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R. S. Rose O homem mais perigoso do país Biografia de Filinto Müller Tradução de Renato Rezende Revisão técnica de Fábio Koifman 1ª edição Rio de Janeiro 2017

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R. S. Rose

O homem mais perigoso do país

Biografia de Filinto Müller

Tradução deRenato Rezende

Revisão técnica de

Fábio Koifman

1ª edição

Rio de Janeiro2017

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Copyright © R. S. Rose, 2017Copyright da tradução: Civillização Brasileira, 2017

Capa: Gabinete de Artes/Axel SandeFoto de capa: Acervo de Maria Luiza Müller de Almeida

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Rose, R. S., 1943–R718h O homem mais perigoso do país: biografia de Filinto Müller / R. S. Rose; tradução Renato Rezende, revisão técnica Fábio Koifman. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 406 p.: il.; 23 cm.

Tradução de: The most dangerous man in the country ISBN 978-85-200-1112-6

1. Müller, Filinto, 1900–1973. 2. Militares – Biografia. I. Rezende, Renato, 1964– II. Koifman, Fábio, 1964–. III. Título.

CDD: 923.5514-12128 CDU: 929:355

Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, armazenar ou transmitir partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direitos desta edição adquiridos pelaEDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRAUm selo daEDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000

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Impresso no Brasil2017

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Ele tem sido considerado por muitos o homem mais perigoso do país...

Joseph F. Brown

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Sumário

Introdução 15

1. Dias em Cuiabá 21

2. A paixão de um jovem 31

3. A revolução de 1924 53

4. Exílio e regresso 67

5. Vargas 79

6. Chefe de polícia 97

7. O Estado Novo 129

8. Limbo 159

9. A CPI 175

10. Senador 223

11. Uma fileira de cebolas 265

Um lugar na história 273

Notas 279

Bibliografia 345

Índice 379

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Introdução

Quem foi realmente Filinto Müller? Muitos daqueles que se lembram dele quase que invariavelmente o desprezam. Entre os historiadores e outros acadêmicos especializados no Brasil do século XX, seu nome ficará para sempre associado ao do presidente mais notável do país, Getúlio Vargas.1 Enquanto os entusiastas de Vargas querem que seu herói seja visto como o Pai dos Pobres, da Petrobras e da primeira siderúrgica do país, a conexão com Müller é o lado escuro da lenda Vargas. De abril de 1933 até julho de 1942, Filinto Müller foi o chefe da polícia de Vargas na antiga capital nacional do Rio de Janeiro. Durante esses nove anos em que Vargas governou o Brasil com pulso firme, houve tentativas de derrubá‑lo vindas tanto da esquerda quanto da direita. Müller foi uma figura crucial na dissipação dessas duas revoltas e provocou a ira de cada um dos lados, especialmente da esquerda intelectual. Em ambos os casos, houve prisões de culpados e de inocentes. Houve também tortura, morte e confusão. Um reinado de terror geral surgiu em 1937, com a promulgação do Estado Novo de Vargas, que teve como inspiração o Estado Novo de António Salazar, então em vigência em Portugal, pátria mãe do Brasil.

Sim, Müller esteve ao lado de Getúlio como partícipe ansioso e apoio, à disposição durante muitos dos tumultuosos anos da trajetória Vargas. Filinto, como muitos de seus contemporâneos no governo, apoiou verbalmente, mas não de fato, o partido fascista nativo do Brasil, a AIB. Algumas vítimas afirmaram que as coisas ficaram mais difíceis na Delegacia Central, onde Müller tinha seu escritório, após o anúncio do Estado Novo.2 Mas em que grau, se houve algum, estava

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o chefe da polícia realmente envolvido na carnificina que aconteceu naquelas instalações, que tinham a fama de ser o palco de eliminação ou mutilação de numerosos brasileiros e estrangeiros? Se Müller era, de fato, apenas uma parte daquela imagem de durão, o que fez ele e para quem o fez? Se ele não era um participante nesta empreitada em especial, como sua filha e outros parentes insistem, como a ideia de quem ele era surgiu?

