sarah mallory - um homem perigoso

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Um Homem Perigoso

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Um Homem Perigoso

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Sarah Mallory - Um Homem Perigoso (Hlq Historicos 123)

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The Dangerous Lord Darrington

Sarah Mallory

O libertino mais famoso da cidade! O perigoso lorde Darrington não é um homem para ser recebido na casa de moças

indefesas! Apesar de ser um conde, Beth Forrester já ouviu histórias de arrepiar sobre sua incorrigível devassidão... Hospedar, inesperadamente, uma celebridade com um vasto histórico de escândalos é apenas um de seus problemas. Pois logo que o malicioso lorde Darrington descobre o segredo mais sombrio de Beth, ela é obrigada a fazer qualquer coisa para salvar a própria reputação. Entretanto, como comprar o silêncio de um homem sem escrúpulos? Só havia um modo... Oferecer seu corpo!

Disponibilização: Projeto Revisoras

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Sarah Mallory - Um Homem Perigoso (Hlq Historicos 123)

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ISBN 978-85-398-0733-8

HARLEQUIN www.harlequinbooks.com.br

Querida leitora, Em Um homem perigoso, vemos o retorno de um de meus personagens favoritos:

Guy Wylder, o irmão mais velho de Nick, meu herói de Ventos da paixão. Sempre planejei dar a cada um dos Wylder seu próprio livro, mas Guy teve de esperar um pouco! O conde de Darrington é o mais sério dos irmãos, porém, ainda assim, ganhou reputação como um devasso perigoso. Pobre das mulheres que se apaixonam por ele!

O destino leva Guy até Malpass Priory, onde conhece a bela e jovem viúva Beth Forrester. Ela não se impressiona com seu título, e está ciente de sua fama. Mas quando é obrigada a aceitar a ajuda dele para limpar o nome de seu irmão, Beth encontra em Darrington um amigo fiel.

Todos os elementos de uma aventura romântica estão aqui: uma casa antiga e assustadora, imigrantes franceses, vilões gananciosos e vilãs perversas. E, é claro, um herói e uma heroína feitos claramente um-para o outro, apesar de seus segredos e do desafio de terem de aprender a confiar um no outro antes de encontrar a felicidade.

Feliz leitura! Sarah Mallory

Tradução Silvia Moreira

PUBLICADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V./S.à.r.l.

Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência.

Título original: THE DANGEROUS LORD DARRINGTON

Copyright © 2011 by Sarah Mallory Originalmente publicado em 2011 por Harlequin Historicals

Projeto gráfico de capa:

Nucleo i designers associados Arte-final de capa:

Isabelle Paiva Editoração eletrônica:

EDITORIARTE Impressão:

RR DONNELLEY www.rrdonnelley.com.br Distribuição para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil:

FC Comercial Distribuidora S.A. Editora HR Ltda.

Rua Argentina, 171,4o andar São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380

Contato: [email protected]

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Capítulo Um

A notícia de que o perigoso lorde Darrington estava hospedado na casa de casa de Edwin Davey, em Yorkshire, se espalhou, mas deixou em um dilema as mães mais zelosas de donzelas solteiras. Guy Wylder, o conde de Darrington, era um solteiro e estava na idade de se casar e ter um herdeiro. Não foram poucos os escândalos em que Guy tinha se envolvido, mas a maioria dos pais estava disposta a se esquecer desses fatos por causa da riqueza e do nome do conde.

No entanto, Guy recusara todas as tentativas de seduzi-lo ao casamento. Qualquer jovem que se oferecesse muito abertamente estaria fadada ao sofrimento, pois ele passaria a flertar com outras, incitando as más línguas e levando a jovem donzela a acreditar que ele estivesse apaixonado. E, então, quando a jovem estivesse na expectativa de um pedido de casamento, o malvado conde esfriaria e demonstraria inclusive dificuldade em lembrar o nome de sua pretendente quando se encontrassem. Esse comportamento desencorajou várias jovens a concentrar sua atenção em lorde Darrington, apesar de sua fortuna e aparência estonteante. Os pais mais preocupados passaram a avisar suas filhas a não procurar as atenções do conde. Infelizmente, na opinião de Guy, não eram muitos os pais zelosos.

Em uma ocasião em especial, as precauções não foram necessárias. A festa da caça de Davey em sua casa, em Highridge, foi apenas para cavalheiros. Fora uma visita ocasional ou outra ao White Hart, os cavalheiros se restringiram à propriedade de Davey ou cavalgavam pelas extensas montanhas inabitadas ou pelos campos que seguiam a leste até a costa.

— Devo levar uma coça quando voltar para a cidade — reclamou Davey, rindo. — Hospedei um membro da realeza em casa e não o levei a nenhuma festa. Meus vizinhos irão soltar os cachorros em cima de mim.

— Davey, você sabe que só vim para cá porque você me prometeu duas semanas de muito esporte na companhia de amigos — respondeu Guy.

— E foi isso que eu proporcionei, mas ainda não vejo que mal teria em comparecermos a alguns bailes na cidade.

— Ora, mas esse esporte seria bem diferente, Davey — disse Guy, esboçando um sorriso, — E seriamos nós as presas.

Os dois tinham viajado pelas montanhas durante um tempo, subindo até o pico de uma ou outra para admirar uma terra rica a ser trabalhada ao leste e terras baldias ao norte de Yorkshire. Guy parou por um momento para contemplar a vista.

— Claro que sempre será um perigo — observou Davey, emparelhando seu cavalo com o de Guy. — Mas as lendas sobre o seu comportamento cavalheiresco com o sexo frágil dá o que pensar às moças.

— Talvez isso aconteça com algumas, mas não com todas — disse Guy, meneando a cabeça, e acrescentou com amargura: — Posso ser um verdadeiro barba-azul, mas ainda encontrarei alguns pais que oferecerão suas filhas para mim. Acredito que meu título e minha fortuna pesem bastante.

— Claro que sua fortuna e seu título significam bastante, além de serem sempre mencionados nos jornais da sociedade. Aqueles patifes malditos que escrevem no

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Intelligencer adoram publicar fofocas a seu respeito.

— É um jornal de escândalos. — Guy curvou os lábios. — Ignore-o. O que eles não conseguem descobrir inventam, e, contanto que se refiram apenas a minhas aventuras amorosas, não me importo. Além do mais, se os escândalos forem bem ruins, talvez as mães mais ambiciosas desistam da caçada.

— Sei que as fofocas não o incomodam, mas enervam seus amigos. Veja, por exemplo, o que disseram sobre aquela moça atrevida, filha de Ansell.

— Deus do céu, eu só dancei com ela duas vezes e já dizem que estou apaixonado!

— Bem, foi o que a mãe dela achou e contou a todo mundo que você os convidou para irem à sua casa.

— Foram eles que se convidaram. Ansell me disse o quanto a filha se interessava por arquitetura e que tinha ouvido falar muito bem da minha casa. Eu, então, disse que seriam bem-vindos para uma visita. — Os olhos de Guy brilharam quando ele fitou o amigo de esguelha. — Espero que tenham gostado. Meu mordomo escreveu contando que eles foram correndo para me visitar, mas eu não estava em casa. Minha governanta mostrou a residência e sugeriu que eles podiam se hospedar ali.

— Foi uma armação diabólica, meu amigo. — Davey riu, meneando a cabeça.

— Não sou o primeiro que abomina essas caçadas constantes. Os escândalos, de certa forma, reduzem o problema.

— Às vezes, penso que você fica feliz por as pessoas acharem que você traiu o país — murmurou Davey, franzindo a testa.

— Você seria um tolo se realmente pensasse assim — disse Guy.

— Eu me arrependo da minha estupidez de juventude, mas o estrago já foi feito. No entanto, prefiro que os jornais e a sociedade falem sobre minha vida amorosa escandalosa e deixem o meu passado de lado. Posso ter me esquecido do que aconteceu, mas a injustiça sempre permanecerá.

— Porém esse fato pode ser apagado. Não foi nada além de um boato maldoso. Mas houve quem dissesse que sua saída da política foi como uma admissão de culpa. Volte para Londres — Davey o encorajou. — Há muitas pessoas no governo que conhecem seu valor e irão receber bem sua ajuda, especialmente agora, com o tumulto que está na França.

— Talvez eu faça isso mesmo, mas ficarei mais feliz se os dragões casamenteiros me deixarem em paz.

— Existe uma resposta bem simples para isso — comentou Davey. — Arrume uma esposa.

— Nunca! — exclamou Guy, balançando a cabeça e rindo. — Vou demorar bastante para dar esse passo — completou, esporeando o cavalo.

Depois de uma rápida caça peias montanhas, quando o grupo chegou ao pico mais alto, Guy parou o cavalo e olhou à sua volta, aproveitando a liberdade conferida pelo imenso espaço aberto. A sensação de se poder sentir a maresia, mesmo se estando a quase quarenta quilômetros da costa, era indescritível.

— Você se arrependeu de ter sugerido ficarmos por aqui? — perguntou Guy a

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Davey, que cavalgava a seu lado. — Seria melhor irmos com os outros para a casa de Osmond?

— De forma alguma. Apesar de gostar das festanças em Highridge, prefiro a liberdade de não termos cerimônia, levantar quando bem quisermos, fazer e falar o que bem entendermos e ficarmos à mercê de nossos humores.

Guy estendeu o braço, apoiando a mão no ombro de Davey.

— Reconheço e aprecio o fato de que você vem sendo um bom amigo. Você está sempre disposto a me dar apoio. Mesmo quando o mundo inteiro pensava o pior...

— Nada disso... Muitos de nós sabíamos que você não tinha culpa, apesar de ter optado por não se defender. Foi muito cavalheiresco, Guy.

— O que você acha que eu devia ter feito?

— Coloque a culpa em quem de direito — disse Davey, com raiva, mas Guy balançou a cabeça.

— A jovem tinha fugido, qualquer protesto meu não seria muito elegante.

— Às favas com a elegância! — exclamou Davey. — Você desistiu de uma carreira promissora por uma mulher e privou o país de seu político mais habilidoso. Seu talento foi desperdiçado, Darrington.

— De jeito nenhum. Passei meu tempo trabalhando nas minhas propriedades. Meu pai quase levou a família à falência com suas manias esbanjadoras. Além do mais, foi bom estar no norte do estado enquanto meu irmão malandro, Nick, estava fora. Assim pude vigiar as propriedades dele também.

— Mas já faz cinco anos que ele se estabeleceu. Tenho certeza de que é uma boa hora para você retornar para a política.

— Para ser submetido ao ridículo e ser constantemente lembrado da minha desgraça? — Guy deixou o olhar se perder pelas montanhas. — Não, muito obrigado! — Procurou tirar aquilo da cabeça. — São coisas ruins demais para um lindo dia de setem-bro. Vamos continuar a cavalgar. O que mesmo você queria me mostrar?

Percebendo que as confissões tinham terminado, Davey apontou para noroeste.

— Pensei que talvez gostasse de visitar o mosteiro no Mount Grace. Conheço a família, por isso creio que não haverá problema em visitar as ruínas. Sei que você se interessa por antiguidades de todo o tipo. — Davey sorriu. — Foi para preservar sua fama de perigoso lorde Darrington que sugeri essa visita enquanto os outros estavam por aqui.

— Como se eu estivesse muito preocupado — disse Guy, rindo alto. — Mas você está certo, eles não gostariam da visita. — Olhou para o sol e continuou: — Já é meio-dia. Ainda dá tempo?

— Claro que sim. Podemos passar algumas horas visitando as ruínas, depois voltarmos pela planície até Highridge, parando em Boltby. Os jantares da hospedaria de lá são famosos.

— Ótimo. Vamos então!

Os dois cavaleiros seguiram a meio-galope, aproveitando a liberdade provida pelas montanhas, antes de serem obrigados a descer até a planície.

A visita ao monastério, em Mount Grace, ocupou a maior parte da tarde dos dois, e

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o sol já estava se pondo quando seguiram para Highridge.

— Olhe, vai chover — observou Guy, mirando as nuvens escuras se acumulando no horizonte.

— É melhor nos apressarmos para não ficarmos ensopados — concordou Davey. — Vamos jantar em Boltby e depois cortamos caminho pelo o campo. O que acha?

— Por que não? Estamos pulando esses muros nas últimas duas semanas, tanto que meu cavalo já está acostumado.

Davey riu.

— Pegaremos a estrada mais enlameada, mas isso só contribuirá para apreciarmos mais o fogo e o rum quando chegarmos em casa.

Davey saiu na frente, galopando com o vento, durante mais alguns quilômetros antes de pegar uma trilha estreita. Conforme passavam pelos vilarejos que ladeavam a estrada, os campos se tornavam mais áridos e logo estavam passando por uma selva sem nenhuma casa à vista.

Guy olhou para o céu. O sol desaparecera atrás das plúmbeas nuvens pesadas, e a ameaça de um temporal era mais vivida.

— Estamos muito longe? — perguntou quando diminuíram o passo para não forçar muito os cavalos.

— Estamos a cerca de oito quilômetros — respondeu Davey. — Lamento por não termos trazido nossas capas. Acho que enfrentaremos uma chuva pesada.

— Não tem importância. Vamos vencê-la — garantiu Guy, encolhendo os ombros.

— É verdade. Podemos galopar por alguns quilômetros, cortando caminho pelos campos.

Dito isso, os dois esporearam o cavalos e saíram a galope pelos imensos e retangulares campos.

O poderoso cavalo de Guy passou por alguns muros de pedras empilhadas no caminho, e ele praguejou contra a imprudência do amigo ao passar em velocidade por rebanhos de vacas leiteiras e ovelhas. A luz do dia resumia-se ao crepúsculo, enfraquecido pela chuva fina, quando eles pularam mais um muro de pedras. Não era muito alto, mas quando chegaram perto, a égua de Davey tropeçou depois de ter feito um esforço corajoso para saltar. Os cascos bateram nas pedras de cima, ocasionando a queda do animal e de seu cavaleiro.

Guy pulou o muro em seguida e logo retornou para ajudar o amigo. Ficou com o coração partido ao ver a égua se debatendo no chão, prendendo Davey sob seu peso. Não demorou para que ela conseguisse se levantar e, apesar de ainda estar trêmula e relinchando, parecia bem.

Guy ajoelhou-se perto do amigo, que estava pálido e com a perna curvada em uma posição estranha.

— Eu a forcei... — murmurou Davey, ao abrir os olhos e fitar Guy.

— Fique quieto e não fale — ordenou Guy. — Preciso averiguar o quanto você se machucou.

— Que idiota... A luz estava... Não vi a toca de coelho.

De súbito, ouviram-se passadas pesadas, e dois fazendeiros se aproximaram.

— Vimos o tombo da estrada, senhor — disse um deles, fazendo uma careta ao

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olhar para o ferido. — O que podemos fazer para ajudar?

— Precisamos de um médico — disse Guy. — E algo para podermos carregá-lo para longe dessa chuva.

— Há um celeiro não muito longe — sugeriu o segundo homem. — Fica no mosteiro logo ali.

Guy olhou para a direção que o homem apontava e notou, pela primeira vez, a silhueta de uma construção coberta a certa distância.

— Vamos para lá. Será nossa melhor opção se estiver desabitado.

— Ah, lady Arabella estará em casa. Ela nunca sai de lá nesses dias.

Guy assentiu com a cabeça e deu instruções rápidas aos dois homens para buscarem ajuda, enquanto ele cobria Davey com seu casaco. Depois se curvou sobre a cabeça do amigo para protegê-lo da chuva.

— Que chateação... — reclamou Davey.

— Não tente se mexer. Vamos levá-lo naquela direção, è logo você estará confortável de novo.

— Confortável? Rá! Nunca imaginei que um dia sentiria tamanha dor nas minhas pernas.

— Você está ficando mole demais — retorquiu Guy, feliz porque o amigo conseguia falar.

Não era médico, mas sabia dizer que, pelo menos, uma das pernas estava quebrada, e tomara que aquele fosse o ferimento mais sério.

— Não se preocupe. Logo teremos ajuda — afirmou, reconfortando o amigo ao segurar-lhe a mão.

Davey se mexeu um pouco e apertou a mão de Guy, depois fechou os olhos, e a cabeça inclinou para o lado. Ao sentir a veia pulsante no pescoço, Guy soube que o amigo ainda estava vivo.

Guy chegou a perder a noção do tempo em que ficou sentado ao lado de Davey. O céu escurecia cada vez mais, e a chuva estava mais forte. A sensação foi de que se passara uma eternidade, mas ele calculou que havia sido apenas uma hora antes de ouvir o reconfortante som de vozes. Meia dúzia de homens chegou trazendo um burro puxando uma pequena carroça.

Por sorte, Davey ainda estava desacordado quando foi cuidadosamente içado até a carroça. Guy recuou quando a carroça seguiu por um terreno irregular. Quando chegaram ao caminho de cascalhos que levava ao antigo mosteiro, a sensação era de que tinham andado quilômetros a fio.

A construção de pedra se agigantou diante deles, uma sombra imensa contra o céu cinzento. De uma das pequenas janelas, via-se a luz de um lampião. Logo um facho de luz apareceu no chão quando a porta foi aberta, iluminando o caminho. Conforme se aproximavam, mais nítida ficava a sombra de uma mulher ali parada. Ela logo correu e deu um cobertor para um dos homens.

— Usem isto para carregá-lo para dentro.

Guy observou em silêncio enquanto ela dava instruções para que os homens

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tirassem Davey inconsciente da carroça com o cobertor para que o movimentassem o mínimo possível na subida até o galpão. Conversou com o cavalariço, que veio correndo para tomar conta dos cavalos, e seguiu acompanhando o pequeno cortejo até entrarem em um hall cheio de ecos e subirem uma larga escada de pedras até um pequeno aposento, no qual uma criada acendia a lareira, correndo.

Retirando-se a um canto, Guy reduziu sua participação a de um mero espectador. Se fosse preciso, intercederia, mas a jovem estava supervisionando os homens, que colocaram Davey na cama. Ele próprio não teria feito melhor. Observou-a circular pelo quarto e a luz iluminar seu cabelo tão vermelho quanto as brasas do fogo.

Apesar da preocupação com Davey, ele imaginou quantos anos teria aquela moça. Não se tratava de uma garota, pois tinha bastante confiança ao falar com os homens, que a conheciam pelo nome, em um tom de voz baixo e calmo. Ela vestia apenas um vestido cinza que permitia antever sua figura esguia conforme andava com extrema graça e agilidade. Era agradável observá-la. Ela, na certa, estava acostumada a ser dona de casa. Guy imaginou se ela seria lady Arabella, que os homens tinham mencionado ante-riormente.

Passos inesperados, vindos da porta da frente, trouxeram-no de volta dos pensamentos.

— Boa noite, sra. Forrester — cumprimentou o médico, um senhor grande e com uma aparência feliz.

A dúvida de Guy foi respondida.

— Então é por causa desse rapaz que fui chamado? — indagou o médico, sorrindo. — Foi atirado do cavalo, não é?

— Isso mesmo. — Guy saiu das sombras. — A égua caiu em cima dele.

— Hum... — murmurou o médico ao lado da forma humana deitada na cama. Em um movimento súbito, tirou o casaco. — Então preciso começar a trabalhar. Por favor, saiam todos, menos seu lacaio, senhora. Preciso da ajuda dele para despir meu paciente.

— Eu me encarrego disso — ofereceu Guy rapidamente, e o médico o encarou.

— Acho que não, senhor. Eu o aconselho a tirar essas roupas molhadas, caso contrário, terei dois pacientes em vez de um. Talvez a sra. Forrester possa se encarregar disso, além de tirar os outros daqui. Eles já ajudaram no que podiam, agora devem sair!

— Obrigada, senhores — disse a moça ruiva, seguindo para a porta. — Se quiserem, podem passar pela cozinha, Cook fez uma tigela de ponche para todos.

— Eu também estou incluído no convite? — indagou Guy ao sair por último do quarto.

Os grandes e escuros olhos da moça o encararam, solenes. Ela não se manifestou quanto à tentativa de gracejo de Guy.

— Não, senhor. Pode esperar por seu amigo no salão nobre. Vou pedir para que seja servido lá.

Guy a acompanhou com o olhar até descer as escadas. Só percebeu o quanto estava gelado quando se aproximou de uma grande lareira.

— Quem é esse homem a molhar todo o meu chão?

Guy estacou ao ouvir a voz imperiosa. Quando olhou para trás, viu uma senhora de idade na outra extremidade da sala. Ela estava toda de preto, inclusive a touca sobre o cabelo branco, e se apoiava em uma bengala de ébano. Diante de tão forte presença,

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Guy olhou para as roupas cheias de barro.

— Lamento pela minha má aparência, milady — disse ele, curvando-se para cumprimentá-la. — Eu sou Darrington.

— O conde de Darrington?

— Isso mesmo, senhora. — Guy ouviu a moça suspirar atrás de si e disfarçou o sorriso.

Ela, na certa, não esperava que ele fosse um nobre.

— Bem, milorde vai morrer de resfriado se permanecer com essas roupas molhadas. Beth, querida, o que você estava pensando?

— Mas Tilly e Martin estão...

— Se os criados estão ocupados, então cabe a você levar o conde lá para cima. Imediatamente!

— Milady, eu ficaria aqui ao lado do fogo de bom grado.

— Minha avó tem razão, milorde, o senhor deve se trocar — disse Beth. — Por favor, perdoe-me por não ter pensado nisso antes. Siga-me, por favor.

