evolução das decisões morais em contexto educativo...

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32 ESCOLA MODERNA Nº 11•5ª série•2001 E ste artigo sintetiza uma investigação reali- zada no ano lectivo de 1997 / 98, no âmbito da elaboração de uma tese de mestrado em Ciências da Educação. Trata-se de um trabalho descritivo, onde se pretende descrever a gé- nese das regras de vida de uma Turma. Visa contribuir para revelar a dinâmica dialógica da construção social do desenvolvimento moral e da socialização de um grupo de alunos numa estrutura específica de cooperação intelectual e cultural que é o Conselho de Cooperação Edu- cativa do modelo pedagógico da Escola Mo- derna Portuguesa. Partimos do pressuposto de que é a organi- zação social das aprendizagens que promove o desenvolvimento. Para dar conta desta ver- tente do desenvolvimento moral, escolheu-se um modelo pedagógico que assenta nesse pressuposto – o Modelo da Escola Moderna. Entendemos que «um modelo é mais do que uma estratégia ou método específico. Consiste num plano geral, ou padrão, para au- xiliar os alunos a aprender determinados co- nhecimentos, atitudes ou competências. Um modelo de ensino (...) possui uma base filosó- fica subjacente e um conjunto de prescrições docentes destinadas à prossecução dos resul- tados educativos esperados» (Bruce Joyce e Marsha Weil, 1985). O modelo pedagógico do Movimento da Escola Moderna consiste num conjunto de princípios estratégicos que se ope- racionalizam em metodologias activas e dife- renciadas de trabalho pedagógico, promotoras da participação democrática e do desenvolvi- mento sociomoral dos alunos. A construção dos saberes parte das necessidades e interesses das crianças e do seu envolvimento na gestão do currículo (gestão do tempo, do espaço, dos materiais e das actividades de aprendizagem) procurando desta forma implicar e correspon- sabilizar os educandos no seu processo de aprendizagem. As normas que regulam a vida e o trabalho das crianças constroem-se neste modelo, no interior do grupo, em Conselho de Coopera- ção, a partir das necessidades mais fundas e das ocorrências registadas no Diário de Turma. Daí que os empurrões, os pontapés e os murros depois de discutidos, tomados como meio de reflexão em Conselho se tor- nem em motivo de construção de normas co- lectivas – a lei comum. É a partir de coisas do quotidiano, que parecem quase sem importân- cia, que o grupo vai criando as suas próprias regras de socialização. «Aos que se possam admirar com a ausência de moral, aos que possam lamentar o pragmatismo das regras elaboradas por estes grupos crianças-adulto, assinalamos que só encontramos esta “lei” com aspecto moralizante: “Nunca faço troça de um colega”» (Vasquez e Oury, 1977). O secretário regista-as por escrito e afixa-as numa parede da sala, procurando desta forma, que não haja esquecimentos e se cumpram os compromissos tomados. É para relembrar es- ses compromissos que o primeiro ponto da or- dem de trabalhos de cada reunião de Conse- lho é sempre a leitura da acta elaborada no Evolução das Decisões Morais em Contexto Educativo – Modelo Democrático de Socialização Filomena Serralha

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Este artigo sintetiza uma investigação reali-zada no ano lectivo de 1997 / 98, no âmbito

da elaboração de uma tese de mestrado emCiências da Educação. Trata-se de um trabalhodescritivo, onde se pretende descrever a gé-nese das regras de vida de uma Turma. Visacontribuir para revelar a dinâmica dialógica daconstrução social do desenvolvimento moral eda socialização de um grupo de alunos numaestrutura específica de cooperação intelectual ecultural que é o Conselho de Cooperação Edu-cativa do modelo pedagógico da Escola Mo-derna Portuguesa.

Partimos do pressuposto de que é a organi-zação social das aprendizagens que promoveo desenvolvimento. Para dar conta desta ver-tente do desenvolvimento moral, escolheu-seum modelo pedagógico que assenta nessepressuposto – o Modelo da Escola Moderna.

