multifuncionalidades da paisagem rural: etnogeografia e...
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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
MULTIFUNCIONALIDADES DA PAISAGEM RURAL: etnogeografia e identidade cultural da comunidade quilombola de Alto dos Bois-vale
do Jequitinhonha (MG)
SILVA, LUDIMILA DE M. R. (1); NASCIMENTO, CLÁUDIO H. (2) DEUS, JOSÉ A. S.(3); NOGUEIRA, MARLY(4)
1.Doutoranda - Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências da UFMG
2.Graduando (Geografia) - Instituto de Geociências (IGC/UFMG)
3.Docente/Pesquisador Credenciado junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto
de Geociências da UFMG/Brasil [email protected]
4.Docente/Pesquisadora do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG/Brasil
RESUMO A paisagem rural de Alto dos Bois se configura e (re)configura por meio de suas práticas cotidianas que são elementos de seu patrimônio cultural que se concretizam no significado e pertencimento ao lugar, sobretudo na paisagem. É por meio da transmissão dos saberes tradicionais, e, sobretudo, da sua experiência de paisagem, decorrente do diálogo da comunidade com o espaço em que se vive, que as dinâmicas culturais se encontram e se relacionam em constantes processos de transformação. As funcionalidades desta paisagem se constituem como forma de sobrevivência, trabalho e lazer, agregando também, a partir da relação do homem com a terra, práticas e discursos cheios de significados que emergem dessa interação. Nesse sentido, a paisagem ao dialogar com as multifuncionalidades do campo se estrutura a partir de uma complexa matriz cultural, a qual para ser compreendida deve considerar desde a materialidade à imaterialidade dessas funcionalidades do rural. Posto isso, este trabalho tem o objetivo de apresentar uma leitura da matriz cultural da comunidade quilombola de Alto dos Bois, ressaltando os princípios norteadores dessa construção através do cotidiano local. Nessa perspectiva a paisagem se desvela a partir dos saberes, sabores e espacialidades cotidianas e festivas, expressas em suas memórias, fotografias e vivências que emanam de uma ancestralidade (ainda que obscura) de negros, índios e portugueses. Frente a peculiaridade desse lugar, a Etnogeografia e as Etnometodologias permitiram-nos identificar, por meio do estudo das tradições, história e espacialidades coletivas os elementos principais que compõem a multifuncionalidade dessa paisagem rural. Estas, que mantêm vivas as tradições desse lugar, mesmo diante das adversidades oriundas, sobretudo, do processo de êxodo rural e industrialização da cultura de massa que configuram o contexto atual.
Palavras-chave: Paisagem Rural; Multifuncionalidade; Etnogeografia; Alto dos Bois
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INTRODUÇÃO
Com o declínio do modelo produtivista, principalmente no âmbito das pequenas propriedades
rurais, a paisagem rural passa a sustentar um ideário ligado amplamente à perspectiva da
pluriatividade e da multifuncionalidade. Práticas essas que já eram tradicionalmente
desenvolvidas por grande parte das populações tradicionais, que possuem uma ligação muito
além da produtiva com a terra. Nesse sentido, o rural sempre abarcou em suas paisagens
dimensões simbólico-culturais tais como os saberes, os sabores, a musicalidade e a história
dos lugares, ou seja, elementos que condicionam uma série de significados a essa paisagem
multifuncional.
O conceito de paisagem, em sua origem e ainda hoje, ainda está muito arraigado à
perspectiva do olhar, daquilo que a vista alcança. Todavia, para se encontrar os verdadeiros
sentidos de um lugar e da paisagem inerente ao este, faz-se necessário ir além. É preciso
percebê-la não apenas a partir da visão, mas também do tato, da audição e do paladar. É
preciso entregar-se e doar para se unir à paisagem e deixar os sentidos humanos
contemplá-la. Muitas vezes são estes sentido, tão pouco ativados quando se trata da
paisagem, que irão nos propiciar a concepção mais próxima da realidade que aquela
paisagem tem a nos proporcionar.