Ela o conduziu pelas escadas e por corredores curvos. Conforme a seguia, Guy procurava entender para onde estavam indo. A entrada e o salão nobre eram muito antigos, provavelmente parte do mosteiro original, mas havia sinais de que a casa tinha sido ampliada na época dos Tudor, para torná-la mais confortável. Toda a construção ostentava um ar de antiguidade e incorporava à sua herança o orgulho das famílias que ali viveram. Em todos os cantos, havia uma peça antiga e quadros dos séculos anteriores. Provavelmente alguns dos imensos armários continham velharias indesejadas que a atual proprietária não conseguira jogar fora.

A jovem abria a porta de um quarto confortável que já estava com a lareira acesa. Ela entrou e seguiu até o extremo oposto do quarto e puxou uma toalha de um gancho.

— Use isso para se enxugar. E se tirar essas roupas molhadas, providenciarei para que sejam limpas e secas.

Durante todo o tempo, Beth evitou olhar diretamente para Guy. E quase ao mesmo tempo em que terminou de falar, chegou à porta novamente, esgueirando-se para fora antes mesmo que ele lhe agradecesse.

Guy tirou as roupas molhadas e esfregou o corpo com a toalha com força suficiente para que o sangue voltasse a esquentar seu corpo frio. Depois de uma leve batida na porta, olhou para trás; não havia ninguém, apenas um pacote de tecido. Ao abri-lo, en-controu um roupão bem diferente daquele que seu valete teria colocado sobre sua cama em Highridge. O roupão era de uma lã fina e macia, e infinitamente confortante, constatou ele ao vesti-lo e amarrar a faixa na cintura. Estava um pouco pequeno, mas lhe serviria bem.

Quando secava o cabelo, ouviu outra batida na porta. Dessa vez, era Beth Forrester, trazendo uma bandeja. A primeira reação foi pegar a bandeja, mas em uma travessura momentânea, afastou-se para que ela fosse obrigada a entrar no quarto para levar a refeição até a mesa.

— Achei que gostaria de um pouco de pão e vinho — disse ela, sem levantar os

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olhos. — Minha avó me pediu para arrumar algumas roupas para milorde para que venha jantar conosco mais tarde.

— Obrigado. Será uma honra — agradeceu Guy, fechando a porta.

Beth girou para trás, assustada, e pela primeira vez, olhou diretamente para ele. Os olhos dela eram castanhos e lindos demais para demonstrarem tamanha ansiedade em suas profundezas.

— Por favor, fique um pouco, sra. Forrester. Gostaria de conversar com milady.

Beth o olhou de soslaio, fazendo-o rir.

— Estou ansioso por saber como anda meu amigo.

— O dr. Compton ainda está com ele. Não há novidades.

— Ah, sim, claro — disse Guy, dirigindo-se para o cabide no qual estavam as roupas. — Posso usar este pente?

Ela respondeu afirmativamente com a cabeça, enquanto ele ajeitava o cabelo molhado.

— Esse quarto é seu?

Dessa vez, ela tornou a o fitá-lo.

— Estou vendo fios vermelhos aqui — disse ele, erguendo uma escova de cabelo.

Beth assentiu mais uma vez.

— Era o único quarto com lareira. Como os aposentos de Tilly e Martin estão ocupados, achei que essa era a melhor solução...

Baixando o rosto ligeiramente corado, Beth deu um passo atrás.

— Não é muito aconselhável deixar um estranho em seu quarto — murmurou ele, adivinhando os pensamentos de Beth. — Agradeço muito, mas espero que seu marido entenda.

— Meu marido morreu há seis anos, senhor.

— Ah, sinto muito. — Guy fez uma pausa antes de continuar: — Esse roupão que estou usando era dele?

— Não, é do meu irmão, mas ficou muito grande para ele e por isso nunca é usado. Agora devo ir...

— Por favor, não fuja!

— Não estou... Quero dizer, preciso encontrar roupas que lhe sirvam, já que vai jantar com minha avó.

Beth estava diante dele, acuada como um animalzinho, mesmo assim Guy continuava no seu caminho.

— Suponho que você estará presente também.

— Claro que sim.

— Então está bem, pode ir.

Guy abriu caminho, mas, ainda assim, o espaço era pouco e era preciso que ela quase encostasse nele para chegar até a porta. Ele fez o possível para permanecer indiferente a tão poucos centímetros de Beth, mas foi envolvido pelo perfume com aroma cítrico de limões.

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Capítulo Dois

Beth manteve a compostura apenas até chegar ao corredor. Ao perceber que estava fora de vista, encostou-se na parede com as pernas tão trêmulas que mal a sustentavam. Onde estava com a cabeça ao entrar em um quarto onde havia um homem praticamente nu, não fosse o roupão de tecido fino que emoldurava cada músculo de um corpo perfeito? Quando notou que ele não iria pegar a bandeja, devia tê-la deixado no chão, ido embora e nunca ter entrado no aposento.

A reputação de lorde Darrington como um devasso não era segredo para ninguém, E pensar que tinha entrado na toca do leão... Beth riu da comparação, mas, de fato, ele tinha o corpo de um felino nobre. O roupão ajudava a imaginar que aquele corpo longilíneo de ombros largos e quadris estreitos exibia uma proporção perfeita.

Foi preciso conter a respiração quando o viu passar seu pente de marfim pelo cabelo espesso. Em um devaneio de momento, desejou que fossem seus dedos a entremear aqueles fios grossos e cacheados.

Fechou os olhos, assustada com sua reação àquele estranho. Será que todas as viúvas se sentiam assim depois de muito tempo sozinhas? Sua experiência com o marido nunca lhe pareceu importante, mas agora mal continha a imaginação que a levava aos braços do conde, trocando beijos apaixonados...

Depois de respirar fundo mais uma vez, Beth sentiu-se mais calma. Procurou convencer-se de que o frio na espinha que sentira era apenas uma resposta de seus nervos aos acontecimentos inesperados daquela noite. Afinal, fora pega de surpresa.

Conscientizando-se de que tinha muito a fazer ainda antes do jantar, decidiu se aprumar.

— Então, Milorde, vejo que encontrou roupas que lhe servissem.

Lady Arabella Wakeford estava com um vestido preto e prateado quando lorde Darrington entrou no salão nobre, duas horas mais tarde. Ele se dirigiu até onde ela estava e curvou-se em uma reverência exagerada.

— Como vê, madame, este casaco de gala talvez servisse melhor em alguém pertencente a St. James do que a alguém de Yorkshire. Mas é bem melhor me apresentar assim do que em um roupão.

Beth estava ao lado da avó e achou o conde magnífico naquele casaco, colete e calça de veludo listrada. Tanto o colete quanto o casaco tinham flores e folhas amarelas bordadas ao redor de vidrilhos que reluziam às luzes das velas sobre a mesa. A roupa estava um pouco folgada, menos nos ombros, onde o casaco estava repuxado, mas ele tinha razão, seria difícil sentar-se à mesma mesa com um homem de roupão, que lhe revelava as formas de maneira tão sensual. Quando o fitou, reconheceu o mesmo brilho

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maroto de antes em seus olhos, como se ele pudesse ler seus pensamentos. Dessa vez, Beth ficou bem corada.

— Uma vez que não há um homem por aqui para nos apresentar, e como parece que minha neta perdeu a língua, suponho que terei de cumprir as formalidades eu mesma. — Arabella estendeu a mão para Guy. — O senhor tem a honra de conhecer lady Arabella Wakeford, viúva de sir Horace Wakeford e filha do marquês de Etonwood. E essa... — continuou eia, depois de ele haver lhe beijado a mão. — ...é minha neta, sra. Elizabeth Forrester.

— Sra. Forrester... — disse ele, reverenciando-a também.

Beth fez sua mesura, sem saber se estava aliviada ou desapontada por ele não ter beijado sua mão também.

Contudo, o comportamento de lorde Darrington agradou a Arabella, que se derreteu visivelmente.

— Minha neta é viúva. A roupa que o senhor está vestindo pertenceu ao sr. Forrester — informou Arabella.

— É verdade? — indagou o conde. — Fico honrado e lisonjeado por poder usá-las.

Beth apertou os olhos, imaginando se aquilo era alguma tentativa de flerte.

— Talvez o senhor tenha percebido que a roupa está um pouco larga — comentou.

— De fato, a calça está folgadas na cintura — concordou Arabella, continuando o comentário de Beth. — Forrester era mais corpulento.

Os olhos de lorde Darrington continuavam com aquele brilho profano, enquanto Beth sentia os nervos à flor da pele. Por sorte, a avó não percebera nada, tão interessada estava no conde.

— Eu o vi entrar no quarto de seu amigo há pouco, milorde. Como ele está?

— Dormindo, madame. Encontrei o dr. Compton antes de ele partir e soube que o sr. Davey quebrou a perna direita.

— Além disso, o médico acha que ele também quebrou algumas costelas e está um pouco febril, mas achei que tivesse sido mais grave. Pode confiar no dr. Crompton, milorde, ele é um médico excelente.

— Ele colocou a perna de Davey no lugar, mas receio que meu amigo não poderá ser transportado por enquanto...

Lorde Darrington foi interrompido quando a porta se abriu de repente.

— Desculpe o atraso, vovó — disse uma garota com a voz musical. — Com tudo o que aconteceu, ninguém se lembrou de recolher os ovos, então, levei Cook e resolvemos a questão. Mas minha roupa ficou imunda e precisei me trocar.

— Sophie, deixe-me apresentá-la ao conde de Darrington. Essa é minha irmã, milorde. — Beth se adiantou nas apresentações e ficou feliz em notar que os dois demonstraram apenas uma curiosidade normal um com o outro.

Sophie tinha o cabelo loiro-escuro e encaracolado, olhos castanhos, e Beth a achava muito bonita. No entanto, Sophie tinha apenas 18 anos e ainda não fora apresentada à corte. Beth se preocupou que a presença de um homem incrivelmente atraente em seu pequeno mundo poderia leva-la a perder a cabeça e o coração, o que seria um aborrecimento desnecessário. Mas ouviu quando Sophie perguntou sobre a saúde de Davey por educação e se condoeu por Darrington também ter molhado suas

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roupas.

— É uma pena que Beth tenha guardado apenas as roupas de gala velhas de Forrester — comentou, olhando para o casaco do conde com visível desaprovação.

— Eu poderia ter colocado roupas de um lacaio, se houvesse uma do meu tamanho. A alternativa era ficar no quarto até minhas roupas secarem.

O sorriso que acompanhou aquelas palavras impressionou Beth, pois a expressão taciturna dele se desfez e o olhar ficou mais terno. Mais uma vez, sentiu aquele agradável arrepio correr-lhe a espinha.

— Essas roupas muito elaboradas não são vistas longe de Londres — lamentou Arabella. — Mas talvez algo mais simples fosse mais confortável, milorde. Beth, querida, você não encontrou nenhuma peça no guarda-roupa de Simon para o conde?

— Não serviriam, vovó. — Beth percebeu o olhar inquiridor de Guy e acrescentou: — Falamos do meu irmão, sir. O roupão que lhe dei primeiro era dele.

— Faz 18 meses que ele morreu — acrescentou lady Arabella.

— Minhas condolências, milady. Ele...

Beth virou-se para avó e o interrompeu:

— Aí está Kepwith para nos dizer que o jantar está pronto. Vamos para a outra sala?

Lorde Darrington avançou um passo para oferecer o braço a Arabella.

— Seguimos os costumes antigos, milorde — disse ela, ao ser conduzida para a sala de jantar. — Jantamos cedo e ceamos às dez. Na minha idade, não quero mais jantar muito tarde e cear à meia-noite, como acredito que seja a moda na cidade.

— Isso faz sentido se estivermos em um baile, vovó — opinou Sophie, sorrindo para o conde. — Não que eu já tenha ido a algum... baile de verdade. Mas vou no ano que vem, quando Beth me levar a Londres.

Lorde Darrington se virou para Beth.

— Você vai sempre à cidade, sra. Forrester?

— Não, eu...

— Beth não sai de Malpass há anos — se intrometeu Sophie de novo. — Exceção feita a Ripon, para onde ela vai para se encontrar com o amigo. Mas ela prometeu que vai me levar na próxima temporada. Se bem que até lá ela será a sra. Radworth...

— Sophie! — Beth deixou cair a faca sobre o prato. — Pare de falar tanto. Lorde Darrington não deve estar interessado em nossas vidas.

— Mas isso não é segredo — interveio Arabella. — O senhor conhece Miles Radworth, lorde Darrington?

— Não, milady, ainda não tive esse prazer.

— Acredito que ele tenha uma casa em Somerset, mas atualmente está alugando uma residência em Fentonby. Foi ele que trouxe a notícia da morte do meu neto. — Arabella parou de falar com os olhos lacrimejantes.

— Lamento muito, milady.

Um silêncio constrangedor se fez logo depois das palavras de Darrington, quebrado apenas pelo crepitar da lenha da lareira e pelos passos surdos do mordomo ao passar de cadeira em cadeira, enchendo as taças de vinho. Beth estava prestes a retomar

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a conversa quando Arabella animou-se a continuar:

— Meu neto morreu afogado no mar, em Bay of Biscay. Foi muita gentileza do sr. Radworth vir até aqui nos trazer a notícia.

— E a notícia não foi tão ruim assim — acrescentou Sophie, animada. — Bastou que ele olhasse para Beth uma vez para ficar perdidamente apaixonado.

— É mesmo? — Os olhos de Darrington se fixaram em Beth.

— Isso mesmo — confirmou Sophie. — E agora eles estão prestes a se casar.

— Então devo parabenizá-la, sra. Forrester.

— Obrigada — Beth respondeu de cabeça baixa.

— O senhor e seu amigo estão bem longe de casa, não é, lorde Darrington? — indagou Arabella.

— É verdade. Davey tem uma propriedade em Highridge. Estou hospedado lá como convidado dele.

— Considere-se um convidado aqui também, até seu amigo se recuperar para voltar a Highridge.

— Não! — exclamou Beth, corando e acrescentando rápido: — O que quero dizer é que lorde Darrington não precisa ficar, pois cuidaremos bem do sr. Davey.

— Prefiro continuar com meu amigo, se lady Arabella permitir — respondeu Darrington.

— Estamos a poucos quilômetros apenas de Highridge. Imagino que o senhor ficará bem mais confortável lá.

— Besteira, são mais de 16 quilômetros — respondeu Arabella. — Se for o seu desejo, lorde Darrington deve ficar. Temos espaço suficiente.

— Mas... Mas não temos criados bastantes, pelo menos não tantos quanto o conde deve estar acostumado.

— Ah, este conde não faz grandes exigências — disse ele em um tom tranqüilo de voz.

O brilho mordaz voltou aos olhos dele, irritando Beth.

— Tê-lo como hóspede além de um inválido irá gerar muito trabalho extra, mesmo o senhor não exigindo muito — retrucou.

— Vou mandar chamar o valete de Davey, em Highridge, para vir se juntar a nós — respondeu Darrington, sorrindo de um jeito tão provocante que Beth teve vontade de espancá-lo. — Assim ele poderá cuidar de seu patrão e atender às minhas mínimas de-mandas. Tenho certeza de que outro criado de Highridge pode vir também, caso seja de alguma serventia.

— Não temos necessidade de mais empregados — revidou Arabella. — Elizabeth, você está se comportando de um jeito muito estranho hoje. Milorde, garanto que temos criados suficientes para atender no que for preciso. Estamos desfalcados apenas hoje porque mandei alguns ao mercado, o que nos deixou com apenas duas empregadas e um lacaio para nos atender. Acredito, eu que todos já devem ter voltado a essa hora. Mesmo assim, não deixe de chamar o valete do seu amigo, e o seu, se quiser; temos lugar para todos.

— Se não há objeção, milady, devo chamar Peters, valete do sr. Havey, e Holt, meu cavalariço. Não preciso do meu valete, mas vou pedir que faça uma mala e a mande

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para cá.

— Perfeito, milorde — respondeu Arabella, solícita, mas sem deixar de franzir a testa para Beth. — Sendo filha de um marquês, devo saber como entreter um conde.

— Sim, vovó. — Beth fixou o olhar no prato, considerando-se vencida. — Desculpe-me.

Guy não falou muito mais durante o restante da refeição. Arabella logo anunciou que as senhoras se retirariam para a sala de estar, deixando-o à vontade para apreciar um cálice de conhaque sozinho. A primeira coisa que lhe veio à mente foi o comportamento explosivo de Beth Forrester, que havia deixado claro que não o queria por perto. Talvez fosse apenas porque não ficava à vontade na presença dele. Afinal, elas moravam isoladas, ou quem sabe ela tivesse conhecimento de sua reputação duvidosa. Arrependeu-se de tê-la provocado. Sem mencionar que também agira errado mantendo-a sozinha no quarto em sua companhia para conversar. Ora, mas afinal ela era uma viúva, e não uma colegial ingênua.

Tomou um gole do conhaque. Tinha certeza de que devia permanecer no mosteiro de Malpass até Davey se recuperar por completo. Pediria desculpas à sra. Forrester e garantiria que dali em diante seria o modelo do decoro. Talvez assim ela ficasse mais tranqüila.

Isso resolvido, seguiu até a sala, desapontando-se por encontrar apenas Arabella esperando por ele; as moças tinham se recolhido. Ela garantiu que havia preparado o quarto para ele e que o lacaio o levaria até lá. Rindo de si mesmo, Guy curvou-se ante a mão estendida à sua frente e saiu da sala. Fora dispensado pelo restante da noite.

Capítulo Três

Martin, um dos criados, mostrou um quarto confortável para Guy, um lugar com sinais de ter sido habitado por um cavalheiro.

— Este era o quarto do sr. Forrester? — perguntou Guy, enquanto analisava o ambiente.

— Não, milorde, era o quarto do sr. Simon. Milady não permitiu que nada fosse mexido depois que soube que ele tinha morrido afogado. O armário ainda está cheio de roupas dele. Como o sr. Simon era muito menor do que milorde, a sra. Forrester pegou uma camisola de dormir do finado sr. Forrester. Milady mandou avisar que suas roupas chegarão amanhã pela manhã.

Guy dispensou Martin com um aceno de cabeça. Em seguida, tirou o casaco e pendurou-o em uma cadeira, feliz em se livrar dos ombros apertados. Ao olhar de relance para o relógio na prateleira sobre a lareira, viu que não era meia-noite ainda e, apesar de o dia ter sido agitado, não estava com sono. Vagou pelo quarto, estudando os impressos de esporte grudados na parede, e folheou alguns livros deixados displicentemente sobre a prateleira em cima da lareira. O quarto não estava arrumado, era como se seu dono fosse

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voltar a qualquer instante, porém a penteadeira não tinha nenhum pente ou escova, como era de se esperar em um quarto de um cavalheiro. Na certa, Simon Wakeford tinha levado tudo quando partiu em viagem e agora estavam no fundo do mar.

De repente, Guy sentiu certa afinidade com Beth Forrester. Seu irmão, Nick, era marinheiro, e podia imaginar a dor que seria perdê-lo. Devia ser muito difícil para uma viúva que assumiu o fardo de tomar conta daquela casa antiga e, ao mesmo tempo, cuidar da avó e da irmã mais nova.

— Isso não é da sua conta — disse em voz alta, sentando-se na frente da lareira. — Ela deixou bem claro que você está aqui por um favor, portanto não desperdice seus sentimentos onde não são bem-vindos.

Ao começar a desabotoar o colete, ouviu um súbito grito romper o silêncio. Decidiu que antes de se trocar devia verificar como estava Davey e garantir que ficasse bem. Com a vela do quarto na mão, saiu do aposento com cautela. Os sapatos grandes que usava tornavam impossível andar sem fazer barulho sobre o piso de madeira polida, por isso ele preferiu deixá-los para trás e seguiu pela casa escura até chegar à porta no alto da escada.

Sob a porta, havia um fio de luz que vinha de um lampião de cima de um criado-mudo que ele viu ao entrar no aposento. Apenas o cortinado da cama com dossel estava iluminado no quarto escuro. De repente, um movimento perto da lareira o assustou.

— Sra. Forrester!

Beth se sentou quando ele chamou seu nome. O cabelo desgrenhado parecia mais escuro por entre as sombras.

— Ouvi um grito e pensei que talvez... — continuou ele.

— O sr. Davey não se mexeu — respondeu ela, baixinho. — O senhor deve ter ouvido alguma coruja ou outra ave noturna, milorde. A noite é repleta de ruídos.

— É verdade. Mas o que faz aqui?

— O dr. Compton sugeriu que alguém ficasse ao lado do sr. Davey durante esta noite.

— Mas a sugestão não foi para milady.

— Eu queria ter certeza de que ele ficaria confortável. Além disso, os criados precisam estar bem-dispostos para suas tarefas matinais.

— E milady não? — indagou Guy, colocando sua vela sobre a prateleira acima da lareira e olhando para onde Davey estava deitado. — Como ele está?

— Ainda dormindo. De vez em quando se agita, mas não é nada sério. É entediante cuidar do sono de um homem — acrescentou ela com um vestígio de humor na voz.

— Posso lhe fazer companhia?

— Ah, não... Ora, não foi isso que eu quis dizer... — tentou explicar Beth, preocupada que seu gracejo fosse mal compreendido.

— Claro que não, mas creio que uma companhia pode ser bem-vinda para que as longas horas noturnas passem mais depressa.

