realiz-lo com luvas de pelica ou bons modos.

    Seus olhos, encimados por sobrancelhas grossas e negras, fitavam Mrio di-retamente, com um brilho juvenil e s vezes maroto, enquanto ouvia com ateno suas opinies diplomticas a respeito da situao da China. Depois, voltou a to-mar a palavra, dizendo que lera o relatrio com a comunicao que Mrio trouxera do Brasil. Agradeceu em nome da direo do PCCh a confiana dos camaradas brasileiros em comunicar-lhes, com antecedncia, uma deciso to importante e declarou que os chineses sentiam-se honrados com essa atitude. Relatou que o partido irmo da ndia tambm lhes dera a mesma honra.

    Os camaradas indianos levaram vrios anos realizando uma preparao sria e persistente em suas reas montanhosas da regio de Kerala, disse. A China dera guarida para realizarem cursos de preparao militar em seu territrio, transmitira--lhes a experincia da luta armada na China, como alis fizera com vrios mem-bros do PCdoB. No ocaso dos anos 1960, eles desencadearam a luta armada, mas ao fim e ao cabo no conseguiram mobilizar a populao e foram esmagados.

    O mesmo ocorrera na Birmnia, na Malsia, na Indonsia e tambm em di-versos pases africanos. Quando as massas no esto dispostas a empreender a luta armada, no basta que o partido esteja. Zhu Enlai falava pausadamente, discorren-do sobre as diversas experincias recentes de lutas armadas e a constncia maior de derrotas. levantou a suposio de que o movimento revolucionrio internacional poderia estar ingressando num longo perodo de descenso, aps os movimentos de descolonizao que, como uma grande mar crescente, haviam se espraiado aps a Segunda guerra Mundial.

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  • Do ponto de vista histrico, acrescentou, em algum momento a mar as-cendente cederia lugar a um descenso, mar baixa. Embora a guerra de libertao vietnamita continuasse firme e tendesse para a vitria, e houvesse movimentos in-surgentes com algum sucesso em diversas partes, os vrios e repetidos insucessos de ento poderiam ser os primeiros indcios de que a revoluo, em termos mundiais, poderia estar entrando em refluxo. A prpria situao da Unio Sovitica, com suas polticas errticas em relao ao imperialismo e, tambm, em relao aos mo-vimentos de libertao, podia ser um reflexo dessa tendncia ao descenso, acres-centou. De qualquer modo, isso no significava que movimentos revolucionrios, nos quais as grandes massas do povo participassem ativamente, no pudessem ter xito, mesmo num quadro geral de retrao.

    Zhu Enlai estendeu-se ainda sobre os problemas internacionais da China, suas contradies com a Unio Sovitica e os Estados Unidos, a disputa de hege-monia entre as duas grandes potncias e a necessidade da China de ter uma ttica que detivesse as ameaas, tanto de mais de 1 milho de soldados soviticos na fronteira nordeste, quanto da frota americana no mar entre a Coreia e Taiwan. Foram quase duas horas de conversa com o segundo homem mais poderoso da China, na ocasio. E com um sentido que nada tinha a ver com a interveno de Sheng na reunio da tarde.

    Quando Mrio retornou casa de hspedes, j havia passado das seis da manh. Ainda tentou dormir um pouco, mas no conseguiu. Achou melhor pas-sear nas alamedas plantadas de caquizeiros, enquanto aguardava a abertura do refeitrio para tomar o caf. Jamais imaginara que Zhu Enlai tivesse aquele ritmo de trabalho. Quantas horas trabalhava por dia? A que horas dormia? Em nenhum momento, em sua relativamente larga experincia de contatos com lderes de di-versos partidos socialistas e comunistas, tivera uma reunio como aquela, numa hora to imprpria e com uma riqueza de anlise to abrangente e concreta. Em geral, eram trocas formais de informaes, em que cada um dava seu recado e expressava seu desejo de que a poltica do outro tivesse sucesso, ambos se conten-tando com uma amizade em que nenhum metia a colher no prato do outro.

    Desta vez fora bem diferente. No que Zhu houvesse dito alguma palavra sobre a justeza ou no da deciso de desencadear a guerrilha. Em nenhum mo-mento ele fez referncia explcita a isso. Apenas arrolou argumentos e mais argu-mentos condicionantes do sucesso de um empreendimento revolucionrio e, mais do que tudo, da necessidade imprescindvel, indispensvel, inarredvel, de contar com a participao efetiva de grandes massas, argumentos que se somavam ao que Mrio j vinha pensando h muito sobre a poltica que estavam implantando no Araguaia. Reforaram sua convico de que o partido estava ingressando numa aventura militarista. Foi bom que tivesse vindo e tomado conhecimento, em de-talhes, da opinio de Zhu.

