paulo roberto rodrigues teixeira - funceb · ele também foi usado como depósito de pólvora,...
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o iniciar o procedimento para o pouso no aero-
porto internacional, na cidade de Salvador, vis-
lumbra-se um cenário que nos impressiona pela
sua beleza – a Baía de Todos os Santos. Nela está
localizada a maior concentração de fortes construídos
pelos portugueses no período colonial. Destes, um se
destaca, no meio da baía, o único de forma cilíndrica no
ABrasil, o Forte de São Marcelo, popularmente conheci-
do como Forte do Mar e que já foi também designado
Forte de Nossa Senhora do Pópulo.
Podemos chegar ao local somente de barco. Um
passeio maravilhoso, cuja travessia demanda cinco mi-
nutos e nos proporciona, de lá, a observação da ci-
dade, do mar e da Ilha de Itaparica. Recentemente
“... As iluminações das casas que eu vejo daqui estão bonitas, e principalmente a do Forte do Mar
que de dia parece um empadão. Está aí o depósito de pólvora, ameaçando a cidade, ...”
D. Pedro II – 6 de outubro de 1859
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Paulo Roberto Rodrigues Teixeira
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restaurado, após 40 anos, voltou a ser aberto à visita-
ção pública no dia 29 de março de 2006, tornando-se
um dos principais pontos turísticos da capital baiana.
No passado, sua missão era a de proteger o cen-
tro da cidade colonial dos ataques de navios estrangei-
ros. Hoje, com riquíssimo acervo, transformou-se no
Centro Cultural Forte de São Marcelo, com a missão de
difundir sua história.
História
Sua concepção ocorreu em 1608 com risco do en-
genheiro-mor e dirigente das obras de fortificação do
Brasil, Francisco de Frias Mesquita. Alguns autores, en-
tretanto, atribuem o seu risco inicial ao engenheiro-mor
de Portugal, Leonardo Torriani, em 1605. Foi inspirado
no Forte São Lourenço do Bugio, também de forma
cilíndrica, localizado no meio das águas da foz do Rio
Tejo, em Portugal, na altura da Vila de Oeiras.
O início da construção foi posterior a 1612, pela
análise de pesquisadores nas iconografias da época,
que surge já incorporada definitivamente no desenho
da “Planta da Cidade do Salvador, na Baía de Todos os
Santos”, em 1616.
Durante o Governo-Geral de D. Diogo de Mendon-
ça Furtado, em 1623, foi concluída a primeira constru-
ção, toda em madeira. Possuía, então, 19 peças de artilha-
ria de variados calibres. Anos mais tarde, em 1650, foi
autorizada uma nova edificação, agora mais resistente.
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Tinha a forma de torreão circular na parte mais elevada
do banco de areia. Para ficar mais protegido, foi cons-
truída, em 1728, uma muralha arredondada, que ofere-
ceu maior proteção.
Na verdade, ele foi erguido para resguardar a cida-
de, que era apenas um trecho da chamada Cidade Alta e
uma parte da Cidade Baixa.
Por ocasião da invasão holandesa, em 1624, o forte
foi o primeiro objetivo conquistado. Dele, os invasores
dispararam granadas incendiárias, causando pânico aos
moradores da cidade, contribuindo para o bem-sucedi-
do ataque. Após um ano, os holandeses foram expulsos.
Em 1638, durante nova tentativa de invasão, co-
mandada pelo Conde Maurício de Nassau, os fogos de
São Marcelo mantiveram a esquadra holandesa a dis-
tância, fora do alcance dos canhões, impedindo, com
isso, o desembarque das tropas.
A reconstrução do forte ocorreu na época em que
Portugal buscava a restauração de sua independência e ten-
tava expulsar os holandeses da região Nordeste do Brasil,
determinada pela Carta-Régia de 4 de outubro de 1650.
A primeira fase das obras foi o enrocamento1 em
torno do recife, localizado naquele ponto, realizado com
pedras de arenito, extraídas de pedreiras situadas nas
proximidades da cidade. Esse material foi transportado
em barcaças. Concluído em 1652, o interior do enroca-
mento passou a ser preenchido com pedras calcárias,
oriundas dos lastros dos navios do Reino, os quais, depois,
1 Aterro feito com pedras.
1650-1655 1675 1685 1710
O forte antes darestauração.
Fases sucessivas da construção do Forte de São Marcelo.
