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Júlio Pomar DA CEGUEIRA DOS PINTORES Tradução de Pedro Tamen (colecção arte e artistas) IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

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Júlio Pomar

DA CEGUEIRA DOS PINTORES

Tradução de Pedro Tamen

(colecção arte e artistas)

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

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Júlio Pomar

DA CEGUEIRA DOS PINTORESTradução de Pedro Tamen

(colecção arte e artistas)IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

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OS MEUS TIGRES

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Cá estou de regresso a Paris, depois de ter sacrificado ao culto das férias — essas migrações cegasem que toda a gente se lança em datas fixas, por razões todas confessadas salvo uma: o horror de não«alinhar». Se o caríssimo leitor ainda não suspeitou de que as ditas férias são na liturgia de hoje, tal comoas farsas eleitorais, o que ontem eram peregrinações e carnavais, tenho muito prazer em sugerir-lho.

Antes da minha partida, tinha arrumado o atelier, para no regresso não voltar a encontrar os salvadosdo trabalho interrompido a contragosto. Mas o que aqui vejo agora apenas me produz um efeito estranho,como o contacto com os alimentos retirados do congelador, inodoros e duros.

Dou comigo, é certo, numa aparência de ordem, no meio das minhas queridas armas e bagagens. Aminha toca dá-me os mimos do seu silêncio, da quase-nudez das suas paredes, da ordem viva dosutensílios, da profusão de telas brancas ou só começadas, nesse percurso que às vezes só vai desembocarnum impossível: o de fixar uma aparência ou então mudá-la.

Falta-me sempre o ar no ferro-velho habitual dos ateliers de artistas: a sobrecarga de objectosheteróclitos dá-lhes muitas vezes um aspecto de refugo ou até de lixeira pública. Deixara em casa apenasum estudo por cavalete, e o vazio em torno destas armações transformava-as em forcas, onde facilmenteos quadros fazem o papel de enforcados. Ao olhar para eles neste momento, não pensava no traseiropoeirento das telas que Duchamp ridicularizou, mas em faces macilentas: o atelier soava a oco, e oencontro falhara. Veja-se O Triunfo da Morte de Brueghel: parece-me que se pode encontrar lá o que eusenti — só que o flamengo não puxava ao sentimento.

Na cruz que segura a grade em que a tela está esticada, vejo um expositor: se, na imaginária religiosa,a cruz é o sinal da paixão, a verdade é que serve também de expositor do Cristo. Na cruz da minha gradedesenrola-se outra espécie de paixão: nela coexistem e caminham inquietações, dúvidas, fragmentos decrenças, pequenas satisfações, ilusões de conquistas, projectos irrealizados ou desviados, surpresas,charadas— enfim, tudo o que, na melhor das hipóteses, nos aproximará dessa carne enigmática de que sãofeitos uma pedra, uma palha, a brisa, quando entram em relação com a curiosidade e a disponibilidade dealguém que contempla.

Curiosidade e disponibilidade: não estou muito satisfeito com estas duas palavras. Mas, apesar detudo, pergunto a mim próprio se não poderíamos, no fim de contas, denominar assim as virtudessuceptíveis de nos manterem despertos e deslumbrados ao longo deste calvário, cujo número de estaçõesvaria, em que a nossa solidão por vezes resplandece daquilo a que alguns chamam iluminação e outrosvazio.

Com a ajuda das circunstâncias, olhava as minhas imagens com olhos frios. Via-as como um intruso.Se a pintura existe graças à distância, eu carregava nesse instante o peso de tal distância. Lisa como umespelho. É uma velha obsessão dos pintores, esta ideia, para não dizer imagem, do espelho: buracofantasma, gelo dos pólos dos nossos desígnios contraditórios (1).A busca de uma unidade para os nossosdesígnios não faz mais do que lamber a ferida provocada pelo cheio-de-mais dos dias, por muito vazios quefossem. Ora, das minhas imagens tinha-me eu afastado. Como não as tinha revisto, tinha-as esquecido.

1 O único espelho verdadeiro é, para Bachelard, o espelho das águas que Narciso atravessou: e o quedistingue do espelho natural o espelho produzido pela indústria, espécie de concavidade vítrea que manchaas nossas paredes, e aquilo em que assenta o parentesco deste com o quadro, é efectivamente a lesãoque produz com a ofensiva presença dos seus limites, com a separação nítida entre o que pertence aodomínio da imagem e o real ambiente, introduzir numa sala um espelho ou um quadro é praticamente fazeruma colagem em que se matam reciprocamente dois mundos sem escala comum: o meio que nos rodeia eem que nos deslocamos e esta aparência de janela, de buraco ou de poço onde espreitamos surpresas econfirmações e que, se nos atrevemos a tocá-lo, nos remete, despaisados, para uma superfície cega.

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E ei-las a porem-me questões que dois meses antes teria achado ociosas. «Que fazem aí esses tigres?»Dizer «esses tigres» é já um abuso ou uma precipitação, e sempre um vício de forma: no quadro que alitinha à minha frente, o que se podia ligar à aparência de um tigre só ocupava na verdade uma pequenaparte da superfície total e quase se reduzia à apresentação da cabeça do animal recortando-se contra umcinza-prateado. Eu disse «cabeça», no singular, e no entanto aquele sinal era duplo. Tratar-se-ia de umanimal de duas cabeças (como é de uso nos brasões) ou, muito simplesmente, de um casal de feras?Pouco importa. Mas tudo ao lado era desprovido de redondeza, achatado, como aquelas peles estendidasou penduradas para enfeitar, diz-se, o pavimento ou as paredes. Do mísero troféu saíam as cabeças numabossa redonda, de boca e olhos bem abertos.

No meu quadro, o pêlo às riscas, despojo ou destroço de contornos indecisos, não existia: em seulugar abre-se —ou desfaz-se? — um guarda-chuva acinzentado, cuja seda de reflexos metálicos ocupatoda a largura da tela e cujo cabo se mostra sem equívocos, na sua redonda magreza. Abrigadas sob estaparódia de cúpula, três mulheres nuas caminham com passos miúdos. As pernas parecem a colunatadaquela arquitectura instável, junção incoerente que recompõe o plano da tela — e mais adiante, não é queeste se entreabre ou, antes, se rompe, para libertar um bando de elementos de geometria cortante?

Acabo de contar o meu quadro, como um autor dramático se demora em pormenores quanto aocenário ou à qualidade das personagens antes de dar livre curso às paixões e aos fantasmas. O leitor ou oespectador ganharão algo por disporem desta espécie de sinais particulares ou de bilhetes de identidadeque, como todas as formas convencionais de fichagem, apenas consignam as aberturas públicas dosobscuros embustes de cada um?

E agora lá vêm as questões que tantas vezes me puseram: «Porquê esses tigres?», «que fazem elesaqui?» Este tipo de questões aborrece-me. É o mesmo que perguntarem-me porque é que estamos noInverno...

Se, no lugar de um tigre, eu tivesse pintado uma couve-flor, ninguém se espantaria com isso. Umapequena correcção: substituam a couve-flor por um limão ou uma maçã. Se me sujeitar aos usos, serespeitar a norma, ninguém me achará extravagante. As maçãs, tal como os quadrados, pertencem aorepertório dos pintores. A minha insistência na couve-flor já seria tomada como sinal de uma aberração oude uma obsessão duvidosa, a não ser que eu tivesse nascido na terra das couves- -flores. Toda a genteaceitou que em determinada época da minha vida eu tenha produzido quadros em que se podiam vercorridas de touros ou de cavalos, isto é, assuntos classificados, e honrosos porque classificados. Nãopretendo ir desencantar santos e senhas nas práticas das Igrejas de serviço — como as farmácias ondepodemos encontrar à noite ou ao domingo com que acalmar dores de dentes, angústias, etc...— parainsinuar que sonho com copular com belas poldras, ou para dizer que os testículos do touro associados àstetas da mãe amamentadora são uma rememoração inconsciente da cena primitiva e fornecemdefinitivamente a chave dos meus sonhos (2).

Se me tivesse deixado ficar na música dos quadrados, então gozaria seguramente da paz absoluta, sóque, como autêntico burguês podre, recusaria participar na luta de classes ao lado do proletariado. PaiJdanov que estás no Céu...

Todos os meus «assuntos», encontrei-os ao acaso dos dias. E acho que o assunto em pintura (o que érepresentado) acaba por ser mais o lugar em que se joga do que a própria finalidade do jogo. O que nãoquer dizer que se escolha arbitrariamente (tal como não são arbitrários o lugar onde se faz amor, o próprioobjecto desse amor, etc.).

O que se passa entre o pintor e o que ele torna visível ao nível do assunto apenas desvia a atenção doque esse pintor faz produzir-se sob o campo do representado. O que é comestível no caracol acha-se edistribui-se no interior da casca. E ainda é preciso cozê-lo e temperá-lo com alho e as convenientesespeciarias.

(2) Por igrejas entendo os discípulos de Marx, Freud e Cª, que não têm culpa nenhuma...

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Sobre a mesa de dissecção que é para mim o plano da tela em que pinto teve efectivamente lugar oencontro de um tigre com um guarda-chuva. Vejo neste felino a grande máquina de des-coser que vaidesencadear inúmeras associações — o que sinto ao mesmo tempo como uma violação e como umaexibição. Passemos, pois, da grande máquina de des-coser ao meu guarda-chuva, morcego mecânico de ventrevazio. Porque havemos de admirar-nos de que esta «máquina celibatária» que anda pelas ruas se venhaacoitar aqui? Quanto a mim, é problema que não se me põe, tendo como tenho uma certa experiência e atéo gosto dos encontros imprevistos. Mas é problema que me puseram e que me hão-de pôr; por isso é queme sento à secretária, por isso é que me disponho, de caneta em punho, a forjar o meu escudo. Ao acasodas palavras, irmão do acaso das formas, onde o inominável, feudo do pintor, se deixa apanhar naarmadilha. Irmãos gémeos talvez, mas que receberam educações diferentes e têm dificuldade em dialogarpara além das fórmulas de cortesia. «E que tem aqui o tigre a ver com o guarda-chuva?» Se outros atributos, dos mais sedutores da feminilidade, viessem em auxílio da minha imagem emformação, a norma estaria salva: a operação aparentava-se com as rimas de dicionário, com as metáforasmais socializadas, com os sonhos de menos feitiço. Entre a rigidez e a fragilidade do guarda-chuva e a força e a flexibilidade do tigre, eu não imaginoqualquer relação — para além do facto de toda a proposição atrair a sua contrária. Toda a cor projectasobre o que a rodeia o halo da sua cor complementar, e foi isto a alegria e o detonador da pinturaimpressionista. O guarda-chuva, falo enluvado, tem a dignidade presa por um fio, a ponto de a metáfora ameaçar mudar-se em atestado. Basta um golpe de vento para lhe desmanchar a geometria — presa, não por alfinetes,mas por várias... varetas—, e o mais elegante dos guarda-chuvas transforma-se no pára-quedas dopalhaço, objecto de riso. A regularidade das riscas do tigre, ou antes, se olharmos bem, a sua impressionante irregularidade,desenha à mão levantada o comentário da sua estrutura formidável. Este comentário ondulante, espécie dediscurso gráfico que combina diferenças e semelhanças, tira a sua lei do ritmo pautado pela ossatura, ondemergulha a omnipotente elasticidade dos músculos, sob a pele flutuante. Pelo contrário, as nervuras do guarda-chuva erguem-se, rígidas, à flor da pele: bastaria um quase-nadapara deixarem para sempre a fina membrana cuja tensão regulam. A sua geometria radial soldajas ao eixoao longo do qual hão-de deslizar. O guarda-chuva tem que ver com o desenho geométrico, cujo utensílio é,por excelência, o tira-linhas. O tigre verdadeiro dir-se-ia caligrafado por um desses flexíveis pincéis chineses, concebidos para recebere enriquecer o gesto aéreo do punho e do braço. O pintor ocidental inventou o «tento» — uma vara cujaponta, que toca no quadro, é coberta de uma substância macia. O punho tem de apoiar-se nessa varaprotectora para evitar as surpresas e dissimular os vícios da mão quando esta enfraquece. O pintorocidental descansava no «tento» como o padre vai beber ao breviário. A propósito da caligrafia ou da pintura zen, utiliza-se em francês a expressão hasard contrôlé. Trata-se,quero crer, de um erro de tradução: uma palavra cristaliza uma ideia, mas uma ideia que já não está ligadaà mão produtora. Ora, tenho dificuldade em imaginar algo que menos se situe no espírito zen que a imagemdo pintor sentado numa torre de controlo, guiando como lhe convenha a aterragem do acaso. A verdade éque este nem se controla nem se regula. O mais que podemos é aceitá-lo ou não, e faremos corpo com elese dispusermos da sabedoria ou da inocência necessárias e suficientes para deixarmos aparecer todas asvirtualidades.

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Um quadro nasce sempre de outro quadro: Picasso .gostava desta frase e fazia largo uso dela. Tambémeu poderia encontrar para a minha associação insólita um antepassado: a enorme umbrela com que Baconcobriu alguns dos seus açougues — ele que sabe, e com que abundância, tirar proveito da representaçãodos objectos esquecidos pelos pintores: lâmpadas solitárias, pontas de cigarro, mobiliário metálico. Ou,então, poderia também remeter o espectador para debaixo da cúpula de S. Pedro, guarda-chuva dacatolicidade.'No meio deste meu quadro, na parte superior, para a direita, está incrustado um hexágono azul. É estável,sólido, nítido. Estabelece simultaneamente a íntima ligação e a distância entre as duas cabeças de tigre e,situando-se na horizontal, torna-se a chave da abóbada da arquitectura incoerente que o quadro abriga. Oslados oblíquos do hexágono seguem as diagonais do quadro, no qual ele é o elemento mais colorido. O seupeso cromático é contrariado pelo amarelo ácido da forma que se perfila em quarto de círculo, atingindo omeio do bordo esquerdo, precisamente onde partem os quadrados voadores. Pergunto a mim próprio muitas vezes porque é que nos meus quadros ditos eróticos — que foramagrupados sob o título geral O Espaço de Eros, Teatro do Corpo (3)ou (e claro que a troca era inevitável)Teatro de Eros, Espaço do Corpo — o rosto não é nunca tão nitidamente figurado como os atributos docorpo. E eis que de há dois anos para cá a maioria das minhas telas têm por núcleo a imagem de uma ouvárias cabeças em forma de máscara deste animal-alvo: o tigre; e isto, com o fim evidente de agarrar oolhar do espectador (segundo um processo semelhante ao que levou De Kooning a colar sobre a tela umpedaço de cartaz com os lábios de Marilyn Monroe, para fixar o olhar que hesitava diante do frenesimgestual; ou então, muito antes dele, os cubistas a usarem caracteres de imprensa). Parecendo auxiliar oespectador, oferece-Ihe uma história conhecida, peça de caça que leva ao engano (e ridiculariza, oumacaqueia) o que dá a reconhecer.No meio dos polígonos voadores pode ver-se um pedaço de cauda, cuja curva será miniaturizada maisadiante pelo cabo do guarda-chuva. Foi talvez na sequência de uma dessas operações (de aproximação ede afastamento, de ampliação e de miniaturização) que a cauda de um tigre se metamorfoseou em cabo deguarda-chuva. E, uma vez realizada esta metamorfose, ter-me-á acudido o desejo de preencher o espaçoque ficava vazio com a cúpula portátil que o guarda-chuva é. Passados meses ou anos (mas poderia dizer igualmente dias, ou até horas), se tento inventariar o que deperto ou de longe tem que ver com os meus trabalhinhos de pintor, nunca posso garantir que a forma comoconto essas cristalizações de factos seja autêntica, nem a ordem pela qual essas formas foram chegando àsuperfície dos meus quadros. O enigma é uma coisa, a chave é outra. Se nos propusermos reunir o enigmae a chave, passamos em silêncio a prestidigitação e suas malícias. Para completarmos um puzzle,frustramos a sua fragmentação; ora, a fragmentação é a natureza —ou razão— do puzzle.Uma forma que identifico com a origem da cauda opõe-se à geometria dos polígonos voadores (geometriaque estabelece um campo em profundidade). A sequência das riscas, por seu lado, interrompe-se no exactomomento em que parecia que iria continuar. Como se tivesse sido rasgada para deixar aparecer asequência dos três pares de nádegas, onde se inicia a imagem das três mulheres que caminham compassos miúdos.

( 3) - Foi Roger Munier quem deu ao texto que escreveu para a primeira apresentação desses quadros otítulo L'Espace d'Eros.

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O cabo do guarda-chuva retoma, miniaturizando-a, a curva da cauda do tigre. Esta relação entre rabo ecabo será retomada noutras telas. Assim, no quadro a que chamei ...Nunca!, o arco descrito pelo cabo doguarda-chuva ocre-alaranjado, que voa e vai agarrar-se à borda esquerda do quadro, inscreve-se num ritmohelicoidal que o liga à cauda esbranquiçada, também ela unida a uma figura feminina, vista de perfil, que seinclina para a direita. Ao longo do mesmo lado, no canto direito do quadro, enrolam-se as volutas de umagrande cauda isolada. Quanto ao primeiro plano do quadro, é ocupado pelo traseiro feminino para onde sevira o focinho de um felino, ao qual outro guarda- -chuva serve de fundo ou de auréola. Tudo isto se recortacontra uma cortina cor de borra de vinho que fecha o espaço liso deste teatro. E eis, de novo, a bocarra deum tigre, mas desta vez vista de perfil, que, parecendo cair, se segura no lado superior do quadro,indicando displicentemente o vazio central da cena. Comprazo-me em deslindar, post-mortem, esta intriga, uma vez que a minha intervenção nesta telaterminou há muito. Vítima do destino, como em toda a tragédia clássica, o herói pergunta a si próprio:«Porque é que fiz tudo isto?». Tinha começado por chamar a este quadro Os Gregos... Nunca! — e acabeipor despedir os Gregos (cuja comodidade é sempre grande nas fábulas sobre •a actualidade que nosescapa) para conservar apenas a tranquilizadora imprecação ...Nunca!

Palhaço aterrador, o tigre. Dir-se-ia talhado para os jogos e para a luxúria do circo. O que faz a alegria, e do mesmo modo é causa profunda da perturbação do circo, é a presença, risívelou angustiosa, do que ultrapassa o possível ou, pelo menos, finge ultrapas- sá-lo. O possível: ameia damuralha que nos é própria. O impossível, esse, sendo o que não deve ser arriscado, guarda um vago sabora apólice de seguros. Mas é de gosto que se representa no circo. E o que se representa é o apesar de. O circo é o reino dodisfarce: os seus atavios ultrapassam e contrafazem os equilíbrios convenientes, e é do seu excesso quetira vanglória. No circo, tudo é de mais, e este de mais pertence ao domínio da ambiguidade, do qual é aomesmo tempo paródia, para rir e para assustar: paródia absurda dos fundamentos geminados do vivido edo visível. Quando o visível vive o desnudar dos eternos celibatários que o artifício do círculo de luzacasala. Se os palhaços e os funâmbulos escolheram o circo, o animal, esse, é levado para lá à força. Para eles,o circo é o espaço, o próprio corpo da sua malícia. Mas o animal, cujo espaço continua a ser sempre ajaula, está sempre lá coagido. O domador, para afirmar bem os seus poderes, dá uma gala para festejaressa coacção. A evidenciação das dificuldades do amestramento é obrigatória no circo. É preciso mostrar aferocidade das feras e recordam-no-la a todo o instante. No ritual muito codificado do circo, para que o tigrepossa ter ademanes de gatinho no fim do número, é preciso, antes de mais, obrigá-lo a rastejar pela jaula epasseá-lo entre as grades, fazer silvar o chicote, exibir o tigre rugindo e rangendo os dentes e provocar assuas formidáveis patadas. No fim do espectáculo, palhaços e funâmbulos abandonam os seus disfarces, retiram a maquilhagem,desembaraçam-se das tintas que acentuaram ou inventaram a sua anatomia da noite. São outra vez,finalmente, Senhores Fulanos. O tigre, esse, nunca. Passeia, à paisana (e o à-paisana do tigre de circo ébocejar na jaula), as suas vestes luxuosas, o pêlo listrado de duplo forçado. Único verdadeiro palhaço, semoutra identidade além da que imita em cena, o seu rosto é inseparável da máscara, e o seu corpo daamplíssima veste. Todo o peso do tigre se faz de veludo quando se desloca. A flexibilidade do seu movimento é acontrapartida da máscara, onde o mínimo sinal é pesadamente sublinhado. Como no rosto dos actores no

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tempo do cinema mudo: o silêncio ou a ausência de palavra vão de par com o carregado dos traços. Mas que relação é esta, tão evidente, entre as riscas de pêlo e as grades da gaiola? Só conheço ostigres enjaulados, no circo ou nos jardins zoológicos — já que ninguém me convidou ainda a ir aos paísesonde vive em liberdade. O mecanismo das riscas será a premonição, a sombra, a marca ou a queimaduradas grades? Literatura. Mas olhe-se para a fotografia a preto e branco de um tigre na jaula — pois é ela queme parece a mais perturbadora, a mais próxima da terrível evidência da luz sobre as coisas; a fotografia acores ficou até agora mais próxima, para mim, do calendário dos Correios do que da arquitectura real dascores. Ora bem, as riscas, as grades e a sua sombra intrincam-se a tal ponto que é preciso fazer um esforçopara dizer a que sistema de listras se refere cada elemento deste triplo jogo de paralelas.

Incapaz, mesmo se me esforçar por isso, de desenhar as grades na sua regularidade, também nãoconsigo conservar no meu quadro o mínimo de sinais destinados a sugerir o pêlo listrado. Também nãoconsigo contabilizar o que é repetitivo. Nem cem estágios numa dessas escolas especializadas daJugoslávia ou de outros lugares fariam de mim um desses pintores a que se chama naifs e que debitam aretalho os cabelos de uma cabeça ou as folhas de uma árvore. Talvez seja como compensação quemultiplico o que deveria ser um. Por gosto pela síntese, multiplico. Este mal afligia já Cézanne, quedeslocava as estilhas dos contornos à medida que a análise do que via progredia no tempo. O quadro ésempre mais ou menos atravessado por chegadas sucessivas de notações e de acontecimentos. Se omercado da realidade é a tela principal, o quadro é campo e amostra dessa realidade. Uso talvez a repetição porque desejo refazer uma operação: para a redefinir, para melhor apreender oseu sentido fugidio, que é a marca própria do que é vivo. E parece-me que estas repetições não são nuncaos elementos anónimos ou todos semelhantes de um sistema de quadriculação do espaço, elementos queviriam alojar-se num xadrez de grelha antecipadamente traçada. Não. Cada um deles é um nó. Tem afunção de uma vértebra nessa espinha que é a nossa deambulação no coração do vivido. Coração: palavraarbitrária. Poderíamos dizer carne — deixando-nos conduzir pelas redundâncias que são os ossos e osnervos da expressão herdada. Poderíamos rasurar a imagem, tentar endurecer a palavra. Imagens epalavras: esforços — atrasados — para atenuar a distância que nos afasta do vivido.

Como as putas e os restaurantes Mac Donald, as minhas imagens estão na rua. Mais uma vez, o que noatelier parece incongruente, nada mais faz do que retomar o folclore miúdo do domínio público. Oacasalamento da fera e do guarda-chuva, acabo eu de o notar no cartaz de um banco, e já me rói a sus-peita de o ter visto antes —o que é muito provável, visto que este banco não fica longe da minha casa, numsítio onde passo muitas vezes. O cartaz apresentava a caricatura de um felino oferecendo à arraia-miúda aprotecção de um guarda-chuva. A linguagem publicitária nasce selectiva: só se apodera da imaginária comum. A linguagem dos políticosé do mesmo modo selectiva. Os lugares-comuns andam num vaivém constante entre estes dois discursos.Recorrendo à operação-chave da mecânica do humor, estas linguagens, para serem eficazes, tiram o seuefeito do salto que abrevia de uma só vez a distância entre situações distantes. No entanto, a diferençaentre um discurso eleitoralista ou publicitário, de um lado, e o do humor mais ou menos negro, por outro,particulariza-se pela escolha da linha de meta, onde se situa a conclusão que se pretende impor, e essaescolha determina a cor do escorço: o humor irrompe da vertigem da queda, desvelando o absurdo na sua

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quotidianidade, enquanto a publicidade, como o discurso político, tem de tranquilizar as pessoas,amontoando-as no interior de uma categoria de consumidores. O tigre, metáfora do poderio: «meta um tigre no seu motor». O guarda-chuva, prótese tranquilizadora.Tudo isto pode também ter lugar entre as antinomias do tipo faca-maçã, mesa- -parede, na gaveta onde opintor arruma os instrumentos das suas naturezas mortas. As vacas prosaicas comem as alfaces do poeta;e nós untamos com a sua bosta o invisível ornamento de circunstância que se usa nessa ausência de festaque são o casamento ou a prostituição do quotidiano. É pela escolha da imagem que o poeta ou o pintor usam o quotidiano. E o destino da imagem torna-seoutro, des-neutra- liza-se, e daí o espanto das pessoas que nela já não reconhecem o que é de todos osdias. E não estão enganadas. Rápido olhar ou fixação no quotidiano, a imagem abre-o ou volta-o contra sipróprio, na medida em que é o reverso do inesperado. Este quotidiano, tido por neutro, ou nulo, e cujabanalidade já não detém a atenção, torna-se então peça e lugar de arquitectura, trama que vem do fundo dotempo e que se lança para o desconhecido — esse desconhecido com o qual o homem sempre tem deconformar-se.