Entendemos que «um modelo é mais doque uma estratégia ou método específico.Consiste num plano geral, ou padrão, para au-xiliar os alunos a aprender determinados co-nhecimentos, atitudes ou competências. Ummodelo de ensino (...) possui uma base filosó-fica subjacente e um conjunto de prescriçõesdocentes destinadas à prossecução dos resul-tados educativos esperados» (Bruce Joyce eMarsha Weil, 1985). O modelo pedagógico doMovimento da Escola Moderna consiste numconjunto de princípios estratégicos que se ope-racionalizam em metodologias activas e dife-renciadas de trabalho pedagógico, promotorasda participação democrática e do desenvolvi-

mento sociomoral dos alunos. A construçãodos saberes parte das necessidades e interessesdas crianças e do seu envolvimento na gestãodo currículo (gestão do tempo, do espaço, dosmateriais e das actividades de aprendizagem)procurando desta forma implicar e correspon-sabilizar os educandos no seu processo deaprendizagem.

As normas que regulam a vida e o trabalhodas crianças constroem-se neste modelo, nointerior do grupo, em Conselho de Coopera-ção, a partir das necessidades mais fundas edas ocorrências registadas no Diário deTurma. Daí que os empurrões, os pontapés eos murros depois de discutidos, tomadoscomo meio de reflexão em Conselho se tor-nem em motivo de construção de normas co-lectivas – a lei comum. É a partir de coisas doquotidiano, que parecem quase sem importân-cia, que o grupo vai criando as suas própriasregras de socialização. «Aos que se possamadmirar com a ausência de moral, aos quepossam lamentar o pragmatismo das regraselaboradas por estes grupos crianças-adulto,assinalamos que só encontramos esta “lei”com aspecto moralizante: “Nunca faço troçade um colega”» (Vasquez e Oury, 1977).

O secretário regista-as por escrito e afixa-asnuma parede da sala, procurando desta forma,que não haja esquecimentos e se cumpram oscompromissos tomados. É para relembrar es-ses compromissos que o primeiro ponto da or-dem de trabalhos de cada reunião de Conse-lho é sempre a leitura da acta elaborada no

Evolução das Decisões Morais em Contexto Educativo – Modelo

Democrático de Socialização

Filomena Serralha

Conselho anterior. Depois da leitura desta, es-pontaneamente, os alunos inscrevem-se paratecer comentários que permitem avaliar ocumprimento das decisões então tomadas.Este rigor na aplicação de regras faz com queas crianças se sintam seguras e dá-lhe umaenorme confiança. O que não quer dizer, queessas orientações para a vida do grupo e paraa socialização dos comportamentos sejam leissagradas e imutáveis. Pelo contrário, elas sãoelaboradas, apenas e só, para servir uma de-terminada finalidade – são provisórias. Se numdado momento, o grupo reunido em Conselhoreconhece que uma norma já não tem utili-dade, porque a situação que esteve na sua ori-gem evoluiu, procederá de imediato à sua re-visão ou até mesmo à sua anulação. Isto écongruente com a moral que não é estática euna. É de realçar «o respeito que as crianças le-gisladoras dão às suas próprias convenções.Estas convenções, da ordem da justiça pública(themis) são comuns a todos os membros doConselho. Os alunos não se esquecerão delembrar isso ao pedagogo que se esquecer delevar em conta esta lei comum» (Rouanet,1989). Durante um ano de observações tiveoportunidade de reparar que até mesmo «alu-nos destruidores têm o maior respeito por es-tes editais provisórios: nenhum dentre eles ou-sará rabiscar no caderno que os recolhe,quando houver ensejo para esta possibilidade»(Rouanet, 1989).

Vimos como as ocorrências negativas queocorrem no interior do grupo, se constituemem grandes oportunidades de crescimento,são a mais valia na educação. Para isso, os in-cidentes vividos não podem ser resolvidos, ali,no momento em que ocorrem, qualquer acçãodesencadeada seria orientada por uma fortecarga emocional. É importante que exista umtempo que medei a passagem ao acto, é o quevai da tomada de posição em Diário de Turmaà tomada de decisão em Conselho, para assim,proporcionar o amadurecimento das partesimplicadas, para que por si só, se possam re-solver muitos dos incidentes vividos e evitar

problemas de indisciplina ou violência. Tam-bém nunca são resolvidos em particular, umaconversa ao lado, a dois ou três, pois destaforma cria-se dependência e reforça-se a in-fantilidade. «Nunca falei a este ou aquele pararepreendê-lo por seu comportamento, comogostam de fazer certos colegas. A crítica queuma turma pode fazer a um aluno tirânico ouperturbador me parece muito eficaz: por umlado, porque aquele que está sendo criticadopode se defender (o presidente lhe garante odireito de falar), mas sobretudo porque sepode fazer a afirmação de uma lei comum»(Colombier et al.1989).

