multifuncionalidades da paisagem rural: etnogeografia e...

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 MULTIFUNCIONALIDADES DA PAISAGEM RURAL: etnogeografia e identidade cultural da comunidade quilombola de Alto dos Bois-vale do Jequitinhonha (MG) SILVA, LUDIMILA DE M. R. (1); NASCIMENTO, CLÁUDIO H. (2) DEUS, JOSÉ A. S.(3); NOGUEIRA, MARLY(4) 1.Doutoranda - Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências da UFMG [email protected] 2.Graduando (Geografia) - Instituto de Geociências (IGC/UFMG) [email protected] 3.Docente/Pesquisador Credenciado junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da UFMG/Brasil [email protected] 4.Docente/Pesquisadora do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG/Brasil [email protected] RESUMO A paisagem rural de Alto dos Bois se configura e (re)configura por meio de suas práticas cotidianas que são elementos de seu patrimônio cultural que se concretizam no significado e pertencimento ao lugar, sobretudo na paisagem. É por meio da transmissão dos saberes tradicionais, e, sobretudo, da sua experiência de paisagem, decorrente do diálogo da comunidade com o espaço em que se vive, que as dinâmicas culturais se encontram e se relacionam em constantes processos de transformação. As funcionalidades desta paisagem se constituem como forma de sobrevivência, trabalho e lazer, agregando também, a partir da relação do homem com a terra, práticas e discursos cheios de significados que emergem dessa interação. Nesse sentido, a paisagem ao dialogar com as multifuncionalidades do campo se estrutura a partir de uma complexa matriz cultural, a qual para ser compreendida deve considerar desde a materialidade à imaterialidade dessas funcionalidades do rural. Posto isso, este trabalho tem o objetivo de apresentar uma leitura da matriz cultural da comunidade quilombola de Alto dos Bois, ressaltando os princípios norteadores dessa construção através do cotidiano local. Nessa perspectiva a paisagem se desvela a partir dos saberes, sabores e espacialidades cotidianas e festivas, expressas em suas memórias, fotografias e vivências que emanam de uma ancestralidade (ainda que obscura) de negros, índios e portugueses. Frente a peculiaridade desse lugar, a Etnogeografia e as Etnometodologias permitiram-nos identificar, por meio do estudo das tradições, história e espacialidades coletivas os elementos principais que compõem a multifuncionalidade dessa paisagem rural. Estas, que mantêm vivas as tradições desse lugar, mesmo diante das adversidades oriundas, sobretudo, do processo de êxodo rural e industrialização da cultura de massa que configuram o contexto atual. Palavras-chave: Paisagem Rural; Multifuncionalidade; Etnogeografia; Alto dos Bois

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

MULTIFUNCIONALIDADES DA PAISAGEM RURAL: etnogeografia e identidade cultural da comunidade quilombola de Alto dos Bois-vale

do Jequitinhonha (MG)

SILVA, LUDIMILA DE M. R. (1); NASCIMENTO, CLÁUDIO H. (2) DEUS, JOSÉ A. S.(3); NOGUEIRA, MARLY(4)

1.Doutoranda - Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências da UFMG

[email protected]

2.Graduando (Geografia) - Instituto de Geociências (IGC/UFMG)

[email protected]

3.Docente/Pesquisador Credenciado junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto

de Geociências da UFMG/Brasil [email protected]

4.Docente/Pesquisadora do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG/Brasil

[email protected]