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eram carregados com açúcar e madeira
de lei e seguiam destino para Portugal.
Em 1656, iniciava-se a construção
da muralha do torreão em pedra de gra-
nito, proveniente do Recôncavo Baiano.
Em 1661, o torreão central ainda se en-
contrava incompleto, sendo concluído
no ano seguinte, erguendo-se 15m acima
do nível do mar.
Entretanto, as fragilidades da defesa
na Colônia eram enormes. As críticas so-
bre o projeto executado proferidas pelas
autoridades militares tinham o objetivo de
apresentar soluções para o aperfeiçoamen-
to da defesa da cidade. Mais tarde, surgi-
ram novas propostas com algumas modifi-
cações, visando aumentar o poder de fogo.
Atendendo às sugestões, o Vice-Rei, D.
Pedro Antônio de Noronha Albuquerque
e Souza, determinou a realização dos tra-
balhos de ampliação do terrapleno en-
volvente, aumentando cerca de meio me-
tro de altura e para 241m de circunferên-
cia, os quais foram concluídos, em 1728,
com as novas canhoneiras do torreão (ba-
teria alta) e da plataforma do terrapleno
(bateria baixa). Em 1759, o forte encontra-
va-se representado em iconografia, com 54
peças de ferro e bronze de diversos calibres.
Em 1808, com a mudança da Famí-
lia Real portuguesa para o Brasil, as defe-
sas costeiras da Colônia foram inspecio-
nadas e reforçadas. Quando o príncipe re-
1713 1728 1810 1812
Fosso entre as duasbaterias.
Dependências sanitáriasem ruína.
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gente passou por Salvador, o Forte contava
com 40 canhões coloniais.
Em 1810, um relatório de inspeção, pre-
parado por uma comissão, que era chefiada
pelo Brigadeiro Galeão, apontava a necessi-
dade de erguer um anel perimetral no
terrapleno envolvente, com altura igual à do
torreão central. Na ocasião, a bateria alta
encontrava-se artilhada com 16 peças de fer-
ro e 4 de bronze de diversos calibres, ao passo
que, na bateria baixa, computavam-se 29
peças de ferro montadas em seus reparos e 1
de bronze, além de 2 morteiros. Em função
disso, desenvolveram-se as obras de restau-
ração no forte, entre 1810 e 1812, chegando,
ao fim, à atual configuração do São Marce-
lo. A defesa ficou então restrita a 40 canhões.
No século XIX, o forte esteve envolvi-
do, em Salvador, em muitos conflitos polí-
ticos, entre os quais destacamos:
• na Guerra dos Farrapos, que durou
dez anos, recolheu preso o líder farroupilha
Bento Gonçalves, que conseguiu escapar de-
pois de uma tentativa de envenenamento;
• na revolta da Sabinada, entre 1837 e
1838, constituiu-se no último reduto dos
revoltosos. Ali ficaram aprisionados o seu
líder, o médico Francisco Sabino Álvares da
Rocha Vieira, além de outros 280 revoltosos.
A partir de 1855, o forte foi entregue
ao Ministério da Marinha. Instalou-se um
farol de sinalização, destinado a auxiliar a
movimentação de embarcações no Porto de
Salvador, que operou durante muitos anos.
Ele também foi usado como depósito
de pólvora, motivando a crítica de D. Pedro
II, por ocasião de uma visita a Salvador, em
1859. Assim disse: ...“Está aí o depósito de
pólvora, ameaçando a cidade”... Essa função
se manteve até 1861. Em 1863, passou a ser
Mobilia de pedrae conchas
Canhões coloniais que guarneciama bateria alta.
Canhões coloniais que guarneciama bateria alta.
Mobilia de pedrae conchas
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utilizado como quartel da Companhia de
Aprendizes de Marinheiro, sendo artilha-
do, em 1865, com 30 peças de ferro e bronze.
Em 1880, o Ministério da Guerra assu-
miu o comando das instalações, restauran-
do-as e realizando obras para receber um
destacamento de Artilharia.
Após a proclamação da República, em
1889, o escudo das Armas do Império, so-
bre o portão de entrada, foi mutilado. A
coroa monárquica foi substituída por uma
estrela de cinco pontas. Até 1900, serviu no-
vamente como prisão.
No governo do Marechal Hermes da
Fonseca, o forte bombardeou a cidade. Na
ocasião, foram alvejados o Palácio do Go-
verno, a Prefeitura Municipal, o Teatro de
São João e a Biblioteca Pública de Salvador.