A paisagem rural desperta ainda, na maioria dos outsiders, uma perspectiva romântica e
melancólica, que é constantemente associada ao contato com o natural, o puro e o belo. E é a
ela que o turista se volta quando está em busca do que se concebe como “paz interior”. Na
perspectiva do patrimônio, muitas vezes, é essa paisagem rural que se desvela no olhar dos
de fora, por sua importância arquitetônica e paisagística (no sentido estético) que é
reconhecida e evidenciada. Todavia, como fica a paisagem dos insiders, daqueles que a
vivenciam no seu dia-a-dia? Como essa paisagem rural cotidiana se colocaria como um
patrimônio a ser preservado?
Posto isso, este trabalho tem o objetivo de compreender a categoria de “paisagem rural” a
partir da perspectiva da multifuncionalidade da vivência dos lugares, uma vez que são estes
elementos do mundo-vivido que concebem as vivências e espacialidades que configuram
essa paisagem. Para tal, parte-se do estudo de caso da comunidade quilombola de Alto dos
Bois, um lugar emblemático localizado no município de Angelândia, Vale do Jequitinhonha,
que carrega em suas paisagens memórias e identidades que se incorporam a essas
multifuncinalidades do lugar.
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Ressalta-se que este trabalho foi realizado no âmbito do projeto intitulado
“ETNOGEOGRAFIA, PAISAGENS CULTURAIS E GESTÃO DO TERRITÓRIO EM
COMUNIDADES TRADICIONAIS DO VALE DO JEQUITINHONHA/ MG”, patrocinado pela
FAPEMIG.
UM NOVO OLHAR SOBRE AS MULTIFUNCIONALIDADES DA PAISAGEM
RURAL
O conceito de paisagem rural remete-se a uma concepção histórica do lugar, a uma visão da
produção do espaço pelo rural. Esta imagem, através das obras descritivas de alguns
geógrafos, tornou-se estática e imutável, o que na verdade não ocorre com essas paisagens,
que estão sempre em transformação devido aos “espaços rurais diversificados, dinâmicos e
em permanente mutação” (TEIXEIRA & LAGES, 1997, p.14). Assim, a paisagem rural deve
ser compreendida como um “suporte de heranças consideráveis, sob a forma de um
patrimônio produzido por séculos de trabalho, mas também sob a forma de um savoir faire e
de hábitos culturais, notadamente no domínio da percepção” (TEIXEIRA & LAGES, 1997, p.
13).
Historicamente associada à produção agrícola ou ainda às formas arquitetônicas colonias, as
paisagens rurais, nessa perspectiva, perpassam por elementos do cotidiano das populações
do campo, que se colocam, cada vez mais em diálogo com os instrumentos básicos e
essenciais da cidade. Desse modo, tais multifuncionalidades agregam ruralidades e
urbanidades que se consolidam na construção dessas paisagens a partir da função
alimentar/econômica; social; ambiental; patrimonial; estética e recreativa/pedagógica (INDE,
2001).
Na geografia contemporânea, a compreensão das paisagens perpapassa pela perspectiva da
interação homem-natureza, mediadas por uma dimensão cultural, a qual é concebida, tanto
em suas materialidades, quanto na imaterialidade dos saberes, sabores e memórias que são
transmitidos hereditariamente. Para Claval (2003) essas paisagens configuram, dessa forma,
uma matriz cultural, construída a partir da identidade materializada na experiência contínua e
coletiva de determinado grupo. Nessa perspectiva, segundo o autor, faz-se necessário
dialogar quatro dimensões principais: a cultura local; o estudo das relações homem/meio
ambiente; os sentidos da experiência humana (destacando a riqueza do imaginário e
memória) e a multiplicidade dos pontos de vista (uma vez que existem dois olhares principais
nesse diálogo dos insiders e dos outsiders) (CLAVAL, 1992).
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O uso da Etnogeografia se apresenta como o método mais adequado à proposição deste
trabalho, pois parte não apenas das convicções, valores e aspirações traduzidas diretamente
no espaço, mas agrega ainda a “percepção que os homens têm do mundo”, a “vida social”
(CLAVAL, 1999, p.72-73). Desse modo, como ressalta Almeida (2008, p.332): “a
etnogeografia busca penetrar na intimidade dos grupos culturais, o vivido pelos homens,
concretizado em crenças, valores e visão de mundo. Esta cultura vivida é, ademais, o objeto
de estudo da etnogeografia”.