RESUMO A paisagem rural de Alto dos Bois se configura e (re)configura por meio de suas práticas cotidianas que são elementos de seu patrimônio cultural que se concretizam no significado e pertencimento ao lugar, sobretudo na paisagem. É por meio da transmissão dos saberes tradicionais, e, sobretudo, da sua experiência de paisagem, decorrente do diálogo da comunidade com o espaço em que se vive, que as dinâmicas culturais se encontram e se relacionam em constantes processos de transformação. As funcionalidades desta paisagem se constituem como forma de sobrevivência, trabalho e lazer, agregando também, a partir da relação do homem com a terra, práticas e discursos cheios de significados que emergem dessa interação. Nesse sentido, a paisagem ao dialogar com as multifuncionalidades do campo se estrutura a partir de uma complexa matriz cultural, a qual para ser compreendida deve considerar desde a materialidade à imaterialidade dessas funcionalidades do rural. Posto isso, este trabalho tem o objetivo de apresentar uma leitura da matriz cultural da comunidade quilombola de Alto dos Bois, ressaltando os princípios norteadores dessa construção através do cotidiano local. Nessa perspectiva a paisagem se desvela a partir dos saberes, sabores e espacialidades cotidianas e festivas, expressas em suas memórias, fotografias e vivências que emanam de uma ancestralidade (ainda que obscura) de negros, índios e portugueses. Frente a peculiaridade desse lugar, a Etnogeografia e as Etnometodologias permitiram-nos identificar, por meio do estudo das tradições, história e espacialidades coletivas os elementos principais que compõem a multifuncionalidade dessa paisagem rural. Estas, que mantêm vivas as tradições desse lugar, mesmo diante das adversidades oriundas, sobretudo, do processo de êxodo rural e industrialização da cultura de massa que configuram o contexto atual.

Palavras-chave: Paisagem Rural; Multifuncionalidade; Etnogeografia; Alto dos Bois

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

INTRODUÇÃO

Com o declínio do modelo produtivista, principalmente no âmbito das pequenas propriedades

rurais, a paisagem rural passa a sustentar um ideário ligado amplamente à perspectiva da

pluriatividade e da multifuncionalidade. Práticas essas que já eram tradicionalmente

desenvolvidas por grande parte das populações tradicionais, que possuem uma ligação muito

além da produtiva com a terra. Nesse sentido, o rural sempre abarcou em suas paisagens

dimensões simbólico-culturais tais como os saberes, os sabores, a musicalidade e a história

dos lugares, ou seja, elementos que condicionam uma série de significados a essa paisagem

multifuncional.

O conceito de paisagem, em sua origem e ainda hoje, ainda está muito arraigado à

perspectiva do olhar, daquilo que a vista alcança. Todavia, para se encontrar os verdadeiros

sentidos de um lugar e da paisagem inerente ao este, faz-se necessário ir além. É preciso

percebê-la não apenas a partir da visão, mas também do tato, da audição e do paladar. É

preciso entregar-se e doar para se unir à paisagem e deixar os sentidos humanos

contemplá-la. Muitas vezes são estes sentido, tão pouco ativados quando se trata da

paisagem, que irão nos propiciar a concepção mais próxima da realidade que aquela

paisagem tem a nos proporcionar.

A paisagem rural desperta ainda, na maioria dos outsiders, uma perspectiva romântica e

melancólica, que é constantemente associada ao contato com o natural, o puro e o belo. E é a

ela que o turista se volta quando está em busca do que se concebe como “paz interior”. Na

perspectiva do patrimônio, muitas vezes, é essa paisagem rural que se desvela no olhar dos

de fora, por sua importância arquitetônica e paisagística (no sentido estético) que é

reconhecida e evidenciada. Todavia, como fica a paisagem dos insiders, daqueles que a

vivenciam no seu dia-a-dia? Como essa paisagem rural cotidiana se colocaria como um

patrimônio a ser preservado?

Posto isso, este trabalho tem o objetivo de compreender a categoria de “paisagem rural” a

partir da perspectiva da multifuncionalidade da vivência dos lugares, uma vez que são estes

elementos do mundo-vivido que concebem as vivências e espacialidades que configuram

essa paisagem. Para tal, parte-se do estudo de caso da comunidade quilombola de Alto dos

Bois, um lugar emblemático localizado no município de Angelândia, Vale do Jequitinhonha,

que carrega em suas paisagens memórias e identidades que se incorporam a essas

multifuncinalidades do lugar.

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Ressalta-se que este trabalho foi realizado no âmbito do projeto intitulado

“ETNOGEOGRAFIA, PAISAGENS CULTURAIS E GESTÃO DO TERRITÓRIO EM

COMUNIDADES TRADICIONAIS DO VALE DO JEQUITINHONHA/ MG”, patrocinado pela

FAPEMIG.