A hipótese que levantamos aqui é que parte deste sentimento negativo em relação a Müller é resultado de estudos inadequados. Tais problemas de compreensão são um legado dos trabalhos de David Nasser, especialmente em Falta alguém em Nuremberg.3 To‑dos tenderam a assumir como corretas as afirmações de Nasser sem uma investigação profunda dos fatos. Como consequência, eles têm ignorado radicalmente o objeto desta biografia. Além disso, podemos acreditar que a ausência de pesquisas significativas abordando Müller aponte para o fato de haver ainda conteúdos desconhecidos sobre sua história que vão, ou deverão, justificar nossa atenção – que vão, ou deverão, justificar se iremos absolvê‑lo ou condená‑lo.

Sou um criminologista qualitativo, não um historiador. Os his‑toriadores podem muito bem fazer objeções às minhas escolhas historiográficas, sem falar do modo como me utilizo da sátira. Eu não sou sempre politicamente correto. Aos certinhos, ofereço minha compaixão. Dito isso, a vida de Filinto Müller é um objeto legítimo o bastante para mim mesmo e não apenas pelos crimes a ele atribuí‑dos. Aquele que se dispõe a tal empresa, no entanto, rapidamente se depara com um problema gritante, o fato de o material sobre Filinto Müller acessível à leitura ser bastante limitado. Não obstante, tive acesso à grande maioria dos documentos, livros e artigos disponíveis à consulta durante meu período de pesquisas (2005‑2011).

Dezenas de pessoas que conheceram Filinto Müller em Brasília, Cuiabá e no Rio de Janeiro me ofereceram seus depoimentos. O quadro que emerge da totalidade dessas fontes é o de um indivíduo sério, que servia a seus superiores zelosamente – particularmente os arbitrários. Ele era conservador, nacionalista e imperturbável em seu

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apoio a duas ditaduras, em guerra com um adversário persistente, seu adversário, a chamada ameaça comunista. Em ambos os casos, aqueles no poder acabaram com os partidos políticos legítimos do país, amordaçaram sua imprensa e sufocaram seus cidadãos. Em ambos os exemplos, ele foi um colaborador entusiasmado: servindo como o chefe da polícia de um autocrata e, décadas mais tarde, como líder do Senado e do partido político do governo.

De considerável utilidade foram os 66.704 documentos, 500 re‑cortes de jornais, material impresso e 165 itens audiovisuais doados pelas duas filhas de Filinto Müller – Maria Luiza e Júlia Rita – ao CPDOC da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Esse grupo de objetos abrange o período entre 1924 e 1948. Dos anos em que Filinto Müller tratou de questões trabalhistas, foi senador ou de outra forma ativo na política, 1948‑1973, não há quase nada disponível, exceto seus discursos impressos ou as contas com as quais ele estava associado, no Senado brasileiro. Suas observações mundanas no Se‑nado, como felicitações de aniversário para os colegas e outros itens sem importância, não estão incluídas no capítulo 10.

Este autor nunca teve a oportunidade de fazer julgamentos sobre um número desconhecido de documentos, uma vez que Filinto ou seus associados removeram‑nos quando ele deixou o departamento de polícia, ou suas filhas ou membros da família possivelmente os expurgaram antes da doação para o CPDOC. Após a morte de Mül‑ler, em 1973, seu sobrinho e chefe de gabinete no Senado, Antônio Correa Pacheco, levou os papéis de Filinto do último período para a sua própria residência e manteve‑os em um galpão. Com o tempo, lamentavelmente, os insetos destruíram essa valiosa e insubstituível coleção de materiais.4

O leitor não deve pensar que estou defendendo Filinto Müller, pois não estou. O que pretendo fazer é uma avaliação honesta de um homem que, em 2013, teve no Brasil nada menos que dez escolas batizadas em sua homenagem.5 Mas vou usar fontes que são mais seguras do que as disponíveis até agora. Com certeza, os grandes “ismos” do século XX mantêm Müller como refém. Ele não estava

