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JAIME NOGUEIRA PINTO O ISLÃO E O OCIDENTE A GRANDE DISCÓRDIA Com a colaboração de INÊS PINTO BASTO

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C A P Í T U L O

J A I M E N O G U E I R A P I N T O

O I S L Ã O E O O C I D E N T EA G R A N D E D I S C Ó R D I A

Com a colaboração deI N Ê S P I N T O B A S T O

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C A P Í T U L O

Í N D I C E

I EM NOME DE ALÁ, O MISERICORDIOSO

II A GRANDE MARCHA MUÇULMANAOs fundadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A Espanha muçulmana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .As Cruzadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O reino de Jerusalém . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

III A SUBLIME PORTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A fragmentação da frente cristã . . . . . . . . . . . . . . . .«Libertar os muçulmanos dos opressores» . . . . . . . .Os perigos e os encantos da ocidentalização . . . . . .Imperialismo oitocentista: o regresso dos «cruzados» .O doente da Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

IV ENTENTE IMPERIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Lawrence da Arábia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A recolonização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A Palestina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

V O NACIONALISMO ÁRABE . . . . . . . . . . . . . . .Nova ordem no Médio Oriente . . . . . . . . . . . . . . . .O nacionalismo árabe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O ouro negro da Casa de Saud . . . . . . . . . . . . . . . . .A radicalização da Palestina . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O petróleo como arma política . . . . . . . . . . . . . . .A curta paz de Jerusalém . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VI O NOVO TEMPO DO ISLÃO . . . . . . . . . .1979 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O regresso às raízes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Guerra Fria no Médio Oriente . . . . . . . . . . . . . . .A derrota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VII TEMPESTADES NO DESERTO . . . . . . . .O ditador laico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tempestade sobre Washington . . . . . . . . . . . . . . .Tempestade no Deserto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Osama: o Corão e a Espada . . . . . . . . . . . . . . . . .A Base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VIII O GRANDE ATAQUE . . . . . . . . . . . . . . . .Os conspiradores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .«O dever de todo o muçulmano» . . . . . . . . . . . . .Ressentimentos históricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A resposta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A guerra contra Saddam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .No Islão do Ocidente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O Egipto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A terra dos puros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .No sueste islâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

IX A GUERRA DAS SOMBRAS . . . . . . . . . . . .Um combate assimétrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Niilismo islâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A origem do terror . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Uma guerra global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Sete anos de guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A caça ao homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

X AS PRIMAVERAS ÁRABES . . . . . . . . . . . . . . .«Continuaremos a perseguir os americanos» . . . . .O rastilho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Líbia: uma Primavera sangrenta . . . . . . . . . . . . . . .Primavera reformista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .As quatro Sírias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Fim de estação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

XI A ÚLTIMA HORA EM DABIQ . . . . . . . . . . .A Profecia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Do jihadismo ao Estado Islâmico . . . . . . . . . . . . .O novo Califado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O dia-a-dia de um jihadista . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A união dos contrários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Hobbes na Mesopotâmia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O regresso dos otomanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Irão: os pragmáticos herdeiros de Ali . . . . . . . . . . .A Casa de Saud e o jihadismo . . . . . . . . . . . . . . . . .A sucessão no Reino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

XII A FRENTE LAICA DA GUERRA SANTA .Paris, 7 de Janeiro de 2015 . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A nova frente ocidental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Os muçulmanos em números . . . . . . . . . . . . . . . . .A pátria do laicismo militante . . . . . . . . . . . . . . . . .Olho por olho, dente por dente . . . . . . . . . . . . . . .

XIII O CRESCENTE E A CRUZ . . . . . . . . . . . . .O sangue dos «cruzados» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A terra prometida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . À sombra das espadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Milenarismo armado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Al-Qaeda vs. Estado Islâmico: «moderados» contra radicais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Guerra cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Os cavaleiros do Apocalipse . . . . . . . . . . . . . . . . .

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Índice Onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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N’este estado negativo, de passividade na dúvida, não se gera facilmente um impulso d’acção forte. Um jehad no Islão é tão im-praticável – como uma cruzada no Cristianismo. […] De resto, é possível que eu esteja aqui atribuindo a fortes corações de Meca e do deserto os cepticismos literários de Pall-Mall e do Boulevard de la Madeleine. Que sabemos nós do que se passa dentro do Islão? Tão pouco como os letrados da mesquita d’El-Azhar sabem o que por cá vai dentro do nosso confuso catolicismo.

