o modelo curricular do m.e.m. – uma gramática...

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Introdução U m contexto pedagógico é antes de mais um contexto social, logo, um contexto re- lacional. A escola não é uma instituição auto- contida, isolada da sociedade, desenvolvendo processos artificiais para instruir as gerações mais jovens. A primeira característica do pro- cesso educativo – e logo dos seus contextos (a sala e a escola) – é a sua dimensão social. O processo educativo desenvolve-se numa sociedade, a que pertence e para a qual deve contribuir, fazendo um percurso participativo de reconstrução guiada da cultura no encontro das crianças com as crianças e das crianças com os adultos. A escola e a sala como contextos sócio-morais A escola como contexto organizacional, logo socialmente construído, desenvolve estru- turas, cria regras e normas relativas à vivência nessa sociedade organizada que, explícita e implicitamente, veiculam princípios e crenças sócio-morais. Os adultos e as crianças que interagem neste contexto fazem-no em interdependência com essas estruturas, regras, normas sabendo- se que eles próprios transportam, dos seus con- textos sociais de origem, valores e princípios; normas e crenças que podem ser próximas ou distantes daquelas que o contexto organizacio- nal da escola e da sala desenvolveram. O já clássico (inspirado e inspirador) traba- lho de Kohlberg (1984) chama a atenção da in- terdependência entre a atmosfera moral da ins- tituição como um todo e a atmosfera de cada sala de aula. De facto, a atmosfera moral da instituição, já importante em si mesma, é tam- bém importante na sua influência na sala de aula. Pode ser favorecedora ou impeditiva da atmosfera moral da sala onde quotidiana- mente crianças e adultos desenvolvem (ou não) experiências de interacções e relações, de respeito e amizade, de cuidados e justiça, de envolvimento com o contexto social, de ma- nutenção das normas negociadas no grupo. A investigação desenvolvida por Kohlberg e a sua equipa releva o respeito pelos actores e o respeito pelo contracto social acordado como dimensões centrais para a construção da escola como contexto sócio-moral. É então necessário (re) pensar a imagem dos actores centrais do contexto pedagógico (as crianças e o professor) e as formas como de- senvolvem e usam o contrato social. A agência da criança como valor Segundo Barnes (2000), dispor de agência significa ter poder e capacidades que, através de seu exercício, tornam o indivíduo uma enti- dade activa que constantemente intervém no curso dos acontecimentos à sua volta. 5 ESCOLA MODERNA Nº 18•5ª série•2003 O Modelo Curricular do M.E.M. – Uma Gramática Pedagógica Para a Participação Guiada Júlia Oliveira-Formosinho* * Professora do Instituto de Estudos da Criança da Uni- versidade do Minho – Colaboradora Científica do MEM.

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Introdução

Um contexto pedagógico é antes de maisum contexto social, logo, um contexto re-

lacional. A escola não é uma instituição auto-contida, isolada da sociedade, desenvolvendoprocessos artificiais para instruir as geraçõesmais jovens. A primeira característica do pro-cesso educativo – e logo dos seus contextos (asala e a escola) – é a sua dimensão social.

O processo educativo desenvolve-se numasociedade, a que pertence e para a qual devecontribuir, fazendo um percurso participativode reconstrução guiada da cultura no encontrodas crianças com as crianças e das criançascom os adultos.

A escola e a sala como contextos sócio-morais

A escola como contexto organizacional,logo socialmente construído, desenvolve estru-turas, cria regras e normas relativas à vivêncianessa sociedade organizada que, explícita eimplicitamente, veiculam princípios e crençassócio-morais.

Os adultos e as crianças que interagemneste contexto fazem-no em interdependênciacom essas estruturas, regras, normas sabendo-se que eles próprios transportam, dos seus con-textos sociais de origem, valores e princípios;

normas e crenças que podem ser próximas oudistantes daquelas que o contexto organizacio-nal da escola e da sala desenvolveram.