A resolução cooperada do que corre mal naescola e no grupo, permite uma conscienciali-zação colectiva dos incidentes e de todos osriscos que lhe são inerentes, sensibilizandonão só os implicados como todos os colegas aevitarem situações idênticas no futuro. É im-portante que os alunos possam reflectir as suasvivências, ao fazê-lo usufruem dos direitosque lhe estão consignados, treinando-se assim,para a vida social adulta. Desta forma pode-mos dizer que «o Conselho gera uma socia-bilidade inteligível e propícia aos alunos acompreensão do significado pleno de sua acti-vidade» (Rouanet, 1989). Para que o Conselhose torne um lugar onde os conflitos podem serverbalizados, discutidos, clarificados e resolvi-dos, é indispensável que não haja castigos, quea criança não seja condenada face a qualquerincidente praticado. Que eles sirvam para tor-nar a escola mais educativa.

Porém, essa lei que nasce do relaciona-mento diário, que garante ao grupo trabalharjuntos num projecto colectivo (aprendizagem)e viver durante esse tempo, só é possível naescola, através de uma organização cooperada(do espaço, dos materiais, do tempo e das ac-tividades de aprendizagem). Porque, «fazer alei em conjunto supõe que cada um tenhaacesso à autonomia» (Colombier et al.1989) eesta treina-se e atinge-se por meio da organi-zação. É esta «que precisa os estatutos de cadaum, ... é por ela, entre outras instituições, que

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todos têm acesso ao poder no grupo» (Vas-quez e Oury,1977).

No modelo pedagógico do MEM a organi-zação cooperada do espaço e dos materiaisque a sustentam é estruturada, por forma aque os alunos possam, livremente, realizar ac-tividades diversificadas, de acordo com os in-teresses, as necessidades e o ritmo de cadaum. «O cenário de trabalho numa sala de auladeverá proporcionar um envolvimento cultu-ral estruturado para facilitar o ambiente deaprendizagem curricular» (Niza, 1998).

Essa forma de organização social da turma,só é possível pela responsabilização de cadacriança, por uma tarefa que rotativamente as-sume, pelo período de uma semana, ao fim doqual tem que prestar contas ao grupo do seudesempenho. Como diz Borges (1961) «a es-cola é dos alunos e a cada um caberá uma ta-refa específica para que o todo possa funcio-nar harmoniosamente». É esta partilha dasresponsabilidades que sustenta toda a organi-zação cooperada da sala de aula, contribuindosignificativamente para o desenvolvimento daautonomia, da responsabilidade, da liberdadee da participação real (ingredientes responsá-veis pelo desenvolvimento sociomoral doseducandos).

Os professores do Movimento utilizam uminstrumento que lhe permite monitorizar agestão cooperada do espaço e dos materiais, éo mapa de tarefas, que avaliam e redefinemsemanalmente (no 1º ciclo).

Esta rotatividade permite que cada criançatenha um estatuto muito diversificado, com-plexo e variável. Cada tarefa diferente que rea-liza concede-lhe direitos e deveres que se alte-ram em função de cada um dos papeisdesempenhados. A mudança que efectua to-das as semanas, levam-na a fazer ajustamen-tos ao nível do comportamento, que resultamdas dificuldades com que por vezes se deparano desempenho inicial da nova tarefa, masque são, apesar disso, aceleradores do cresci-mento. A adaptação que a criança é obrigada afazer em cada mudança efectuada e na passa-

gem que faz por todas as tarefas disponíveispermite-lhe desenvolver capacidades sociais,que decorrem dessa adaptação à nova tarefa.A partilha de tarefas faz da sala de aula um lu-gar privilegiado na aquisição de competênciassociais (Vasquez e Oury, 1977).

