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50 ESCOLA MODERNA Nº 22•5ª série•2004 1. Introdução A escolha que fiz ao eleger o património pe- dagógico e didáctico do Movimento da Escola Moderna Portuguesa (MEM) como ob- jecto de estudo resulta de um investimento mais amplo em função do qual me debruço so- bre o estatuto dos discursos didácticos inova- dores no 1.º Ciclo do Ensino Básico em Portu- gal, no pós 25 de Abril de 1974. Como se trata de uma problemática bastante complexa e di- versificada, era imperioso, por um lado, que circunscrevesse o campo de pesquisa e, por ou- tro, que construísse um instrumento de inter- pelação que suportassse tal operação. A opção pelo MEM era uma das opções possíveis que se justifica, no entanto, por um conjunto de razões que passo a enunciar: O MEM é uma associação de professores com uma história e uma cultura publica- mente reconhecidas que lhe conferem a credibilidade necessária; O MEM é uma associação que tem vindo a desenvolver um discurso profuso e pra- xeologicamente sustentado, o que lhe permite possuir um património didáctico suficientemente rico e pertinente; O MEM é uma associação que continua a congregar, desde há cerca de 30 anos a esta parte, educadores e professores em momentos de reflexão e de auto-forma- ção cooperada a partir e em função das práticas educativas que estes desenvol- vem quotidianamente nas escolas; O MEM é uma associação cujo patrimó- nio pedagógico afecta activamente a re- flexão pedagógica que tem vindo a ser desenvolvida neste país. Foi, pois, a partir do património pedagógico e didáctico do MEM que defini o objecto de es- tudo, a partir do qual tentei responder à se- guinte questão: • Quais as configurações típicas dos dis- cursos didácticos desenvolvidos pelo MEM, nas mais diversas áreas curricula- res, ao nível do 1.º Ciclo do Ensino Bá- sico? É uma questão, a partir da qual não se pre- tendia, propriamente, abordar as práticas con- cretas dos professores do MEM, mas tão so- mente responder a quatro interrogações subse- quentes a essa primeira questão: Como é que os discursos produzidos no seio do MEM enfrentam a problemática da articulação entre os conteúdos que permitem configurar as diversas áreas curriculares e os processos de mediação pedagógica que estimulam um encontro estimulante entre as crianças e esses con- teúdos? O Movimento da Escola Moderna: Um Património Pedagógico e Didáctico a Interpelar Rui Trindade* * Ensino Superior. REVISTA Nº22 B 20.10.05 19:16 Página 50

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1. Introdução

Aescolha que fiz ao eleger o património pe-dagógico e didáctico do Movimento da

Escola Moderna Portuguesa (MEM) como ob-jecto de estudo resulta de um investimentomais amplo em função do qual me debruço so-bre o estatuto dos discursos didácticos inova-dores no 1.º Ciclo do Ensino Básico em Portu-gal, no pós 25 de Abril de 1974. Como se tratade uma problemática bastante complexa e di-versificada, era imperioso, por um lado, quecircunscrevesse o campo de pesquisa e, por ou-tro, que construísse um instrumento de inter-pelação que suportassse tal operação.

A opção pelo MEM era uma das opçõespossíveis que se justifica, no entanto, por umconjunto de razões que passo a enunciar:

• O MEM é uma associação de professorescom uma história e uma cultura publica-mente reconhecidas que lhe conferem acredibilidade necessária;

• O MEM é uma associação que tem vindoa desenvolver um discurso profuso e pra-xeologicamente sustentado, o que lhepermite possuir um património didácticosuficientemente rico e pertinente;

• O MEM é uma associação que continua acongregar, desde há cerca de 30 anos aesta parte, educadores e professores em

momentos de reflexão e de auto-forma-ção cooperada a partir e em função daspráticas educativas que estes desenvol-vem quotidianamente nas escolas;

• O MEM é uma associação cujo patrimó-nio pedagógico afecta activamente a re-flexão pedagógica que tem vindo a serdesenvolvida neste país.

Foi, pois, a partir do património pedagógicoe didáctico do MEM que defini o objecto de es-tudo, a partir do qual tentei responder à se-guinte questão:

• Quais as configurações típicas dos dis-cursos didácticos desenvolvidos peloMEM, nas mais diversas áreas curricula-res, ao nível do 1.º Ciclo do Ensino Bá-sico?