José Maria Eça de Queirós, 1882

A cultura europeia é intrinsecamente materialista e já só conser-va o Cristianismo como uma relíquia de família. […] É nosso dever estabelecer a soberania em todo o mundo e converter a humanida-de aos sábios preceitos do Islão e seus ensinamentos, sem os quais o homem não pode aspirar à felicidade.

Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, 1928

árabes e copiar os processos mentais dos muçulmanos arrancou--me do meu eu inglês e obrigou-me a olhar o Ocidente e as suas convenções com outros olhos: destruiu tudo. Ao mesmo tempo,

se converterá a outra fé.T. E. Lawrence, 1922

É tempo de pôr em marcha um movimento de equidade e re-conciliação inter-civilizacional para que possamos sarar as feridas do passado – que são recíprocas e que se vão sedimentando nos nossos subconscientes. Temos de fazer esse exorcismo, essa recon-ciliação; sair da tensão em que hoje vivemos e voltar à interdepen-dência e ao reconhecimento mútuo.

Ahmed Abbadi, presidente da Liga dos Ulemas de Marrocos, 2015

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Dois homens na paisagem. O de túnica alaranjada está ajoe-lhado na areia, de frente para nós; o outro, de fato de ninja

recortadas no cenário austero podiam integrar o último acto de uma space opera trágica, passada numa galáxia remota, algu-res no futuro, ou uma dessas versões pós-modernas das peças clássicas, um drama shakespeariano de traições e crimes de Es-

Mas tudo muda quando o homem da túnica, de cabeça ra-pada como um budista pobre ou um prisioneiro de Guantá-namo, começa a falar:

«I call on my friends, family and loved to rise against my real killers…»

É um prisioneiro, um refém, que articula uma última mensa-gem. Não sabemos se com uma convicção de recém-convertido se com uma amargura de arrependido; ou se é de uma concessão que se trata, na esperança de ser poupado. Apela a todos, espe-cialmente ao irmão, John Foley, piloto da USAF, lembrando-lhe que é dele e dos seus camaradas a culpa, que é deles a responsabi-lidade, que são eles e o Governo que os manda os seus real killers.

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«But that ship has sailed. I guess all in all, I wish I wasn’t American».

O tom ligeiramente comovido da voz, a desolação alucina-

James Foley está de joelhos, de mãos atadas atrás das cos-

--lhe a mão direita no ombro, quase amigavelmente; na outra, tem um punhal curto, colado ao corpo. As palavras do carrasco dirigem-se à América e ao presidente Obama; e, à medida que as vai dizendo, vai deixando menos dúvidas sobre o que vai fa-zer. Ele e os seus são o Exército Islâmico e a morte de Foley é mais um preço que os inimigos do Califado vão ter de pagar.

Acabada a prédica, proferida num inglês arabizado, agarra a cabeça da vítima, encosta-lhe a faca ao pescoço e, com um corte, sangra-o de morte perante a câmara e o mundo.

A cena termina com o cadáver de Foley em posição jazen-te, a cabeça decepada, pousada em cima dos ombros, como um bibelot. O sangue espalha-se pelo laranja açafrão da túnica, numa imagem de horror psicadélico.

Um último shot mostra a vítima que se lhe seguirá se Oba-ma não suspender os bombardeamentos contra o Califado. Steven Joel Sotloff vai conhecer o mesmo destino; ele e ou-tros – jornalistas, voluntários, cooperantes.

pelos carrascos, com estas e outras atrocidades: prisioneiros arrebanhados e humilhados, caminhando para a morte; valas cheias de cadáveres, a lembrar as imagens a preto e branco das

XX europeu; homens linchados

e multidões expectantes; horror serials de sepultados vivos, de

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uma modernidade apocalíptica, arrogantes demonstrações de crueldade para uso, exemplo e terror dos ímpios.

A longa série de mortos do Verão de 2014 culminou no massacre, na região de Abu Hamman, na Síria, de 700 pessoas da tribo Shu’aytat, uma tribo que resistiu às forças do Estado Islâmico. Seguiu-se uma interminável lista de ataques: em Melbourne, Nova Iorque, Kano, Grozny, Peshawar, Dijon, Nantes, Bagdad, Mogadíscio.