Adquirem assim, uma função integradorapor excelência. Pois as responsabilidades assu-midas permitem a tomada de consciência depertença a um grupo e de estar a contribuirpara que este possa existir. São o sustento dogrupo, no seu sentido pleno.

É esta participação democrática directa naorganização e gestão, não só do espaço e ma-teriais, mas de todo o currículo, que dá direc-ção e sentido social no modelo pedagógico doMEM, ao encarar a educação escolar comouma iniciação e experimentação da vida de-mocrática. «Quer isto dizer que as atitudes, osvalores e as competências sociais e éticas quea democracia integra, se constroem enquantoos alunos, com os professores, em cooperaçãovão experienciando a própria democracia naescola» (Niza, 1998). Razão porque decidimosrealizar o estudo neste modelo, do qual de-corre esta estratégia de formação pessoal e so-cial de sentido democrático integradora detodo o processo escolar. Como dizem Campos& Lemos (1987) «não basta acrescentar opor-tunidades educativas para o desenvolvimentopessoal e social dos alunos, é preciso, sobre-tudo, transformar do interior os contextos emque se desenvolvem, melhorando a qualidadede vida psicossocial que os mesmos propor-cionam.»

Metodologia

O objectivo desta investigação era estudara construção e evolução das normas de socia-lização geradas em Conselho de CooperaçãoEducativa, numa turma do 1º ano de escolari-dade que orienta o seu trabalho pelo modelopedagógico do Movimento da Escola Mo-derna.

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Recorremos para isso a um estudo longitu-dinal:

– Das ocorrências significativas inscritasnos Diários de Turma;

– Dos argumentos utilizados na discussãodas ocorrências negativas no Conselho, grava-das e transcritas ao longo do ano;

– Do elenco de normas produzidas sucessi-vamente em Conselhos e retomadas poste-riormente para suscitar alguns juízos e deci-sões morais.

O conjunto de Diários de Turma produzi-dos pelo grupo ao longo do ano lectivo e a dis-cussão que a leitura das ocorrências registadasgeraram em Conselho, na procura de encon-trar consensos, com vista a uma tomada dedecisão, de onde decorreram as regras de vidae de funcionamento, constituiram excelentesinformantes acerca do crescimento pessoal,social e moral das crianças. Recolhemos trintae dois Diários, o conjunto de instrumentosque ajudaram a fazer a regulação social dosalunos. Completamos esta informação com aobservação das respectivas sessões de Conse-lho, que nos permitiram ver, como a partir dasocorrências da vida escolar, se estabelecem asregras de vida de um grupo e como estas evo-luem.

O Diário de Turma é um instrumento peda-gógico de registo sistemático da vida do grupo,observatório do seu processo de desenvolvi-mento pessoal, social e moral. É um espaço es-truturado, formado por duas partes: o cabeça-lho, onde se escreve o título, seguido doperíodo de tempo a que se destina (semana no1º ciclo e mês no 2º, 3º ciclo e secundário) e onúmero a que corresponde, ilustrado pelo Pre-sidente e o Secretário. A outra parte, está divi-dida em quatro colunas («Fizemos», «Quere-mos», «Gostamos» e «Não Gostamos»), que sedestinam ao registo escrito do que mais signi-ficativo acontece no seio do grupo, duranteaquele período de tempo, memória que nãodeixa esquecer o que é premente levar a Con-selho. Durante a semana, alunos e professor (a)

registam livremente no Diário de Turma asocorrências que consideram mais relevantes:problemas resultantes da convivência diária,trocas de afectos, preferências de parcerias, de-sejos, propostas de trabalho, realizações ou ou-tras. Destas, após lidas e discutidas em Conse-lho saiem as orientações para a vida do grupoe para a socialização dos comportamentos.

A análise de conteúdo das tomadas de po-sição em Diário de Turma incidiu nas quatrocolunas de escrita que o compõem. Organi-zou-se em redor de um processo de categori-zação semântico. Seguimos o processo pro-posto por Bardin (1977). Não partimos de umsistema de categorias previamente definidas,estas emergiram da classificação analógica eprogressiva dos elementos. Os títulos que lhedemos foram definidos, somente, no final daoperação. Agrupamos as categorias em quatroblocos de informação (A, B, C e D).Termina-mos a fase de análise com a operacionalizaçãodas categorias encontradas, que ilustramoscom alguns indicadores a servir de exemplo.(Ver Quadro nº 1 – Blocos de informação e ca-tegorias).