É uma questão, a partir da qual não se pre-tendia, propriamente, abordar as práticas con-cretas dos professores do MEM, mas tão so-mente responder a quatro interrogações subse-quentes a essa primeira questão:

• Como é que os discursos produzidos noseio do MEM enfrentam a problemáticada articulação entre os conteúdos quepermitem configurar as diversas áreascurriculares e os processos de mediaçãopedagógica que estimulam um encontroestimulante entre as crianças e esses con-teúdos?

O Movimento da Escola Moderna: Um Património Pedagógico

e Didáctico a Interpelar

Rui Trindade*

* Ensino Superior.

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• Como é que se desenvolvem projectos deintervenção educativa sujeitos a uma ra-cionalidade pedagógica do tipo herme-nêutico quando se aceita a existência deprogramas de estudo prévios e de saberesjá construídos com os quais se julga sernecessário que as crianças contactem?

• Qual o papel que se atribui aos professo-res no âmbito de uma abordagem peda-gógica que defende a necessidade de seestimular o protagonismo das crianças?

De forma a concretizar este programa depesquisa, e tendo em conta as intenções jáenunciadas, o trabalho que realizei desenvol-veu-se através da leitura, análise e interpreta-ção de textos redigidos por associados doMEM. Na totalidade trabalhei a partir da lei-tura e análise de 200 artigos que fazem partedo boletim / revista «Escola Moderna», 2 Mo-nografias, 7 Textos de Apoio, 4 Cadernos deCirculação Interna, 7 textos que integram umCaderno de Formação Cooperada e, final-mente, 24 obras que foram objecto de publica-ções exteriores ao movimento. Subjacentes aesta selecção de textos de um universo bemmais vasto, encontrava-se um conjunto de cri-térios, dos quais destaco, o facto desses textosse relacionarem com o 1.º CEB e, neste âmbito,com o domínio didáctico, o domínio da refle-xão curricular e, também, o domínio da admi-nistração e da gestão das escolas, bem como odomínio das políticas educativas, desde queestes contribuam para elucidar os domíniosem causa já referidos anteriormente. Do pontode vista das áreas e domínios de análise, de-brucei-me sobre os textos produzidos a propó-sito da Língua Materna, da Matemática, do Es-tudo do Meio, das Expressões e do Movi-mento, da Informática, do Modelo Pedagógicodo MEM, da organização social do trabalho deaprendizagem e, finalmente, da dimensão ad-ministrativo-pedagógica como áreas que ca-racterizam o espaço de reflexão privilegiadopelo MEM a propósito do 1.º CEB.

Tenho uma consciência tão exacta quantopossível das limitações metodológicas deste

trabalho, um trabalho que abordou o patrimó-nio pedagógico e didáctico do MEM a partir,exclusivamente, de textos escritos por profes-sores associados no movimento. Creio que,apesar de tudo, tais limitações são contraba-lançadas quer pela representatividade dos tex-tos seleccionados quer pela própria importân-cia epistemológica de um texto escrito. Umdocumento que possui uma intencionalidadeeducativa indiscutível que é suportada poruma procura de explicitação, uma vontade depermanecer e um distanciamento crítico faceàs condições da sua própria produção que otransformam, só por si, num objecto perti-nente de pesquisa.

2. Uma leitura global dos dados

Uma leitura global dos dados obtidos a par-tir da análise dos documentos, da autoria deassociados do MEM, a que tive acesso permite,num primeiro momento, constatar que:

• há quatro áreas privilegiadas de reflexão:(i) a reflexão na área de Língua Materna;(ii) a reflexão sobre a construção do Mo-delo Pedagógico do MEM; (iii) a reflexãosobre a dimensão social da organizaçãoda aprendizagem e (iv) a reflexão sobre asintervenções educativas de carácter inclu-sivo;

• os textos relacionados com a área de Ma-temática têm vindo a adquirir uma im-portância crescente, sobretudo, a partirda década de 90;

• a produção de textos relacionados com aárea de Estudo do Meio têm vindo, pelocontrário, a decrescer;

• a produção de textos relacionados com aárea da Informática é, de certa forma, es-cassa, embora seja muito interessante ve-rificar que expressa na sua totalidade aspreocupações que há no MEM com osinstrumentos e os dispositivos que po-tenciam a circulação e partilha de infor-mação;

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• a área das Expressões e do Movimento éclaramente desvalorizada, do ponto devista da reflexão escrita;

• A reflexão sobre o domínio das políticaseducativas e o domínio administrativo-pedagógico não é desvalorizada, emboranão seja objecto de artigos de fundo, afir-mando-se, sobretudo, através dos textosdos editoriais.

