“o pico da discÓrdia” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza...

17
4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 “O PICO DA DISCÓRDIA”: Conflitos na patrimonialização de um conjunto paisagístico em Itabirito na década de 1960 JUNQUEIRA, THAÍS LANNA Graduada em História e mestranda em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela UFMG. Rua República Argentina 795/201. 30315490. [email protected] RESUMO A ideia de paisagem cultural é recente nas políticas patrimoniais, tendo sido na década de 1990 que a UNESCO e a Convenção Europeia passaram a adotar a categoria formalmente. No Brasil, as discussões em torno do tema ainda estão começando e a insegurança em se lidar com a chancela de bens classificados como paisagens culturais ainda é grande. Contudo, não se pode negar que a ideia de proteger paisagens excepcionais no Brasil é antiga ela data da publicação do Decreto-lei nº 25/37, que estabeleceu o instituto do tombamento no país, criando, dentre outros, o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Ao analisar a história de atuação do IPHAN, percebe-se, no entanto, que o tombamento de áreas naturais na categoria Conjunto Paisagístico foi pouco utilizado quando comparado ao tombamento arquitetônico. Um exemplo interessante a ser estudado neste campo é o Pico de Itabirito, formação geológica situada na cidade de mesmo nome, distante 55km de Belo Horizonte, considerada marco simbólico da região. Hoje tombado nos níveis municipal e estadual, o Pico carrega uma história de conflitos dentro do IPHAN, marcada pelos processos de tombamento e posterior destombamento, ambos na década de 1960, nos quais a pressão do setor minerário sobre o governo federal foi fundamental para o desfecho da querela. Com o cancelamento definitivo de sua inscrição no Livro do Tombo em 1967, o bem considerado Conjunto Paisagístico acabou tendo grande parte de seu entorno imediato destruído pela mineração ao longo de mais de duas décadas o que modificou profundamente a paisagem local , até que o tombamento estadual, realizado em 1989, reestabeleceu um perímetro teoricamente protegido da atividade minerária. Este episódio se mostra fundamental para refletir sobre as disputas de poder que embasam o campo do patrimônio, as dificuldades que o discurso do desenvolvimento coloca às políticas de conservação patrimonial e ambiental, bem como os pontos frágeis do instrumento do tombamento frente aos interesses econômicos privados e à complexidade de certos bens patrimoniais, que exigem instrumentos mais dinâmicos para sua proteção. Tendo isso em vista, este trabalho apresenta resultados iniciais de uma investigação que procura compreender o desenrolar desse conflito ainda mal estudado da história do IPHAN e sua repercussão na imprensa, analisando os valores, atores sociais e ações políticas em jogo, as resistências apresentadas ao destombamento e contextualizando o entendimento e a aplicação do conceito de paisagem feita à época pelos sujeitos envolvidos. Palavras-chave: Pico de Itabirito; Conjunto Paisagístico; Destombamento; Conflito; Mineração.

Upload: buiphuc

Post on 24-Jan-2019

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

“O PICO DA DISCÓRDIA”:

Conflitos na patrimonialização de um conjunto paisagístico em Itabirito na década de 1960

JUNQUEIRA, THAÍS LANNA

Graduada em História e mestranda em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela UFMG. Rua República Argentina 795/201. 30315490.

[email protected]

RESUMO

A ideia de paisagem cultural é recente nas políticas patrimoniais, tendo sido na década de 1990 que a UNESCO e a Convenção Europeia passaram a adotar a categoria formalmente. No Brasil, as discussões em torno do tema ainda estão começando e a insegurança em se lidar com a chancela de bens classificados como paisagens culturais ainda é grande. Contudo, não se pode negar que a ideia de proteger paisagens excepcionais no Brasil é antiga – ela data da publicação do Decreto-lei nº 25/37, que estabeleceu o instituto do tombamento no país, criando, dentre outros, o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Ao analisar a história de atuação do IPHAN, percebe-se, no entanto, que o tombamento de áreas naturais na categoria Conjunto Paisagístico foi pouco utilizado quando comparado ao tombamento arquitetônico. Um exemplo interessante a ser estudado neste campo é o Pico de Itabirito, formação geológica situada na cidade de mesmo nome, distante 55km de Belo Horizonte, considerada marco simbólico da região. Hoje tombado nos níveis municipal e estadual, o Pico carrega uma história de conflitos dentro do IPHAN, marcada pelos processos de tombamento e posterior destombamento, ambos na década de 1960, nos quais a pressão do setor minerário sobre o governo federal foi fundamental para o desfecho da querela. Com o cancelamento definitivo de sua inscrição no Livro do Tombo em 1967, o bem considerado Conjunto Paisagístico acabou tendo grande parte de seu entorno imediato destruído pela mineração ao longo de mais de duas décadas – o que modificou profundamente a paisagem local –, até que o tombamento estadual, realizado em 1989, reestabeleceu um perímetro teoricamente protegido da atividade minerária. Este episódio se mostra fundamental para refletir sobre as disputas de poder que embasam o campo do patrimônio, as dificuldades que o discurso do desenvolvimento coloca às políticas de conservação patrimonial e ambiental, bem como os pontos frágeis do instrumento do tombamento frente aos interesses econômicos privados e à complexidade de certos bens patrimoniais, que exigem instrumentos mais dinâmicos para sua proteção. Tendo isso em vista, este trabalho apresenta resultados iniciais de uma investigação que procura compreender o desenrolar desse conflito ainda mal estudado da história do IPHAN e sua repercussão na imprensa, analisando os valores, atores sociais e ações políticas em jogo, as resistências apresentadas ao destombamento e contextualizando o entendimento e a aplicação do conceito de paisagem feita à época pelos sujeitos envolvidos.

