paisagens residuais lugares e perspectivas da cachaça artesanal em tupaciguaramg

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 XXII ENGA ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA Agentes processos conflitos e conteúdos do e spaço agrário brasileiro Natal novembro de 2014. ISSN 1983-487X 2471 PAISAGENS RESIDUAIS: LUGARES E PERSPECTIVAS DA CACHAÇA ARTESANAL EM TUPACIGUARA-MG Carlos Roberto Bernardes de Souza Júnior Graduando em Geografia na Universidade Federal de Uberlândia Bolsista de Iniciação Científica FAPEMIG [email protected] Marli Graniel Kinn Professora Doutora do Curso de Geografia da Uni versidade do Estado de Minas Gerais (Frutal) Apoio institucional FAPEMIG [email protected] RESUMO  No espaço rural do município de Tupacigua ra-MG abordamos o comportamento de  produtores frente à expansão dos complexos agroindustriais, considerando as (co)(re)existências e suas estratégias, assim como as tensões referentes a este processo. Para tanto, foram realizadas empreitadas a campo, revisões bibliográficas e observaçõe s referentes às mutações e metamorfoses das paisagens e dos lugares em suas dimensões oníricas e concretas. Palavras-chave: cachaça artesanal; paisagem; lugar. ABSTRACT In the rural space of Tupacigu ara’s town localized in Minas Gerais we try to comprehend it’s behavior in front of the agribusiness’ expansion, considering the (co)(re)existences and its strategies, also the tensions which refers to this process. In order to do so, fieldworks, bibliographic revisions and observations referring to the mutations and metamorphoses of the landscapes and places in their oniric and concrete dimensions were realized. Keywords: artisinal cachaça; landscape; place. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Pensar o espaço para além das relações que se materializam no seu conjunto, envolvendo realidades diferentes tornou-se necessário discutir as contradições e tensões socioterritoriais em um espaço em mutação. O imaginário e o onírico são centrais para sua composição enquanto nos ajudam no entendimento das necessidades e desejos dos sujeitos que interagem com determinadas contradições do espaço, indicando suas especificidades em cada lugar. Lembremos, obviamente, que tais contradições e necessida des têm aspectos materiais e imateriais. Consideramos que a cachaça artesanal é um elemento e objeto rico em complexidades e resíduos socioculturais. Em primeiro lugar por ser resultado de um  processo histórico de lutas e apropriações dentro de cenários específicos do espaço  brasileiro. Em segundo lugar, porém não com menor importância, temos de levar em

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PAISAGENS RESIDUAIS: LUGARES E PERSPECTIVAS DACACHAÇA ARTESANAL EM TUPACIGUARA-MG

Carlos Roberto Bernardes de Souza JúniorGraduando em Geografia na Universidade Federal de UberlândiaBolsista de Iniciação Científica FAPEMIG

[email protected]

Marli Graniel KinnProfessora Doutora do Curso de Geografia da Universidade do Estado de Minas Gerais

(Frutal)Apoio institucional FAPEMIG

[email protected]

RESUMO

 No espaço rural do município de Tupaciguara-MG abordamos o comportamento de produtores frente à expansão dos complexos agroindustriais, considerando as(co)(re)existências e suas estratégias, assim como as tensões referentes a este processo.Para tanto, foram realizadas empreitadas a campo, revisões bibliográficas e observaçõesreferentes às mutações e metamorfoses das paisagens e dos lugares em suas dimensõesoníricas e concretas.

Palavras-chave: cachaça artesanal; paisagem; lugar.

ABSTRACT

In the rural space of Tupaciguara’s town localized in Minas Gerais  we try tocomprehend it’s behavior in front of the agribusiness’ expansion, considering the(co)(re)existences and its strategies, also the tensions which refers to this process. Inorder to do so, fieldworks, bibliographic revisions and observations referring to themutations and metamorphoses of the landscapes and places in their oniric and concretedimensions were realized.

Keywords: artisinal cachaça; landscape; place.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Pensar o espaço para além das relações que se materializam no seu conjunto,envolvendo realidades diferentes tornou-se necessário discutir as contradições e tensõessocioterritoriais em um espaço em mutação. O imaginário e o onírico são centrais parasua composição enquanto nos ajudam no entendimento das necessidades e desejos dossujeitos que interagem com determinadas contradições do espaço, indicando suasespecificidades em cada lugar. Lembremos, obviamente, que tais contradições enecessidades têm aspectos materiais e imateriais.

Consideramos que a cachaça artesanal é um elemento e objeto rico emcomplexidades e resíduos socioculturais. Em primeiro lugar por ser resultado de um

 processo histórico de lutas e apropriações dentro de cenários específicos do espaço brasileiro. Em segundo lugar, porém não com menor importância, temos de levar em

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consideração o fato de ter unicidade no que tange ao seu papel identitário, afinal é umdestilado que se relaciona diretamente com o espaço de sua produção.