UM NOVO OLHAR SOBRE AS MULTIFUNCIONALIDADES DA PAISAGEM

RURAL

O conceito de paisagem rural remete-se a uma concepção histórica do lugar, a uma visão da

produção do espaço pelo rural. Esta imagem, através das obras descritivas de alguns

geógrafos, tornou-se estática e imutável, o que na verdade não ocorre com essas paisagens,

que estão sempre em transformação devido aos “espaços rurais diversificados, dinâmicos e

em permanente mutação” (TEIXEIRA & LAGES, 1997, p.14). Assim, a paisagem rural deve

ser compreendida como um “suporte de heranças consideráveis, sob a forma de um

patrimônio produzido por séculos de trabalho, mas também sob a forma de um savoir faire e

de hábitos culturais, notadamente no domínio da percepção” (TEIXEIRA & LAGES, 1997, p.

13).

Historicamente associada à produção agrícola ou ainda às formas arquitetônicas colonias, as

paisagens rurais, nessa perspectiva, perpassam por elementos do cotidiano das populações

do campo, que se colocam, cada vez mais em diálogo com os instrumentos básicos e

essenciais da cidade. Desse modo, tais multifuncionalidades agregam ruralidades e

urbanidades que se consolidam na construção dessas paisagens a partir da função

alimentar/econômica; social; ambiental; patrimonial; estética e recreativa/pedagógica (INDE,

2001).

Na geografia contemporânea, a compreensão das paisagens perpapassa pela perspectiva da

interação homem-natureza, mediadas por uma dimensão cultural, a qual é concebida, tanto

em suas materialidades, quanto na imaterialidade dos saberes, sabores e memórias que são

transmitidos hereditariamente. Para Claval (2003) essas paisagens configuram, dessa forma,

uma matriz cultural, construída a partir da identidade materializada na experiência contínua e

coletiva de determinado grupo. Nessa perspectiva, segundo o autor, faz-se necessário

dialogar quatro dimensões principais: a cultura local; o estudo das relações homem/meio

ambiente; os sentidos da experiência humana (destacando a riqueza do imaginário e

memória) e a multiplicidade dos pontos de vista (uma vez que existem dois olhares principais

nesse diálogo dos insiders e dos outsiders) (CLAVAL, 1992).

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O uso da Etnogeografia se apresenta como o método mais adequado à proposição deste

trabalho, pois parte não apenas das convicções, valores e aspirações traduzidas diretamente

no espaço, mas agrega ainda a “percepção que os homens têm do mundo”, a “vida social”

(CLAVAL, 1999, p.72-73). Desse modo, como ressalta Almeida (2008, p.332): “a

etnogeografia busca penetrar na intimidade dos grupos culturais, o vivido pelos homens,

concretizado em crenças, valores e visão de mundo. Esta cultura vivida é, ademais, o objeto

de estudo da etnogeografia”.

Partindo dessa perspectiva foram realizados diversos trabalhos de campo sistematizados na

área investigada nos períodos de 2011 a 2012 e 2014 a 2016, com a realização de entrevistas

semiestruturadas, mapeamentos, diagnósticos participativos, etc. nas comunidades rurais.

Durante todos esses anos de intervenções buscamos dialogar as leituras dos moradores

locais com a percepção de alunos de graduação/ pós-graduação dos cursos de turismo e

geografia a fim de se chegar o mais próximo possível dos mais significativos sentidos que

essas paisagens representassem para os insiders e outsiders.

A partir dos relatórios de campo a paisagem que se revela é predominantemente voltada à

produção agrícola, destaca-se um direcionamento dos alunos ao enfoque da pluriatividade,

voltada à diversidade de plantios nos quintais, destino da produção, distribuição espacial, etc.

A perspectiva do turismo ficou limitada aos potenciais arquitetônicos e das belezas naturais.