Beth não podia negar, então meneou a cabeça na direção de outra cadeira perto da ladeira, reparando nos pés dele com meias.

— Ah, sim. Eu não queria acordar a casa inteira arrastando aqueles pesados

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sapatos.

— Não o ouvi chegando; isso não é comum por aqui, pois a construção é bem antiga, como pode perceber. Há várias portas rangendo, e algumas tábuas do chão estalam sozinhas.

— Eu já havia percebido isso quando chegamos mais cedo. Alguém com uma imaginação um pouco mais. fértil atribuiria os ruídos aos fantasmas.

— O vento se infiltra pelos corredores, balançando as trancas. Beth estava feliz com a oportunidade de explicar os ruídos que ele podia ouvir. — Alguns convidados já disseram ouvir vozes, outros dizem que o monastério é assombrado. Claro que nada disso tem fundamento. Espero que ignore qualquer barulho estranho e permaneça confortável em sua cama.

— Tenha certeza disso, milady.

Houve um breve silêncio antes de Guy dizer:

— Fiquei feliz em ter a oportunidade de conversar com milady. Acredito que meu amigo e eu ocasionamos muito trabalho extra.

— Nada disso, milorde.

— Cheguei a essa conclusão porque percebi que milady não queria que pernoitássemos aqui.

— Ah, não! Isso foi... Se fui deselegante, espero que me perdoe.

— Não é preciso. Posso entender sua preocupação nessas circunstâncias.

Beth se surpreendeu com o comentário. De que circunstâncias ele estaria falando?

— Milorde?

— Deve ter sido estranho me ver entrar na sala usando as roupas de seu falecido marido. Eu devia ter imaginado o quanto minha presença deve ser penosa para milady.

— Ah... — Beth suspirou, aliviada. — Estou viúva há quase seis anos, sir, e mal me lembrava dessa roupa. Além do mais, milorde não se parece em nada como meu marido. — No mesmo instante, arrependeu-se do que disse, pois ele poderia achar que seria alguma indireta. — O que quero dizer, sir, é que o sr. Forrester era um homem muito bom.

— E eu não sou?

— Não faço ideia — revidou ela, envergonhada.

— Desculpe-me, milady, não resisti à oportunidade de brincar com a senhora — disse Guy, depois de rir.

Beth comprimiu os lábios, determinada a não responder, mas sentindo o calor subir-lhe às faces, sabendo que teria gostado da brincadeira em outras circunstâncias. Por sorte, Davey resmungou, chamando a atenção de ambos ao se virar, pronunciando coisas incompreensíveis.

Beth se aproximou da cama e mergulhou um pedaço de tecido em uma tigela com água.

— Água de colônia — explicou ela, ao passar o tecido na testa do enfermo. — Isso é um bom calmante.

No entanto, não adiantou muito, e Davey continuou a murmurar coisas e se mexer muito na cama.

— Talvez deva deixá-lo comigo — sugeriu Guy, quando Davey começou a gritar e

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blasfemar por conta das costelas quebradas.

— Prezado senhor, não sou nenhuma garotinha de escola. Posso garantir que já ouvi coisas bem piores do meu marido e do meu irmão. Precisamos dar um láudano a ele — decidiu. — Será que consegue segurar os ombros dele, milorde?

Guy provou ser de grande ajuda ao levantar Davey e segurá-lo para que Beth ministrasse o remédio, arrumasse as cobertas e ajeitasse os travesseiros. Não demorou muito para que Davey se acalmasse conforme agia o láudano, e Beth pôde voltar para onde estava sentada. Imaginava que Guy voltaria para o quarto, mas para sua surpresa ele tornou a se sentar na mesma cadeira.

Nenhum dos dois pronunciou nenhuma palavra, mas o silêncio já não era tão perturbador. Era reconfortante estar com alguém ao ouvir a respiração ritmada e forte de Davey, por isso Beth não queria quebrar o encanto. Em poucos minutos, fechou os olhos e cochilou.

Beth acordou pouco depois e percebeu que Guy estava ao lado da vela, que já havia queimado inteira, e o fogo da lareira se transformara em cinzas. Quando tentou alcançar o atiçador, ele a impediu: — Pode deixar.

Ela voltou a se acomodar na cadeira e observou-o se ajoelhar diante do fogo, espalhar as brasas e colocar mais lenha, apanhando as na cesta. Guy ainda vestia o colete bordado que tinha emprestado, bem amarrado às costas. As mangas bufantes acentuavam os ombros largos, que ela já tinha notado antes.

Em alguns movimentos rápidos, Guy reavivou o fogo. Beth reparou no rosto de traços fortes quando ele se sentou nos calcanhares para admirar as chamas. Ele tinha um perfil bonito, não havia como negar. O nariz reto e a boca bem delineada se asseme-lhavam aos das estátuas gregas, apesar de as sobrancelhas grossas e a linha marcada do maxilar serem fortes demais para se dizer que eram clássicas.

Guy virou a cabeça e a encarou de um jeito que Beth não conseguiu desviar o olhar, enquanto se sentia invadida por uma onda de medo, como se fosse dragada por um pressentimento de perigo iminente. Sabia que já tinha sido complacente demais.

Um galo cantou ao longe, anunciando o crepúsculo. Beth sentiu a garganta seca.

— Os criados logo estarão acordados — disse, demonstrando tensão na voz. — Milorde talvez deva se retirar.

Apesar de ele ter levantado as sobrancelhas de espanto, ela continuou:

— Sei que não se deve dar ouvido às fofocas, mas bem sei da sua reputação. Nós assinamos o jornal londrino Intelligencer.

— Ah, isso explica muita coisa.

Beth percebeu o tom de voz árido e acrescentou em seguida:

— Muito do que se escreve não é verdade. No entanto... Ninguém melhor do que eu sei que não devemos ficar sozinhos.

— Mas isso não é verdade. Estamos tomando conta de Davey.

Um brilho de alegria surgiu nos olhos dela, que se deixou levar pela brincadeira com um sorriso.

— É verdade. Ainda nos restam algumas horas antes do desjejum, e milorde talvez

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queira descansar um pouco. Não se preocupe comigo, logo minha criada virá me substituir.

— Bem, se não há nada mais que eu possa fazer por aqui, volto para meu quarto — anunciou Guy, levantando-se.

Beth sentiu-se intimidada pela altura dele e se levantou também, mas ao olhar para cima, notou que seus olhos ainda estavam à altura dos lábios dele. De súbito, se viu estudando a curva daquela boca e as pequenas linhas de expressão, indicando que ele segurava um sorriso. A companhia dele era muito agradável, pensou Beth, logo afastando o pensamento. Não tinha tempo a perder com tais frivolidades.

— Agradeço pela ajuda, milorde.

— O prazer foi meu, milady.

E depois de uma breve reverência, Guy deixou o quarto. Assim que a porta se fechou, Beth sentiu um arrepio anunciando que a solidão voltava a envolvê-la.

Capítulo Quatro

Arabella não acreditava muito na noção moderna de almoço, e era quase meio-dia quando deixou o quarto para tomar desjejum. A essa altura, Beth já estava acordada havia horas e ocupada com os afazeres domésticos, mas depois de uma noite de vigília no quarto de Davey, tinha dormido muito pouco durante a madrugada e acordou apenas quando sua criada a chamou, porque o dr. Compton tinha chegado para visitar seu paciente.

Já era bem tarde quando ela chegou à mesa de desjejum. Guy já estava lá, entretido em uma conversa animada com sua anfitriã. Os dois falavam de nomes que Beth não conhecia, e ouviu a avó suspirar.

— Claro que já não vou mais tantas vezes à cidade, pois a maioria dos meus amigos antigos já se foi e acabei perdendo o contato com o mundo.

— Não é verdade, vovó — disse Beth. — Sophie e eu lemos os jornais de Londres para você todos os dias.

— Incluindo o Intelligencer? — indagou Guy.

Beth ignorou o brilho de malícia nos olhos dele.

— Mas não é a mesma coisa — afirmou Arabella. — Eu estava dizendo a Darrington que ele devia ir mais vezes à cidade.

— Londres não me seduz — desculpou-se Guy. Ele vestia as mesmas roupas com que chegara no dia anterior, mas toda a lama havia sido removida.

— Que bom que a sra. Robinson deu um jeito de limpar suas roupas — disse Beth, conforme ele se levantava e puxava uma cadeira para ela.

— Recebi-as hoje logo cedo. Por favor, agradeça à sua governanta por mim. Se

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bem que ficarei mais feliz ainda quando Holt chegar com minhas malas. Eu gostaria de estar vestindo algo um pouco mais formal, mas do meu guarda-roupa, para o próximo jantar.

Beth fingiu não notar o sorriso charmoso dele.

— Não há necessidade alguma de passar pelo inconveniente de passar mais uma noite...

— Basta, Elizabeth! — a repreendeu Arabella. — Convidei Darrington para ficar conosco pelo tempo que desejar.

— Mas nossa criadagem e a casa não estão à altura daquilo a que o conde deve estar acostumado — objetou Beth.

Arabella a dispensou com um sinal de mão e voltou a atenção para Guy.

— Ainda não entendi a razão, mas minha neta acha que não estamos gabaritadas a recebê-lo, Darrington. A família Wakeford data de antes de Guilherme I, o Conquistador, mas se destacou na época do rei Henrique VIII. Acredito que seu título mesmo não tenha sido criado antes de Carlos II.

— Está correto, milady. Posso dizer que sou um verdadeiro novo rico.

— Não foi isso que eu quis dizer — protestou Beth, aturdida. — Eu... Eu só estava preocupada com seu conforto, sir.

O olhar descrente de Guy a fez corar até a raiz do cabelo. Por sorte, Sophie chegou bem naquele momento, distraindo todos.

Sophie era muito educada e logo inquiriu sobre a saúde de Davey.

— Não o vi ainda esta manhã, srta. Wakeford, mas acho que ele está bem. — Guy olhou para Beth, que confirmou a notícia com a cabeça. — Estou em débito com a sra. Forrester. Ela cuidou de Davey durante a noite toda.

— Isso explica por que ela estava se atrapalhando tanto hoje pela manhã — comentou Arabella.

Normalmente Beth teria achado graça no comentário, mas com a presença do conde na sala, ela nem sequer sorriu, e dirigiu-se à irmã:

— Sophie querida, será que você pode me ajudar hoje? Precisamos colher mais folhas de confrei.

— Mais ainda? — perguntou Arabella. — Vocês foram buscar confrei a semana passada e o estoque já terminou?

— Rudge me disse que a égua precisa de um emplastro — explicou Beth com toda a paciência.

— Então ele que vá buscar as folhas — retorquiu Arabella. — Afinal, ele é o cavalariço; ou então que mande alguém dos estábulos.

— Eu não me importo em ir — disse Sophie rápido e sorrindo. — Sei onde achar os melhores pés de confrei, e logo encherei um cesto de folhas. Assim teremos o suficiente para secar e algumas frescas para usar agora. Não se preocupe, vovó, volto a tempo de ler os jornais enquanto a senhora descansa antes do jantar.

— As duas esqueceram que precisamos entreter nosso convidado.

— De jeito nenhum, milady — interveio Guy. — Posso me virar sozinho.

— Milorde será bem-vindo se quiser nos acompanhar — convidou Beth por

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educação.

Mas Guy percebeu o quanto ela ficou aliviada quando declinou do convite.

— Presumo que a carruagem, vinda de Highridge, deva chegar a qualquer momento. Pretendo caminhar pela estrada para aguardá-la.

— Sendo assim, se nos derem licença, iremos colher nossas folhas. Venha, Sophie.

As duas moças desapareceram, e Arabella foi para a sala de estar, dizendo que ia escrever umas cartas, deixando Guy sozinho. Depois de se assegurar de que Davey ainda dormia, seguiu até a porta da frente e viu os íngremes degraus de pedra até a estrada.

Era uma linda manhã ensolarada com ar de outono. Foi difícil acreditar que tinha sido na noite anterior que, sob chuva forte, havia carregado Davey pelos mesmos degraus até a porta da frente da casa. Olhou ao redor, observando o prédio antigo com interesse. O antigo refeitório com o frontão triangular era agora a entrada principal da casa para o salão nobre. Ao lado dos degraus, havia uma antiga porta em arco, que levava ao andar de baixo. Intrigado, Guy tentou abri-la, mas estava trancada. Continuando a vagar, logo viu onde ficava o estábulo e seguiu até lá. Notou como o gramado e o caminho estavam bem cuidados. Nas baias, encontrou o cavalariço loiro cuidando da égua de Davey.

— Seu nome é Rudge, não? — perguntou e inclinou a cabeça na direção da égua. — Espero que ela não tenha se machucado muito.

— Não, milorde, ela está em boa forma. Do mesmo jeito que o seu cavalo, milorde. Nós os escovamos, alimentamos e demos água, como se fossem nossos animais. Eles estavam um pouco assustados, mas agora estão ótimos.

— Boas notícias. — Guy sorriu. — Eu não queria dar mais trabalho, já que você precisa se preocupar com um animal doente.

— Como, milorde?

— A sra. Forrester disse que a égua mais velha precisava de um emplastro.

— Não neste estábulo. — Rudge meneou a cabeça devagar. — Eu cuido desses animais todas as manhãs, e teria notado se algum não estivesse bem.

Guy franziu a testa e depois encolheu os ombros.

— Não faz mal, talvez eu tenha entendido errado.

O barulho de cascos e o tilintar das correntes anunciaram que uma carruagem se aproximava.

— Ah, deve ser o valete de Davey e meu cavalariço. Espero que tenha lugar para Holt nos seus estábulos, Rudge. Ele pode ser muito útil, e irá se reportar a você — acrescentou Guy, procurando se lembrar de falar com Holt antes de colocá-lo para trabalhar.

Guy voltou para a frente da casa ao mesmo tempo que a carruagem parava. Holt a conduzia e pulou para o chão, antes mesmo que parassem totalmente. Depois de trocadas algumas palavras, ele correu para os estábulos, deixando Guy livre para observar Peters, o pequeno, mas muito eficiente, valete de Davey, descarregando vários baús na porta do mosteiro.

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Peters não demorou a se instalar no quarto de Davey, desfazendo as malas e tendo tempo inclusive de barbear Davey para a próxima visita do dr. Compton. No entanto, Guy não permitiu que a camisola emprestada fosse tirada antes que o médico liberasse Davey para se mexer, e este estava sonolento por causa do láudano e irritado pela falta de conforto. Blasfemou e rogou praga em todos, trazendo um sorriso aos rostos dos empregados costumeiramente taciturnos.

— É bom saber que está se recuperando, sir — murmurou Peters ao recolher todo o aparato para fazer a barba.

— Mas que droga, por que você tinha de chamá-lo? — reclamou Davey. Seu cabelo estava desgrenhado, e a aparência era de um menino melancólico.

— Porque ele é a melhor pessoa para tomar conta de você — respondeu Guy sem se preocupar com o mau humor do amigo. — Diga-me com toda a sinceridade, como está se sentindo?

— Como o diabo! Não há uma parte sequer de meu corpo que não esteja doendo. Não posso rir ou tossir sem quase morrer de dor nas costelas, meu pulso parece torcido, e minha perna... — Davey olhou para Guy com olhos ansiosos. — O que...

— Está quebrada, não foi nada sério. O médico colocou o osso no lugar e acredita que a perna vai se curar muito bem. Mas você tem de ser paciente.

— Onde estamos? Não reconheço a casa nem os criados.

— Mosteiro de Malpass, perto de Fentonby. Estamos na casa de lady Arabella Wakeford. Você a conhece?

— Não, mas já ouvi esse nome — respondeu Davey, franzindo a testa.

— Eu também, mas não me lembro de onde foi. — Guy também contraiu o cenho. — Sei que a família é antiga. — Um sorriso brotou-lhe nos lábios. — A família Wakeford ganhou a nobreza muito antes de os Wylders ganharem o condado.

— Bem, esta casa, de fato, é bem antiga — comentou Davey, olhando para a bela janela em arco. — Ainda bem que eles tiveram o bom senso de renovar o colchão desta cama velha. Como são suas acomodações? Está confortável?

— O quarto até que é bem agradável.

— Representamos algum inconveniente para a família? — indagou Davey, notando certa ironia na resposta de Guy.

— Não tenho muita certeza — respondeu Guy, passando a mão no queixo. — Lady Wakeford já demonstrou que está feliz com a nossa presença. Os criados agiram rápido, trazendo você para dentro ontem à noite, mas tenho uma ligeira impressão de que a neta dela não nos quer aqui. — E dando de ombros, continuou: — Talvez eu não esteja sendo justo, e ela apenas se sente perturbada com a presença de dois homens na casa. Lady Wakeford mora aqui sozinha com duas netas. Havia um neto também, mas pelo que entendi ele morreu no mar há uns 18 meses.

— Ah, então é isso! — exclamou Davey. — As moças temem ser desoladas pelo perigoso lorde Darrington! Não se preocupe, logo as farei acreditar que você é bem treinado e que só ataca aquelas que se jogam aos seus pés.

— Obrigado, meu amigo, mas prefiro que você não diga nada. — O sorriso desapareceu do rosto de Guy, quando notou que Davey estava pálido. — Acho que essa conversa toda o cansou. Descanse até o médico chegar. Aliás, se quiser, posso pedir para que seu médico de Helmsley venha para cá, se você preferir, mas gostei do dr. Compton.

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— Não, nada disso. Não quero mais ninguém participando dessa balbúrdia. Vá embora e me deixe dormir. Diga a Peters para não aparecer aqui até o médico chegar.

Satisfeito por Davey ter voltado ao normal, Guy saiu do quarto. Pretendia ir aos seus aposentos para ver as roupas que tinham chegado, mas se deteve ao ouvir vozes vindas do salão nobre e desceu as escadas. Logo viu um cavalheiro alto e muito bem-vestido parado diante da lareira, tirando o chapéu de pele de castor e liberando uma peruca comprida em trança presa por um laço verde. Ele trajava calça marrom e botas muito bem polidas. As luvas e a bengala, dispostas ao lado do chapéu, eram uma indicação, de que ele viera a cavalo.

Guy fez barulho ao terminar de descer as escadas, chamando a atenção do estranho, que se virou para fitá-lo, e só depois de estudá-lo da cabeça aos pés dignou-se a uma breve mesura.

— Presumo que o senhor seja lorde Darrington. Sou Miles Radworth, ao seu dispor.

Ah, o noivo, pensou Guy. Isso explica a razão de tanta reserva.

— Kepwith estava me contando sobre o acidente — continuou Miles. — Pelo, que entendi seu amigo não se feriu gravemente.

— Foram algumas costelas e uma perna quebradas. Esperamos que tenha sido só isso. Estamos esperando pelo médico.

— Ótimo. Que ele traga notícias boas. Presumo que queira levar seu amigo para casa.

— Tudo na hora certa — respondeu Guy com o mesmo sorriso insosso de Miles. — Lady Arabella é uma excelente anfitriã. Estamos bem confortáveis aqui.

— Ah, fico feliz em saber. — O tom da resposta foi de um cinismo ímpar.

O farfalhar da seda de um vestido chamou a atenção de ambos.

— Miles! Não o esperávamos aqui hoje. — Beth Forrester entrou na sala, parando para tirar seu chapeuzinho de palha no instante exato em que raios de sol se insinuaram pela cumeeira do telhado, iluminando-a com seus raios dourados.

Guy ficou encantado com a visão dos cachos vermelhos emoldurando o rosto de pele alva e a profundidade dos belos olhos castanhos. O redingote estava desabotoado, e as saias brancas, ondulando conforme ela andava, remeteram Guy a uma obra de arte de um dos antigos mestres italianos, que havia retratado um anjo descendo para a terra. Como se para confirmar sua impresso, o sol tinha criado uma espécie de auréola sobre a cabeça de Beth quando ela jogou o chapéu na cadeira e estendeu a mão para Miles.

— Não era mesmo minha intenção vir — disse ele, beijando a mão delicada de Beth. — Mas soube que tinha acontecido um acidente...

— Não foi comigo. — Ela sorriu, puxando a mão e se afastando. Você já conheceu lorde Darrington?

— Acabamos de nos apresentar — murmurou Guy. — Sua busca teve sucesso? Milady encontrou as folhas de que precisava?

— Sim, enchemos duas cestas! Sophie as levou para o celeiro em vez de trazê-las para dentro de casa.

— Se não me engano eram folhas de confrei para fazer compressa para seu cavalo doente, não era?

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— Bem, é verdade, mas confrei tem diversos usos — explicou ela, olhando de esguelha para Guy. — Devemos secá-las, claro. O tempo está mudando, e as folhas estão caindo, por isso essa era nossa última oportunidade de colhê-las. — E virando-se para Miles, continuou: — Quer dizer que você veio até aqui para se certificar de que estávamos bem? Foi muita gentileza de sua parte.

— Eu tinha esperanças de ser convidado para ficar para o jantar, apesar de lady Arabella olhar com reprovação para minhas roupas informais — disse Miles, fazendo uma ligeira mesura.

Guy percebeu a hesitação de Beth e imaginou se Miles também notara.

— Claro, Miles, será ótimo. Já nos conhecemos bem para tanta cerimônia e acredito que não vá ficar ofendido quando eu pedir para que se entretenha sozinho. Estou esperando o dr. Compton a qualquer momento para examinar o sr. Davey.

— Não tenho intenção alguma de lhe dar trabalho — Miles tratou de responder rápido. — Talvez eu possa fazer alguma coisa, como ler o jornal para lady Arabella, por exemplo. Sabe que pode me confiar a tarefa.