Contudo, há certa dubiedade e mitologia no que se refere à constituição históricada cachaça. Existem contos que relatam sua invenção correlacionando-a ao fato dela

“pingar” do teto engenho após o processo de produção do melado. Tais “pingas” muitasvezes caiam nas costas machucadas dos escravos, lhes causando ardência, motivo queteoricamente teria levado ao apelido de “água ardente”. 

Buscando compreender o surgimento da bebida e fugir desta concepçãomitológica, Avelar (2009), procurou identificar sua arqueologia desde o períodocolonial. Percebeu que inicialmente o vinho da cana, chamado de “garapa azeda”, era

utilizado pelos Senhores de Engenho como uma maneira de alimentar o gado e osescravos. Tal fato, inclusive, evidencia que a diferenciação entre os escravos e animaisera mínima, já que ambos eram propriedades do senhor.

Os povos escravizados passaram, com o tempo, a apelidar a bebida de “cagaça”.

A partir da destilação desta obteve-se a cachaça. Por conta de ser um destilado sem

muito valor para o Senhor do Engenho, ela pode circular livremente entre os escravos e, por algum tempo, teve seu consumo inclusive incentivado. Afinal, o torpor e aembriaguez causados pela sua ingestão permitiam o “relaxamento” e a “compensação”

das dificuldades cotidianas.Logo a bebida passou a ser reconhecida pelos Senhores, os quais a apreciavam

de tal maneira que ela começou a ser utilizada como moeda de troca para compra deescravos (SOUZA, 2004). Alguns dos engenhos de menor porte passaram colocar adestilação como centro de sua atividade produtiva. O alcoolismo inclusive chegou a serum grande problema dentro da colônia.

Houve agravo na situação durante a segunda metade do século XVII, chegandoao ponto da coroa portuguesa proibir a fabricação e venda da bebida. Apesar de que,como Avelar (2009) aponta, tal fato também se deve ao fato do consumo de vinho e

 bagaceira (produtos que eram importados da metrópole) ter caído drasticamente porconta da concorrência com a cachaça.

Após uma série de revoltas entre a população, tal decisão foi revogada, mas odestilado passou a ser taxado. Tais taxas ajudaram na reconstrução da capital portuguesadurante o século XVIII, já que esta havia sido atingida por um terremoto. Uma segundataxa foi instituída para prover o pagamento de professores em Portugal. Obviamente ataxação não foi bem aceita, inclusive fomentando a construção da cachaça enquantosímbolo de resistência à colonização.

Tendo a independência política alcançada, o destilado passou a ser cada vez

mais relevante para a identidade do país. Multiplicou-se o número de alambiques.Diferentes variedades e modos de fazer foram incorporados à bebida, algumasutilizando frutas ou até mesmo raízes. Recentemente, têm-se visto até variações quefazem uso da raiz da Cannabis Sativa, principalmente em Pernambuco (TERRA, 2014).A produção artesanal é hoje altamente valorizada não só em terras tupiniquins, comotambém no exterior.

Percebe-se, desta forma, que é uma produção rica em significados tanto namaterialidade e concretude das relações estabelecidas, as quais tomam formas nas

 paisagens e lugares, como na imaterialidade das formulações oníricas e imagináriaselaboradas pelos sujeitos. Construir um estudo abordando a permanência de produtoresde cachaça no munícipio de Tupaciguara em sua contemporaneidade exigiu a

compreensão de seus aspectos de maneira conjunta, mesmo que em alguns momentosoptássemos pela a necessidade de redução temporária de alguns de seus aspectos.

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Tendo isto em mente, pensamos na forma como os nexos e as lógicas dereprodução da cachaça artesanal têm se alterado frente a recente mecanização do campo

 brasileiro. Afinal a expansão dos complexos agroindustriais têm causado reestruturaçõesterritoriais e produtivas que impactam os lugares e as pertenças dos sujeitos, assim

como as territorialidades das comunidades afetadas.Buscamos compreender as situações de tensões e (co)(re)existências que seefetivam nestas mutações do mundo vivido, elencando as vivências cotidianas dossujeitos. Para tanto, estabelecemos como principio metodológico a leitura das paisagenscriadas e atreladas no processo de produção da cachaça e da cana-de-açúcar, tanto emsua dimensão subjetiva quanto na concretude e plasticidade daquilo que conseguimosabarcar. Neste texto, visamos ver para além de sua materialização.

Como já informado, o nosso exemplo empírico encontra-se no espaço rural deTupaciguara, município de Minas Gerais.  O mesmo se localiza na mesorregião doTriângulo Mineiro, em sua porção norte. Ele faz fronteira com os munícipios de MinasGerais: Uberlândia, Monte Alegre de Minas, Araguari e Araporã; e de Goiás:

Corumbaíba, Itumbiara e Buriti Alegre. Sua área é de 1.823,960Km² e população totalde 24.188 habitantes (Fonte: IBGE, 2010). Localizam-se em seu interior duas usinas

 processadoras de cana-de-açúcar e um entreposto da CALU (Cooperativa AgropecuáriaLtda. de Uberlândia). Considerando-se as nossas incursões ao campo, conseguimosconstatar a existência de ao menos dois alambiques voltados para a produção de cachaçaartesanal.