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PISAR O MESMO CAMINHO

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Passado o impulso inicial, muitas vezes me sinto desarmado diante da tela já -não virgem e que patinhanos pântanos do meio do caminho, sem saber para onde hei-de orientá-la. Quando penso nos bons trintaanos passados neste ofício, com os seus hábitos e os seus sobressaltos, o único benefício que creio poderter retirado deles é efectivamente o de já não sofrer angústias semelhantes à que nos provoca um teatrosem saídas. Ousaria até acrescentar: oxalá continue assim. Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. E lá me encontrei: situação sem conforto,de que há que partir. Isto vale para a pintura e para o resto. Assim amanhamos coragem para nos convencermos de que agarraremos um dia o que temos aimpressão de ter perdido. É falso. O que perdemos está perdido, e aí ficamos. Do que foi perdido,desperdiçado, destruído, já não há nada a esperar. De acordo com a moral das famílias, foi aliásexactamente para isso que se destruiu, se desperdiçou, se perdeu. Para que não volte mais? Monólogosimplório. O traço que apagamos armazena-se nesse entreposto que é a memória. De lá irá sair talvez, um dia, seum acontecimento imprevisto mas concreto, da ordem do pouco que o acaso traz consigo, o empurrar paraa frente. Eu disse talvez: nada nos garante, nada nos segura contra o fracasso ou a perda. É um quadronada tranquilo esta clara imagem que fazemos da arte, prática obscura. Pisar o mesmo caminho. Em todo o caso, este intervalo, mesmo que acabe de repente ou sirva de escalapara outras «desmarcações», é um dos hábitos do pintor. Mas não deve ser confundido com o artifício queestá na origem de um certo estilo «artista», de Salão, quando os falsos repentirs simulam os achados: serhábil na inabilidade, alegria de circo. No atelier faço e refaço — por vezes sem sequer me dar ao trabalho de desfazer. Não só para fazermelhor. Mas também por necessidade de destruir, de remastigar uma dada experiência que não me matoua fome. Para investir, agredir, questionar, estar dentro (dentro do jogo?). Para encontrar a minha imagem naverónica que o instante, como um toureiro, colhe. Não para viver em memória, como se vive fechado emcasa, mas para, fazendo, aguentar o presente. Estaria eu a estender a minha pintura de uma ponta à outra da tela sem me interrogar? O meu trabalhonão consiste em acrescentar, dia após dia. Não segue um esquema pré-estabelecido, como o que servepara a construção de uma casa: as paredes depois das fundações, o tecto depois das paredes. O meutrabalho alimenta-se daquilo que despedaça. Depois de ter engolido os filhos, Saturno rói as unhas. Edepois o coto. Procedo por destruições sucessivas. Rasuro. E estou em crer que a rasura dá o (não) sentido à frase, dáo nervo à forma, dá a vertigem ao espaço.

Pinto, recorto, junto, repinto ou raspo, arranho, pulo, aliso. Para depois não fazer mais, talvez, do quere-recortar, re-juntar, repintar outra vez, e tudo o resto.O meu trabalho passa pela lavra da matéria. Mas esta lavra só episodicamente é busca da matéria em siprópria, por muito obsediante que esta possa ser. É certo que acontece conseguir-se uma qualidade de peleque desafia o tacto, cobrir- -se toda a gama que vai da areia rugosa ao polido do esmalte, do áspero panode juta ao mate do veludo, da transparência à espessura. Mas ainda que, num caso extremo, a matériapictórica se defenda com um contraste brutal com matérias verdadeiras como o metal, a madeira, a pele,ainda que ela se mantenha na primeira linha, ainda que seja sedutora ou excite o olhar do espectador —pobre matéria!, ficará sempre a ser o que ali fica na tela: vestígios, marcas de errâncias e de erros, traçosde uma acção passada, registo do tempo gasto, de mutação em mutação, atrás do engodo ou da esperança

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de uma relação deveras.

Mas se é certo que a matéria que a tela consegue conservar é apenas, a bem dizer, o que permanece, àflor do visível, de toda a lavra do quadro, a verdade é que, porém, ela exerce sobre mim uma atracçãoindesmentível. Para tocar deveras a carne da minha pintura, preciso de um contacto de pele a pele—e a palma da mãoentra-me por vezes no jogo, como a do estampador de talhe doce: ferramenta insubstituível para aqueletoque final que porá o cobre em condições de receber o papel dúctil e húmido e descarregar nele todo o seuconteúdo. E quando, bem recentemente, me apeteceu retomar a pintura a óleo na sua prática maistradicional, dei comigo a modelar com o polegar para conferir à massa untuosa ou ao esfregaço adensidade pretendida, para retirar o que estava a mais, para esfumar, para alisar ou para descobrir ascamadas inferiores nos lugares onde a articulação dos espaços se torna aresta crua ou assinala abismos.

A pintura é táctil, é um convite à mão. Quer o quadro tenha que ver com imagens conhecidas, com um«visto» anterior, quer a profundidade seja simulada ou dada por alusões, a matéria da pintura impõe-secomo realidade principal. Por muito ilusionista que seja a representação, o corpo do representado só serávisto depois da pele da superfície. A espessura ou a transparência do óleo, o mate do fresco, a consistênciada parede ou o grão da tela: esta escassa realidade basta para pôr a nu a ambiguidade das núpcias doolhar e da mão. A epiderme da pintura atrai o tacto, ao contrário do que se passa com a fotografia. Janela imaginária,esta impõe-nos o obstáculo de uma distância, uma espessura gelada. O meio em que se insere a pintura é um corpo oco, habitado pelo espectador que se desloca. Uma pintura começa por ser uma matéria real; enquanto imagem, torna-se miragem. A fotografia, essa,antes de mais nada, relata um acontecimento, dá contas de um «visto». O que faz a grande popularidadeda fotografia cobre com um véu de poeira tantas pinturas!... «Os quadros têm teias de aranha no traseiro»(Duchamp). As fotografias, não. O código é um seguro. A arte é coisa de vertigem. O código tranquiliza. Aarte é perturbação. Daí o êxito das artes que simulam o mistério de forma tão evidente que o espectadorlogo o desmonta e sossega: pinturas de salão, vanguarda de todas as modas, brinquedos fornecidos comchave, puzzles termináveis.

Lavrar a tela. Como se diz lavrar um campo. O camponês: inconsútil duplo mítico do rato das cidades.Mas todos os mitos são duplos, é da sua própria natureza. O número 2: a economia do duplo, a avareza.Ora, a avareza leva à ruína. Mas deixemos os seus ratos a quem de direito e voltemos antes a esta ideia que faço do papeldesempenhado pela matéria no meu trabalho de pintor. Vejo essa matéria sobretudo como os estigmas da paixão que inscreve sobre a tela, na superfície datela, o meu caminho tacteante. Para discernir os poderes do visível. Para encontrar as relações entre astensões e o peso da cor que procura a sua forma, a da forma vitalizada pela assunção da cor.

A paixão do pintor: quotidiana partida do mundo (partida no sentido de pregar partidas?) Rito solitário,festa, mistério. Calvário, droga, bebedeira. Merda para os pintores aplicados (eu incluído).

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«Devo-vos a verdade em pintura», exclamava Cézanne — e toda a sua obra se aninha nesta dobra queenvolve «verdade», palavra fugidia. Na via dos Orfeus pinta-monos, a voz mata: a maldição não atinge aqui o olhar rebelde —terreno dopintor—, mas a formulação do apelo, o próprio acto de dar nome ao objecto da procura. Eurídice, nome deresistência da verdade. O que faz com que esta descida aos infernos não acabe nunca é a chegada dosnomes e das palavras e o seu coito interrompido com o olhar fascinado. Entre o que abre a imagem e a palavra que a cerca, a pintura, acto de violação, explode. Explodir: pôr-sea viver. E um espectáculo inesperado se impõe, ao lado e além do espectáculo preparado. Veja-se«milagre» no dicionário ou onde se quiser.

Se o desenho guia tudo o que se põe numa tela - e esse tudo reduz-se a massas e campos de energia-,podemos arriscar que a cor (no sentido em que com ela se joga e com ela se goza) é também uma questãode desenho. Todo o desenho produz uma cor, disse-o Matisse e provou-o. O que ponho sobre a minha tela (tentando viver com isso, domesticá-lo, libertá-lo ou ser confundido com)explicita-se ou afirma-se se o que ponho sobre consegue estar dentro. Então o quadro começa a fazer-se, ater uma vida, a sua vida própria: a partir do momento em que a pintura faz corpo com a superfície, quandoela se mostra na tela e a mostra a ela, tela, como realidade ou existência outra, que acabamos dedescodificar ou de alicerçar. Nesta liga, cópula, soldadura entre pintura e suporte, nasce o espaço doquadro, a sua razão de ser.

O quadro é o engodo do pintor. Como o objecto engoda o desejo (Lacan), vale mais a caça do que apresa (Pascal). Casar curvas de mulheres com ombros de colinas (Cézanne).

Vá-se lá saber porque é que o meu período de retratos (1968-1976) se afoga em naturezas mortas. E averdade é que nunca me apetecera tentar o género. Atrevia-me até a brincadeiras de algum mau gosto:«...Não sou pintor de naturezas mortas». Decerto para encher vazios de conversa, ou outros, acentuava,ainda que ao de leve, a palavra «mortas» e, como um alforge, esta palavra devia conter uma espécie deauto- -retrato pintado segundo ideias feitas. Verdade se diga, porém, que, à esquerda-baixa do coração, uma admiração sem limites por Chardinsempre me entusiasmou diante das suas pirâmides de fruta e da carne miraculada dos seus utensílios —ditos humildes, segundo infectas rotinas. Relacionava também facilmente os seus belos vazios com aquelestempos tão densos que Morandi assinala entre os frascos e as cafeteiras anónimas. Nessa altura (seria para teimar, para seguir noutra direcção ou para ganhar distância?), precisava deuma espécie de terreno neutro. A neutralidade — duplo desígnio. Sempre me senti tocado de perto pela face humana. Embora para um pintor o discurso psicologicamentenão passe de uma bagatela, nem por isso um rosto deixa de ter dois olhos que nos olham. Quanto aocorpo, porque havia de ser menos personalizado que a cara? Comecei, pois, por deixar entre parênteses a ideia de retrato, e deixei a cor para depois. Eu queria oneutro, não o andrógino. A mim próprio proibia excessos. Com um branco nem quente nem frio e umcinzento semelhante, deixando em baixo, à guisa de pedestal, um franja de tela crua, tentei construir umaimagem a partir de uma recordação de Belle-lsle-en-Mer: alguns rochedos emergindo do mar. A paisagem

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impressionara-me, tomara apontamentos desse motivo e trouxera bilhetes postais. Fiz e desfiz este quadro,até já não poder vê-lo. Entretanto, ocorrera-me a ideia de substituir esta vista, onde os rochedos se apresentavam comoobjectos que se recortavam inteiramente sobre o fundo liso, por uma verdadeira natureza morta, um quadrojá pintado. Foi então que a lembrança de Chardin começou a mexer em mim. Iniciei um estudo a partir deLa Raie (mais um rosto!), e outro a partir de Le Chau- dron de cuivre. Seguiu-se Le Pot d'étain. A partir deJuan Gris, arrisquei as duas telas que foram mais tarde distinguidas com o título Table d es matières. Vivia então uma espécie de purga. Escolhera os simples e confiara aos seus poderes o cuidado dedisciplinar a libertinagem, enquanto o olhar desperto guardava as suas distâncias. O rigor pretendia-seimpermeável ao tremor da mão. Uma geometria cortante. Dei comigo a fabricar quadros que pareciam tersido paridos por luvas assépticas. Nenhum sinal de temperamento na pincelada, a escrita artística eliminadadeliberadamente, nenhuma subtileza de feitura, tréguas na transparência. Tudo se pretendia exacto, seco,impessoal. A violência, essa, passava por outro lado. A cor era levada ao máximo da sua brutalidade, era saturada, ochicote dos contrastes simultâneos feria a retina. Os timbres, pretendia-os tão altos, brigando tanto consigopróprios, que a fronteira entre transparência e opacidade não fosse mais discernível; pretendia essestimbres tão irradiantes dos seus poderes que já não houvesse lugar para outra luz além da que jorrava dospigmentos, previamente escolhidos pela sua pureza. Frieza, despersonalização do acto de pintar: precisava chegar aí, de estar em pleno ali dentro, para tentarnão perder o sentido do que depois se enunciaria como uma busca do vazio, como uma procura do caminhoonde campeia a ausência.

Pintura que parte da coisa para se tornar pintura do vazio, do vazio como coisa; pintura da coisa grávidado seu vazio, da coisa chamada ausência, da coisa semelhante à sua ausência. Pintura que apresenta ovazio que a forma deixou, contra o vazio que a teria rodeado. A forma era assinalada como ausente, novazio que teria habitado. O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dosobjectos, mais do que a sua presença. Na Nature morte au Chaudron de cuivre, a verdadeira plataforma de partida seria esta espécie de toalhaverde-pistacho que se agarra ao lado superior do quadro, como roupa a secar numa corda (ou umabandeira em farrapos). Esta forma de contornos definidos, e meticulosamente executados nos mínimospormenores, não passa de um vazio onde se apresenta o tema. Mas esse vazio, que se propõe comoforma, apresenta-se esvaziado: como se os objectos que se encostavam a ele o tivessem abandonado, nãolhe deixando por herança mais do que os sinais da sua ausência; ausência chãmente dada pela ausênciade cor sobre a preparação branca no interior dos contornos. A ausência marca também a tela crua, virgemde qualquer mácula, que assinala o fundo do caldeirão, a cujo bojo dera, sem pensar nisso, a cor azul, cor,também ela, da distância. O quadro monta-se e desmonta-se assim, de ausência em ausência. Só apelapara o vazio e, além disso, para o vazio que se esvazia (1) Sublinhar a escolha de materiais desprovidos de qualquer volúpia imediata: tela crua, branco dapreparação, um verde industrial, o azul rude. Este estudo dir-se-ia votado a demonstrar a maneira comocomecei a desfolhar o malmequer do vazio. E, ainda por cima, tecia a minha teia a partir da obra de umpintor obcecado pelo lado carnal da presença: Chardin. Também Cézanne o venerava, nunca abandonando a polpa do visível — e a dependência de que sealimenta a carne do «visto». Dando o volume (a presença) através da cor e arquitecturando-o de forma a

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que o quadro se componha no ponto exacto em que, entre ver e querer, começa a oscilar a balança.Por ironia ou por acaso, o único objecto que, uma vez inscrito no meu quadro, conservava a sua presença,o seu volume, o seu peso simulado de coisa real, era uma faca. Após o acto, Jack o Estripador esquece-seda arma no local do crime, e esta entrega-o. Caricatura que assina o quadro, pelo lado da anedota: aquelequadro, tinha-o eu esventrado e, com o que arrancara às suas entranhas, continuava a esventrá-lo.

Postas de parte as atracções específicas que caracterizaram cada período do meu trabalho, sempreuma imagem deu origem a outras imagens, e sempre o meu quadro se fez – ou se desfez! - de sucessivosencaixes ou desencaixes. E muitas vezes se faz à medida que as imagens se desfazem.

Dotado de pouca vontade, deixo-me fazer pelo quadro, e sofro frequentemente as exigências daspequenas coisas insidiosas que procuram impor-se a todo o custo.

Deixar fazer, trabalho invisível. Mas a obre, por natureza, dá ao visível o que lhe pertence. Na fruiçãodesse visível, o pôr a nu, tornado utilização, torna-se, também ele, obra. Obra que vive da tensão entre oque é conhecido e o que acaba de ser realizado e lhe escapa.

Nos anos 60 a forma começou a desfazer-se e, a pouco e pouco, a figuração dissolveu-se. Restava depé o arabesco sincopado que cria o sistema de irrigação da superfície e lhe serve de estrutura, soldando namesma rede barroca as linhas de força do quadro e o esqueleto das figuras. A tensão das curvas queinscrevem os volumes (noestado de destroços) alimenta-se a cada passo de conjunções e roturas. O ritmopermanece sempre marcado, a escrita fragmentada. É ainda possível fazer, em diferido, a leitura doespectáculo, sem hiatos no espaço e no tempo da acção. Mas, nos anos 70, as formas despedaçadas já não se recompõem, pelo menos no quadro estrito deumavisão instantânea. Eu já não fazia explodir (a partir de dentro ?) as minhas formas, para depoisapanhar os restos e recompor mais ou menos a imagem inicial. Todo um trabalho em lentidão, para umolhar fetichizado, ia substituir o registo do espectáculo dinâmico. No plano vertical da tela, o vazio afirma-secomo o campo da memória, onde se depõem algumas recordações e onde invento outras. A tela torna-seum écran de onde emergem pormenores mais ou menos exactos, sinais do rosto, emblemas do corpo, aolado de geometrias ambíguas, farsas mecânicas. O quadro já não é a batalha, e menos ainda a sua

(1) «Articular o vazio pelo vazio, estruturá-lo enquanto vazio, retirando- -Ihe a estranha irregularidade que sempre desde

o início o especifica como vazio: é assim que os sinais de espaço —pontuação, acento, escansão, ritmo (configuração) —,

preliminares de toda a escrita, fazem o jogo da diferença e entram no jogo. Não que sirvam para traduzir esse vazio ou para o

tornar visível, à maneira de uma notação musical: pelo contrário, longe de reterem o escrito ao nível dos vestígios por este

deixados ou das formas que concretiza, o que lhes é próprio é indicarem nele o rasgão, a rotura incisiva (a traça invisível de

um traço) pela qual o dentro regressa eternamente ao fora, ao mesmo tempo que nele se aponta ao poder de dar sentido e,

como sua origem, a distância que sempre dele o distancia» (Maurice Blanchot, L'Entretien infini).

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representação: é antes a sua panóplia. A caligrafia mais ou menos gestual desaparece: os entrelaçados,até aí abundantes, tornam-se raros, e vemo- -los apenas reaparecer no jogo dos contornoscuidadosamente preparados.

Como se me tivesse esforçado por agarrar sem escolha prévia os vestígios de uma imagem sobreoutros sinais; como se tivesse esboçado, sobre os acidentes da tela, ao acaso do que o olhar apreende, orauma semelhança tão perfeita quanto possível, ora uma afinidade provável com sinais particulares, mas quenunca se definiriam na sua totalidade. O corpo, o aspecto, a forma de aparecer, de parecer, de parecer ser: tão particularizados como asfeições do rosto — essa tradicional identidade do imediato. À maneira do passageiro que encontra no ruído neutro do comboio as cadências de uma cançãoconhecida, remendamos o que se propõe como recordação, apoiamo-nos em coincidências que só existemcomo projectos ou nas feridas do corpo, de coração aberto. A memória regista um certo olhar mais depressa do que a forma dos olhos; antes da precisão doscontornos impõe-se o aspecto do corpo, o arco da cintura, o movimento das sobrancelhas, o que passa noar quando alguém se deita, se senta, recomeça a andar. E, paralelamente, há manhas que surgem. Algumaspequenas personagens (serão personagens?) chegam de repente: entre um bico de seio e de sexo,caricaturam, à sua maneira de não terem pés nem cabeça, outros comportamentos, novos olvidos. Em pequenos lugares, no canto de uma mesa, na esquina de duas paredes, na fenda das cortinas, entreum objecto e outro, vêm colar-se emblemas. Em vez de se entregar na sua integridade, a imagem chegaaos pedaços. «Cheios» e «vazios», estes compõem, num espaço delimitado, o encadeamento tranquilizadorque ( por vício ?) exigimos seja respeitado por coisas, cidades, seres, acontecimentos. É a história de escrever a história... inevitavelmente depois dos acontecimentos. Mas propomo-nosordená-la segundo uma linha contínua. Por muito flexível que seja, a linha que passaja o tempo, num golpede varinha mágica, dá efectivamente sinal de partida para a mutação do que se vive em vivido, anunciasobranceiramente o fim do acontecimento, essa carcaça que é o nosso pão quotidiano. É a esse balcão depadeiro que vamos comprar seja o que for para enganar a fome. Cioso da minha tela quase centímetro por centrímetro, sempre tive dificuldade em separar-me dela, istoé, em aceitar o fim da minha sessão de trabalho. Procuro a fenda onde mergulhe e permaneça, lambendoou raspando — adiando sorrateiramente a partida para novas plagas. A imagem fixa assinala a ausência do tempo, mais do que a sua paragem. «A imagem fixa não temrepouso» (Blanchot). Repouso que é alegre simulação da morte, tranquila beleza.

Um quadro nunca está acabado. É impossível acabá-lo (Motherwell). À falta de uma convenção exacta, ofim do quadro, na medida em que este é concebido como um processo aberto, depende da cortinaimaginária que virá pôr termo à acção do pintor. Uma fractura, um acontecimento qualquer ou o simplesesgotamento limitam muitas vezes o tempo de produção do quadro, talvez à maneira do enquadramentodesleixado de uma fotografia de amador, o que acrescenta ainda mais arbitrariedade à arbitrariedade doquadro. A razão penetrante de Duchamp encontrou a bela fórmula «definitivamente inacabado» para opassaporte da Mariée.

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TEATROS

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Quando me acontece aceitar a aposta de escrever, o meu maior prazer é o do momento em que, aoaproximar-me do nó da questão, corto, acrescento, altero. Falo de tocar, e não de retocar, que é práticaimunda. Vem de outro circuito a luz que me aquece na área do primeiro jacto: quando vejo a pena correr atrásdas palavras. Deixo-me então arrastar na caça traiçoeira ao que creio ver agitar-se lá fora (ainda que estefora se reduza ao meu foro interior). O nó da questão: memória, presságio ou inquietação mais ou menos difusa, cujos poderes nunca seconhecem com antecedência. A imagem corre o risco de esfumar-se se o esforço que a há-de travestir paraa transformar em moeda corrente (palavras ou formas) —digo bem travestir, e não investir — recorta semjeito a zona de sombra em que o sentido cintila. Ela surge-me como saída de um espelho e, embora nãotenha a certeza de menosprezar a existência desse espelho, ignoro apesar de tudo de que lugar ele mebombardeia com os seus reflexos: a imagem impõe-se, rebelde e reveladora (mas de quê?), insólita(sobretudo?) pelo facto de o ângulo sob que se apresenta não ter sido escolhido ou previsto.

Escrevo e re-escrevo da mesma forma que me sinto inclinado a pintar e a inscrever uma forma novasobre a forma pintada. Forma nova que quero mais crua ou subtil, a fim de ser ou de dizer a verdadeapenas entrevista no primeiro jacto. Ser ou dizer: verbos inimigos e, aqui, sinónimos. E isto nada tem quever com aquilo a que chamei, dando livre curso a minha veia entre moral e melodramática, a prática imundado retoque: quando alguém me fala de retocar a sua prosa ou o seu quadro, não posso, com razão ou semela, deixar de pensar naquele esmero superficial com que se pretende dissimular pequenos defeitos, pêlosou cicatrizes. Na minha pintura, ou na página em que escrevo, em vez de esfregar o esmalte da minha panela (sabeDeus como me agradam os obsediantes acabamentos!), raspo, escavo, insisto até aos achados acidentais eparcelares das imagens que considerava falhadas. Seria melhor dizer «até ver surgir», para dissociar bem o que vejo aparecer do que pretendia veraparecer; porque, embora o resultado me pareça às vezes satisfatório, a verdade é que se me impõe nasequência de manobras orientadas para outros fins. Se no que então se me impõe —é real que se me impõe, mais do que obtenho —, a minha vontadedesempenha efectivamente um papel que não é menor (mas todo o drama inclui vários actores), ela é umaespécie de grelha —ou será a tessitura de um sudário? — em que se sobreimpõem as marcas dostrabalhos de aproximação que se sucederam, cada um dos quais havendo de dominar o anterior,condenado por mal desbastado. Caminho feito às apalpadelas, cuja alegria, quando corre bem, parece ficar a dever-se aos entrelaçadosinvoluntários da memória e do olvido, que se sucedem no pano de fundo que tem por nome (e hesito emchamar em meu socorro esta palavra insensata) o real. É o momento de dar livre curso a três dos meus vícios: o que consiste em repisar o mesmo caminho, atimidez e a mania da precisão. Portanto, em vez de real, falarei «daquilo a que chamamos real». Eremendarei ainda este uso gasto com outro tecido da moda: o vazio. Logo, embalo-me em voltas-atrás que terão talvez por finalidade ajudar-me a construir á ilusão que mearrima ao presente, se não a recortar o espaço do presente sobre o que posso tocar com as mãos. Arte em que o tempo se inscreve em escorço, a pintura vive da ausência de duração. O seu engodoseria pretender inventariar a duração—esse objecto de desejos insaciáveis. O olhar é a criança que,

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deixada só, logo se aborrece. É preciso encontrar-lhe algo que mexa, ou um farol onde a pendurar. Ou,antes, varandas: para a livre troca das sementes e dos frutos da recordação e da experiência. Encaixes deacções de várias velocidades. Arte do visível — e a mais desprovida de meios das artes visíveis—, a pintura vai buscar o seu trunfoprincipal, mas também as suas armadilhas, ao que não pode mostrar, no instante em que se entrega ãcontemplação. Se não sugerindo, insinuando, subentendendo. A relojoaria mais sofisticada não conseguiránunca medir o tempo explosivo de uma imagem fixa, acompanhar os batimentos do coração da cantoramuda que é a superfície, engodo do pintor. A palavra perde-se-me ou anda à deriva, como tinta que escorre sobre um suporte acidentado. Tentofalar de uma coisa e perco-me para dar comigo diante doutra peça de caça que levantei sem querer. Ao reler o que escrevi acerca das singulares imagens produzidas por uma amiga pintora (1), epersuadido de ter realizado o meu projecto (depois de ter remodelado de alto a baixo uma primeira versão,composta sem preocupações de rigor ou de clareza, num estado de semiautomatismo durante o voo queme levava a Nova Iorque), dei-me conta de que diminuía consideravelmente o alcance do que pretendiasalientar. Seria para aligeirar o peso, sempre excessivo, da singularidade ou para lançar a âncora emáguas, se não conhecidas, pelo menos comuns? Tinha eu descoberto naquela obra aquilo a que chamava uma ou, antes, a sua dramaturgia, e de repentepareceu-me que todo o pintor, toda a pintura, possuía uma dramaturgia. Ora, esta última asserção, que nãopodemos propriamente qualificar de imbecil, nem por isso contribui para esclarecer o que quer que seja. Queria eu, por uma retirada precipitada, proteger a minha pequena descoberta, dando-lhe imediatamentea caução da normalidade? Ou furtava-me às consequências de uma afirmação tão evidente que não tinhaqualquer vontade de a provar? A coberto de uma universalização premente, afogava deveras aparticularidade que inicialmente me tinha impressionado como tal. Retirava o sabor aos pratos que me tinhaproposto dar a saborear. Esta inépcia com que deitava a perder a minha intenção não deixa de estar relacionada com a históriaque Jean Genet nos conta a propósito de Giacometti, ou, mais exactamente, com as conclusões que fuiobrigado a tirar dela. Citei-a muitas vezes, antes de renunciar a isso, desencorajado pelos magros proveitosque dá. A acção passa-se no atelier de Alberto Giacometti. O artista desenha o retrato do poeta. De repente,pára, olha para o seu modelo e diz-lhe: «Como tu és belo, Jean!». Espanto de Genet. «Sim, és belo, comotoda a gente». Num jantar de vernissage (manifestações que não me entusiasmam por aí além e a que me esquivosempre que possível), a pouca sorte, ou a obrigação em que me achei de vencer o meu mutismo, levou-mea citar esta frase. E, como prémio, tive direito à confirmação da perfeita e caprichosa beleza do poeta porparte de um senhor que se gabava de ter conhecido bem Genet em novo: «Usava muitas vezes um fato àmaruja».