O já clássico (inspirado e inspirador) traba-lho de Kohlberg (1984) chama a atenção da in-terdependência entre a atmosfera moral da ins-tituição como um todo e a atmosfera de cadasala de aula. De facto, a atmosfera moral dainstituição, já importante em si mesma, é tam-bém importante na sua influência na sala deaula. Pode ser favorecedora ou impeditiva daatmosfera moral da sala onde quotidiana-mente crianças e adultos desenvolvem (ounão) experiências de interacções e relações, derespeito e amizade, de cuidados e justiça, deenvolvimento com o contexto social, de ma-nutenção das normas negociadas no grupo.

A investigação desenvolvida por Kohlberge a sua equipa releva o respeito pelos actores eo respeito pelo contracto social acordado comodimensões centrais para a construção da escolacomo contexto sócio-moral.

É então necessário (re) pensar a imagem dosactores centrais do contexto pedagógico (ascrianças e o professor) e as formas como de-senvolvem e usam o contrato social.

A agência da criança como valor

Segundo Barnes (2000), dispor de agênciasignifica ter poder e capacidades que, atravésde seu exercício, tornam o indivíduo uma enti-dade activa que constantemente intervém nocurso dos acontecimentos à sua volta.

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O Modelo Curricular do M.E.M. – Uma Gramática Pedagógica Para a Participação Guiada

Júlia Oliveira-Formosinho*

* Professora do Instituto de Estudos da Criança da Uni-versidade do Minho – Colaboradora Científica do MEM.

Não se está, com Parsons, a falar meramen-te de um poder activo dos seres humanos, lo-calizado na «psiche» e identificado com o po-der de escolha, mas antes na linha de Giddenscomo um poder para fazer a diferença, actuare construir e, mesmo, ir contra constrangimen-tos transformando as estruturas e os sistemasde que derivam os constrangimentos.

A liberdade é essencial para o exercício daagência (tal como o é para o exercício da esco-lha). Se os poderes internos só pudessem seractivados através de determinações externasnão poderíamos falar de agência. É constitu-tivo do conceito de agência que a pessoa (compoder de intervenção) possa escolher cursos di-ferentes de acção, logo, tenha liberdade. O po-der da escolha real requer o da liberdade.

A agência do professor como acapacidade de fazer a diferença na agência da criança

A agência do professor como poder para fa-zer a diferença na pedagogia requer transfor-mar estruturas, sistemas, processos que even-tualmente se constituem em constrangimentoà agência do aluno e, assim, a mediar.

Mediar a agência do aluno requer a com-preensão da interdependência entre criança//aluno que aprende e contexto de aprendizagem.

Os processos de aprendizagem que permi-tem ao aluno intervenção constante no cursodos acontecimentos envolvem, na linguagemde Giddens, o ser humano incarnado a exercer osseus poderes internos num contexto de liber-dade. A interdependência entre o poder paraintervir e o contexto do exercício desse poderrequer do professor que o seu exercício profis-sional comece no contexto como forma decriar condições de liberdade para o aluno po-der participar com agência.

O professor como guia desta agência: a participação guiada

Segundo Bárbara Rogoff (1990), nos proces-sos de participação guiada, os adultos e as crian-

ças colaboram em processos de organização einteracções para que a participação da criançaseja guiada para metas. A colaboração dos ac-tores e a intencionalidade das metas (instituirna escola a democracia, reconstruir a cultura,aprender a cidadania moral) desenvolve-se emprojectos e actividades cultural e pedagogica-mente valiosos. A participação guiada é umprocesso de colaboração. O adulto cria pontesentre o já conhecido e o ainda novo para que ascrianças possam aceder ao novo. A criança uti-liza como guia os recursos sociais do adultoque lhe oferece apoio e desafio para participar,desempenhar papéis, na sua comunidade deaprendizagem. Este encontro de subjectivida-des, encontro de culturas, estimula e permitesuperação. O processo como um todo vai me-diatizando a imersão na cultura e esta vai per-mitindo a modificação, quer das formas de par-ticipação da criança, quer das formas do adultoguiar essa participação.