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sozinho. Primeiro surgiu a má compreensão do positivismo por seus professores na mais prestigiada academia militar do país. No mo‑mento em que se graduaram, eles tinham sido submetidos a estudos que propunham que os oficiais deveriam ser os conhecedores do melhor caminho para levar a nação brasileira adiante. Além disso, sua educação era orientada pela elite. Esse era um modelo que se encaixava perfeitamente às ideias da época da escravidão. O mesmo vale para a versão civil. Ambos eram e ainda são projetados e insti‑tuídos, consciente ou inconscientemente, para manter a maioria dos brasileiros brancos em posição de controle sobre seus concidadãos “sujos e da ralé não branca”. Para o pensamento das elites, este era natural e paternalista. Na época de Filinto, a escola para oficiais não permitia a entrada de não brancos e de judeus.6

A guerra de Filinto Müller contra o comunismo não antecede a do seu primeiro capo di tutti capi. O leitor irá notar nas páginas seguintes que, quando Müller se tornou chefe de polícia na antiga capital do Brasil, ele não era abertamente contrário ao comunismo ou aos judeus. No entanto, quando a filosofia e a religião se tornaram o duplo bode expiatório para todos os males que assolavam a nação, como decretado por seu líder, o dado de Müller foi lançado. Não havia como voltar atrás, não havia espaço para acordos, discussão ou síntese hegeliana. Desde os impetuosos dias com Getúlio Vargas até o início da ditadura militar, no último dia de março de 1964, Filinto deveria estar ansiando para que outro líder forte guiasse a nação em direção à grandeza. Por um tempo, ele pensou que este poderia ser Juscelino Kubitschek e, depois, o então marechal Castello Branco.

Em 13 de dezembro de 1968, o oficial que comandava o país, Costa e Silva, promulgou o AI‑5. O Ato Institucional nº 5 foi defini‑tivamente o tipo de coisa que Filinto poderia apoiar. O AI‑5 também representava o momento mais horrível da ditadura militar. Quando o general Costa e Silva sofreu um derrame no final de agosto de 1969, um triunvirato de oficiais de alta patente das forças armadas tomou o comando. Eles governaram por pouco mais de um mês antes de contabilizarem um voto – entre os próprios generais – para decidir

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qual deles seria o próximo a governar o país. O homem selecionado veio a ser o patrocinador final de Filinto, o general Emílio Garras‑tazu Médici. Médici tinha sido top cop da “revolução” deles, como os oficiais e os conservadores, invariavelmente, a chamavam. Como Filinto, sob o governo de Vargas, Médici tinha sido chefe da polícia política, SNI (Serviço Nacional de Informação), órgão vinculado diretamente à presidência da república. Filinto viu nele a pessoa que usaria o AI‑5 para limpar o Brasil. O papel de Müller seria o de passar por cima do processo legislativo para garantir que este trabalharia a favor dos interesses do ditador. Afinal, ele e seus antigos companheiros tenentes eram aqueles que tinham sido educados para saber o que era melhor para o país. Müller esteve na vida militar durante toda a sua vida adulta. Mesmo que ele não falasse quase nada de alemão, cabe perguntar se teria ouvido o seguinte comentário de Albert Einstein, ainda que em tradução, e ponderado sobre seu significado: “Que um homem possa ter prazer marchando em formação, ao som de uma banda de música, isso é o suficiente para que eu o despreze.”7 O grande pensador estava se referindo às forças armadas como uma instituição.