Outra vez, interrogado por uma bela dama que pretendia assegurar-se da correcção da minha opinião sobreos seus encantos, nada encontrei de melhor para tornar algo picantes os meus sinceros elogios quecontarlhe esta história. É inútil dizer que a minha reserva de boas piadas é bem pouco forte, que é duvidosoo seu a-propósito e que a minha forma de as introduzir é falha de naturalidade. Mas a proposta que fiz à talsenhora de nacionalizar o que ela considerava um bem pessoal em nada contribuiu para aumentar a minhacotação junto dela.(1) Menez

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Acabei por compreender que a severa exigência de Giacometti e a bondade louca de Genet, que seconjugavam com o pudor de ambos, tinham interrompido a conversa, quando, para a continuar, haveria querespeitar as exigências inerentes ao bom uso da palavra. Saber ou saborear a beleza de qualquer ser: aqualidade da observação remete para a do observador. O nosso pão de cada dia nem sempre é de tão altaqualidade — seria pedir de mais à corporação dos padeiros.

«O teatro é o único real». Na época em que me instalei em Paris era perseguido pelo hábito de conservar ao alcance da mãocademinhos de tamanho uniforme, onde recopiava as passagens que me impressionavam no acaso dasleituras. Leitor medíocre, excessivamente desatento à progressão sistemática das ideias ou à acção da narrativa,tenho dificuldade em reconstituir o entrecho de um romance ou de um filme, nem, aliás, tento contá-lonunca. Se me apaixono por um livro ou por um autor, mal avanço na obra: só raramente assinalo a páginaonde interrompo a leitura, e se volto a cair no que já li atiro-me àquilo de novo, comprazendo-me emdescobrir que apenas tinha entrevisto uma parte ínfima das suas maravilhas. Se, pelo contrário, a sorte meleva para algumas páginas adiante, com a ajuda da curiosidade, sou apanhado logo que algumas belezasme acenam. É assim a minha leitura. O hábito de tomar aquelas notas nasceu talvez do meu desejo de mefamiliarizar com a língua francesa, mas deve-se também ao prazer incontestado que tinha em encontrar emcertas passagens as linhas mestras das minhas dúvidas e das questões que pessoalmente me punha.Acontecia, contudo, que a minha aplicação se indisciplinava através dos comentários que acrescentava deminha própria iniciativa. Pequenos poemas em potuguês, minha língua de origem, começos de cartas quenão conseguia terminar ou que me esquecia de enviar. Endereços e listas de compras pontuavamigualmente os grandes buracos da minha actividade de copista, cujos produtos desapareceramnaturalmente na sua quase totalidade. Sem que se possa ver na triagem que se operou sem eu querer amínima sombra de escolha, pois esta foi tão arbitrária como as vicissitudes que envolveram o resto, algunsdesses papéis ainda andam cá por casa. Graças à absoluta falta de perseverança que me aflige no tocantea tudo o que exija uma sistematização mínima, e devido às duvidosas virtudes, quer da minha caligrafia,quer do uso —não forçosamente pessoal, e até aleatório— que faço das lei da ortografia (a minha memóriaou a minha desatenção têm sempre a sua palavra a dizer, ainda que de tempos a tempos tome a decisão dereter, de uma vez para sempre, o pouco que qualquer súbdito de um país alfabetizado é suposto poderproduzir para não incomodar excessivamente a circulação das ideias que convêm à polícia dos costumes),essas poucas coisas são naturalmente inutilizáveis. Desses escritos, conservei a lembrança de dois pedaços de frases: «Gosto das formas que se tornamoutras», cujo contexto já não consigo restabelecer, mas que realmente parece ter saído da minha razãoraciocinante, a braços com o que me via fazer enquanto pintor sedentário, embora inapto para se fixar. Eeste outro farrapo, muito mais tardio: «O teatro é o único real» (ou «só o teatro é real»?), que jazia numacompilação de notas (mais tarde traduzidas e publicadas numa revista portuguesa) a propósito da obraesculpida, pintada e desenhada de Alberto Giacometti. Não há qualquer relação (salvo, talvez, uma insidiosa premonição) entre esta pequena frase e as minhasquerelas com o mundo do teatro, que vieram mais tarde e de maneira bastante episódica. Menos ainda comas incursões que fiz nesse domínio a título profissional alguns anos depois, de forma ainda mais meteóricado que da vez anterior, que se mantinha nos limites —nem claros nem simples — de uma afeição amorosa. Muito mais do que de qualquer acontecimento, a voz que me soprava estas palavras cortantes — «O

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teatro é o único real» — vinha (porque procurar noutros sítios?) do fascínio que o mistério do teatro sempreexerceu sobre mim. E, naquela referenciação de uma dramaturgia específica que fazia agora na obra deMenez, imaginava essa dramaturgia como o segredo que ousamos depor numa conversa sem odestinarmos a ninguém — havia a coincidência de a ter posto no papel em viagem, eu, mísero viajante,justamente para tratar do primeiro espaço cénico que me pediram que imaginasse. Apesar do mal-estar que sinto sempre em matéria de ópera, pensara na ópera como adequada a umaabordagem daquela pintura. Confesso a minha ignorância deste género de espectáculo, embora sejamraros os espectáculos que não me atraiam. Mas tenho dificuldade em suportar quase tudo o que exige apesada cumplicidade de meios múltiplos e complicados (superproduções hollywoodescas, revistas degrande aparato, desfiles militares, grandes armazéns, festas de família, comemorações oficiais): estesimponentes produtos da civilização mergulham-me ordinariamente no tédio, se não num mal-estarsemelhante ao que sofrem as crianças quando atacadas pelo sono e os grandes as obrigam a ficar a pé. Ora, naquele texto, eu pretendia tirar o meu cavalo da chuva e não passar de um anónimo receptadordas jóias que só a minha amiga, dos artistas que conheço, pudera captar. Uma vez observada a tonalidadeespecífica a que chamei dramaturgia, via surgir um teatro da memória, feudo da ambiguidade, um teatro dacontenção, percorrido pela migração dos sentidos, e um teatro do olvido, mas onde a presença era evidente;enfim um teatro da distância, co-produção do olvido e da memória; e depressa me ocorreu (mas donde?) afórmula: ópera fabulosa. No meu espírito, a ópera vive de todos os meios de sugestão que escorrem em uníssono sobre o seuávido público. Bem sentado no seu lugar, como aquelas personagens reduzidas por Bosch ao acasalamentode alguns órgãos e de utensílios incongruentes, o ouvido voyeur depressa vai flutuar ao sabor dascontingências dos grandes ventos de irrealidade cujas tonalidades de melancolia se despenham nadistância, como uma mosca se afoga no molho. Distância quádrupla: relativamente ao palco, ao tempo e aolugar da acção representada e à qualidade da imaginária. O encantamento geral que a música suscita atinge o seu máximo com a voz humana e chupa o tutanoda acção dramática, denodadamente auxiliado pela deslocação das massas no palco e pela riqueza docenário e dos figurinos. Tudo isto temperado com sábias luzes. O produto é um alucinogéneo leve. Aqueles quadros vivos, sempre solenes, fazem da evocação dopassado, por muito fictício que seja, um presente em que os fantasmas nos oferecem a sua carne depapelão. Só o que é falso pode tornar real a carne intocável do passado. Recorri assim ao que, por outro lado, me atrevia a declarar conhecer mal — ou àquilo relativamente aoqual me mantinha a uma distância que está longe de ser a que une os grandes apaixonados. Verdade sediga, porém, que (sacrilégio!) me servi da ópera —esplêndida madeira— para atear a minha fogueira... Nãose tratava de engolir cru o lindo passarinho, com penas, garras e vísceras: tirei-lhe as tripas e acomodei-oaos meus gostos. Servi-me dela como daqueles objectos ou fragmentos de objectos que apanho nas praiasou na rua e que gosto de incorporar nas minhas colagens, sem outra razão ou finalidade além danecessidade de me apoiar em fantasmas de outros mundos muito mais concretos do que o meu. Estapouca realidade —e realidade, aqui, quer dizer o já conhecido, gozosa ração! — serve-me para fazerprogredir ou reanimar o meu trabalho, cuja natureza específica está justamente em ter que ver com coisasque mal conheço ou não conheço de todo: como se aprendesse uma língua estrangeira a partir de umnúmero bastante reduzido de locuções cujo significado, mesmo o mais banal, nunca tivesse a certeza depossuir. C. espantava-se de eu poder escrever numa língua que não é a minha, quando nem ninguém nem ascircunstâncias a isso me obrigam. E de poder ter prazer neste jogo, tanto mais que esta língua ergue ainda

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à minha frente pesadas barreiras: confesso que sou incapaz de escrever sozinho a mínima carta ao meucobrador de impostos. «Agréez, Monsieur, l'expression de mes sentiments» (distingués ou les meilleurs,tanto se me dá) representa ainda para mim um terrível desafio que me lança num quase-pânico; como oque me aflige quando me pedem uma opinião pessoal sobre o que significa desenhar bem, por exemplo. Há que dizer que, depois de ter passado alguns anos da minha vida na situação de emigrante (detestoesta palavra que soa tão desprezível (como forçado ou maricas!), as palavras estrangeiras começam asurgir sem ser chamadas. Diga-se ainda que, quando escrevo sem ter a curto prazo qualquer destinatário,nunca escolho a língua: as palavras saem à quei- majroupa da toca e limito-me a cavar-lhes uma espécie desulco. Que fatuidade existe neste «limito-me»! Suo sangue. E, no entanto, era justamente a este ponto que eutinha de chegar — ou que deveria ter tomado como ponto de partida. Esta condição de sentir dificuldades,de bater nas paredes sem ter a certeza de encontrar algo por detrás, bem a conheço do meu ofício. De maneira ainda pior se passam as coisas da vida, nesta prática solitária da arte que é a minha, apintura — e, por muito desgostante que seja, não quero outra. Não posso apelar para os amigos dedicadosque me vigiam os erros e emendam extravagâncias e negligências em função das convenções da escrita oudas suas conveniências. Isso equivaleria a barbear- -me ou a cortar as veias diante de um espelho quereflectisse a anatomia de um vizinho em vez da minha. Diante do meu quadro sinto muitas vezes asensação de estar a lutar com uma língua estrangeira cujas leis aprendidas apenas servissem para conferirao seu produto uma aparência de alimento, e não para cozinhar um verdadeiro prato.

Se alguma vez tiveste um rápido contacto com este ofício, caro leitor, sabes que a tua mão não pode serguiada, que não pode, como a de um cirurgião, apoiar-se na ciência que possuis, nem na experiência queadquiriste. A tua mão está só, sem apoio nem recurso: o conhecimento da tua arte, se nela deverasprogrediste, só pode levar-te a uma visão do deserto, verdade de pouco crédito num auditório que pretendeobter a vida ou a arte como um automóvel: chaves na mão. Como o espaço de uma língua estrangeira — assim vejo a minha tela. Habituado a lutar diariamente comdificuldades que tenho de superar sozinho e a fazer brotar da sua fermentação as minhas fontes de energiae de alegria, não me espanto com este facto estranho: dar comigo sentado diante de uma folha em branco,na qual traço palavras que não são as que ouvi no berço — mas que, desde há quase uma vintena de anos,me rodeiam e me fascinam. Mas fiquemos por aqui nesta tirada, que acaba em fado, depois de ter assumido o papel daqueles jovensiluminados de tez toldada que, de crânio a brilhar e vestidos com uma longa peça de tecido amarelado, sebamboleiam pelos boulevards, com címbalos a baterem o compasso da sua litania. Voltemos à ópera. Terei eu, assim, meu Deus, cometido um insidioso desvio de direcção e posto bigodes na Gioconda? Ouentão, como é de uso entre os preenchedores de páginas em branco, terei saído para a rua com umaGioconda de aluguer? Talvez devido ao meu desenraizamento, sigo um caminho que se cruza o menos possível com oscírculos de todas as castas, paralelos ou não, onde, dia após dia, as pessoas disputam um lugar de eleiçãonesses campeonatos em que toda a gente participa — batendo com a porta na cara do desconhecido. Olho,escuto, passo, e o meu alforge só guarda o que não consegue escoar-se no fluxo dos comércios inevitáveis.

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...E se o mexilhão dissesse ao camarão: «desenraizado, eu?» Vejo-me mais como mexilhão do quecomo camarão. Andar com a rocha atrás: eis a minha caricatura de viagem. Talvez seja desenraizado. Mas devo confessar que não sofro a atracção dos países que não conheço ouque conheço mal e não alimento grandes ilusões a seu respeito. A propósito das regiões que imaginamos oucom que sonhamos, podemos permitir-nos tudo, e elas não passam de um pretexto para levantar parábolassobre os nossos próprios países. «Viajar, perder países»: versos de um poeta (2) que tão pouco viajou e que se meteu a escrever a obrade vários poetas de sua invenção, chegando a escrever-lhes em pormenor as fisionomias e os destinos, atraçar-lhes os horóscopos, para os fixar para todo o sempre, como pedras tumulares. O conjunto das suasobras formava, segundo ele, uma espécie de drama estático, sem acção nem diálogo. Estas emissões devoz solitárias compunham a enseada fantasma (o cais, saudade de pedra) onde vinha aportar o real, naviodos outros. Drama estático, ou até quadro. Condição própria do quadro — e que porém muitos quadrosquerem ultrapassar—, esta condição de imagem fixa encontra-se no cerne da ideia do drama em gente,drama dividido, não em actos, mas em gentes, como o mosaico virtualmente espacial da superfície pintada.Drama estático: contradição em tudo similar à da pintura que se propõe uma narrativa dramática, isto é, quese apropria da duração. Não há pintura sem narrativa. E aqui peso bem o que digo, pensando em Cézanne, em Matisse, emMondrian, afastando esses maravilhosos e equívocos almocreves do mistério que se chamam Bosch ouDella Francesca, a truculência de Rubens, o humor caprichoso ou negro de Klee ou de Magritte (veja-se afrequência com que ocorrem palavras nos quadros destes dois últimos, para só de passagem falar dostítulos que actuam como iluminações de cena, invertendo o sentido no último minuto). É nas obras mais despojadas de correspondências literárias, de lábios cerrados a toda a espécie depalavreado, que melhor podemos, sem sermos distraídos, seguir a narrativa — a traça — da pintura.

A narrativa produzida pela própria pintura dá-nos o tempo da obra, em que, repito, se sobrepõem acçõesde várias velocidades. Vejo a pintura como uma vagabundagem que se consuma no enquadramento semprerestrito de uma pequena superfície, mesmo quando essa superfície se torna enorme, como nas sixtinas detoda a parte. Na vida do pintor, ela dura apenas o tempo de com ela fazer esse objecto cuja natureza é difícilde definir, se não quisermos recorrer a palavras que têm que ver com a vidência poética, ou às do CódigoCivil. Dois tempos para o pintor — de cuja diferença o duplo deste (talvez sem o querer), o receptador do quadro,deverá aperceber-se. O primeiro seria o tempo da feitura, o tempo de efracção do suporte, o tempo que oquadro levou a ser pintado. Imobilizado na tela, ficaria presente através da acumulação de marcas que estaconsegue conservar. Essas marcas formariam uma narrativa —a narrativa pictória—, a qual nãorepresentaria nem contaria nada, a não ser a sua própria produção enquanto complexo de gestos, deprocuras, de acções múltiplas. Essa narrativa, exclusivamente visual — mas que na maioria dos casos sóminimamente permanece visível —, será parasitada por outras narrativas, entre as quais a da representaçãodo tempo. Este tempo representado seria ora o instante da aparição, ora o resumo da acção descrita pelaimagem, se ela se desmultiplicar ou se produzir em movimento — em movimento a re-produzir numa

(2) Fernando Pessoa

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narrativa dramática. Produto híbrido, como tudo o que gera os nossos desejos ou por eles é gerado: asBíblias Sagradas, Mil e Uma Noites da palavra, «dramas em gente». Esta narrativa dramática, ainda quereduzida ao mínimo, é o engodo da narrativa pictórica («A caça vale mais que a presa»...; assim, para oCézanne da maturidade a presa não é nada: um fruto de cera) e Pollock anula-a. No pólo oposto, estanarrativa renova-se a partir de si própria, nas fronteiras do trocadilho (Arcimboldo). Na narrativa dramática —a única que não escapa a ninguém— o tempo, identificado com a dependência,só tem do seu lado as armas da metáfora ou, antes, da metonímia. Tornado indiferente a esta narrativa,Cézanne acabou por neutralizá-la completamente, considerando-a alheia, e até prejudicial, à pureza danarração plástica («a verdade em pintura»). Ata-se o fio da narrativa pictórica, pincelada a pincelada, e até aparagem brusca —o inacabado de numerosos quadros — o põe em evidência. São os reencontros do vazio,do vazio que já deita a língua de fora nos intervalos da matéria pictórica: quando já não é fractura ouestilhaço, mas presença, etapa da continuidade que está para além do enquadramento da tela. O discurso descritivo alicerça-se fora da narrativa pictórica, na qual se enxerta. As relações entre um eoutra estão longe de ser nítidas. Puxando muitas vezes a carroça da narrativa pictórica, o discurso descritivoatribui também a si próprio o principal papel na comédia. «Quadro representando X»: nesta expressãocorrente já está tudo, como aliás nos títulos do tipo «H 63 » ou «T 18», adoptados por certos pintoresabstractos para fugirem ao risco de identificação do quadro com objectos ou ideias que lhe são alheias. Onome ou a palavra, ao ameaçarem tomar o lugar da coisa, parasitam o ver. Nalguns pintores, se é certo que a narração dramática que lhes é própria impõe a sua liturgia, a verdadeé que, ao mesmo tempo, se desfaz como narração e regressa ao campo pictórico; torna-se narrativapictórica, põe-se à vontade e não poupa encantos nem volúpia. E foi justamente essa narrativa pictórica que,pela sua subtileza e extensão, me levou à evocação de uma ópera fabulosa. Recusando-se a denominar, ounão sentindo a necessidade de consumar a operação que Juan Gris expunha nestes termos: «fazer de umcilindro uma garrafa»— o pintor tem acesso ao reino em que dor e alegria não precisam de palavras.Simplificação perigosa, se não viciosa. Quando falamos de alegria ou de dor, pomo-nos a raciocinar emtermos de sim ou não. Um vermelho pode tingir-se de azul, de amarelo, de preto, de todas as cores do arco-íris. E, se fosse possível fazer o balanço de todas as «sensações colorantes», na expressão de Cézanne, agritante cor pura ocuparia apenas um lugar secundário, e seria ainda preciso isolá-la convenientemente paraa proteger dos reflexos das cores vizinhas. Raras são as coisas simples: veja-se Deus, com essa história daSantíssima Trindade que lhe colaram às costas, dupla cruz para ele e quebra-cabeças para os doutores daIgreja. Um pobre pintor mergulha as mãos na areia do real. Que vê ele, que viu ou supôs ele ver, ou julgou ver,ou imaginou ver, ou quis ver? Se o seu quadro não se tornar como que naquele espelho cuja existência nãoestávamos certos de conhecer, tal como a sua posição, ou a luz que o iluminava (como esse espelho nosapresenta uma imagem insensata porque inesperada), aí, então, calo-me. Espelho? Ou lençol de uma camadesfeita. Ou praia de areia na maré baixa. Quando se tem a impressão de se ser um intruso.

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A IMAGEM E O QUADRO

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«E que pensa você de si mesmo?» Pergunta de uso nas entrevistas de género. Porque há um jornalismode género, como houve uma pintura de género. E já que ninguém, até agora, me colocou a questão, nãodeverei perguntar a mim próprio por que razão estas palavras rne soam zombeteiramente aos ouvidos?Será sinal de má consciência? Ou será o remorso de me ter deixado cair no molde destes palavreados que,interessando apenas a pessoas bem próximas (e que portanto é suposto aceitarem-me), mal escondem ogosto (ou o perfume) desses prazeres solitários, tão especiais que só em sociedade se podem praticar? Oração, ou prática masturbatória pela qual posso exibir- -me no acto de afagar o corpo da ideia queteimo em fundamentar em mim próprio: uma ejaculação principesca deveria então coroar o aparecimento, auma luz que bem gostaria que fosse cómica, do bravo perfil do vosso devotado servidor. E esta fénixrenasceria, não das suas cinzas, mas da mastigação canibalesca das suas incombustíveis entranhas,apresentadas, para o acto, numa bandeja cujo aço, sabiamente polido, devolveria a imagem do auditório,que, nesse instante, gratificaria o encenador com aplausos conclusivos. Fénix, não — mas abutre caseiro,ou honesta galinha, prometaicamente narcísica: representação consoladora das veleidades que podemoster de seguir em liberdade aquilo a que chamamos o nosso caminho. Aliás, um caminho da cruz, ou, antes,um problema de palavras cruzadas, onde o acaso se casa com o trabalho dos dias. À questão acima enunciada deveria eu responder: «falo de mais». O meu mutismo é conhecido: a minha regra é o silêncio nos diálogos em que pobremente me esforçopor participar. Quando penso nas palavras que se soltam de mim, vejo-as ir para continentes que meescapam para sempre, como os cometas que não voltam mais. A palavra que se deixa cair não é umapalavra perdida, no sentido em que não a vemos cair, como uma pedra num poço. A maioria das conversassão palavreado. E, no entanto, desejaria a minha palavra com a clareza de uma página em branco. Clareza perturbadora. Olhá-la, ouvi-la: trabalho de um arquitecto que nunca conseguisse fazer construir(e portanto ver) o que os seus desenhos minuciosos teriam estabelecido. O mínimo traço, o mínimo som, amínima palavra: traiçoeiros abismos que nos atraem de armadilha em armadilha. É impossível parar quandoo sentido começa a trabalhar. Pintor que sou, as minhas manchas são lagos em que mergulho e que me oferecem a dissolução domeu corpo previsível: a minha linha é o rio que me leva a oceanos que ignoro, onde se celebramreencontros ou bodas (mas quem serão os noivos?). Ou, então, a linha que traço torna-se uma fronteira —nos países que atravessei, aquilo que assim se chama é um lugar que desilude devido à ausência dediferenças nítidas. Apesar da polícia e da alfândega. Quando olho, vejo muitas vezes a imagem dissolver-se. O meu quadro, esse tu que se torna ele, éefectivamente outro. E, para compreender como as palavras desposam os conceitos, comparemo-las com panelasesburacadas: a sopa que nelas se cozinha escoa-se, enquanto a panela se enche de novo, mas agora devapores, cuja origem bem difícil seria definir. Nós somos «peixes solúveis», obrigadinho, ó Tio Breton. Os dicionários só nos dão resumosoperacionais. Dir-se-ia que estão a denegrir as palavras, quando não assino (senão) as cartas de amor.