Palavras-chave: Pico de Itabirito; Conjunto Paisagístico; Destombamento; Conflito; Mineração.

Page 2: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Introdução

Em julho de 2016, a Pampulha, em Belo Horizonte, foi declarada Paisagem Cultural do

Patrimônio Moderno pela UNESCO.1 Muitos brasileiros talvez não entendam o peso de tal

reconhecimento, e outros sequer compreendam o significado da expressão paisagem

cultural, tampouco as formas de se preservá-la. Isso porque esta é uma categoria

relativamente recente nas políticas patrimoniais, tendo sido aceita profissionalmente nos

círculos da preservação somente na década de 1990 – apesar de ter sido formulada já na

década de 1920, no âmbito da Geografia Cultural. (FOWLER, 2003).

A UNESCO passou a registrar bens do patrimônio mundial na categoria Paisagem Cultural a

partir de 1992 e, desde então, vem incentivando seus Estados-membros a criarem

legislações, políticas e mecanismos de proteção de paisagens culturais em seus territórios.

Em 2009, o Brasil, por meio da Portaria nº 127, regulamentou a Chancela de Paisagens

Culturais, criando, dessa forma, um novo instrumento de proteção, ainda pouco utilizado e

mal compreendido pelos técnicos e pela própria população. Em 2012, nosso país teve “a

primeira área urbana do mundo a receber [da UNESCO] a chancela de paisagem cultural”:

(IPHAN, [201-]) a cidade do Rio de Janeiro – a qual veio se somar, agora, o Conjunto

Moderno da Pampulha. Nota-se, portanto, que este é um instrumento recente, ainda pouco

estudado e que precisa ser melhor compreendido para, assim, ser aplicado de forma mais

eficaz.

Mas o que significa, afinal, o termo paisagem cultural? Para responder a essa pergunta é

possível afirmar, simplesmente, a partir de um compilado de autores que tratam sobre este

tema, que o termo se refere a porções do território que foram agenciados de forma singular

pela ação humana, criando, assim, paisagens onde as interações entre a natureza e a

cultura são fundamentais para a sua conformação, constituindo-se, dessa forma, como

testemunhos da relação do homem com seu meio natural. Contudo, parece ser importante

dizer mais sobre o assunto, propondo outras perguntas que podem ampliar nosso olhar, ao

voltarem-se para as origens do termo central – a paisagem – e auxiliarem, assim, no

entendimento sobre sua aplicação nas políticas do patrimônio: o que é a paisagem e o que

significa dizer que ela é cultural? Qual a sua relação com a natureza e a cultura? Como a

ideia da paisagem é trabalhada na categoria Conjunto Paisagístico, estabelecida, no Brasil,

pelo Decreto-Lei nº 25/37? Como e por que paisagens são alvos de patrimonialização?

Quais valores estão envolvidos neste processo e quais conflitos podem daí surgir?

Com o intuito de registrar algumas reflexões sobre estes vários questionamentos, serão

abordadas, neste trabalho, considerações de uma pesquisa, ainda em fase inicial, sobre um

1 Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.

Page 3: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

curioso episódio, ainda pouco conhecido, envolvendo uma paisagem patrimonializada na

história do IPHAN2: o conflito do tombamento e posterior destombamento do Pico de

Itabirito. Para tanto, a análise será precedida de algumas observações sobre paisagem,

bens naturais e patrimônio, e como isso vem sendo tratado pelo IPHAN ao longo de sua

atuação.

Paisagem, natureza e cultura

O termo paisagem não pertence exclusivamente a um vocabulário científico ou técnico, mas

faz parte no senso comum – todos falam de paisagem e entendem algo sobre o que ela

seja. Talvez por isso é tão difícil definir com clareza este conceito, abrangente e impreciso,

cujo significado está comumente atrelado a noções visuais e estéticas, associado à ideia de

“formas visíveis na superfície da Terra” (CABRAL, 2000, p. 35).

Vários campos do conhecimento tratam da paisagem, com sentidos os mais variados e,

dentro de cada um deles, existem abordagens distintas de acordo com as diferentes

correntes de pensamento. A geografia é a disciplina que tem utilizado o termo com mais

frequência, sobretudo para incorporar a dimensão cultural em seus trabalhos, sendo os

geógrafos aqueles que mais se dedicaram a formular teorias sobre a paisagem como um

conceito científico e a definir metodologias para empreender estudos sobre ela. (RIBEIRO,

2007)

Dentro da pesquisa geográfica, duas abordagens se destacam. A primeira é a da Geografia

Cultural, subcampo da disciplina iniciado pelos alemães Otto Schlütter e Siegfried Passarge,

no final do século XIX, e consolidado por Carl Sauer, nos EUA, na década de 1920. Sua

proposta é estudar a configuração do ambiente para além dos processos naturais que o

conformam, descrevendo e analisando as partes componentes da paisagem, as formas

como elas se agrupam e como a atividade do homem ajuda a transformar uma paisagem

natural naquilo que se denomina “paisagem cultural” (Kulturlandschaft). Sauer criou o

método de análise morfológica da paisagem, o qual considera esta uma estrutura orgânica

de unidades componentes que podem ser compreendidas em sua evolução ao longo do

tempo. Para ele, a paisagem é definida como a “área construída por uma associação distinta

de formas, tanto naturais como culturais” (RIBEIRO, 2007, p. 19), ou seja, o que diferencia a

paisagem cultural da natural é o trabalho de transformação empreendido pelo homem sobre

ela.

2 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Neste trabalho, será utilizada sempre a sigla IPHAN para fazer referência ao Instituto que, desde sua criação até hoje, já teve outras denominações, tais como SPHAN ou DPHAN.