Mapa 1: Localização do Município de Tupaciguara

Fonte: Geominas, 2011.Organização: COSTA, R. S. 2011.

 No espaço rural de Tupaciguara pudemos perceber as representaçõessócioespaciais dos produtores de cachaça e dos complexos agroindustriaissucroalcooleiros, principalmente em sua dimensão simbólica. Além disso, realizamosleituras bibliográficas acerca do tema da pesquisa visando formar um referencial

teórico-conceitual que colaborasse no entendimento das relações que se dão neste processo de produção.

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TORPOR E INSUBORDINAÇÃO

Iniciado nos anos 1950 e intensificado durante as décadas de 1960 e 1970(prioritariamente na ditadura militar), o processo de industrialização e “modernização” 

do campo tem nítidas implicações no período contemporâneo. As subordinações dorural em função da indústria vêm ocorrendo desde a alvorada do século XIX, mas querealmente veio a se efetivar apenas na dita “Revolução Verde”, no século XX. Com a

 promessa de produção de alimentos para todo o globo, tal evento teve repercussão nos países centrais da economia capitalista, entretanto foi mais expressivo nos periféricos.

Conforme apresentado por Kageyama (et al , 1990), tal processo se dá primordialmente de duas maneiras que agem conjuntamente. A primeira é a chamadaindustrialização a jusante da propriedade, onde o fluxo externo da produção é o afetado.A indústria se torna a principal compradora dos produtos, com o fim de processa-los etransforma-los em mercadorias com maior valor agregado.

Tal maneira de atuar implica na constituição de um espaço dotado de fixos e

fluxos para a aceleração da reprodução ampliada de seu capital. Por conta disso, hágrande incentivo para a monocultura de determinados cultivos, objetivando a produçãode matérias primas. Há, portanto, uma reocupação do espaço agrário que se apresentaem paisagens caracteristicamente homogêneas.

 Neste processo, a indústria obtém controle até mesmo do preço, aprofundando aexploração. Percebe-se, portanto, que a monocultura de diversos produtos agrícolas estádiretamente relacionada à agroindústria.

A segunda é a que Kageyama (et al , 1990) chama de industrialização amontante. Esta traz a indústria para “dentro” da propriedade, viabilizando asubordinação do produtor rural, inclusive impondo à compra de insumos e maquináriosagrícolas.

 No caso do cultivo da cana, no Brasil tal fato foi incentivado principalmente pelaPetrobrás e algumas empresas de capital internacional (MARAFON, 1998). No CerradoMineiro, a inserção destas tecnologias no campo se deu de maneira a proporcionar

 possibilidades de produção para muitas das terras que eram antes consideradas de baixa produtividade.

Os constantes avanços da biotecnologia e da química voltada para o meioagrícola amarram o produtor rural à produção industrial. Outro ponto de sumaimportância é a facilidade de acesso aos vários sistemas de créditos, os quais são osmaiores responsáveis pela implantação efetiva da “modernidade” no campo. Um dos

 principais problemas é o fato de que muitas vezes a renda adquirida pelo produtor éinsuficiente para pagar o investimento inicial objetivado na tecnificação do processo

 produtivo. Nesta condição, os pequenos e médios produtores não conseguem suprir asdemandas do processo produtivo e nem as suas necessidades para promover a safra/anoseguinte, fazendo com que este tenha que constantemente recorrer a financiamentos

 para manter a propriedade.Confluindo na interação destes diversos capitais é que se encontram os

Complexos Agroindustriais (CAIs). Eles atuam no espaço rural impondo uma lógicaindustrial. Espacialmente, os CAIs se apresentam enquanto portadores deterritorialidades abstratas, derivadas de necessidades de reprodução dos nexoscapitalistas. Eles agem, muitas das vezes, como forças desterritorializadoras das

 produções agrícolas locais.

 Nas terras planas do Cerrado Mineiro o processo de reocupação e implantaçãode uma lógica do agronegócio é mais contundente, pois neste espaço passam a serem

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colocados os investimentos de capitais, gerando as principais possibilidades deexpansão e reprodução dos nexos capitalistas e da fronteira agrária (SANTOS, 2008). OCerrado Mineiro está inserido nesta situação principalmente em decorrência dainstalação de usinas sucroalcooleiras, as quais hoje totalizam 23 unidades produtivas.