Há outros dados que merecem ser eviden-ciados, também, pelo significado intrínseco queassumem para o movimento, nomeadamenteos que se prendem com a autoria dos textos queintegram o boletim / revista «Movimento da Es-cola Moderna». Verifica-se, então, que na dé-cada de 70, princípios da década de 80, há umnúmero bastante significativo de artigos quesão traduções de textos publicados em revistasde movimentos europeus congéneres, fenó-meno este que, posteriormente a essa data, co-meça a decrescer de forma visível e inequívoca,sendo esses mesmos textos substituídos por ar-tigos da autoria de associados do MEM. Trata-se de uma situação que acaba por expressar aautonomização do movimento português faceao movimento internacional relacionado com aPedagogia Freinet, reveladora quer do aprofun-damento da reflexão que se passa a produzir noseio do MEM sobre as práticas quer do subse-quente processo de amadurecimento teórico vi-vido pelos membros do movimento.

De um modo geral, e numa abordagem decarácter mais qualitativo, pode afirmar-se quehá um conjunto de dados cujo sentido e impli-cações não poderão ser negligenciados pelomodo como permitem mapear algumas daspreocupações e idiossincrasias fundamentaisdo Movimento da Escola Moderna Portuguesa,às quais, por isso mesmo, vale a pena conferiruma maior visibilidade pública.

Creio que a capacidade de explicitar a arti-culação entre a reflexão pedagógica do MEM eo compromisso ético-político com a constru-ção de uma escola que «estimule a iniciação e oexercício da intervenção democrática para que a

vida social nos convoca» (Niza, 1992: 7) constituium dos elementos-chave que permite explicara natureza e os sentidos daquela reflexão. Umareflexão que pretende ser consequente e gera-dora de um outro tipo de «praxis» educativas,como se demonstra na afirmação que SérgioNiza assume, de forma até recorrente, quandodefende que é «no envolvimento e na organizaçãoconstruídas paritariamente, em comunidade culturale educativa, que se constroem, se recriam e se pro-duzem os instrumentos (culturais e materiais), os ob-jectos de cultura, os saberes e as técnicas através deprocessos de cooperação e de interajuda» (Niza,1996: 143). Não é, pois, por acaso que se atri-bui a importância que se atribui à organizaçãosocial do processo de aprendizagem quer sejaao nível da reflexão teórica quer seja ao níveldo desenvolvimento de dispositivos concretosde mediação educativa, neste âmbito. Não étambém, por acaso, que esse tipo de organiza-ção da aprendizagem e os instrumentos quepermitem implementá-la não se justapõem aoprocesso de aprendizagem, antes o intersec-tam, conferindo-lhe outros sentidos, bali-zando-o, definindo-lhe mesmo o rumo e a am-plitude. Não é, igualmente, por acaso que osassociados do MEM produzem uma reflexãotão inclusiva e tão ampla acerca da inclusão es-colar. Uma reflexão que influencia, entre ou-tras coisas, o sentido das intervenções sobre aorganização das escolas e do sistema educa-tivo, a denúncia das políticas de mercantiliza-ção da educação, a defesa veemente e coerentedas práticas de diferenciação pedagógica e a ar-ticulação entre o processo de planificação e deavaliação, entendidos como intervenções auto-reguladoras que os alunos deverão aprender adesenvolver, enquanto competências estrutu-rantes que as escolas deverão assumir como fi-nalidades educativas prioritárias. Uma reflexãoque sustenta e é produto de projectos de inter-venção e de organização das acções dirigidaspara crianças com necessidades educativas es-pecíficas que recusam qualquer tipo de estraté-gia de segregação. Uma reflexão que explicamuitas das opções assumidas no domínio da

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mediação pedagógica ao nível das mais diver-sas áreas curriculares.

