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  • 8/16/2019 Parte Do Seminário

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     Interpretando o direito como um paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica

     Juliana Neuenschwander Magalhães* 

    I

    O tema dos paradoxos há muito vem desafiando a ciência1.

    As mais grandiosas construções da tradição do pensamento

     jurídico surgiram, exatamente, como respostas teóricas ao en-

    contro desta com os paradoxos do direito. Respostas que evi-

    tam um confronto do direito com seus próprios paradoxos e

     por isso, desempenham um importante papel criativo no siste-

    ma: tomam possíveis decisões em contextos em que as condi-

    ções parecem ser mais favoráveis a uma nãodecisão.

    A noção de soberania, com a qual se pretendeu explicar a

    gênese do direito e do Estado desde o século XVI, é um bom

    exemplo de estratégia para a ocultação de paradoxos. Com a in-

    trodução do conceito de soberania pretendeuse oferecer um

    fundamento político ao direito. O direito fundase numa vonta-

    de soberana que, por sua vez, não se pode deixar limitar juridi-camente: o rei não pode estar sujeito às leis que ele mesmo fez,o que seria uma contradição lógica “nulla obligatio consiste re potest, quae a voluntate promittentis statum c a p i t “assimcomo o papa não ata jamais suas próprias mãos, como dizem

    * Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas

    Gerais.

    1. GENOVESE,  Figure deiparado.s.so.

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    os canonistas, tampouco pode um príncipe soberano atar as suas,

    ainda que o quisesse”2. Em suma: Bodin constrói a noção de

    soberania como absoluta, não porque este seja um poder ilimi-

    tado (os vínculos externos, como o Direito Natural ou a colère  publique, permanecem), mas sim porque é logicamente impos-sível um soberano vincularse a si mesmo. Para evitar o para-

    doxo, surge o conceito de uma soberania que se pretende abso-

    luta. Mais tarde, quando se torna necessário um vínculo especi-

    ficamente jurídico ao poder político uma vez que aquele po-

    der ilimitado revelarase tanto mais forte quanto mais limitado

    fosse , o paradoxo é reformulado na forma de uma soberania

    constitucionalmente fundada  pouvoir constitaant   ou seja,no direito ilimitado que tem o direito de se autolimitar.

    O direito fundase num paradoxo: o paradoxo da unidade

    da diferença entre direito e nãodireito. Essa diferença entre

    aquilo que, na sociedade, não é direito e aquilo que, na socie-

    dade, é direito na história das teorias jurídicas manifestou

    se/ocultouse de diversas formas, ou seja, através da introdu-

    ção de assimetrias tais como Direito Natural/Direito Positivo,

    ser/deverser, princípios/regras, etc. Referências externas ao di-

    reito, clássicas na teoria jurídica, tais como a Natureza, Reli-

    gião (Deus), Moral (Razão), Política (Soberania), etc., funcio-

    nam como um a espécie de interrupção da circularidade na qual

    se funda o direito: o direito que tem o direito de dizer o que é

    direito e o que não é direito.

    Toda vez que as modalidades da autoreflexão do sistema

     jurídico se viram confrontadas com a circularidade constituin-

    te do direito, tratouse de inventar fórmulas que apresentem,

     para além da tautologia do círculo, um fundamento último para

    o direito. No entanto, estas estratégias são precárias e artifi-

    ciais, no sentido de que não descrevem a realidade do modo

    em que, na sociedade, se produz e, portanto, se autolegitima o

    direito da sociedade. Elas apenas encobrem esta realidade que,tal como é, não pode ser observada pelas teorias jurídicas,

    2. BODIN, Los seis libros de la republica, I, VIII.

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     PERSPECTIVAS TEÓRICAS  129

    comprometidas com a decidibilidade dos “conflitos” através

    do direito: o direito opera no sentido de produzir decisões jurídi-

    cas, mas não pode, a cada decisão, confrontarse com a questãorelativa à sua legitimidade ao direito do direito para fazêlo.