Page 4: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

A segunda abordagem, que se auto intitula Nova Geografia Cultural, surgiu nos anos 1980,

herdeira da corrente humanista da Geografia, que, no final dos anos 1960, propunha a

incorporação do estudo da subjetividade das interações do homem com o ambiente nas

pesquisas geográficas. A Nova Geografia Cultural se opõe à primeira abordagem

justamente por não se restringir ao estudo dos aspectos visíveis da paisagem – modelo

proposto por Sauer – e, portanto, considerar sua dimensão simbólica tão importante quanto

seus aspectos materiais. A atenção, aqui, é deslocada do objeto externo – o que se vê –

para o sujeito e o processo de sua interação com o meio – quem vê e de que forma o faz.

(CABRAL, 2000). Afinal, para existir, “a paisagem necessita de um sujeito que a signifique e

dê valor através de um olhar” (PAES-LUCHIARI, 2007, p. 30). Sendo assim, ela passa a ser

estudada como construção social, fruto de um processo de organização mental e atribuição

de sentido que será guiado pelos sentimentos, ideias e valores que influenciam a

percepção.

Seguindo esta linha de pensamento, Cauquelin (2003) afirma que a construção da paisagem

é um processo mental que tem sua origem datada por volta do século XVI, com o

Romantismo, momento a partir do qual as pinturas e descrições de paisagens tornaram

possível sua percepção pelas manifestações sensíveis. Para ela, a paisagem é uma forma

aprendida, porém inconsciente, de enxergar o meio natural, é uma “[...] forma simbólica que

envolve toda tentativa de apresentar a natureza à sensibilidade”. (CAUQUELIN, 2003, p.

26). A relação de identidade que existe entre os dois conceitos, dessa forma, é forjada. É

nesse sentido, portanto, que a autora afirma que a paisagem é inventada.

Sendo assim, coloca-se o questionamento: se toda paisagem é inventada, existe paisagem

que não seja cultural? Pensar em uma resposta nos faz avaliar, necessariamente, até que

ponto é válida a distinção entre natureza e cultura, na medida em que a natureza, percebida

como paisagem, é cultural e cientificamente produzida. Acredita-se que a essa reflexão

venha se somar uma outra, igualmente importante, que diz respeito aos processos de

valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há

uma divisão estabelecida entre o patrimônio cultural e o natural, como se eles pertencessem

a campos discursivos (GONÇALVES, 2012) diferentes. No entanto, tal distinção não se

sustenta, pois se a patrimonialização é uma ação política e cultural que envolve “[...]

saberes, interesses e valores advindos das esferas política, econômica e sociocultural”

(PAES-LUCHIARI, 2007, p. 26), todo bem patrimonial é cultural, independentemente de sua

lógica própria. Por esta razão, é mais interessante deslocar o olhar do objeto

patrimonializado para os processos de patrimonialização (GONÇALVES, 2015), com todos

os valores, atores, discursos e interesses que neles estão contidos.

Page 5: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Paisagem e patrimônio

A paisagem, como as políticas de patrimônio procuram trata-la atualmente, além de

expressar a relação entre o cultural e o natural, o material e o imaterial, abrange uma série

de tipos de áreas: conjuntos urbanos e arquitetônicos, jardins, distritos industriais, parques

naturais, campos de plantação, dentre outros. Nota-se, portanto, que nem sempre ela está

associada a algum espaço natural, como serras, rios, florestas, formações geológicas.

A valorização de áreas naturais como patrimônio, por sua vez, tem sido comumente

associada, desde o princípio, a alguma forma de valor paisagístico e, secundariamente, ao

valor científico. Algumas leis de proteção da natureza, na França e na Suíça, datam do

século XIX, e deixam clara a importância de se preservar certas áreas naturais por elas

serem consideradas paisagens notáveis, de extraordinária beleza ou condição de exceção.

Da mesma forma, o chamado paradigma de Yellowstone – primeiro parque nacional do

mundo, nos EUA – definiu como um importante argumento para a proteção desse tipo de

área os seus aspectos estéticos, sendo, até hoje, um modelo de proteção aplicado em

várias partes do mundo. (SCIFONI; RIBEIRO, 2006).

Apesar dessas inciativas, foi somente a partir da década de 1960 que as áreas naturais

passaram a ser de fato incorporadas nas políticas de proteção do patrimônio cultural, tendo

sido a Conferência do Patrimônio Mundial da UNESCO, de 1972, o momento definitivo

desse processo. Reconhecendo os riscos oferecidos pela industrialização e urbanização do

mundo moderno às áreas naturais do planeta, o órgão reconheceu oficialmente a

importância de se proteger o patrimônio natural, porém o separou do cultural, sendo aquele

representado por monumentos naturais, formações físicas com valor estético ou científico e

lugares de beleza natural notável. Percebe-se, portanto, como o valor paisagístico é central

na trajetória de iniciativas pela preservação da natureza. No entanto, é preciso lembrar que

o que se entende por este valor vem passando por mudanças desde então: se antes

denotava somente excepcionalidade e contemplação da beleza cênica, hoje abrange

significados como afetividade, importância histórica, econômica e biológica, dentre outros.

No Brasil, o interesse pelo tombamento de bens de natureza paisagística possui uma

história semelhante. Com o Decreto-lei nº 25/1937 – que já apontava para uma certa

concepção integrada de patrimônio cultural e natural (PAES-LUCHIARI, 2007), ao equiparar

os bens históricos e artísticos aos monumentos naturais, sítios e paisagens de feição

notável – foi criado o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o qual, no

entanto, foi negligenciado por muito tempo. Segundo Ribeiro (2007), houve uma

hierarquização dos livros do tombo, sendo o paisagístico usado para bens que não

Page 6: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

alcançavam relevância suficiente para serem inscritos nos demais livros. Dessa forma, entre

1938 e 1946, apenas 1,44% dos tombamentos era de bens paisagísticos.