Estas usinas agem, primordialmente, processando a cana-de-açúcar, obtendo principalmente álcool, açúcar e energia elétrica.A primeira vista, observando a paisagem (de maneira reducionista) enquanto

apenas aquilo que nossa visão abarca, notamos certa medida de homogeneidade nasáreas produtivas deste setor. O triângulo mineiro aparenta ser uma área de domínio dasusinas, onde a produção de cana-de-açúcar para servir de matéria prima para o

 processamento reina soberana (CLEPS JUNIOR; SOUZA, 2012). A antiga produçãoleiteira, principalmente aquela de base familiar, perde força em função daterritorialização destes CAIs.

Parece-nos que a pequena produção, seja campesina ou familiar, está seausentando destas paisagens da cana-de-açúcar (INÁCIO; SANTOS, 2011). Em

Tupaciguara-MG, a produção canavieira ainda não alcançou tamanha magnitude porconta de dois fatores. Em primeiro lugar, vemos que a instalação da segunda usina em2011 ainda é recente e não procedeu totalmente a sua capacidade produtiva;consequentemente o avanço da cultura da cana continua restrito as grandes

 propriedades. Outro ponto que deve ser levado em consideração é o fato de que a usinainstalada antes de 2011 atuava em pequena escala.

Em segundo lugar, a produtividade da soja no município é relevante, indicandouma remuneração dos sojicultores semelhante à oferecida pelo setor sucroalcooleiro.Soma-se a isso o fato do município de Tupaciguara estar na área de influência deUberlândia-MG. Afinal, em Uberlândia encontram-se instaladas as principais empresas

 processadoras de grãos do país. Trata-se de uma infraestrutura que afeta e influenciadiretamente a composição produtiva de Tupaciguara.

A confluência dos complexos agroindustriais sucroalcooleiros com aqueles dasoja, mesmo que estejam em conflito territorial um com o outro, reordena os espaços e a

 produção. Ambas são culturas com alto emprego de maquinário e insumos, colocandoem mutação as lógicas e saberes tradicionais. Desse modo, a recente inserção da usinano espaço agrário do município de Tupaciguara indica a força desterritorializadora dosgrandes complexos do agronegócio.

Consideramos que esta desterritorialização é logicamente seguida dereterritorializações deste espaço (HAESBAERT, 2004 e 2007). Neste contexto énecessário problematizar se de fato é necessário que sejam eliminadas as

territorialidades das outras produções para que determinado complexo agroindustrial possa se estabelecer efetivamente no espaço. Em Tupaciguara, nem tudo é eliminado,restam resíduos de práticas rurais decorrentes de modo de vida ligados à produção decachaça e da pecuária leiteira que são reterritorializados em outros espaços, mesmo quede maneiras diferentes.

As paisagens monótonas da agroindústria revelam um espaço denso em conflitose complexidades. Existem territorialidades inerentes a estas produções que são postasem situações de tensões quando confrontadas com as outras lógicas já instaladas. Aimplantação dos CAIs dificulta a continuidade dos usos antes atribuídos a estes espaços.As territorialidades concretas dos produtores tradicionais são afetadas, muitas vezessendo suprimidas ou entrando em conflito. Não apenas a trama existencial das formas

tradicionais de produção é afetada, como a dos sujeitos que nelas estão inseridos.

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Os dados do gráfico 1 ajudam a revelar como a inserção dos nexossucroalcooleiros a partir da implantação da usina em 2011 afetou a produção agrícolatradicional no município de Tupaciguara. Percebemos que a produção mais afetada,desde 2010, foi a de milho. Pensamos que isto se deve, de certa maneira, ao poder

atribuído às processadoras de grãos, mas principalmente soja, na região em que omunicípio se insere. Também consideramos exponencial o crescimento da produção decana, que praticamente dobrou sua área entre 2010 e 2011.

Gráfico 1: Área Plantada (em mil Hectáres) das culturas de Cana-de-açúcar, Milho eSoja entre 2000 e 2011 no município de Tupaciguara-MG

FONTE: IBGE/SIDRAORGANIZAÇÃO: SOUZA JÚNIOR, C. R. B. de

Dessas alterações e mutações do espaço, cabe aqui problematizarmos sobre as

humanidades deste Cerrado Mineiro reocupado. O que houve com a riqueza da produção artesanal e das festas? Como a religiosidade pode se manter em um espaçometamorfoseado e que nele são extripados seus ciclos naturais, impondo lógicaslineares de produção? Há maneiras de estes pequenos produtores continuarem existindofrente à expansão destes complexos agroindustriais? Onde podemos encontrar arepresentação destes sujeitos no espaço em mutação?

Ponderamos que analisar a paisagem meramente por conta do seu aspecto visuale mensurável é uma limitação que compromete diretamente a possibilidade decompreendermos as relações das pessoas com os lugares, principalmente no que serefere aos seus enraizamentos. É necessário entender a paisagem enquanto umcomplexo denso de significações, uma construção mental (TUAN, 2005) em constante

movimento. O estudo da paisagem deve se conectar aos sentidos e sensações do corpohumano, mas deve ir para além deles, indicando os valores simbólicos.