Por último, fizemos o tratamento da evolu-ção de ocorrências negativas que se repetem,para tentar perceber, como após a decisão deuma norma social que permite melhorar ocomportamento, esse comportamento volta aser inscrito no Diário de Turma e discutido emConselho. Procuramos desta forma, darmo-nos conta da construção cooperada da normae da elaboração do significado social dessanorma, para permitir a sua interiorização. Istoé, para que produza efeito formativo nos alu-nos sinalizados como responsáveis pela ocor-rência negativa.

Apresentação e Discussão dos Resultados

A partir das gravações das reuniões deConselho de Cooperação Educativa que serealizaram durante o ano, sobretudo, da lei-

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A – OCORRÊNCIAS DE

SOCIALIZAÇÃO

1. Interiorização das regras

2. Transgressão de regras sociais

3. Relações socio-afectivas

3.1. Manifestação de amizade

3.2. Rejeição

3.3. Agressão física

3.4. Auto-protecção

4. Manifestação de gosto pela escola

B – OCORRÊNCIAS

RELACIONADAS

COM O

DESENVOLVIMENTO

DE COMPETÊNCIAS

METECOGNITIVAS

1. Tomadas de consciência do percurso feito

2. Declaração de intencionalidade relacionadas com

a aprendizagem

3. Regulação do percurso

3.1. Actividades privilegiadas pelos alunos

3.2. Valorização dos percursos

C – OCORRÊNCIAS

REFERENTES À

ORGANIZAÇÃO

COOPERADA

1. Corresponsabilização

1.1. Tarefas realizadas

1.2. Tarefas que deseja realizar

2. Organização / realização de projectos de estudo

3. Contributos para a planificação de actividades

4. Transgressão de regras instituídas

5. Incidentes relacionados com o material da sala

6. Desejos de mudança de lugar

D – OCORRÊNCIAS

DISTINGUIDAS

PELOS ALUNOS

1. Associadas a vivências pessoais

2. Associadas a vivências do grupo

Blocos de informação Categorias

Quadro nº 1 – Blocos de informação e categorias

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tura e discussão das ocorrências negativas re-gistadas no Diário de Turma e das actas dosConselhos, fizemos o levantamento da totali-dade de normas inscritas, que o grupo foi ela-borando para tornar possível a vida e o traba-lho em colectivo.

Quadro nº 2 – Normas instituídas

Períodos lectivos Normas inscritas

1º 27

2º 8

3º 3

TOTAL 38

Verifica-se que é durante o primeiro pe-ríodo, fase em que as crianças iniciam a escola-ridade, que sentem maior necessidade em criarregras de vida, atribuindo nesta altura, quaseexclusivamente importância ao aspecto rela-cional. No segundo e terceiro período constata-se uma redução muito significativa, quanto aonúmero de normas instituídas. No terceiro pe-ríodo as crianças deram um enorme salto ao ní-vel da socialização. Já não sentem necessidadede uma lei escrita no papel, essa caiu quandodeixou de lhe fazer falta, depois de interiori-zada, a lei vigora já incorporada na vida.

Quanto à natureza das normas, verifica-seque à entrada (no primeiro período) as ocor-rências que lhe dão origem são de carácter in-dividual, deslocando-se no segundo e terceiroperíodo para ocorrências de carácter social.Por falta de espaço, ilustramos este pormenorevolutivo apresentando apenas um exemplopara cada uma das situações, no entanto, mui-tos havia a salientar. Para o primeiro casotranscreve-se a ocorrência que o Diogo regis-tou, no Diário de Turma em 10/10/97: «O JoséDiogo chamou-me um nome e eu não gostei».Depois de lida e discutida em Conselho deuorigem à norma: «Não se deve dizer asneiraspara as outras pessoas, mas se isso acontecerdeve-se pedir desculpas». Para ilustrar o se-

gundo caso, transcrevemos uma ocorrênciaque o Daniel registou no Diário de Turma a24/4/98: «O Ivo e o José correram na aula demoral». Depois de analisado e reflectido oacontecimento no interior do grupo, este de-cide por consenso, criar e deixar à vista de to-dos a seguinte norma: «A sala é um sítio paratrabalhar, não para brincar».