— Claro que sim, Miles, mas Sophie já se ofereceu para ler para vovó, então não há mesmo o que você possa fazer — disse Beth, sorrindo.

— Ela insiste em me tratar como um convidado — disse Miles baixinho. — Em novembro...

— Em novembro será tudo diferente — respondeu Beth, interrompendo-o. — Por enquanto, acho que você poderia mostrar a biblioteca para o conde. Você conhece aqueles livros e artefatos raros tão bem quanto eu.

— Agradeço, mas eu tinha planejado acompanhá-la e ao dr. Compton ao quarto do enfermo — contrapôs Guy, irritado por outros tentarem organizar seu tempo.

— Será que é preciso? — perguntou Miles, mas Guy desconfiou das intenções.

— Talvez não, mas é compreensível — se interpôs Beth. — Não tenho dúvidas de que lorde Darrington está ansioso pelo amigo. Na verdade, podíamos subir agora, milorde, se for do seu grado, para garantir que está tudo pronto. O dr. Compton já conhece o caminho e pode ir sozinho. Sendo assim, Miles, espero que fique confortável na biblioteca e, logo que eu puder, vou lhe fazer companhia.

Depois de dispensado, Miles meneou a cabeça e se afastou. Beth e Guy nada disseram até ouvirem a porta da biblioteca se fechar.

— Na verdade, acabo de vir do quarto de Davey — disse Guy. — Ele estava exausto. Prometi que ninguém o perturbaria até a chegada do médico.

— Ora, então por que não me disse isso antes de eu dispensar Miles? — indagou Beth, içando uma das sobrancelhas.

— Não acredito que ele queira minha companhia.

— Ele só está ansioso para que milorde não seja inconveniente comigo.

— É muito gentil de sua parte defendê-lo.

— Claro. — Beth ergueu o queixo. — Estamos noivos. Além do mais, ele tem sido muito gentil conosco, um amigo verdadeiro.

Guy encarou-a na tentativa de interpretar aquele olhar desafiador ao mesmo tempo que se a percebia na defensiva.

— E vocês vão se casar em novembro?

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— Isso mesmo.

Até mesmo para os ouvidos de Beth a afirmativa soou fria. E não devia ser assim, pois, afinal, estava muito feliz com o casamento. Ou não? Entretanto, não podia se antecipar e ficar feliz antes de ter resolvido um problema que lhe pesava na alma.

— Sendo assim, Davey e eu estamos atrapalhando bastante — disse Guy.

Beth pensou em contestar, mas reprimiu a vontade e ficou muito aliviada quando ouviu a voz rouca do dr. Compton vindo da porta da frente.

— Bom dia, sra. Forrester e lorde Darrington. Fico feliz que milorde não tenha ficado doente depois de ter se ensopado ontem! E como vai meu paciente? Espero que esteja acordado. E que tenha passado uma noite razoável. Bom... levem-me até ele.

Beth logo percebeu que sua presença não era necessária no quarto de Davey. Peters, o valete dele, estava ansioso por atender seu patrão, por isso ela o deixou ouvindo as instruções do médico na companhia de lorde Darrington, a postos para qualquer eventualidade. O dr. Compton liberou Beth, prometendo que daria notícias antes de ir embora.

Ela desceu as escadas, mas, depois de fitar a porta da biblioteca por alguns minutos, decidiu descer mais um lance em vez de se encontrar com Miles. Voltou pouco depois, batendo nas saias para tirar a poeira e seguindo para o salão nobre, onde viu o mordomo saindo da biblioteca.

— Kepwith, o dr. Compton ainda está lá em cima?

— Sim, milady — respondeu Kepwith depois de uma tossidela. — Vou buscar um refresco para o sr. Radworth, que acaba de me informar que ficará para o jantar.

— Isso mesmo. Por favor, Kepwith, providencie que mais um lugar seja posto à mesa.

Kepwith fez uma breve mesura um tanto hesitante e ponderou:

— Será que é conveniente, milady? Nessas circunstâncias...

Beth entendeu o que ele quis dizer.

— Talvez não, mas não há o que fazer...

— Mas e se ele ficar inquieto e gritar de novo...

— Tilly dará um jeito para que isso não torne a acontecer. — Beth levantou a mão para fazê-lo se calar. — Não há razão nenhuma para que nossos convidados percebam alguma coisa fora de ordem, Kepwith, mas precisamos manter a cabeça no lugar.

Beth olhou para o alto das escadas e viu lorde Darrington descendo os degraus com o dr. Compton.

— Isso é tudo, Kepwith. E então, doutor, como está o sr. Davey?

— Está progredindo bem, sra. Forrester, mas recomendo que continue imóvel hoje. Lorde Darrington sugeriu transportá-lo num colchão dentro da carruagem, porém, receio que seja melhor mantê-lo quieto por enquanto. Vamos ver como ele estará depois de mais uma noite ou duas. Volto amanhã, milady. O sr. Davey está nas mãos de um valete competente que tomará conta de seu patrão.

— E se ele tiver febre, o que devo dar? — perguntou Beth quando o médico já

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estava a caminho da porta.

— Fique tranqüila, milady, a febre já passou.

— Sim, mas e se ele acordar...

— Talvez seja bom dar alguns goles de água ou mesmo uma limonada, se desejar.

— Só isso? Não é melhor algo mais forte? — insistiu Beth. — Ele pode voltar a ter dor, e usei o láudano que o senhor deixou, mas infelizmente derrubei um pouco no chão hoje pela manhã.

— Por que está tão ansiosa, sra. Forrester? Isso não é do seu feitio — comentou o dr. Compton, sorrindo.

— Só estou preocupada com o bem-estar do sr. Davey.

— Faça uma salmoura, se desejar, mal não fará. E, caso ele tenha dor, o que acho difícil, se permanecer quieto, tenho mais láudano na minha sela. Darei um pouco ao seu mordomo. E agora devo ir. Venha, Kepwith, por favor. Ainda tenho que visitar mais dois pacientes.

Beth observou os dois homens saírem e, quando se virou, encontrou Guy esperando por ela no salão nobre.

— Pode ficar tranqüila, sra. Forrester. Tenho certeza de que Peters é muito eficiente e sabe cuidar de seu patrão.

— Sim, claro. Eu... apenas queria garantir que o sr. Davey tivesse uma noite tranqüila — disse ela, e acrescentou: — Pobre Miles, acabei por me esquecer dele! Milorde me acompanharia até a biblioteca?

— Preciso ver como está indo meu cavalariço.

— Como quiser, milorde. Espero que recorde que jantamos cedo em Malpass. Devo enviar um criado para ajudá-lo a se vestir daqui a uma hora?

— Não precisa. Peters pode me ajudar. Milady não parece acreditar no que digo, mas já falei que não sou um nobre de tão alta posição.

Beth se desmanchou diante de um sorriso tão incrível, e fitando aqueles olhos acinzentados, entendeu a razão de Guy partir tantos corações.

O barulho dos passos de um lacaio sobre o piso de mármore a trouxe de volta à realidade. O rapaz estava a caminho da biblioteca, levando uma bandeja com um decanter e alguns cálices.

— Ah, céus, Miles! — exclamou ela, levando a mão à boca. Olhou para o conde como se pedisse desculpas e saiu rápido na direção da biblioteca.

Capítulo Cinco

Quando Beth subiu para se trocar para o jantar, decidiu não usar o vestido de seda cinza, que já estava estendido na cama, mas pediu à criada que buscasse seu novo

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vestido cor de alfazema com a anágua de musselina.

— Humm, estamos nos vestindo para lorde Darrington? — perguntou Tilly, rindo.

— De jeito nenhum — ralhou Beth. — Miles também vai jantar conosco.

— Então milady não vai esconder seu charme sob um xale branco?

— Deixe de ser insolente! — Beth pegou um lenço de um tecido fino, arrumou-o de forma a cobrir o decote pronunciado do vestido e disse, procurando parecer brava: — Não sei como aguento você.Tilly.

— Porque milady sabe que eu a amo, tanto quanto a Sophie e lady Arabella — disse Tilly depois de rir do comentário de Beth. — Além disso, ninguém mais sabe pentear seu cabelo tão bem. Sente-se, srta. Beth, e deixe-me pentear seus cachos.

Beth se deixou arrumar e foi recompensada pelo olhar de aprovação que recebeu de Miles Radworth ao entrar na sala de estar, mas ficou desapontada por lorde Darrington não ter reparado na sua chegada por estar entretido em uma conversa com Sophie e Ara- bella no canto da sala. Na verdade, ele a viu chegar, mas não se manifestou, ao contrário de Miles, que se desmanchou em elogios. Beth não deixou de observar lorde Darrington com o canto dos olhos, notando que ele prestava toda atenção à sua avó. Aquilo a magoou, pois não precisava que Miles lhe dissesse o quanto estava linda naquele vestido e como seus cachos estavam bem arrumados. Bastava uma rápida olhadela no espelho para se certificar de que estava deslumbrante de fato. Lorde Darrington tinha sido muito sem educação em não lhe dar atenção. Não precisava de uma grande recepção, bastava apenas que demonstrasse algum sinal de apreciação.

— E então, querida, o que acha?

A pergunta de Miles a trouxe de volta de seus devaneios, e foi preciso usar todo seu charme para que ele não a percebesse tão distraída.

— Pois não, Miles, o que quer saber?

— Eu sugeri, com algum rodeio, que, já que ainda não começou a preparar seu enxoval, você me acompanhasse a York. Estou certo de que lady Arabella pode ficar sem você alguns dias.

— Ah, Miles, quanta gentileza, mas não há necessidade. Pretendo ir até Ripon encontrar-me com minha grande amiga Maria Crowther e comprar tudo lá mesmo.

Desculpando-se, Beth se dirigiu até Arabella.

— Sra. Forrester. — Guy se levantou para cumprimentá-la e oferecer a cadeira. — Talvez milady queira se sentar perto de lady Arabella.

Beth inclinou a cabeça e se sentou, mas não conseguiu relaxar enquanto o conde permaneceu atrás da cadeira. Precisou unir todas as suas forças para não olhar para trás para ver se ele ainda mantinha as mãos no espaldar.

— Espero que Sophie tenha cuidado bem da senhora essa tarde, vovó — disse para se distrair.

— Claro, como sempre — respondeu Arabella. — Ela é uma garota e tanto. Lê muito bem e não demonstra um pingo de impaciência, quando tenho certeza de que gostaria de estar fazendo outra coisa.

— Claro que não, vovó! — exclamou Sophie, quando Arabella a acariciou o rosto.

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— Se me permitir, posso ler o jornal para milady amanhã — se ofereceu Guy, saindo de trás de Beth e postando-se ao lado de Miles. — Isso será o mínimo que posso fazer para retribuir sua hospitalidade.

— Não tenho dúvida de que milorde se sairá muito bem com essa voz grave e harmoniosa — concordou Arabella.

— Ah, mas ficarei feliz em ler de novo, vovó — protestou Sophie.

— Eu digo o mesmo — declarou Beth. — Não precisamos incomodar o conde com tal tarefa.

— Por que vocês querem me negar a companhia de um cavalheiro tão charmoso? — Arabella piscou os olhos, fingindo um gracejo. — Acredito que elas querem monopolizá-lo, Darrington.

— Fico lisonjeado, milady.

Sem saber de onde teria vindo tal ideia, Beth, de repente, notou que o cabelo de lorde Darrington, que se encostava na gola da camisa, tinha algumas mechas mais claras e era muito mais interessante do que a empolada peruca de Miles. Entretanto não ousou verbalizar o comentário. Afinal, tinha sido ela a convidá-lo para jantar, e seria injusto tecer qualquer comentário uma vez que ele não pudera trocar de roupa. Não devia também comparar a jaqueta de veludo dele ao casaco bem cortado de lorde Darrington, que lhe emoldurava perfeitamente o torso. E tampouco colocar em pé de igualdade botas altas e calça de montaria com um culote de cetim com meias três-quartos, que deixavam antever as pernas atléticas do conde.

Comparando os acessórios, Beth os colocou em pé de igualdade. Lorde Darrington tinha um grande anel de sinete e um discreto diamante no alfinete da gravata clara, além de um monóculo preso ao paletó por uma fita preta. Miles, por sua vez, usava um alfinete de esmeralda no lenço do pescoço e algumas correntes nos bolsos da cintura, e um relógio antigo. Não seria muito justo compará-los fisicamente, pois lorde Darrington tinha um físico bem mais bonito do que Miles, tal como os heróis que um dia habitaram seus sonhos.

O casamento com Joseph Forrester ensinara Beth a colocar de lado esses devaneios românticos. Ele tivera muito trabalho em domar sua natureza impetuosa, mas logo a convenceu de que um marido não gosta de uma esposa que esteja sempre pendurada em seu braço ou insistindo em demonstrações de afeto. Beth sabia que o casamento com Miles não seria muito diferente, pois conseguia controlar seus sentimentos em relação a ele, ao contrário do turbilhão de emoções que lorde Darrington provocava apenas lhe dirigindo o olhar.

Quando levantou os olhos, percebeu que lorde Darrington a encarava e ficou ruborizada. Tomara que ele não tenha lido seus pensamentos!

Bastou relancear os olhos para Miles para perceber que ele não estava muito feliz com a conversa, por isso disse rápido:

— Vovó, a senhora é muito maldosa com essas brincadeiras. Não podemos nos esquecer de que amanhã o dr. Compton pode declarar que o sr. Davey está apto a voltar para Highridge e seremos obrigadas a nos despedir de nossos convidados.

— Vou sentir muito quando isso acontecer — declarou Arabella. — Esta casa ficou muito silenciosa depois que Simon morreu. Ficamos muito mais reclusas.

— Se milady acha que deve haver um homem na casa, sabe que eu me mudaria para cá de bom grado — ofereceu Miles.

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Por alguns longos minutos, Arabella o encarou sem demonstrar nenhuma emoção.

— Obrigada, Radworth, mas ninguém substituirá meu neto.

Fez-se um silêncio constrangedor até que Beth se levantou em um ciciar das saias de seda.

— Vamos jantar?

Beth não apreciou muito a refeição. Arabella dominou a atenção com sua graça habitual, mas apesar de os dois cavalheiros se tratarem com gentilezas, Beth percebeu que havia certa tensão no ar. Até mesmo Sophie olhava para um e outro, prevendo um mal estar.

Deixando os sentimentos de lado, não podia culpar lorde Darrington, que, sentado ao lado de Arabella, respondia a todas as suas perguntas e observações com graça e bom humor. Já Miles estava longe de ser agradável. Achou defeitos em todos os pratos e, apesar de Arabella não ter demonstrado notar seu desconforto, os comentários espinhosos deixaram até Sophie em um silêncio incomum. Como se não bastasse, ele estava bebendo além da conta, pedindo tantas vezes para encher seu cálice que Kepwith foi obrigado a ir buscar mais uma garrafa na adega.

Depois que os pratos foram retirados, veio a sobremesa, e foi quando a situação piorou. Na tentativa de alcançar um prato de amêndoas açucaradas, Miles acabou por derrubar o cálice de vinho tinto sobre a mesa. Lorde Darrington antecipou-se e jogou o guardanapo em cima da poça de vinho, enquanto Miles pulava para trás blasfemando.

— Não foi nada — apaziguou Beth, colocando seu guardanapo sobre o do conde. — Já conseguimos conter a mancha. Sophie, passe o seu guardanapo e assim resolvemos o assunto.

— Peço desculpas pelo meu jeito desastrado — murmurou Milles, mantendo-se afastado da mesa e observando os outros limpando a toalha. — Essa última garrafa de vinho estava ruim.

— É bem possível — disse Beth em tom apaziguador.

Um lacaio trouxe mais panos para terminar de secar a mesa.

— Pronto, está tudo como era antes — disse Arabella. — Sente-se de novo, sr. Radworth.

— Sim, mas antes vou até a adega buscar um vinho decente! — exclamou Miles, segurando o braço de Kepwith. — Dê-me as chaves.

— Sir! — exclamou Kepwith sentindo-se ultrajado e apavorado.

Sophie deu um suspiro, enquanto Beth colocou a mão sobre seu ombro, ciente de que o conde as vigiava com toda a atenção.

— Não é preciso, Miles — disse Beth com toda a calma. — Kepwith pode trazer outra garrafa, se essa for a sua vontade.

— Quero sim, mas nenhuma que ele escolher. Acredito que ele esteja trapaceando, servindo uma coisa ruim para ficar com o melhor para si.

— Imagine! — exclamou Beth. — Meus criados são honestos. E não permito que meus convidados se intrometam nas tarefas de meus serviçais.

A postura de Beth surtiu efeito. Miles a encarou, mas ela enfrentou o olhar, até que

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ele voltou a se sentar com um riso sem graça.

— Tem razão, minha querida. Teremos muito tempo para discutir sobre como cuidar de uma casa depois de casados, não é? Muito bem, Kepwith, pode ir buscar outra garrafa de vinho tinto, e seja rápido.

Arabella conduziu as moças para a sala de estar, e os cavalheiros as seguiram. Miles percebeu que tinha ido longe demais e tentou se aproximar de Beth para se desculpar. No entanto, ela não estava disposta a ouvi-lo, virando-se de costas, e só voltou a prestar atenção a ele quando o ouviu anunciando que partiria logo depois do chá, quase suplicando para que ela o acompanhasse até a porta.

— Querida, sinto muito pela minha atitude — disse ele, abrindo e fechando o relógio para logo em seguida colocá-lo no bolso do colete.

— Imagino que tenha sido o efeito do vinho ruim — disse ela, dando de ombros.

— Não foi só isso, Elizabeth. Fiquei com ciúme por notar como Darrington está à vontade aqui.

— Você está com ciúme do conde? — indagou ela, piscando. — Garanto que não é preciso, pois não tenho nenhum interesse nele.

— Ah, mas e se ele estiver interessado em você? — questionou Miles. — Percebi que não foram poucas as vezes que ele a olhou.

— Não é possível, você está enganado — repreendeu Beth com o rosto corado.

— Acho que não. Temo que ele queira declarar seu interesse a você.

— Como é possível se estamos noivos?

— Noivos, sim, mas gostaria muito que já estivéssemos casados. — Miles a puxou para abraçá-la. — Eu teria casado com você logo depois do seu luto.

— Eu sei, mas temos que dar tempo para que minha avó se acostume com a ideia. Você tem estado muito inquieto — afirmou ela com ternura. — Por favor, Miles, tenha um pouco mais de paciência.

— Por que precisamos esperar? — indagou ele, apertando-a com mais força. — Você não é mais uma moça ingênua, Beth, será que não percebe o quanto a desejo? Não precisa se preocupar porque não farei falsas promessas para levá-la para minha cama. O contrato já foi assinado, falta apenas a bênção do padre...

— Santo Deus, Miles, quer que os espíritos deste lugar se voltem contra nós? — indagou ela em tom de brincadeira, pressionando a mão no tórax dele para evitar que fosse beijada. — Falando sério, os votos matrimoniais são muito importantes para mim. Não quero que nada estrague nosso casamento.

Beth fixou os olhos nos dele e respirou aliviada quando percebeu que aquele brilho ardente desapareceu, e ele se limitou a sorrir.

— Está bem, meu amor, sabe que não nego nada a você. — Miles beijou os dedos de Beth e foi embora.

Pensativa, Beth voltou para a sala de estar.

— O sr. Radworth já foi? — perguntou Arabella. — Ainda bem, ele estava se comportando de um jeito muito estranho. Espero que não esteja doente.

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— Tenho certeza de que não, vovó. Acho que foi culpa do vinho ruim, como ele mesmo disse.

— Acho que foi mais pelo excesso — disse Sophie sem meias palavras. — Milorde não sentiu o mesmo efeito, não é verdade?

Beth franziu o cenho. Não estava nem um pouco feliz com a maneira como a avó e Sophie tratavam lorde Darrington. Seria ótimo que ele e o amigo fossem embora logo para dar descanso a todos.

Guy percebeu a mudança assim que Miles foi embora. Apesar de não ter alterado o comportamento, ele também notara que Arabella estava mais à vontade. Apenas Beth se manteve afastada, mas talvez fosse por estar sem graça pelo comportamento do noivo.

Ele ainda analisava os eventos daquela noite quando subiu para visitar Davey. Encontrou-o sentado na cama, folheando os jornais a seu redor. Quando viu Guy entrando no quarto, soltou um grito de alívio e disse em seguida:

— Graças a Deus você está aqui, Darrington. Achei que fosse morrer de enfado.

— Você está com uma aparência bem melhor, meu amigo, e já voltou ao linguajar de antes. Como está se sentindo? — comentou Guy com um sorriso.

— Ainda sinto dores terríveis se tentar me mexer. — Davey moveu-se na cama, batendo sobre o colchão. — Sente-se aqui e conte tudo o que está acontecendo nesta casa. Você já beijou alguma das moças?

Guy disparou a rir.

— Sorte a sua estar com as costelas quebradas, Davey, caso contrário eu bateria em você pela pergunta! Claro que não aconteceu nada nesse sentido. Lady Arabella é a matriarca e nasceu para comandar. As duas netas são uma incógnita; uma ainda é garota, e a outra, viúva.

— Segundo Peters, trata-se de uma viúva muito bonita.

— É verdade, mas ela está prestes a se casar.

— E o futuro marido jantou com vocês esta noite, não foi?

— O que você quer que eu conte? — perguntou Guy, irritado. — Você já sabe de tudo.

