arquitetura rural mineira e arquitetura moderna...

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ARQUITETURA RURAL MINEIRA E ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA: A visão de Julio Curtis CALOVI, FELIPE WECKI (1); ESCOBAR, GABRIELA DE OLIVEIRA DOS SANTOS (2); PUHL, LIEGE ALVARES SIEBEN (3); TONIN, ESDRAS DE SOUZA (4); WAGNER, ISABELA CRISTINA (5) 1. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura E-mail: [email protected] 2. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura E-mail: [email protected] 3. UniRitter, professora e coordenadora do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura E-mail: [email protected],br 4. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura E-mail: [email protected] 5. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura E-mail: [email protected] RESUMO O livro Vivências com a Arquitetura Tradicional Brasileira, publicado pela editora Rittter dos Reis em 2003, traz uma coletânea de palestras e artigos publicados em jornais da autoria do arquiteto e professor Julio Curtis. O apanhado apresenta o registro de sua experiência, técnica e didática, de mais de 30 anos com a história e a preservação da arquitetura brasileira. Curtis foi o 1º Diretor Regional do IPHAN-RS, representante regional da Fundação Pró-Memória e membro do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre. Com seus alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, Curtis realizou viagens pelo Brasil, especialmente para Minas Gerais, que resultaram em um acervo fotográfico de mais de 12.000 negativos doados para o Centro Universitário Uniritter no início dos anos 2000. Grande parte da experiência e conhecimento do arquiteto se deve a estas viagens. Era in loco que Curtis confrontava a obra de arquitetura com as circunstâncias físicas, econômicas e culturais que lhe deram origem. Na introdução do livro Curtis afirma que a maior contribuição de Minas Gerais aos primórdios da arquitetura brasileira contemporânea, a Arquitetura Moderna brasileira, foi através de sua arquitetura rural-leiteira e cafezista. No decorrer do livro o autor apresenta diversas fotos, textos e análises que corroboram tal afirmação. A partir da retomada dos paralelos traçados por Curtis entre a arquitetura rural mineira e a arquitetura moderna de matriz Corbusiana o presente trabalho traz novos paralelos através de registros fotográficos ainda não publicados. O método utilizado foi o de análise de fotografias e registros escritos, e comparativos com obras modernas brasileiras. O trabalho está inserido em uma

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ARQUITETURA RURAL MINEIRA E ARQUITETURA MODERNA

BRASILEIRA: A visão de Julio Curtis

CALOVI, FELIPE WECKI (1); ESCOBAR, GABRIELA DE OLIVEIRA DOS SANTOS (2); PUHL, LIEGE ALVARES SIEBEN (3); TONIN, ESDRAS DE SOUZA

(4); WAGNER, ISABELA CRISTINA (5)

1. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura

E-mail: [email protected]

2. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura

E-mail: [email protected]

3. UniRitter, professora e coordenadora do Laboratório de História e Teoria da Arquitetura E-mail: [email protected],br

4. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da

Arquitetura E-mail: [email protected]

5. UniRitter, acadêmico de Arquitetura e Urbanismo e monitor do Laboratório de História e Teoria da

Arquitetura E-mail: [email protected]

RESUMO

O livro Vivências com a Arquitetura Tradicional Brasileira, publicado pela editora Rittter dos Reis em 2003, traz uma coletânea de palestras e artigos publicados em jornais da autoria do arquiteto e professor Julio Curtis. O apanhado apresenta o registro de sua experiência, técnica e didática, de mais de 30 anos com a história e a preservação da arquitetura brasileira. Curtis foi o 1º Diretor Regional do IPHAN-RS, representante regional da Fundação Pró-Memória e membro do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre. Com seus alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, Curtis realizou viagens pelo Brasil, especialmente para Minas Gerais, que resultaram em um acervo fotográfico de mais de 12.000 negativos doados para o Centro Universitário Uniritter no início dos anos 2000. Grande parte da experiência e conhecimento do arquiteto se deve a estas viagens. Era in loco que Curtis confrontava a obra de arquitetura com as circunstâncias físicas, econômicas e culturais que lhe deram origem. Na introdução do livro Curtis afirma que a maior contribuição de Minas Gerais aos primórdios da arquitetura brasileira contemporânea, a Arquitetura Moderna brasileira, foi através de sua arquitetura rural-leiteira e cafezista. No decorrer do livro o autor apresenta diversas fotos, textos e análises que corroboram tal afirmação. A partir da retomada dos paralelos traçados por Curtis entre a arquitetura rural mineira e a arquitetura moderna de matriz Corbusiana o presente trabalho traz novos paralelos através de registros fotográficos ainda não publicados. O método utilizado foi o de análise de fotografias e registros escritos, e comparativos com obras modernas brasileiras. O trabalho está inserido em uma

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pesquisa mais ampla e em andamento, realizada pela equipe do Laboratório de História e Teoria de arquitetura do Centro Universitário Uniritter.