No período de 1912 a 1915, foi artilha-
do com canhões Krupp 75mm e canhões
Withworth e guarnecido por um destaca-
mento do 4o Batalhão de Posição. A Mari-
nha do Brasil reassumiu o comando e alo-
jou uma Companhia de Fuzileiros Navais.
A condições precárias da pontede acesso para o forte.
Farolete instaladopor ordemdo Ministério da Marinha,em 1855.
A condições precárias da pontede acesso para o forte.
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Funcionou lá, nessa época, um pequeno
farol e um posto semáforo.
Em 23 de maio de 1938, foi tombado
pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional, que realizou a recupera-
ção do cais de atracação quatro anos depois.
A reabertura ao público de suas de-
pendências ocorreu em 29 de março de
2006, após uma restauração.
O Forte
Localizado na Baía de Todos os San-
tos, possui uma área construída de 2.600m2.
Seu projeto original, no estilo renascen-
tista, visava melhor resistir às correntes e
marés, permitindo a realização do tiro em
qualquer direção, na defesa da cidade e do
Porto de Salvador. Sua estrutura, na atua-
lidade, é composta de cantaria de arenito
até a linha d’água e o restante em alvena-
ria de pedra irregular. Possui um torreão
central, de forma circular, com dimensões
de 15m de altura por 36m de diâmetro e
cerca de 145m de circunferência. O pátio
tem 10m de largura, separando a torre de
um anel perimetral de planta aproximada-
mente circular, achatada na direção leste,
voltada para a cidade, com aproximada-
mente 15m de largura e 241m de circunfe-
A guarita que, na fase final da construção,tornou-se inoperante.
Ponte de acesso atual
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rência. O piso do anel perimetral tem altura de 15m acima do terra-
pleno, exceto na direção leste, voltada para a cidade, que é de 12m.
Até 1810, o forte era formado por um torreão central guar-
necido por troneiras que o circundavam. Entretanto, essa compo-
sição arquitetônica tornava-o vulnerável às embarcações inimi-
gas. Entre 1810 e 1812, ocorreram obras para sua restauração que,
ao serem concluídas, chegaram à atual configuração. Sob o torreão
localizam-se a cisterna, o calabouço, a capela, o armazém de pól-
vora e os quartéis que, a partir da construção da nova praça alta
de tiro sob o terrapleno perimetral, transformaram-se em celas.
Sobre a nova edificação, estão instalados o corpo da guarda, a
cozinha e os quartéis da guarda do comandante. Essas salas, retan-
gulares, possuem cobertura em abóbada de berço.
Atualmente, muitos espaços foram transformados em ex-
posições temporárias que relatam a história do forte. Ali, podemos
Atrativos turísticos de Salvador:Elevador Lacerda; Mercado Modelo e ao
fundo, o Forte de São Marcelo.
O emblema do Brasil-Império.Após a Proclamação da República,
em 1889, foi mutilado.A coroa Monárquica foi substituída
por uma estrela de cinco pontas.
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verificar as rotas de navegação usadas pelos portugue-
ses, a rotina dos soldados e, ainda, narrativas, maquetes
e acontecimentos sobre a cidade. Há um simulador
de um canhão colonial e também de uma nau usada
pelos navegadores, bem como uma cela onde os prisio-
neiros, entre os quais personagens famosos, como o
revolucionário Bento Gonçalves, cumpriam as penas.
Curiosidade – divergências sobreo Forte do Mar
A história registra a existência de dois fortes do mar.
O primeiro foi construído no século XVII. Era um redu-
to quadrangular, edificado sobre um afloramento ro-
choso, conhecido como “lagem”; o outro, sobre uma
coroa de areia, correspondendo ao atual Forte de São
Marcelo, segundo o Professor Mário Mendonça de Oli-
veira. Apesar de tantas evidências, alguns autores di-
vergem em opiniões, com respeito a qual deles é o For-
te de São Marcelo.
O historiador Luiz Monteiro apresenta argumen-
tos, nos quais mostra que o Forte da Lagem era próxi-
mo à praia. Aldemburgo, entretanto, na descrição da
guerra entre holandeses e portugueses, ocorrida no lo-
cal, em 1624, relatou que, quando os batavos tomaram
Visão panorâmica atual
A prisão do Forte de São Marceloera conhecida como a maissegura de Salvador.