Poucos alunos se voltaram às demais funcionalidades culturais e sociais percebidas nas

histórias de vida e práticas culturais tradicionais desse lugar. Todavia, o que mais nos intrigou

foi que muitas dessas percepções dos outsiders belo-horizontinos se comparavam com os

regionais (moradores das sedes municipais de Angelândia, Minas Novas e Capelinha).

Frente a esta constatação observamos que há nessas percepções uma carga fortemente

arraigada da concepção do rural como o meio de produção. O olhar dessas pessoas para a

comunidade rural de Alto dos Bois se limitava à preocupação do que a comunidade pode

produzir, e não das inúmeras funcionalidades que pode nos apresentar. É nesse sentido, que

buscamos construir nesse artigo uma narrativa dessa matriz cultural que configura a

multifuncionalidade da paisagem de Alto dos Bois.

Todavia, vale ressaltar que esse “novo olhar” perpassa também por uma leitura das paisagens

que se revelam a partir da percepção e vivência da comunidade local, seja por meio de

histórias de vida, reconstrução histórica, grupos focais, observação participante e outros

recursos metodológicos que se apresentaram em diversos momentos.

Nesse sentido, assim como buscamos, a partir desse trabalho, dar mais voz e diálogo às

diversas percepções desse lugar, defende-se neste trabalho que ao se realizar um estudo do

patrimônio cultural dessas paisagens, faz-se necessário, cada vez mais, essa aproximação

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não apenas metodológica, mas também, institucional e burocrática da forma de se identificar,

classificar, valorizar e proteger as paisagens, sejam elas rurais ou urbanas.

UMA LEITURA DAS PAISAGENS RURAIS DE ALTO DOS BOIS A PARTIR DA

MULTIFUNCIONALIDADE

Localizada no município de Angelândia, Vale do Jequitinhonha (MG), a comunidade

quilombola de Alto dos Bois se destaca por seus aspectos culturais, históricos, regionais e

naturais. O “Alto dos Bois” nomenclatura que recebeu após a chegada dos colonos

portugueses na região com a introdução do gado nas chapadas do Jequitinhonha, foi palco de

diversos confrontos entre os índios das etnias Borum (conhecidos também como Botocudos)

e grupos da família Maxacali (Malali, Macuni que desputavam parte desse território.

Com o avanço dos portugueses sobre os sertões de Minas em busca de ouro, chegando

então à região do rio Fanado, no início do século XIX, foi instalada nessa região um posto

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policial, com o intuito de realizar o controle do mineral e o apaziguamento dos conflitos entre

indígenas e colonos. Neste mesmo período, há ainda relatos de um aldeamento, coordenado

por um grande fazendeiro da região, que recebia os grupos indígenas que buscavam proteção

dos conflitos com os temíveis botocudos, que ainda resistiam nas matas virgens do entorno. A

presença dos negros já era evidenciada nesse período associada às atividades produtivas do

posto policial e das poucas e extensas fazendas da região. Com a abolição da escravatura já

em fins desde século, muitos colonos partiram rumo ao vale do Mucuri em busca de novas

terras e os escravos libertos foram se estabelecendo, principalmente, nas encostas das

pequenas grotas ao longo dos córregos e rios.

Essa herança histórica do lugar ainda hoje é um elemento forte da memória das pessoas que

residem em Alto dos Bois e adjacências. O que hoje se refere espacialmente a uma única

comunidade, até o final do século XIX compreendia todas as nascentes da microbacia do rio

Fanado, e ainda hoje muitas comunidades do entorno ainda se identificam como pertencentes

à região de Alto dos Bois. Posto isso, quando se fala desse lugar, para as pessoas da região

ele representa muito mais que uma comunidade, ou um casarão antigo, há aí uma referência

histórico-cultural regional muito forte, que ligada a matriz histórica dessa paisagem, se

desvela a partir da memória e da identificação cultural regional da população com o Alto dos

Bois. Além disso, no século XX, esta fazenda constituiu-se como um representativo marco

territórial econômico, posto que recebia muitos tropeiros, com os quais faziam grandes

negócios e havia ainda muitos camponeses que trabalhavam nas plantações e benfeitorias da

propriedade, que abastecia boa parte dos comércios da região.