Partindo dessa perspectiva foram realizados diversos trabalhos de campo sistematizados na
área investigada nos períodos de 2011 a 2012 e 2014 a 2016, com a realização de entrevistas
semiestruturadas, mapeamentos, diagnósticos participativos, etc. nas comunidades rurais.
Durante todos esses anos de intervenções buscamos dialogar as leituras dos moradores
locais com a percepção de alunos de graduação/ pós-graduação dos cursos de turismo e
geografia a fim de se chegar o mais próximo possível dos mais significativos sentidos que
essas paisagens representassem para os insiders e outsiders.
A partir dos relatórios de campo a paisagem que se revela é predominantemente voltada à
produção agrícola, destaca-se um direcionamento dos alunos ao enfoque da pluriatividade,
voltada à diversidade de plantios nos quintais, destino da produção, distribuição espacial, etc.
A perspectiva do turismo ficou limitada aos potenciais arquitetônicos e das belezas naturais.
Poucos alunos se voltaram às demais funcionalidades culturais e sociais percebidas nas
histórias de vida e práticas culturais tradicionais desse lugar. Todavia, o que mais nos intrigou
foi que muitas dessas percepções dos outsiders belo-horizontinos se comparavam com os
regionais (moradores das sedes municipais de Angelândia, Minas Novas e Capelinha).
Frente a esta constatação observamos que há nessas percepções uma carga fortemente
arraigada da concepção do rural como o meio de produção. O olhar dessas pessoas para a
comunidade rural de Alto dos Bois se limitava à preocupação do que a comunidade pode
produzir, e não das inúmeras funcionalidades que pode nos apresentar. É nesse sentido, que
buscamos construir nesse artigo uma narrativa dessa matriz cultural que configura a
multifuncionalidade da paisagem de Alto dos Bois.
Todavia, vale ressaltar que esse “novo olhar” perpassa também por uma leitura das paisagens
que se revelam a partir da percepção e vivência da comunidade local, seja por meio de
histórias de vida, reconstrução histórica, grupos focais, observação participante e outros
recursos metodológicos que se apresentaram em diversos momentos.
Nesse sentido, assim como buscamos, a partir desse trabalho, dar mais voz e diálogo às
diversas percepções desse lugar, defende-se neste trabalho que ao se realizar um estudo do
patrimônio cultural dessas paisagens, faz-se necessário, cada vez mais, essa aproximação
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não apenas metodológica, mas também, institucional e burocrática da forma de se identificar,
classificar, valorizar e proteger as paisagens, sejam elas rurais ou urbanas.
UMA LEITURA DAS PAISAGENS RURAIS DE ALTO DOS BOIS A PARTIR DA
MULTIFUNCIONALIDADE
Localizada no município de Angelândia, Vale do Jequitinhonha (MG), a comunidade
quilombola de Alto dos Bois se destaca por seus aspectos culturais, históricos, regionais e
naturais. O “Alto dos Bois” nomenclatura que recebeu após a chegada dos colonos
portugueses na região com a introdução do gado nas chapadas do Jequitinhonha, foi palco de
diversos confrontos entre os índios das etnias Borum (conhecidos também como Botocudos)
e grupos da família Maxacali (Malali, Macuni que desputavam parte desse território.
Com o avanço dos portugueses sobre os sertões de Minas em busca de ouro, chegando
então à região do rio Fanado, no início do século XIX, foi instalada nessa região um posto
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policial, com o intuito de realizar o controle do mineral e o apaziguamento dos conflitos entre
indígenas e colonos. Neste mesmo período, há ainda relatos de um aldeamento, coordenado
por um grande fazendeiro da região, que recebia os grupos indígenas que buscavam proteção
dos conflitos com os temíveis botocudos, que ainda resistiam nas matas virgens do entorno. A
presença dos negros já era evidenciada nesse período associada às atividades produtivas do
posto policial e das poucas e extensas fazendas da região. Com a abolição da escravatura já
em fins desde século, muitos colonos partiram rumo ao vale do Mucuri em busca de novas
terras e os escravos libertos foram se estabelecendo, principalmente, nas encostas das
pequenas grotas ao longo dos córregos e rios.