Mas depois destes atentados em cinco continentes viria aquele que mais iria impressionar a opinião pública europeia, porque acontecido no coração da Europa e dirigido contra um grupo, uma classe e um princípio que os europeus consideram sagrados e intocáveis. O ataque ao semanário Charlie Hebdo, em 7 de Janeiro de 2015, moveu e comoveu mais os europeus do

do que a chacina das crianças e jovens do Colégio Militar de Peshawar, do que as mulheres escravizadas ou massacradas pelo Boko Haram na Nigéria.

Quem são os autores desta desalmada violência? Em que acreditam? Alguém os comanda? Quem? O que os leva a esta orgia de sangue e exibicionismo, a lembrar crónicas concentra-cionárias, cenas da Antiguidade, limites da perversidade humana?

A reacção a este extremo de crueldade tem gerado estra-nhas e impensáveis alianças e conúbios.

Perante os avanços do Estado Islâmico, o então rei Abdullah da Arábia Saudita, exasperado com os desmandos dos extre-mistas, começou por dar ordem aos ulemas, exortando-os a pronunciarem-se e a condenarem as malfeitorias do autopro-

ulemas, xeiques e imãs de todo o Reino e de todas as depen-dências islâmicas lançaram os piores anátemas sobre a organi-

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zação, apelidando-a de «inimigo número um dos muçulmanos».Para alguns dos mais eminentes representantes do waha-

bismo saudita, os adeptos do Estado Islâmico são «apóstatas piores que os judeus, os nazarenos e até que os pagãos»; para outros, são «uma criação dos sionistas, cruzados e xiitas, os carijitas do nosso tempo».

Estes brutais defensores do Estado Islâmico (ISIS, Islamic State of Irak and Syria) e do califado proclamado em Junho – uma reminiscência do califado sunita, reconstruído na tra-dição do Islão histórico – têm como chefe um tal Abu Bakr al-Baghdadi. Al-Baghdadi é um pregador quarentão, gordo e barbudo, natural de Samarra, no Iraque. Até se proclamar

nasceu em 1971, foi preso e libertado pelos americanos em 2004, em Bagdad, e hoje comanda um exército de milhares de combatentes fanatizados. A faixa territorial que ocupam apa-nha parte do Nordeste da Síria e entra pelo Norte do Iraque nas terras sunitas, entre a Suleimânia – o Curdistão iraquiano – e a zona norte de Bagdad.

Al-Baghdadi rompeu com a Al-Qaeda em Fevereiro de 2014 e tornou-se um inimigo feroz dos ex-companheiros. Um antigo lugar-tenente de Osama bin Laden, Abu Qatada, hoje preso na Jordânia, referiu-se aos seus irmãos sunitas do Es-tado Islâmico como «cães do Inferno», condenando as deca-pitações dos jornalistas. Não seria a pessoa mais credenciada para o fazer: as decapitações tinham começado com a Al-Qa-eda no Paquistão, em 2007, com o assassínio de Daniel Pearl, do Wall Street Journal.

Na Primavera de 2014, o Estado Islâmico alargou-se como uma maré equinocial, dominando, quase de repente, 100 000 quilómetros quadrados com mais de cinco milhões de habi-tantes (na maioria sunitas iraquianos das zonas tribais tradi-

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do Califado exploram o descontentamento das populações com a discriminação e as perseguições a que foram subme-tidas pelos governos xiitas de Bashar al-Assad e de Al-Maliki. E agora estão aí, no centro do furacão, perturbando o Oci-dente e quase todo o Médio Oriente, recebendo a adesão de milhares de muçulmanos espalhados por esse mundo fora – e de jovens radicais sortidos, paranóicos e desadaptados, em busca, nessa claque extrema, de um violento antídoto para a morna decadência e para o abúlico mercantilismo do Ocidente.

Mas as surpresas são ainda mais extraordinárias: por causa do Estado Islâmico, Hossein Amir Abdollahian, vice-minis-tro iraniano dos Negócios Estrangeiros, visitou Riad e os seus arqui-inimigos da Casa de Saud; e foi para combater as forças

-ram alianças com as milícias xiitas do imã Al-Badr, até então um perigoso terrorista para Washington. Na reconquista da cidade de Amerli, em 1 de Setembro, os ataques dos bombar-deiros da U. S. Air Force foram coordenados com tropas de Bagdad e milícias xiitas do Corpo Sadr das Brigadas do Dia Prometido, treinadas pelo Irão. Na Síria, os americanos, con-vertidos em «aliados objectivos» do clã Assad, bombardearam as posições do EI.