Talvez pelo fato das primeiras legislações ambientais brasileiras – como os Códigos de

Minas, Águas e Florestas – terem sido criadas externamente ao IPHAN, na mesma época

das leis de preservação do patrimônio cultural, a proteção de áreas naturais nunca tenha

encontrado forte eco nesta instituição. Nos poucos tombamentos de conjuntos paisagísticos

que realizou ao longo do século XX, o IPHAN explorou pouco o dinamismo que a categoria

traz, tendo tratado a paisagem, na maioria das vezes, como ambiência, panorama ou

moldura de bens arquitetônicos, privilegiando, assim, o valor estético e protegendo bens

mais diretamente ligados ao paisagismo, ou seja, aqueles conformados materialmente pelo

homem. Dessa forma, até 1960, o padrão de tombamento de bens paisagísticos, de acordo

com o seu valor, era assim definido: jardins, conjuntos, monumentos ligados a aspectos da

natureza que o circundavam e áreas cujo panorama fosse importante para a população no

entorno. (RIBEIRO, 2007).

Dentro desta última categoria está o caso da Serra do Curral, em Belo Horizonte, analisado

por Ribeiro no livro “Paisagem Cultural e Patrimônio” (2007). A Serra foi tombada no início

da década de 1960 pelo valor de sua vista e por ser considerada um símbolo da cidade.

Contudo, ao longo do processo, embates surgiram, opondo os interesses dos que a queriam

preservada e os interesses da mineradora estrangeira que possuía concessão de

exploração da área, o que acabou modificando a extensão original da proposta de

tombamento para uma área reduzida.

Conforme fica claro no caso apresentado, a paisagem não é somente uma forma de ver o

mundo ou uma imagem de contemplação, mas também um campo de significações e

conflitos, estabelecidos pelo encontro de diferentes sujeitos que se apropriam dela de

formas distintas, cada um com suas intenções e pontos de vista. Como afirma Cabral (2000,

p. 42-43), “[...] a paisagem também se apresenta como campo de sobreposição de

interesses, e, portanto, [é] reveladora de tensões e conflitos socioambientais que são

constituintes dos próprios atores”. Quando patrimonializadas, as paisagens envolvem

conflitos ainda mais evidentes, pois o campo do patrimônio também se constitui como um

“[...] campo de confronto entre interesses e aspirações conflitantes”, uma vez que é formado

por “complexas questões que envolvem emoções, afetos, interesses os mais variados,

preferências, gostos e projetos heterogêneos e contraditórios”. (VELHO, 2006, p. 245).

Os conflitos da paisagem normalmente estão ligados a interesses econômicos, que acabam

estabelecendo com os órgãos de proteção uma disputa pela destruição/preservação destes

locais. Um caso bastante emblemático dessa situação é o do Pico de Itabirito, que,

Page 7: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

curiosamente, não é sequer citado por Ribeiro em sua obra acima mencionada. Além disso,

não há, até hoje, nenhum estudo aprofundado sobre o episódio, que é o único caso de

destombamento de um conjunto paisagístico na história do IPHAN.

Tombamento e destombamento do Pico de Itabirito

O Pico de Itabirito, (Figura 1) situado no município de mesmo nome, na Serra das Serrinhas,

é um ressalto topográfico marcante no relevo, com altitude superior a 1560 metros, formado

por minério de ferro compacto e, portanto, símbolo da riqueza mineral do Quadrilátero

Ferrífero. (ROSIÉRE et al., 2009). Sua importância histórica advém do papel de referencial

geográfico que teve, nos séculos XVII e XVIII, para os bandeirantes e tropeiros que

desbravavam o território e transitavam entre as vilas e arraiais que então surgiam. Por esses

motivos, o Pico é considerado um marco fundamental da ocupação histórica do território

mineiro.

Figura 1: Pico de Itabirito. Fonte: Coleção Digital de Itabirito.

Com um perfil inconfundível, ele sempre chamou a atenção de cartógrafos, naturalistas e

viajantes, que o retrataram e descreveram em diversas obras. Dentre eles, estão José

Códea, 3 Marianne North (Figuras 2 e 3, respectivamente) e o Barão de Eschwege, cientista

e geólogo alemão responsável por definir o termo que, atualmente, dá nome ao Pico. Sua

alcunha original, contudo, era Pico de Itaubira, cujo significado no idioma dos habitantes

nativos da região é Moça de Pedra. Ademais, o Pico já se tornou tema de poesias, canções

e obras memorialistas locais. Percebe-se, dessa forma, que além de ser um marco histórico

3 Pseudônimo do artista que ilustrou várias cenas da viagem do imperador Dom Pedro II a Minas Gerais, em 1881, para publicação na Revista Illustrada, de propriedade de Ângelo Agostini.

Page 8: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

e geográfico importante, o Pico está presente no imaginário social da população que viveu

ou vive em seu entorno, havendo, inclusive, lendas e histórias populares sobre ele.

Figura 2: Retrato do Pico feito por José Códea para publicação na Revista Illustrada, em 1881. Fonte: Google Imagens.

Figura 3: Pintura do Pico feita pela artista britânica Marianne North, na segunda metade do século XIX. Fonte: Google Imagens.

Sua importância econômica remonta ao século XVIII, com a exploração de ouro e a

instalação de fábricas de ferro de pequeno porte em seu entorno. Foi no século XIX,

contudo, que a extração aurífera teve seu apogeu e, também, ocaso: a Mina de Cata

Branca, adquirida na década de 1830 pela empresa de capital britânico The Brazilian

Company Ltda, que explorava ouro em profundidade com grande parte de mão-de-obra

escrava, teve seu auge de produtividade entre 1840 e 1844, ano em que desabou, deixando

vários mortos e constituindo-se como um dos piores acidentes de minas no Brasil.