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 Neste contexto, em Tupaciguara, foi importante considerarmos asheterogeneidades que se apresentam dentro de situações que muitas vezes parecemextremamente homogeneizadas. Por mais que pareça-nos que as humanidades estejam, a

todo tempo, sendo suprimidas pelas lógicas de reprodução do capital, temos de nos

atentar para o fato de que o capital não se reproduz sem os homens. É, inclusive, a partirda apropriação do trabalho dos homens que sua lógica vem a reinar. E não podemos negarque “a força de trabalho de um homem consiste, pura e simplesmente, na sua

individualidade viva” (MARX, 1996: 99). Afinal este trabalho ressignifica a natureza,apropriando-a para fins humanos e deixando marcas, resíduos e representações que seespecificam em cada lugar.

Foto 1: Cruzeiro em meio à homogeneidade da cana em Tupaciguara-MG.

AUTOR: SOUZA JÚNIOR, 2013.

O conteúdo simbólico presente na foto 1 nos revela a complexidade das paisagens mesmo tendo como tendência a sua homogeneidade. O cruzeiro fincado emambiente tomado pelo cultivo da cana representa aspectos importantes da religiosidadede um povo que até pouco tempo tinha o seu modo de vida diametralmenteinfluenciado/determinado pelos ciclos da natureza em sua totalidade entrópica. Ele éuma forma destes sujeitos se conceberem espacialmente enquanto devotos de umacrença que teoricamente os ajudam a lidar com a entropia do natural e das tensõesvindas do espaço social.

Mesmo em meio à monumentalidade da concretude da paisagem carregada desimbolismo de uma época e dos fixos e fluxos capitalistas, percebemos que há maneiras(brechas) para que as humanidades se manifestem. Os homens (re)existem no lugar emcontextos em que o espaço a sua volta são metamorfoseados rapidamente, mas não sãocompletamente suprimidos. O cruzeiro que permanece fincado em uma encruzilhada éum símbolo de sujeitos sociais e culturalmente constituídos, bem como dashumanidades que continuam pertencentes ao espaço, particularizando enraizamentoscaracterísticos de ruralidades especificas do Cerrado Mineiro.

O cruzeiro é um símbolo importante que aparece em meio aos espetacularesmares de cana. Se destaca por conta de sua imensidão de significados e significantes. “A

imensidão está em nós” (BACHELARD, 2008, p.190), na forma como percebemos a

homogeneidade e a encaramos com certa medida de ansiedade. O cruzeiro apontado nafoto é uma forma de expressar a heterogeneidade e, de certo modo, romper com esta

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conformidade. É a mediação do divino no terreno redefinido pelo grande capital. Eleserve de ponto de partida para a percepção de que há algo para além dos otimismos

 produtivistas do capitalismo que se estabelece no cerrado mineiro.Contudo, os complexos agroindustriais se nutrem da lógica do espetacular,

daquilo que deve ser grandioso e sempre se mantendo com uma imagem pasteurizada. Écomum percebermos que esta produção se nutre do discurso midiático e do fato detrazer o “ progresso”  para o campo. “A realidade vivida é materialmente invadida pela

contemplação do espetáculo” (DEBORD, 2012, p.15) de tal forma que nos parece que

não há alternativa que não seja criar as condições artificiais de produção. A linearizaçãodo tempo promovido pela monocultura canavieira dá a impressão que para além delanada mais existe.

Como combater essa impressão? No nosso caso recorremos ao trabalho decampo. Nas áreas de relevo mais acidentado visualizamos alguns pequenos produtoresde leite que ainda continuam a produzir os meios de vida que dão sustentação aos seusmodos de vida. Cooperativados e incentivados principalmente pela Cooperativa

Agropecuária Ltda. de Uberlândia disfrutam de planos de saúde, sendo ocooperativismo um dos maiores motivos de sua permanência na pecuária leiteira.

Além dos produtores de leite, também chama a atenção os produtores artesanaisde cachaça. Para eles mais importante que ordenha mecânica e tanque de resfriamento,são os alambiques. Eles ainda funcionam na pequena propriedade, mesmo que cercados

 pelos canaviais que não são seus. Eles se localizam em áreas próximas e, muitas dasvezes, produzem a mesma cana da usina sucroalcooleira. Porém o fim dado para essamatéria prima disputadíssima é diametralmente diferente. A cana produzida encontra-sena terra dos donos que recusam o arrendamento, revelando que, para eles:

A terra da gente é terra pra trabalha... Faze o de come, tira as despesas

da casa e faze fartura. Então quem pensa em aluga pra cana perde essavida. Na minha cabeça essa coisa de arrenda é a mesma coisa da gentedá a manteiga da terra pra usina... Dai não pode mais tê fartura. O povo vai fica com aquilo que vai reza no contrato do arrendamento. 1 