Tudo isto é inesperado e espantoso, quer o grau de violên-cia e crueldade, quer o modo como, perante o novo e bárba-

Tudo isto é surpreendente e estranho: o ódio fratricida entre estas várias facções muçulmanas que se combatem e extermi-nam mais do que aos «outros» – nazarenos, judeus, ateus. E tudo isto é também perturbador e intrigante.

De que fundas histórias e raízes vêm tão complexas divisões e seitas? Onde está a realidade e onde está o mito; onde está a

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verdade e onde está o cliché? Como é que uma religião mono-teísta, que defende o Bem e a Justiça, que produziu no passa-do longínquo uma civilização que se estendeu em maravilhas de Bagdad a Córdova, que inventou a Álgebra e transmitiu a

-nário ocidental a este grande desatino de destruição e medo?

Comecemos pelo princípio, pela religião do Islão e pelo seu fundador.

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Os fundadoresNo ano de 570 nasce em Meca, na zona de Hijaz da Penín-

sula Arábica, um jovem de nome Mohamad ibn Abdullah. Nesse tempo, as cidades de Meca e Medina viviam do comér-cio; a Arábia era então terra de beduínos, nómadas que erra-vam pelo deserto em busca de nascentes e de oásis. Viviam ali cristãos e judeus, mas os beduínos que por ali paravam eram maioritariamente pagãos, politeístas, adorando pedras, ídolos e forças naturais.

Quando Maomé nasceu já o pai tinha morrido, e aos seis

avô e por uns tios, dedicando-se com eles ao comércio. De-pois, conheceu uma viúva, Khadija, mulher mais velha para quem trabalhava e com quem viria a casar, ainda que na Pe-nínsula Arábica não houvesse o hábito de casar com mulhe-res que já tivessem sido casadas. Desse casamento nasceram

morreram cedo.Maomé costumava retirar-se para a montanha para meditar.

Um dia, junto do Monte Hira, apareceu-lhe o Anjo Gabriel, sob a forma de uma luz intensa, ordenando-lhe que recitas-se com ele palavras de adoração e veneração a Deus. Maomé sentiu-se desamparado e chegou a recear tratar-se de um arti-fício dos demónios, mas, voltando a casa, Khadija encorajou-o a ouvir e a repetir os ensinamentos do Anjo. Assim surgiu, no Islão, a revelação, transmitida pelo anjo de Deus a Maomé; re-velação que o Profeta inscreveu palavra por palavra no Corão.

Antes, no Sinai e nas terras de Canaã e da Judeia, o Deus de Israel tinha-se revelado aos patriarcas, a Moisés e aos profetas,

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O Antigo Testamento é a história da aliança de Deus com o povo de Israel e também o anúncio da vinda de um Salvador.

-lho de Deus Encarnado para resgatar a humanidade. O Deus de Israel e o Deus de Jesus é um Deus único, criador do Céu e da Terra e dos homens.

A revelação do anjo Gabriel a Maomé, transcrita no Corão, constitui o terceiro capítulo do monoteísmo, o texto funda-cional da última das religiões do Livro. Tal como os profetas e como Cristo, Maomé começou a sua pregação, mas os homens de Meca, pagãos e politeístas, perseguiram-no, obrigando-o a refugiar-se em Medina com alguns companheiros. A Hégira é a fuga do Profeta para Medina, em 622.

A campanha militar de Maomé para impor o Islão em Me-dina e Meca, e depois às tribos do Hijaz, marca a unidade en-tre o poder religioso, o poder político e o poder das armas. Enquanto no Islão Estado e Religião estão unidos, no judaís-mo há uma dualidade entre profetas e reis, cabendo o poder político e militar aos reis de Israel e Judá e não aos sacerdotes de Javé; dualidade que Cristo vem revigorar e extremar ao re-velar que o Seu reino não é deste mundo.

Depois da morte de Maomé, o Mensageiro de Deus, o poder passou para o Khallifat Rasul Allah, o «Representante do Mensa-geiro de Deus». Os califas, Abu Bakr, seguido de Omar e depois de Osman e de Ali, são, para os sunitas, os sucessores legítimos de Maomé. O califa é o «chefe da comunidade islâmica», o que «her-dou do Profeta o comando», e as suas atribuições são políticas. O poder do califa só é religioso na medida em que é a religião fun-dada pelo Profeta que o legitima, mas «o Sucessor» não pode tocar no conteúdo da fé nem no ritual, que fazem parte da revelação.