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1. Dias em Cuiabá

Até não muito tempo atrás, o que viria a ser o estado brasileiro do Mato Grosso foi considerado um tipo de Velho Oeste escaldante.1 Durante anos, o Mato Grosso era composto pelo que é hoje o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul.2 A área total era enorme, fazendo fronteira com a Bolívia e o Paraguai e somando 1.261.517 quilômetros quadrados. Um número pequeno de colonos, garimpeiros, explorado‑res, mercadores de escravos e diversas tribos indígenas habitavam a região. Destas, uma das mais ferozes era a dos índios bororos. Para proteger os colonos dos ataques indígenas, soldados patrulhavam as terras ao redor das planícies da capital, Cuiabá, até 1880. Dez anos mais tarde, foi concluída a primeira linha de telégrafo ligando a cidade ao resto do país. Mesmo assim, a característica mais famosa dessa parte remota do Brasil era, e ainda é, o Pantanal. Cobrindo cerca de 150.000 quilômetros quadrados, o Pantanal é, simplesmente, o maior pântano do mundo.3

O primeiro Müller chegou na vastidão do Mato Grosso vindo de Neubrandenburg, no Mecklenburg, o grão‑ducado alemão ao norte de Berlim, perto da costa do mar Báltico. Nascido em 1818, o avô paterno de Filinto, August Frederich Müller, era um obstetra e oftalmologista que tinha ganhado uma bolsa para estudar medicina tropical. Ele deixou sua pátria e veio para o Brasil, entrou na bacia

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do rio Amazonas e viajou até o rio Tapajós. Tomando a direção sul, buscou os rios Juruena e Arinos antes de parar na primeira capital da província, Diamantino, em 1843. Ao contrair malária, como não havia médicos na cidade, procurou a casa do prefeito para conseguir ajuda. Lá conheceu uma viúva, Brígida Albertina Pinto de Vascon‑celos, quatro anos mais velha, filha do prefeito. Seu pai era um rico imigrante português, com minas de ouro no norte da província. August Frederich e Brígida se casaram em 1848, mas, como ele era luterano, a cerimônia não poderia acontecer na Igreja Católica, que a noiva e sua família normalmente frequentavam. Em vez disso, o casal fez seus votos na casa de um amigo e então se estabeleceu em Cuiabá. A união resultou em dois filhos, Frederica Augusta e Júlio Frederico Müller. Quando August Frederich morreu, ainda jovem, aos 33 anos, em 24 de março de 1851, de outro ataque de malária ou de uma infecção, os amigos tiveram que esperar até a noite para enterrar seus restos mortais em segredo no cemitério controlado pelos católicos. A instalação não aceitava os corpos de pessoas de fora da verdadeira Igreja.4

Frederica Augusta faleceu em 1867, com apenas 19 anos de idade, vítima de varíola. Júlio Frederico, que nasceu um ano antes de seu pai morrer, chegou à vida adulta e se casou com Rita Teófila Corrêa da Costa, um relacionamento que resultou em cinco filhos: Frederi‑ca, nascida em 1890, Fenelon, em 1892, Júlio, em 1895, e Rita, em 1897. A última criança a nascer, Filinto, veio ao mundo às 5h do dia 11 de julho de 1900 na casa que Júlio havia construído dois anos antes, em Cuiabá, e que se situava na rua Comandante Costa, 18, na esquina com a rua Campo Grande (então chamada rua Quinze de Agosto), ocupando quase meia quadra de terreno com mangueiras e outros cultivos. Mamã Didi criou as crianças brincalhonas. Ela era uma serva, filha de ex‑escravos.5 Muito mais tarde, Júlio escolheu o nome do meio, Strübling, em reverência à família que permaneceu na Alemanha, e mais tarde tornou‑o parte legal de seu nome. Mas Filinto nunca o adotou, embora alguns autores, equivocadamente, ou de propósito, tenham perpetuado a crença incorreta.6 Havia ainda

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um meio‑irmão, Frederico Augusto, filho fora do casamento de Júlio Frederico, nascido em 1884, mas tratado por Rita Teófila como seu próprio filho e criado na família como o filho mais velho.7