Perplexidade do aprendiz de feiticeiro, que se dá conta de que a feitiçaria não é um domínio exclusivo ede que a sua aprendizagem não passa da prefiguração ingénua de uma descida aos infernos. (Querer) falarclaro é tornar-se odiado — e enganar toda a gente, a começar pelo próprio. A clareza não passa pelapalavra. Poderíamos até dizer (caricatura lacaniana) que a clareza é o engodo da palavra. Se, para se tornar

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mais exacta, a palavra se desloca, atraída como é pelo desejo, há que concordar que o sentido é o engodoque faz o que quer neste campo desocupado. E o objecto da palavra? Seduzir o desejo. Por seu lado, odesejo deixa-se seduzir por objectos. Palavra do vazio, cujo tema é a ausência. A assunção da ausência: mais uma fórmula a incorporar devagarinho e a polir no guisado das palavras.Guisado que se cozinha para encher bem a pança a esses comediantes que não sabem que o são: nós, osutentes das palavras. Quem devolve a bola a quem? Sedentos de certezas em cada esquina, os cegosenganam-se. Os seus ouvidos ágeis tornam-se pálpebras e fremem à aproximação da luz, ou do sono.

Quando se falha um traço, usa-se o esfuminho, ou o polegar, ou a palma da mão, e um cinza generalizadocobre a página branca. Assim fazia Matisse. E recomeçava, para tornar a apagar e apagar outra vez, até queuma síntese fulgurante viesse poisar no labirinto dos percursos cujos sinais se conservavam na folha depapel. Mas são diferentes os poderes da imagem, que sofre a condição de se oferecer de uma só vez a quem avê, e os da escrita, que nada na ruminação do tempo.

O meu trabalho de pintor é um diálogo (ou um jogo de escondidas?) entre o que é do domínio da imageme o que é do domínio do quadro. Desde que o quadro existe (a sua invenção é muito recente, quando pensamos na antiguidade docomércio com a imagem), os pintores conceberam-no como um objecto especial cujas relações com aimagem são flutuantes. iA história desta linha de flutuação atravessa precisamente a aas artes visuais. Anterior ao quadro, a imagem ocupa um mundo que é, de longe, mais vasto. Vamos ao dicionário, ouIembremo-nos da linguagem de todos os dias: imaginária popular, ou imaginária piedosa, imagens de umfilme e, até, discurso com belas imagens, etc. Entre a imagem do bisonte ou a marca da mão do homem inscrita na parede da caverna e um quadrocomo as Demoiselles d'Avignon, há uma brecha semelhante à que existe entre os frescos de Saint-Savin e aRonda da Noite. O que distingue a Ronda das Demoiselles é até muito menos importante do que o quesepara definitivamente a imagem ou o sina! conservado na gruta da invenção quadro. Vejo neste um objectocriado peça por peça, deslocável mesmo que se não deseje deslocá-lo, isto é, vivendo das suas limitações enegando-as ao mesmo tempo. A imagem apresenta-se, em si própria, mais ou menos casada com o suporte que a recebe ouesmagando-o mais ou menos, sem sofrer dele outras exigências além das que decorrem do seu estatuto deimagem. Ela vive da referência a algo de conhecido. Ou que tem, pelo menos, uma relação com o que éconhecido ou como tal suposto: peça de caça, mulher, tijela, maçã, a morte, uma teoria dos símbolos. Umaimagem deve ter uma presença como conteúdo, se não uma aparência minimamente definida, abstraindo doque a contém ou do que a rodeia. Ao que serve de suporte à imagem, ao que a cerca, pede-se apenas que seja neutro ou se apague, a fimde que a imagem, essa, fique livre de expelir os seus poderes. A imagem aparece e, a partir dessa aparição,representa um papel comparável ao da palavra que se pavoneia no dicionário.

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O quadro é um lugar; a imagem está num lugar. Uma das aventuras da pintura no século XX nasceu dareivindicação por certos pintores da autonomia do quadro, criado na origem para ser um lugar de imagens.Ora, na mesma altura, assistiu-se à libertação das imagens, libertação no sentido em que se diz que osescravos foram libertados sob a pressão da revolução industrial. Declarando-a repentinamente nociva à economia do quadro, evacuou-se a imagem do campo privado dapintura. Como entretanto a expansão dos «media» operou a proletarização das imagens, estas, produzidasem massa, invadiram a cidade fe os lares: imprensa ilustrada, publicidade, televisão. Não se espera delasmais do que um proveito imediato, curto, exacto. Assim, têm que entregar-se velozmente ao olhar, .que é ummigrante preguiçoso. As monocromias de Klein são a ausência de imagem, tal como o écran de cinema (lugar de todas asimagens) quando a projecção acaba. Klein situa-se mais longe de Malevitch do que este da mão lamacentaimpressa na parede da gruta. Os quadrados pretos sobre branco ou brancos sobre branco de Malevitchcontinuam a ser imagens, mas contidas no lugar chamado quadro.

Próprio do quadro é o que, apenas através da vista, dele recebemos: o que ele alicerça no acto e noespaço do ver, o que o visto da matéria do quadro opera em nós no instante da contemplação, o que éoperado e se alicerça abrindo-se no contexto do acto de ver — esse acto que não abriga mais do que osdados exactos desse real próprio do quadro, e isto antes ou apesar do despertar das associações cavadaspelas aquisições do passado, as sedimentações do vivido. Antes quê a entropia venha dissolver ou mestiçaro visto. Porque é a partir do arranque das estruturas compósitas da memória que o ver se deixa prescrever:refractando-se em várias camadas semânticas, recalca a matéria do visto para já se não deixar trabalhar anão ser pelo fantasma. No quadro, cor, forma, linha, matéria são entidades: é no quadro que elas se tornam coisas. Ao quadropertence o que apenas respeita à cor e à forma (e ao seu casamento), à linha, também ela uma formaparticularizada, e à matéria pictórica, que organiza a viagem (do visível para o visto (1)) das cores e dasformas. No facto de as formas e as cores se darem a ver enquanto coisas reside a especificidado quadro – paraalém de ou apesar das cadeias de associações oriundas da totalidade da nossa experiência, que inevitável eincansavelmente transitam pela imagem, ou que a imagem faz fracassar, no nosso esforço de ligar num sóconjunto as coisas deste mundo, do qual nós, criadores e receptadores, somos fracções, exactamente comoas imagens mutáveis e as obras criadas. Na nossa experiência quotidiana, pelo contrário, aquilo a que chamamos cor, forma, textura não existemenquanto tais, por si mesmas; estão reduzidas ao papel de adjectivo a fim de qualificarem e de nosajudarem a definir a identidade das coisas. Assim, dizemos: uma maçã vermelha, um limão amarelo, atoalha branca, uma laranja redonda, um vidro polido, uma casca rugosa, um cubo de gelo. E se dizemos oazul do mar, é que a densidade do azul do mar azul fez derivar para o ser da coisa a qualidade mais notáveldessa coisa (2). (1)«Do visível para o visto»:do instante da visão até ao trabalho de ruminação que a curiosidade e a memória irão efectuar

(2)Também se c cores aos produtos que servem para pintar; para as formas, referimo-nos às figuras da geometria. Não

perder de vista este paralelismo

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Na sequência do nosso esforço para sobreviver, as nossas sensações visuais e tácteis transformaram-seem sinais utilitários: um fruto verde, uma situação clara. No entanto, essas sensações podem aindaproporcionarmos prazeres: esta rapariga tem lindas cores — ou um susto: entregar-se a ideias negras.

Na imagem, a forma ou a cor são sempre tributárias da definição da imagem: um cavalo isabel, umamesa quadrada. Como se, nos seus inícios, o quadro não tivesse sido apenas o escrínio da imagem; como se acoabitação com as forças que a sua prática libertava, durante o seu longo comércio solitário com o que oquadro lhe tornava visível, tivesse levado o pintor, aprendiz de feiticeiro que se ignora, a dar consigo nomeio de um mundo outro que não aquele que, à partida, lhe havia sido encomendado. O exemplo da Rondada Noite, em que Rembrandt abandona a ordem até então exigida para a celebração do retrato colectivo,para chegar a um produto espacial que inverte hierarquias e conveniências, ilustra muito bem esta quebrahistórica e o abismo que vai interpor- -se entre a oferta do pintor (a libertação de forças que abrem arealização de um desconhecido) e a procura dos seus concidadãos, que teimam em querer que a pinturalhes confirme exclusivamente os seus poderes e as suas crenças. Se a Ronda da Noite é ainda um retrato (utilizável, mais ou menos, pela corporação que a encomendou,embora mal se reconheça ali), os Sapatos de Van Gogh já não têm relações gratificantes para o seu supostoutente. Quanto ao quadrado de Malevitch, já não tem nem quem o encomende nem quem o use. A imagemque o quadro, espelho em memória, devia devolver, perdeu a sua fonte. A imagem que este quadro encerrajá não tem canto no mundo onde se meter, a não ser esse não- -lugar que o artista reivindica e se esforçapor construir — o universo da pintura.

É por e na matéria que a obra começa a viver. Se a matéria é a realidade primordial do quadro, por«obra» entendo eu o conjunto do processo em que o pintor se compromete, conjunto que se particularizaem cada um dos seus produtos (como o enuncia a proposição seguinte: a obra do pintor compõe-se dequadros). O quadro é o produto que sela e encerra a experiência, o vivido do pintor. É por e na matéria que a obrase entrega como quadro; é no estado de quadro que ela se dá a ver, e por isso apenas se oferece ao mundosob as aparências da sua última metamorfose e quando o pintor, que a executou, já lá não faz nada. Nabeira do caminho jaz a pele de uma cobra: é inútil dizer que o que de vivo a habitou partiu para outro lugar.

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O espanto ou a frustração que diante do quadro sente o contemplador não informado são, no fundo,muito compreensíveis: ele acha-se diante da última imagem de um filme de que ignora tudo o resto. Equando se tenta fazer passar esse filme para a palavra, quando se tenta uma apresentação ou umadecifração — mais ou menos antecipadamente votadas ao fracasso — recorre-se à palavra como o cego sesocorre da bengala, isto é, à custa de um desvio fundamental. Entre matéria e palavra há uma brecha ondeo vivido falece, onde ao ser da obra falece a palavra; aí onde se cumprem simultaneamente a recepção daobra e o ser em trabalho.Logo, dupla frustração para o espectador: por se achar perante um objecto que sóexiste como elo de uma cadeia, ainda que seja o último e o mais resistente; e também pelo facto de esseobjecto se recusar a deixar-se domesticar pela palavra (que os usos do mundo erigiram em chave douniverso).

Se expulsarmos a imagem, ela voltará a correr. Stella fez um casamento de conveniência entre a imageme o quadro. Em vez de ajustar a imagem ao quadro (segundo o procedimento tradicional que está na origemde todos os sistemas de enquadramento e de perspectiva), seguiu o caminho inverso e obrigou o quadro aacompanhar o assunto pictórico — eliminando os cantos e mandando fabricar caixilhos segundo asexigências rítmicas da matéria que trabalha. Os limites formais do seu quadro, casouos com o signo que écondição da imagem, ainda que «o signo seja uma fractura que nunca se abre senão sobre o rosto de outrosigno» (Roland Barthes, L'Empire des signes).

A imagem é enganadora; e esta qualidade é, ao mesmo tempo, a sua razão de ser. A imagem, presa naarmadilha pelo quadro, enxerta no inerte o que dança nos espelhos. Aparência de espelho e espelhoenganador, o quadro contém a imagem que engoda o ver. A mobilidade do olhar esgota o visto: a imagemfixa só nos agarra se nos pagar um mergulho no lago dos fantasmas, essa lancha (esburacada) damemória. A densidade imaginária da imagem alicerça-se no fantasma. A sua densidade óptica continuaevidentemente a ser função das leis da física. Mas o acto de ver situa-se numa encruzilhada de mundos. Over desperta migrantes vindos de toda a parte, até às profundezas das sedimentações da experiência, ondese produzem as cadeias de associações, trama de todo o discurso. O que faz agitar-se o fundo sensível dos homens impregna- -se de alteridade. A mesma imagemmultiplicada ou as imagens sósias desregulam o ver, que só goza na alteridade. Para nos obrigar apermanecer imóveis durante horas, nenhum ditador conseguiu melhor que o cinema. E se no cinema aimagem nos esmaga pela sua dimensão, é de facto a sua mobilidade que a toma tão actuante e mais

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coagente que a mais implacável disciplina militar. A imagem abre para a encruzilhada dos sentidos: a sonoridade das imagens de Chardin exige o tacto.Uma cor ácida: e saboreamos grelhados à Rubens. Finalmente, que há de mais bem cheiroso que a pinturade Picasso em todas as suas épocas? De-compondo-se em imagens, a pintura engoda o ver. «Não vejo nada aqui», «que representa isto?»... Éassim que, diante de Pollock, a reacção do motociclista, que ainda não colou ao blusão os emblemas daarte do século XX, mostra à luz do dia, demonstra pela própria escolha das palavras que lhe acodem aoslábios a servidão do olhar, imposta a preço fixo por uma informação utilitarista. «O que vejo melhor, vejomal» (Valéry). E este grito de alerta de um pintor que só via por imagens: «Isto não é um cachimbo»(Magritte). O objecto pictórico, enquanto imagem, desempenha relativamente ao espectador o papel da capa dotoureiro na arena: o nosso olhar será o touro dominado, que já não se atreve a carregar sobre o corpo vivo,cego como está pelo logro das convenções.

O écran de cinema: lugar por excelência do tudo para ver, como do nada para ver. Lugar por excelênciada não- -opção, da escolha condicionada, onde a imagem se vinga da sua sujeição ancestral à palavra. Ovoltear das imagens é mais ligeiro que o mais subtil dos pensamentos. Impondo o seu caudal de imagens, o écran de cinema vai ao encontro da nossa preguiça, isto é, danossa recusa de ver, porque a exercitação do ver (como todos os exercícios) impõe um esforço. O cinemasatisfaz o nosso desejo absoluto e recalcado de não actuar. Antegosto da aproximação do sono ou da morte,ou retorno ao estado de bebé: o cinema nada nos pede, salvo a imobilidade, com o nosso olhar suspenso naobscuridade da teta imensa que nos mete pela boca abaixo a sua luz leitosa.

Para Barthes, «a visão do fotógrafo não consiste em ver, mas em estar ali». A fotografia não tem memória, antes oferece um corte do tempo. Não há fotografia sem o acontecimentopor ela registado. O acontecimento é rei: a ousadia do fotógrafo que o domestica não faz mais do queveicular essa soberania. Quanto ao pintor, não dispõe de um utensílio de debitar a duração, para a oferecercomo um chouriço cortado às rodelas. Não usa o seu instrumento a tiracolo. O olhar do pintor não é umaprótese destacável do seu corpo ou do seu cérebro. Em «ver as coisas como se as víssemos pela primeiravez», mito ou regra dos pintores sábios, a presença, considerada infamante, de todos os arsenais damemória resvala para o «como» que ordena esta fórmula e dela faz a contrapartida maldita do olharsupostamente inocente. A fotografia entrega a coisa vista, ou encontrada ali, a pintura entrega-se enquanto coisa. Se há coisavista na situação pintura ou no objecto quadro (e há sempre), não é, contudo, essa coisa que faz a pintura. Acoisa vista está lá, quase como coordenada geográfica ou informação meteorológica respeitante a um certolugar, isto é, rigorosamente como arquivo operacional da situação específica que se dá a ver no objectochamado quadro. A visão do pintor é a assunção da presença, dado que aquilo que se produz além do que ele próprioproduz na tela escapa à sua intenção ou ultrapassa a sua vontade. É um ver no presente, um vivido dopresente, e do presente com todo o seu vivido. E o que ele vê ou o que ele dá a ver é ainda aumentado peladuplicação do visto que, de tanto ser visto, já não é vivido enquanto visto. Podemos acompanhar estas escapatórias do visto: na desordem dos contornos de Cézanne ou nas suas

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delgadas franjas de tela que permanecem virgens de pintura no meio da progressão invasora daspinceladas, há fendas por onde o espectador pode resvalar para o interior dos abismos que dormem sob acarne do visto; remissões para a tela branca, referências ao vazio e à angústia com que o pintor se bate,esse vazio que ilusoriamente pode obturar, transcrevendo a distância «em profundidade», como magracompensação.

Moedeiro falso, meio-convencido, meio-arrependido, o pintor dessocializa a imagem. O quadro apodera-se de uma imagem em circulação (a Virgem ou os Santos, uma maçã em cima de uma mesa, um quadradonegro) para lhe confiar, com razão ou sem ela, a missão de cavalo de Tróia. Há sempre contrabando naobra de arte. Passamos inocentemente as barreiras dos hábitos, com valores não declarados — veneno emel, ouro e pólvora, liga subversiva. Será preciso dizer que uma fé cândida nos sagra muitas vezesimperadores de nenhures, mártires frustrados? A arte descodifica: o ready made é a expressão crua deste descaramento. Procedendo a uma espécie deexperiência in vitro, Duchamp nada mais faz do que pôr a nu o casamento de conveniência entre o objectotomado e o objecto reposto em circulação, entre a imagem recebida e a imagem devolvida. Assinando osready made, isola (esteta tão refinado como um cientista no seu laboratório) a operação que grassa na basedo comércio da arte — esse imenso domínio que vai do engano vil ao sonho alquímico. Uma operação quenão me atrevo a afirmar que é a primeira — pois a descodificação pode acontecer a qualquer momento. A imagem e a palavra conservam as suas possibilidades de sentido, independentemente do factosegundo que a sua inserção no discurso constitui. O vício de ordenar as coisas faz aliás dessa inserção umfacto segundo, mas de modo nenhum secundário: é a frase que acorrenta a palavra, fazendo correr cadapalavra para o pleno sentido da imagem, e este sentido pleno, na sua abertura última, toca o não-sentido efecha o círculo. Dizer «abertura última» é ainda uma falta de jeito, porque a ordem das possibilidades não édecalcada da ordenação metódica das árvores genealógicas. O que é próprio do quadro (o seu campo de acção e o campo que o encerra) é totalmente diferente. Oquadro não tem a liberdade da imagem, foi criado para ser um contentor de imagens. É um objectoconcreto, definido por limites exactos: quatro lados —a maioria das vezes— sujeitam e regulam o que estálá dentro. E este dentro é a sua superfície. O quadro começa antes de mais nada por ser uma superfície,ainda que, depois, fuja à materialidade dessa exigência, simulando relevos e concavidades, trabalhadocomo é, muitas vezes, pela tentação dos espaços fictícios. Escravo da gravidade como tudo o que existe sobre a terra, o quadro tem um alto e um baixo; os seusquatro lados impõem- -Ihe fronteiras, os quatro cantos determinam a tensão das diagonais e das medianas,o centro imobiliza-o. Lados e cantos são os primeiros dados da estrutura do quadro. Eles encerram edefinem a sua natureza de objecto plano, feito para ser visto numa certa luz e numa só posição. Porque oquadro apela para o olhar, e o olhar deve estar à sua vontade: entre um e outro tem de ser encontrada umadistância, tal como se impõe o movimento ao espectador se a dimensão do quadro ultrapassa a extensão doseu braço (os prazeres do olhar invocam os do tacto, ainda que o toque só se produza em imagem). Os mecanismos do olhar e do gesto do pintor compõem o que está realizado na superfície do quadro,escavam a estrutura do que, apresentando-se ao pintor e pelo pintor apresentado, se dá a ver, sob a formade sistemas de perspectivas que conceptualizam o espaço, itinerários, vestígios de acções, etc. A estrutura, se é certo que serve a economia da visão, é também a abertura que pode acolher

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fraternalmente a desordem. A estrutura veicula a ordem, mas também a desordem que alimenta o que évivo. Uma estrutura torna-se uma entidade geradora, na medida em que incorpora a sua própria desestru-turação. A estrutura do quadro —a sua geometria oculta ou secreta— concilia no visível o querer do pintor.Um Seurat ou um Piero Della Francesca tomaram a majestade e o esplendor da estrutura como via deacesso ao inordenável: para ordenar a desordem e desordenar a ordem. Muito pelo contrário, é evidenteque, para os academismos de todas as espécies, a estrutura reduz-se à ordem policial. Para estruturar o seu quadro, Cézanne fala cones e cilindros, isto é, a linguagem dos volumes. Nuncatriângulos ou quadrados, figuras sem espessura. Parece não ter dado pela assunção do plano do suporte: anão ser assim, teria ele zombado das «sombras chinesas» de Gauguin? A moda da estampa japonesa revelara claramente a novidade, para o Ocidente, da superfície coloridapor zonas lisas, ondulando ao sabor dos respectivos contornos. Mas Cézanne não parece cuidar destegénero de enredo, não se deixa seduzir, como Van Gogh ou Gauguin, ou até à maneira muito retiniana deMonet («que olho!») agarrando a coisa em pleno voo. Cézanne não pretende cortar com a pintura de museu, seja a de Courbet, dos Venezianos ou dosEspanhóis («os maiores!»). É em nome desta convicção que ele se propõe disciplinar os fogachos dealegria que se tinham tornado fogos-fátuos do impressionismo. O volume obceca-o, é o volume que elepretende dar, mas utilizando apenas os meios da cor. Teorema da modulação: «quando a cor atinge a suariqueza, a forma atinge a sua plenitude». Mas a sua concepção do quadro, forja-a ele, e mantém-na, no campo da re-presentação. Só cones ecilindros são para ele as figuras de retórica capazes de levar a bom porto a escrita pictórica do visível,sujeito-objecto do seu trabalho. E este círculo, é aí que o fecha. É efectivamente da escrita do visível queele fala; melhor, dessa parte do visível a que chama natureza: nunca de outra coisa, música das esferas oupoderes da superfície. As modulações que vão de uma ponta a outra do quadro conferem às telas de Cézanne o aspecto debaixos-relevos, sem deixarem de diferir ponto por ponto do objecto artístico dito baixo-relevo, objecto dapintura de camafeu, que, propondo-se dar a ilusão do objecto escultórico plano, acaba por dar a chatice. Asrepresentações de Cézanne propõem, é certo, uma superfície plana. Mas o que se interpõe entre ele e anatureza não provém de um código retirado de outros meios de expressão, é realmente o plano da própriatela, do qual o pintor parte sempre e a que regressa a cada passo. As suas Banhistas tornar-se-ão maispróximas de uma pintura «all over» (3) que da cena à italiana, mais próximas do trabalho que se produz nointerior da oval que rodeia os Plus minus de Mondrian do que desses modelos reduzidos de teatro em quePoussin arrumava os seus acessórios mitológicos.

À medida que Cézanne encaixa cones e cilindros uns nos outros, e justamente graças a esse encaixe,estes sinais volumétricos libertam-se, tornando menos evidentes os propósitos do pintor de significar bemuma natureza excessivamente versátil. E, voltando a cair sobre a tela, aplanam-se. Então, com as suasreacções mútuas, com as suas progressões e injunções, com todas as suas relações, tece-se uma teiacontínua, onde uma melodia diferente se vem alojar e alimentar, como a lagarta que, ao crescer, acaba porcomer todo o fruto onde cresceu.

(3) Se é verdade que centra o tema, é para depois o descentrar. A mesma importância é dada àimagem e ao que a rodeia, sendo a tela uniformemente recoberta do mesmo esmalte precioso.

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Podemos acompanhar na obra de Cézanne o aparecimento às claras de todos os poderes da estrutura.Nela podemos seguir o modo como a estrutura se pode tornar ninho, foco insurreccional, núcleo matricial deuma desordem insuspeitada. A ordem é aqui figurada pela prisão cilíndrica imposta ao tronco de árvore, ao cano de fogão, pela esferaque há-de conter a maçã. Mas a assunção vivida do real da pintura, da realidade bidimensional do suporte,não permite ainda que o cilindro se tome rectângulo, que a esfera se torne círculo (4).Estes sinais vão desenvolver as suas relações e emancipar- -se: de apóstolos de uma religião de voyeursvão transformar- -se em vadios. E a cena desregula-se: torna-se ceia. Deitamos vinho no copo e bebemossangue, ao partir o pão cortamos a carne. Vinho e pão, carne e sangue, mais reais ou irreais uns que osoutros, imbricam-se, irreal izam-se e re-realizam-se num excesso já sem nome. Poderíamos dizer que aqui começa o fenómeno pintura. Mas seria restringir um campo cujos limites nãosão fixos, porque falando de pintura não se fala apenas de pintura. E, no entanto, a pintura é efectivamente do domínio do inominável. Ela começa onde já não se pode falardela, onde as palavras fracassam e vogam à deriva. Se se tratasse apenas de pintura ficaríamos no quadrode uma disciplina, de um mecanismo com as suas leis rigorosas, de um enigma regulado, quando o quequereríamos atingir contradiz em absoluto qualquer ideia de limitação ou de disciplina. Conversamos oupretendemos conversar deste ponto em que as disciplinas se desregulam, quando já não há disciplina nemregra. É como se... Um ponto de interrogação não encerra este discurso. A não ser que se viciem os dados. Mas para umlançamento dos ditos que nunca aboliria o acaso. Tal como o vazio não é definível, nem o silêncio audível,nem a noiva despível, nem o nada assassinado.