Palavras-chave: Julio Curtis; arquitetura rural mineira; arquitetura moderna brasileira; fazendas

mineiras

1-Julio Curtis

O presente artigo tem como base publicações e fotos de Júlio Nicolau Barros de

Curtis, reunidas no livro Vivências com a Arquitetura Tradicional Brasileira. Curtis teve um

papel relevante na construção historiográfica arquitetônica brasileira, no ensino e pesquisa e

na preservação do patrimônio cultural arquitetônico. Nascido em Porto Alegre, no ano de

1929, formou-se na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, atual

UFRJ, foi o 1º Diretor Regional do IPHAN-RS, representante regional da Fundação pró-

Memória e membro do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico de Porto Alegre. Como

docente, lecionou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo como Professor Titular de Arquitetura Brasileira, onde, nesse

mesmo cargo, se aposentou. Costumava levar seus alunos em viagens para conhecer

partes Brasil pertencentes aos seguintes estados: Bahia, Maranhão, Pernambuco, Rio de

Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, entre outros. Para Curtis tais viagens tinham imensa

importância, por propiciarem a possibilidade de conhecer e vivenciar a história da arquitetura

brasileira desde seus primórdios, no século XVI. Acreditava que a vivência in loco era o

melhor método de aprendizagem da arquitetura. Estas saídas à campo ocorreram durante

décadas e os locais visitados eram registrados por meio de fotografias1, de autoria do

próprio professor. Foi em Minas Gerais que Curtis constatou que a Arquitetura Moderna

Brasileira2, vinculada à escola carioca, tem fortes influências de uma arquitetura pouco

citada e conhecida, quando trata-se da arquitetura de Minas Gerais: a arquitetura rural

mineira;

“... tenho pra mim que a maior contribuição de Minas Gerais aos primórdios

da arquitetura brasileira contemporânea foi sua arquitetura rural – leiteira e cafezista –

que, sucedendo a civilização urbana do ouro, levou até o VALE, paulista e

1 Atualmente essas fotografias fazem parte do Acervo Julio Curtis, que encontra-se no Laboratório de História e

Teoria da Arquitetura, no Centro Universitário UniRitter, em Porto Alegre-RS. 2 No livro Vivências com a Arquitetura Tradicional Brasileira, Curtis refere-se à Arquitetura Moderna Brasileira

como Arquitetura Contemporânea Brasileira. Assim também faz Yves Bruand no livro Arquitetura Contemporânea no Brasil.

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fluminense, um século de experiência acumulada e consolidada na utilização de um

racionalismo construtivo, plástico e funcional3.”

2-Fazendas mineiras

“A casa rural – e nós diríamos especialmente a casa rural – é a feição

geográfica de ocupação humana que melhor reflete as condições no meio.”4

A expressão máxima da arquitetura rural mineira traduz-se nas fazendas dos ciclos

do café, leite e do ouro. Tal arquitetura é bem específica, única, e, segundo Curtis,

totalmente brasileira. Sua particularidade se dá em função do programa e da localização. O

local, distante do litoral e com recursos limitados geraram soluções simples e eficientes para

se fazer arquitetura de qualidade. O programa demandava uma grande área livre para

construções como a senzala, casa grande, currais e outras demandas da instalação rural.

Assim a área construída era esparsa e com edificações que “pousavam” sobre o terreno,

predominando a horizontalidade sobre a verticalidade.

No meio rural mineiro a maior parte da topografia é irregular e as construções se

davam nesse meio entre, morros e rios. Feita por materiais do local e pelas próprias

pessoas que morariam nas casas, adaptou-se a construção à topografia irregular e não ao

contrário. Em muitos casos as construções em aclives e declives eram erguidas sobre

pilares de madeira na parte da frente e a parte de trás assentava-se diretamente no solo.