Parece-nos pertinente realçar outro aspectoque nos permite inferir que as crianças fizeramuma evolução moral muito grande, é o factode chegarem ao fim do primeiro ano de esco-laridade apresentando propostas para a elabo-ração de regras de escola:

«Não rebentar pacotes de leite ou sumodentro da escola».

Esta norma de escola surgiu a partir de umaproposta apresentada pela Claúdia no Conse-lho do dia 19 de Junho:

«O Emanuel com um pacote de sumo an-dava a entornar o sumo para as calças do Pe-dro. Claúdia».

José João – Acho que podiam resolver sozi-nhos professora.

Claúdia – Devia haver uma regra na escolapara não rebentar pacotes. Porque eu vejo osoutros, estão sempre a rebentar pacotes, paco-tes, pacotes. Assim a escola fica mais suja. Euacho que as senhoras não têm nada que andarsempre a apanhar o lixo do chão, os meninostêm de se portar bem e ajudar as senhoras aapanhar o lixo do chão.

Estas duas intervenções ilustram bem a suahistória evolutiva. Em primeiro lugar, o JoséJoão mostra-nos que já há no grupo um pro-cesso de socialização que pressupõe acordosentre eles para ultrapassarem um conflito. Re-vela que já têm uma maturidade que permite,que entre eles se chegue a um acordo (podiamresolver sozinhos). Este é o nível de desenvol-vimento moral do estádio 5 apresentado porKohlberg. Por outro lado, a Claúdia apresenta-nos outro aspecto muito importante ao nívelda socialização, uma proposta para a elabora-ção de uma regra de escola. Revela que já têmuma noção de relação de frateria que não se li-

mita a eles e à professora, vai muito mais além,pois já se preocupam com o conjunto institu-cional, apesar dos seus seis anos de idade.

Merece um olhar atento, um aspecto quesobressai nesta investigação, é o papel desem-penhado pela professora, para fazer avançarsempre mais as crianças. Uma professora quenão cruza os braços perante os progressos jáalcançados. Em vez disso, vêmo-la sempreatenta, esforçando-se por encorajar o grupo air mais além, tal como podemos verificar naparte final desta discussão que teve origem naproposta apresentada pela Claúdia.

Professora – Pronto, então eu vou escreveresta regra e na próxima semana o Presidente,o Secretário e a Cláudia que fez a proposta,vão ás salas ler e ver se estão de acordo comesta nova regra. Por enquanto ainda não é re-gra da escola, por enquanto ainda só é pro-posta. Uma proposta aceite pelos meninosdesta sala. Portanto, os meninos desta sala to-dos têm a responsabilidade. Se vão propôr àescola toda esta regra, têm a responsabilidadede ser os primeiros a cumprir esta regra.

Por último, gostaria de realçar outro as-pecto importante que emerge da história evo-lutiva das normas, é que algumas das regras devida criadas no primeiro período aparecemquer uma quer mais vezes retomadas comoocorrência negativa inscrita no Diário deTurma. Por oposição, as ocorrências que dãoorigem às normas instituídas no terceiro pe-ríodo nunca foram retomadas. Sempre queuma norma volta a ser retomada, a discussãojá é elaborada tendo como critério umanorma. É interessante verificar a importânciaque assumem neste grupo, esse rol de inciden-tes que vão surgindo da vida em grupo: em-purrar, puxar, dar murros, fazer cócegas, por-que a partir deles se cresce e ajuda a crescer.Parece-nos que neste grupo se acelera o cresci-mento através da discussão destes problemas,porque permitem uma aprendizagem da reso-lução de conflitos, treinando as crianças para atomada de decisão colectiva. Essa ajuda dospares tem-se tornado visível no desenvolvi-

mento moral do grupo, muito particularmenteno Ivo, para quem a adaptação formal à insti-tuição-escola foi mais difícil. Transcrevemosuma ocorrência discutida no Conselho do dia6 de Fevereiro para darmos uma visão maisclara do trabalho de transformação que ascrianças realizam para se formarem ou ajudarum colega que necessita de ajuda.