(4) Há que esperar por Matisse para lá chegar, o que de modo algum contradiz a obcessão daprofundidade que percorre toda a obra matissiana

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DO CAMPO DO VISTO

O que é próprio do pintor é ver. Há duas famílias de fazedores de imagens: aqueles para quem ver é sobretudo ver alguma coisa —alguma coisa de atordoador, diria Dali; e aqueles para quem ver é puro ver — estar a braços com a suapequena sensação, diria Cézanne. Este ver situa-se num domínio que é exterior ou anterior à palavra, domínio em que o representado, seexiste, se apresenta como engodo do visto, como duplo, como escrínio do que é mostrado. Para os primeiros, o quadro está terminado no momento em que o espectáculo se encerra, em que acaba

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a narração; para os outros, a obra tende a permanecer aberta, na medidaem que o olhar interroga e trabalha o visto.

«Gosto das formas que se tornam outras». Há muito que estas palavras me surgiram: no momento —pelomenos, sou levado a crê-lo hoje— em que deixei de poder fazer arrancar a minha pintura da evocação domovimento apanhado num espectáculo — corridas de touros ou de cavalos, combates de luta livre—,movimento de que até então me servira como o pintor utilizava tradicionalmente o seu modelo: isto é, comoobjecto, ou um conjunto de objectos delimitados no espaço e no tempo, cujas relações com o pintor e com oquadro não ameaçam a unidade de lugar, de tempo e de acção da tragédia clássica. Estas formas que se tornam outras, estas imagens movediças, tudo o que, inesperado, chega à tela, iriarevelar-se um dos eixos, se não o eixo, do meu trabalho. Tento destrinçar, apreender o que se está a formarna minha tela, isto é, o aparecer ou, melhor, o a parecer. Ainda que me esforce por seguir um plano —o que é raro —, fica sempre a porta aberta para oimprevisto, e este pode então, por vezes, produzir uma espécie de diálogo de surdos que os ecos ereverberações afeiçoam à sua moda. Não se trata de um desdobramento, mas, talvez, de um deixar-andar susceptível de apanhar naarmadilha a espessura da palavra, mas também de ser apanhado por ela. A palavra: refugo de sinais, maisdo que matéria para sinais. Mantenho a palavra palavra, ainda que se trate aqui da pintura e do seu duplo, a imagem pintada, ou daimagem que nasce do pintado, uma vez visto o pintado; porque já não estou a pintar mas a conversar ou aescrever, e a única forma de não perder de vista este acto é pô-lo em palavras. Mas se a palavra é pródiga, não deixa por isso de ser mais avara, para desgraça do visto, que,transformado no campo da palavra, se comporta como uma fera na jaula, por detrás das grades do discursoinspeccionando as palavras enquanto o tempo passa. O que é próprio do visto, sofrido e vivido no acto de ver, forma a essência da pintura, e não é susceptívelde ser posto em palavras. Escrever sobre o visto é lançar o pregão de um vendedor de espelhos para cegosde nascença. A abordagem do visto através da palavra é como a imaculada conceição: é preciso acreditarnela — o que nunca consegui. Embora às vezes me aconteça, como a toda a gente, sentir um louco apetitede uma crença qualquer. Entre o ver e as palavras situa-se o vivido. Mas o ver tem um tempo, é o presente. As palavras, essas,escravas do vivido, nascem sempre depois. As palavras, e o discurso que produzem, discurso em que elas se produzem e que as produz —o ovo e agalinha?—, as palavras, digo, são uma espécie de ruminação da experiência, uma ruminação no vazio, quenunca satisfará a fome do ruminante. No domínio do ver, o ruminante-pintor, que comeu a erva do visto,mastiga as palavras e o que vomita é ainda do domínio do ver: alimento completo. Trabalho de Sísifo — e volto a pensar em Cézanne, que enclausura toda uma pintura e faz dessa pinturaoutra pintura. Os deuses estão mortos. O círculo da maçã já não consegue fechar-se.

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A maçã de Cézanne: sinal de transcendência? Podemos contar todos os quadros de Dali, porque aspalavras aderem a eles sem qualquer dificuldade, são sonho a curto prazo: «Pinto coisas atordoadoras».Toda a gente pode verificar que é coisa que não se encontra a cada canto. Talvez nos self- -services domistério (que devem existir), na secção de farsas e trapaças. Que haverá de melhor para fazer circular o suposto mistério, ou uma loucura conveniente, que pô-los aoalcance de todas as bolsas (cranianas), numa encenação atraente, com história de filme de terror? Nãocorremos o risco de desiludir quem quer que seja. Toda a gente, ao voltar para casa, achará a sua casinhatão bem arrumada como antes, sem que a peúga da mentira se tenha enfiado na cueca da verdade, semque o alho do sonho tenha invadido a manteiga da realidade. O mistério ou o verdadeiro da maçã de Cézanne não é do domínio da encenação, não passa pornenhuma história. O quadro fecha-se sobre si mesmo como um ovo. Justamente como um ovo.

A parede onírica de Leonardo, por um lado, a página em branco, por outro: entre estes dois limites doMesmo, vagueia o olhar sonhador que, de voyeur, se tomará talvez vidente. Real miraculado, milagre doreal? O bisonte de Altamira que se casa ou parece nascer da parede da caverna, duplamente presente comoacidente da parede e como imagem pintada, instala a perturbação que nasce sempre da imposição (im-posição) do real, que se propõe e se impõe como facto. O aparecer é a assunção, pelo real, do que havia deparecer, uma chegada abrupta ao presente: no imediato do instante. A perturbação que provoca em nós é osinal do verdadeiro que se apresenta e nos corta a respiração. É o atestado da ambiguidade como naturezada coisa, no próprio cerne do instante em que a coisa acontece. É a coisa inseparável do instante em que ésuposta existir, em que se propõe e se impõe como existência. Chamo verdadeiro a tudo o que revela, introduz, instala os poderes do real, o que faz brotar dessapresença a perturbação e revela a perturbação na presença, perturbação essa que é a presença e sem aqual a presença se torna uma história adquirida, pilha gasta. Só o real é lugar de milagre. A.pintura, arte do verdadeiro, é a arte do a parecer, sendo o quadro —o que fica do acto de pintar— oobjecto a parecer. Vejo a pintura, aquela de que gosto, como a arte do verdadeiro. Mas que quer dizer verdadeiro, essa palavra tão controversa? Que sentido lhe posso dar, ou pedir-lhe,num processo que a sua natureza equívoca condena a permanecer fora de tudo o que o mundo tem porverdadeiro, tangível e não sujeito a controvérsia? É certo que o facto pictórico existe enquanto produção, trabalho e apresentação de uma matéria visível ebem real. A matéria colorida, domínio do pintor, existe enquanto tal, mas, como toda a matéria-prima, lança os seuspoderes no momento em que a transformam em objecto. Então, torna-se imagem, lugar, meio, núcleo deprodução de imagens outras que não as que por si mesma fornecia. A capacidade de espanto que o real nos oferece — penso em Vermeer— vem direitinha da imponenteirrealidade dele, do seu quotidiano que se tornou inexplicavelmente desconhecido: mágico? Desconhecido,mistério, magia (lanço estas pedras ao acaso das palavras): é esta a força de dissuasão da realidade.

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Fazendo do plano da tela o campo dos seus jogos, Matisse realiza um trabalho obcecado pelaprofundidade. Não tomo aqui esta palavra no sentido figurado (tudo se pode tornar profundo quando lámergulhamos por completo, do olhar aos rins, a mão vidente). Falo desse gosto concreto figurado pelaterceira dimensão: um dos dois principais flagelos que perseguem os pintores, cidadãos da superfície —sendo o outro o tempo: para Duchamp, que nisso era perito, a Mariée mise à nu não era um quadro, masum atraso. De vidro. E partido, definitivamente inacabado. A profundidade em pintura: dilatação do tempo pela qual o olhar se apropria do que, alvo ou íman (1) vaidesregrar os sentidos, que exploram — ao mesmo tempo que são explorados por ela— a insegurança daaparição. No próprio instante em que ela tem lugar. O olhar de Matisse segue a génese e o devir das massas, as suas tensões internas, destrinçando aenergia que está na origem da sua produção e das suas mudanças. Desenhando a traço, nunca a periferia dos objectos vistos é mobilizada para significar as suas fronteiras.A linha inscrita no quadro não orla a forma, assina a sua identidade. Dir-se-ia que o traço desliza, oscila,hesita, devido a uma tripla mobilidade: do que ali está, diante do pintor — coxa, cabelos, tijela, folha; daincidência do seu olhar; e do acto de pintar ou desenhar. A energia em expansão determinará o arabescoque muda o assunto em matéria pictórica, ou puro grafismo. O contorno nada tem a ver então com um sulco ou um corte. As toalhas de cor, por muito nitidamentetalhadas que sejam, nunca têm nos bordos fios cortantes. Se, do ponto de vista da valorização da estruturarítmica, há aqui um evidente parentesco com a demarcação rigorosa que dá vida ao trabalho de Uccello, deCranach ou dos Orientais, imobilizando as suas massas na rede linear que dinamiza o quadro,apreendemos bem que a mobilidade do traço em Matisse tem a sua origem no próprio interior das formas. A curva continua dependente da produção da forma. Matisse trabalha, a partir de dentro, o desenho e a cor.Não enche de pintura os espaços delimitados por uma linha antecipadamente fixada: é a expansão dasmassas coloridas que vai fixar os seus limites. Melhor: a periferia das superfícies torna-se vibração, marca

(1) Alvo e íman: a imagem é de Leonardo, mas ele utiliza-a ao invés, dando ao olhar esse papel magnífico.No casamento de amor entre o olhar e o visto, que é o campo do pintor, ocorreu-me sem custo oatravimento de inverter os papéis

das tensões que condensam ou fazem estalar os objectos e as formas. O desenho a traço na tela pintada, frequentemente reintroduzido no fim do trabalho, evolui ora para fora,ora sobre a cor expandida. Se sublinha o arabesco, é para aí colocar a acentuação gráfica que não épermitida à cor por sua própria natureza.

Jogando por vezes com a caligrafia no momento em que a tela está prestes a terminar, Matisse, à sua

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maneira, vai ao encontro das deambulações de Cézanne. Mas não se disse já —e, aliás, Cézanne tambémacreditava nisso — que o contorno vem quando a cor, os valores, os volumes já não estão no seu lugar? Eesta observação não irá desempenhar o papel de uma censura se a necessidade da orla consuma umacertidão de fracasso? Com efeito, esta afirmação nada tem de inaceitável, aparentemente, a não ser que negue a verdade deuma dada situação, na medida em que recuse ao fracasso o seu valor de moeda com curso legal, de feridaaberta: de abertura onde operar. Quando o peso do verdadeiro rasga o consenso que faz as leis. Cézanne era efectivamente obrigado a acrescentar contornos. E sentia-se levado a fazê-lo,repetitivamente, para deter o desabar dos planos coloridos e tentar isolar os sólidos, arrumando o objectorepresentado numa fixidez que a progressão da continuidade pictórica destruía a cada passo. Matisse, ouporque passeia o pincel que vai depor a linha, ou porque se atreve a raspar a delgada película de pintura,entrega-se a uma espécie de comentário abreviado da inscrição das zonas coloridas no plano do quadro. Eesta linha acaba por harmonizar-se tão pouco com o que poderia ser tomado por um trajecto periférico comoo adejar de Rembrandt (supremo explodidor!) a iluminar a página branca sem qualquer preocupação de acompartimentar. Matisse procede por meio de zonas lisas: os seus volumes traduzem-se por superfícies quese demarcam umas das outras — e gozam da sua demarcação; Rembrandt lança vagas de luz e desombra, afogando as continuidades e descontinuidades do tema, para assim construir com os seusdestroços outras continuidades e descontinuidades onde trata de encafuar os seus loucos, sua nave. Neste sentido, Matisse opõe-se a Picasso, cujo desenho, quase sempre, aprisiona a forma, da qual amaioria das vezes é contorno. Todo o quadro parece então determinado pelos seus quatro bordos, em queas formas percorrem a superfície, contrariadas pelas suas diagonais quase sempre visíveis, quando nãoevidenciadas. Em Matisse, pelo contrário, o espaço elabora-se a partir das pulsões de cada forma.Acontece-lhe até quebrar a ordenação do quadro até ao ponto de o fazer estalar pela explosão da cor emliberdade: vejam-se alguns dos seus gua- ches recortados, por exemplo, Lã Piscine. A linha de Matisse não é concebível como um espartilho: ela determina o movimento piuridimensional daforma que se dá como espectáculo ao pintor e que está igualmente na origem do espectáculo que o pintorvai também produzir. O arabesco nasce das relações das massas, regula os cheios e os vazios sem nuncase imobilizar. Como Matisse presta aos vazios a mesma atenção que presta aos cheios, a reunião dasdiversas partes executa-se segundo um mecanismo de compensação que faz derivar a estrutura do quadro. Esta elabora-se assim, e muda segundo as necessidades da experiência em curso: não se impondocomo coacção externa, combina-se com os elementos que deve regular. Podemos acompanhar estecomércio raivoso ou subtil em quadros como La Vue de Notre-Dame, que conservam os vestígios das suasmetamorfoses sucessivas e, apresentando estas como tempos, tiram grande parte da sua beleza dafranqueza que não receia revelar dúvidas e falhanços. Ali, o tempo inscreve-se misturado: na imagementregue ao/nundo e destinada a ser recebida inteiramente no próprio instante da sua apresentação notam-se vários tempos: o encaixe uns nos outros de vários quadros que o espectador vai receber de uma só vezesbarra em arestas que permaneceram vivas, desmultiplicando a imagem final, cujo jorro goza dessasirresoluções (2).

O traço de Matisse nunca resulta de um jogo muscular em estado puro — no sentido de um movimentode ginástica que tende para a perfeição. Sentimo-lo antes como um traço pensante, que inscreveria aestreita correlação entre o que o olhar do pintor vê e o que o pintor crê compreender do que o seu olhar lhemostra. Esse traço pensa à medida que se produz: por muito rápido que seja, é um elogio da lentidão.

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Matisse nunca faz coincidir uma certeza adquirida com o andamento do seu estudo. Ver, para o pintor, é jádesregrar o que é suposto ser visto. O desenho de Matisse provém do acasalamento do olhar e da mão: nasce do gesto -maculado pelo olhar.O olhar reciocinante instila a precisão desreguladora que, transportada na mão ágil, lhe faz descreveraquelas curvas que falam em voz alta, cujas mudanças de intensidade, de velocidade e de sentido vãoproduzir os sinais: o pão do pintor. O ver do artista chicoteia ou refreia a mão. Adivinha-se a acuidade visual e o prazer do gesto. Mas nuncao gesto se torna um tique nervoso: nada daquele excesso mecânico que faz a embriaguez de encomendados falsos calígrafos.

Conservando toda a sua liberdade, o desenho vai permitir que a cor conserve também a sua. Desenho ecor, grafismo e pintura têm cada um uma forma própria de existir (ou de respirar). Enquanto a cor actua emsuperfície, o desenho produz a linha, descreve trajectórias. Em vez de sujeitar a cor ao desenho ou de lhesimpor uma mútua dependência, Matisse liberta o diálogo entre desenho e pintura. Os desvios entre otrajecto do grafismo e o desenvolvimento da forma pintada (talvez fosse melhor falar da expansão damatéria colorida sobre a tela) contam muito na frescura e na verdade do quadro. As obras de Matisse dão-nos uma ideia de flexibilidade, ainda que se mantenha visível que a tela acabada é fruto de um longoprocesso — coisa que Matisse de forma nenhuma dissimula. Matisse considerava o primeiro jacto de curto fôlego. E voltava a ele, sem muitas vezes se dar ao trabalhode apagar bem os passos em falso e de ocultar as hesitações, a fim de que o quadro fosse a síntese dosseus trabalhos de aproximação. Os seus êxitos têm assim o à-vontade de um espectáculo natural — o queé o contrário da habilidade de virtuose, armadilha de que, melhor do que ninguém, soube defender-se.

(2) Cf. Baudelaire, Ecrits^sur l'art: «Um bom quadro, fiel e igual ao sonho que o gerou, deve ser produzido como um mundo.

Assim como a criação, tal como nós a vemos, é resultante de várias criações, em que as precedentes são sempre completadas

pela seguinte — assim um quadro conduzido harmonicamente consiste numa série de quadros sobrepostos, em que cada nova

camada dá ao sonho mais realidade e o faz subir um grau a caminho da perfeição.»

Mesmo que o comparemos a um acrobata a aperfeiçoar o seu número, ele ilumina o que é verdadeiro noacto de pintar: «quando os meios se apuraram de tal maneira, se afinaram tanto que o seu poder deexpressão se esgota, há que regressar aos princípios essenciais que formaram a linguagem humana».

Se é certo que Matisse começa por desenhar sobre a tela, o seu acto de espalhar a cor não é paraencher. A cor é uma grande senhora, não uma serva. O desenho não é cercadura nem compartimentação.Seria fácil provar isto, tentando colorir meticulosamente a reprodução de um dos seus desenhos. Não háqualquer relação entre o resultado obtido então e o menos conseguido dos seus quadros. Matisse é no seu

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trabalho a invenção permanente. Nele, não há tarefas a realizar nem trabalho anónimo: a pintura é um actoque lhe proporciona reflexão e fruição a todo o instante e que se mostra enquanto tal.

O lápis ou o pincel poisam uma matéria sobre outra matéria, a tesoura corta a matéria dada: ao pegar natesoura para desenhar, Matisse verifica que ultrapassa o limiar do domínio escultórico: onde as formas sereencontram num vazio real. Recortar uma curva é um jogo que exige as duas mãos: uma segura a superfície a recortar e a outraopera o corte. Um pouco como quando a mão esquerda do gravador oferece a chapa de cobre à lâmina doburil, segura pela mão direita. Mas a comparação fica-se por aí: o sulco do buril inscreve-se na espessurado material trabalhado, ao passo que o percurso da tesoura produz uma mudança mais radical ainda: aforma recortada acha-se desde logo isolada no espaço. O traço de carvão na página em branco determinauma partilha, e as zonas que então define permanecem ligadas, ele marca-lhes a ligação. A forma pintadamacula a tela que a recebe e recebe a tela como meio ambiente. Mas, ao recortar uma forma, liberto-a dasuperfície matricial, exponho-a a várias agressões. Acentuo esta palavra «várias», que aqui se introduziu como um sinal da ambiguidade que se manifestatanto mais quanto mais procuramos ser exactos. Ambiguidade que por assim dizer é o preço (ou ocontravalor] da exactidão. Se a intenção de definir uma coisa é bem sucedida, achamo-nos imediatamentenuma nova situação. Uma definição fecunda não faz encolher o campo que lavra. Ao progredirmos noconhecimento, é a linha do horizonte que deslocamos. A ausência de repouso é o torrão de açúcar querecompensa a habilidade feita, bichos que nós somos em trabalho de domesticação.

O uso das palavras e as suas injustiças: digo «as minhas colagens», e a colagem não passaverdadeiramente de uma pequeníssima operação artesanal, escrava obediente quê, no fim do banquete,paga a conta de vários senhores. Lembremo- -nos de Max Ernst: não é a cola que faz a colagem. Matisseopta pela denominação «guaches recortados» que acentua bem a operação, para ele a principal, do recorte:a arte de talhar a cor à tesoura.

Saindo de uma pintura em que a cor, saturada, se espalhava por zonas planas de contornos rigorosos,pude adoptar este procedimento: ela trouxe-me evidência, uma evidência não desprovida de ambiguidade,uma evidência que parece nascer do peso concreto que as formas tomam quando deixam a página ou otecido colorido, quando surgem realmente no espaço em completa liberdade, durante aquele intervalo,aquele tempo intermédio que antecede a nova operação: a assemblage (palavra que convém fazer seguirde: e suas surpresas).

Porque se trata aqui de uma verdadeira mina de surpresas, que, se cumprir as suas promessas, podeconter a riqueza de um novo arranque. Ao fazer entrar a forma recortada, tão próxima da escultura, no mundo contínuo que é próprio do quadro,procurando para ela um lugar no mosaico que é a articulação dos cheios e dos vazios, a situação muda, epor vezes radicalmente. Ao colocarem-se frente a frente várias evidências, joga-se um novo jogo: entre entidades que estão agora

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lado a lado e sofrem influências recíprocas. Cabe ao pintor entrar no diálogo.Se conseguir guardar silêncio — coisa rara!—, melhor para ele.

O recorte implica a brutalidade do facto. Ele corta à tesoura o universo nebuloso, evanescente, da corpintada. A assemblage das formas recortadas impõe uma clareza de opção, o rigor na economia que é a viapor excelência para a libertinagem dos sentidos — falo do teatro do visível. No mundo como lugar (ou espectáculo) em transformação, que é, parece-me a mim, o do meu trabalho,a evidência da forma recortada, o seu carácter de coisa pré-existente, ajudou- -me a fixar-me, a sopesarmelhor o que está em jogo, a apreender as personagens do drama, as estações desta viagem que é apaixão do pintor.

O pintor não vê para além, vê o que está ali. A vidência manifesta-se na assunção da presença. Do que está presente (mesmo que essa presençaseja apenas uma marca na memória); do que o acto de pintar produz; do que se produz apesar de, ou forade, ou paralelamente a esse acto. O ver do pintor dá-Ihe o que ele produz, o que vai acontecer durante esseacto que em parte acompanha e em parte ultrapassa a sua vontade. Em pleno trabalho, é como se tudo estivesse já ali, sobre ou sob a tela, e bastasse aflorar esta no sítioconveniente para ela se abrir e entregar tudo ao visível. No espaço real, bidimensional, do quadro, imagens e miragens vêm cintilar; facto é que a mínima manchaapanha o real e alimenta-se, tal como o alimenta a ele, das borras do vivido.

O que conta, o que faz o olhar do pintor, não é tanto fazer um quadro, como ver: ver o que se passa sobrea tela. Ali onde o quadro se faz, e durante este fazer do quadro. Vontade de fazer uma verdade do que estáa aparecer. Capacidade, que é um dom, por ordem da vontade, mas para além desta, de fazer aparecer.

Real é o que está ali. E este ali é: lugar de acção, palco (do teatro do vivido), lugar geométrico de todos ospontos que me tocam a partir de fora. De um fora que não coincide obrigatoriamente com a periferia do meucorpo: quadro de uma provável fissura (também para ti, caro leitor). Ver o que está ali: sobre e dentro da barreira esmagadora pelo próprio peso da sua disponibilidade que éa tela a cobrir, o que ali acontece torna-se real. É com este real, sua obra, que o pintor se mede antes de mais nada. É este real que ele opera. Ali vãoexpor-se dúvidas e fraquezas, ou façanhas, que é preciso descascar ou deitar abaixo. «Se acontecerfazeres alguma coisa que te agrade logo, apaga», dizia Picasso. E Matisse: «Aprendi a desconfiar doprimeiro jacto» (cito de memória).

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Não é por acaso que os dois mestres se encontram nesta comum rejeição da pretensa espontaneidade —ou da virtuosidade tão cara ao principiante e ao recém-chegado. E ninguém, que eu saiba, levou mais longea procura do próprio acto de pintar. (Sabe Deus todas as portas que Kandinsky, Klee ou Mondrian nosabriram sobre esta prática mal amada da pintura, desde que Cézanne a revolucionou radicalmente).Ninguém compreendeu como eles o que Cézanne levou toda a sua vida para conseguir viver: a obra comolugar a operar, lugar de obra.

Os contornos que Cézanne multiplica são a contrapartida da margem de tela que permanece virgem depintura no meio da progressão ritmada das pinceladas. Esta margem, ou fenda, terá sido um esquecimento,seria impossível preenchê-la, ou esse preenchimento seria inútil? O diálogo entre o que o pintor quer e oque o pintor faz resolve-se no plano do que ele dá a ver. Desregramento de situações que tem sempre quever com o real, o qual valoriza a presença da realidade-tela contra o ilusório de toda a representação.Realidade também da mobilidade da visão, contra a inércia suposta do i/oyeur-pintor. O pintor toca instrumentos que ele próprio produz sobre o seu suporte, papel ou tela. Mas o seuverdadeiro campo de trabalho, ou terreno de jogo, ou leito de amor, nasce das relações desencadeadaspela confrontação das sonoridades presentes, libertando uma energia que só poderá afirmar-se, con-tradizer-se ou alterar-se a partir desta entrada em situação. Tudo está «nas relações, só a relação éprodutora, ainda que à , custa de inconfessáveis surpresas. Triste pintor aquele cuja moral só reconhecevalores seguros.