(HIRASHIMA, 2009). A mina foi, então, fechada e vendida, juntamente com a área do Pico,

para a St. John d’El Rey Mining Company, que iniciou a exploração industrial de minério de

Page 9: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

ferro na mina do Pico na década de 1940, época da criação da companhia Siderúrgica

Nacional. A partir de 1943, a mina foi arrendada e explorada pela Sociedade Indústria e

Comércio de Minério Ltda, posteriormente renomeada ICOMINAS e, depois, reestruturada

como Minerações Brasileiras Reunidas – MBR pela CAEMI em associação à Hanna Mining

Co., dos EUA. (ROSIÉRE et al., 2009).

Conforme exposto anteriormente, a paisagem configura-se como um campo de conflitos,

pois sobre ela estão postos diferentes interesses e aspirações que, por vezes, podem ser

antagônicos. Foi justamente este cenário que começou a delinear-se quando, na década de

1960, o IPHAN oficializou o interesse em tornar o Pico de Itabirito um bem protegido por

meio do tombamento, para evitar a ameaça de sua destruição colocada pela atividade

mineradora. Assim, o Conselho Consultivo do IPHAN registrou-o no Livro do Tombo

Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 1962, com o nome de Conjunto Paisagístico do

Pico de Itabirito. A discussão sobre o tombamento, contudo, teve início ainda em 1960,

proposta pelo conselheiro Miran Latif ao diretor do IPHAN, Rodrigo Melo Franco de

Andrade. Assim que notificadas, as mineradoras St. John, Cia de Mineração Novalimense e

ICOMINAS, respectivamente proprietária dos direitos superficiários do bem imóvel,

concessionária do direito de lavra e arrendatária do direito de exploração, entraram com

pedido de impugnação do ato, o que não foi acatado pelo Conselho. Nessa mesma época

iniciaram-se, também, as disputas simbólicas, registradas pela imprensa, entorno do que

seria o verdadeiro garantidor do bem coletivo: a preservação do monumento natural – forma

como as notícias de jornais, cartas de técnicos e demais documentos constantes do

processo de tombamento passaram a classificar o Pico – ou a exploração de sua riqueza

mineral.

No processo de tombamento, (IPHAN, [s.d.]) as justificativas apresentadas para a medida

eram a singularidade do Pico entre os monumentos naturais do Brasil, sua excepcional

beleza paisagística, sua potencialidade turística e sua importância como marco

representativo das jornadas do desbravamento. Ainda que Latif tenha exposto, na proposta

de tombamento, o significado do Pico como “marco expressivo da era siderúrgica” em que o

país ingressava naquele momento e como “símbolo da nossa pujança em minério de ferro”,

no registro do Livro do Tombo estes argumentos não foram citados, tampouco outros que se

poderia chamar de científicos, como a importância do Pico para a história da mineralogia

brasileira. A restrição da justificativa a valores estéticos e, em segundo plano, históricos,

acabou enfraquecendo a legitimidade do tombamento frente à opinião pública e, também, ao

próprio governo.

Page 10: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Os patrimônios, é importante frisar, não são construídos com base em consensos; muito

pelo contrário, é bastante comum grupos se oporem à patrimonialização de algo, sobretudo

quando isto ocorre sob a forma do tombamento, porque tombar é, além de proteger

juridicamente um bem da destruição ou desaparecimento, limitar o direito de propriedade,

restringindo a utilização do bem. Além disso, como bem observa Paes-Luchiari (2007, p.

33):

apesar da legislação e dos instrumentos de preservação, até a década de 80 a dinâmica da modernização era mais atuante pelo território do que as intervenções para preservação, sobretudo nas regiões onde o crescente processo de urbanização se associava à positividade do desenvolvimento

econômico.

Assim, as mineradoras, se opondo ao tombamento, interpuseram recurso para

cancelamento do ato junto ao Presidente da República, João Goulart. A alegação era que a

decisão do Conselho era incompatível com a exploração do minério no Pico e, portanto,

feria gravemente o direito de concessão de lavra, que seria, sob seu ponto de vista, anterior

e hierarquicamente superior ao ato administrativo do tombamento. É importante mencionar

que o perímetro de proteção delimitado pelo IPHAN não abrangia toda a área sob

concessão, mas somente o cume do Pico até um limite de 1520 metros, a partir de onde

poderia ser extraído minério de “pé de escarpa”, desde que a atividade não comprometesse

as bases do monumento. As mineradoras, contudo, pareciam não se satisfazer com a

decisão, demonstrando, na extensa documentação que compõe o processo analisado, fazer

questão de manter seu direito de minerar o Pico. Caso fosse mantido o tombamento pela

Presidência da República, elas exigiam, então, que fosse feita a desapropriação da área

com justa indenização, para que não perdessem, assim, os lucros relativos à exploração do

minério ali contido.

A partir de então, aprofundou-se uma batalha jurídica e midiática em torno do assunto, que

envolveu vários órgãos públicos, ministérios e chegou inclusive a ser debatido no Congresso

e no Senado. O drama do Pico de Itabirito representou muito bem o pensamento de Rodrigo

Melo Franco de Andrade, presidente do IPHAN, que “[...] acreditava ser o conflito entre

interesses públicos uma das questões mais importantes na política do patrimônio (...) ainda

que o chamado interesse público [se encontrasse] ligado ou misturado a interesses

privados”. (CHACHAM, 2014, n.p.). Ao comentar sobre o papel do Estado frente a tais

conflitos do patrimônio, Velho (2006, p. 246) afirma que ele

[...] oscila em um jogo de interesses, em seus diversos níveis, entre atender

esses valores e essas expectativas preservacionistas e ceder aos

interesses e às motivações de empresas e indivíduos que colocam o

mercado como referência básica, associado aos já citados direito de

propriedade e liberdade individual.