Para os mais velhos tais referências mantêm-se vivas na memória e nas falas sobre o lugar.

Essa paisagem do passado produtivo, das cantigas de maromba ou multirões está

diretamente atrelada ainda às suas percepções e vivências de Alto dos Bois. As quais, toda

via, não se desvelam ao primeiro olhar do interlocutor, são paisagens que para serem

alcançadas pelos outsiders é preciso investir nas relações de confiança e em

etnometodologias que respeitem o tempo e o espaço das singularidades dessas comunidades.

Nesse sentido, é preciso encontrar no diálogo uma chave de abertura que dê permissão de se

adentrar nessas paisagens remotas que sobrevivem nas memórias do lugar.

Para a compreensão das paisagens rurais nessa pespectiva da matriz cultural os aspectos

históricos, obtidos por meio da oralidade das comunidades locais e complementados em

documentos históricos e relatos dos viajantes, se colocam como o ponto de partida para a

compreensão das identidades que se configuram nesse lugar e que dão significado a suas

paisagens. São eles elementos que possibilitam uma leitura da imaterialidade que se coloca

por trás dessa materialidade também de extrema importância do Alto dos Bois.

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Um dos aspectos que mais são ressaltados quando se questiona aos regionais sobre esta

localidade são o casarão antigo (datado de 1729), o cemitério dos portugueses e a cachoeira

de Alto dos Bois. A paisagem, num primeiro momento, se revela apenas pela obviedade da

materialidade da história que ainda sobrevive às intempéries do tempo, e que são

predominantemente associadas às perspectivas turísticas do lugar e à funcionalidade

paisagística do lazer.

Casarão de Alto dos Bois Foto: RODRIGUES (2011)

Para os mais jovens Alto dos Bois é um fragmento da história do seu lugar, “coisa antiga” que

muitas vezes não possui um sentido claro de seu papel nesse recorte temporal. Para este

grupo, então, o Alto dos Bois se destaca principalmente pelo lazer da cachoeira e dos sítios

que estão no entorno, sendo inclusive, esta uma das funcionalidades mais ressaltadas não

apenas pela comunidade, mas também pelos próprios habitantes da sede municipal. A

paisagem rural, nessa perspectiva, se revela principalmente pela aproximação com a

natureza, com os atrativos naturais do lugar.

Cachoeira de Alto dos Bois Foto: RODRIGUES (2011)

Todavia, acredita-se que é no interior e das janelas dessa materialidade que se alcança o

verdadeiro sentido/significado dessa paisagem rural. Em cada canto desse lugar há um objeto

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ou uma história que, através do qual, se revela mais um nó dessa rede de relações do

passado com o presente. Participando de alguns eventos e encontros na comunidade,

observamos que há sobre o “Casarão de Alto dos Bois” um série de “estórias” que criam um

conjunto de lendas sobre o passado dos escravos e dos antigos moradores da região.

Elementos que despertam desde o interesse e curiosidade dos mais jovens ao silêncio dos

mais velhos, que preferem não falar sobre “esses assuntos”.

Concebido como o lugar da intimidade da casa, é na cozinha que muitas relações culturais,

ambientais e da experiência vivida se revelam a partir dos cheiros, sabores, histórias e

receitas, que se constituem muitas vezes como verdadeiras janelas/chaves de compreensão

para as multifuncionalidade das paisagens rurais.

Nesse sentido, defende-se, neste trabalho, que a multifuncionalidade da paisagem rural deve

ir além dos aspectos agrícolas, e da simples enumeração dessas funcionalidades, é preciso

compreender e alcançar o verdadeiro sentido que essas atividades possuem para o cotidiano

do agricultor, em sua dinâmica histórica, cultural, social e econômica, as quais por sua vez, se

revelam pelo olhar do mesmo à sua plantação; pela lembrança de uma receita antiga feita

pela avó com o fubá de moinho; pela busca do marmelo nas chapadas para a pequena

produção de um doce a ser ofertado aos amigos. É nessas relações que se deve voltar o olhar

às mutifuncionalidades da paisagem, pois a diversidade produtiva voltada apenas para a

atividade comercial se modifica de acordo com a demanda de consumo, já a multiplicidade de

produtos e modos de produzir os mesmos, se matêm muito mais pela importância social e

cultural do que pelas condições produtivas.