Maomé começou por doutrinar os beduínos e dominar a Arábia, mas bem cedo os califas iam guiar os guerreiros

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prosélitos do Islão à conquista do Oriente, conquista que vai unir os árabes. Os sassânidas da Pérsia e os bizantinos tive-ram de os enfrentar, mas foi nesses territórios conquistados, que hoje correspondem à Síria e ao Iraque, que se consolidou o novo poder. E foi daí que partiram para norte e para oeste, guerreando os impérios vizinhos. Ao conquistar o Egipto e a

os princípios da Jihad ou Guerra Santa. Jihad -

bretudo um combate individual, o esforço pessoal do crente com vista ao aperfeiçoamento ou a uma prática da fé que o leve pelo caminho certo e o aproxime de Deus: «O verdadeiro combatente é o que trava um combate consigo mesmo», diz o Profeta. Assim, o grande combate é este combate interior, a Jihad al Akbar, e é a par dele que aparece um outro, a Jihad al Asghar, o pequeno combate, o combate armado contra os ini-

-cariam, assim, fora desta categoria de inimigos de Deus – Jesus (Issa) é, no Corão, um profeta e um mensageiro de Deus, tal como Abraão, Moisés e Maomé.

No entanto, depois da campanha de submissão e conver-são dos beduínos pagãos ao Islão, os califas foram alargando o conceito de Jihad às expedições guerreiras seguintes contra os cristãos do Império Bizantino. A conveniência política so-brepunha-se ao rigor dos textos.

Vem também deste primeiro século do Islão a diferença en-

no interior da comunidade dos crentes. Os sunitas consideram Abu Bakr e os outros califas, Omar, Osman e Ali, legítimos sucessores de Maomé; para os xiitas o único sucessor legíti-mo é Ali, o primo e genro do Profeta que sucedeu a Osman depois do seu assassínio.

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história fascinante e trágica, a história da «Grande Discórdia», da Fitna (luta no interior da comunidade), que vai dividir os crentes. Morto Maomé em Junho de 632 e devendo a suces-são cair sobre um seu «mais próximo», sucede-lhe o seu com-panheiro Abu Bakr, cujo califado dura apenas dois anos; Abu Bakr escolhe para sucessor Omar, outro companheiro do Pro-feta, e Omar, nos dez anos do seu califado, conquista a Síria, a Palestina, o Egipto e a Mesopotâmia.

Quando Omar morreu, foi um conselho de seis membros (a Shura) que se decidiu por Osman, do clã dos omíadas de Meca.

Ali, primo direito, companheiro e genro do Profeta, fazia parte desta Shura que escolheu Osman. Não o confrontou, mas não terá gostado da escolha. Osman, ainda que companheiro de Maomé, era omíada, membro da elite urbana de Meca que inicialmente perseguira Maomé e resistira ao Islão. Ali vinha do grupo de exilados que seguira Maomé para Medina para escapar às famílias poderosas de Meca. Da luta que depois se travou, resultou o assassínio de Osman no seu palácio de Medina e a aclamação de Ali como califa, em Junho de 656. Para os seus partidários, os xiitas, Ali era o sucessor natural de Maomé, o primeiro e único sucessor do Profeta; e os três califas – Abu Bakr, Omar e Osman – meros usurpadores. Assim, a seguir à morte de Osman, o povo de Medina aclamou Ali, «reparando o erro» e entregando o poder ao «verdadeiro sucessor de Maomé» – por parentesco, companheirismo e virtudes pessoais.

A morte de Osman e a sucessão de Ali, sem o acordo da maioria dos companheiros do Profeta, desencadeou a «Grande Discórdia» no interior da Umma, a comunidade dos crentes.

-tão uma vendeta contra Ali, que acusavam de cumplicidade na

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armado que, 30 anos depois da morte do fundador, partia o mundo islâmico. Era a guerra civil dentro da Casa do Islão, a FitnaGrande Discórdia.

Ali retirou-se para Kufa, na margem do Eufrates, onde foi assassinado à porta da Mesquita, em Janeiro de 661, e Muawia fez-se aclamar califa em Jerusalém.

Mas a morte de Ali não acabou com o que viria a ser o xiismo (shia shi’al Ali é o partido de Ali). Pelo contrário, da morte do escolhido, ou do seu martírio, nas-cia um mito, pleno de milagres e de fenómenos extraordiná-rios – desde o aparecimento de uma relíquia da Arca de Noé no lugar da sua sepultura, junto a um rochedo de onde partia uma luz misteriosa, a todo um ritual de memória, arrependi-mento e expiação.