Page 11: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

No caso aqui analisado, não se deve esquecer, ainda, o contexto histórico em que o drama

se desenvolveu. O tombamento do Pico foi registrado em 1962, quando Jango ainda

governava, porém, uma enorme instabilidade política já assombrava o país. Como lembra

Chacham (2014, n.p.), “quando finalmente o SPHAN começa a voltar-se para a proteção,

com os instrumentos disponíveis, para paisagens naturais como as serras, estamos em

vésperas de um golpe de estado”. Assim, em abril de 1964, deu-se início a uma ditadura

civil-militar no país, o que garantiu espaço para práticas autoritárias. Isso significou um sinal

verde para o avanço dos interesses das mineradoras estrangeiras, que estavam em

consonância com a política econômica e as ideias do que seria o “verdadeiro nacionalismo”

reforçadas a partir de então.

Dessa maneira, em junho de 1965 o tombamento foi cancelado por ato presidencial, tendo

como fundamentação as conclusões do parecer do Consultor Geral de República, Adroaldo

Mesquita da Costa, que endossou o condicionamento da proteção à indenização a ser paga

às mineradoras. Para realizar o cancelamento, o Presidente Castelo Branco recorreu a uma

legislação pouco comentada no campo do patrimônio: o Decreto-lei nº 3866 (BRASIL, 1941),

de 29 de novembro de 1941, comumente denominado de lei do destombamento, que tem

como como redação:

Artigo único – O presidente da República, atendendo a motivos de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto por qualquer legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, aos Estados, aos Municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, feito no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de acordo com o decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.

Segundo a interpretação da lei, os “motivos de interesse público” que podem embasar atos

de destombamento são o desaparecimento do valor, o perecimento da coisa tombada ou a

necessidade de atendimento a interesse público superveniente. (TELLES; COSTA; SALES,

2014). No caso em questão, bem como na maioria dos outros 13 casos de destombamento

realizados a nível federal desde 1941, foi esta última razão que motivou a deflagração dos

processos de despatrimonialização dos bens.

Isso instiga uma importante reflexão que, apesar de pertencer ao campo jurídico, não deve

deixar de ser feita por todos os profissionais que pesquisam ou atuam no campo do

patrimônio cultural, qual seja, os fatores objetivos e subjetivos envolvidos na hierarquização

de interesses públicos. Bem se sabe que direito não é ciência exata, tampouco a política.

Sendo assim, é importante lembrar que as inúmeras medidas e decisões já tomadas por

autoridades, na história do país, em prol do tão perseguido “desenvolvimento” são sempre

passíveis de questionamento. Tal noção, apesar de se constituir como um conceito de difícil

definição, é comumente equiparada ao crescimento econômico e está associada,

Page 12: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

historicamente, ao discurso do progresso. Como afirma Sanches (2012), as políticas

governamentais indutoras do desenvolvimento, adotadas no país desde a Era Vargas, se

baseiam em planos econômicos estatais apoiados na industrialização como caminho para a

superação do atraso e da pobreza. Nesses planos, a mineração sempre ocupou um lugar de

destaque, devido, principalmente, a outro discurso construído: o da “vocação mineradora”,

sobretudo de algumas regiões de Minas Gerais. Dessa maneira, a autora adequadamente

coloca a seguinte provocação: “É fácil falar de um coletivo genericamente denominado

‘interesses nacionais’, mas estes correspondem aos interesses de quem?” (SANCHES,

2012, p. 87).

Ainda sobre o Decreto-lei nº 3866, Telles, Costa e Sales lembram que esse tipo de

legislação é uma medida típica de regimes de exceção, por se constituir como ato unilateral

e antidemocrático, já que não é discutido previamente com os representantes do povo. O

autoritarismo inerente à “lei do destombamento” já havia sido notado pelo próprio presidente

do IPHAN na época, que deixou registrado que a medida poderia ser aplicada “por simples

despacho do presidente da República”. (TELLES; COSTA; SALES, 2014, p. 4). No caso do

destombamento do Pico, portanto, é possível afirmar que o contexto de ditadura civil-militar

recém instaurada no país tenha favorecido a adoção da medida, a despeito das críticas e

protestos de boa parte da opinião pública. Além disso, não se pode deixar de notar que as

chances de sucesso dos interesses preservacionistas neste contexto eram baixas, uma vez

que, como afirma Sanches (2012, p. 76), a ditadura militar foi o tempo áureo da mineração,

“[...] tanto do ponto de vista burocrático de implementação de leis e códigos quanto de

concessões e permissões”.

Pela análise do processo referente ao caso do Pico de Itabirito, é possível perceber que o

ato de Castelo Branco gerou revolta na população local. Diante da ameaça da perda do

maior símbolo da cidade, muitas vozes se levantaram a favor da manutenção do

tombamento. As fontes indicam o envolvimento, em Itabirito, de associações populares

locais, da Câmara Municipal, de figuras políticas importantes, como o ex-prefeito Dr. Alberto

Woods Soares, do então prefeito Gastão Melillo, bem como de itabiritenses em geral, que se

reuniam para fazer caminhadas ao Pico em defesa do monumento. Tal reação deve ser

compreendida à luz da observação de Velho (2006, p. 244-245), quando afirma, sobre os

conflitos que permeiam os patrimônios culturais, que “a destruição de referências

monumentos, casas, prédios, ruas, cinemas, igrejas, entre outros, tem consequências nos

mapas emocionais e cognitivos dos habitantes de diferentes tipos de localidades”.

A questão, no entanto, não se restringiu ao município de Itabirito: ela ganhou abrangência

nacional. Muitas outras figuras se envolveram em ambos os lados do conflito, dando

Page 13: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

pareceres, opiniões e publicando matérias e entrevistas em jornais de circulação nacional.