Para além das consequências acabadas deenunciar, a já referida articulação entre a refle-xão pedagógica do MEM e o compromisso decarácter ético e político que este movimentoassume, importa realçar, igualmente, outra dasimplicações igualmente relevantes, decorren-tes dessa articulação matricial: as implicaçõesque se expressam na reflexão sobre a dimen-são didáctica que o Movimento da Escola Mo-derna Portuguesa promove, das quais se evi-dencia o seguinte conjunto de princípios estru-turantes (Niza, 1996):

• A gestão do processo de ensino-aprendi-zagem visa favorecer a transição do pro-cesso de produção para o da compreen-são e das experiências pessoais para umadidáctica a posteriori;

• Atribui-se uma importância decisiva aosentido social das aprendizagens;

• A afirmação da homologia de processosentre a Escola e a Vida conduz à recusaexplícita dos truques e dos artíficios di-dácticos que decorrem da perda do sen-tido social das escolas;

• Defende-se a participação dos alunos nagestão do tempo dedicado às aprendiza-gens, condição necessária tanto ao desen-volvimento e à construção de aprendiza-gens bem sucedidas como ao desenvolvi-mento e à construção de um processo deformação mais amplo.

São estes princípios que ao longo de todo oprocesso de pesquisa servirão de instrumentode interpelação valioso e pertinente, já queconstituem, simultaneamente, um guião e umobjecto de análise.

3. A reflexão na área de LínguaMaterna: Uma reflexão exemplar

É no domínio da reflexão que os associadosdo MEM têm vindo a produzir acerca da área

da Língua Materna que se verifica existir a con-gruência máxima entre os princípios acabadosde enunciar e os pressupostos teóricos, peda-gógicos e didácticos que balizam os discursose as práticas dos professores relacionados como movimento. Não será por acaso que istoacontece. Trata-se da área curricular de maiorprodutividade teórica no seio do MEM, evi-denciando-se, assim, um longo, diverso e ri-quíssimo percurso de práticas de experimenta-ção e de reflexão que se afirma, por exemplo,em função da deslocação progressiva do le-gado incontornável de C. Freinet para a mobi-lização de novas referências teóricas que con-duziram os discursos produzidos no seio doMEM para outros patamares de qualidadequer em termos de rigor conceptual quer emtermos da configuração teórica das experiên-cias de trabalho implementadas no terrenoquer mesmo em termos das suas implicaçõespedagógicas concretas. O número monográ-fico da revista «Escola Moderna» da autoria deIvone Niza (Niza, 2002) permite justificar ca-balmente esta afirmação, nomeadamentequando aí se estabelece um confronto entre oque a própria autora designa, nesse artigo, por«pedagogia da transcrição» e «pedagogia dareescrita», em função do qual acaba por evi-denciar os eixos invariantes da abordagem doMEM, no que, hoje, à aprendizagem da lin-guagem escrita diz respeito, a saber:

• A afirmação da autonomia funcional dalinguagem escrita face à linguagem oral;

• A centralidade das dimensões da interac-ção e da interlocução no âmbito do pro-cesso de produção da escrita e da leitura,entendendo-o como o resultado de umaactividade interdiscursiva;

• A importância dos circuitos vivos de co-municação como dispositivos capazes dealimentar e estimular fluxos de produ-ções a partir da escrita, permitindo enten-der a escola como um espaço de constru-ção e de socialização de produções cultu-rais.

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Sendo a área curricular que possui o patri-mónio pedagógico e didáctico mais rico e di-versificado, acaba por constituir-se, por via detal propriedade, como uma área onde se pro-duz uma reflexão de referência do MEM querdo ponto de vista da influência que o movi-mento exerce face ao seu exterior quer doponto de vista da própria reflexão internadeste movimento.

4. A área de Matemática: Tendências e sentidos de uma reflexãoem crescimento

A análise dos textos da autoria de associa-dos do MEM que se debruçam sobre a área daMatemática permite identificar quatro inva-riantes dos discursos aí contidos:

• Recusa e combate a todas as perspectivasque tendem a dogmatizar a relação dascrianças com a Matemática;

• Afirmação constante e inequívoca da ne-cessidade de conferir um sentido social aessa relação;

• Afirmação da necessidade de se entendera Matemática como uma tecnologia deque dispomos para resolver problemas;

• Valorização do que Glaeser designa por«pedagogia heurística» (Glaeser, 1999: 73)como matriz em função da qual se deverápromover a gestão das aprendizagens emMatemática.