Com um exército reunido na Síria, Muawia lançou-se na perseguição dos descendentes de Ali, Hassan e Hussein, ne-

em vez de resistir, o primogénito Hassan renunciou ao califa-do. Para os xiitas a rendição de Hassan foi um honroso esfor-ço para evitar a guerra entre os crentes, para outros não terá passado de uma desonrosa cedência a troco de compensações

seu palácio e foi enterrado no cemitério de Al-Baqi.

das suas numerosas esposas, a mando de Muawia. Quando

-ver em Medina, foi encorajado pelos xiitas de Kufa a reclamar o califado, que achavam que lhe pertencia legitimamente por sucessão. Partiu de Meca, para onde viera em peregrinação, e viajou até ao Iraque.

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Só que as promessas de apoio dos xiitas de Kufa não se

em Karbala pelas tropas do governador. O corpo de Hussein, cuja cabeça foi decepada e enviada como troféu, terá sido mais tarde levado para Damasco e ali enterrado. Karbala tornava-se um dos lugares sagrados do martirológio xiita.

Estes episódios foram então vistos como uma luta dinástica pelo poder, igual a tantas outras, passadas, presentes e futuras. O seu conteúdo religioso foi-se consolidando depois, contri-buindo para a instituição do xiismo como tradição alternativa à da maioria sunita.

Na sua origem, o xiismo é indissociável do sentimento de culpa e do desejo de expiação dos notáveis de Kufa que, tendo

apoiado devidamente, tornando-se assim réus da sua morte. Este grupo, conhecido pelos «Penitentes», vai transformar o xiismo

e o desejo de reparação pela traição a Hussein, vitimado pela

e neste desejo de expiação semelhanças com a culpa e a expia-ção cristãs que aproximam o xiismo do cristianismo. É daqui

os chamados rituais de Ashura. Nesse ano de 685, os Peniten-tes foram atacados e mortos por tropas sírias – uma morte pre-nunciada e desejada.

Nos 200 anos seguintes, vão suceder-se à frente do partido xiita os descendentes de Hussein: o último, Hasan al-Askari, morreria em 873.

Entretanto, os califas omíadas tinham prosseguido a expan-são. É impressionante a velocidade de conquista das forças do Islão. Como lembra um historiador:

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Um ano depois de terem saído das fronteiras da Arábia, em 633, os árabes já tinham atravessado o deserto e derrotado o imperador bizantino Heráclio, nas margens do rio Yarmuk; em três anos tinham tomado Damasco; cinco anos mais, Je-rusalém; passados oito anos controlavam totalmente a Síria, a Palestina e o Egipto. Em 20 anos, todo o império persa, até ao Oxus, tinha caído sob a espada árabe; em 30, era o Afega-nistão e a maior parte do Punjab.1

Consolidadas as conquistas do Médio Oriente e do Egipto, os muçulmanos tentaram tomar Constantinopla, mas foram repelidos pelo imperador Constantino IV. Voltaram então a expansão para ocidente, avançando pelo Norte de África.

dos cristãos das terras conquistadas do Egipto e da Síria, cons-truíram uma armada e atacaram os bizantinos – que só se de-fenderam e sobreviveram graças ao «fogo grego». A marcha para ocidente enfrentou, no Magrebe, a resistência dos mesmos bizantinos e dos berberes cristãos, e só em 693 caiu Cartago. Daí, foi o avanço até ao Atlântico.

Em 711, Tariq ibn Zaid, comandando 9000 berberes isla-mizados, atravessou o estreito que separava Tânger do Sul de Espanha, derrotou os visigodos em Guadalete, conquistou a Andaluzia e chegou a Toledo, de onde tinha fugido toda a popu-lação, à excepção dos judeus. Ajudou-o a luta dinástica dos visi-

num episódio que Herculano romanceou em Eurico, o Presbítero. No ano seguinte, outro conquistador, Musa ibn Nusair, ani-

mado pelas vitórias de Tariq, passou o Estreito com 18 000

1 John Julius Norwich, The Middle Sea – A History of the Mediterranean, Chatto and Windus, Londres, 2006, p. 72.

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homens, tomou Huelva e Sevilha e foi juntar-se a Tariq em Toledo.