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«E julgas que naquela época era fácil perceber que Cézanne era o mais forte?» (Picasso dixit). Não hádúvida de que havia quem suspeitasse de que se passava algo de grave na dura disciplina de Cézanne.Mas acompanhavam-no sobretudo do exterior, reduziam-no aos sinais à flor da vista, caindo no logro dasaparências rapidamente codificadas. Lembremo-nos daquela profusão de banhos que surgiram aqui e alémnas vanguardas de então: essas académias sustentadas por uma geometria elementar contra um fundo depaisagem esforçadamente esboçado. Era a época em que Picasso e Matisse tinham ambos comprado como talismã um quadro de Cézanne.Estudos de Baigneu- ses que, já velhos, ofereceram ao Museu, como última homenagem prestada aoMestre. Mas a grande homenagem a Cézanne deve ler-se nas Demoiselles d'Avignon, no Luxe, naMusique, na Danse, piscando o olho ao quadro de Maurice Denis, tocante testemunha da impossibilidadede passar o limiar de uma história que mudava de rumo. As grandes Baigneuses são a plena realização do caminho de Cézanne. É ali que ele se encontra diantede tudo o que ultrapassa as suas declarações sobre a pintura — de um pintor que sonhava ainda os belossonhos que o fim do século XIX abalou. Elas foram uma empresa delirante para quem só fruía da sua«pequena sensação» (da sua petite mort?) a partir do motivo — não conhecendo outro alimento para a suamatéria cinzenta além do que, retinianamente, lhe chegava do campo do visto; obrigado a substituir oomnipresente, o todo-poderoso motivo por pálidas recordações de academia que obriga a insta- larem-sesob a cúpula da sua capacidade de catedralizar, Cézanne, teimoso como era, maníaco, para quem ageometria ou os conceitos de Uccello ou dos Primitivos eram «ideias sem carne», persegue a sua ideia. E,para alimentar essa ideia, cozinha uma carne com o que encontra em cima da mesa do quadro: ali ondedirige, de frente, a vacilante organização daquele festim de fantasmas esfomeados. O que rói o coração da obra vai tornar-se corpo da obra. A obra em processo, o processo da obra, vãotornar-se obra, incorporando a falta como dado, campo de trabalho. A falta: linha de flutuação da obra. A obra deixa de ser o resultado previsível de uma elaboração controlada para operar no desvio, entre opropósito (projecto, intenção) e o que o acto, o fazer, introduzem (manifestam, contradizem). Assim, aelaboração do objecto-quadro é coisa diferente da de um tamanco ou da de um assado (um verdadeiroassado): toda a gente está de acordo quanto ao momento em que o tamanco atinge a possibilidade de sercalçado e o assado a de ser comido, sem deixarem de ser de comércio agradável. Seguidamente, deacordo com o uso que sofrem, atingem o desgaste. Pelo contrário, o quadro de Cézanne incorpora odesgaste, o próprio processo da sua elaboração, pela impossibilidade de uma paragem que é inerente aocaminho que o produz: o questionar constante do visto, uma vez que o que o pintor pinta ou dá a ver estáincluído neste visto. Tomar Cézanne pelo «Poussin verificado do natural», reduzir a revolução que produziu a ter voltado apôr em uso um alfabeto de cones e de cilindros, é tomar excessivamente à letra pedaços e fragmentos doseu próprio esforço teórico. Em todas as Escolas de Belas-Artes do mundo houve professoresbenevolentes que assumiram e continuam a assumir mais ou menos este discurso. A arquitectura doquadro não é um facto novo, pois a geometria sempre guiou a análise dos objectos com vista à suatransmutação em imagem pintada. E, na análise que Cézanne faz da cor, vamos encontrar o que osimpressionistas tinham praticado, salvo, talvez, a famosa correlação entre a exaltação da cor e a plenitudeda forma.

Aqui, e também na sua forma de fazer avançar maciçamente o quadro como um todo (que se fendejustamente devido a essa tensa progressão), sente-se verdadeiramente a tentação de tocar um absoluto. Ea «pequena sensação»? A sua pequena sensação, que ele defende a todo o custo, acha-se à margem doconvencionado. E, acentuando ferozmente a sua diferença, Cézanne tenta efectivamente colocar, introduzira sua ideia, a sua ideia de um Poussin que trabalhasse diante da (ou da sua) natureza: mutável natureza,que o muda a ele por sua vez, pelo poder ponderado e imponderável do olhar: este vaivém que mantém opintor em estado de vigília, anulando a distância entre o olhar e o motivo, anulando este nada: o vazio entreo sujeito e o objecto. Assim, quando ele pinta e repinta o seu monte de Sainte-Victoire, o que se torna seumotivo, seu objecto, é aquela mesma distância, aquele vazio presente que oferece a densidade de umcorpo.

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O drama que Cézanne tenta representar parece brotar da sua impossibilidade de aceitar a servidãoimposta pelos dados originais do seu discurso. E é esta impossibilidade que situa o seu trabalho sob o signo do questionar operante.

Quando Picasso dizia de um pôr-do-sol (ou de um espectáculo natural da mesma espécie, já não melembro exactamente de qual): «Se eu fosse pintor, que belo quadro poderia tirar daqui»—tratava-se,evidentemente, de um dito de espírito. Mas ele pensava sobretudo no que pode escapar-se pelas fendasque a divisão do trabalho acarreta.

Quem descobre que está à beira do abismo —à beira do abismo e da ausência de beiras— não estáidealmente situado para pintar minuciosamente uma linda vista e bem (de)terminar o seu quadrinho.

Estamos longe da arte como harmonia de contrários. A impossível harmonia: presença do verdadeiro?

Cézanne não é um desenhador que isola a linha para gozar dela, como o arco goza da corda. Do seutraço, ainda que por vezes cursivo, nunca se pode dizer que seja flexível, mostrando à evidência que nãoanda atrás da linha exacta: «o desenho é apenas a configuração das formas». O seu traço não é glutão —agula de Picasso—, nem guloso— a gulodice de Ingres ou de Matisse. Também não há nos desenhos deCézanne nada que se assemelhe à majestosa impenetrabilidade de Seurat, que, no pólo aposto, expressaas linhas pela sua ausência, conferindo à arquitectura de valores evanescentes o rigor de um desenhogeométrico.

As relações de Cézanne com a expressão linear são muito especiais. Ela foge dele e ele desconfiadela. Os contornos só são conseguidos como despojos: riscos que vêm, ariscos, aflorar a superfície da tela,para caírem sobre a orla fugidia de uma forma no lugar abismal onde um volume primário (cone, cilindro,esfera) termina, justamente onde outro volume começa.

Mas estas pontas de fio conseguem ligar a continuidade do tecido pictórico. Pequenas pontas, oudestroços de uma explosão? Como a forma explodida a custo se recompõe, as diversas partes têmdificuldade em reencaixar-se. Estes restos de contornos vão alojar-se em rachas que pretendem colar. Mascomo a cicatriz permanece em carne viva, o traço sublinha-a. Operação simétrica da que deteriora aexpansão da matéria colorida quando a tela consegue permanecer virgem entre as pinceladas. Se umavibração tracejada é tudo o que resta do contorno, todos os pedaços de tela virgem, inatacados masexcessivamente evidentes para passarem desapercebidos, assinalam sem equívocos a presença do realda pintura. Eles apresentam o facto pictórico na sua pureza, expressando-o da forma mais crua: pela suaausência. A ilusão de-termina-se aí: aí onde ela já se não furta ao contacto com a precaridade do seu papel.

O seu olhar agudo mantém o pintor em trânsito entre o real e o imaginário. Nenhuma pintura sepreserva da ficção, ou dos poderes da evocação, da projecção simuladora, da margem entre o já visto e oque acaba de ser proposto pelo ver. Da mesma forma, nenhuma imagem pintada pode obliterar os dadosdesse real que lhe é próprio: a matéria pictórica. Sujeito dividido entre fazer e ver, o pintor não pode deixarde gerar mestiços.

«Devo-vos a verdade em pintura». Cézanne não é peco de palavras. O seu sentido feroz da plenitudeleva-o a fruir apenas da tumefacção ofegante do volume, a perseguir a energia que, tendendo a expandir-se, faz voltear as massas. E aproveita este desequilíbrio para operar a reintegração de todos os dados numsistema dinâmico obstinadamente arquitecturado.

A sua percepção das relações plásticas obriga-o a desestabilizar o ilusionismo do quadro, a fidelidadeã representação que, na época, seria impensável dispensar. Pretende surpreender e fixar o máximo derelações plásticas na embriaguez que a pequena sensação desencadeia.

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A pequena sensação actua como um catalisador, o único que Cézanne pode conhecer, e nela vê ele achave mágica do acesso ao mundo do plástico puro — que nunca nomeia. Como um crente que evitapronunciar o nome sagrado.

O seu acto de pintar passa todo por aqui, sem respeito por esta hierarquia sabiamente descascada,esquadrinhada e transmitida pelos mestres: desenho — composição — colorido.

O átomo da pintura de Cézanne não é fissurável. O corpo do visto não é dissecado para ser depoisrecosido, como esqueleto a recobrir de carne e depois de pele. Cézanne não pretende abordá-lo como umsistema de conceitos, secundado por todo um armazém de outros conceitos, histórias que se contam paranão enfrentar o acto de ver. Ele pretende agarrá-lo logo ali, na sua aparência movediça, como um todo: otodo da imagem quando ela se impõe.

Pela mão de Cézanne, a natureza abandona assim o sentido que os pintores tradicionalmente lhedavam, o sentido de uma retórica, refugo dos géneros: paisagem, marinha, retrato. Para reaparecerenquanto mediação ou proeza, da natureza do visto. Enquanto natureza apreensível pelo vivido do visto.

A quase-ausência de verdadeiros estudos preparatórios diz-nos muito sobre este pintor que poucoacreditava no acaso e menos ainda na inspiração. O que ele faz é perseguir, de um suporte para outro, algoque lhe foge. O sonho das Baigneuses, o Obra com a qual pretende medir-se com a pintura de Museu,constrói-o ele de análise em análise, de síntese em síntese, de acontecimento em acontecimento. Cadapeça, seja qual for o seu tamanho, encerra-se como um mundo fechado. E, se anuncia a seguinte, é porquea pintura não muda de rumo. Quando um estudo já não pode levá-lo mais longe, recomeça noutra tela. Asua pintura não tem outra opção além da de se fazer no acto. O que foi obtido num fragmento não podenunca transpô-lo por inteiro para um novo suporte. (Paga-se sempre o preço de um recomeço, ainda quenunca se recomece do zero.)

Ingres multiplicava os desenhos, os decalques, os estudos parciais. Um quadro era para ele a gala queo artista prepara cuidadosamente e na qual se lança logo que se sente em condições de ter êxito. Matisse,por seu lado, compara-se a um acrobata e recomeça muitas vezes o seu desenho, até que o seu gestopossa cumprir-se sem falhas (ou até assumir a sua falha, harmonia com a respiração do autor e o fôlego daimagem). Mas ele interioriza (?) a síntese. Ao passo que Cézanne analisa, escava e volta a analisar oconjunto das suas análises. O trabalho de Matisse põe ponto final (ainda que em aberto), tal como otrabalho de Picasso e o de todos os grandes clássicos. Mas o trabalho de Cézanne, não.

Cézanne vê a sua pintura através da pequena sensação (a pintura de Cézanne é a sua natureza). Elaé feita fazendo-se, continua, é sofrida, raciocinada, arriscada no acto. Não se trata de improvisação:ninguém menos que Cézanne se deixaria arrastar pelo imprevisto. É o comércio com o ver que a alimenta,que a ganha ou a perde, que determina as suas hipóteses.

Cézanne não monta um espectáculo: o presépio, ou a ceia, ou uma tigela vazia, ou umasmulherzinhas a tomar banho. Raciocina sobre a natureza das coisas que o acaso de uma encenação,resultante da história ou dos costumes do tempo, combina naquilo a que chamamos naturezas mortas,banhos ou paisagens. Raciocina, mas de mão na massa. Ao raciocinar, não segue a lei das palavras.Pintor, tem como expressão os meios do ver, o que trabalha o ver e o faz trabalhar, num sistema estanqueque a pequena sensação põe em movimento.

«Tudo está em pôr o máximo de relações possível» (pequena frase numa carta). Eis o que nosoferece, para abordarmos a obra de Cézanne, uma possibilidade muito mais rica que a grelha de volumesprimários em que o pintor se propõe inscrever o seu visto. Corrijamos: não o seu visto mas o seu ver. Asimagens não se armazenam na cabeça deste pintor que desconfia da memória. Também não provêm dasua experiência passada, mais ou menos trabalhada pelo olvido, operário do inconsciente. Cézanne retira oseu ver do presente, da pequena sensação em que se lança, não irreflectidamente, mas para celebrar,muito pelo contrário, o reencontro com o seu corpo vivo, situado no mundo, na terra, no meio desteespectáculo cujos planos intenta destrinçar — essas coisas que, no falar dos pintores, fazem as vezes deentes, os ocos mutantes do filósofo.

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Ter por desígnio «pôr o máximo de relações possível» é introduzir desde logo o aberto. É, ao mesmotempo, recusar a si mesmo a possibilidade de concluir, é proibipse a redução da maçã a uma esfera, docano de fogão a um cilindro, da almotolia a um cone. É condenar-se a pôr incessantemente a si mesmo aquestão, a re-pôr-se sem repouso, a nunca encontrar a solução, ou a resposta que extinguiria a pergunta.

«Encontrar o máximo possível de relações»: esta vontade vai fazer nascer todos aqueles quadros quenunca terminarão, impossíveis de terminar, e cujos estados sucessivos vão levar o olhar e a mão do pintorde abertura em abertura. É o caso daquelas aguarelas do fim, em que o próprio processo, os jogos da águae do papel deixado em branco, oferece desde logo espaço trabalhável para a infinidade das relações.

«A abertura de um mundo dá às coisas o seu movimento e o seu repouso, o seu afastamento e a suaproximidade, a sua vastidão e a sua estreiteza. Na ordenação do mundo está reunida a vastidão a partir daqual a benevolência tranquilizadora dos deuses é dada ou recusada. E mesmo a fatalidade da ausência doDeus é ainda um código da ordenação do mundo.

«Sendo obra, a obra estabelece o espaço desta vastidão. Estabelecer o espaço significa aqui libertar aplenitude no conjunto desses traços. Este arrumar desdobra-se a partir do erigir de que acaba de se falar. Aobra enquanto obra erige um mundo. A obra mantém aberto o aberto do mundo» (M. Heidegger, Cheminsqui ne mènent nulle part, A Origem da Obra de Arte],

Colarei ao mistério de Cézanne estas belíssimas palavras.

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O CELIBATÁRIO, ELE MESMO

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Os primeiros estudos em que Cézanne anuncia Cézanne são marcados por esta — ia a dizer maldição,mas porquê maldição, maldito gosto do fatalismo! — por esta qualidade, enfim, que vai obrigar o pintor aisolar-se, e não apenas dos seus contemporâneos mais inovadores (de que bem desejava demarcar-se),mas também do sistema da arte que o Ocidente até então tinha reconhecido como o único que valia a pena.E, no entanto, era o único sistema que Cézanne reconhecia, embora estigmatizasse a sua decadência.

O seu particularismo, para além dos códigos que a pequena história cuida de alterar, vejo-o eu,sobretudo, no insular, no laço solar entre duas forças opostas, na geminação do fascínio e da repulsa quedinamizam e inacabam o melhor da sua pintura, essa geminação que brota da obra e que a inerva.

Obrigado, como Jacob, a umas justas equívocas —que, para o herói bíblico, só duraram uma noite—,Cézanne vai bater-se toda a sua vida, não contra o enviado do Senhor, mas contra este par de gémeosbem terrenos.

Fascínio e Repulsa: é sobre as suas disjunções e as suas convergências, as suas disputastempestuosas e a sua neutralidade explosiva, até sobre a sua androgeneidade —sexuali- zemos a história,visto que é a obra de um pudibundo que lhe serve de pretexto —, é sobre tudo isso que Cézanne vaiconstruir a sua fábrica de uma Nossa Senhora da solidão, catedral inacabável.

E este par torna-se o duplo pilar em que assenta o corte introduzido pelo pintor na história da arte,destacando desta o corpus chamado «arte moderna», que nos oferece também, a partir das suasaquisições, uma nova maneira de fruir da arte do passado.

Ao aproximar-se da maturidade, Cézanne já não se deixa seduzir, ainda que de forma episódica, porrepresentações provocadoras, e a insularidade da sua obra aumenta. A presença de forças contraditórias eo ambiente das suas relações já então se -não notam nele mais do que a própria prática pictórica. Acabaraa truculência dos temas, a abundância dos assassínios e dos raptos, já não há mais Tentações nemApoteoses. A imagem dispensa tornar-se miragem: o ver surge, torna-se feudo do mistério, e até estapalavra mistério já só a encontramos na paleta do pintor. Onde, aliás, muda de nome: azul de prússia, lacaqueimada, vermelhão, ultramar e outros prosaísmos deste género. (Sensações colorantes?)

E este domínio, fechado sobre as alegrias e as angústias que são próprias da pintura como prática,liberta-se daquele suserano endividado de morte que é o dizível, o historiado, e desencadeia ummecanismo de relações que vão cavar os fundamentos da disciplina que, sem apostar já na copulação doolhar e da palavra, vai fazer do acto de pintar uma jangada que já só flutuará sobre as águas do visível.Vidência que já só pretenderá remeter o voyeur para o acto de ver.

Neste poço, os faróis da geração seguinte (Matisse, Picasso) irão encontrar as suas luzes e, com eles,toda a arte moderna, que, com a força desta perturbação, acaba de se fundar.

Na perturbação ou na fenda que nascem do fazer da obra — e no fazer da obra—, no que o pintorsofre e opera quando se propõe ver, através da presença simultânea do que atrai e rejeita os jogos doolhar, nasce e cresce a experiência cézanniana.

Ela encontra muito mais o seu alimento nas ambiguidades desta perturbação e na brecha semprerenovada do que no alcance das suas afirmações teóricas, que, com razão ou sem ela, historiadores ecríticos tentam a todo o custo harmonizar com a obra pintada.

O rigor obstinado desta veicula o esplendor do resultado — pois a obra abre também a abertura que opintor julga operar — à medida que Cézanne envelhece. O fervor de uma prática que se autodisciplina(esta actuação dájme vontade de falar de autoflagelação) deixa de refrear a sensualidade que procurava àsapalpadelas o seu objecto apoiando-se em nomes supostos.

No abismo existente entre uma teoria forçosamente redutora, só que desbastada das mofas quehabitualmente atravancam o discurso dos artistas, e o fascínio de uma prática pictórica única, elabora-se amitologia que vai levar a arte da pintura a mudar de pele — ou a reconhecer-se velha como o mundo,graças à iluminação das suas vísceras.

Zola, em L'Oeuvre, copia traço por traço o perfil de Cézanne para fazer dele o seu artista falhado. Einventa-lhe uma obra que nada tem que ver com o trabalho de Cézanne. Porque (e isto, apesar de tudo, foibem visto por Zola, apesar de passar ao lado da matéria em que tocava) a prática pictórica que Cézanneprocurava instaurar não dava qualquer pretexto aos resultados descritivos em que os escritores do séculoXIX pensavam a propósito do mínimo centímetro quadrado de tela pintada.

Com excepção de Balzac, cujo Chef-d'oeuvre inconnu con- nua a ser a certidão premonitória da

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grande viragem da arte.Nada há de surpreendente no facto de Cézanne se projectar nas angústias e na firmeza do

personagem central, Frenhofer, o velho pintor que anuncia toda uma pintura do futuro.Em alguns dos seus primeiros quadros, Cézanne toca em temas singulares que se introduzem no meio

dos temas sem história: um rapto, um assassínio, mas também lampejos de libertinagem sonhada. Mas àpaisana: estes temas são apresentados sem recurso aos disfarces culturais que permitiam até então que assem-vergonhas fantasmadas passassem imunes pela alfândega dos bons costumes. Não há rapto dasSabinas nem morte de Sardanapalo, não há Susana espreitada por velhotes escoptofílicos, nem aembriaguez de Lot a provocar o incesto, mas pequenos factos quotidianos e vulgares, quando muito deanedota de caserna. Aquilo grita, é feio, fede, agride.

Perante Courbet ou Manet, já tinha havido quem falasse de escândalo. Mas Cézanne ousa ir maislonge. A vulgaridade dos temas é reforçada pela rudeza do pintor, que nem sequer se dá ao trabalho deenvernizar os seus escarros. Ou, ainda, o retrato monumental de um deficiente, Achille Empéraire. Ou até oretrato do Pai, um monstro.

O excesso: se formos por aí, aquilo repele, repugna, mas pode servir. A função da injúria: tratem disso.A necessidade do engodo, a sua função, o seu mecanismo de catalisador. Do qual o pintor é vítima ecarrasco.

O engodo — a evidência muito sublinhada, extravagante, ofensiva do tema escolhido, a obstinação naagressão. Isto é, a cortina corrida que vai servir de provocação (ou de vocação) da acção que se joga nofazer, e que joga o fazer da pintura. Acção que é bem diferente da que a figuração do quadro descreve. Ecujo sentido (quando se retira o que se dá a ver, a coberto da excessivamente gritante exibição da anedota)começa a viver a sua vida autónoma. Se esse sentido toma tal autonomia, é só graças aos efeitos daencenação para basbaques por ele servida. E o que, no fim de contas, se torna autónomo é a táctilactuação do desejo, desvelando o que havia de mais secreto e de mais profundamente original no trabalhode Cézanne (1).

Aquilo a que chamamos desejo: onda obscura de matéria inominável (e as palavras sensatamentealinhadas desta imagem que arrisco não deveriam levar-me perdido até muito longe...)

Mas, ao falar assim, sacrifico, apesar de tudo, a uma palavra que não é de modo nenhum a minha.Como tu, caro leitor, só disponho das palavras em circulação, como notas de banco.

Ora, com razão ou sem ela, soltamos palavras aqui e além, sem olhar bem para a moeda que nos dãoem troca — o inevitável contrapeso do sentido, desse sentido que, resultante de uma vontade singular, dá àpalavra a sua acepção, quando esta vontade se torna autoridade. E apoiamo-nos nessa autoridade — osentido faz autoridade — que é o poder em exercício das ideias em circulação. E depois, à medida que asideias entram no mercado comum em que todo e qualquer se vai abastecer, a margem de degradação dosentido aumenta.

O compêndio do recitativo psicanalítico fornece, assim, algumas dessas senhas que se tornaram sinaisde pertença a uma crença em moda e que já não operam de maneira diferente da camisa grand-père paradistinguir os que as envergam deliberadamente.

Foi a progressão redutora de uma tal gramática de ocasião que conotou o falo com qualquer formavertical e tornou a invaginação obrigatória à primeira concavidade ou buraco que aparecer. Nem por isso émenos verdade que o dedo de Deus continua a ser o dedo de Deus e a flecha de Notre-Dame continua aser a flecha de Notre-Dame, o que não deixaria de satisfazer o próprio Freud, para quem um charuto eratambém, às vezes, um charuto.

(1) Precisamos também de tentar fugir às armadilhas: a singularidade de certos temas torna-se menosimpressionantes se tomarmos em conta que o gosto pelo patético e até pelo melodramático estavabastante difundido nos frequentadores dos salões da época.

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E eis como a palavra desejo me surgiu nesta página, como quem dá consigo a cantarolar umacançoneta que no entanto nos cansa os ouvidos, e sem evitar a onda embaraçosa de moedas de trocosque me vem atravancar a pretexto de anular a diferença entre esta nota grande que pus em circulação ea própria natureza do meu tema.

A confirmação que tranquiliza só pode vir de uma palavra, e não de uma palavra qualquer: umapalavra que se espera.

O comércio das palavras: recorro a ele aqui para desbravar a selva do ver, para me aproximar do ladoperturbador e perturbado da visão; para desempenhar, portanto, a função da bengala do cego: protegendoa marcha do indivíduo, ajuda-o a afastar-se dos obstáculos em que poderia tropeçar.

Assim o risco e a segurança inventam para si próprios um jogo cuja bola lhes é fornecida peladistância (com a diferença de que nele não há, naturalmente, qualquer bola). Não, aliás, qualquer distância,mas a que vai do eu ao ali. A distância, essa, instala o ver, e este vai trabalhar o visto com a matéria que lhefornece o ali. E encontramos uma caricatura do tributo pago à distância neste incessante vaivém a que opintor está entregue e a que se entrega diante da sua tela, como uma fera na jaula. Mas é o após que cria oespaço da palavra, fundamentando assim o mais insensato dos seus projectos: a história.

A distância é esse corpo interposto entre o sujeito, o pintor, e o objecto que é o assunto a pintar, entreo eu e o ali. E o seu desfalecimento progressivo era, na experiência de Leonardo, condição necessária paramanifestar apropriação — pois esta apropriação era para ele uma travessia atenta, e podemos encontrar asua descodificação minuciosa no seu Tratado da Paisagem.

Cézanne, esse, dá à distância consistência e carne, trata-a corno um corpo que quer possuir. Mas ainscrição desse corpo na tela desemboca então na exaltação do plano desta. A série das Sainte-Victoiredeve ser lida como uma sucessão de atestados de fracasso, e é justamente a qualidade desse fracassoque faz a glória de Cézanne. Fracassando, inabordável, o ali remete o pintor para os seus terrenos, edestes Cézanne fez um reino. Do deserto de que partira e para que foi devolvido, vai fazer a sua messe.

Em vez de pintar a presença da montanha longínqua, vai agarrar a massa da distância que vai do seupróprio corpo ao perfil da montanha no horizonte. E vai fazer tornar-se cheio este vazio. Os trajectos doolhar, mil vezes recomeçados, esses vectores do eu ao ali, são assim as geratrizes de um corpo sólido cujaespessura mediatiza a presença em primeiro grau. E é esta que vai ocupar o primeiro, se não o único,plano, o plano real do quadro.

Um rapto, um assassínio: eis assuntos que teatralizam esse conflito que, na maturidade de Cézanne,já não precisará de apoiar-se em encenações alheias à pintura para conseguir, justamente, exprimir-se empintura. Entre as cores da natureza — incluindo as que estão na paleta do pintor— e o olhar sedento dopintor que interroga as suas relações — enfrentando as relações incongruentes que nascem de toda arelacionação—, nesta no man's land, inferno ou paraíso onde vive em celibato, Cézanne obstina-se em nãotolerar que alguém lhe ponha a pata em cima.