Ocorrência: «Eu não gosto de me portarmal. Ivo»

J. João – Isto não é para resolver!Prof. – Não sei. É para falar sobre isso Ivo?Bruno – Quando estava ao pé de mim, o

Ivo estava-me a chatear e eu acho que estava-se a portar mal!

Claúdia – Esta semana não se está a portarmuito mal.

Ivo – Sou eu a falar.Prof. – Sim, ele tem razão. Quando as pes-

soas escrevem uma coisa têm prioridade de fa-lar, são as primeiras a poder falar.

Ivo – Posso contar aqui?Prof. – Queres dizer aos teus colegas? Se

queres dizer, dizes tu claramente.Então o que é que tu achas do teu compor-

tamento desta semana? Eu acho que o Ivo estáà espera que digam como é que ele se tem por-tado esta semana.

Portanto, está à espera da vossa opinião.Rita – O Ivo deve ter amarelo, às vezes

porta-se mal, outras vezes não.Bruno – Eu acho que cada vez, cada dia ele

porta-se muito mal.José – Eu acho que o Ivo porta-se assim-as-

sim.Sérgio – Eu acho que o Ivo porta-se mal.Ana – Eu acho que o Ivo devia pedir des-

culpa a si próprio.J. João – Pede desculpa.Ivo – Para pedir desculpa a mim, como é

que eu digo?Rita – Concordo com a Ana.João – Concordo com a Ana.José – Concordo com a Ana.Prof. – Não vão todos dizer que concordam

com a Ana.

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Emanuel – Eu acho que o Ivo está a dizer atoda a gente, como o José, que está a crescer,apesar de bater a toda a gente, já assume quenão cumpriu algumas regras.

Bruno – Eu acho que o Ivo deve pedir des-culpas à professora, porque a professora é queralhou com ele. A professora tem sempre queralhar com ele.

Sandro – O Ivo deve pedir desculpa a sipróprio e à professora.

Diogo – E não cumpriu uma regra quandofomos ao Jardim Zoológico.

Prof. – Há muito tempo Diogo!Rui – Eu acho que o Ivo deve ter amarelo

ou vermelho.Vanessa A.– Eu acho que a professora devia

mandar um recado à mãe do Ivo.Claúdia – ...Prof. – Olhem, oiçam o que a Claúdia está a

dizer que tem muito sentido, fala lá mais alto.Claúdia – O Ivo porta-se mal às vezes e ou-

tras não, depende do que ele quer.Nádia – O Ivo devia pedir desculpa aos me-

ninos e à professora.Ivo – E ao Presidente.Rui – E ao Secretário.Prof. – Presidente, não pode deixar falar os

meninos que não estão na sua vez.Emanuel – Eu também concordo com a Ná-

dia, que o Ivo só deve pedir desculpa aos me-ninos.

Prof. – Eu também estou à espera para falar,já sou eu? Eu queria dizer uma coisa, posso?

Quando o Ivo disse que queria pedir des-culpa à professora eu concordo com a Ana,que deve pedir desculpa a si próprio. Mas istoé uma maneira de dizer, não é que ele agora seponha a dizer «desculpa a mim próprio», não.É que isto quer dizer que o Ivo quando seporta mal não se sente bem com ele. Eu nãoacredito que goste de se portar mal, porqueolha, fica zangado com a professora e eu ficozangada com ele; fica zangado com a mãe e amãe fica zangada com ele; fica zangado comos colegas e os colegas com ele. Ora, uma pes-soa assim não se sente bem, pois não?