Em alguns casos a parte de baixo da construção, a composta por pilares aparentes, é a

área onde se encontram depósitos, currais, etc. A sutil verticalização das fachadas

principais, sobre pilares, ocorria também para que se observasse e resguardasse as terras

que se estendiam para além de vista de um mero observador. Os pilares indepententes e

aparentes no térreo proporcionavam um espaço vazado, aberto e coberto, e a possibilidade

de ter função hibrida. Eles integravam a construção com a terra, como se a construção

estivesse liberando o solo, algo que sugere certa poesia.

São típicas as varandas ou alpendres nas fachadas principais com pilares em ritmo

constante. Muitas vezes os alpendres são elevados em relação ao pátio, nível de acesso à

propriedade, com o intuito de elevar a moradia principal, onde os proprietários tivessem o

domínio do núcleo. Nestes casos há a presença de escadas localizadas ao centro das

fachadas principais. As plantas em “L” são bastante comuns, sendo uma barra a ala social e

a outra a ala de serviços. São usadas também plantas quadradas e em linha. De modo

3 Curtis, 2003, pg. 19.

4 Delgado de Carvalho em Curtis, 2003, pg.68.

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geral os cômodos são amplos e ventilados; e distribuem-se em torno de uma sala ou pátio

central, ou contíguos a circulações.

Neste contexto, algumas fazendas específicas destacam-se por apresentarem

soluções arquitetônicos que podem ser consideradas embriões de elementos que virão a ser

consagrados e recorrentes na arquitetura moderna vinculada ao Movimento Moderno. As

fazendas são as seguintes: Boa Esperança, Santa Clara, Rio de São João, Quebra-Canoas,

Papagaio do Meio e São Fernando.

A fazenda Boa Esperança está localizada no município de Belo Vale, antigo distrito

de São Gonçalo da Ponte. Parte da propriedade foi tombada pelo IPHAN em 1959. Em

1975, o IEPHA-MG ampliou o tombamento englobando anexos edificados, matas e cursos

de rios. A propriendade tornou-se patrimônio paisagístico, artístico e histórico do Estado de

Minas Gerais. A fazenda foi construída por escravos, na segunda metade do século XVIII,

época em que o café era o expoente econômico da região.

A propriedade era formada por casa grande, volume principal, que abrigava os

aposentos dos donos da terra, capela e quarto de hóspedes; senzalas; engenho para a

produção de trigo; moinho; paiol feito de pedra e um terreiro grande com tanque de pedra.

Em frente à casa grande encontra-se um imenso pátio cercado por um muro de pedras. Um

pórtico liga o interior do pátio ao antigo caminho para Ouro Preto. À esquerda da casa

grande há um portão, que leva às áreas de trabalho e à direita há alicerces do que teria sido

uma das senzalas. Posteriormente à casa há um moinho em ruínas e vestígios de um

engenho à beira de um pequeno córrego, que costumava alimentar uma pequena usina. A

edificação que abriga o engenho contém apenas um pavimento e volumetria retangular

simples, assim como a casa grande, cuja forma volumétrica apresenta dois retângulos que

se encontram nas extremidades, formando um “L”. Os telhados das edificações são de

quatro águas, exceto o da igreja, que tem telhado de duas águas.

A casa grande é térrea e apresenta uma fachada avarandada composta por arcos

abatidos, apoiados em oito colunas de madeira, dispostas em ritmo constante. À esquerda

da fachada frontal, está a capela, mais alta e com telhado independente. No lado oposto à

capela está localizado o quarto de hóspedes, com pé-direito contínuo ao da varanda. O

tratamento decorativo do interior da capela evidencia ostentação e riqueza, reafirmando o

poder e prestígio do antigo proprietário da fazenda, o Barão de Paraopeba. A casa-sede

está elevada sobre uma base de pedras. Uma escadaria ao centro da fachada principal liga

o pátio ao avarandado. De modo periférico à residência, alonga-se um avarandado em

formato de “L”, construído posteriormente. Este elemento aumenta a articulação entre os

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cômodos e é vedado por treliçados, permitindo visibilidade para o pátio interno e serviços do

paiol.