A terra e a propriedade da terra é vista não apenas enquanto espaço de trabalho,mas como patrimônio, como algo capaz de prover a casa familiar de fartura. Alugar parase produzir cana significa queimar a fertilidade natural da terra, comprometendo a

 produção dos meios de vida. A terra é um bem personificado na relação que promove avida. No lugar a produção dos meios de vida é mediada pelas técnicas e pelastecnologias, mas também pelo religioso. Segundo um produtor rural,

Aqui a gente tem o nosso padroeiro e ele é muito importante... Maisessa coisa da gente só pensa no milagre do santo é uma coisa quesozinha não funciona.. Aqui na terra da gente, a gente não dispensaum tanto de calcário pra corrigi a acidez. Isso é serviço que ninguémdá conta sem a máquina. Então a gente usa pra sobra serviço... Comoa gente é pouca, tem que faze um jeito de faze o de come e faze sobrafartura pra festa...2 

Seu trabalho atua para além da mera transformação das áreas de cultivo em produto/mercadoria. Há uma relação de afeto com a produção que se obtém na

1 Fonte: trabalho de campo realizado em 2012.2 Fonte: trabalho de campo realizado em 2012. 

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 propriedade. Ela não se restringe ao objetivo de obter renda, mas se desdobrada como possibilidade de existir no lugar transformado. A forma como o produtor rural usa osrecursos naturais ao seu favor é onde parece residir as possibilidades de enfrentamentodas dificuldades cotidianas, inclusive “subsidiado” pela técnica e devoção.

Desse modo, os pequenos produtores não veem a terra enquanto espaço sobre oqual ele deve obter controle, mas um espaço com o qual ele deve se relacionar.Tecnologia, técnica e religião são vistos como mediadoras, portanto, não enquanto“ferramentas” para dominação.

Tuan aponta esse sentimento quando indica que há sobre as pessoas um apreço pela terra que se revela devido ao fato de que esta “é um repositório de lembranças e

mantém a esperança” (2012, p.141). Há uma valorização que se desdobra para além dasrelações materiais, pelas necessidades. Existem desejos que estes produtoresrepresentam no seu espaço. Ambos se espacializam na concretude do palimpsesto da

 paisagem.

Foto 2: Bagaço da cana, ferragens e breve estrada em um dos alambiques artesanais deTupaciguara-MG.

AUTOR: SOUZA JÚNIOR, 2013.

A imagem capturada na foto 2 indica o volume de resíduos sólidos produzido a partir de um alambique familiar. No processo de trituração para extração da garapaneste tipo de alambique produz-se bagaço que pode ser usado na pecuária leiteira,sobretudo em pequenas propriedades rurais. E o que isto nos revela? A necessidade denos atentarmos para o fato de que no processo de expansão da cana há umaheterogeneidade de relações, bem como de diferentes lógicas e temporalidades sociais.

É uma paisagem azeda, que exala um odor forte e açucarado, o qual já nos causaa sensação de leve torpor. Há uma textura irregular nas formas. Em primeiro lugar, porconta do ferro velho espalhado perto da árvore. Em segundo lugar, decorrente doscoqueiros exóticos à direita. Por fim, causado pelo bagaço que parece estar acumuladodesordenadamente, mas refletindo as formas do relevo.

Existe a necessidade de nos atentarmos para o fato de que a condição humana éinerentemente contraditória em sua maneira de ser. Percebemos que estes produtores

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artesanais de cachaça fazem uso de muitas das tecnologias empregadas pelos complexosagroindustriais. Entre elas destacamos a biotecnologia da cana de açúcar, a qual produzmais e ao longo do ano todo, e a colheita mecânica livre de queimadas. Comomanifestação dessas diferenças, na área de pesquisa, compreendemos que estes

 produtores artesanais de cachaça fazem uso de tecnologias adaptadas de outrastemporalidades.

Foto 3: Motor de maria-fumaça adaptado para servir de moenda para o alambique.

AUTOR: SOUZA JÚNIOR, 2013.

O conteúdo ressaltado na foto 3 indica um conjunto de estratégias produtivasque derivam da criatividade de produtores rurais que se reinventam a partir daquilo queconseguem reunir na propriedade. O motor move o alambique e reproduz a existênciado produtor artesanal. A cana é moída e sua garapa extraída para a posteriorfermentação e destilação da cachaça. O motor de maria-fumaça foi adaptado pelo donodo alambique para mover sua produção, sendo uma reexistência não somente de umatecnologia, como também do sujeito. Move o alambique reduzindo os custos de

 produção e proporcionando uma existência particular do produtor artesanal de cachaça. Na sua produção rítmica, produz sons que são estranhos à natureza, nos

 parecendo que adquire certo caráter de monumentalidade. Há momentos em que o

alambiqueiro tem que fazer soar o apito do motor para a máquina poder emitir seusrugidos e vomitar o vapor acumulado na queima do bagaço que a alimenta. Ela interagecom o ambiente e os sujeitos indo para além de mera ferramenta de transformação damatéria-prima. É, também, uma representação espacial desta produção artesanal.