Essa herança histórica do lugar ainda hoje é um elemento forte da memória das pessoas que
residem em Alto dos Bois e adjacências. O que hoje se refere espacialmente a uma única
comunidade, até o final do século XIX compreendia todas as nascentes da microbacia do rio
Fanado, e ainda hoje muitas comunidades do entorno ainda se identificam como pertencentes
à região de Alto dos Bois. Posto isso, quando se fala desse lugar, para as pessoas da região
ele representa muito mais que uma comunidade, ou um casarão antigo, há aí uma referência
histórico-cultural regional muito forte, que ligada a matriz histórica dessa paisagem, se
desvela a partir da memória e da identificação cultural regional da população com o Alto dos
Bois. Além disso, no século XX, esta fazenda constituiu-se como um representativo marco
territórial econômico, posto que recebia muitos tropeiros, com os quais faziam grandes
negócios e havia ainda muitos camponeses que trabalhavam nas plantações e benfeitorias da
propriedade, que abastecia boa parte dos comércios da região.
Para os mais velhos tais referências mantêm-se vivas na memória e nas falas sobre o lugar.
Essa paisagem do passado produtivo, das cantigas de maromba ou multirões está
diretamente atrelada ainda às suas percepções e vivências de Alto dos Bois. As quais, toda
via, não se desvelam ao primeiro olhar do interlocutor, são paisagens que para serem
alcançadas pelos outsiders é preciso investir nas relações de confiança e em
etnometodologias que respeitem o tempo e o espaço das singularidades dessas comunidades.
Nesse sentido, é preciso encontrar no diálogo uma chave de abertura que dê permissão de se
adentrar nessas paisagens remotas que sobrevivem nas memórias do lugar.
Para a compreensão das paisagens rurais nessa pespectiva da matriz cultural os aspectos
históricos, obtidos por meio da oralidade das comunidades locais e complementados em
documentos históricos e relatos dos viajantes, se colocam como o ponto de partida para a
compreensão das identidades que se configuram nesse lugar e que dão significado a suas
paisagens. São eles elementos que possibilitam uma leitura da imaterialidade que se coloca
por trás dessa materialidade também de extrema importância do Alto dos Bois.
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Um dos aspectos que mais são ressaltados quando se questiona aos regionais sobre esta
localidade são o casarão antigo (datado de 1729), o cemitério dos portugueses e a cachoeira
de Alto dos Bois. A paisagem, num primeiro momento, se revela apenas pela obviedade da
materialidade da história que ainda sobrevive às intempéries do tempo, e que são
predominantemente associadas às perspectivas turísticas do lugar e à funcionalidade
paisagística do lazer.
Casarão de Alto dos Bois Foto: RODRIGUES (2011)
Para os mais jovens Alto dos Bois é um fragmento da história do seu lugar, “coisa antiga” que
muitas vezes não possui um sentido claro de seu papel nesse recorte temporal. Para este
grupo, então, o Alto dos Bois se destaca principalmente pelo lazer da cachoeira e dos sítios
que estão no entorno, sendo inclusive, esta uma das funcionalidades mais ressaltadas não
apenas pela comunidade, mas também pelos próprios habitantes da sede municipal. A
paisagem rural, nessa perspectiva, se revela principalmente pela aproximação com a
natureza, com os atrativos naturais do lugar.
Cachoeira de Alto dos Bois Foto: RODRIGUES (2011)
Todavia, acredita-se que é no interior e das janelas dessa materialidade que se alcança o
verdadeiro sentido/significado dessa paisagem rural. Em cada canto desse lugar há um objeto
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ou uma história que, através do qual, se revela mais um nó dessa rede de relações do
passado com o presente. Participando de alguns eventos e encontros na comunidade,
observamos que há sobre o “Casarão de Alto dos Bois” um série de “estórias” que criam um
conjunto de lendas sobre o passado dos escravos e dos antigos moradores da região.