A Fazenda Santa Clara está situada na cidade de Santa Rita de Jacutinga, Zona da

Mata, Minas Gerais. É originária da segunda metade do século XVIII, sua principal atividade

produtiva foi o café. A fazenda é formada por edificações tanto térreas quanto de dois

pavimentos, sendo elas: a tulha, senzala, silo, reservatório de água, lavador de café,

terreiros de café, laticínio, paiol, pocilga e os jardins. A casa grande e a maioria das

construções do conjunto que foram citadas acima eram destinadas às necessidades de

produção do café e são volumes prismáticos retangulares. O conjunto foi tombado pelo

IEPHA-MG no ano de 2014 e ainda preserva sua original técnica construtiva: a taipa. A

planta da casa grande é composta por duas barras perpendiculares em formato de “L”. Há

um volume em formato de “U”, anexo a uma das barras do “L”, com dois pavimentos. O

térreo é parcialmente vazado com arcos plenos e pilares no perímetro externo do edifício.

A Fazenda Rio de São João está localizada no interior de Minas Gerais, na cidade de

Bom Jesus do Amparo, embora seja uma cidade nova, fundada no século XIX, muito de sua

história ocorreu no século anterior. A fazenda foi fundada no final do XVIII pelo Capitão João

da Motta Ribeiro, o primeiro morador do lugar onde se localiza a atual cidade se Bom Jesus

do Amparo. A construção colonial edifica-se no meio da selva virgem de Minas Gerais, com

o estimulo da expansão territorial e da mineração. A fazenda foi sustentada pelo modo de

funcionamento escravista, isto é com o sistema de grande latifúndio com seus

trabalhadores. O volume consiste em um “U” ao redor de um pátio interno, lembrando a

herança ibérica. As barras das extremidades do “U” correspondem ao moinho e a residência

propriamente dita. A barra que liga as extremidades abriga a capela. Os acessos a casa e a

capela são independentes, e se dão através de duas escadas que insinuam uma simetria.

No eixo das escadas, acima, localiza-se o mirante, algo muito comum em propriedades

rurais. Há um balcão corrido no segundo pavimento, sustentado por pilares em grande parte

do perímetro da casa grande. Os 22 cômodos do volume superior se organizam numa

disposição linear. No lado esquerdo da barra se localiza a capela, tem seu acesso privado

para a rua com uma escada que liga a varanda e, assim, para a porta da pequena capela.

O volume do moinho, anexo à casa grande, foi construído de madeira e barro do

local. Ele mede 18 metros de comprimento por 11 metros de largura, com adição de um

prisma retangular de 4 metros por 13 metros, local usado como estoque de material. O

espaço basicamente consiste em um grande salão que servia para a produção de alimentos.

Nele trabalhavam escravos, por isso a sua localização está no térreo, junto com a residência

dos trabalhadores. A sua separação do jardim de lazer da casa grande e do moinho é feita

através de uma parede feita de madeira com barro prensado, executada pelos mesmos que

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utilizam a devida área. Esta área é coberta por um telhado de telhas de barro que é

sustentado por 13 pilares de madeira de, aproximadamente, 5 metros de altura, com vãos

de 4 metros e 3 metros entre apoios.

Na metade suas fachadas laterais, e na frontal destacam-se elementos verticais que,

como brises verticais, protegia do sol durante o dia. No seu interior havia um grande

desnível sustentado por pedras retiradas do local, assim demarcando outra área de trabalho

mesmo sendo no mesmo espaço. Os materiais e ferramentas ali utilizadas exigiam grande

espaço de manuseio, então o interior não possuía nenhuma divisória para não bloquear o

movimento dos empregados que trabalham neste local, assim remetendo a planta livre de

tempos posteriores. A conexão desse volume se dava não só pelo pátio, mas também por

uma escada que se localizava no lado esquerdo. A materialidade do moinho era vernácula,

suas paredes imperfeitas constituídas de barro e madeira do local buscavam uma divisão de

ambientes, sendo elas somente de vedação, não serviam como estrutura. Pintadas de cal,

exibiam um branco que se misturava com o volume principal, dando, assim, uma unidade ao

complexo.

A fazenda Quebra-Canoas, contemporânea à fazenda Boa Esperança, foi construída

na segunda metade do século XVIII, quando o café era a principal forma de renda da

população local. Está situada no município de Ponte Nova, Minas Gerais, próxima ao

córrego que dá origem ao nome da propriedade e que banha suas terras. A fazenda fazia

parte de um conjunto de fazendas de engenho da região. A casa grande tem dois

pavimentos: térreo com planta em “L” e segundo pavimento em planta quadrada. É

composta por cerca de 30 cômodos dispostos linearmente sob uma malha regular de pilares

com circulações em faixas. A edificação mantém sua configuração original, apesar do

desgaste do tempo.