A razão principal da velocidade vertiginosa da marcha mu-çulmana era, além dos cavalos, a tolerância dos conquistadores para com as populações cristãs e judaicas, que consideravam suas irmãs no Livro e, como tal, dispensadas da conversão forçada ou da morte destinadas aos pagãos.

Mas a marcha de expansão foi interrompida quando, em 732, em Poitiers, perto de Tours, os muçulmanos foram ven-

--se pela Península Ibérica, que baptizaram com o nome de

-culo XV.

A Espanha muçulmanaEm 750, a violência voltava ao coração da Umma. Com a

morte de Marwan II e o massacre da sua família num banque-te, acabava o domínio dos Omíadas. Chegava ao poder uma nova dinastia, os Abássidas, descendentes de um tio do Pro-feta, Abbas ibn Abdal-Muttalib. Em 762, os Abássidas gover-

o jovem Abdul Rahman, conseguira escapar. Depois de uma odisseia clandestina, digna das Mil e Uma Noites, Abdul Rahman chegara à Península Ibérica, tornando-se emir do Al-Andaluz

Com Abdul Rahman iniciava-se o tempo dourado da Espa-nha muçulmana, que atingiria o apogeu com o seu neto Abdul Rahman II. No tempo do califado tardio dos Omíadas de Es-panha (Abdul Rahman II adoptara o título de Califa) cons-truíram-se grandes e belos monumentos, como a mesquita de Córdova e o Alcazar, a torre de Giralda e os palácios do Alhambra em Sevilha.

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Durante o califado espanhol, as relações políticas e comer-ciais com o Magrebe e o Médio Oriente potenciaram uma in-tensa comunicação de saberes e recursos. Um tempo que iria terminar em 1031, com a fragmentação do califado em peque-nos Estados, as Taifas, que se guerreavam entre si. A divisão muçulmana, a superior organização e centralização do poder político dos cristãos e a perícia de chefes guerreiros como Ro-drigo Díaz de Bivar, El Cid, facilitaram a reconquista.

O reinado dos Abássidas em Bagdad correspondeu também a um período áureo do Islão, com conquistas territoriais e ci-vilizacionais, sobretudo no tempo de Harun al-Rashid (786- -809), o califa das Mil e Uma Noites.

Depois, nos séculos X e XI, cristãos e muçulmanos foram-se reequilibrando no Mediterrâneo, o seu espaço de confronto e convívio, com os assaltos dos piratas muçulmanos a perturba-rem e a assustarem a navegação e as cidades costeiras. A partir de 827, os árabes do Magrebe tinham invadido e conquistado a Sicília, chamados pelo governador bizantino, em ruptura com Constantinopla. No sul de Itália, tomaram Brindisi, Taranto e Bari e a sua audácia foi ao ponto de atacar e saquear Roma. En-tretanto, as cidades italianas independentes – primeiro Veneza, depois Génova e Pisa – reforçaram defesas e esquadras e, aos

em 1016.Em 1055, uma nova vaga de invasores caía sobre o império

dos Abássidas. Nesses meados do século XI, sob os Samânidas da Pérsia e os Abássidas, o Islão oriental tinha amolecido na civi-lização requintada e na abundância das suas cidades. Fora então que tinham chegado, vindos da Ásia Central, novos convertidos, os turcos seljúcidas, raça de guerreiros nómadas e combativos. Em 1055 conquistaram Bagdad, derrubando os Abássidas; em 1071, em Manzikert, bateram os bizantinos do imperador

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Diógenes IV e, em poucos anos, eram senhores de grande parte da Ásia Menor. Ao mesmo tempo, tomaram aos árabes Jerusa-lém, Antioquia e a Síria. Até Niceia, terra do concílio fundacional da fé cristã, cairia nas suas mãos. Assim, três dos cinco patriar-

em poder dos mouros. Só Constantinopla e Roma escapavam.Esta razia asiática pôs à prova a capacidade – e demons-

trou a incapacidade – dos bizantinos, dos cristãos do Oriente, para defender o Cristianismo. A demissão dos cristãos gregos, sempre em intrigas e lutas internas, e a sua relutância em se unirem contra a nova vaga conquistadora do Islão, acabaram por chamar às armas a Igreja Latina.

As CruzadasEudes de Châtillon, papa Urbano II, tinha na sua juventude

testemunhado o esforço dos cavaleiros franceses que se vo-luntariaram para lutar contra os muçulmanos que ocupavam o sul da Península.