Júlio Frederico foi prefeito de Cuiabá entre 1907 e 1908. Seu ami‑go, um homem poderoso no Mato Grosso e presidente (governador) do estado, o coronel Generoso Ponce, o nomeou para o cargo. Júlio Frederico também serviu por cinco períodos medíocres na legislatura do estado.8 A renda da família durante esses anos inicialmente veio de uma concessão de exploração de borracha bastante lucrativa para a região noroeste, no rio Mamoré, em um território (agora no estado de Rondônia) pelo qual os brasileiros tinham lutado com a Bolívia, em 1903. Mesmo antes da aquisição, os brasileiros tinham invadido a região. Júlio Frederico conseguiu sua parcela dessa terra no ano do nascimento de Filinto. Quando Júlio Frederico morreu, em 23 de se‑tembro de 1930, ele havia apostado toda a sua habilidade na borracha e no ramo imobiliário e a convertido em uma pequena fortuna para a época. Esta incluía uma propriedade avaliada em 60:450$000 (60,45 contos de réis) (US$ 6.209) e investimentos no total de 24:200$000 (US$ 2.485): o equivalente a quase US$ 122.000 em valores de 2017.9

Os Müller criaram os filhos em tempos difíceis. Sua filha mais velha nasceu apenas dois anos após a Lei Áurea ter acabado com a servidão forçada, embora a escravidão permanecesse, de qualquer maneira, e certamente também no Mato Grosso. Em 1889, e parcialmente por causa da abolição, o imperador foi deposto e a república, declarada. Dois militares com poderes praticamente ditatoriais surgiram, um após o outro, governando o país até 1894. Uma guerra civil eclodiu no estado mais ao Sul do Brasil, o Rio Grande do Sul, em 1893, e logo seguiu para os estados vizinhos de Santa Catarina e Paraná, com suas fronteiras que tocavam o limite Sul do Mato Grosso.

Ao Norte, no interior da Bahia, a Guerra de Canudos (de 1893 a 1897) levou católicos destituídos de terras à resistência armada contra o Exército federal. Em 1903, a capital do país foi renovada através da criação do que se tornaria a avenida Rio Branco e da remoção quase forçada das classes mais baixas do centro da cidade, tudo feito

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sob o pretexto de uma campanha contra a febre amarela. No início da década seguinte, o Rio de Janeiro vociferou novamente, desta vez sob as armas de um motim naval que assolou a cidade em 1910. Dois anos mais tarde, mais ao Sul, um outro conflito armado entre os despossuídos e o governo aconteceria: a Guerra do Contestado (1912 a 1916), tingida com implicações religiosas.10 Venceslau Brás, então presidente do Brasil, fez um comentário posterior que poderia ser quase tomado como profético pelo jovem Filinto Müller:

As pessoas conhecem o governo através de seu chefe de polícia, a autoridade que tem o maior contato com as massas, uma vez que ele luta contra elas a maior parte das vezes, e quem, mais do que ninguém, é um reflexo de poder e força.11

Tão desestabilizantes quanto esses eventos foram na vida do Brasil, em Cuiabá os acontecimentos sucediam em um caminho paralelo, embora em uma escala menor e mais pessoal. Em 1900, a população da cidade, que tinha uma história de flutuações, era de medianas 34.393 almas.12 O advento da república, 11 anos antes, não fizera praticamente nada para apaziguar o uso da violência pelas elites e seus representantes na capital do Mato Grosso ou no estado como um todo. A carnificina só aumentou com o fim da monarquia, uma vez que a autoridade local reforçou a opressão que exercia. Pessoas que simplesmente tentavam viver eram as vítimas mortais costumei‑ras nesse cenário. Vistas através do prisma de um outro século, as mulheres eram as maiores vítimas de todas, não tendo nem voto nem voz a respeito de nada. Se casadas, ficavam grávidas por muitos de seus anos férteis. Tanto as mães quanto a sua prole eram praticamente propriedade de seus maridos.