Embora se deva reconhecer que, do pontode vista da reflexão que suscita, a área de Ma-temática tem vindo a adquirir uma maior im-portância e visibilidade no seio do MEM, im-porta reconhecer também que em comparaçãocom a área de Língua Materna os textos seconstroem num registo discursivo distinto.Isto é, enquanto na área de Língua Maternacoexistem textos que se situam mais no domí-nio das narrativas contextualizadas das práti-cas com textos que visam promover extrapola-ções teóricas mais amplas, na área da Matemá-

tica predominam indubitavelmente os primei-ros face aos segundos. Pode mesmo afirmar-se,como uma hipótese plausível para um possíveldebate a realizar-se, que na área de Língua Ma-terna, graças ao maior investimento teórico epraxeológico de que esta área tem vindo a be-neficiar, existem melhores condições para seproduzirem textos a partir dos quais se explici-tem conceitos que visam elucidar problemáti-cas e construir grelhas de leitura que não fi-quem reféns de qualquer contexto particular,de forma a apoiar-se, assim, um nível de inter-locução eventualmente mais exigente e con-ceptualmente mais amadurecido. Um nível deinterlocução que, por isso mesmo, permite umgrau de explicitação teórica capaz de elucidarde forma mais abrangente, e de apreender deforma mais exigente, a complexidade das si-tuações educativas que se desenvolvem naárea em questão. No domínio da Matemática,é possível vislumbrar-se nalguns dos escritosanalisados este esforço de explicitação teórica,contudo, e na sua maioria, trata-se de textoscujos objectivos se circunscrevem à descrição eexplicitação de experiências de intervençãocontextualizadas, com o propósito de incitar àacção, convencer, contribuir para clarificaruma problemática ou tomar partido numa dis-cussão.

De um modo geral, os textos analisados ereferentes à área de Matemática permitemconcluir que no MEM as idiossincrasias freine-tianas relativas ao modelo do «Cálculo Vivo»foram certamente ultrapassadas, o que não sig-nifica que não haja um caminho a percorrer emtermos de discussão e de reflexões a fazer emtorno das seguintes questões:

• O estatuto das situações quotidianas nodomínio das aprendizagens em Matemá-tica;

• A configuração da noção de actividadesignificativa em Matemática;

• Os desafios pedagógicos e didácticos quese colocam no âmbito da conceptualiza-ção, construção e apropriação da lingua-gem matemática;

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• O estatuto do material didáctico e a suautilização como instrumento capaz deapoiar a construção de conceitos e a apro-priação da linguagem matemática.

Partindo desta análise, propõe-se, então, al-gumas questões entendidas como questões aesclarecer no âmbito de uma reflexão sobre asaprendizagens em Matemática, tais como:

• Quais as finalidades das aprendizagensna área de Matemática, ao nível do 1.ºCEB e, em geral, ao nível do Ensino Bá-sico?

• Como é que as actividades que condu-zem à apropriação e utilização dos co-nhecimentos e dos instrumentos mate-máticos se desencadeia?

• Como é que essas actividades são moni-torizadas? Em função de que critérios ede que referências?

• Como é que essas actividades geram epotenciam a apropriação dos conheci-mentos e dos instrumentos matemá-ticos?

• Qual é a questão que, na área da Mate-mática, se coloca prioritariamente aosprofessores:

• o A questão: «O que é que as criançasirão fazer para obter a resposta X epara dar seguimento ao projecto Y?»ou, antes, a questão: «Como é que seprovoca e estimula a apropriação deum determinado conceito matemá-tico?»

• É possível que possamos dissociar asduas questões?

• Qual é o grau de conflitualidade que es-sas questões mantêm entre si?

• É possível conceber-se as aprendizagensem Matemática em função, apenas, dasoportunidades que o quotidiano e as vi-vências dos alunos permitem suscitar?

• Só as actividades relacionadas com essequotidiano e essas vivências é que pode-rão ser entendidas como actividades sig-nificativas?