O conjunto da fazenda Quebra-Canoas é formado por volumes independentes em

formato de prismas retangulares regulares com funções de currais, senzalas, paióis, tulhas,

entre outros. São dispostos no terreno ao redor do volume principal, a casa grande, de

maneira a facilitar os acessos criando espaços vazios para pomares e hortas.

Fundada no início do século XIX, a fazenda São Fernando situa-se na divisa entre

Minas Gerais e Rio de Janeiro, entre as cidades de Rio Preto e Valença, respectivamente.

São Fernando foi uma das maiores e mais bem equipadas fazendas da região, formada por

diversas edificações, a maioria com pavimentos térreos e apenas duas com dois

pavimentos, sendo que uma é a casa-grande. A fachada referente ao segundo pavimento da

casa grande é praticamente toda vedada com esquadrias de vidro.

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A fazenda Papagaio do Meio, uma das maiores do Vale Piranga, foi fundada no

século XVIII no município de Santana dos Montes, Minas Gerais. Sua principal economia

era a fabricação da cachaça tradicional da região. Ela funcionou também colo local para a

produção de leite e grãos. Originalmente composta por edificação de dois pavimentos, a

fazenda foi vendida e parcialmente demolida no final do século XX. O segundo pavimento

avançava em relação ao térreo e este avanço era apoiado em pilares de madeira dispostos

em ritmo constante. O novo proprietário provavelmente usou os materiais de demolição da

antiga casa grande para a obra nova e construiu em cima da estrutura da casa grande um

rancho com dois pavimentos que serve atualmente como um local de eventos. Hoje ainda

há resquícios da antiga sede como as paredes estruturais em pedra que constituíam o porão

e sustentavam o sobrado, além de alguns muros de pedra em junta seca.

3-Paralelos entre a arquitetura rural mineira e a arquitetura moderna

“O purismo das plantas, das elevações e das volumetrias, tão caro ao

racionalismo contemporâneo, é uma constante na arquitetura do passado”.5

Em todas as fazendas descritas podemos ver avarandados ou alpendres com

pilares, que se relacionam à ideia do pilotis, um dos cinco pontos de Le Corbusier: Nas

fazendas os pilares dispostos no térreo como estrutura independente são empregados com

veemência, e formam espaços com funções distintas. No acesso ao moinho e em parte das

fachadas da casa grande em Rio de São João (imagens 1 e 2), os pilares esbeltos de

madeira se estendem do piso à cobertura, altura equivalente a dois pavimentos, ou seja, a

ordem é colossal. Parte do solo é liberado. A ideia de usufruir deste espaço térreo liberado é

análoga à ideia do pilotis do Le Corbusier. e cabe a comparação ao pilotis de ordem colossal

do Palácio Capanema. Na Santa Clara a base vazada corresponde a uma galeria com

arcada tipo romana apoiada em pilares de pedra, mais robustos e pesados. Há uma galeria

também na casa grande da fazenda Papagaio do Meio (imagem 3), entre os pilares e a base

recuada, aludindo ao pilotis.

Sobre as relações entre os elementos de filtro de luz, Curtis afirma:

“O ‘brise soleil’ e os elementos vazados da arquitetura

contemporânea haviam sido sugeridos nas palhetas móveis de antiga

venezianas e nas treliças de madeira que tantos muxarabis organizaram” 6

5 Curtis, 2003, pg.150.

6 Curtis, 2003, pg.150.

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Os filtros de luz aparecem em algumas fachadas da fazenda Boa Esperança

(imagem 4). São muito trabalhados, quase como uma pintura lembrando os arabescos e

fachadas do litoral do país com seus azulejos. Também é possível comparar a um véu que

libera a fachada trazendo a leveza para um conjuto mais pesado e marcante. Ainda na Boa

Esperança verificam-se outros tipos de dipositivos de proteção solar: verticais e mais

simplificados (imagem 5). Na fazenda Santa Clara coexistem elementos de proteção solar

treliçados e verticais numa mesma fachada (imagem 6). Na fazenda Rio de São João ripas

verticais em madeira sugerem “brises” mais simplificados e rústicos. Estes aparecem,

apenas, em parte da fachada do moinho (imagem 7).