Exposição temporária nointerior do forte.
As portas,em cujo interior,os espaçossão utilizados paraadministraçãodo fortee exposiçõestemporárias.
As portas,em cujo interior,os espaçossão utilizados paraadministraçãodo fortee exposiçõestemporárias.
A prisão do Forte de São Marceloera conhecida como a maissegura de Salvador.
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o Forte do Mar, ainda inacabado e protegi-
do por cestões, encravaram os canhões da
bateria e abandonaram a posição, em fun-
ção dos fogos de terra. Há de se levar em
consideração que o alcance útil máximo de
um mosquete, na época, era de 297m. No
entanto, o Forte de São Marcelo dista 600m
da parte baixa do Elevador Lacerda, estan-
do, dessa forma, descartada a hipótese de ele
ser o sucedâneo do Forte da Lagem.
As iconografias, por sua vez, apresen-
tam imagens que identificam na Baía de To-
dos os Santos os diversos fortes construídos
em épocas diferentes. A mais antiga delas
impressa no Livro que dá Razão ao Estado do
Brasil apresenta o primeiro Forte do Mar,
na sua versão de reduto quadrado, com a
ligação do forte a terra, cuja dimensão não
configura a situação atual do São Marcelo.
Ainda assim, o Professor Carlos Ott, que não
compartilhava da tese do Professor Mon-
teiro, afirma que os mapas da época não
possuíam credibilidade.
Franscisco Barreto, antigo governa-
dor-geral, entre 1657 e 1663, emitiu pare-
cer, datado de 1668, sobre a situação defen-
siva da Bahia e de seu recôncavo. Diz ele: “O
Forte São Marcelo fiz eu no meio da baía...”
O Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), em recente res-
tauração do forte, realizou sondagens no local e concluiu que se trata
de uma coroa de areia, descartando, dessa maneira, a possibilidade de
ter sido o Forte da Lagem.
Face às pesquisas realizadas pelos historiadores, somos, também,
da mesma opinião do Professor Mário Mendonça de Oliveira: o Forte
de São Marcelo é o Forte do Mar, construído sobre uma coroa de areia.
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Vista do interior
Rampa de acessoao terrapleno
A entrada do forte
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Encerramento
Encerramos nossa reportagem despedindo-nos
do Forte de São Marcelo.
Na Baía de Todos os Santos, até hoje, ele se des-
taca pela beleza de sua arquitetura renascentis-
ta, contrastando com os prédios luxuosos que
permeiam a orla marítima de Salvador. Sua im-
portância sempre esteve em evidência na His-
tória do Brasil, quer no período colonial, quer
no republicano.
Na época do Brasil Colonial, era o baluarte que
rechaçava as investidas dos invasores, defenden-
do a cidade e o porto, alvos da cobiça estrangei-
ra. Nessa época, era considerada a maior fortifi-
cação baiana. Na República, fruto da conjuntu-
ra política instável, muitas vezes serviu de prisão
para acolher prisioneiros revoltosos, entre os
quais destacamos o médico Francisco Sabino e
Bento Gonçalves, principais líderes da Sabina-
da e da Revolução Farroupilha, respectivamente.
No decorrer dos anos, o cenário mudou. Toda-
via, sua importância permanece até os dias atuais,
agora se projetando na área cultural.
Hoje, aberto à visitação pública, funciona como
Centro Cultural Forte de São Marcelo, depositá-
rio de um riquíssimo patrimônio, que represen-
ta os acontecimentos ocorridos desde sua origem.
Com recursos provenientes de parceria da Pre-
feitura Municipal com a empresa de equipamen-
tos eletrônicos LG, com a loja de eletrodomés-
ticos Insinuante e ainda com o apoio do Gover-
no do Estado, o forte foi restaurado e tornou-se
um dos pontos turísticos mais procurados da
cidade. Um excelente restaurante complementa
o espaço cultural, onde o visitante, após tomar
conhecimento de valioso acervo, memória viva
de nossa história, terá oportunidade de des-
frutar das delícias da saborosa cozinha baiana.
Paulo Roberto Rodrigues Teixeira – Coronel de Infantaria e Estado-Maior,
é natural do Rio de Janeiro. Tem o curso de Estado-Maior e da Escola Superior de
Guerra. Atualmente é assessor da FunCEB e redator-chefe da revista DaCultura.
A Cidade de Salvador debruçada sobreo Forte de São Marcelo.
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