De forma a contribuir para um tal debate,importa desde já, e então, ter em conta duasafirmações, na minha opinião, nucleares. Umaque tem a ver com a advertência de Glaeserquando este refere que um dos principais pro-blemas que se nos coloca no momento em queaprendemos Matemática diz respeito ao con-fronto e ao conflito entre a linguagem mate-mática e a língua materna (Glaeser, 1999), ou-tra que faz eco de uma segunda advertência,da autoria de Brousseu, quando este autor de-fende, por sua vez, que um meio sem inten-ções didácticas é manifestamente insuficientepara estimular as crianças a apropriarem-sedos conhecimentos e dos instrumentos cultu-rais que se deseja que elas adquiram (Brous-seau, 2000). Assim, e de acordo com estas duasperspectivas, importa conferir uma maior pre-cisão às questões anteriores e perguntar, nova-mente e de um outro modo:

• Pode recusar-se a utilização de artifíciosdidácticos como instrumentos dotadosde intencionalidade pedagógica no domí-nio das aprendizagens a realizar na áreade Matemática? Quando é que se podefalar, afinal, de artifícios didácticos?

• Até que ponto os processos de trabalhoescolar podem sempre reproduzir «os pro-cessos sociais autênticos da construção da cul-tura nas ciências, nas artes e no quotidiano»(Niza, 1996: 143)?

• Qual o papel do professor no âmbito dasaprendizagens que os seus alunos deve-rão realizar no seio da área de Matemá-tica? Como é que o conjunto de inten-ções educativas prévias, neste âmbito,afecta o papel do professor? Não de-pende a apropriação dos conceitos e dosinstrumentos matemáticos de uma esco-lha e gestão adequada dos problemas queo professor coloca aos alunos? Quais osfactores que afectam a escolha e a gestãodos problemas que se enfrentam no âm-bito das actividades que se realizam emMatemática?

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5. A reflexão na área de Estudo doMeio: O processo de «transposiçãodidáctica» em debate e o estatutodos alunos como protagonistaspedagógicos

Os textos que se debruçam sobre temáticasrelacionadas com a área de Estudo do Meio, daautoria de professores associados no MEM,partilham o mesmo tipo de registo discursivodos textos relacionados com a área de Mate-mática e exprimem, sobretudo, três grandes ti-pos de preocupações:

• A importância que atribuem ao meio en-volvente como condição do desenvolvi-mento de aprendizagens significativas;

• A centralidade que atribuem à investiga-ção e à cooperação entre os alunos comocondição incontornável das suas aprendi-zagens neste âmbito;

• A importância que atribuem à participa-ção das crianças na gestão do espaço e dotempo das aprendizagens, bem como naplanificação e avaliação das tarefas.

Em termos de uma agenda de debates e dereflexões a propor, sou de opinião que, face àleitura dos textos a que tive acesso, há que re-flectir de forma mais exaustiva e explícita quersobre o papel e a intervenção dos professores noâmbito do processo de interlocução que estabe-lecem com os seus alunos quer sobre o estatutoa atribuir, neste âmbito, aos saberes teóricos dereferência. Isto significa que, do ponto de vistadas questões a colocar, tem que se discutir:

• quais são as finalidades da área de Estudodo Meio?

• se a transição entre as teorias implícitas epessoais das crianças e a apropriação dosconceitos e dos instrumentos que consti-tuem o património cultural comum éuma transição relativamente harmoniosaou, se pelo contrário, é uma transiçãoconflituosa e marcada por vicissitudesvárias?

• se não podemos falar de um saber esco-lar, na área de Estudo do Meio, entendidocomo um saber de intermediação entre asteorias pessoais e implícitas e o sabercientífico ou, pelo menos, o saber explí-cito, validado e objecto de um consensocultural suficientemente amplo?

Em última análise, há duas problemáticasque importa enfrentar, de forma explícita noseio do MEM, no que à área de Estudo doMeio diz respeito. Uma prende-se com a pro-blemática da «transposição didáctica» (Cheval-lard, 1991) e outra com a actividade pessoaldas crianças no âmbito da área em questão.