A planta livre, a fachada livre e a janela em fita, pontos da arquitetura moderna,

pautada por Le Corbusier, são encontrados em algumas das fazendas descritas. O moinho

da fazenda Rio de São João apresenta planta livre. São diversos pilares recuados e

desvinculados das vedações externas. Os avarandados das casas grandes, localizados no

segundo pavimento, são, de fato, longos trechos de fachada livre, com variações de guarda-

corpo, espaçamento e dimensões de pilares, etc. Os seguimentos com fachada livre são

encontrados nas fazendas Boa Esperança, Quebra-Canoas e Rio de São João (imagens 8,

9 e 10). Na última, os pilares da varanda superior da residência tem a função de obter um

vão livre, caracterizando um “espaço público”, visto que a porta de entrada da capela

desaguava nesse corredor, trazendo uma sensação de permeabilidade a quem estivesse ali

passando. A fachada principal da fazenda São Fernando (imagem 11) destaca-se por

apresentar uma membrana de vidro quase ocupando a totalidade da área da fachada do

segundo pavimento aonde o vidro se encontra com um parapeito baixo e com o velho

telhado de telha de barro.

Mestres da arquitetura moderna brasileira como Lucio Costa, Joaquim Cardoso,

Alcides da Rocha Miranda, entre outros, depois que conheceram a arquitetura colonial

mineira (rural e urbana), em viagens a trabalho pelo SPHAN, entenderam “como é moderna

a arquitetura antiga do Brasil” (nas próprias palavras de Curtis). O aprendizado com a

arquitetura feita pelos mestres portugueses influencia e muito a produção da arquitetura

moderna brasileira. Os projetos de Lucio Costa confirmam a afirmação: Vila Operária em

Monlevade, Casa Barão de Saavedra, Pavilhão de Nova York e tantas outras onde as

referências ao passado são explícitas.

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4-Imagens

Imagem 1-Fazenda Rio de São João, Bom Jesus do Amparo - Minas Gerais

Imagem 2- Fazenda Rio de São João, Bom Jesus do Amparo - Minas Gerais

Imagem 3 - Fazenda Papagaio-do-Meio, Santana dos Montes - Minas Gerais

Imagem 4 -Fazenda Boa Esperança, Bela Vista – Minas Gerais

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Imagem 5 - Fazenda Boa Esperança, Bela Vista – Minas Gerais

Imagem 6 - Fazenda Santa Clara, Santa Rita de Jacutinga – Minas Gerais

Imagem 7 - Fazenda Boa Esperança, Bela Vista – Minas Gerais

Imagem 8 - Fazenda Boa Esperança, Bela Vista – Minas Gerais

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4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Imagem 9 - Fazenda Quebra-Canoas, Ponte Nova - Minas Gerais

Imagem 10 - Fazenda Rio de São João, Bom Jesus do Amparo - Minas Gerais

Imagem 11 - Fazenda São Fernando, Rio Preto - Minas Gerais

5-Referências Bibliográficas

Biblioteca do IBGE. Bom Jesus do Amparo - Histórico. Disponível em

<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais/bomjesusdoamparo.pdf>.

Acesso em 02 de novembro de 2015.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil, São Paulo: Perspectiva, 1981.

CAVALCANTI, Lauro (org.). Modernistas na Repartição, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.

COSTA, Lucio. Lucio Costa: Registro de uma vivência, 2ª ed., São Paulo, Empresa das

Artes, 1995.

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CURTIS, J. N. B. de. Vivências com a Arquitetura Tradicional do Brasil. Porto Alegre: Ritter

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CRUZ, Cícero Ferraz. Fazendas do sul de Minas: arquitetura rural nos séculos XVIII e XIX.

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<http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/ColArq2_Fazendas_do_Sul_de_Minas_Gerais

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COELHO, Sandra Lemos. Transformações arquitetônicas: contribuição ao estudo das

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<http://www.proarq.fau.ufrj.br/novo/trabalhos-de-conclusao/dissertacoes/201/>. Acesso em 3

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DIAS, A. L. F. De O., Terra, trabalho, parentela, e fé: uma abordagem sobre o espaço social

e a herança afrodescendente na comunidade rural de Nogueira, Ponte Nova-MG. Disponível

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1025/Publico/texto%20completo.pdf>. Acesso em 31 de outubro de 2015.

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<http://www.fazendasaofernando.com.br/quem_somos/historico.php>. Acesso em 01 de

novembro de 2015.

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6-Referências Imagens

Todas as imagens utilizadas pertencem ao Acervo Julio Curtis, localizado no Centro

Universitário Uniritter, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Os créditos das imagens são de

Julio Curtis.