— Que nada! Peters contou o pouco que conseguiu ouvir. A maior parte era sobre os fantasmas que andam por aqui à noite. Alguns criados juram ter ouvido choros e gritos nos jardins depois do escurecer. Acredito que tenha sido a governanta a espalhar essas lendas para manter a criadagem na cama à noite. Mas eu quero saber mais detalhes sobre a família. — Davey virou a cabeça e estreitou os olhos. — E pela sua aparência, aposto que algo o intriga.

— É... Há alguma coisa estranha por aqui.

Guy relatou tudo o que havia acontecido naquela noite e, ao final, Davey apenas meneou a cabeça.

— Para mim, o que está acontecendo é bem simples. A viúva vai se casar com um tolo. Nada de extraordinário.

— Mas ele não foi tolo a ponto de não amarrar bem o casamento — disse Guy. — Ao final do jantar, ele fez questão de me dizer que o contrato pré-nupcial já estava assinado e, mesmo que a sra. Forrester se arrependa, toda a propriedade será dele.

— E ela quer cancelar o contrato?

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— Não. Quero dizer, não sei. Não acredito que ela esteja apaixonada. Pelo que entendi, Radworth chegou a Malpass com notícias da morte do irmão da sra. Forrester, se apaixonou por ela e vem cortejando-a desde então. Acho também que a lady Arabella não morre de amores por ele. — Guy sorriu de lado antes de prosseguir:

— Imagino que será um casamento conturbado. Vi o jeito como a sra. Forrester reprimiu Radworth quando ele quis ir até a adega. Se ele tivesse insistido, garanto que ela teria chamado os outros criados para impedirem-no.

— É o cabelo vermelho — murmurou Davey. — É lindo de se olhar, mas ela fará o diabo da vida do homem com quem se casar.

Quando ficaram em silêncio, Guy reparou que Davey estava um pouco pálido e se levantou.

— Por sorte, os problemas desta casa não têm nada a ver conosco. Eu, pelo menos, não vejo a hora de partir. Com sorte, a esta hora amanhã estaremos de volta a Highridge. Durma bem, meu amigo. Volto amanhã de manhã para chamá-lo. — Guy retornou a seu quarto e ficou feliz por encontrar a lareira acesa e uma pequena cesta de lenha.

Peters havia deixado sua camisola dobrada sobre a cama, um espectro nas sombras do quarto.

Um vento forte entrava pela fresta de uma janela semiaberta, movendo as cortinas, mas não capaz de conter a fumaça do quarto. Ao observar a disposição das pedras na lareira, Guy sentiu saudade de seu quarto, reformado dez anos antes para lareiras de ferro menores e com chaminé para dar vazão à fumaça. Até mesmo a casa de caça de Davey era mais luxuosa do que aquele mausoléu.

Não estava acostumado a se recolher tão cedo. Ao colocar o casaco atrás de uma cadeira e jogar os sapatos para o canto, soube que o sono tardaria a chegar. Assim, pegou um livro qualquer da prateleira de cima da lareira e sentou-se em uma poltrona perto do fogo, trazendo uma vela mais para perto na mesinha lateral, para iluminar as páginas. Tratava-se de um dos volumes da obra Tristam Shandy, que o entreteve por uma hora.

Ouviu o ranger de uma tábua como se alguém tivesse acabado de pisar. Não eram passos rápidos de um criado circulando de um Indo a outro, mas um som mais lento e assustador. Se a intenção fosse não perturbá-lo com o barulho, então não tinham conseguido, pensou ele quando outra nuvem de fumaça se desprendeu da chaminé. Sorriu ao lembrar que a sra. Forrester acertara quando observara que ele estava acostumado a acomodações melhores.

Aquele não era o pior quarto em que já tinha ficado e jamais pensara em reclamar. Depois de mexer nas brasas, jogou mais alguns tocos e se prometeu que, quando estes se queimassem, apagaria a vela e iria para a cama. Logo o vento forte passou, e a casa caiu no silêncio de novo. O tique-taque do relógio aliado à quietude da noite embalaram Guy no sono. Acordou, de repente, e se espreguiçou.

Era melhor ir para a cama. Foi nesse instante que ouviu um ruído agudo, como se alguém tivesse gritado ao longe. Não foi um som alto, tanto que não o teria acordado caso estivesse em sono profundo. Retesou o corpo e ficou atento a qualquer outro som.

Mas o que ouviu em seguida foram passos surdos, uma porta se fechando e um murmúrio que podia ter sido o vento, vozes baixas... De repente, o som de alguém correndo. Guy sentiu um calafrio. Talvez Arabella tivesse ficado doente, ou mesmo um dos outros. Não era de sua conta, e na certa eles agradeceriam se ele não interferisse.

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Podia ter sido Davey, e tomara que Peters o tivesse acordado, mas não dava para se ter certeza de nada. Pegando a vela do quarto, ele abriu a porta e saiu para o corredor, vazio e silencioso.

O luar se infiltrava pelas diversas janelas pequenas e quadriculadas, criando sombras no chão. Se seguisse à esquerda, chegaria ao quarto de Davey e às escadas que desciam para o salão nobre; à trilha seguia para a parte mais antiga do mosteiro, até um corredor que conduzia ao restante da casa. Guy seguiu na direção do quarto de Davey. Não havia fresta de luz sob a porta e nenhum som não ser o zumbido do vento.

De súbito, sentiu um frio bater em suas costas, e teria atribuído o fato à sua imaginação se a vela não tivesse apagado. Olhou ao redor e a friagem passou, como se uma porta tivesse se aberto e se fechado em uma fração de segundo. Guy deixou a vela no chão. O luar dava conta de iluminar o caminho. Assim, seguiu tateando a parede e andando com cautela e de meias.

O único som que se ouvia era o ranger da madeira do chão. Ao chegar no fim do corredor, parou. Lembrava-se de que a sra. Forrester o tinha conduzido por ali, quando o levara a seu quarto, ou seja, ali começava a ala Tudor, onde estavam localizados os apartamentos da família. Não havia nada a fazer naquele local, mas a curiosidade de saber o que acontecia naquela parte da residência no meio da noite venceu. Ainda com muita cautela, seguiu pela passagem, olhando os recônditos iluminados pelo luar, onde estavam as portas dos quartos. Quando a série de portas terminou, ele se viu diante de uma escada. Se subisse, chegaria aos aposentos dos criados e haveria outro acesso para a cozinha.

Súbito ouviu passos, uma luz fraca iluminava o muro conforme alguém subia as escadas. A primeira reação de Guy foi se esconder. Devia ser algum criado, seguindo para os quartos no andar de cima. Entretanto os passos eram leves, o ranger da madeira do piso não tão forte, e logo uma pessoa se aproximou e quase morreu de susto quando ele lhe bloqueou o caminho.

Guy tinha a vantagem de saber que alguém se aproximava, mesmo assim se surpreendeu ao ver o rosto assustado de Beth Forrester.

— Não tenha medo — disse ele, tomando a lamparina das mãos trêmulas de Beth e levantando-a para que ela pudesse vê-lo. — Ouvi barulho e achei que poderia ajudar.

Beth tremia tanto que ele lhe segurou o braço e percebeu o quanto ela estava amedrontada através do tecido fino da manga do robe de seda de cor escura. O cabelo avermelhado estava solto e caía em cascata pelos ombros estreitos, reluzente como uma trilha em brasa.

— Acho que tenho o direito de andar por aqui, visto que estou na minha própria casa — sussurrou ela, ríspida, puxando o braço.

— Por que não chamou sua criada?

Aos poucos, Beth recuperava o controle. Guy notou que aqueles grandes olhos escuros não refletiam mais o medo de instantes antes, apesar de ela ainda estar retraída.

— Não tenho o hábito de acordar minha criada depois de ela ter se deitado, se sou perfeitamente capaz de encontrar o caminho até a cozinha.

Ela esta escondendo alguma coisa, pensou Guy. Seria outro homem? Um amante que não seu noivo? Não, provavelmente não, concluiu. Tomara que não. Tinha admirado a maneira calma como Beth lidara com a perna quebrada de Davey e, apesar da frieza com que o tratava, tivera a impressão de que ela era uma mulher honrada e honesta. Contudo, já se enganara com outras mulheres e se ferira.

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Uma vez mais, percorreu o corpo de Beth com um olhar atento. Será que uma mulher iria encontrar o amante vestindo um robe tão feio? A lã fria e macia emoldurava-lhe a cintura fina e os seios redondos, mas as mangas compridas e a gola alta a deixavam parecida com uma freira. Em um primeiro momento, ele notara uma mancha na parte de baixo da vestimenta; reparando melhor, viu que era sujeira e franziu a testa.

— Onde esteve, sra. Forrester?

— Não é da sua conta — respondeu ela com arrogância. — Por favor, devolva minha lamparina e vou guiá-lo de volta ao seu quarto.

— Eu é que devia estar escoltando milady.

Apesar de encará-lo com desdém, ela foi delicada ao responder:

— Mas eu gostaria de me assegurar que milorde voltasse para seus aposentos em segurança.

— Milady teme que eu descubra seu segredo?

Beth o encarou, e ele viu que o terror absoluto voltava a habitar as profundezas daqueles olhos escuros.

— Minha cara sra. Forrester, não fique tão assustada. Eu estava brincando — disse ele, estreitando a distância entre eles.

Guy percebeu o quanto ela estava pálida e como corria a língua pelos lábios secos. Estavam à distância de um suspiro. Foi preciso evocar todas as forças para não puxá-la para si. Os olhares se mantinham fixos, enquanto a pouca luz os envolvia. Não trocaram uma só palavra por um instante. Ela nem sequer respirava.

Céus, o que está acontecendo comigo? O pensamento reverberava na mente de Beth enquanto mantinha os olhos firmes nos de Guy. Os olhos azuis, frios e rígidos como granito a mantinham paralisada. Mesmo sem sapatos, ele era bem mais alto, remetendo a uma ave de rapina espreitando sua vítima. Apesar da tensão, ela não estava com medo. Ao contrário, sentiu um imenso desejo de acabar com a distância entre eles, e abraçada àquele corpo forte, aguardaria que ele tirasse o peso do mundo de seus ombros.

Não! Depois de um esforço extremo, conseguiu desviar o olhar. A impressão de que ambos estavam presos em uma bolha de luz era apenas uma ilusão, e o encanto tinha de ser quebrado. Era preciso se manter forte e ficar bem consciente.

— Obrigada, mas não estou assustada — disse ela depois de uma tossidela. — E também não estou com humor para brincadeiras.

Ao pegar a lamparina de volta, seus dedos roçaram na mão de Guy, e foi o suficiente para que uma faísca disparasse, levando o desejo por suas veias. Mesmo assim, esticou o braço para cima com a luz e começou a andar pelo corredor escuro. Guy a acompanhou logo atrás, sem precisar fazer muito esforço para não se distanciar. Nenhum dos dois disse nada até chegarem à porta do quarto de Guy.

— Não é aconselhável deixar velas acesas no quarto sem estar presente, lorde Darrington.

— Espero não precisar sair de novo.

— Milorde não precisava sair do quarto esta noite.

Os dois continuaram parados à porta do quarto, como se receassem se despedir.

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Mas Beth sabia que era besteira. Afinal, lorde Darington queria ser apenas civilizado enquanto estivesse em Malpass, e devia estar ansioso para voltar para o conforto de sua casa. Para ela, o quanto antes ele e o amigo retornassem a Highridge, melhor.

Pensando assim, levantou o queixo, meneou a cabeça despedindo-se e voltou correndo para seu quarto.

Capítulo Seis

Arabella foi bem direta ao cumprimentar Beth à mesa do desjejum no dia seguinte:

— Elizabeth querida, você está com ar de cansada e muito abatida.

Beth fez questão de ignorar a presença do conde, sentado à sua frente. Não estava nem um pouco interessada se ele parecia bem disposto depois de ter dormido muito bem e com um séquito de criados para barbeá-lo e vesti-lo.

— Não dormi bem, vovó.

— Acho que sei a razão.

O comentário de Darrington fez com que Beth olhasse em sua direção com o coração batendo em descompasso e a garganta seca, aguardando, que ele continuasse a falar. Em vez disso, ele a encarou por um longo minuto.

— Foi o vento — disse ele com toda a calma. — As janelas bateram durante a maior parte da noite.

O medo sufocante que ela sentia foi substituído por raiva. Ele estava fazendo troça e ainda a fitou com um olhar da mais pura inocência.

— Milady não está de acordo?

Beth forçou o riso e respondeu com a voz trêmula:

— Sim, milorde, acredito que tenha sido isso mesmo.

— Lamento que o vento tenha atrapalhado o seu sono, milorde — declarou Arabella. — Mas não imaginei que fosse afetar Beth também, pois ela mora aqui há tanto tempo que já devia estar acostumada.

— Ainda bem que não afetou todo o mundo — Beth se apressou em acrescentar. — Encontrei Peters quando descia para cá, e ele me disse que o sr. Davey teve uma noite tranqüila. — E olhando rapidamente para o conde, completou: — Acho que o dr. Compton deve liberar o sr. Davey para viajar hoje.

Sophie entrou na sala correndo, desculpando-se pelo atraso:

— Vovó, lamento por chegar tarde. Eu estava ajudando o sr. Davey a tomar o desjejum...

Beth quase cuspiu o café que tomava, tamanho foi seu espanto.

— Sophie, não era preciso, principalmente agora que Peters está lá para ajudá-lo.

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— Sei disso, Beth, mas ouvi um muito barulho quando passei pelo quarto dele. A porta estava aberta e entrei apenas para perguntar se o sr. Davey estava bem, então vi que Peters estava com dificuldades porque seu patrão tinha jogado longe a colher. — Sophie fez uma pausa, piscando. — Imagino o quanto ele está desconfortável. Ele disse que o pulso dói muito, por isso não consegue comer sozinho.

— Não devia estar doendo tanto se ele conseguiu arremessar a colher — comentou Guy, rindo.

— Creio que os ferimentos o deixaram sem paciência — disse Sophie, inocente. — Então eu me ofereci para ajudá-lo com o mingau. Ele ficou muito grato.

— Aposto que sim — murmurou Beth, ciente de que poucos homens recusariam a ajuda de uma moça bonita.

E naquela manhã em especial, Sophie estava ainda mais bela com um vestido amarelo, com os cachos castanhos presos num coque e um sorriso no rosto.

— Não faço objeção a Sophie visitar nosso hóspede — disse Arabella. — Afinal, o sr. Davey não está com nenhuma doença contagiosa, e estou certa de que a presença dela o animou. Mas insisto que não entre lá desacompanhada.

— Eu não estava mesmo, vovó — garantiu Sophie. — Peters esteve presente o tempo todo. Quero ajudar, talvez eu leia para o sr. Davey mais tarde...

— Vamos aguardar o que irá dizer o dr. Compton hoje — disse Beth.

— Não vejo por que ele faria alguma objeção — replicou Sophie. — Como vovó me deu sua permissão, voltarei para ver o sr. Davey assim que terminar o desjejum. Peters me avisará se seu patrão está apresentável, pois o sr. Davey disse que quer fazer a barba antes de me ver de novo.

Sophie continuou a fazer sua refeição, sem perceber o efeito de suas palavras em Beth.

— Parece que Davey está bem melhor hoje — comentou Guy, enquanto se servia de uma fatia de carne fria.

Beth não respondeu, pois estava mais concentrada em desejar que ambos deixassem logo o mosteiro. Já tinha problemas suficientes para ainda lidar com um leve romance entre sua irmã e um enfermo desconhecido.

Beth alcançava a adega quando Kepwith anunciou que o dr. Compton havia chegado.

— Lorde Darrington o aguardava na estrada, milady — informou Kepwith. — E já o levou para ver o sr. Davey.

— É mesmo? — indagou Beth,batendo no vestido para se livrai da poeira. — E quem deu esse direito a ele?

Kepwith olhou para Beth sem entender a reação.

— Milady sabe que o dr. Compton não faz cerimônia nesta casa, e teria ido para a enfermaria de um jeito ou de outro.

— Não é esse o problema — respondeu ela, tirando o avental e correndo escadas acima.

Quando entrou no quarto, o dr. Compton puxava o cobertor sobre as pernas do

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paciente.

— Parece que a perna está se curando muito bem — declarou o médico. — Suas costelas ainda doerão por alguns dias, mas não vejo razão para que não possa se levantar.

— Isso quer dizer que o sr. Davey poderá viajar amanhã? — indagou Beth, cheia de esperanças.

— Milady quer saber se ele pode voltar para casa? — indagou o dr. Compton. — Bem, não vejo razão por que... — Seu olhar jovial passou por Beth, e depois de uma pausa mínima, continuou: — ... ele não possa viajar em uma semana mais ou menos.

Beth se virou e percebeu Guy postado atrás dela, impassível.

— Mas, doutor, achei que tinha dito que o sr. Davey melhorara bastante — disse ela, desconfiada.

— De fato, sra. Forrester, mas é preciso ter muito cuidado com uma fratura como essa.

— Está muito inchado ainda — acrescentou Davey, olhando para Beth com rancor.

— Soube que a carruagem do conde é muito confortável — insistiu Beth. — Tenho certeza de que podemos equipá-la com vários colchões para proteger a perna dele.

— Isso está fora de questão — disse Guy. — Não vou desobedecer às ordens médicas.

— Não seria aconselhável mesmo — emendou o dr. Compton, meneando a cabeça. — Vamos esperar uma semana, depois eu volto.

— Uma semana! — gritou Beth, enfurecida.

— Não adiantaria voltar antes. O tempo é um ótimo remédio, milady! — O dr. Compton pegou a maleta. — Pode me chamar se acontecer alguma coisa fora do previsto. Caso contrário, volto em uma semana.

Despedindo-se animadamente, o dr. Compton saiu com Beth logo atrás, fechando a porta.

— Se eu fosse mais sensível, teria achado que nossa anfitriã quer nos ver pelas costas.

— Não é você, Davey, sou eu que ela quer ver longe daqui — disse Guy, sorrindo.

— Pensei que você compartilhasse desse sentimento. Não entendo, ontem mesmo dizia que queria ir embora o quanto antes.

— Ah, mas isso foi ontem.

— Bem, para mim está muito bom, ainda mais se a srta. Sophie me fizer companhia. — Davey olhou para o amigo com um brilho maroto no olhar. — Ela não se parece com um anjo?

— Ela deve ser mesmo, pois conseguiu fazer você comer mingau.

— Sim, mas você sabe, nem é tão ruim assim, especialmente quando servido pela srta. Sophie.

— Pelo visto, ela vai diverti-lo bastante — disse Guy, rindo.

— Mas isso não explica sua mudança de comportamento — insistiu Davey.

— Há um mistério aqui, Davey, estou intrigado. — Guy relatou sobre o encontro

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com Beth no corredor, naquela noite.

— Quer dizer que ela tem um amante — disse Davey, dando de ombros. — Isso não é tão fora do normal.

— Não acho que seja isso. Quando a encontrei ontem à noite, ela estava morrendo de medo. De fato, havia uns sons muito estranhos pelos corredores. E não foi só isso. Ela disse que iria colher folhas de confrei para fazer um láudano para a égua. Encontrei o cavalariço depois e soube que o animal está bem.

— Talvez ela tenha trancado o marido preso no calabouço — declarou Davey, contendo o riso. — Acho que você andou lendo muitos romances góticos, meu amigo. Talvez seja melhor aceitar que a sra. Forrester não está apaixonada pelo irresistível lorde Darrington.

— Não sou tão convencido assim — protestou Guy. — Sei que há um mistério aqui e vou até as últimas conseqüências para descobrir.

Beth logo percebeu que era a única da família que não tinha gostado do diagnóstico do médico. Arabella já dissera que estava encantada com a companhia, principalmente porque passava uma hora ou duas durante a tarde jogando gamão com Guy. Sophie também não partilhava da angústia da irmã. Não deixara de cumprir nenhuma de suas tarefas, mas passava a maior parte de seu tempo livre com o Davey, jogando cartas, montando quebra-cabeças ou lendo para ele.

Depois de dois dias agindo assim, Beth tentou convencer a irmã mais uma vez, mas com um argumento diferente. Quanto mais tempo Sophie fizesse companhia a Davey, maior seria o tempo ocioso de Guy.

— Cheguei a insinuar que ele podia ir embora e nós cuidaríamos do sr. Davey, mas ele não concordou. — Beth torceu as mãos uma na outra, aflita. — Temo que ele desconfie de alguma coisa.

— Bobagem, você está entrando em pânico por nada — respondeu Sophie, correndo o dedo sobre os livros à procura de um em especial.

— Ele anda fazendo muitas perguntas.

— Isso é apenas uma demonstração de interesse, como qualquer outro convidado. Além do mais, não precisamos nos preocupar com ele hoje. Pelo que sei, ele saiu a cavalo e só retornará na hora do jantar. — Sophie puxou um livro da estante. — Vathek. Será que o sr. Davey gostaria de um romance de Beckford?

Beth olhou para Sophie, sentindo uma mistura de graça e desespero.

— Acho que o livro não faz diferença alguma, contanto que seja você a ler.

— Não, tenho certeza de que isso não é verdade — protestou Sophie, corando de leve. — Ele... ele é um cavalheiro muito gentil, você não acha?

— Demais até. De um jeito ou de outro você terá de se ausentar do quarto dele, pois estou esperando Miles chegar esta tarde e não poderei ler para vovó, por isso pensei que você pudesse me substituir. Além disso, preciso que prepare outro láudano.