Este é um processo muito complexo que sóse pode reinventar no quotidiano porque nãonascemos sozinhos, não crescemos sozinhos,não aprendemos sozinhos, nem os professo-res…nem os alunos… A pedagogia dispõe deandaimes. A nossa criatividade pedagógica de-pende da construção inter/intrapessoal dosnossos andaimes.

O modelo curricular como gramáticapedagógica

Sabemos que é pouco original falar na difi-culdade de definir conceitos. Contudo, é umfacto que a polissemia dos conceitos, no âm-bito das ciências humanas e sociais, os torna dedifícil definição. Os conceitos de modelo peda-gógico e modelo curricular oferecem definiçõesdiferentes consoante os autores e as tradiçõesteóricas em que se alinham. Apesar dessas di-ferenças, parece que pode dizer-se que o termomodelo pedagógico se refere a um sistemaeducacional compreensivo que se caracterizapor combinar a teoria e prática. Dispõe, por-tanto, de uma teoria e de uma base de conhe-

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cimentos explícita, desde o nível fundamenta-dor da filosofia educacional, passando pelos ní-veis de uma teoria de ensino-aprendizagem ede uma teoria de desenvolvimento até ao nívelda consequente teoria de avaliação educacional.

Um modelo pedagógico dispõe, assim, deum modelo curricular e de um modelo de for-mação contínua e desenvolvimento profissional.

No âmbito mais geral do modelo pedagó-gico definem-se as grandes finalidades educa-cionais e seus consequentes objectivos; no âm-bito mais restrito do modelo curricular conse-quente elaboram-se orientações, umas maisgerais outras mais específicas, no que se refereà prática educacional.1

O modelo curricular situa-se ao nível doprocesso de ensino-aprendizagem e explicitaorientações sobre o contexto educativo nassuas várias dimensões:

– o tempo como dimensão pedagógica;– o espaço como dimensão pedagógica;– os materiais como livro de texto;– a interacção como dimensão pedagógica;– a observação e documentação como ga-

rante da presença da cultura da criança noacto educativo;

– a planificação como criação da intencio-nalidade educativa;

– a avaliação como suporte à aprendizageme como monitorização do processo ensinoaprendizagem;

– a avaliação do contexto educativo comorequisito para a avaliação da criança ecomo auto-monitorização por parte daeducadora;

– os projectos como experiência da pes-quisa colaborativa da criança;

– as actividades como jogo educativo;– a organização e gestão dos grupos como

garante da pedagogia diferenciada;– a compreensão das interrelações entre to-

das estas dimensões da acção pedagógicae das interfaces entre estas dimensões eáreas curriculares;

– as interfaces de escola com a comunidadeeducativa e as famílias, os pais;

– as interfaces com a creche e o ensino pri-mário.

A acção profissional reflectida em tornodestas dimensões é central para o desenvolvi-mento da profissionalidade docente, no âmbitoda educação de infância, e o desenvolvimentoprofissional ao longo do ciclo de vida.

O modelo curricular baseia-se num referen-cial teórico para conceptualizar a criança e o seuprocesso educativo e constitui um referencialprático para pensar antes-da-acção, na-acção esobre-a acção. O foco é então a acção educativa.O modelo curricular é um importante andaimepara apoiar o professor na procura de um quoti-diano com intencionalidade educacional ondeas crianças se envolvam (Oliveira-Formosinho eAraújo, 2004), persistam, aprendam e desenvol-vam disposições para aprender.

Convém então sublinhar que este referen-cial é por nós entendido como aberto e inclu-sivo. É um referencial aberto porque não seconceptualiza como um sistema educacionalencerrado em si próprio, antes pelo contrário,contextualiza-se no quadro cultural envolven-te, ao serviço das sociedades, das comunidadese das famílias. E assim, se torna em referencialinclusivo.

Um modelo curricular pressupõe ainda umaforma de pensar a formação dos profissionaisque optam por trabalhar nesse modelo, pois,como vimos, o modelo pedagógico inclui ummodelo de formação profissional prática. Abase epistemológica desse modelo de formação,é, assim, coerente com a base epistemológica domodelo curricular para a educação da criança.