Mas que há de mais imediato, em princípio de carreira, para pôr em movimento tanto o próprio pintorcomo o futuro receptor do quadro —e forçar esse pintor tímido a soltar a violência do seu sentimentopictórico— que ocultar ou mascarar a sua própria força por detrás de uma narração vulgarmente passional?A finta espectacular impõe-se então, para distrair aquele que contempla e incubar e tranquilizar o própriovidente. Que poderia ele fazer, neste caso, senão isto, já que não pode esbanjar no puro fantasma aenergia que lhe faz cócegas e que ele não sabe como libertar ou entregar a granel?

É esta energia, renovada por cada conflito, que abre para Cézanne a porta à busca desse máximo derelações que tenta estabelecer no mínimo dos seus estudos. Apreender o máximo de relações: é a estrada

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real da aventura pictórica de Cézanne.Tirados a traços largos, os seus primeiros quadros explodem por todos os lados e rangem, na sua

unidade penosa. Daí um mal-estar que provém da coabitação de uma vontade que expõe brutalmentedúvidas e fraquezas e de uma sensibilidade que está de tal modo à flor da pele que só a rudeza lhe servede eficaz escudo.

A frequentação de Pissarro vai ajudar Cézanne a esquecer esta chaga durante algum tempo, fazendo-o acertar o passo com o impressionismo, mas também, e sobretudo, a sua assiduidade junto dos mestresdo Louvre vai confortá-lo na sua rejeição instintiva da imprecisão impressionista. Virão então as naturezasmortas clássicas, algumas paisagens circunspectas, o punhado de quadros que Emile Bernard considerouobras- -primas, aproveitando para riscar da lista das ditas obras-primas tudo o que não conseguiaharmonizar com as suas teorias pessoais.

Refazer o Poussin do natural, era procurar aliar a pequena sensação a grande pintura de Museu.Defendendo o recurso à geometria, para devolver consistência às formas e restabelecer a ordemperturbada pela dissolução formal introduzida pelos impressionistas, Cézanne pretende-se nacontracorrente desta viragem histórica, que instituía o primado de uma espécie de desenvolvimento musicaldo quadro sobre a sua estruturação arquitectónica. Aquilo de que Monet iria tirar as últimas consequências,redundando em produtos em que o centro da questão em termos pictóricos (e o objecto encontrado, no fimde contas), não ia ser outro senão a definição do quadro como um puro campo de energia cromática (2).

Cézanne propôs-se substituir o uso tradicional do modelo (o relevo dado por meio do claro-escuro)pelo da modulação, ou seja, o relevo exclusivamente dado por meio da cor. Neste caso, a sucessãoespacial dos planos expressa-se pela instauração de séries de cores de valor idêntico, que vão do quenteao frio, do laranja, para a luz, ao azul, para a sombra.

Podemos, nesta proposta, ver apenas uma nova fórmula — por muito revolucionária que seja — davelha obsessão dos pintores: sair do ser plano que é próprio da tela, fazer girar os volumes. Para reagircontra a evanescência musical dos pintores impressionistas, mas aproveitando contudo a sua contribuição,Cézanne vai buscar à própria música a noção de modulação, que igualmente lhe vai servir (e isso terápesadíssimas consequências) para arquitectar o fazer do seu quadro.

A modulação é a acção de modular. Pensando em modulação, caímos inevitavelmente na noção demódulo, palavra que possui um significado bem definido no campo da arquitectura. O módulo é a unidadede medida que organiza, estrutura, determina um conjunto.

Na sua modulação, Cézanne serve-se da pincelada isolada ou da pequena série de pinceladas damesma cor, saídas da mesma acção gestual, para inscrever a sucessão dos planos coloridos na suasituação espacial. Mas, em contrapartida, a modulação torna-se assim o módulo da área pictórica, junta àfunção da representação uma função nova: torna-se o meio de calcorrear a superfície real do quadro, oplano único da tela, realidade primeira do pintor, para ele ponto de partida e porto fatal de chegada, sobre oqual as virtualidades da terceira dimensão compõem o canto da sereia que incessantemente o logra.

A modulação, se é certo que faz girar os volumes e, pelo esplendor da cor, leva as formas à suaplenitude, vai tornar-se também a fonte produtora da malha e dos nós do quadro, tecido apertado contidopelos quatro lados do enquadramento cuja expansão detêm. O que, para o pintor do futuro, terá uminteresse muito diferente da simples função de representação.

No -ciclo das Baigneuses a presença do par fascínio-repulsa atinge o máximo. Nunca Cézanne terálevando tão longe a coexistência dos contrários, a volúpia das modulações ostentando a sua transparênciaaérea sobre a solidez de rocha do plano da tela, a seca segurança (para não dizer a crueza) que talha àenxó nas massas de carne das desnudadas imaginárias, «casando curvas de mulheres com ombros decolinas». Como o ritual beato da passagem da virgem à -mulher casada: este desnuda- mento/apuramento(no fervor, no desapego?) pelo celibatário, ele mesmo.

(2) O que não atraía a atenção, na época em que os jovens mestres descobriam Cézanne e em que a ordem cubistareinava na vanguarda. Foi preciso que Masson levantasse a iuva, e que a noção de color field fizesse fortuna na América.

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Na escala seguinte da nave baptizada pintura, iremos encontrar essas deusas em Barcelona, já nãovirgens nem casadas, mas putas num bordel da Rua de Avinhão, cujo último marinheiro Picasso acaboupor expulsar.

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O VOYEUR-VISTO

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«Era em Mégara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amílcar.» — O festim dos Bárbaros, quadro deabertura de Salammbô.

Nenhuma ligação se manifesta entre o romance de Flaubert, a sua textura contida e minuciosamenteevocadora, e a prosa impiedosa de Bacon. Mas dá-rne vontade de arriscar vaivéns entre algumas linhasdeste capítulo e a imagética deste pintor.

Não haverá afinidades entre a espécie própria de, diria eu, timidez, tão bem (ou mal] velada pelacomplacência de Bacon para com o que se considera habitualmente repulsivo, e esta outra timidez própriade Flaubert, onde a sua arte impregna a sua madura discrição. Não há dúvida de que Bacon detesta afrivolidade literária, a ilustração, o descritivo, ao passo que Flaubert, de mão na massa, não torna viciososos costumes da sua pintura. E, porém, nem por isso tal deixa de fornecer texto para que aqui se venhamaninhar histórias.

Bagatelas.Ora, com o auxílio da pausa de Verão, dei comigo a tecer tranças em que combinava pedaços do

tecido do festim com as linhas da sempre sábia encenação, que tantas vezes toma o aspecto de umaexecução, que Bacon utiliza para dar à luz as suas imagens. Proviria este gosto da minha prática dacolagem, desse gosto de tomar o acaso por cola de confiança?

No quadro actual da pintura, não conheço outro artista como Bacon que possa ser exclusivamenteconsiderado um pintor-de-figuras, sendo a figura definida aqui como representação de, alusão a, ouevocação de uma identidade susceptível de ser associada à do homem na maior parte dos casos, emantendo com a imagem humana relações cuja ambiguidade e extravagância ainda reforçam mais a suasingularidade.

Apesar de Bacon ter produzido alguns quadros em que estão ausentes o homem ou o animal —lembro-me de uma paisagem (de Marrocos?), e daqueles recentes jactos explosivos, um de areia, outro deágua—, parece-me que as formas que estas árvores e estes jactos assumiram e o modo como seencontram consignadas lhes dão ainda o aspecto de figuras, pois o pintor constrói estas matérias damesma maneira que solta as suas personagens. Bacon teria assim conseguido impor o sentido da figura acoisas que não o têm, e isto, evidentemente, sem que esta imposição seja auxiliada por uma informaçãotrivial, à maneira como, por exemplo, os caricaturistas moldam nos objectos e nos animais as aparências deuma humanidade grosseira (1).

As imagens de Bacon são exibidas, muitas vezes desnudadas, sem qualquer atavio que nos possaoferecer os sinais de uma pertença a uma determinada época, para além, evidentemente, daquelespormenores picantes a que o pintor por vezes se entrega: relógios de pulso, lâmpadas eléctricas, mobiliáriotubular, no que reconhecemos os nossos contemporâneos, chegando àquele cais que se torna o espaço doquadro como aparições súbitas, mas com tão pesados lastros que a acção iniciada encalha. E aimobilização brutal do que estava ali a aparecer -não faz mais do que aumentar o mal-estar daquele quecontempla.

Poderíamos também pensar que a acção das figuras se torna difícil de precisar, porque os seus gestosse calam quando a imagem é surpreendida. Esfumam-se, esses gestos, ainda antes de o seu sentido poderser relegado para um quotidiano sem história que teria vindo precisamente encerrar o quadro da aparição.

— E se nos puséssemos a imaginar o desenlace da acção, a concretizar este indefinido?

(1) Vou falando, faiando, e sem deixar de desconfiar das máquinas redutoras —igrejas, partidos, escolas, sistemas,

ideologias—, nelas caio também. Bacon, pintor-de-figuras, disse eu. Ora, a tonalidade de um conjunto nunca exclui

experiências «no outro sentido». Acabo de notar que a tela Van Gogh dans un paysage (1974] é efectivamente uma paisagem,

se for absolutamente necessário atribuir-lhe um género. Conto o quadro a N., que ainda não o viu e que, a partir da minha

descrição, o associa à Queda de ícaro de Brueghel. Na realidade, estes dois quadros têm em comum a oferenda, ou a

proposta, de um espaço que parece continuar para além do enquadramento, ignorando a pequenez da escala humana.

Reduzida ao mínimo, a presença da personagem que dá o título ao quadro é assinalada como queda, ou travessia, relâmpago.

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Correríamos o risco de sermos esfolados por uma dupla lâmina. Lâmina que me permitirei situar sob apálpebra do voyeur, o qual, ao descobrir-se visto, se torna o único sujeito do enquadramento de querealmente é o enquadrador involuntário. E também o único objecto a enquadrar. O que não significa, lá porisso, que o voyeur-visto fique dentro dos limites do enquadramento. Como se verá mais adiante, nada oimpede de estar noutro sítio. Por detrás da cintilação de uma vidraça. Como os artigos de comércio nasCorreríamos o risco de sermos esfolados por uma dupla lâmina. Lâmina que me permitirei situar sob apálpebra do voyeur, o qual, ao descobrir-se visto, se torna o único sujeito do enquadramento de querealmente é o enquadrador involuntário. E também o único objecto a enquadrar. O que não significa, lá porisso, que o voyeur-visto fique dentro dos limites do enquadramento. Como se verá mais adiante, nada oimpede de estar noutro sítio. Por detrás da cintilação de uma vidraça. Como os artigos de comércio nasmontras das lojas.

Tinha começado por juntar às palavras sujeito e objecto o adjectivo «verdadeiro»: seria para amortecero choque? Do duvidoso limiar onde se arrumam as crenças, sopraram-me ao ouvido que fizesse usoparcimonioso desta palavra. Mas também não foi por procurar impor a mim mesmo uma disciplina qualquerque fui levado a substituir verdadeiro por único. Mais forte que o falso pudor daquilo que só pretende exibir-se com toda a sabedoria, é uma instância cujo nome ignoro que me leva, de palavra em palavra, à procurada imagem para que a matéria apela, a matéria digna de crédito para a imagem fugidia.

A impossibilidade de estar em descanso assinala o limiar do verdadeiro, e instala a solidão. A solidão,que eu vejo como uma muralha oca.

Muralha ou praticável terroso. O praticável, o acessório de teatro. O teatro, terreno de eleição. Deerecção, de ejecção, dejecção. Terreno no qual se enxertam corações.

A mitologia sem mestre, com bafios gregos.Espetada de Erínias. Comemo-las também em sanduíches ou em pratinhos para consumir ao balcão.

Para engolir de pé, se temos pressa, ou então mal sentados naqueles malditos bancos que nunca têm aaltura ideal. Nos bares miseráveis, como os que encontramos no bairro da Huchette, que expõem para olado da rua uma massa de carne rosa-acinzentada que gira indefinidamente. Fumo e serradura. Néon juntoao tecto cor de urina. Ou uma lâmpada solitária. Mais exactamente: pendurada na ponta de um fio. Fundosonde se desenham estuques atamancados.

Mas há outro enquadramento para o festim: os Bárbaros de Flaubert «estendiam-se sobre asalmofadas, comiam acocorados em torno de grandes bandejas ou então, deitados de barriga para baixo,puxavam para si os pedaços de carne e saciavam-se apoiados nos cotovelos, na posição pacífica dosleões quando dilaceram a presa. Os últimos a chegar, de pé encostados às árvores, contemplavam asmesas baixas, meio-ocultas sob tapetes de escarlate, esperando a sua vez».

Eis-nos diante de um inventário de posições do qual poderia ter sido decalcado aquele de que Baconfaz grande uso no teatro que põe em circulação. Apesar da rejeição da narrativa — ou graças a ela—, háentre a anedota e a natureza do drama, sua seiva, a carne material do mito, não um abismo, mas o sololamacento onde só a erva do sonho cresce a curto prazo, preguiçosa pastagem. Persisto em ver nos factosque compõem anedotas e narrativas apenas o isco da tragédia, tal como se considera o objecto desejado oisco do desejo. Mas talvez se trate ainda de um vício de pintor, fazedor de objectos estáticos, director ouaproveitador de dramas que só pode dar num único acto: o quadro.

«Estendiam-se sobre as almofadas.»Flaubert escreveu inicialmente «espalhavam-se». Palavra que, no vocabulário dos pintores, significa

coisa diferente de estender. Quando digo que espalho a tinta, quero especificar que o meu trabalhoconsiste na expansão de uma matéria colorida; trata-se de um facto novo que produzo na tela e cujacaracterização morfológica não está ainda determinada. Quando estendo a tinta, retomo uma matériacolorida tornando-a mais flexível, opero uma alteração de ordem tonal. Se, pelo contrário, estendo umaforma, procedo ao alongamento do desenho (à maneira do Greco, por exemplo), e é a morfologia daimagem que altero.

Flaubert, que por certo tinha mais que fazer do que preo- cupar-se com os quebra-cabeças dospintores, terá preferido este verbo porque lhe permitia desenhar mais nitidamente a relação das suasformas? Por «desenhar» entendo aqui fazer ver, e por «ver» fazer ressaltar da memória o que alipermanecera de uma experiência anterior. Operação que se opõe ao ver do pintor: quando vê, o pintor

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recebe, descobre o que está ali, e diferenciado do que julgava estar ali. É o instante em que a revelaçãovarre a bagagem, o lastro da memória.

O pintor bate-se contra as rasteiras da memória, mas há que dizer também que nem por isso ele deixade procurar mamar nela, à traição, para lhe furtar o seu leite oculto. Cézanne propunha-se fazer Poussin donatural e, também, ver a natureza como se ninguém ainda a tivesse visto nunca.

Lógica daquele que vê: não a sintaxe das coisas que nascem e morrem, mas a sintaxe das coisas queestão ali. E, neste ali, passado e futuro não contam para nada, mesmo que haja um passado que esmaguetudo, ou quase, e devir não quer dizer nada, nada de nada, nada mais que a suspensão de um relâmpago.

Parábola sem herói nem moralidade: as imagens alimen- tam-se ostensivamente do que está nocoração da sua estranheza, isto é, da plena luz sobre o seu quotidiano, libertadas de qualquer inquietação,inclusivamente a de durar, como se para durar houvesse um esforço a fazer, esquecidas de fingir quecompreenderam (compreender é ainda aumentar o lastro, aumentar a dificuldade de deitar fora esse lastro),e esquecidas também do nada que não compreendem e que é aliás completamente indiferente, tal como adiferença entre compreender e não compreender.

Quando uma forma nos surpreende como se acabasse de surgir, não é a forma da forma que está naorigem desse brilho, é o seu movimento, e este também não saiu, salvo em parte muito pequena, domovimento que é descrito, mas do gesto que acaba de o inscrever.

O que impõe esse movimento é a sua suspensão. E a estranheza dessa suspensão vem do seufrémito. É a estranheza que faz explodir a verosimilhança, ao invés do instantâneo fotográfico, que nos dá omovimento com a ausência de graça de uma jovem que tivesse crescido depressa de mais, ou seja,imprimindo a recordação do visto no gelo de uma imagem redutora, e até mortífera, o que nada tem quever com o órgão sintetizador que o olhar é.

Muito económico no que toca aos adereços (o que quase acaba por atribuir a singularidade de umfetiche a cada utensílio isolado), Bacon recorreu algumas vezes a almofadas, esven- trando-as quando erapreciso. A essas almofadas atribuiria eu de boa vontade o papel de um dos instrumentos da paixão por elepintada, da paixão por ele exorcizada, da paixão que a pintura como paixão lhe impõe, único contrapeso docontramolde dos dias.

Outros sinais, perfeitamente ao acaso: beatas apagadas, lâmpadas desguarnecidas, jornais rasgados,uma seringa.

A almofada é um objecto mole. Evito à última hora a palavra flexível, de repente invadido pelo lastroque as personagens de Bacon são obrigadas a deslocar para efectuarem o mínimo gesto.

A massa mole das almofadas é colocada (ou espalhada) entre o corpo e a superfície que lhe serve deapoio (ou de pedestal), para impedir os choques do contacto ou o mal-estar consecutivo a uma imobilidadeprolongada.

Bacon mostra almofadas entre o corpo imobilizado (ou imobilizando-se) de uma personagem e a suacama. Ou o seu trono irrisório. Muitas vezes é numa jaula ou num expositor que as personagens —paródias contemporâneas da gravidade da estátua sentada ou jacente — permanecem, se imobilizam, seexibem inutilmente ou se protegem, se mantêm na sua estação. E todos os verbos que acabo de empregarcompõem uma dramaturgia que os ejecta e os recolhe em circuito fechado. As situações que exprimem têmcomo ponto comum a ausência de sentido. A raiva mais violenta está paredes meias com a indiferença. Ocírculo da presença fecha-se sobre si próprio.

No decurso das entrevistas que concedeu a David Sylvester, Bacon confiou-Ihe o seu desejo (seriapara dar ainda mais presença às suas figuras?) de fazer escultura, de criar estátuas.

Ao passar da figura pintada para uma figura em vulto, atravessa-se uma fronteira: passa-se damiragem à presença. A figura deixa de ser a coagulação de uma imagem à superfície de um espelho —oquadro—, para vir fixar-se nas dimensões tangíveis do espaço, em pleno palco do espectáculo real em queo próprio espectador é apanhado na representação, e ao mesmo nível desse espaço.

Ora, se a pintura de Bacon é habitada por alguma coisa, é efectivamente pelo desejo de dar bem emcarne a presença, pelo peso atribuído à imagem e pela pungência que a encerra ou a dilacera. A aversãopessoal que Bacon sempre teve pela arte abstracta virá, pelo menos em parte, da necessidade imperiosa

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que ele tem de uma presença omnipotente, necessidade que, para ele, só a imagem humana podesatisfazer?

E se possuirmos, como ele, a intuição das malfeitorias e dos poderes dessa omnipresença, chegamosàquele acto de exorcismo que a pintura de Bacon é, ao seu comércio com a imagem, assinalado por umadupla exigência: sacrificar (2) a aparência para chegar à presença, escavar no instante o nada que ocimenta. A Arte do Impossível é o título das entrevistas de Bacon com David Sylvester.

Alguns dos trípticos de Bacon são apresentados como Crucifixões ou, seguindo mais de perto a securaintencional dos títulos utilizados pelo pintor, Estudos para Crucifixões. Mas, contrariando toda a tradição daiconografia crítica, a representação do Crucificado já não é o centro, a peça de resistência que deveriaatrair a curiosidade dos basbaques ou reavivar a fé dos crentes. Se o crucificado continua a ser o foco dacena não é por estar lá em imagem.

Este pintor já não coloca o espectador diante da máquina sacrificial como se estivesse no teatro oudiante de uma janela ou de um espelho — que conservariam para com ele a distância exigida paraacomodação dos olhos. O pintor (e desde logo aquele que irá beneficiar do quadro, uma vez este exposto)parece encarar o teatro da crucifixão de um ponto de vista situado em plena cruz, no próprio sítio em que atortura teve lugar. Registando apenas o que se passa à volta, na base da crucifixão (e especifica-o bemneste título que dá às três figuras de 1944), o quadro dá-nos, em tudo e para tudo, o que teria podido veraquele que é seu tema, ou seja, a visão da cena de que é protagonista, cena em que, agora, o pintor mudaa coisa vista na pessoa daquele que vê.

Para abordar o enigma deste fragmento composto de dois enormes pés sangrentos, desmesuradosrelativamente às duas figuras que habitam aparentemente o mesmo espaço, penso no olhar que o bebépasseia sobre o «seu» corpo, antes da fase do espelho, e, também, nas imagens de corpos fragmentadosque se impõem, durante a cópula, aos que não têm frio nos olhos.

Bacon não parece ter tomado como assunto a crucifixão, mas uma crucifixão, mudança de artigo quedessacraliza o tema, banalizando-o. Mas todos os quadros a que ele chama Retratos são tambémdessacralizações, retratos banalizados. O que situa o que lhe interessa no pólo oposto do do retratistatradicional, cujo procedimento tende a sagrar a identidade, particularizando em extremo os traçosindividuais.

Bacon dessacraliza uma imagem que se pretendia perso- / nalizada —o retrato— fazendo-lhesofrer um desgaste que a remete para o anonimato quotidiano.

Deste quotidiano opera ele uma espécie de desnudamento através do apagamento, da neutralizaçãoou da disjunção dos traços, operações que estão na base dos artifícios que a disciplina muito codificadadeste pintor inclui: combinando o acaso e o acto dirigido, não se preocupando nada com a semelhança ouagredindo-a à força ao pregar-lhe partidas, estendendo-lhe armadilhas, Bacon abre literalmente os rostos asopros vitais, em todos os casos, quer venham do interior ou do exterior da figura — em que a suaidentidade soçobra.

Ora, parece-me que este procedimento não faz mais do que reproduzir, mas de forma mais acentuada,sintética e acelerada, o que toda a gente sofre com a colheita quotidiana de acontecimentos, ora retidos,ora obliterados, ao longo da vida — e que ora se enxertam na tela da nossa memória, ora a rasgam, entre avigília e o olvido.

Bacon entrega-se tão assiduamente às regras do seu jogo que é até incongruente procurar sinais desemelhança imediata entre os seus «retratos» e os seus modelos e apegarmo-nos ao desaparecimento e àtransformação desses mesmos sinais, dado que o pintor retoma à saciedade a evocação, ou a invocação,dos seus amigos mais próximos. Estes sinais mergulham no fluxo e no refluxo dos movimentos, lentos ourabugentos, que espalham ou desmembram a matéria colorida sobre a tela e que aí desempenham o papelda onda de acontecimentos diversificados produzidos pelo quotidiano e que submergem os despojos dosfactos que teriam podido particularizar os dias.

(2) Sacrificar: escarificar, arrancar as vísceras, fazer correr sangue.

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«Comiam».Não me lembro de ter visto nos quadros de Bacon uma representação do acto vulgar de comer ou de

beber —temas aos quais os pintores raramente fugiram—, sem falar das festas, porque, se há festa na suapintura, ela está apenas no próprio acto de pintar, que, para ele, não consiste em jogar cores, mas emarriscá-las, no sentido em que, no jogo, se aposta algum dinheiro ou tudo o que se tem. Logo, se há festa, éno sentido em que o potlatch não é uma festa, mas a festa.

E se eu pudesse voltar atrás sublinharia a palavra vulgar, para deitar neutralidade no meu discurso edela fazer a cor dominante. Como se fosse preciso, para imobilizar e balizar o rasto deste pintor, esvaziaras palavras da sua possibilidade de sentido.

Bacon esvazia o acto de pintar, como quem esvazia um peixe ou uma peça de caça. A sua violênciaamarra-o ao presente, a sua rejeição do narrativo, da discursividade literária, esvazia imediatamentequalquer ilusão de fazer da travessia dos espelhos (3) uma manobra de diversão.

Se é certo que às personagens não é dado o direito de comer ou beber, em contrapartida vemo-lasvomitando ou defecando, curvadas sobre lavatórios para vomitar ou na retrete. Têm de expulsar dos seuscorpos esse a mais que têm em si, simétrico, talvez, da carência que os leva a rebolarem-se na erva ounuma cama para fazer amor ou lutar.

Ao pintar estas cenas, ele não procura a provocação — evita-a, até—, antes, recusando asconveniências, as opções e as condenações morais, já não afecta os actos representados de sinaispositivos ou negativos. Em direcção à ausência de qualquer sentido, rola a esfera do ver, feudo do pintor.

Não creio que um artista se entregue ao que quer que seja por provocação pura. O temor daprovocação é uma flor que o burguês oferece a si mesmo, orquídea que se rega com o orgulho e acegueira do dono. incapaz de imaginar um mundo diferente daquele cujas cadeias arrasta, o públicoincomodado julga-se alvo do atirador que, na realidade, lhe vira as costas. Não que não possa ser objectodo desprezo desse atirador, mas simplesmente porque o alvo do tiro é outro.

Se o público se julga vítima de brincadeiras, é porque não conseguiu deixar de atribuir a si próprio oprincipal papel na comédia da arte, e assim o confessa. Além disso, o que ele gostaria de representar é omais belo de todos os papéis, o do príncipe ou do juiz perante quem os artistas se devem apresentar. Eisporque se acha ofendido e se imagina alvo das bofetadas, quando os acontecimentos têm um sentido queo exclui.