Elementos que despertam desde o interesse e curiosidade dos mais jovens ao silêncio dos
mais velhos, que preferem não falar sobre “esses assuntos”.
Concebido como o lugar da intimidade da casa, é na cozinha que muitas relações culturais,
ambientais e da experiência vivida se revelam a partir dos cheiros, sabores, histórias e
receitas, que se constituem muitas vezes como verdadeiras janelas/chaves de compreensão
para as multifuncionalidade das paisagens rurais.
Nesse sentido, defende-se, neste trabalho, que a multifuncionalidade da paisagem rural deve
ir além dos aspectos agrícolas, e da simples enumeração dessas funcionalidades, é preciso
compreender e alcançar o verdadeiro sentido que essas atividades possuem para o cotidiano
do agricultor, em sua dinâmica histórica, cultural, social e econômica, as quais por sua vez, se
revelam pelo olhar do mesmo à sua plantação; pela lembrança de uma receita antiga feita
pela avó com o fubá de moinho; pela busca do marmelo nas chapadas para a pequena
produção de um doce a ser ofertado aos amigos. É nessas relações que se deve voltar o olhar
às mutifuncionalidades da paisagem, pois a diversidade produtiva voltada apenas para a
atividade comercial se modifica de acordo com a demanda de consumo, já a multiplicidade de
produtos e modos de produzir os mesmos, se matêm muito mais pela importância social e
cultural do que pelas condições produtivas.
O município de Angelândia, juntamente com Capelinha, se destaca regionalmente pela
produção do café. O clima mais ameno, umidade e as condições do solo propiciam ótimas
condições de produção, a qual é, inclusive, direcionada para a exportação. Muitos moradores
de Alto dos Bois já trabalharam ou trabalham com o café em grandes empresas que vem se
estabelecendo no município. Todavia, a relação dessas pessoas com esta atividade agrícola
vai além das empregatícias, o café das pequenas plantações ou até mesmo dos quintais,
além da pequena renda, através das feiras, é o cartão de visitas na casa dessas pessoas.
Trata-se de um símbolo principal das ruralidades, não apenas em Alto dos Bois, mas da
própria mineiridade. Não há um lugar em Minas Gerais, que este não seja o cheiro e o sabor
do rural. Há que se destacar ainda o orgulho em se dizer: “esse eu plantei, colhi e torrei aqui
mesmo”.
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Quilombola de Alto dos Bois moendo o café produzido no seu quintal.
Foto: NASCIMENTO (2015)
Pé de café carregado no quintal de uma família
quilombola. FOTO: SILVA (2015)
O cafezinho nunca se apresenta sozinho a mesa, ele é sempre acompanhado de uma
quitanda, cujo “saber-fazer” nunca se revela por inteiro, as receitas tem sempre um elemento
da história da família, do moinho de pedra que tinha na beira do córrego no fundo do quintal.
Saberes que não se reproduzem pelo simples replicar de uma receita, o sabor é sempre
atrelado ao significado, ao momento e ao motivo para se coser. O pão de cristo é para a festa
do padroeiro, não é a qualquer momento que se encontrará esta quitanda para ser deliciada, a
farofa do feijão andu fresco também tem seu tempo para ser degustada. Neste sentido, o que
buscamos ressaltar aqui é que a cultura local, os sentidos das experiência humana e as
relações do homem com o meio devem sempre ser consideradas ao se falar sobre a
multifuncionalidade das paisagens, sejam elas rurais ou não.