Um modelo curricular é assim uma gramá-tica que cria linguagem, significados e uma es-trutura conceptual e prática; um contexto de ex-periência e comunicação com a experiência; umcontexto de acção e reflexão-sobre-a-acção. Talcomo a gramática ele permite quer a prosa,quer a poesia e, mais que isso, permite váriasprosas e várias poesias. Cada professor cria asua interpretação na construção da praxis, nasua sala de actividades, pela interpretação quefaz do modelo curricular. Assim, este é, por sua

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vez, uma construção educacional interpretativaao nível teórico e prático. Tal como a gramática,também exige aprendizagem. Se por um lado, omodelo curricular apoia a formação dos profis-sionais, por outro exige apoio a essa formação.

Pedindo um empréstimo a Bach, uma «dosebem temperada» de experiência, arte e apren-dizagem, através da acção comunicativa, noâmago de um processo colaborativo de forma-ção, que permita a cada profissional que o querutilizar uma co-construção do seu referencial,base para uma prática. Então esta prática refe-renciada permitirá uma teoria da prática, umaepistemologia da prática.

O que atinge, apoia, verdadeiramente acriança e o grupo é esta prática e esta episte-mologia. É portanto, a acção da educadora, re-flexiva sobre si própria, comunicativa com omodelo curricular que co-construiu, partilhadacom os seus pares. Daqui se conclui que o mo-delo curricular é, assim, uma condição neces-sária, mas não suficiente. São condições igual-mente importantes o modelo de formação aolongo de todo o seu ciclo de vida que permitacriar uma cultura educacional e uma epistemo-logia da prática congruente.

Os modelos curriculares podem constituirum dos referentes para a criação desta culturaeducacional, se, como no âmbito do MEM,sustentarem e se sustentarem em grupos deformação cooperativos (Niza, 1997).

O modelo curricular MEM comogramática pedagógica: uma duplamediação

Acompanhar longamente a jornada de umacomunidade de aprendizagem como é o Movi-

mento da Escola Moderna trouxe-me muitossaberes, desenvolveu as minhas crenças e for-taleceu a minha agência. Compreendi que estacomunidade dispõe de muitas memórias anti-gas em que estão ancoradas as memórias ac-tuais. Compreendi que umas e outras são su-jeitas a debate na participação guiada. Aprendiainda que o Movimento da Escola Modernatem no modelo curricular de que dispõe umadupla gramática pedagógica (Niza,1996). Omodelo curricular é visivelmente uma duplainstância de mediação: constitui-se em partici-pação guiada do educador que promove a par-ticipação guiada das crianças. E aqui reside osegredo do seu encantamento: faz a relação,faz as pontes entre os actores e entre os sabe-res. Pude ver que, no coração da acção educa-tiva do MEM, se institui quotidianamente acomunidade sócio-moral no respeito pelaagência dos actores, na negociação que o con-trato social estimula. Pude confirmar que acriatividade pedagógica se faz em diálogo enão no isolamento.

No modelo pedagógico do MEM estão liga-dos inextrincavelmente o modelo curricular e omodelo de formação profissional (a auto-for-mação cooperada). Mesmo na representaçãoque a comunidade profissional faz do MEM omovimento associativo em torno da formaçãoé tão importante como o modelo curricular.

Assim, à dupla mediação – a mediação doeducador que promove a participação guiadadas crianças – deve juntar-se uma outra instân-cia de mediação – a dos professores membrosdo Movimento. É esta outra mediação que re-gula, interpreta e reinterpreta2 a gramática pe-dagógica que vai regendo a acção do Movi-mento, dos profissionais e das crianças.

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1 Sobre os modelos curriculares ver Goffin, 1994 eEpstein et al., 1996; Roopinaire e Johnson, 1993, Oliveira--Fomrosinho, 1998, Formosinho, 1996.

2 Ver Formosinho 1998; Nóvoa 1998.

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