— Não podemos confiar no dr. Compton?

— Eu não ousaria. Precisamos manter nosso segredo pelo maior tempo possível. E mais, não acho que ele esteja tão ruim quanto estava, e com um tratamento cuidadoso,

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conseguiremos que ele fique bom.

— Você sabe que estou sempre disposta a ajudar onde posso. Vou descer por uma hora, antes de ler para vovó. Mas você não se oporá se eu ler para o sr. Davey depois?

Quando Beth disse que não se importaria, Sophie saiu dançando pela sala. Claro que a ideia de um romance entre Sophie e Davey era preocupante, mas era bom vê-la sorrindo de novo, apesar de toda a ansiedade com que viviam.

As coisas não melhoraram muito quando Miles Radworth mostrou que não gostou muito da ideia de que Guy e Davey ficariam em Malpass por, no mínimo, uma semana. Para sua surpresa, Beth se viu procurando amenizar o assunto.

— Você é muito doce, por isso é tão compreensiva — disse Miles, levando a mão dela aos lábios. — Não gosto de saber que esta aqui, sozinha.

— Mas não estou sozinha — protestou Beth. — Não se pode negar que o conde se entende muito bem com a vovó. Ele a leva a passear pelo jardim em dias ensolarados e a entretém muito bem durante a tarde. Até mesmo Sophie tem se provado necessária, lendo para o sr. Davey.

— Gostaria que me permitisse ficar em sua casa, pelo menos enquanto o conde estiver hospedado aqui.

— Não, Miles, principalmente porque lorde Darrington está aqui!

— Você está se baseando no meu comportamento deplorável do outro dia. Será que um dia aceitará minhas desculpas?

— Já o perdoei. Contudo, você admitiu que o ciúme fez com que perdesse a cabeça, por isso acho que é melhor que não fique aqui por muito tempo. — Beth sorriu. — Querido, se quer me agradar, por que não me leva a passear pelos jardins? Fiquei presa em casa o dia todo!

Os dois passaram horas agradáveis passeando pelos jardins do monastério, e Miles se esforçou tanto para agradar Beth que ela percebeu que a ansiedade pelo casamento vindouro estava diminuindo. Quando voltavam para a casa, encontraram lorde Darrington retornando dos estábulos.

— Ora, vejam — disse Miles, olhando para Beth de lado.

— Eu já disse que não há necessidade de ter ciúme do conde, Miles. Por favor, seja gentil... por mim.

— Serei mais do que educado. Você verá que posso ser um perfeito cavalheiro — murmurou Miles, antes de se dirigir ao conde: — Bom dia, milorde. Percebo que esteve cavalgando. Milorde se distanciou muito.

Guy parou e esperou que o casal se aproximasse.

— Dei a volta no parque, depois fui até Fentonby. Meu cavalo precisava correr, já que está comendo demais nos estábulos. Milady tem uma bela propriedade, sra. Forrester. O campo está em perfeitas condições.

— Obrigada — respondeu ela, lisonjeada. — Acompanho de perto o trabalho dos meus empregados para manter tudo em ordem. Meu pai me ensinou sobre o valor e a

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importância de o dono gerir sua propriedade.

— Mas o maior valor de Malpass é o mosteiro — observou Miles.

— É verdade, a construção é apenas uma pequena parte de seu passado glorioso, o valor maior está nas peças de antiguidade. Uma gema perfeita e de valor inestimável.

Beth riu.

— É isso o que acha? Por mais que eu goste de ouvir elogios, confesso que no inverno desejaria estar numa casa mais moderna, com janelas apropriadas e quartos confortáveis e sem tantas correntes de ar! Qual a sua preferência, lorde Darrington?

— Wylderbeck, minha própria casa, construída pelo meu avô há menos de cinqüenta anos; e já foi reformada — disse Guy, acrescentando: — É uma pena, mas não temos nem sinal de antiguidades.

Beth recuou um pouco, permitindo que os dois cavalheiros conversassem sem interrupções. Sentiu que a ansiedade a consumia. Tinha garantido a Miles que ele não precisava ter ciúme de Guy, mas agora percebia que aquilo não era verdade.

Quando criança, idealizara um homem como Guy, alto, bonito, que a levantasse no colo, mas isso nunca acontecera. Ao contrário, casara-se com Joseph Forrester, um homem estável e alguns anos mais velho.

O casamento não fora de todo infeliz, mas Beth não podia fingir que sentira pelo marido uma paixão devastadora que a faria desistir do mundo por amor. Na verdade, acreditava que sentimento assim só existia nos romances.

Suspirou e desviou o olhar dos dois homens. Estava noiva de Miles Radworth, um homem gentil, leal, que fora extremamente paciente por tê-la cortejado por mais de um ano. Além disso, evitaria a solidão depois da morte da avó e do casamento de Sophie, que aconteceria uma hora ou outra.

Aceitara o pedido de casamento de Miles Radworth por vontade própria, por isso não iria reclamar. Para recompensá-lo pelo bom comportamento com Guy, Beth o convidou para jantar, mas ele recusou.

— Preciso acordar cedo amanhã. Irei a Staffordshire para a venda do Grandy Hall.

— Essa não é a casa de Prudham? — indagou Guy. — Soube que ele estava falido.

— Isso mesmo. Ele precisa vender tudo para pagar suas dívidas. Pensei em ir dar uma olhada. Acredito que ele tenha uma bela coleção de porcelana.

— Miles coleciona objetos belos e raros — explicou Beth, sorrindo.

— Essa é a razão de estar me casando com você, meu amor. — Miles beijou a mão de Beth.

Beth corou e puxou a mão. Por alguma razão que não saberia explicar, sentia-se muito desconfortável com aquelas demonstrações de afeto na frente de Guy. Temendo que Miles se ofendesse, passou a mão no braço dele.

— Permitam-me levá-los até lady Arabella. Sophie está lendo para ela na sala de estar, e tenho certeza de que ela gostaria de tomar uma taça de vinho com os cavalheiros...

Beth já tinha visto um malabarista uma vez em Mayfair, e a imagem voltou a sua

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mente naqueles dias. Ele se concentrava em manter os dados voando, nunca os deixando cair ou chocarem-se. Sentia-se como se estivesse jogando com os pedaços de sua vida, tomando conta da avó, desestimulando Sophie a passar muito tempo com o sr. Davey, entretendo Guy ao mesmo tempo que não deixava Miles se sentir negligenciado. Como se não bastasse, havia ainda as visitas noturnas aos porões, de onde voltava pouco antes do amanhecer para o quarto, dormindo não mais do que poucas horas antes que recomeçasse a rotina diária.

Estava tão exausta que dormiu sobre o livro enquanto lia para Arabella.

— Minha querida criança, o que está acontecendo com você? indagou Arabella, batendo com a bengala no chão. — Acho que seria prudente se o dr. Compton a examinasse.

— Estou ótima, vovó — assegurou Beth. — Só estou um pouco cansada, nada de mais.

— Cansada! — exclamou Arabella. — Você está muito abatida, menina. As olheiras estão ainda mais acentuadas pela sua palidez, mas mesmo assim... Toque a sineta, Beth, vou pedir a Kepwith que mande chamar o médico.

— Não há necessidade para tanto, vovó. O doutor virá depois de amanhã para ver o sr. Davey, e posso conversar com ele, se a senhora fizer questão. Acredito que o sr. Davey já está curado para voltar para casa, e isso vai me tirar muito trabalho das costas. Tenho certeza de que descansarei mais quando os cavalheiros forem embora de Malpass.

— Não entendo como o sr. Davey e lorde Darrington podem trazer tanto trabalho para você — comentou Arabella, franzindo a testa. — O sr. Davey tem um valete, e o conde é muito amável.

— Ele pode ser assim, vovó, mas não deixa de ser um convidado, e eu não estaria desempenhando bem minhas funções se não cuidasse dele também.

Arabella a encarou com olhos semicerrados.

— Por acaso ele tentou fazer amor com você? Não precisa ficar tão corada, querida, pelo que você e Sophie leram para mim no Intelligencer, a fama do conde não é das melhores.

— Sempre concordamos que não devemos dar ouvidos às fofocas maldosas, e sim ignorá-las — retorquiu Beth, sabendo que estava mais vermelha ainda. — Se por acaso ele tivesse tentado flertar comigo, sou perfeitamente capaz de desencorajá-lo.

— Humm. No meu tempo, entreter um cavalheiro tão charmoso jamais seria uma tarefa trabalhosa.

Beth se conteve e não disse que teria sido muito mais fácil entreter Guy se ele não fosse tão charmoso. Ele tentara deixá-la à vontade, mas ela estava sempre segurando a língua.

Tinha esperança de depois do jantar poder deixar Sophie e a avó fazendo sala para Guy até a ceia, mas o conde pediu para que ela o levasse para conhecer as ruínas do mosteiro.

— Davey e eu tínhamos visitado Mount Grace no dia do acidente — explicou ele. — Acredito que as ruínas de Malpass devam se estender até o muro dos jardins, não é?

— Você encontrará partes das paredes da antiga igreja por todo lado, se souber procurar — disse Arabella.

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— Costumávamos brincar nessas ruínas quando éramos mais jovens — acrescentou Sophie. — Nós inventávamos histórias fabulosas de cavaleiros e dragões.

— Está uma tarde bonita — disse Guy, olhando pela janela. — Talvez a sra. Forrester seja minha guia. Eu a protegerei dos dragões ferozes.

Apesar da súbita atração que sentiu quando ele sorriu, Beth estava por declinar do convite quando pensou um pouco melhor e decidiu que, se não o acompanhasse Guy, seria capaz de ir explorar por conta própria. Só Deus sabia o que ele poderia encontrar.

— Está certo, milorde,se minha avó consentir...

— Ah, leve-a logo — declarou Arabella, acenando a mão para os dois. — Talvez o ar puro traga um pouco de cor ao rosto dela.

E assim, em uma tarde de temperatura amena de setembro, Beth se viu passeando pelos arredores com Guy. Como estava uma brisa fria, ela abotoou a peliça; tinha decidido não levar a sombrinha porque o sol da tarde já estava fraco.

— Acreditamos que o mosteiro de fato deve ter sido onde fica o jardim amurado — disse Beth conforme andavam pelos canteiros de flores. — O que restou da igreja está perto da cerca viva.

— Naquela floresta? — Guy apontou para um pequeno portão do antigo mosteiro. — Eu já tinha vindo aqui, e o portão estava trancado.

— Eu tenho a chave — disse Beth, tirando do bolso uma grande chave de ferro e enfiando-a na fechadura.

Depois do barulho característico e um ligeiro empurrão, o portão se abriu.

— É necessário manter o portão fechado? — perguntou Guy, ultrapassando-o.

— Hoje em dia talvez não, mas quando éramos menores vovó insistia que o portão estivesse fechado, porque a selva, que margeia um dos lados do rio, esta crescida demais com corredores escondidos que levam para os cômodos subterrâneos. Nossa mãe morreu quando éramos muito pequenas, e minha avo ficou responsável por nós.

— Sua irmã disse que vocês costumavam brincar aqui.

— Depois que descobrimos onde a chave ficava escondida, vínhamos aqui sempre que nos dava vontade. — Depois que passaram o cinturão de árvores, Beth abriu o braço, mostrando a paisagem. — Que criança não sonharia que este é um parque de contos de fada?

Logo à frente, estavam as ruínas dos muros da antiga igreja. A nave central tinha sido preservada, e a janela em arco da parede do lado oeste ainda se erguia até o céu.

— A maior parte das pedras foi levada daqui para construir a extensão na qual moramos hoje. O que sobrou foi o que não foi preciso e continua no mesmo lugar. Vamos avançar?

Beth seguiu para o que restou do lado sul da construção, passando pelas pilhas de pedras. Mostrou ao conde as ruínas nas quais teria sido o lugar do coral, o presbitério e o altar, que atualmente não era nada mais do que um quadrado cheio de grama.

— Quando criança, chamávamos este lugar de nosso castelo — disse ela, tomada por memórias queridas. — Ou deque de uma grande embarcação ou, até mesmo, uma caverna para uma floresta encantada. Tivemos tantas aventuras por aqui! Que pena que tivemos de crescer.

— Milady ainda sente falta de aventura?

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Beth inclinou a cabeça para o lado, considerando a pergunta.

— Era tudo mais simples naquela época. Havia finais felizes para todos.

— E agora?

Beth sabia que Guy estava bem atrás de si. Podia sentir sua presença, pois seu coração batia descompassado. Virou-se devagar. Ele estava tão próximo que foi preciso levantar a cabeça para fitá-lo nos olhos. Tentou falar baixo, mais para si mesma do que para ele:

— Chegou a hora de acabar com essas lembranças infantis e cumprir nossas tarefas.

Guy pegou um dos cachos avermelhados que caíam pelos ombros dela.

— Essa parte me parece muito enfadonha — disse ele, enrolando o cacho no dedo.

A proximidade era tanta que Beth estava com dificuldade para respirar, tamanho o magnetismo que havia entre os dois. Chegou inclusive a ver de perto a costura benfeita do paletó de Guy. Apesar de estar com os olhos fixos nos dele, sentia-se totalmente embriagada pelo perfume másculo e pelo carinho no cacho de cabelo.

— Eu... Humm... Já não tenho mais idade para aventuras.

Guy abriu um sorriso, surpreendendo-a pela força de seu charme.

— Meu irmão Nick não concordaria com isso.

— Então seu irmão deve ser um homem perigoso.

Uma força maior impedia que Beth desviasse o olhar do rosto dele. Sua vontade era de ficar imóvel, desejando que ele também desviasse a atenção dela. Qualquer palavra ou movimento errado quebraria a beleza daquele momento. A sensação era divina e atingia seu corpo inteiro. Só de estar ali parada, olhando para aquele homem, sentia-se muito mais viva do que nunca. Se possível fosse, ficaria ali para sempre.

Foi aquele momento que decidiu que aquilo tinha de terminar. Conhecia a reputação dele com as mulheres, mas estava determinada a não permitir que ele a seduzisse. Não só sua felicidade estava em perigo, mas tudo o que amava. No entanto, olhar para o outro lado foi como se lhe arrancassem o coração.

— Devemos voltar. — Beth estava com a garganta seca, e as palavras pareceram arranhá-la.

O arrependimento a feriu como uma adaga afiada, e o golpe final veio quando Guy soltou-lhe a mecha de cabelo.

— Existe alguma coisa a ser vista ainda? É possível descer aos cômodos subterrâneos?

Ainda abalada pelas sensações arrebatadoras, Beth procurou se concentrar em responder:

— Deus do céu, não! Desmoronaram todos.

— Suponho que isso não tenha acontecido com o andar de baixo da casa.

— Ah, não, mas só os usamos para armazenar coisas. Não há nada de interessante ali. — Beth sentiu o corpo estremecer com a insinuação. — Está esfriando. Vamos voltar para a casa?

— Como quiser.

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Os dois retornaram das ruínas em silêncio, por entre as árvores. Uma brisa leve batia nas folhas, uma ou outra caía como se bailasse até o chão, lembrando que o verão acabara. Quando se aproximavam do jardim da casa, Beth sentiu um frio no coração. Alguma coisa tinha mudado. Ela mudara.

Guy lhe deu o braço, onde ela apoiou a mão, imaginando como tudo podia ter mudado em tão pouco tempo.

Não haviam dito nada de especial, ele não a beijara, nem sequer tinham se tocado, porém Beth sabia que naqueles breves momentos, ao cair da tarde, fora infiel a Miles Radworth.

Guy franziu o cenho quando percebeu que Beth falou muito pouco durante a ceia. Engraçado, quando começara a pensar nela como Beth, e não como sra. Forrester? Contanto que não tivesse se entregado quando estavam visitando as ruínas do monastério

Ela seguira, prestando a atenção a desenhos antigos em um pilar, apontando para uma gárgula ainda inteira sobre o muro. Ela se parecia com uma luz azulada, algo etéreo, presente onde quer que olhasse, e por essa razão, ele prendera no dedo um daqueles ca-chos avermelhados, como se pudesse mantê-la em um lugar só. Será que ela havia percebido o quanto quisera beijá-la? Não, tinha sido muito mais que isso. Desejava tê-la possuído inteira. Mas não bastava apenas o seu desejo, ela não tinha demonstrado nenhum sinal de desejar o mesmo. Talvez tivesse sucumbido aos seus encantos durante o breve instante em que ficaram presos pelo olhar, mas depois, tinha certeza de que viriam as lágrimas, recriminações... Beth estava noiva de Miles, e era o mesmo que se estivesse casada. Sim, já se ligara a mulheres casadas, mas eram sempre elas que o perseguiam. Não tinha por hábito ficar entre um marido e sua esposa.

Sentira-se feliz por ter feito aquele passeio vespertino. Depois visitara Davey e fora para o quarto e se jogara na cama, com as mãos entrelaçadas na nuca. Maldição, Beth tinha se embrenhado em seu inconsciente. Havia quanto tempo que algo assim não acontecia? Nove, dez anos? E tinha de ser algo tão impossível de se obter como seu primeiro e desastroso caso de amor.

A cera acumulada no castiçal ao lado da cama informava que estava ficando tarde. Guy começava a se despir quando ouviu ruídos furtivos no corredor. Ainda estava longe de resolver o mistério daquele lugar, mas já não se importava tanto em descobrir alguma coisa. Tudo o que queria era ir embora. Davey já estava recuperando e, se tudo corresse bem, em dois dias o dr. Compton o liberaria para viajar, e assim que possível, partiriam do mosteiro de Malpass, deixando para trás todos os seus mistérios.

Capítulo Sete

Beth não sabia definir se estava aliviada ou triste quando viu Guy saindo cedo a

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cavalo na manhã seguinte. Kepwith tinha dito que o conde tomara café sozinho em horário inoportuno e que instruíra para que não o esperassem para o jantar.

Beth se ocupara com as tarefas domésticas e surpreendeu Sophie quando ela sugeriu que Davey fosse levado para a sala de estar, a fim de ouvi-la tocar piano. Arabella tinha se oferecido para ser a dama de companhia. Enquanto isso, Beth se entregara ao trabalho. Mesmo assim não conseguia parar de sonhar com a tarde ensolarada que passara com Guy nas ruínas de Malpass. Foi preciso um grande esforço para ser afetuosa ao cumprimentar Miles Radworth.

— Como foi sua viagem para Staffordshire?

— Trouxe algumas peças de porcelana, mas nada de mais. — Inclinando a cabeça, ele indagou: — Estou ouvindo música?

— Sim. Sophie está tocando para o sr. Davey na sala de estar. Vamos até lá?

— Não, prefiro não dividir você com ninguém. Preciso lhe falar sobre seu convidado.

— O sr. Davey?

— Não, lorde Darrington.

— Ah! — Beth arqueou as sobrancelhas.

Miles a pegou pelo braço e a conduziu para a biblioteca.

— Você bem sabe que nunca gostei que ele se hospedasse aqui, por não haver outro homem para protegê-la.

— Estou ciente da reputação do conde, Miles, e sou capaz de reagir a possíveis investidas. Não que ele tenha feito alguma, o que não é nada lisonjeiro para mim. Você não acha?

Miles franziu o cenho e fechou a porta da biblioteca.

— Não é hora para leviandades, Elizabeth. Se Darrington não tentou nada com você é porque sabe que teria de responder a mim. Eu não deixaria que se iludisse sobre seu convidado.

Beth seguiu até um sofá e se deixou cair, com vontade de dizer a Miles que guardasse seus conselhos para si.

— Isso é mesmo necessário? — indagou ela, procurando manter o tom de voz inalterado. — Tenho esperanças de que ele parta em alguns dias.

— Que boa notícia. Sinto-me ofendido por um homem de tão má reputação se hospedar em sua casa.

— Ele sabe ser agradável e se esforça na presença de Sophie e de minha avó, mas não demonstrou ter interesse em flertar com nenhuma de nós...

— Não é só isso. — Miles começou a andar pela sala, como se estivesse procurando a melhor maneira de lidar com um assunto nada agradável. — Esse sujeito é um traidor.

Beth o encarou, surpresa.

— Trata-se de uma história antiga, e talvez você não conheça. Quando fui a Granby, conheci uma pessoa que passa bastante tempo na cidade e se lembra bem do escândalo. Darrington passava segredos do governo para a França.

— Não acredito nisso! — exclamou Beth por instinto.

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Era muito mais fácil acreditar que Guy era um libertino do que um traidor. Afinal de contas, tinha sentido na pele o charme do conde, e apesar de ter pouca experiência, podia entender um homem que se deixava levar pela luxúria.

— Claro que o caso foi abafado — continuou Miles. — Nunca se provou nada, e Darrington está relacionado com as famílias mais influentes da região. Ele tinha uma posição importante no governo, mas foi forçado a desistir de tudo quando sua reputação foi maculada. Qualquer homem que traia seu próprio país é um patife ordinário, Beth! É melhor se distanciar dele, principalmente quando estamos nos empenhando em evitar um escândalo na sua família...

— É verdade — disse ela rápido. — Já concordamos que não vamos discutir esse assunto.

— Depois que estivermos casados, querida, nunca mais direi uma palavra de recriminação.

Beth o encarou, intrigada. Não gostara da insinuação. Percebendo a reação dela, Miles logo emendou:

— Desculpe-me se a ofendi, Elizabeth, mas minha intenção era apenas alertá-la. — Miles soltou um risinho. — Lorde Darrington tem uma reputação temível com o sexo frágil, e confesso que tenho um pouco de ciúme.