Na documentação analisada, constata-se a participação de historiadores, juristas,

engenheiros, técnicos estatais, diretores de museus, ministros, membros do Conselho

Consultivo do IPHAN, funcionários das mineradoras, membros do Congresso Nacional,

clubes excursionistas, população de cidades circunvizinhas, professores universitários e

intelectuais. Dentre estes, destaca-se a atuação do poeta Carlos Drummond de Andrade e

do cronista Rubem Braga, ambos defensores do tombamento do Pico, que expressaram, em

suas colunas jornalísticas, o profundo desapontamento com a possível demolição do

monólito e pressionaram, por meio de seus escritos, a opinião pública e o próprio Presidente

da República pela decisão desfavorável às mineradoras.

Na imprensa, diversos argumentos e justificativas eram utilizados para, de um lado,

defender o tombamento e, de outro, atacá-lo. Os que queriam ver o Pico de pé recorriam, na

maioria das vezes, à ideia da paisagem afetiva de significação única que o Pico conformava

para os itabiritenses. Também se falava, porém com menor frequência, na importância da

preservação de tamanha riqueza mineralógica como forma de se guardar, para as próximas

gerações, uma imagem da história de Minas Gerais. Em alguns jornais, chegou-se a

publicar, na tentativa desesperada de barrar o destombamento, que o Pico era um marco

referencial para a navegação aérea e que sua destruição poderia representar um enorme

fator de insegurança para os pilotos que sobrevoavam a região. Algumas pessoas, ainda,

eram contra o destombamento por considerarem errado, do ponto de vista do interesse

nacional, deixar destruir o Pico para enriquecer alguma empresa estrangeira. Em suma,

vários discursos foram construídos e reforçados com o objetivo de sensibilizar a opinião

pública e fortalecer o argumento jurídico em prol do Pico. Contudo, foi o valor paisagístico,

ligado à memória coletiva e à subjetividade da paisagem, o que mais vezes embasou as

defesas públicas da preservação do Pico de Itabirito.

Foi justamente este argumento que, do outro lado do conflito, foi o mais combatido e, de

certa forma, até menosprezado com jocosidade. Os defensores do progresso da nação por

meio do crescimento econômico a qualquer custo afirmavam não poder, o governo federal,

se submeter à serventia da mera fruição estética, dizendo que contemplar a visão do Pico

não traria mais recursos para o desenvolvimento do país. Falavam em autoritarismo por

parte do IPHAN, que logo após o ato de destombamento, publicado em junho de 1965,

entrou com pedido de reconsideração junto à presidência da República – o que foi acatado e

acabou suspendendo a medida até 1967, quando, no final de seu governo, Castelo Branco

concedeu, finalmente, a decisão em favor das mineradoras.

Page 14: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

É interessante notar como os “[...] trabalhos de esquecimento e destruição apresentam-se

como elementos positivos e decisivos na produção da memória”. (GONÇALVES, 2015, p.

224). O episódio de destombamento do Pico, que significava, naquele contexto, a garantia

de sua completa desaparição – uma vez que o interesse manifesto das mineradoras era

dinamitá-lo, literalmente –, estimulou sentimentos e desejos em relação à paisagem e à sua

preservação. Mais além disso, conforme observou Clímaco (2011), o drama do

destombamento foi fundamental na construção do próprio discurso de preservação

patrimonial em Itabirito, pois a partir daí começou a se pensar no perigo que o crescimento

econômico poderia trazer, não só para o bem natural, mas também para o conjunto

arquitetônico colonial ainda remanescente no município.

Após o ato definitivo de cancelamento do tombamento, o conflito, ao contrário do que se

poderia pensar, não findou. A documentação constante do processo do IPHAN comprova

que o assunto se estendeu pelas décadas de 1970 e 1980, com novas tentativas de

tombamento do bem e algumas notícias sendo publicadas na imprensa a respeito da

destruição que se estava realizando no entorno do Pico. Essa manutenção do conflito ao

longo dos anos foi essencial, ao que parece, para que, com a redemocratização do país, o

“retombamento” do Pico fosse garantido pela Constituição do Estado de Minas Gerais, em

1989. Alguns anos mais tarde, em 1991, realizou-se o tombamento municipal por ato

legislativo. Desde então, não se encontraram indícios de que o tombamento federal possa

voltar a ocorrer, contudo, é possível afirmar que a desagradável experiência do IPHAN com

este episódio serviu para incentivar os tombamentos de outras paisagens excepcionais,

ocorridos no final da década de 1960, como o de alguns morros do Rio de Janeiro. O

motivo, segundo Ribeiro (2007), era a ameaça que a pressão do mercado imobiliário

representava para as áreas naturais da capital fluminense. Teria o drama do Pico se

transformado, de certa forma, em um trauma da paisagem?

Conclusão

Hoje, após tantos anos de exploração de minério de ferro – uma das atividades que mais

impacta as paisagens, degrada os recursos naturais e desestabiliza socialmente as

comunidades –, o Pico apresenta-se extremamente desfigurado. Ele não chegou a ser

dinamitado, talvez porque, como já afirmava o conselheiro Latif (1963) na década de 1960,

as dificuldades técnicas envolvidas na sua exploração não seriam recompensadas pelos

lucros que seu minério poderia trazer. A lavra a céu aberto, que, na década de 1990, atingiu

a quantia de 12 milhões de toneladas/ano de produção para exportação, ao mesmo tempo

em que trouxe crescimento populacional, urbano e de renda para Itabirito, deixou marcas

Page 15: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

profundas e irreversíveis na paisagem, afetando diretamente os recursos naturais e as

ligações afetivas da população com o símbolo maior de sua cidade. (Figura 4). Tendo isso

em vista, algumas tentativas de acordo de recuperação da área vêm sendo feitos por parte

do Ministério Público Estadual com a MBR – hoje controlada pela Vale –, porém é muito

difícil ponderar se essas iniciativas trarão resultado para a efetiva proteção do Pico daqui

para frente.