A própria proximidade rural/ urbana se coloca cada vez mais presente nessas paisagens, a
dinâmica atual do campo já não permite mais que haja esse distanciamento, as urbanidades
também estão presentes nas paisagens rurais. A dura realidade do êxodo rural deixa marcas
nesses locais que vão desde o esvaziamento populacional à adaptações de práticas culturais
tradicionais. Devido à falta de mão-de-obra jovem para a lida mais árdua do campo, os idosos,
que atualmente são a maioria nessas comunidades, destinam parte de suas aposentorias
para a compra de mantimentos que já não conseguem mais produzir. É nesse sentido, que
algumas tradições passam a se adaptar ao novo contexto do campo, o polvilho e fubá que
eram manufaturados nas fazendas, já são adquiridos na cidade para a produção dos biscoitos
e broas. Apesar dessas adaptações, e do reconhecimento da diferença do sabor, o biscoito de
polvilho e a broa de fubá continuam fazendo parte do cotidiano desses lugares. Assim como a
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“carne de lata”, antes conservada na lata com gordura de porco por não existir outra forma de
conservar esses alimentos. Apesar de todas as residências no campo já contarem com
energia elétrica, geladeira, fogão e outros utensílios domésticos, a carne conservada na
gordura de porco agora está numa vazilha plástica guardada na geladeira; as panelas de
barro e ferro batido estão sempre expostas sobre o fogão de lenha na hora de preparar o
almoço, mas o requentar a comida para o jantar e a água do café já são realizados no fogão à
gás, pois “dá menos trabalho, e não precisa buscar a lenha”. Esta, que também está cada vez
mais escassa, uma vez que as árvores do cerrado, que sempre forneciam galhos secos, hoje
foram substituídas pelos eucaliptais, que demoram mais tempo para fornecer a madeira, que
em grande parte, é vendida para aumentar a renda das famílias locais (a nova poupança do
campo).
Esse conjunto de transformações impacta ainda a própria relação desse homem com o meio,
esta que ainda é vista pelos outsiders sobre um olhar romantizado, e que para os inseders se
colocam cada vez mais insólidas, uma vez que, mediante as leis ambientais, certos usos
passam a ser limitados/proibidos, sem sequer considerar a sustentabilidade muitas vezes
centenária dos mesmos. Todavia, faz-se necessário destacar que em algumas situações são
essas mesmas leis que possibilitam a preservação de determinadas espécies, que pelo
apresso de seus produtos finais e demandas desproporcionais do mercado, corriam o risco de
se extinguir, como é o caso das palmeiras Catulé.
O Catulé é um dos elementos que exemplificam bem a multifuncionalidade da paisagem rural,
na qual há predominantemente um ciclo harmônico entre a produção e o consumo. Por ser
uma área de transição entre a mata atlântica, cerrado e caatinga essa espécie de palmeira
está presente em todos os lugares. É um elemento consideravelmente simbólico dessa
paisagem de Alto dos Bois, não apenas pela sua recorrência, mas por fazer parte da memória
daqueles que dormiam sob telhados da folha do Catulé, ouvindo o barulho do roçar do vento
ou das gotas de chuva batendo ao entardecer. Memória também do palmito que era muito
utilizado na alimentação e que os mais novos não compartilham mais desse sabor, pela
proibição de se coletar o mesmo, uma vez que para tal é necessário cortar todo o pé do Catúlé.
Por esse motivo, é também muito comum encontrar pés de Catulé entremeados às vastas
plantações de café nas paisagens de Alto dos Bois.
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Plantação de café entremeada com remanescentes do Catulé
Foto: RODRIGUES (2011)
Vale ressaltar que neste cenário onde sobrevivem as matas de topo e ciliares, além dos
representativos exemplares de catulés nas vertentes suaves, é nas grotas encaixadas que se
encontram as pequenas lavouras familiares que revelam não apenas as singulares desse
lugar, mas alguns retratos de esperança daqueles que já foram para fora em busca de
melhores condições de trabalho, e que encontraram no retorno a melhor maneira de construir
sua vida. A migração para os grandes núcleos urbanos propicia muitas oportunidades para os
jovens que saem da região, principalmente, em busca de emprego. Todavia a dura realidade
do trabalho nos canaviais ou grandes fazendas de café os distancia muito do cotidiano rural
ao qual sempre estiveram inseridos, fazendo com que muitos retornem com alguma renda no
intuito de se reestabelecer no seu lugar de origem. Com as práticas e técnicas que
aprenderam fora, eles buscam, em pequenos espaços, produzir lavouras adequadas que lhes
proporcionam, de acordo com o mercado, cem por cento de lucro. Em Alto dos Bois, algumas
famílias participam, inclusive, dos programas governamentais como o PRONAF (Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e o PNAE (Programa Nacional de
Alimentação Escolar).