— Eu já disse que não há razão para tamanha ansiedade — disse ela, procurando controlar o tom de voz e levantou-se, terminando o tête-à-tête. — Não creio que queira que eu me preocupe com o conde. O sr. Davey, amigo dele, está se recuperando, e tenho fé de que o dr. Compton irá dar alta para viajar amanhã. Depois disso, encerram-se nossas relações com o conde. Vamos para a sala de estar junto com os outros?

Beth colocou a discussão com Miles em segundo plano. Ao entrar na sala, todos se cumprimentaram, a saúde do sr. Davey foi assunto por um breve momento. Quando os ânimos se acalmaram e Sophie voltou a tocar, Beth recapitulou tudo o que Miles dissera sobre Guy. Não queria acreditar no que ouvira, mas o próprio conde tinha admitido que visitava pouco Londres ultimamente, como sua experiência com os homens era limitada, talvez seu julgamento também fosse tendencioso. Guy podia muito bem ser um impostor esperto e inescrupuloso

Não tem importância, pensou decidida. Isso não significa nada para mim. Em poucos dias, ele irá embora, e tudo voltará a ser como antes.

Beth se levantou cedo na manhã seguinte. Quando se encontrou com Arabella e Sophie para tomar o desjejum, avisou que o dr. Compton já tinha visitado seu paciente.

— Segundo ele, o sr. Davey já está apto a viajar amanhã de manhã. — E acrescentou, com malícia: — Parece que ele não piorou depois de ter ouvido você tocar piano, Sophie.

— Mas, na certa, seria melhor não viajar tão cedo. — Sophie lançou um olhar suplicante para a avó. — Ser trazido para a sala com todo o cuidado não é o mesmo que ser transportado por quilômetros numa carruagem sacolejante.

— A senhorita duvida do conforto da minha carruagem, srta. Sophie?

Beth olhou para trás e viu Guy parado à porta. Ele havia acabado de chegar de uma cavalgada e ostentava uma aura de saúde e virilidade ao se aproximar da mesa. Mais uma vez, Beth sentiu aquele mesmo frisson percorrer-lhe o corpo, evidenciando a

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atração que já a dominava, mas logo se controlou, tentando se convencer de que o arrepio que lhe levantava a pele não tinha nada a ver com Guy, mas sim com um breve mal-estar. Aliás, ele nem sequer olhava para ela, mas sorria para Sophie.

— Eu juro que estou humilhado — brincou ele.

Sophie tinha adotado o conde como um amigo com muita facilidade, pensou Beth com pesar, e agora respondia à brincadeira com apenas um aceno de mão.

— Tenho certeza de que a carruagem de milorde é muito confortável — declarou Arabella.

— Sim, mas...

— Não podemos abusar de sua hospitalidade, srta. Sophie — interrompeu-a Guy. — As senhoras foram muito gentis, mas Davey e eu precisamos voltar a Highridge amanhã. Há uma série de assuntos que têm de ser cuidados e que ficaram em suspenso por causa do acidente.

— Posso imaginar — disse Sophie, meneando a cabeça.

— Providenciaremos travesseiros e cobertores para apoiar a perna do sr. Davey — afirmou Beth, notando a ansiedade da irmã.

— Obrigado.

Beth tentou ignorar aquele sorriso, forçando-se a acreditar que não era sincero.

— Talvez a srta. Sophie queira acompanhar os preparativos para o conforto de Davey — continuou ele.

A sugestão foi aprovada de imediato. E quando se decidiu trazer Davey para a sala de novo, Beth soube que não contaria mais com a ajuda de Sophie durante o restante do dia. Contudo, isso não a preocupou, pois sabia que a irmã e Guy se encarregariam de entreter Davey e Arabella, assim teria chance de tratar de seus assuntos sem ser interrompida.

Guy devia estar feliz, pois tinha feito o possível para evitar Beth Forrester e, até então, tivera sucesso. Com a cavalgada do dia anterior, conseguira evitá-la e seu encantamento. Naquele dia, trocara apenas algumas palavras com ela durante o desjejum. Conversou com o dr. Compton assim que o viu, informando-o de que estava ansioso para levar o amigo para casa o quanto antes. A alta foi dada e já estava tudo arrumado para partirem durante a manhã.

Naquele momento, sentia-se animado em um jogo de cartas com Davey e Sophie, na sala. Arabella cochilava na cadeira, e Beth tinha se desculpado, alegando ter trabalho a fazer.

Precisava aturar apenas mais um jantar e ceia na companhia dela, pensou ele. Aturar? Estava sendo injusto, essa não era a maneira correta de descrever como se sentia na presença de Beth. Não, a companhia dela não era um martírio, mas a falta que faria no futuro, sim.

Depois de acompanhar Davey sendo levado para o quarto com todo o cuidado e deixando-o nas mãos de seu valete, Guy se trocou, vestindo um casaco de cetim e

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culotes para o jantar, mas não estava com pressa de descer. Beth não se mostrava muito ansiosa por sua companhia desde o passeio nas ruínas, e ele também não, decidindo que seria melhor para os dois se encontrarem o mínimo possível.

Sendo assim, decidiu permanecer no quarto até a presumida hora do jantar.

O solado de seu sapato não fazia barulho sobre as tábuas nem na escada. Assim, sua chegada não foi percebida pelas duas pessoas que conversavam no hall.

Beth e Kepwith estavam um pouco afastados do pé da escada, conversando seriamente. Os dois falavam baixo, mas as paredes de pedra ecoavam, facilitando que Guy os ouvisse.

— Ele está muito agitado, madame — dizia Kepwith, com uma ansiedade inusitada na voz monótona. — Acho que ele não deve ficar sozinho. Talvez a srta. Sophie...

— Não! — exclamou Beth com ênfase. — Não devemos preocupar Sophie com isso. Eu mesma descerei até lá logo depois do jantar.

— Acho que seria prudente me deixar chamar o dr. Compton, milady.

— É o que farei caso seja necessário, mas não creio que ele esteja tão ruim. Deixe as chaves para mim, e eu... — Beth parou de falar ao notar que havia alguém ali e o encarou.

Deus do céu, o que eu fiz para merecer um olhar desses?

Entretanto foi um relance tão rápido, que Guy questionou se tinha visto pavor nos olhos dela ou não. Mas não seria cortês se perguntasse alguma coisa.

— Sinto muito, mas não pude deixar de ouvir... Davey teve uma recaída? Ele estava se sentindo bem quando levado de volta para o quarto...

— Não, não, eu estava apenas assegurando a Kepwith que ele está bem. — E virando-se para Kepwith, continuou: — Pode ir agora e anuncie a ceia o quanto antes, por favor.

Depois de se curvar, Kepwith saiu da sala, e Beth o observou em silêncio, até que o badalo do relógio chamou-lhe a atenção.

— Acho que serei a última a chegar para a ceia.

Guy já a conhecia o suficiente para saber que aquele sorriso era formal, por isso portou-se da mesma forma, oferecendo-lhe o braço.

— Vamos descer juntos, milady? Assim enfrentaremos a braveza de lady Arabella juntos.

Guy observou Beth durante a ceia. Ela parecia tranqüila, mas apenas brincou distraída com a comida, deixando uma suspeita de querer que a refeição terminasse logo. Entretanto, não foi surpresa alguma quando ele voltou para a sala de estar, depois de ter brevemente apreciado um conhaque sozinho, que encontrasse apenas Sophie e a avó esperando por ele. As duas jogavam gamão, e Guy declinou do convite, se desculpou, dizendo que queria escrever algumas cartas, retirou-se e foi direto para o quarto de Davey. Encontrou o amigo sonolento depois de uma boa refeição e uma garrafa de vinho.

— A sra. Forrester passou por aqui? — perguntou Guy sem preâmbulos.

— Não, só hoje de manhã quando o dr. Compton me visitou — respondeu Davey, bocejando.

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— Você está mesmo me dizendo a verdade?

— Claro que sim. Por que eu mentiria?

— Sua perna não está doendo? Ou talvez as costelas estejam incomodando depois de ter sido levado de maca para baixo e para cima?

— Nada fora do normal — respondeu Davey. — Na verdade, eu bem que gostaria de ser levado de maca para baixo, como você mesmo disse, para aproveitar a ceia com vocês, contanto que o dr. Compton não me ouça. Segundo ele, posso descer para a sala de estar se prometer que vou descansar depois para me preparar para a nossa viagem de amanhã. — Ele respirou fundo e colocou a mão nas costelas. — Sabe de uma coisa, Guy? Por mais que eu queira voltar a Highridge, sei que vou sentir falta da companhia daqui.

— Sem dúvida, você se refere à companhia de certa moça.

Davey sorriu com uma expressão marota e corou.

— A srta. Sophie é um anjo, não é? Tão delicada, atenciosa...

— Tome tenência, Davey — repreendeu-o Guy. — Ela é muito jovem.

— Ela tem 18 anos. Devo ir devagar, mas estou ansioso. Acho que ela gosta de mim também. Fico imaginando se minha irmã vai cuidar de mim. Se for assim, Sophie poderá me visitar...

Guy começou a rir e deu um tapinha no ombro do amigo.

— Escreva e peça a ela, depois que estiver a salvo em Highridge! Por ora, você precisa descansar, meu amigo. Teremos uma longa viagem amanhã.

Tendo se assegurado de que partiriam mesmo, Guy saiu do quarto, mas outras questões surgiram conforme voltava para os aposentos. Se Kepwith não estava se referindo a Davey na conversa que ouvira, então falava sobre quem? Podiam estar se referindo a um criado, mas se fosse o caso, por que Beth fizera o possível para que ele acreditasse que se referiam a Davey? Guy coçou o queixo. Ela teria dito diretamente e não precisaria ter pedido as chaves.

De súbito, lembrou-se da noite em que Miles Radworth pedira mais vinho. Beth se descontrolara a fim de garantir que ele não descesse aos porões. Recomeçou a andar de novo, saiu do quarto e seguiu até as passagens curvas que levavam às escadas dos fun-dos, exatamente onde encontrara Beth algumas noites atrás.

Não havia ninguém à vista, e o barulho das louças e vozes garantiam que os criados estavam ocupados. Mesmo assim, ele aguardou mais alguns minutos antes de começar a descer as escadas. Por mais estranho que pudesse parecer, pois não tinha nada a ver com aquela família, estava determinado a desvendar o mistério. Desceu no escuro até os aposentos dos criados, que se localizavam abaixo da casa principal, iluminados por pequenas janelas na altura do chão da cozinha e da sala dos empregados. Não havia nenhuma luz natural na passagem, apenas um lampião preso à parede. Demorou um pouco para que os olhos de Guy se acostumassem à penumbra. Havia diversas passagens com alguma iluminação vinda dos quartos de portas abertas. Não havia ninguém por perto, mas o barulho de panelas e conversas ainda podia ser ouvido.

Encontrou um armário, iluminado por uma lamparina, no qual havia outras luminárias e velas dispostas em ordem, em uma das prateleiras. Depois de acender a vela, afastou-se de perto da cozinha, seguindo até uma porta debaixo da escada que levaria à parte mais antiga da casa. Encontrou uma passagem de pedras e concluiu que a porta que avistou seria um lugar perfeito para uma adega. Se fosse assim, estaria

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trancada, e a chave estaria com Kepwith ou com Beth. Já que tinha se adiantado tanto, nada mais natural que tentasse abrir a porta, que, para sua surpresa, abriu-se facilmente.

Guy entrou sorrateiro e fechou a porta. Uma rápida olhada ao redor comprovou que estava certo. Encontrava-se dentro de uma cripta enorme de pedra, as paredes estavam repletas de prateleiras com vinho de cima abaixo. As últimas prateleiras estavam acinzentadas de sujeira. Na mesma hora, lembrou-se de Beth saindo dali, batendo nas saias para limpá-la. Havia várias pegadas no chão, indicando que Kepwith tinha feito inúmeras viagens até ali para pegar vinho para servir. Conforme se distanciava da porta, notou outro tipo de pegadas no chão.

As prateleiras de vinho tinham terminado, e Guy se viu andando entre baús e caixas cuidadosamente empilhadas, e algumas mobílias de madeira não mais necessárias na casa. Quando içou a lanterna, erguendo o braço, viu uma pesada porta de madeira em uma parede de pedra diante de si. Com todo o cuidado, tentou girar a maçaneta, que se movimentou com facilidade, indicando que tinha bastante óleo nas dobradiças.

Ele abriu bem pouco a porta e tentou ouvir alguma coisa. A alguns metros dali, escutou o murmúrio de vozes e um grunhido mais alto. Com todo o cuidado, empurrou a porta e se viu dentro de outra cripta. Só que essa parecia ser usada como estábulo, pois havia baias separadas por madeiras que iam do chão até metade da parede. Não muito distante, uma das baias estava iluminada. Guy apagou sua vela, fechou a porta e andou com cautela, parando ao ouvir a voz de Beth:

— Shh, meu amor. Tome isso, que vai lhe ajudar.

Guy deu mais alguns passos e viu uma pequena cama, iluminada por um lampião pendurado em um gancho da parede. Beth estava sentada na ponta da cama baixa de madeira, na qual havia uma pessoa franzina e barbuda recostada em travesseiros brancos. Guy estava fora do círculo de luz, por isso não podia ser visto.

Ele viu Beth levar uma xícara até os lábios do homem, limpando-Ihe a boca em seguida, com todo o carinho. Quando parou, o homem olhou para cima e notou a presença de Guy nas sombras. Beth percebeu o estado de alerta e levantou-se em um pulo.

— O que está fazendo aqui? — indagou ela, postando-se entre Guy e o homem na cama.

— Essa é a explicação para suas andanças noturnas — murmurou ele, ignorando a pergunta, entrando totalmente no campo de visão dela.

— Quem está aí, Beth? — perguntou o estranho, inquieto na cama. — Você o conhece?

— Não vai nos apresentar? — indagou Guy, erguendo as sobrancelhas.

— Por favor...

Mesmo com a pouca luz, Guy percebeu o olhar de súplica de Beth.

— Por favor, vá embora e esqueça o que viu aqui.

— Beth, quem está aí? — perguntou o homem acamado.

Guy deu um passo para o lado para poder ser visto por ele também.

— Sou o conde de Darrington — apresentou-se. — E quem é você?

— Simon Wakeford, irmão de Beth — respondeu o enfermo, apoiando-se em um dos cotovelos.

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— Pensei que estivesse morto! — exclamou Guy, descrente.

— E é o que vai acontecer se me descobrirem aqui.

Capítulo Oito

Beth entrelaçou as mãos e apertou-as até as juntas dos dedos ficarem brancas. Faria qualquer coisa para evitar aquele encontro. Por que não tinha trancado as portas por onde passara?

— Ah, já sei — disse Simon, deixando-se cair no travesseiro de novo. — Você é um dos nossos convidados. Imagino que tenha sido seu amigo a quebrar a perna, certo?

— Isso mesmo. — Guy esboçou um sorriso. — Agora entendo por que milady não quer que eu continue sendo hóspede da casa.

Ele mantinha o olhar fixo nela, mas por sua expressão era difícil de distinguir se estava brincando ou com pena. E Beth não queria encará-lo para descobrir. Sentia-se enjoada de tão ansiosa. Não sabia como lidar com a situação. Mas foi Simon que verbalizou o que ela queria ter perguntado:

— O que pretende fazer agora?

— Não sei. Ainda não entendi direito o que acabei de descobrir.

Em uma calma que irritou Beth, Guy puxou um banquinho de três pés e se sentou.

— Talvez um de vocês possa me explicar.

— Como saberemos se podemos confiar em você? — desafiou

— Não saberão, mas não vou sair daqui antes de ouvir a história inteira, a não ser que me matem para me silenciar.

— Não brinque com uma coisa tão séria — pediu Beth, acenando com a mão.

Fez-se um pesado silêncio durante alguns minutos.

— Não temos saída, Beth.

Ela olhou para o irmão com o coração apertado de vê-lo com a aparência tão abatida e torturada. Embora relutante, meneou a cabeça e dirigiu-se a Guy:

— Simon é acusado de um assassinato que não cometeu. — Beth lançou um olhar desafiador a Guy, que permaneceu em silêncio com uma expressão de duvida no rosto. — Ele estava em Portsmouth, voltando de uma viagem ao continente, e foi ajudar um francês, cuja esposa estava sendo assaltada. Um dos bandidos estava ferido e plantou um colar na bolsa de Simon antes de morrer. Depois as vítimas embarcaram para a França, e ele não tem ninguém para comprovar sua história.

— Não há jeito de encontrá-los de novo? — indagou o Guy.

— Não. — Simon meneou a cabeça. — Eu tinha o nome dele apenas. Depois que fugi, tentei encontrá-los na França, mas...

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— Você foi para a França? — indagou Guy, levantando a mão. — Pensei que tivesse chegado aqui há pouco.

— Quando fui acusado de assassinato, achei que seria mais seguro sair da Inglaterra. — Simon puxou a coberta com a mão franzina. — Houve um motim em Portsmouth, e a prisão foi invadida. Fugi com alguns outros e peguei um navio para a França, mas ele afundou.

— Simon se feriu tentando chegar à costa francesa. Ele não foi cuidado propriamente... até agora — acrescentou Beth, acariciando a mão de Simon. — Tenho esperança de que a maior parte dos ferimentos cicatrizou. — E olhando para o conde, continuou: — Ele ainda está com o tornozelo inchado e uma febre recorrente.

— Ah, isso explica as folhas de confrei.

Os dois se prenderam pelo olhar.

— O que você fez para encontrar o casal francês? O que descobriu sobre eles?

— Apenas os nomes — respondeu Simon. — Lembro que o marido era bem mais velho que a mulher. Ela era jovem e bonita.

Guy fixou o olhar em Beth de novo.

— Qual é o papel de Miles Radworth nisso tudo?

— Ele estava na mesma embarcação que trouxe Simon de volta de sua viagem ao continente. Eles se conheceram e, quando Simon foi acusado, Miles veio nos contar o que tinha acontecido. Como acreditávamos que Simon estivesse morto, achei que não havia razão para revelar à família inteira o que acontecera. Meu pai estava muito doente, e eu, muito ocupada em cuidar dele, para me preocupar com o que não podia ser alterado.

— Quer dizer que lady Arabella não sabe de nada? — indagou Guy.

— Ela acredita que Simon se afogou ao voltar para a Inglaterra — continuou Beth. — Tem sido muito difícil mantê-la alheia à verdade. Ela ficaria desolada se soubesse de tudo.

— Então é por isso que sua irmã lê os jornais para ela?

— Não só por isso, mas a visão da vovó está ruim, e as chances de ela ler alguma notícia sozinha são mínimas. Não saiu nada mais nos jornais além da nota sobre o naufrágio e o assassinato, mas não queremos arriscar que ela porventura descubra alguma coisa.

Guy balançou a cabeça e voltou a atenção para Simon.

— Fugir é a mesma coisa que admitir a culpa.

— E o que mais eu podia fazer? — Simon encolheu os ombros. — Se fosse apenas o homem morto, eu teria assumido a culpa, por que houve uma briga. Agora, as joias foram outro assunto. — Ele riu. — As cortes não favorecem muito os ladrões. Tentei reencontrar o casal de Beaune quando estava na França, mas não tinha dinheiro, nem ousei usar meu título, por isso decidi voltar para a Inglaterra. Consegui embarcar em um navio para Plymouth, e de lá começou minha longa jornada até o norte de Malpass. Encontrei trabalho para me sustentar pelo caminho, mas a febre voltou e fiquei acamado por semanas. Quando por fim cheguei aqui, Beth me escondeu nesta cripta.

— Quando você voltou?

— Faz três semanas — respondeu Beth, notando a dúvida no rosto de Simon.

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O pobre rapaz vivia no escuro e não fazia ideia do tempo.

— Imagino que seja por isso que os criados contam “histórias sobre sons fantasmagóricos” — comentou Guy. — Suponho que também tenham sido seus os gritos que ouvi na outra noite.

Beth respondeu que sim com a cabeça.

— No fim desta cripta, há uma porta que abre para um corredor... É aquela que está sob as escadas na entrada principal. Nós a mantemos fechada, mas, claro, quando Simon tem picos de febre ele grita muito. E Tilly tem o costume de deixar as portas internas abertas por onde passa. Quando isso acontece, é possível ouvir os gritos de Simon dentro da casa. Para nós foi boa a explicação dos fantasmas. Além de Kepwith, Sophie, minha criada Tilly e eu, ninguém mais sabe que Simon está aqui. — Beth fez uma pausa antes de continuar: — Escrevi para o sr. Spalding, o advogado de nossa família, em Londres, e ele está conduzindo um inquérito na França, na tentativa de encontrar monsieur de Beaune e a esposa. Quando isso acontecer, poderemos provar a inocência de Simon.

— Até lá, a presença dele aqui continuará sendo segredo.

— Isso mesmo. — Beth juntou as mãos, entrelaçando os dedos.

— Milady sabe que acobertar um bandido também é crime?

— Mas ele não é culpado! — protestou Beth.

Simon reagiu puxando as saias dela.

— O conde está certo, Beth. Eu devia ir embora.

— Não. Ainda não. Você não está totalmente recuperado. — E com os olhos fixos em Guy, ela questionou: — Então, milorde, manterá nosso segredo? — Como a resposta não foi imediata, ela se adiantou: — Tenho alguns guinéus guardados...