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  • Porm, quantos mais no partido chins pensavam igual? Havia uma diver-gncia evidente, embora difusa, entre Zhu e Chen. Isso dizia apenas respeito a vises diferentes quanto ao movimento revolucionrio internacional? Ou relacionavam-se tambm ao conjunto das questes internacionais e prpria evoluo interna da China? Em alguns momentos tivera a impresso de que Zhu Enlai dava indica-es de que a Revoluo Cultural esgotara seu potencial e precisava ser retificada, a exemplo da extino da guarda Vermelha e da nova proposta de Trplice Aliana na conduo do poder. Em outros, ele parecia acreditar que a Revoluo Cultural ainda continuaria por um bom tempo, alternando caos e ordem. Teve dificuldade em entender sua afirmativa de que o caos bom, principalmente porque muitos de seus argumentos logo a seguir insinuavam que o caos era uma desgraa.

    Talvez essa situao parecesse com os sentimentos que ento se misturavam em sua mente. Por um lado, sem dvida, fora muito bom que tivesse a oportu-nidade de manter essa conversao. Mas, por outro lado, tambm no fora bom que tivesse sido ele o enviado. A coincidncia da opinio do lder chins com as suas, contada por ele no retorno, certamente seria vista com desconfiana pelos membros da Executiva do PCdoB e aguaria as divergncias, que j o haviam leva-do a ser afastado, paulatinamente, da Comisso Militar e de qualquer organismo operacional da Comisso Executiva.

    Alm disso, seria mais uma ocasio para demonstrar que o PCdoB seguia suas prprias decises. Pelo menos para si, a Comisso Executiva poderia vanglo-riar-se de sua independncia diante das opinies dos outros partidos, no indo a reboque de qualquer fora externa. E assim foi. Os pontos de vista de Zhu Enlai foram depositados numa das gavetas privativas da Comisso Executiva e quase nenhum membro do Comit Central tomou conhecimento delas, mesmo porque no era hbito repassar quele rgo dirigente informaes desse tipo.

    Os alertas do lder chins foram simplesmente ignorados e quase tomados como uma interferncia na poltica do partido. Mrio ficou ainda mais isolado em sua posio crtica e o PCdoB meteu-se na trilha sem retorno das selvas do Par. Mas agora, depois do desastre, o partido precisava voltar Albnia e China para explicar que as coisas no haviam sado exatamente como se esperava.

    Zhu Enlai havia morrido e jamais poderia ouvir o reconhecimento de que suas advertncias haviam se mostrado acertadas. Por outro lado, a situao no PCdoB, em 1976, j no era a mesma daquele ano de 1971. As cristas haviam se abaixado, diante dos golpes sofridos, e as vises triunfalistas da guerrilha do Ara-guaia estavam mudando. Pela primeira vez, em toda a vida de Mrio no partido, as opinies escritas da maioria dos membros do Comit Central iam no mesmo rumo das suas. Mas, se isso parecia representar um avano, erigira-se tambm como um perigo de diviso interna, diante das resistncias srias de alguns s mu-danas polticas necessrias.

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  • Mrio pensava que era fundamental quebrar o velho e constante crculo perverso de que qualquer divergncia interna teria que descambar em racha. Era preciso romper com o hbito de que opinies contraditrias dentro do partido sig-nificavam, inevitavelmente, uma luta entre o certo e o errado, entre o verdadeiro e o falso, entre a esquerda e a direita, entre o proletrio e o burgus, que deveria conduzir os bolcheviques a expulsar os mencheviques, ou seja l o que fosse. Nas condies em que se encontravam, no seria possvel reestruturar o partido e evitar maiores golpes sem conservar a unidade interna.