Grupo – Não.Prof. – Então, o que ele tem, é que se con-

trolar para se sentir bem com os outros. Agoraquero dizer outra coisa. A minha opinião nãoé a vossa. Vocês dizem que o Ivo esta semana,se tivesse um registo, iria ter amarelo ou ver-melho. Eu estou de acordo com a Cláudia, quese ele tivesse que pedir desculpa a alguém erapedir desculpa aos meninos e a ele próprio enão a mim. Aos outros meninos porque inco-moda. Quando ele não se porta bem inco-moda e não deixa trabalhar. Portanto, aí devemesmo pedir desculpa a todos os meninos.Agora eu devo dizer que ontem e hoje, e istotem que ser dito, o Ivo fez um esforço para seportar bem. Hoje eu reparei, porque eu reparoe bem, que o Ivo em várias chamadas de aten-ção que o Presidente lhe fez, ele fez o que oPresidente mandou e outro dia quando lhe di-zíamos: «Ivo, acabou o tempo de pintar; Ivo, éaltura de arrumar», o Ivo refilava, dizia dispa-rates e continuava. Portanto, isto tem de serdito, se o Ivo se portar sempre como ontem ecomo hoje, não haverá problemas nenhuns!Eu estou completamente de acordo com aClaúdia, ele quando quer porta-se bem. Por-tanto, ele só se porta mal porque não quer, oque é grave. Pronto, mas a gente acredita quea partir de agora o Ivo vai portar-se semprecomo hoje?

Ivo – Às vezes.Prof. – Ah! Pois às vezes tu não queres. Se

tu queres muito, muito, muito, portas-te bem!Posso escrever aqui: o Ivo diz que quer muitoportar-se bem?

João – Não é só agora ele dizer que se vaiportar bem.

Sandro – Não, não, é que agora a gente vaimesmo ver se ele cumpre isto, está bem? To-dos os dias vamos dizer se ele cumpriu isto ounão.

Decisão:O Ivo disse que não gostava de se portar

mal e quis saber o que os colegas achavam doseu comportamento desta semana.

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O Bruno achou que o Ivo se tem portadomuito mal esta semana. A Claúdia achou que

o Ivo às vezes se porta mal e outras vezesnão, depende do que ele quer. A Vanessa A.achou que a professora devia mandar um re-cado à mãe do Ivo.

O Ivo achou que devia pedir desculpa àprofessora.

Alguns meninos disseram que ele se portaassim assim. O Emanuel achou que, apesar deele andar a bater a toda a gente já está a cres-cer porque assume o que faz.

A Nádia achou que ele devia pedir descul-pas aos meninos e não à professora.

O Ivo disse que quer muito portar-se bem eque vai fazer um esforço.

Queria fechar a apresentação e discussãodos resultados com um estrato da acta do dia29 de Maio porque retrata muito bem a histó-ria evolutiva do grupo:

«A seguir lemos o Diário de Turma, come-çando pela coluna do «Fizemos».

Vimos que há meninos que estão a traba-lhar muito no Plano Individual...

Passámos à coluna do «Não gostamos», naqual, se deve salientar, estava quase tudo já re-solvido, o que denota um crescimento dos me-ninos».

Conclusão

Parece-nos que existiram naquele grupo al-guns factores que fizeram avançar o desenvol-vimento dos educandos:

A criação em contexto, de um instrumentode registo (Diário de Turma) e uma estruturade cooperação (Conselho) num tempo sema-nal para fazer a regulação da vida e do tra-balho na turma, onde os incidentes vividosdepois de registados no Diário de Turma e dis-cutidos em Conselho, permitiram a elabora-ção de um conjunto de normas que ajudarama socializar as crianças

O cenário de trabalho e a sua organizaçãoconcedeu-lhe um envolvimento cultural estru-turado, facilitador e promotor do desenvolvi-

mento da autonomia, da liberdade e da res-ponsabilidade.

As interacções sistemáticas que a gestãocooperada de conflitos foi gerando no interiordo grupo, facultou a cada criança a oportuni-dade de entrar cognitiva e afectivamente na«pele do outro».

A relação negocial de cooperação que se es-tabeleceu no grupo permitiu-lhe chegar a for-mas mais evoluídas de democracia (tomada dedecisão por consenso).

A cooperação que entre eles se desenvolveupermitiu-lhe solidificar e manter o crescimentohumano e ético, graças à qual, cada criança foiconstruindo a sua autonomia pessoal e moral,bem como os valores democráticos.

O papel clarificador e não endoutrinadoradoptado pela professora poderá ter tido umaimportância relevante no processo evolutivodo grupo.

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