Figura 4: Cava do Pico de Itabirito. Fonte: Google Imagens.

No município, existe uma demanda de visitação do local, que somente é aberto pela

mineradora ao público no Dia do Pico, comemorado em 15 de novembro. É um tanto bizarro

o fato da empresa, nesta data comemorativa, promover ações de consciência ambiental,

numa tentativa de promover certar distorção da história ao tentar criar uma imagem

“politicamente correta” da empresa. Por isso, é preciso conhecer os conflitos do patrimônio,

saber das experiências falidas de preservação, para se poder, assim, escolher os meios

mais adequados de se proteger o que ainda resta de paisagens como o Pico em nossa

sociedade – que, vale dizer, ainda é regida pelo discurso do desenvolvimento econômico e a

lógica do progresso.

Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941. Dispõe sobre o cancelamento do tombamento de bens do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 ago. 2016.

Page 16: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

CABRAL, Luiz Otávio. A paisagem enquanto fenômeno vivido. Geosul, Florianópolis, v. 15, n. 30, p. 34-45, jul./dez. 2000. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/14252>. Acesso em: 28 jul. 2016.

CAUQUELIN, Anne. Paisagem, retórica e patrimônio. Revista de Urbanismo e Arquitetura. Salvador, v.6 n. 1, p. 24-27, 2003. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/view/3227>. Acesso em: 28 ago. 2016.

CHACHAM, Vera. Longe do Paraíso: disputas pela preservação da paisagem em Minas Gerais. In: COLÓQUIO IBERO-AMERICANO, 3, 2014, Belo Horizonte. Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto. Belo Horizonte: Instituto de Estudos do Desenvolvimento Sustentável, 2014, n.p. Disponível em: <http://www.forumpatrimonio.com.br/paisagem2014/trabalho/138/longe-do-paraiso-disputas-pela-preservacao-da-paisagem-em-minas-gerais>. Acesso em: 28 ago. 2016.

CLÍMACO, Bianca Pataro Dutra. Se essa rua fosse minha: patrimonialização de conjuntos urbanos em Itabirito (MG). 2011. 139 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

FOWLER, Peter J. World Heritage Cultural Landscapes 1992-2002. Paris: UNESCO World Heritage Centre, 2003.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. As transformações do patrimônio: da retórica da perda à reconstrução permanente. In: TAMASO, Izabela Maria; LIMA FILHO, Manuel Ferreira. (Orgs.). Antropologia e Patrimônio Cultural: trajetórias e conceitos. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia, 2012. p. 59-74.

_____. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 28, n. 55, p. 211-228, jan./jun. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eh/v28n55/0103-2186-eh-28-55-0211.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2016.

HIRASHIMA, Hayato. A Mina de Cata Branca. In: LOPES, Myriam Bahia et al. Coleção Digital de Itabirito. Belo Horizonte: IEDS/NEHCIT, 2009, p. 9-13.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Processo 0608-T-60. Arquivo Central do IPHAN – Seção Rio de Janeiro, [s.d.], 343 f.

_____. Paisagem Cultural. [201-]. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/899/>. Acesso em: 28 ago. 2016.

LATIF, Miran. Tombamento do Pico do Itabirito. Revista de Engenharia, Mineração e Metalurgia. Rio de Janeiro, v. XXXVIII, n. 227, p. 209-210, nov. 1963.

PAES-LUCHIARI, Maria Tereza. Turismo e patrimônio cultural no uso do território. In: PAES-LUCHIARI, Maria Tereza; BRUHNS, Heloisa Turini; SERRANO, Célia. (Orgs.). Patrimônio, Natureza e Cultura. Campinas: Ed. Papirus, 2007. p. 25-46.

PIUZANA, Danielle et al. Espaços de minerar e caminhos de abastecer: as paisagens, os lugares e o território do Quadrilátero Ferrífero. TARAIRIÚ – Revista Eletrônica do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB. Campina Grande, ano II, v. 1, n. 02, p. 127-141, mar. 2011. Disponível em: <http://mhn.uepb.edu.br/revista_tarairiu/n2/art9.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2016.

ROSIÈRE, Carlos Alberto et al. Pico de Itabira, MG: marco estrutural, histórico e geográfico do Quadrilátero Ferrífero. In: Winge,M. (Ed.) et al. 2009. Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. Brasília: CPRM, 2009. v. 2. Disponível em: <http://sigep.cprm.gov.br/sitio042/sitio042.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2016.

SANCHES, Rejane Maria da Silva. A Serra do Gandarela. 2012. 168 f. Dissertação (Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável) – Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

Page 17: “O PICO DA DISCÓRDIA” - forumpatrimonio.com.br · 31-07-2016  · valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há Historicamente,

4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

SCIFONI, Simone; RIBEIRO, Wagner Costa. Preservar: por que e para quem? Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 2 n. 2, p. 98-109, 2006. Disponível em: <http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/65>. Acesso em: 28 ago. 2016.

TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio; COSTA, Rodrigo Vieira; SALES, Jessica Fontenele. O Revés da Proteção: apontamentos sobre o instituto do cancelamento de tombamento e suas implicações nas políticas de preservação do patrimônio cultural. V SEMINÁRIO INTERNACIONAL POLÍTICAS CULTURAIS, 2014, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2014, p. 1-14. Disponível em: <http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2014/06/M%C3%A1rio-Ferreira-de-Pragm%C3%A1cio-Telles-et-alli.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2016.

VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana. Rio de Janeiro, v.12, n. 1, p. 237-248, abr. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132006000100009>. Acesso em: 28 ago. 2016.

RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007.