O município de Angelândia, juntamente com Capelinha, se destaca regionalmente pela

produção do café. O clima mais ameno, umidade e as condições do solo propiciam ótimas

condições de produção, a qual é, inclusive, direcionada para a exportação. Muitos moradores

de Alto dos Bois já trabalharam ou trabalham com o café em grandes empresas que vem se

estabelecendo no município. Todavia, a relação dessas pessoas com esta atividade agrícola

vai além das empregatícias, o café das pequenas plantações ou até mesmo dos quintais,

além da pequena renda, através das feiras, é o cartão de visitas na casa dessas pessoas.

Trata-se de um símbolo principal das ruralidades, não apenas em Alto dos Bois, mas da

própria mineiridade. Não há um lugar em Minas Gerais, que este não seja o cheiro e o sabor

do rural. Há que se destacar ainda o orgulho em se dizer: “esse eu plantei, colhi e torrei aqui

mesmo”.

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Quilombola de Alto dos Bois moendo o café produzido no seu quintal.

Foto: NASCIMENTO (2015)

Pé de café carregado no quintal de uma família

quilombola. FOTO: SILVA (2015)

O cafezinho nunca se apresenta sozinho a mesa, ele é sempre acompanhado de uma

quitanda, cujo “saber-fazer” nunca se revela por inteiro, as receitas tem sempre um elemento

da história da família, do moinho de pedra que tinha na beira do córrego no fundo do quintal.

Saberes que não se reproduzem pelo simples replicar de uma receita, o sabor é sempre

atrelado ao significado, ao momento e ao motivo para se coser. O pão de cristo é para a festa

do padroeiro, não é a qualquer momento que se encontrará esta quitanda para ser deliciada, a

farofa do feijão andu fresco também tem seu tempo para ser degustada. Neste sentido, o que

buscamos ressaltar aqui é que a cultura local, os sentidos das experiência humana e as

relações do homem com o meio devem sempre ser consideradas ao se falar sobre a

multifuncionalidade das paisagens, sejam elas rurais ou não.

A própria proximidade rural/ urbana se coloca cada vez mais presente nessas paisagens, a

dinâmica atual do campo já não permite mais que haja esse distanciamento, as urbanidades

também estão presentes nas paisagens rurais. A dura realidade do êxodo rural deixa marcas

nesses locais que vão desde o esvaziamento populacional à adaptações de práticas culturais

tradicionais. Devido à falta de mão-de-obra jovem para a lida mais árdua do campo, os idosos,

que atualmente são a maioria nessas comunidades, destinam parte de suas aposentorias

para a compra de mantimentos que já não conseguem mais produzir. É nesse sentido, que

algumas tradições passam a se adaptar ao novo contexto do campo, o polvilho e fubá que

eram manufaturados nas fazendas, já são adquiridos na cidade para a produção dos biscoitos

e broas. Apesar dessas adaptações, e do reconhecimento da diferença do sabor, o biscoito de

polvilho e a broa de fubá continuam fazendo parte do cotidiano desses lugares. Assim como a

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“carne de lata”, antes conservada na lata com gordura de porco por não existir outra forma de

conservar esses alimentos. Apesar de todas as residências no campo já contarem com

energia elétrica, geladeira, fogão e outros utensílios domésticos, a carne conservada na

gordura de porco agora está numa vazilha plástica guardada na geladeira; as panelas de

barro e ferro batido estão sempre expostas sobre o fogão de lenha na hora de preparar o

almoço, mas o requentar a comida para o jantar e a água do café já são realizados no fogão à

gás, pois “dá menos trabalho, e não precisa buscar a lenha”. Esta, que também está cada vez

mais escassa, uma vez que as árvores do cerrado, que sempre forneciam galhos secos, hoje

foram substituídas pelos eucaliptais, que demoram mais tempo para fornecer a madeira, que

em grande parte, é vendida para aumentar a renda das famílias locais (a nova poupança do

campo).