    Ocorre que, mais cedo ou mais tarde, os artifícios criados

     pelas teorias têm sua plausibilidade exaurida, e o paradoxo, la-

    tente, volta a aparecer. Assim ocorreu com a máscara da sobe-

    rania, assim ocorreu com a precária metáfora do contrato social,

    com a anterioridade dos direitos naturais diante daqueles ditos positivos, com a pressuposição da norma fundamental kelse

    niana e, também, com as tentativas de fundar o direito, visto

    como um texto, nos mais diversos contextos. Toda vez que uma

    “máscara” cai, os limites das teorias tomamse bastante eviden-

    tes, ou seja, o paradoxo, que permanecia latente por detrás da-

    queles artifícios, volta a aparecer. Uma nova estratégia, então,tem de ser inventada.

    Com este propósito, no século XX tornaramse bastante

    difundidas distinções que vêm ocultar o fato de que normas

     jurídicas sejam socialmente construídas como fatos sociais que,

     por sua vez, manifestamse também como normas jurídicas:

    “ser/deverser”, “faticidade/validade”, “princípios/regras” ou,ainda, “princípio/conseqüências”. Aqui, a referência ao siste-

    ma da ciência acabou por impor tal distinção como necessária

     para a construção de um conhecimento propriamente científi-

    co do direito, ao preço do isolamento e, portanto, também da

    construção do direito como objeto de uma Ciência Jurídica.

    O pensamento positivista resultou no principal produto daconsciência, adquirida somente no século XIX, da historicida-

    de do direito. Nos dois últimos séculos, esta materialidade do

    direito foi progressivamente ocultada, na tradição da Teoria Ge-

    ral do Direito, pela visão do direito, como objeto do conheci-

    mento científico, como a forma de um “deverser” esvaziado

    de qualquer conteúdo. Desta forma, a percepção da positividade, juridicidade e contingência como características do direito

    moderno tomou possível a formação da moderna ciência jurí-

    dica, ao preço de se esvaziar o direito, enquanto positivo e ju-

    rídico, de toda contingência.

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    Afastar a contingência significava eliminar toda a proble-

    mática ligada à extrema variabilidade do direito sob o plano do

    conteúdo, antepondose a esta labilidade do direito, num pri-meiro momento, dogmas como “certeza do direito”, “justiça

    da decisão”, “nãodiscricionariedade dos juizes” para, depois,

    retirarse do campo do conhecimento científico do direito exa-

    tamente este tipo de questão. Assim, no discurso desta Ciência

    do Direito de caráter formal, a interpretação jurídica tornouse

    um momento particularmente incômodo do direito. Nestasteorias, o problema da interpretação foi tratado de dois modos:

    numa primeira direção, pretendeuse reduzir o processo inter

     pretativo, também, a uma forma, ou seja, ao formalismo dos

     procedimentos interpretativos metodicamente garantidos (Es-

    cola da Exegese; Jurisprudência dos Conceitos); ao passo que,

    numa segunda direção e de certa forma já se apontando para oscaminhos trilhados pela Hermenêutica Jurídica, simplesmente

    o problema da interpretação foi descartado do campo da Ciên-

    cia Jurídica, exatamente por considerarse que a interpretação,

     por si, não se deixa reconduzir à forma do deverser.

    O pensamento positivista, ao esvaziar o direito de todo

    conteúdo, ou seja, ao partir do problema da contingência paranegar a própria contingência, acaba por jogar o direito na inde

    terminação. O problema dos limites do direito e dos riscos de

    um direito ilimitado tornase a questão central do debate jurí-

    dico de meados do século XX. A resposta ao “malestar” de

    um positivismo que passa a descrever o direito como uma for-

    ma desprovida de qualquer conteúdo o que significa que, a princípio, tudo pode ser jurídico deuse a partir de várias “fren-tes”, recorrendose a modelos derivados das ciências sociais e

    da filosofia. Um objetivo comum foi perseguido por essas di-

    versas disciplinas: era necessário procurar o fundamento do

    direito para além de sua positividade. Se, para Kelsen, o pro-

     blema da interpretação foi propositadamente deixado de lado, para o pensamento posterior este passou a ser o centro da pró-

     pria concepção de direito. Nisso consistiu a chamada “virada

    hermenêutica” da Teoria Jurídica: o direito visto como uma

    “prática interpretativa”.