Na área em questão, a problemática datransposição didáctica conflitua com algunsdos pressupostos pedagógicos e didácticos queo MEM perfilha de forma clara e visível. Teme-se que um saber cujo único espaço de referên-cia seja a Escola contribua para a perda do sen-tido social do trabalho a desenvolver pelos alu-nos e conduza, afinal, à afirmação de umanova escolástica. Creio que esta é uma preocu-pação pertinente e constitui, além do mais,uma das mais valias do legado de reflexões queno MEM se têm vindo a produzir. Por outrolado, não se pode ignorar que a área de Estudodo Meio tem subjacente à sua definição comoárea curricular um conjunto de referências cul-turais provenientes das mais diversas áreas dosaber, referências essas que balizam as propos-tas educativas que aí se explicitam, bem comoos desafios e os obstáculos dos campos con-ceptuais que a partir dessas propostas se pro-duzem. São esses desafios e esses obstáculosque permitem aos professores gerir o encontroentre as crianças, nas suas particularidades vá-rias, e aquelas propostas. Isto é, importa defi-nir as condições em função das quais atravésda «transposição didáctica» se pode promovera escolasticização do saber ou, pelo contrário,se podem definir o conjunto de referências quepermita aos professores assumirem-se comoalguém que identifica os conteúdos programá-ticos de referência da sua acção pedagógica,

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define finalidades e participa activamente naprodução e gestão de propostas educacional-mente pertinentes. Até porque se torna neces-sário equacionar se basta colocar as criançasperante situações de observação e indagaçãoque a motivem, para que estas possa modificarou, pelo menos, interpelar o património deteorias pessoais implícitas que lhe servem paraabordar, compreender e agir sobre o mundo?

6. Em jeito de conclusão

Para além das três áreas que foram objectodo processo de reflexão acabado de descrever,há que reconhecer que no MEM se resolveuadequadamente, através da definição de Mo-delo Pedagógico que este movimento perfilha,o problema da compatibilização entre a afir-mação do protagonismo das crianças, a afir-mação da inventividade pedagógica dos pro-fessores e os constrangimentos a que a edu-cação escolar submete uns e outros. Amaturidade da reflexão que se tem vindo a de-senvolver sob a égide das preocupações com aorganização social do processo de aprendiza-gem é uma prova irrefutável de tal afirmação.Uma prova através da qual se evidencia quenão é em função do professor mas do tipo deorganização que na sala de aula se implementaque, para o MEM, se alicerçam a vida e as in-teracções de carácter interpessoal e culturalque acontecem nesse contexto. Os instrumen-tos de planificação, de avaliação e de regula-ção, os momentos e os espaços de partilhaconstituem, para além de uma necessidade,um factor maior de formação. Trata-se de umaproposta de reflexão bastante clara e explícitaque, de algum modo, é equivalente, desteponto de vista, a uma outra proposta de refle-xão: aquela que se debruça sobre os projectosde inclusão escolar, não subordinando estesprojectos nem a uma abordagem circunscrita

dos mesmos nem a uma abordagem que iludea problemática das intervenções que na escolase dirigem para crianças com necessidadeseducativas específicas. Quer face a uma querface a outra das problemáticas enunciadas ad-quire visibilidade o compromisso matricial doMEM com a construção de uma Escola Demo-crática.

Em contraste com estas duas áreas de refle-xão, constitui motivo de alguma perplexidade aausência de textos relacionados com a área dasExpressões e do Movimento, na medida emque nos encontramos perante professores queconferem uma centralidade inequívoca aosprocessos de comunicação como processos deformação e que, por outro lado, desenvolvemregularmente projectos de intervenção nesteâmbito. Não estamos, assim, perante uma au-sência de práticas mas mais perante o silênciodessas práticas ao nível da produção de textosde reflexão sobre as mesmas. Porquê?

Em conclusão, há que reconhecer, apenas, opercurso pedagógico e o legado de reflexões epropostas dos professores associados no MEMcomo algo incontornável no panorama educa-tivo português. Isto não significa que não hajaum percurso para fazer, mas tão somente acei-tar que este não passa de mais um desafio, en-tre outros desafios possíveis, que o Movi-mento da Escola Moderna Portuguesa temvindo a enfrentar como resultado do compro-misso pedagógico que este movimento sempreassumiu, o qual constitui, afinal, a razão quejustifica a sua existência como associação quefaz parte da história da educação escolar emPortugal. Creio mesmo que se há patrimóniopedagógico e didáctico que permite anunciaros caminhos de uma pedagogia da comunica-ção, oposto a uma caduca e desumana pedago-gia da instrução, esse património é certamenteaquele que no MEM todos os dias se vai cons-truindo em tantas salas de aula e escolas destepaís.

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