Esse conjunto de transformações impacta ainda a própria relação desse homem com o meio,

esta que ainda é vista pelos outsiders sobre um olhar romantizado, e que para os inseders se

colocam cada vez mais insólidas, uma vez que, mediante as leis ambientais, certos usos

passam a ser limitados/proibidos, sem sequer considerar a sustentabilidade muitas vezes

centenária dos mesmos. Todavia, faz-se necessário destacar que em algumas situações são

essas mesmas leis que possibilitam a preservação de determinadas espécies, que pelo

apresso de seus produtos finais e demandas desproporcionais do mercado, corriam o risco de

se extinguir, como é o caso das palmeiras Catulé.

O Catulé é um dos elementos que exemplificam bem a multifuncionalidade da paisagem rural,

na qual há predominantemente um ciclo harmônico entre a produção e o consumo. Por ser

uma área de transição entre a mata atlântica, cerrado e caatinga essa espécie de palmeira

está presente em todos os lugares. É um elemento consideravelmente simbólico dessa

paisagem de Alto dos Bois, não apenas pela sua recorrência, mas por fazer parte da memória

daqueles que dormiam sob telhados da folha do Catulé, ouvindo o barulho do roçar do vento

ou das gotas de chuva batendo ao entardecer. Memória também do palmito que era muito

utilizado na alimentação e que os mais novos não compartilham mais desse sabor, pela

proibição de se coletar o mesmo, uma vez que para tal é necessário cortar todo o pé do Catúlé.

Por esse motivo, é também muito comum encontrar pés de Catulé entremeados às vastas

plantações de café nas paisagens de Alto dos Bois.

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Plantação de café entremeada com remanescentes do Catulé

Foto: RODRIGUES (2011)

Vale ressaltar que neste cenário onde sobrevivem as matas de topo e ciliares, além dos

representativos exemplares de catulés nas vertentes suaves, é nas grotas encaixadas que se

encontram as pequenas lavouras familiares que revelam não apenas as singulares desse

lugar, mas alguns retratos de esperança daqueles que já foram para fora em busca de

melhores condições de trabalho, e que encontraram no retorno a melhor maneira de construir

sua vida. A migração para os grandes núcleos urbanos propicia muitas oportunidades para os

jovens que saem da região, principalmente, em busca de emprego. Todavia a dura realidade

do trabalho nos canaviais ou grandes fazendas de café os distancia muito do cotidiano rural

ao qual sempre estiveram inseridos, fazendo com que muitos retornem com alguma renda no

intuito de se reestabelecer no seu lugar de origem. Com as práticas e técnicas que

aprenderam fora, eles buscam, em pequenos espaços, produzir lavouras adequadas que lhes

proporcionam, de acordo com o mercado, cem por cento de lucro. Em Alto dos Bois, algumas

famílias participam, inclusive, dos programas governamentais como o PRONAF (Programa

Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e o PNAE (Programa Nacional de

Alimentação Escolar).

Mediante a presença de programas como esses para os agricultores familiares, apesar das

dificuldades burocráticas para se cadastar, a migração para os grandes centros passa a ter

um caráter profissionalizante, uma vez que muitos aprendem novas técnicas de produção ou

atividades inovadoras, que acabam direcionando para o seu local de origem. Verifica-se

nesse sentido, que apesar de ser ainda uma minoria, há nesses grupos o desejo do retorno e

de transformação/implentação de oportunidades no seu lugar de origem.