No grande Mato Grosso, a supremacia de potentados regionais, muitas vezes referidos com o adulador título de coronel,13 era um fenômeno de autorregeneração em um estado que passava por contí‑nuas mudanças, devido aos esquemas de outros coronéis e aspirantes a coronéis. As decisões tomadas no Rio de Janeiro conseguiram um

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certo grau de aprovação – porém sem nenhuma ação condizente –, quando conhecidas, em partes longínquas do país. No Mato Gros‑so, assim como em toda parte, coronéis de província contavam com a poderosa proteção do parentesco e das parentelas para chamar os poderosos.14 A ameaça implícita de violência pessoal mantinha os arranjos em vigor e a subordinação das pessoas comuns, o povão. Reforços substituíveis provenientes das fileiras do povão e a serviço dos agentes do poder mantinham o cumprimento das regras e os desejos das elites – a isso se chamava coronelismo.

Assim estava estabelecido; era assim que as coisas funcionavam. Em 1890, quando nasceu a primeira filha de Júlio Frederico e Rita Teófila, Frederica, o coronelismo funcionava com uma eficiência selvagem. Naquele ano o então governador, o general Antônio Maria Coelho, co‑meçou uma luta aberta pelo poder com o futuro governador, o coronel Generoso Pais Leme de Sousa Ponce. Ponce respondeu, arranjando para que o governador fosse demitido. O coronel Ponce conseguiu que o pre‑sidente da nação e marechal do Exército Manuel Deodoro da Fonseca fizesse este trabalho. Em 1892, foi a vez de Coe lho. Ele e seus aliados declararam um estado separatista, o Estado Livre do Mato Grosso, e derrubaram o governador eleito, Manoel José Murtinho, juntamente com Generoso Ponce. Isso motivou Ponce a conduzir mais de 3 mil homens para Cuiabá e a depor o escolhido de Antônio Coelho. Logo Murtinho assumiu suas funções e administrou o estado.

Sete anos mais tarde, uma outra onda de violência retornou à po‑lítica do Mato Grosso. De um lado, havia Murtinho e seus adeptos, incluindo o coronel Antônio Paes de Barros, conhecido coloquialmen‑te como “Totó” Paes. Seus oponentes eram o coronel Ponce e todos os que estavam ao seu lado. No banho de sangue que se seguiu, os aliados de Totó viriam a dominar e exterminar em grande parte as forças de Ponce. Antes do final do episódio, no entanto, em 31 de agosto de 1899, alguém tentou assassinar o então senador Ponce perto de sua casa, no centro de Cuiabá. O quase assassino, o imigrante polonês Ramon Jacksvisk, foi capturado e imediatamente linchado, sem a formalidade de um julgamento.15

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Quatro meses depois do primeiro aniversário de Filinto, os segui‑dores de Totó conseguiram capturar 17 colaboradores de Ponce que ainda estavam vivos. Eles foram assassinados e jogados às piranhas na baía do Garcez (agora chamada baía das Garças), 2.375 quilômetros a Oeste de Campo Grande, a atual capital do Mato Grosso do Sul. Embora Totó tenha sido culpado pela carnificina, isso não impediu que o pequeno número de homens brancos que podiam votar no estado o elegesse governador dois anos mais tarde, em 1903.

A vitória de Totó Paes nas urnas forneceu o catalisador para uma aliança entre os coronéis Antônio Corrêa da Costa, Generoso Ponce e Manoel Murtinho, que, por sua vez, lideraram o início da Revolução de Mato Grosso, de 1906. No momento mais dramático do conflito, Ponce comandou uma flotilha de trinta navios e barcaças carregados de soldados irregulares armados em direção a Cuiabá. Totó bateu em rápida retirada até a comunidade vizinha de Coxipó da Ponte, e se escondeu em uma fábrica de pólvora. Descoberto, ele se rendeu, mas os aliados de Ponce mataram‑no mesmo assim.