Mediante a presença de programas como esses para os agricultores familiares, apesar das
dificuldades burocráticas para se cadastar, a migração para os grandes centros passa a ter
um caráter profissionalizante, uma vez que muitos aprendem novas técnicas de produção ou
atividades inovadoras, que acabam direcionando para o seu local de origem. Verifica-se
nesse sentido, que apesar de ser ainda uma minoria, há nesses grupos o desejo do retorno e
de transformação/implentação de oportunidades no seu lugar de origem.
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Essa forte ligação das pessoas com o lugar, revelada aí a partir da perspectiva do
pertencimento, das relações familiares, territoriais e culturais também se reforçam nas
espacialidades festivas. As festas de padroeiros ou de grupos tradicionais nas comunidades
do entorno sempre são momentos de retorno a essa paisagem rural que se apresenta nos
leilões, nos terços-cantados, nas apresentações das bandas de taquara e nas cantigas de
nove e vilão. Essa funcionalidade do resgate e manutenção das práticas culturais também é
de extrema importância para a compreensão dessa vivência das comunidades. A festa para a
comunidade é o momento do encontro, da interação mais vívida entre a vida presente e as
lembranças do passado. Muitas vezes é nesses entre-diálogos que certas paisagens se
consolidam ou apontam para novas dinâmicas/adaptações que possibilitem o contato ou a
apropriação de certas práticas tradicionais para as gerações futuras. Esse espaço do
encontro é, portanto, um momento valioso para a matriz cultural de uma paisagem rural, posto
que se consolidam num mesmo espaço elementos da cultura local, da interação do homem
com o meio, dos sentidos e percepções humanas e da multiplicidade de olhares, uma vez que
se encontram presentes pessoas daquela e de outras realidades.
Festa de N. Senhor Bom Jesus – Alto dos Bois
(Angelândia/MG) (2015) Foto: SILVA (2015)
Altar na Capelinha de Nosso Senhor Bom Jesus (Alto dos Bois – Angelândia/MG) Foto: SILVA (2015)
Aos nossos olhos, Alto dos Bois se revela como um paisagem emblemática pela sua
construção identitária pautada na convivência histórica entre índios, negros e portugueses.
Uma paisagem desse lugar que revela em sua materialidade e imaterialidade essas relações
é a Toca do Índio, uma gruta quartzítica localizada no interior da mata à qual são atribuídas
histórias de índios, negros e até bandidos que se escondiam naquela região. Apesar de
despertar o interesse dos outsiders, os moradores locais reconhecem a importância desse
local na história da comunidade, sem, contudo, atribuir-lhe certa valorização no contexto atual.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando colocamos em pauta o “romantismo” voltado às paisagens naturais que configuram
as multifuncionalidades do rural que perpassam nossas observações de outsiders, há, de
certa forma, um estranhamento real com as paisagens rurais construídas a patir dos valores
da vida, das percepções da realidade e do cotidiano local. As aproximações estéticas com o
urbano, muitas vezes fazem ressaltar mais aos nossos olhos do que o cotidiando onde as
relações e a dinâmica da vida se dão principalmente a partir da perspectiva do ser, da
generosidade e da própria relação de cumplicidade presente nas comunidades.
As multifuncionalidades que já existiam desde sempre no rural, se desvelam então aos
nossos olhos urbanos a partir do momento que rompemos com a visão enrigecida do rural
produtor e, a partir de um retorno desse olhar para o ser, passamos a enchergar a riqueza dos
valores e saberes que essas pessoas se dispõem a partilhar conosco. Não como uma
obrigação de subserviência do rural ao urbano, mas justamente por essa generorisadade e
compreensão do todo enquanto comunidade.
Posto isso, acredita-se que a perspectiva da multifuncionalidade das paisagens rurais se
coloca como uma concepção importante para a valorização das vivências e histórias locais,
sem contudo desvinculá-las ao diálogo do entorno, dos insiders e outsiders, que cada vez
mais colocam-se interligados e conectados nesses espaços.
REFERÊNCIAS
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