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Essa forte ligação das pessoas com o lugar, revelada aí a partir da perspectiva do

pertencimento, das relações familiares, territoriais e culturais também se reforçam nas

espacialidades festivas. As festas de padroeiros ou de grupos tradicionais nas comunidades

do entorno sempre são momentos de retorno a essa paisagem rural que se apresenta nos

leilões, nos terços-cantados, nas apresentações das bandas de taquara e nas cantigas de

nove e vilão. Essa funcionalidade do resgate e manutenção das práticas culturais também é

de extrema importância para a compreensão dessa vivência das comunidades. A festa para a

comunidade é o momento do encontro, da interação mais vívida entre a vida presente e as

lembranças do passado. Muitas vezes é nesses entre-diálogos que certas paisagens se

consolidam ou apontam para novas dinâmicas/adaptações que possibilitem o contato ou a

apropriação de certas práticas tradicionais para as gerações futuras. Esse espaço do

encontro é, portanto, um momento valioso para a matriz cultural de uma paisagem rural, posto

que se consolidam num mesmo espaço elementos da cultura local, da interação do homem

com o meio, dos sentidos e percepções humanas e da multiplicidade de olhares, uma vez que

se encontram presentes pessoas daquela e de outras realidades.

Festa de N. Senhor Bom Jesus – Alto dos Bois

(Angelândia/MG) (2015) Foto: SILVA (2015)

Altar na Capelinha de Nosso Senhor Bom Jesus (Alto dos Bois – Angelândia/MG) Foto: SILVA (2015)

Aos nossos olhos, Alto dos Bois se revela como um paisagem emblemática pela sua

construção identitária pautada na convivência histórica entre índios, negros e portugueses.

Uma paisagem desse lugar que revela em sua materialidade e imaterialidade essas relações

é a Toca do Índio, uma gruta quartzítica localizada no interior da mata à qual são atribuídas

histórias de índios, negros e até bandidos que se escondiam naquela região. Apesar de

despertar o interesse dos outsiders, os moradores locais reconhecem a importância desse

local na história da comunidade, sem, contudo, atribuir-lhe certa valorização no contexto atual.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando colocamos em pauta o “romantismo” voltado às paisagens naturais que configuram

as multifuncionalidades do rural que perpassam nossas observações de outsiders, há, de

certa forma, um estranhamento real com as paisagens rurais construídas a patir dos valores

da vida, das percepções da realidade e do cotidiano local. As aproximações estéticas com o

urbano, muitas vezes fazem ressaltar mais aos nossos olhos do que o cotidiando onde as

relações e a dinâmica da vida se dão principalmente a partir da perspectiva do ser, da

generosidade e da própria relação de cumplicidade presente nas comunidades.

As multifuncionalidades que já existiam desde sempre no rural, se desvelam então aos

nossos olhos urbanos a partir do momento que rompemos com a visão enrigecida do rural

produtor e, a partir de um retorno desse olhar para o ser, passamos a enchergar a riqueza dos

valores e saberes que essas pessoas se dispõem a partilhar conosco. Não como uma

obrigação de subserviência do rural ao urbano, mas justamente por essa generorisadade e

compreensão do todo enquanto comunidade.

Posto isso, acredita-se que a perspectiva da multifuncionalidade das paisagens rurais se

coloca como uma concepção importante para a valorização das vivências e histórias locais,

sem contudo desvinculá-las ao diálogo do entorno, dos insiders e outsiders, que cada vez

mais colocam-se interligados e conectados nesses espaços.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Geralda. Uma leitura etnogeográfica do Brasil Sertanejo. In: SERPA, Angelo (Org.). Espaços Culturais: vivências, imaginações e representações. Salvador: EDUFBA, 2008. p.313-336.

CLAVAL, Paul. COMITÊ EDITORIAL “GÉOGRAPHIE ET CULTURES”- La Culture Dans Tous Sés Espaces. Géographie et Cultures, Paris, n, 1, p. 3-5, 1992.

______________. A contribuição francesa ao desenvolvimento da abordagem cultural na

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Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil, 2003. p. 147-166.

TEIXEIRA, M. A., LAGES, V. N. Changes in rural space and Rural Geography Ideas for a discussion. Rev. Geogr. São Paulo, v.14, p. 9:33, 1997.

INDE. Intercooperação e Desenvolvimento no âmbito das Actividades da Célula de Animação da Rede Portuguesa LEADER II. Agricultura e Desenvolvimento Local: integrar a agricultura no desenvolvimento rural. Jornal Pessoas e Lugares, Lisboa, n.20, p.1-30, 2001.