Foi nesse espírito que o Papa cruzou os Alpes e, no Con-cílio de Clermont, em Novembro de 1095, chamou a Cristan-dade a unir-se para libertar os Lugares Santos, tomados pela avassaladora onda dos turcos, e para defender e proteger os seus correligionários orientais, que Bizâncio não sabia ou não podia proteger.

Este apelo de Urbano II vai desencadear um movimento político-militar de inspiração religiosa que, ao longo dos dois séculos seguintes, encaminha dezenas de milhar de guerrei-ros cristãos para as margens do Mediterrâneo oriental, onde estabelecem unidades políticas de dimensão e continuidade.

As Cruzadas foram diversas: algumas, como a segunda e a terceira, tiveram a comandá-las reis de França, de Inglaterra e o próprio Imperador. Outras, como a primeira, foram empre-

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sas de grandes senhores feudais, que ali talharam os reinos que não tinham na Europa. A quarta Cruzada, manipulada pelos venezianos, não combateu um único muçulmano, acabando por conquistar e saquear Constantinopla, sob o comando do doge Dandolo, que tratou de estender o poder de Veneza à custa do Império Bizantino.

De um modo geral, as Cruzadas encaminharam-se para a Terra Santa, mas, na quinta, sexta e sétima, o objectivo foi ou-tro – o Egipto, governado pelos mamelucos. Jean de Brienne, o sexagenário rei de Jerusalém (o reino de Jerusalém fora es-tabelecido na primeira cruzada), casado com a jovem rainha Maria de Jerusalém-Montferrat, seguiu esse caminho na quin-ta cruzada.

O reino de JerusalémO reino de Jerusalém era então um conjunto de feudos go-

vernados por senhores descendentes dos cruzados francos; vigorava ali uma civilização cristã-muçulmana, já que a dure-za dos conquistadores francos depressa se deixara adormecer pelos prazeres e costumes orientais e pelos imperativos do co-mércio. Os seus portos de mar – Tripoli, Tiro e Acre – eram os grandes portos de chegada e saída das caravanas com os produtos do Oriente, agenciados e encaminhados para o Oci-dente por feitorias locais de venezianos, pisanos, genoveses, catalães e marselheses. O comércio passava por cima das di-visões religiosas e das paixões guerreiras.

A nova prédica papal conduzira à Terra Santa uma outra leva de cruzados, incluindo o rei da Hungria, André II, e o duque Leopoldo VI da Áustria. Mais tarde, Brienne lançaria uma ex-pedição marítima contra o Cairo, pensando ser este – e não Jerusalém – o calcanhar de Aquiles dos muçulmanos no Orien-te. Tomou Damieta, na foz do Nilo, a cerca de 200 quilómetros

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do seu objectivo principal. O sultão Al-Kamil quis trocar Da-mieta e a segurança do Cairo por várias cidades e fortalezas na

as Cruzadas e os ocidentais – deitariam tudo a perder. O cardeal Pelágio, legado do Papa, um espanhol eivado de

fanatismo maximalista, recusou a proposta de al-Kamil e man-dou os cruzados avançar sobre o Cairo. Perante a invasão, os egípcios abriram os diques do Nilo e inundaram o campo cris-tão. O Legado devolveu então o poder a Jean de Brienne, que conseguiu negociar com o Sultão a retirada do que restava do seu exército a troco da devolução de Damieta.

Os feudais da primeira cruzada, na conquista de Jerusalém, tinham massacrado os muçulmanos e os judeus da Cidade San-ta. Ao contrário, Saladino, quando a reconquistou em 1187, foi magnânimo para com os cristãos vencidos, poupando-os e permitindo que fossem resgatados por baixo preço. A negocia-ção fez-se com Balian d’Ibelin, que terá ameaçado destruir os santuários islâmicos e matar os 5000 muçulmanos da cidade. Os períodos de guerra aberta, sem quartel, entre os muçulma-nos e os cristãos do reino de Jerusalém e dos outros enclaves cristãos, eram entremeados por tempos de coexistência pací-

O Reino dos Céus, de Ridley Scott, dá uma ima-gem romanceada mas ainda assim interessante deste período.

Foi no rescaldo da falhada quinta cruzada que se deu um dos mais originais episódios da História Medieval: a expedição empreendida pelo imperador Frederico II de Hohenstaufen.

Frederico, o Stupor Mundi, era neto do imperador Frederico

ceptro o Sacro Império, o patronato das cidades do Norte de

com o Papado. A rainha Maria de Jerusalém morrera jovem,