Ao utilizar os resíduos sólidos da sua produção, alimenta a caldeira e produzvapor, concretizando um projeto da família como podemos observar na sua fala:

Aqui a gente aproveita quase tudo para produzi um tanto de coisa.Quando a gente não consegue ocupa o bagaço pra faze vapor pramaria-fumaça funciona, a gente dá pro gado ou pro vizinho dá progado dele. Aqui a gente vai aproveitando um pouquinho de cada

coisa... dai a gente vai tocando as coisa pra não esperdiça... A gente

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não se conforma em perde um recurso, dai é assim; vai arrumando ascoisa e lutando, vai ganhando a vida.3 

 Na utilização daquilo que parecia sem aproveitamento há o envolvimento dafamília que descobre na tecnologia que movia a velha maria-fumaça novas formas deexistir no lugar. Antes o motor da locomotiva movia vagões carregados commercadorias, produtos e pessoas, agora movimenta um conjunto de estratégiasrelacionadas à lógicas e saberes específicos da produção familiar em um espaço cercado

 pelas grandes lavouras de cana-de-açúcar.A conquista tecnológica inscrita na propriedade familiar é ao mesmo tempo um

símbolo do progresso técnico da modernidade, é um arauto das lógicas tradicionaisapontadas pelo produtor rural. Esta paisagem, em todo seu hibridismo cronoespacial,

 principalmente no que se refere ao acumulo de diferentes temporalidades, nos revela asestratégias de existências daqueles produtores. Percebemos, portanto, a forma como os

 produtores rurais constroem suas territorialidades inerentes à sua existência no lugar.

Vemos que a paisagem, enquanto conceito, nos permite evidenciar temporalidadessociais decorrentes de construções simbólicas e representações sociais muitas vezesconcomitantes (HEIDRICH; GAMACHO, 2012).

Desse modo, foi fundamental considerar o papel da criatividade/inventividade para a formação das territorialidades da cachaça artesanal. O destilado, enquantosímbolo vai representando ruralidades próprias à sua produção. Para os produtores decachaça, o espaço ganha significações próprias derivadas do trabalho envolvido.Conforme aponta Tuan, “para viver, o homem deve ver algum valor em seu mundo”

(2012, p.142), e este valor está manifestado nos resíduos culturais que compõem ashumanidades destes sujeitos.

A cachaça artesanal também tem seu valor cultural pautado na reprodução das

lógicas campesinas. Estas identidades relativas ao produtor familiar estão ligadas àforma como estes produtores se relacionam com o seu trabalho. Eles humanizam oslugares e consideram que “fazenda é para fazer”4, onde a propriedade familiar não hásentido na mera reprodução e apropriação dos recursos naturais. Os saberes e os saboresque potencializam suas invenções parecem revelar partes importantes de uma lógica aser decifrada a partir do vivido no lugar rural. Certamente são elementos centrais paracompreender a existência destes sujeitos.

Outro aspecto importante desta realidade é o sentido da comunidade. Para acontinuidade de sua existência, a comunidade rural, a partir do religioso, vai recriandoou mesmo revigorando seus vínculos territoriais. A partir deles o sujeito se sente

 pertence a ela. Aquilo que os une, que é comum na unidade destes sujeitos é a maneira

como interagem no lugar com as suas vizinhanças. Se aproximando, portanto, daquiloque consideramos como identidades e lógicas campesinas.

Existem confianças e pactos territoriais formados em função dos usos eapropriações das diversas instituições presentes naquele espaço. Há também umaefervescência de sentimentos relativos à afinidade com o lugar. Os pequenos produtoresse sentem representados nos alambiques, mesmos que estes não estejam em suas

 propriedades. Tal situação pode ser especificada a seguir:

Aqui a gente não tem alambique. Tem o engenho pra produzi rapadurae melado. A nossa cana é pra faze essas coisa e dá pro gado. A gente

3 Fonte: trabalho de campo realizado em 2012.4 Fonte: trabalho de campo realizado em 2013.

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não sabe mais faze a cachaça, ela é cheia de segredo e quem sabia fazenão conseguiu passa pra gente, ficou com os mais velho... As coisasão assim mesmo... um pouco vai ficando pra trás, meio perdindo...Então a gente vai aproveitando, trocando aquilo que os outroconseguem faze... A cachaça a gente não faz, mas o vizinho faz, maisele não faz a rapadura e dai a gente vai trocando.5 