A morte de Totó deu início a uma fase que era referida no folclore popular de Mato Grosso como o “Tempo da Paz Armada”. Esse foi um período pontuado pelo uso de assassinato, emboscada e punição corporal, além de banditismo, pilhagem e roubo de animais como ferramentas para a preservação do poder dos privilegiados. Note‑se que não havia nada de novo aqui. Esses métodos foram utilizados por décadas. Apenas sua intensidade era nova. Joaquim Augusto da Costa governou o estado dessa forma de 15 de agosto de 1907 até 15 de agosto de 1915. Seu sucessor, o general Caetano de Fa‑ria Albuquerque, também agiu assim, mas concordou em deixar o cargo em 1917, quando o governo nacional interveio e nomeou um administrador federal, chamado interventor. O indivíduo agia como um governador, sob a responsabilidade direta do presidente do país. O homem selecionado, o bispo católico dom Francisco de Aquino Corrêa e a família Ponce eram membros de duas parentelas que se tornariam rivais com a ascensão do clã Müller nos anos seguintes.16

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Toda essa Realpolitik coerciva deve ter tido um efeito sobre os filhos de Júlio Frederico e Rita Teófila. Na verdade, Filinto, seus irmãos e irmãs cresceram no lar protegido de um homem da elite regional. Seria de esperar que um pouco de arrogância fizesse parte da atmosfera familiar. É interessante saber, então, que Júlio e Rita não estragaram sua prole. Eles imprimiram em cada criança o valor das coisas, fazendo‑os ganhar seu próprio dinheiro. Para comprar o que quer que fosse, eles tinham que cultivar frutas e verduras para vender aos vizinhos, ou nas ruas de Cuiabá, todos acompanhados por Mamã Didi. Chamada de “cidade verde” devido às suas muitas mangueiras, naquela época não eram muitos os moradores de Cuiabá que comiam uma ampla variedade de frutas e vegetais. De acordo com a memória familiar dos Müller, foi graças aos esforços empre‑sariais de Júlio Frederico – que gostava de ler livros sobre alimentos saudáveis – e de seus filhos, que vendiam os produtos, que essa pro‑dução benéfica lentamente começou a se tornar mais popular. Júlio Frederico também criava cabras, e seus filhos cresceram com o leite muito nutritivo desses animais. O fato de Frederico ser apenas um meio‑irmão nunca foi um problema. Seus pais sempre o chamaram de “filho” e seus irmãos e irmãs se referiam a ele como “irmão”. Talvez porque os dois filhos mais novos, Rita e Filinto, tivessem idade mais próxima, eles estavam sempre brincando juntos.17

Cada criança dos Müller recebeu uma educação de base sólida. No caso de Filinto, ele tinha uma professora particular em casa, Antonia Georgina de Faria, antes de ingressar no sistema escolar primário da cidade. No ensino médio, seus pais decidiram mandá‑lo para o Colégio Salesiano São Gonçalo, com sua bela igreja anexa. De acordo com o pensamento de muitos pais brasileiros da época, aquela escolha garantia que seus filhos tivessem uma boa educação, baseada em sólidos princípios católicos. A escolha do Salesiano São Gonçalo certamente não foi porque a escola era próxima, já que Filinto tinha que andar quase três quilômetros para ir e voltar, todos os dias. Uma vez que Cuiabá é notória no Brasil por seu calor sufocante, esse não era um passeio muito agradável a maior parte do

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tempo. De qualquer forma, Filinto percorreu esse caminho de 1913 a 1915. Sendo um bom estudante, em 1º de agosto de seu último ano no Salesiano São Gonçalo ele ganhou um prêmio. Era um livro, e isso mostrou à sua família que eles tinham como filho um intelectual em potencial que desabrochava.18 Em 1916 ele foi transferido para a escola mais próxima e secular, o Cuiabano, agora chamado Liceu Cuiabano Maria de Arruda Müller (em homenagem à futura esposa de Júlio Strübing Müller19). Filinto ficou em primeiro lugar em sua turma de graduação no Cuiabano.20 Quanto à instrução baseada em firmes princípios católicos, eles não conseguiram controlar o caçula dos Müller. Filinto por fim se tornou agnóstico.21