Não era Picasso que dizia que o pintor diante do seu quadro, no atelier, corria um risco muito maior doque o toureiro na arena, pelo facto de estar só, sem um touro bem vivo para dominar e com ausência totalde aplausos e até de apupos?

«Puxando para si pedaços de carne.»Pedaços de carne há muitos na obra de Bacon. Alguns ilustres antepassados: Rembrandt, Goya,

Chardin, Soutine. Mas Rembrandt, Goya, Chardin ou Soutine colocaram estas carnes nos ambientes ondehabitualmente podem ser vistas, sem que o facto de as exporem ou de se comprazerem na sua visão, semque a citação da carne sangrenta possa lesar sentimentos delicados ou chocar quem quer que seja. Emtalhos ou em lares, na mesa da cozinha, entre outras vitualhas, vermelhos ressumantes fizeram a alegriade muita natureza morta de bom tom e bem se casam muitas vezes com as comezainas e a boa mesa queforam objecto da gula da arte holandesa.

Mas, meu Deus, a quantos manjares os artistas deste tempo, incluindo Nosso Senhor Baudelaire eBacon, violaram as regras do jogo! Eis que este último coloca os pedaços de carne vermelha no primeiroplano das antecâmaras (já um pouco suspeitas) onde campeiam cadeirões papais, onde estão presospríncipes da Igreja, apanhados — não pela justiça!— mas em Velázquez, berrando ou calando-se numsilêncio que de modo nenhum é o da beatitude.

(3) Pintar, escrever: formas de atravessar esses espelhos que são, tudo visto e considerado, a tela ou a página em

branco.

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Ou então vemos uma carcaça inteira ao fundo, pendurada do altar (?), e isolada por uma corda, àmaneira como nos palácios antigos, agora inscritos nos circuitos turísticos, se indica ao visitante que só temdireito a olhar por cima da barreira simbólica que lhe proíbe sentar-se ou tocar com a mão. Ou então, ainda,nos quadros chamados Crucifixões — tem de haver crucifixões de câmara, como há música de câmara eténis de mesa—, aqueles restos de corpo (humano?), por vezes envolvidos em ligaduras, orgia cadaverosa,com o sangue a jorrar até ao tecto.

A relação das personagens pintadas com estes pedaços de carne não desperta em nós cobiça nemrepulsa. Tal como nas montras das pequenas lojas se dispõem objectos sem qualquer relação intencionalentre si.

«Acocorados».As posições de cócoras foram privilegiadas por Bacon. Muitas delas estão a meio caminho entre o

homem e o animal. O babuíno ou o chimpanzé que velam por detrás das grades da sua jaula ou nosramos de uma árvore —espécie de caixote meio rebentado entre céu e terra —, assim como muitasfiguras de homens e algumas figuras de mulheres acocoradas em lugares de que o menos que se podedizer é que são desprovidos de conforto (a concavidade de um poço, camas desfeitas, bancos quenunca têm a altura ideal), todas essas figuras parecem abatidas pelo peso de uma enorme massa —será de ar? — que lhes esmaga os ombros. A corpulência dos gorilas parece suportar bem o peso domundo (será esta a causa oculta da sua impossível palavra?)

«Em torno de grandes bandejas.»O pintor afeiçoa os espaços circulares, poço, arena, mas nunca o lago, uma vez um pântano, creio

eu. Círculos de giz a que as figuras estão destinadas, ou a que montam guarda (contra quem?). E há,evidentemente, aquelas grandes bandejas que servem de pratos nos folguedos dos casais. Para estecirco, a cama, de arena, transforma-se em tabuleiro.

A escolha dos espaços curvos vai de par com a das formas tubulares, como que para preparar bemo arranque do motor cujas explosões irão desordenar o quadro: elas é que irão agarrar o acaso, o qualdesregulará a expectativa e, talvez satisfazendo-a, irá desencadear a pungência que vai fazer explodir aimagem.

«Saciavam-se.»Como um espelho se sacia noutro espelho, como o espelho se sacia da nossa imagem, para

armadilhar insaciavelmente qualquer outra imagem.

«Apoiados nos cotovelos.»Posição que goza dos favores de um artista que observou e pintou animais e que o mais obstinado

dos críticos-professores-jurados (4) de modo nenhum se atreveria a classificar na subcategoria dospintores animalistas.

O macaco que Kafka fez protagonista do Relatório a Uma Academia, e que teve muita dificuldade emaprender os santos e senhas do civilizado -médio —fumar cachimbo, cuspir, beber whisky—, seria uminocente, um anjo ou um sábio ao lado do menos engraçado dos animais que Bacon tratou de pintar. Omacaco de Kafka conseguiu tomar hábitos humanos para tentar encontrar uma saída da sua jaula. O que oanimal domesticado por Bacon vai copiar dos humanos é o seu fundo bestial.

O animal de Bacon é o écran ou o alvo em que o voyeur projecta, amarra, instala, instila ou dá corda aesse património, em toda a sua vitalidade. Sem esperança nem vergonha, e também sem lástima. Aohumano apenas foi buscar o que, nos humanos, permaneceu bestial, e cuja projecção, em retorno, sobre oanimal original, apenas vai sublinhar a presença da sua raiva comum, mortífera, inútil, da sua impotênciaintuitiva ou racional.

(4)Pintar, escrever: formas de atravessar esses espelhos que são, tudo visto e considerado, a tela ou apágina em branco.

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«A posição pacífica dos leões quando dilaceram a presa.»Justamente pacífica, esta posição. É em plena fruição da sua paz que os carnívoros despedaçam as

presas. E é a ausência de juízo, conjugada com o temor de um juiz, que puxa os cordelinhos do jogo deanalogias e de correspondências que acarreta mal-estar para as melhores consciências.

Não me lembro de ter visto uma figura sua que seja representada no acto de se entregar altivamente aesta dilaceração, ao passo que, por outro lado, constantemente inventariamos os seus resultados. Porqueessa representação se transformaria sem dúvida em rito, em discurso, em oratória, em redundância oupleonasmo. Bacon evita o narrativo que, duplicando a imagem, lhe retiraria as vísceras e o sangue, o seupoder de agressão, a sua proeminência, a sua pungência.

A carne sangra ainda, a dilaceração acaba de acontecer. Quem pode saber se irá ou não recomeçar?Em que sentido vai evoluir a cena que se desenrola no instante do quadro, ninguém o diz. E quemdespedaçou toda aquela carne que está exposta diante do papa, ou nos fundos da loja contíguos a umsobretudo, à sombra de um grande guarda-chuva?

Nenhuma mão acusadora ou vingadora aponta a sombra dos prováveis carrascos. Se o crucificadonão foi representado, o carrasco (mas será que há só um?}, o(s) carrasco(s) ainda menos. O círculo dairrisão fecha-se, não sobre a ausência desse par vítima-carrasco, mas sobre um par falhado. A não ser quese reabra para que toda a gente possa por ali passar.

«Os últimos a chegar, de pé, encostados às árvores.»Quando a personagem está sozinha, no quarto do quadro, o que acontece com muita frequência,

poderia ter sido o último a chegar. Depois ou no fim da refeição, banquete, crucifixão, dilaceração, após osjogos, o amor e o sono —ou antes dele—, quando já não há mais nada a esperar, a não ser, talvez, aausência de sono e, de certeza, o tédio.

Van Gogh, nos retratos que Bacon lhe dedicou: de pé, rodeado de rastos de pintura, como num caixotesobre um fundo de árvores.

«Mesas baixas meio-ocultas sob tapetes de escarlate.»As mesas baixas, esses altares modernos à volta dos quais vêm aportar as solidões de toda a parte.

Hóstias cuspidas, as beatas que em multidão invadem os cinzeiros, ostensórios laicos. Tinhajme esquecidode as inventariar, essas mesas baixas, quando fiz o rol dos instrumentos, sinais ou frutos da paixãobanalizada segundo Bacon, sinais que ele nomeia.

A pintura não mostra, nomeia. Nomeia, sim, mas à sua maneira: com ausência de qualquer nome.Orgias de matérias sagram os tapetes de Bacon. Os tapetes dos funãmbulos que se exibem nas feiras

ou nas esquinas das ruas: adereços obrigatórios da mais miserável das manhas.

«E esperavam a sua vez.»As personagens de Bacon esperarão verdadeiramente a sua vez? Ou não terá já passado a sua vez?

Estarão elas sequer em estado de esperar a sua vez? Reduzida a um esquema a sua gaiola, sofrem ainsolência de alguns objectos, de um espelho qualquer que lhes devolve a imagem.

Não esperam nada. Ora, o nada não é coisa que se espere. Está ali.

Basta de palavras. Quando predomina, a matéria pictórica explode, expondo a sua brutalidade defacto. Poisando francamente sobre a tela nua, o gesto do pintor afirma-se no movimento que espalha a cor,-na pasta amassada como massa, nas formas que se percorrem segundo uma disciplina cruel cujo rigornão suporta a frivolidade.

O que aquele que olha pode achar de lodoso na realidade cor nada tem que ver com a tinta ou com oseu manejo. Recorremos assim a adjectivos quando nos escapa o substantivo. A nossa memória actua àtraição, os nossos actos falhados misturam-se com ela e, para caminharmos, socorremo-nos das nossasasas atrofiadas.

Cores e matérias e formas mostram-se como tais, e esta realidade é primordial. Assim, o desafio deBacon será pintar, fazer pintura, fazer ver a pintura, sem se sentir obrigado a correr um véu sobre toda a

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mixórdia do género humano. No desapego. Se possível.Recolhi do texto de Flaubert apenas uma pintura rigorosa — o inventário das posições de personagens

não nomeadas (ou chamadas bárbaros, o que talvez seja a mesma coisa) —, antes de a acção sedesencadear. E deixei-me arrastar, vazando sobre a prosa de Bacon uma onda de associações literárias. Oseu autor nada tem que ver com isto, salvo na medida em que quem soube criar ricas imagens nuncapoderá proibir que alguém mergulhe nelas, gozando desse máximo de ambiguidade que é próprio dapintura e de que o mais fiel dos espelhos nunca conseguirá aproximar-se.

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MIL DESCULPAS

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No momento de pôr ponto final em todo este palavreado, comecei de súbito a pensar que tinha falhadono meu projecto. Não só não vejo mais claro, como creio até não ter definido suficientemente as poucassuposições que tinha elaborado ao sabor das trocas entre o que o olhar recebe, o que a mão afeiçoa e oque a palavra recorta —no terreno vazio que reina entre a proeminência das imagens e a cintilação daspalavras; entre as imagens que se oferecem ao olhar (1) e essas outras imagens cuja gratuitidade se apoiasob a cor das palavras para adiar o olvido.

E, no entanto, não duvido de que o formigueiro das palavras conseguiu predominar, puxando acorrente das águas turvas que os literatos recolhem para a sua sopa e cuja química muda com cadamudança de costumes, graças aos condimentos que o gosto da moda exige: esse gosto que as pessoassagazes acham novo, e portanto o único digno de atenção e de fé.

Deveria ter deixado para outros estes tiros cruzados, pôr de lado a minha metafísica de empréstimo, aminha poesia endomingada, e limitar o discurso à descrição da experiência diária do pintor, a minha. Aomeu labor de artesão (2). Deveria ter falado do que me acontece fazer com as mãos, dessa prática, e ficar-me na prosa da minha fábrica.

Deveria ter feito algo de sólido. E, seguindo por esse caminho, então, deveria talvez ter-vos contado

as vagabundagens da tinta muito diluída em água ou essência, cujo rápido desvanecimento o pintorpode acompanhar (desvanecimento que ensurdece os timbres e prejudica até a continuidade do traço),quando a tinta fluida, logo que largada, se deixa literalmente beber pelo suporte absorvente: tela crua,painéis não encolados, sedosos papéis do Japão com o mesmo dom de sucção dos nossos mata-borrõesescolares,

os mates aprendidos com Toulouse-Lautrec ou com Vuillard, a secura dos fundos de Bacon,

a lavra na espessura da matéria gorda mas consistente, as espessas pastas de uma certa pintura aóleo, tão apreciadas enquanto sinais pródigos de boa mesa copiosa, sadia e sabiamente ordinária, cujauntuosidade recebe a mínima marca, apropria o mínimo relevo e toda a minúcia das estrias devidas aopincel duro: cozinha dos grandes apreciadores flamengos, de Rubens a Brouwer e a Hals, até à sua morteno asilo,

ou, contrapeso excrementício, os grumos que em cada golpe extravasam o sulco da espátula (ou dopincel muito carregado), quando o pintor utiliza a sua ferramenta como o pedreiro a trolha, ourivesaria deRembrandt, práticas aratórias de Van Gogh,

e a carícia dos fundidos, matizados que se obtêm com essa mesma espátula, fina lâmina de aço flexívelcujo reverso, com a ajuda da sensualidade do pintor, pode produzir o cetim mais fino ou o veludo mais doce(perguntem a Courbetl),

ou como Bacon, ainda ele, arremessa punhados de tinta para desfazer as aparências e, aproveitando ovelado resultante dessa mesma agressão, põe a nu a pungência de qualquer imagem que o vazio dá à luzou que se agarra a ele,

e as mil e uma formas de utilizar o pincel, que aqui pica e ali aplica, palavras de quem surpreendeuPissarro e Cézanne diante do motivo,

a duração da pincelada e a maneira de a poisar, rigorosa, contida, rígida em Cézanne, volúvel em Veláz-quez, esmagada, virulenta (vingativa?), mas também voluptuosa e aérea em Goya; a timidez humilde,altamente sábia, de Bonnard, a negligência da sabedoria adquirida por Matisse; a busca que o pintorconduz, de olhos bem abertos, como o atento Picasso, rei dos perscrutadores,

(1) As imagens que, preso à obrigação de exercer um ofício, imponho a outros voyeurs

(2) «Tenho horror a todos os ofícios. (…) A mão na pena equivale à mão no arado» (A: Rimbaud)

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ou como a pintura prende, entre o jacto do líquido rapidamente absorvido pelo suporte e o salpico dastintas jorrando incontidas sobre o já-pintado, sobre uma primeira camada dúctil (como se dominássemosum pântano, aproveitando-nos do prazer de nele nos deixarmos afundar); pintura que se torna uma alegriados comércios instantâneos entre a tinta e a matéria que acabamos de adicionar e as que já lá estavamexplorando a sua generosidade; aquela partilha de poderes entre o que se recebe e o que se dá, lúcidaembriaguez, atenta como é ao mínimo reflexo, ao mínimo relâmpago, à queda de uma sombra, à vinda àsuperfície do que estava por baixo,as feitiçarias de Velázquez, mas também as de Rembrandt e as dePicasso,a pincelada que ora desliza ora se crispa: do esfre- gaço magro e rápido sobre a tela branca àorografia da pasta opulenta já endurecida, cujas asperezas e cristas redobram de volume e peso quandonelas se mistura uma nova camada que vem acentuar tudo o que encontra pelo caminho, os fumos, asnévoas ou a sua contrapartida, as arestas, as placas, o gosto ácido da flecha através das névoas,cenografias de Turner,

a seda e a areia, a rocha e a lama,

o ponteado da trama da tela a emergir de uma delgada película transparente, com os acidentes detextura diversificando a saturação cromática em minúsculas enseadas ou poços do tamanho do buraco deuma agulha onde os timbres cintilam,

a alegria de descobrir o utensílio fazendo corpo com ele,

a fidelidade dos pincéis de pêlo de marta (reconhecermo-nos no que a sua flexibilidade devolve,acolhermos bem a sua silenciosa agilidade),

ou então a surpresa provocada pela versatilidade das cerdas de porco: fazer causa comum com o seuexcesso. Esses pincéis, tão resistentes como exuberantes, é preciso ter podido ouvi-íos. Digo bem: ouvir.Ouvi uma vez, do quarto contíguo, um pacífico pintor que atacava uma tela de tamanho médio, e a porta doatelier não conseguia filtrar todo o chinfrim desta manobra,

os empastamentos rudes ou aveludados, esfregaços, velaturas, escorridos,

os abismos de que conseguimos suspeitar em plena amassadura, salmo que celebra alternadamente oelogio e a censura da lentidão e do pegajoso — trabalho que leva a mão a sentir-se recebida pelo maisíntimo da matéria,

aquele jogo mínimo do dentro e do fora que a acção modelante da mão conduz em superfície, verdade ebatota juntas ao acaso, em que o real puxa pelo virtual como a cadela com cio levanta todos os cães dasredondezas, a coisa e o fantasma, este acasalamento real que se está nas tintas tanto para os mandarinscomo para a gama completa dos contraceptivos que é a tagarelice dos pintores ajuramentados, eu incluído,

o polegar e o indicador que tiram daqui para pôr acolá, a palma da mão que alisa ou apaga se apoisarmos inteira, mas sobretudo puxando-a travessa, num movimento rápido,

a presença do corpo, a marca da mão: o trabalho dos dedos (que nada tem a ver com os dedos jeitosos,podem crer), mas também a motricidade corporal do gesto: movimento do dedo, do punho, do cotovelo, doombro, o golpe de rins, o corpo todo do pintor na refrega,

a obstinação de Pollock, mas também, muito antes dele, os gozos do velho Monet cobrindo com umaescrita que se inventava e renovava sem sombra de fraqueza as imensas telas onde muitoscontemporâneos viram apenas as garatujas infantis de um velho,

a anatomia direccional do traço: sulco das órbitas que extravasem o enquadramento estrito do quadro,produzindo-se no espaço real que rodeia o pintor e que só a presença do suporte bloqueia, por um lado:lado, ou fenda, onde tem lugar o mais duro choque entre as forças que percorrem ou habitam o pintor,

que o pintor armadilhou ou soltou,

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e a resistência oposta pelo suporte da pintura, vertical ou poisado horizontalmente,

nesse paradigma do mundo que é sempre o quadro,

o quadro, sempre por definir como o plano de intersecção do cone móvel que tem o vértice, a origem, noolhar (e no contra-olhar que vem da memória do pintor),

e cuja base imaginária assenta (assentará?) no infinito do nada onde mergulham sem mercê nuvens,razões, poderes,

o acto de espalhar um nada de tinta, obrigando o pincel a cuspir todos os resíduos de matérias queficaram agarrados ao longo e na base das cerdas, aumentando a pressão sobre a tela à medida que o rastode tinta se adelgaça,

aquele massacre da ferramenta e da tela, desgaste raivoso, economia de desperdício,

ou, inversamente, o acto — aberto — de deixar escorrer, pródiga, a tinta, muito diluída, fazendo-a correrjustamente à frente do local onde a ponta do pincel toca a tela (ou ao longo dos pêlos, se o usarmosatravessado),

aquelas trocas rápidas entre a força ou gravidade que guia o peso ínfimo da tinta líquida e o sentido dacirculação do traço,

jogo cruzado entre o querer do pintor e as servidões da matéria,

o facto de expandir a tinta sobre a tela bem esticada, sustentada verticalmente pelo cavalete, e a tela quedesde logo se transforma em simulacro de parede,

ou o facto de gastar essa tinta, como se se tratasse de uma operação de tinturaria, em cheio nos fios dotecido, peça de linho ou de algodão que acabamos de desdobrar depondo-a no chão, levementeamarrotada ainda, pacificamente amarrotável, com a liberdade devida aos lençóis, véus ou sudários — eatinge-se o máximo de flexibilidade se dispensarmos o preparo—, quando o quadro em germe não é vítimada crucifixão pelo caixilho,

e o acto de desfazer:

sem pena nem escrúpulo (o que sempre espanta as pessoas que não são do ofício, mas também quantaspessoas que se dizem do ofício!), até se perfilar correcta, uma nova definição,

ou até ao desgaste, «arriscando numa tarde o que custou semanas de trabalho», dizia Matisse: o seupaninho nivelador, e o Mestre recomeçava pacientemente a construir, já não a partir do zero —da brancurado papel ou da tela—, mas sobre confissões de impotência, cicatrizes, ranúncias,

ou, a contrapelo, o uso de um esfregão por Bacon, ponto final de tantos dos seus retratos, como o murroque acaba com o adversário ou a carícia inábil que tira vingança de uma separação forçada,

a minha lâmina de barbear raspando as camadas oleosas,

as passagens de abrasivo ou lixa, que adelgaçam a espessura e conferem às sucessivas camadas a suatransparência,

e que acabam por cobrir a superfície com o brilho do esmalte,

a borracha de Giacometti (que por vezes chegava a rasgar o papel), para talhar saídas de luz no labirintodas triangulações insistentes, golfadas de ar que inacabavam definitivamente aqueles interiores, aquelasfrutas, aqueles rostos incessantemente desenhados a lápis em todos os papéis possíveis, e mesmo nasparedes,

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a plombagina, o carvão, o lápis gordo,

a pena de pato e o pincel japonês, maestros do negro que desencadeiam mil e uma luzes,

a brancura do papel, de que devemos fruir como a carne desfruta o sol,

por um acaso de dados ou por um caminho raciocinado, a sementeira à toa de pontos, de linhas, demanchas,

estabelecer, descobrir ou deixar vir afinidades, antagonismos, conflitos, tensões,

compensações, oposições, correspondências,

tentando organizá-las em sistemas coerentes (que quererá isto dizer?),

escolhendo, animando alguns desses frutos esperados ou intrusos, respigando numa colheita onde,ceifeiros ceifados, há que confessar que não desempenhamos o melhor papel,

o brilho dos vernizes de Van Eyck, a mais cristalina das transparências que faz brotar a luz doce sob acor resplandecente, e cujo segredo se diz perdido,

o mate das tintas de cal, cujo envelhecimento aumenta a beleza dos antigos frescos,

como se fosse preciso mais um mistério ao real laborado por Masaccio ou Piero Della Francesca,austeros fazedores de milagres.

Não me apetece continuar: este carreiro corria o risco de nunca chegar a um fim, visto que as imagensque o compõem se renovam com uma prática dia a dia retomada e questionada. E com a matéria dapalavra a seduzir o acto de escrever, assim como a memória que lhe serve de suporte, suspeito de que omeu dicurso ameaça deslizar para esse olvido que nos de má vista deve fazer as vezes da preguiça doolhar.

Talvez fosse preciso, para boa saúde do pintor que por instantes se atreve a trocar o seu ver peloouvir-dizer da palavra, encontrar maneira de lhe dar de presente o compêndio de higiene para o uso daspalavras. Assim como, amavelmente, se recomenda às crianças que não vão atrás dos ciganos.

Paris, 1981-1983

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ÍNDICE

Os meus tigres .................….................. 3

Pisar o mesmo caminho......................... 11

Teatros .............................…................. 18

A imagem e o quadro …........................ 26

Do campo do visto............….................. 38

O celibatário, ele mesmo …................... 50

O voyeur-visto ..................…................. 56

Mil desculpas....................…................. 65

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ARTE E ARTISTAS

O ESPELHO IMAGINÁRIO pintura anti-pintura não-pintura

Eduardo Lourenço

CEM EXPOSIÇÕES

José-Augusto França

MÁRIO ELOY pinturas e desenhos

Jorge Segurado

JOÃO CUTILEIROSilvia Chicó

LONGOS DIAS TÊM CEM ANOS PRESENÇA DE VIEIRA DA SILVA

Agustina Bessa-Luís

A ARTE EM FLORENÇA NO SÉC. XV E A CAPELA DO CARDEAL DE PORTUGAL

Manuel Cardoso Mendes Atanázio

MATERNIDADE 26 desenhos de Almada Negreiros

Ernesto de Sousa

MENEZ

Salette Tavares

PENSAR A DANÇA

José Sasportes

O MANEIRISMO E O ESTATUTO SOCIAL DOS PINTORES PORTUGUESES

Vítor Serrão

LE SENS DE LART Nadir Afonso

RE COMEÇAR Almada em Madrid

Ernesto de Sousa

PEDRO CHORÃORocha de Sousa

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JOSÉ DE GUIMARÃES

Fernando Pernes

A FENOMENOLOGIA DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA EM MÁRIO BOTAS

António Vieira

DOURDIL

Rocha de Sousa

JÚLIO —SAUL DIAS o universo da invenção

Maria João Fernandes

DA PINTURA ANTIGA

Francisco de Holanda Introdução e notas de Angel Gonzalez Garcia

QUINHENTOS FOLHETINS / IJosé-Augusto França

JORGE MARTINSMaria Filomena Molder

ANTÓNIO DACOSTA

Rui Mário Gonçalves

OBRA GRAVADA DE JOÃO HOGAN

M. Martins da Silva

CARLOS RELVAS FOTÓGRAFO

Contribuição para a História da Fotografia em Portugal no século XIX

António Pedro Vicente

ESTUDOS SOBRE ARTES PLÁSTICAS

Os anos 40 em Portugal e outros estudos

Fernando Guedes

UMA CASA COM JANELAS PARA DENTRO (memórias)

Costa Ferreira

Prefácio de Luiz Francisco Rebello

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JUSTINO ALVES o pintor e a sua filosofia Y. K. Centeno

ÂNGELO DE SOUSA

Bernardo Frey Pinto de Almeida

GRAÇA MORAIS linhas da terra

António Mega Ferreira

DAVID DE ALMEIDA fecitLuiz Fagundes Duarte

DA CEGUEIRA DOS PINTORES Júlio Pomar