A sociabilidade entre esses produtores é favorecida por relações sociaisenvolvendo sistemas de trocas simples, pois ela costuma ser uma das importantesestratégias entre produtores familiares de vários lugares do Cerrado Mineiro. Nestesmesmos lugares, as reuniões sociais parecem ter mais envolvimento, emoção quandoesquentadas pelo amadeirado sabor do destilado. Nas festas tradicionais a bebida vaisendo consumida e as relações de vizinhança nutrem os nexos promovidos ereproduzidos no ambiente comunitário. Santos (2008) propõe a compreensão da festaenquanto criação fundamental para o enfrentamento das dificuldades e promoção do

equilíbrio espiritual e material dos membros da comunidade. Na festa há ajuda, colaboração e doação. Os sujeitos não doam apenas produtosou mercadorias, doam tempo e trabalho. Seu tempo doado à comunidade é recebido einterpretado como uma forma de estabelecer reciprocidade. Neste momento os acordossão reafirmados para garantirem que os ritmos das humanidades e da natureza sejamrespeitados. Muitas das vezes é a forma que estes sujeitos encontram de construir umtrato entre o cosmos e a comunidade. É uma mediação para a entropia do universo emque estão inseridos. Há construção de vínculos territoriais entre estes sujeitos,fortalecendo suas territorialidades.

Compreendemos que nestes lugares há um modo de vida que se fixa criandoenraizamentos, pois as relações entre pessoas geram espaços apropriados para fins

humanos (KARJALAINEN, 2012) e ricos em significações (TUAN, 1983).Entendemos que as relações que nutrem a produção familiar revigora também a produção da cachaça. Ela enquanto elemento simbólico representa o espaço vivido quemesmo transformado, continua existindo no sujeito, pois este parece não se livrar dasimaterialidades e materialidades do lugar.

Em relação sujeito-lugar, construída primordialmente no cotidiano, abarca ummundo vivido que conecta o homem ao mundo em que está inserido (CARLOS, 2007).Entretanto, não podemos considerar que ele apenas se posiciona somente sob ascondições materiais de produção, existem dimensões oníricas e imaginárias que devemser consideradas. As relações sociais envolvendo a produção da cachaça podem ser vistacomo uma âncora para os lugares destes sujeitos.

O torpor promovido pela ingestão da cachaça permite que sujeitos que saíram desuas terras experimentem uma possibilidade de retomar a memória do campo, revivendomomentos que há muito foram perdidos. A embriaguez também permite que algunsexperimentem uma sensação de fuga da realidade em que estão inseridos, das rotinasopressoras de um trabalho que muitas vezes não tem significações e enraizamentos.

Verifica-se que a cachaça artesanal age, para os sujeitos afastados, como umaespécie de elixir da longa vida. Essa essência tanto procurada pelos alquimistas serve demaneira análoga para o nosso objeto, pois ambos têm por objetivo a prolongaçãoindeterminada da vida. A vida que o elixir prolonga é essa material, concreta, literal. Jáaquela que a cachaça artesanal contribui é figurativa, aquela da memória da existênciano campo. É uma mediação que estes homens encontram para retomar um modo de vida

5 Fonte: trabalho de campo realizado em 2012. 

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do qual sentem saudade. Age, portanto, enquanto elemento que reitera a memória dolugar.

O sabor da cachaça se torna o sabor da construção de uma vida no lugar. Bebe-laé voltar para um espaço em que era possível ter controle sobre alguns fenômenos. Há

como resgatar as memórias das relações sociais estabelecidas nas vivências dos sujeitos.Se recupera (ou cria) um mundo vivido que fortalece as potencialidades existenciais doshomens tanto no campo como na cidade. A resiliência dos sujeitos e de suashumanidades prevalece mesmo perante as dificuldades colocadas pelo capital.

CONSIDERAÇÕES ENCENANDO CONCLUSÃO

É inegável considerar que as relações sociais atreladas á produção da cachaçaocupem um lugar central na construção da cultura brasileira. Não só isso, como tambémno lugar estudado seja responsável pela resiliência de lógicas produtivas tradicionaisdentro da estrutura fundiária nacional. Por mais que a homogeneidade no campo

 brasileiro pareça reinante devido à constante expansão dos nexos capitalistas e doscomplexos agroindustriais, percebemos que existem outras lógicas que coexistem e na produção familiar parecem nutrir reinvenções a todo instante.

 Neste contexto, as humanidades não são estáticas, se reinventam e se nutrem detensões sociais fabricadas no espaço. Estas situações se especificam, resultando em

 paisagens ricas em significados e significantes. Consideramo-las como complexasdensas e que nos revelam mundos de apropriações e usos que se coisificam,fetichizando vários atributos de uma produção familiar rural em mutação.

 No município estudado, por mais que a presença despersonificada do capitalesteja continuamente efetuando pressão sobre os modos de vida, há uma força contrária,dotada de outras lógicas que não somente a enfrenta, como também se apropria de

algumas de suas possibilidades. Existem redes e fluxos de identidades que semanifestam e se territorializam nos lugares. Tais podem ser percebidas a partir da leituradas paisagens e representações dos sujeitos. Estas são complexos de interações que serevelam para além do olhar. Se personificam nas relações homem-natureza, adquirindosignificados que são diferenciados para cada grupo ou sujeito social.

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