No meio de seus anos de educação secundária, a cidade de Cuiabá tinha se reduzido a cerca de 22 mil habitantes. Em parte, isso se devia a uma população transitória formada por residentes que se mudavam para o norte do estado, para trabalhar na produção de borracha, ou para o sul, para trabalhar na indústria de bebidas de erva‑mate. Em 1914, o perímetro urbano de Cuiabá se estendeu cerca de três quilô‑metros em uma direção e dois quilômetros em outra. A comunidade tinha dois distritos, 24 ruas, 17 parques, dois jardins públicos e uma linha de bondes puxados a cavalo, tendo o matadouro como terminal em uma extremidade e uma cervejaria na outra. A cidade mantinha o esgoto, a instrução pública, o saneamento e a iluminação de seus dois mercados públicos. Havia dois hotéis, vários cafés e restaurantes, serviços de correios, telégrafos e telefones, duas revistas locais e seis jornais, um dos quais era impresso diariamente, O Debate.22

Saindo da escola aos 17 anos, Filinto Müller tinha chegado a 1,86 m de altura e 82 quilos. Em suas fotografias, mesmo nessa época, ele estava sempre sombrio, sem sorrir e formal. Era como se o legado de Mato Grosso, ou talvez até mesmo o do Brasil, estivesse pesando em sua mente. Um jovem muito sério, ele obteve seu primeiro em‑prego como revisor assistente de um tabloide de notícias do estado, a Gazeta Oficial. Além de revisar, ele também escreveu uma série de artigos sob o pseudônimo “Pedro” em outros jornais de Mato Grosso. A vantagem de estar em ambas as empresas permitiu que

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d i a s e m c u i a b á

ele aperfeiçoasse seu conhecimento da língua portuguesa. A posição de Filinto na Gazeta poderia ter progredido, mas sem uma educação complementar ele talvez tivesse visto suas chances serem limitadas.23

Júlio Frederico já tinha enviado seu segundo filho, Fenelon, a outro estado para obter educação universitária, porque no Mato Grosso não havia instituições de ensino superior, apenas um curso de formação de professores e uma pequena faculdade de direito. Fenelon viajou até São Paulo em 1912, onde ingressou na Escola Politécnica (agora parte da prestigiosa Universidade de São Paulo) em 1913. Ele foi o primeiro mato‑grossense admitido nessa escola. Seus estudos foram em engenharia civil, que ele finalmente terminou em 31 de janeiro de 1919.24 O filho imediatamente mais velho, Júlio, estava estudando Direito em Cuiabá. Simplesmente não havia dinheiro suficiente para enviar Filinto para longe de casa – originalmente, ele queria estudar medicina.25 Os pais de Filinto devem ter pensado muito para encon‑trar uma solução. A providência proporcionaria uma. Havia um lugar que oferecia educação avançada gratuita e que estava sempre à procura de jovens talentos. Mas para valer‑se dessa oportunidade, Filinto teria que abandonar sua namorada, Ecila. À época, ele estava cortejando a irmã da mulher que casaria com seu irmão Júlio.26 Não se permitiam pessoas casadas no lugar para onde o mais jovem dos Müller estava indo.

Algum tempo antes, provavelmente enquanto trabalhava no jor‑nal, Filinto encontrou uma notícia a ser reimpressa: a Lei de Sorteio Militar (1908), que nunca tinha sido cumprida, entraria em vigor em dezembro de 1917. Quando ele leu a notícia, sem dúvida levantou a sobrancelha esquerda. Aqueles que vieram a conhecer Filinto mais tarde reconheceram o hábito, que ele manteve durante toda a vida, como uma indicação de surpresa. De acordo com o estatuto, se ele entrasse para o Exército e completasse apenas três meses de serviço ativo, poderia ir para a reserva por nove meses e completar seu pri‑meiro ano de serviço nas forças armadas do Brasil.27 Era tudo que ele precisava fazer para tentar atingir o seu objetivo real. Seu momento tinha chegado.

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