    Isso exigia, feliz ou infelizmente, mais pacincia e tempo, algo difcil de conservar na situao de extrema perseguio poltica terrorista em que viviam. Ainda mais que o Cid, num esforo temerrio para no ficar em minoria, vinha apoiando o Rui na pretenso suicida de continuar no Rio de Janeiro e realizando contatos diretos com a Joana (Maria Amlia Teles) e a Carla (Crimia Almeida), que haviam sado da priso fazia pouco tempo e poderiam estar sendo vigiadas. Diante disso, Mrio s vezes sentia que seus esforos poderiam no vingar e ser levados de roldo por qualquer golpe do azar. Sempre temera o acaso, aquela re-sultante de milhares ou milhes de causas aparentemente desconexas, que emergia repentinamente diante dos homens e os tornava impotentes para enfrent-la. E costumava repetir que os acasos, as famosas coincidncias que achvamos imposs-veis de acontecer, eram muito mais comuns do que a maioria supunha.

    Alem disso, os problemas da avaliao do Araguaia no se reduziam s di-vergncias com Cid e Jota. Havia ainda outro aspecto, extremamente sensvel e importante, cujo tratamento merecia cuidados especiais. No se podia jogar fora todo o idealismo, o desprendimento e o exemplo dos mais de sessenta companhei-ros que haviam morrido l. Isso no era fcil de evitar. Os erros tinham sido de tal ordem, e alguns to estpidos, que era preciso um esforo redobrado para no cair no mais puro negativismo e para no desdenhar a experincia fatal vivida por aquele grupo de companheiros.

    Eles faziam parte de uma gerao que no vacilara em colocar em risco suas vidas, nas selvas paraenses do Araguaia, para tentar o caminho da rebelio armada. Na histria brasileira, todas as tentativas desse tipo foram esmagadas a ferro e fogo pelo poder, embora a seu modo, mesmo na derrota, tenham contribudo para o avano social. Por isso, Mrio alimentava a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a histria os colocaria na linha sucessria dos guerreiros indgenas que resistiram ocupao e escravido portuguesa, de Zumbi e dos negros rebelados contra a escravido, de Felipe dos Santos, Tiradentes, lucas Dantas, Cipriano Barata, Frei Caneca, Vinagre e tantos outros que deram a prpria vida na luta pela liberdade.

    No conhecera todos os mais jovens que haviam se incorporado guer-rilha. Mas guardara uma bela recordao do Haas (Joo Carlos Haas Sobrinho), da Helenira (Helenira Resende), da Dina (Dinalva Conceio Oliveira) e, espe-

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  • cialmente, do Osvaldo. Osvaldo Orlando da Costa era um gigante de bano, impressionante pelo porte e, mais ainda, pelo sorriso cndido que fazia seus dentes alvos contrastarem com a negritude da pele. Mrio tambm se impressionara com a disposio com que abandonara o final de seu curso de engenharia, na Tcheco-eslovquia, assim como a perspectiva de uma carreira profissional de sucesso, pelas incertezas e riscos da luta revolucionria.

    Mrio espantava-se ainda com a simplicidade com que Osvaldo contava as mais incrveis experincias da floresta e do valor humano como se fossem simples atos do cotidiano. Sentir a noite cair rapidamente sobre a floresta, sozi-nho como uma andorinha desgarrada aps uma chuva torrencial, acender uma fogueira, desnudar-se, colocar a roupa para secar ao calor do fogo, comer alguns biscoitos para afugentar a fome e deitar-se calmamente para dormir, ouvindo o esturro da pintada, para ele era como se estivesse na casa dos seus, em Passa Quatro, perto do forno de assar pes e ao som do latido do co que pertencera ao pai. Dormia o mesmo sono solto.

    De certo modo, foi com ele que Mrio comeou a entender melhor que o medo era apenas o egosmo feroz dos homens. Sem esse egosmo, o medo reduzia-se e a morte passava a ser encarada como parte da prpria vida, ou vice--versa. Talvez por isso, quando as guas subiam e o povo tinha dificuldade de atravessar o vau dos igaraps, com a mesma naturalidade Osvaldo ficava alerta a noite inteira e era ele que se postava no meio da correnteza, ajudando o pessoal a passar de uma margem para a outra, ou carregando os mais idosos ou as grvi-das, como se estivesse somente praticando um exerccio fsico. Depois de viver anos e anos como ser urbano, adaptara-se s matas amaznicas como se sempre houvesse estado l. E sem jamais perder aquela solidariedade prpria do povo pobre, sem a qual dificilmente sobreviveriam sob o peso opressivo da natureza e das classes humanas exploradoras. Como chamar algum como ele a no ser por seu aumentativo?

    O problema presente no consistia, pois, em apenas avaliar criticamente a experincia desastrosa do Araguaia, as causas