— Dinheiro não comprará meu silêncio!

O tom áspero de Guy a assustou, ao mesmo tempo que a deixou em dúvida. Será que o tinha ofendido ou talvez ele tivesse alguma outra ideia para recompensar sua cooperação? Um frio correu-lhe a espinha. Era certo confiar nos empregados, conhecidos desde sua infância, mas Guy era quase um estranho...

— O que pretende fazer? — indagou, nervosa.

— Nada, enquanto não considerar tudo o que ouvi.

— Essa é a verdade — murmurou Simon. — Juro que é!

Guy olhou longamente para um e para outro sem dizer nada, depois tirou o relógio do bolso.

— Já está quase na hora da ceia. Não é melhor voltarmos, sra. Forrester?

Ainda insegura, ela meneou a cabeça. Levou um tempo para deixar Simon confortável, para depois conduzir o conde pelos corredores.

Beth estava confiante de que não encontrariam ninguém pelo caminho. Toda a criadagem estava ocupada preparando o jantar ou circulando pelos corredores a eles destinados.

Beth e Guy seguiram em silêncio para a parte principal da casa. Havia lamparinas acesas nos corredores. A luz tornou evidente a sujeira no casaco preto de Guy.

— Não posso me apresentar assim para a ceia — comentou ele. — Peters ficará

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desconfiado se eu pedir para ele escovar minha roupa.

— Tenho uma escova de roupa no meu quarto — disse Beth.

Assim que chegaram à porta do aposento, ela parou e esperou que ele tirasse o casaco e lhe desse. Mas ele apenas a encarou com as sobrancelhas erguidas.

— Milady acha que vou esperá-la à soleira em mangas de camisa? Será que não levantará suspeitas se me encontrarem aqui?

Beth sabia que ele tinha razão.

— Muito bem, entre! — Ela saiu da frente, abrindo caminho, para logo em seguida fechar a porta.

Não havia sinal de Tilly, mas a cama já estava preparada, e a lareira, acesa. Apressada, Beth saiu acendendo todas as velas, procurando não pensar muito em como o conde preenchia quase todo o pequeno espaço de seu quarto. Foi preciso passar bem rente a ele para escovar as costas do casaco, mas tomando todo o cuidado para nem sequer roçar no corpo dele.

— Conte-me qual a participação de Miles Radworth nessa história — indagou ele, olhando por cima do ombro, enquanto ela lhe escovava o braço com força. — Foi ele que trouxe a notícia de que seu irmão estava morto?

— Sim. Ele ficou em Portsmouth depois da fuga e, quando as primeiras notícias sobre o naufrágio chegaram, Miles ficou para investigar por conta própria e só veio quando não havia mais esperanças de encontrar Simon.

— Ele também contou que Simon era acusado de assassinato?

— Sim. — Beth ficou com as mãos trêmulas e parou de escovar. — Ele trouxe os jornais com as notícias do assassinato, do naufrágio e da fuga de Simon. Até então, não sabíamos de nada. Não é de se estranhar que uma notinha em um jornal do Sul deva passar despercebida por nossos conhecidos daqui. Miles foi muito gentil e lamentou muito não ter sido capaz de ajudar Simon...

— Mas ele acredita que seu irmão é culpado?

Beth recomeçou a escovar com mais força.

— Beth?

— Acho que sim.

Guy se virou para fitá-la.

— Ele foi testemunha desse caso. Como espera que eu acredite na inocência do seu irmão se Miles não é da mesma opinião?

Beth mordiscou o lábio inferior. De fato, era esperar muito que um homem que conhecia havia tão pouco tempo confiasse totalmente em suas histórias.

Guy pegou-a de surpresa, tirando-lhe a escova da mão.

— Acho que o casaco já está limpo. Permita-me fazer o mesmo por milady.

Assim dizendo, Guy se ajoelhou e começou a escovar a barra da saia de Beth, que arregalou os olhos, examinando o cabelo anelado dele. Os movimentos eram seguros e rápidos. Os ombros largos, por baixo do casaco bem cortado, pareciam suportar bem iodos os dilemas do mundo, pensou ela.

— Pronto. — Guy ficou de pé e parecia indiferente. — Acho que removi todos os vestígios de que estivemos nos porões — anunciou, devolvendo a escova a ela.

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A luz tremeluzente iluminava o rosto forte, acentuando o maxilar bem marcado. As sobrancelhas espessas toldavam-lhe os olhos, deixando-os mais escuros e duros, como granito. Sem compaixão.

De súbito, ela percebeu que estava sozinha em um quarto com um homem que conhecia havia apenas uma semana, e a pouca segurança que ostentava se esvaiu.

— Devemos ir para a sala de jantar — disse, com a voz insegura.

— Mu... Humm... Vou me certificar de que a passagem esteja livre para sairmos.

Passar por ele foi difícil, como se precisasse romper uma barreira, mas Beth conseguiu chegar até a porta. Minutos depois, estavam os dois no corredor.

— Acredito que Miles tenha mudado para aqui perto logo depois de conhecê-la. — Guy apressou o passo para ficar ao lado dela.

— Sim. Ele tem sido muito atencioso.

— Sua irmã tem uma explicação mais romântica. Segundo ela, foi amor à primeira vista.

— Milorde acha isso impossível? — indagou ela, olhando-o de soslaio.

— Claro que não. Milady é uma mulher muito bonita.

Beth teve a sensação de vestir uma máscara carmim.

— Como, milorde? Eu não estava buscando... elogios!

— Estou apenas respondendo com toda a sinceridade. É preciso um estímulo muito grande para que um homem abandone suas propriedades e venha se estabelecer no norte.

Beth ainda estava enlevada pelo elogio, tanto que não levou o comentário como uma ofensa.

— Não pense que fiquei muito enaltecida pelas atenções dele e não levei isso em consideração — respondeu ela com franqueza. — Já pesquisei e descobri que ele não é caçador de fortunas. A propriedade dele em Somerset é, no mínimo, igual a Malpass. E o pedido de casamento não foi feito enquanto estávamos de luto por Simon.

— Por que vai se casar com ele? Está apaixonada?

A pergunta tão direta que a pegou de surpresa.

— Não, mas... — Beth quase tropeçou, mas, em seguida, procurou falar com a maior naturalidade: — Em algum momento, precisarei continuar com a minha vida. Minha avó não viverá para sempre e, é óbvio, Sophie deve se casar.

Ao se aproximarem da sala de jantar, Beth espiou pela fresta da porta e viu que Sophie e Arabella já estavam à mesa.

— Suponho que milorde não dirá nada sobre o que viu à minha avó...

— Tem a minha palavra de que ficarei calado, sra. Forrester.

— E amanhã?

Guy meneou a cabeça, reforçando o que dissera, embora seus olhos ostentassem um brilho misterioso.

— Não posso prever o que farei amanhã, milady.

Beth contraiu os lábios. Será que ele considerava um dever entregar Simon às autoridades? Tinha certeza de que seria essa a atitude de Miles. Se fechasse os olhos,

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podia ouvi-lo dizer que a lei tinha de ser respeitada acima de tudo, e que se caso Simon fosse mesmo inocente, o tribunal o libertaria.

Entretanto, Guy não era Miles. Beth não tinha esperanças de que ele fosse ajudá-la, mas talvez conseguisse persuadi-lo a manter segredo. Afinal, o boato era de que o conde era um mulherengo, e agora que Miles tinha trazido à tona um segredo de seu passado, sua integridade estava afetada.

O dilema dominou os pensamentos de Beth durante a refeição inteira. Quase não falou à mesa, deixando Sophie dominar a conversa, enquanto observava o conde, tentando ler seus pensamentos.

Miles tinha dito que sua reputação fora maculada e que ele era um traidor e libertino. Uma vozinha lhe assoprara que talvez isso não fosse verdade, mas outra, bem mais insistente, dizia que uma pessoa assim era capaz de tudo. Ele dissera que não queria o dinheiro dela, mas existiam muitas maneiras de se persuadir alguém. Enquanto brincava com a comida no prato, um plano começou a se formar em sua mente.

Do outro lado da mesa, Guy, muito à vontade, ria de alguma coisa que Sophie tinha dito. No minuto seguinte, olhou de esguela para Beth, que fingiu não ter notado.

Ela empurrou o prato. Perdera o apetite, mas tinha optado por um plano de ação. Não seria nada difícil; perigoso, talvez, e certamente abominável, mas protegeria Simon, pois não tinha dúvidas de que o executaram se ele fosse a julgamento.

Capítulo Nove

Enquanto Guy conversava com Sophie e Arabella durante a ceia, rememorava tudo o que ouvira e vira nos porões da casa. Beth estava correndo um risco espantoso dando abrigo a um fugitivo. Mas tratava-se do irmão dela, e ele também tinha um irmão. Nick estava casado, mas quando era mais jovem, também tivera suas escapadas perigosas. Não havia dúvida de que faria o mesmo que Beth caso Nick precisasse de ajuda.

Será que Simon era culpado? Guy tinha dúvidas, mas entendia como a seqüência de eventos havia conspirado para culpar o garoto. E Simon era mesmo um menino. Tinha 22 ou 23 anos... Certamente era mais novo do que a irmã. Pensar em Beth o levou a olhar para o outro lado da mesa. Ela empurrava a comida de um lado a outro do prato e pouco comia. Não era de se estranhar. Tomara que tivesse compreendido, pelo seu sorriso, que não tinha intenção de prejudicá-la.

Beth evitava fitá-lo, mas Guy estava determinado a, antes de partir na manhã seguinte, deixar claro a ela que seus segredos estavam a salvo. Arabella lhe dirigia a palavra, por isso precisou desviar os olhos e voltar a atenção para o que sua anfitriã dizia.

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A família se retirou logo depois da ceia, e Guy voltou para o quarto, no qual encontrou Peters estendendo suas roupas de dormir sobre a cama.

— Presumo que seu patrão já esteja dormindo — comentou Guy, tirando o casaco.

— Sim, milorde. Dormindo feito um bebê, por assim dizer. E é bom, porque teremos uma viagem longa amanhã.

— Dezesseis quilômetros. Vamos deixar a carruagem o mais confortável possível. Tome. — Ele estendeu o casaco, ao valete. — Leve isto, e que esteja limpo amanhã de manhã, está bem? Obrigado, Peters. Isso é tudo. Vou me deitar...

Assim que Peters saiu, Guy começou a empacotar algumas coisas para adiantar o dia seguinte. Lembrou-se de seu valete batendo perna em Highridge, e esperava que estivesse aproveitando a folga. O trabalho seria dobrado quando Guy voltasse para casa com um baú de roupas para serem arrumadas. Podia até ouvi-lo reclamar do estado das camisas, lavadas por alguma lavadeira provinciana, e por certo reprovaria o estado de suas botas, dizendo que não seria possível disfarçar as ranhuras, por conta de polimento sem cuidado dos criados do mosteiro.

Àquela altura, Guy estava bem acostumado com os sons da casa: os passos dos criados, fechando as janelas, portas batendo ao longe, até que o silêncio dominou, a não ser por estalos ocasionais do antigo piso de madeira. Mesmo assim, achou estranho ao ouvir alguém batendo de leve em sua porta. Estava indo verificar quem era, quando Beth entrou no quarto.

Beth fechou a porta e se recostou nela, imaginando se teria coragem de seguir com o que planejara. Guy a encarava.

Ela soltou o cabelo e deixou-o cair em uma cascata avermelhada sobre os ombros, acentuada pela cor marfim do robe de seda.

— Sra. Forrester!

Ela abriu um sorriso forçado. Precisava parecer receptiva e sedutora. Sorria, procurou se encorajar. Você já não é mais uma virgem inocente, sabe muito bem como é estar nos braços de um homem.

— Vim falar com você. — Ótimo, a voz não havia falhado, e ela ficou feliz com o brilho de interesse naqueles olhos profundos.

— Não é muito tarde... Beth? — indagou Guy, içando uma sobrancelha. — Não seria melhor conversarmos amanhã de manhã?

— Acho que não. — Ela deu um passo na direção dele. — Eu queria... ficar sozinha com você.

Quando ele pegou sua mão, Beth sentiu um calafrio de medo e rapidamente baixou os cílios, escondendo o que seus olhos poderiam revelar de seus pensamentos.

Guy a puxou até uma poltrona próxima à lareira.

— Não quer se sentar? Você me parece pálida. Peters deixou um pouco de conhaque, mas posso pedir um vinho...

— Aceito um pouco de conhaque, obrigada. — A sombra de um sorriso verdadeiro surgiu no rosto dela. — É bom que ninguém saiba que estou aqui.

— Claro que não.

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Havia apenas um cálice ao lado do decanter. Guy serviu e estendeu o cálice a Beth, que o segurou com as duas mãos, rezando para que os dedos não a traíssem e tremessem.

Guy esboçou um sorriso.

— Acredito que não esteja acostumada com a bebida.

Beth não respondeu. O líquido pungente queimava-lhe a garganta, mas preferiria morrer a admitir. Guy recostou-se na cama com os braços cruzados.

— O que pretende dizer, Beth?

Antes de responder, ela umedeceu os lábios com a ponta da língua.

— Eu... humm... Espero que você tenha gostado da sua estada aqui... Acho que não fui tão receptiva como deveria.

— Você tem sido muito gentil — disse ele com educação, inclinando a cabeça para o lado.

— E muita generosidade sua. — Beth tomou mais um gole do conhaque e, dessa vez, não achou tão ruim, pois a tremedeira tinha parado. — Temo que tenha sido um pouco... fria, mas agora a razão deve estar evidente.

— Você estava preocupada com seu irmão.

— Sim. — Ela se levantou. — Pensei que talvez pudesse... Eu poderia consertar...

Beth se forçou para permanecer parada, com os braços ao longo do corpo e os olhos fixos no rosto dele. Estavam a uma distância mínima um do outro, e por isso ela foi capaz de identificar uma nesga de luz nos olhos de Guy, que não soube o que significava, embora suspeitasse ser desejo. O perfume dele a remetia a uma mistura de sândalo e especiarias, e a dominou, como se alguém tivesse aberto um jarro de pot-pourri bem à sua frente.

Com movimentos lentos, Guy puxou-a para mais perto pelo cinto do robe. Beth sentiu o coração bater em descompasso como se quisesse se tatuar em sua pele.

Você queria descobrir como seria ser enlaçada por esses braços fortes, ela lembrou, aproximando-se mais, cabisbaixa. Com um puxão rápido, ele tirou o cinto e, com habilidade, livrou-a do robe também, revelando-lhe a camisola. A peça era parte de seu enxoval, embora nunca a tivesse usado. O tecido fino, como se fosse um véu, deixava entrever as curvas do corpo de Beth. As tiras que prendiam a camisola no pescoço estavam frouxas, uma delas já tinha escorregado, revelando-lhe a pele macia dos ombros.

Em um impulso, Guy correu os dedos na curva entre o pescoço e o ombro dela, deixando-a perceber que também sentia arrepios antecipatórios que faziam com que uma veia lhe saltasse no pescoço, pulsando em descompasso. O desejo se tornava dono da situação, assustando ao mesmo tempo que excitava Beth. Guy levantou o queixo de Beth, mas ela não abriu os olhos, os cílios escuros varrendo-lhe a pele clara. Quando ele segurou o rosto delicado dela com as duas mãos, ela procurou manter-se imóvel, porém, quando sentiu que ele lhe salpicava a pele com beijos rápidos, pensou que fosse fraquejar. Mas nada a teria preparado para o beijo na boca que veio a seguir.

Nesse momento, Beth reparou que um novo ritmo era implantando. Guy estava mais exigente, aprofundando o beijo ao mesmo tempo que a abraçava, escorregando as mãos pelas costas dela até segurá-la pelas nádegas, forçando-a contra si.

Havia apenas uma fina camada de tecido entre a pele de Beth e os dedos

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experientes de Guy. Quando sentiu o membro enrijecido dele contra seu ventre, traduzindo o desejo que o dominava, ela percebeu o corpo responder, balançando os quadris e os seios dolorosamente tensos.

A partir de então, os beijos ficaram mais intensos. Insaciável, ele a forçou-a abrir a boca, dando passagem para sua língua ávida. Foi nesse momento que Beth desistiu de impor barreiras e se rendeu, correspondendo ao beijo com paixão.

Quando ele se distanciou, Beth gemeu, reclamando. Mas foi apenas durante um átimo de segundo, pois logo Guy a levantou e deitou-a na cama. Já saudosa daqueles lábios irresistíveis, ela estendeu os braços, ansiosa por puxá-lo, mas ele se afastou e ficou parado, admirando-a.

Ela estava deitada sobre lençóis brancos, iluminada pela luz da vela, o cabelo espalhado sobre a fronha do travesseiro. A pouca luz formava um jogo de sombras, apenas insinuando o corpo sob a fina musselina. O olhar atento, que passeava pelo corpo curvilíneo, era sentido como uma carícia terna. Ninguém jamais a tinha estudado daquele jeito antes. O marido falecido sempre insistira que as relações fossem no escuro, alegando que apenas os devassos faziam diferente.

Guy se afastou um pouco para tirar o casaco e pendurá-lo atrás da cadeira, e foi o tempo suficiente para que a dúvida se abatesse sobre Beth.

O que você está fazendo? Não é possível que tenha a ilusão de seduzir um homem tão experiente como lorde Darrington!

Como se tivesse sentido a incerteza no ar, Guy se virou nesse exato momento, e Beth forçou um sorriso, mas não tão rápido quanto esperava. A dúvida brilhava nos olhos dela.

— Por que está fazendo isso, Beth?

Guy estava sentado ao lado dela na cama, em uma posição que não impedia que a luz da vela recaísse sobre seu rosto. Beth sorriu, porém ele detectou uma sombra de cautela no fundo de seus olhos.

— É preciso haver um motivo?

Guy não respondeu. O desejo ainda o avassalava, e ele precisava fazer um grande esforço para combatê-lo.

Ele havia se posicionado de um jeito que não impedia que a luz da vela lhe iluminasse o rosto, mas deixava sombreado seu próprio semblante. Beth sabia que ele não tinha desviado o olhar de seu rosto e, de repente, se sentiu muito vulnerável.

— Você acha que me seduzindo eu não trairei seu irmão.

— Não! Eu...

Ele a fez calar-se com um dedo nos lábios.

— Não minta para mim, Beth.

Ela se ergueu e puxou a gola da camisola, sem se dar conta de que, em vez de esconder as formas de seu corpo, o tecido vaporoso apenas as realçava.

— Eu... p...pensei que... poderia persuadi-lo...

— Eu não me deixo vender tão barato assim! — exclamou ele, deixando a raiva transparecer na voz.

As palavras a feriram como uma adaga afiada, levando-a a se contrair. Abraçou-se conforme a vergonha queimava dentro de si.

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— Tome — disse ele, estendendo o robe para ela. — Vista isso.

Beth quase arrancou a roupa da mão dele, e enquanto lutava para se vestir, Guy seguiu até a lareira e atiçou o fogo, colocando mais lenha com movimentos rápidos, quase raivosos. Aproveitando que ele estava distraído, Beth saiu da cama e fugiu.

Guy ouviu o clique da porta se fechando e se virou para trás. Ela fora embora. Blasfemando, ele se jogou em uma cadeira, tentando entender a avalanche de sentimentos e emoções que o engolia. A mistura de ira e decepção era uma composição muito amarga. Em nome dos céus, com o que ela imaginara estar brincando? Ela devia mesmo se casar com Miles. Guy não a achava do tipo que entrava em um acordo leve, mas sim em um negócio de trabalho ou um casamento de conveniência.

Por sua vez, não podia negar que estava atraído por Beth. Se ela o tivesse procurado para satisfazer a luxúria, teria aceitado, mas jamais oferecer-se como em um sacrifício... Será que ela o tinha em tão baixa consideração?

Suspirando, ele seguiu até a pia e colocou o rosto dentro da água fria, A temperatura da água o tirou daquele estado, apagando o desejo e a raiva. Beth o tinha procurado em uma tentativa de proteger o irmão, mas ainda se lembrava da maneira como correspondera a seus beijos... E de jeito nenhum tinha sido indiferença!

De súbito, lhe veio à mente se tivessem passado uma tórrida noite de amor juntos. Tinha dúvidas se ela se levantaria e o deixaria depois de arrancar a promessa de que o irmão não seria traído? Não. Apesar de Beth ser viúva, era bem inocente. Podia apostar a vida como era honrada demais para dormir com um homem e se casar com outro.

— Ora, ainda bem que escapei dessa — disse ele a si mesmo ao se deitar. — Evitei uma bela confusão para ela e para mim.

De volta a seu quarto, Beth trancou a porta e recostou-se na madeira; tremendo. O que fizera? Como fora tão tola a ponto de achar que podia seduzir um homem? Sua experiência se restringia às noites pouco românticas que tivera com o marido fazia anos. lembrou-se da sensação abrasadora que percorrera seu corpo quando Guy a erguera nos braços... Tinha sido uma espécie de prazer antecipatório do que podia acontecer.

Imaginou o que teria acontecido se ele não tivesse parado e a questionado. Se, ao menos, houvessem feito amor... Talvez não tivesse coragem de exigir o silêncio dele, mas, pelo menos, não estava sentindo viva cada célula de seu corpo quando pensava em Guy.

Com uma pressa inexplicável, Beth apagou todas as velas do quarto e deitou-se na cama toda encolhida, enquanto uma lágrima furtiva lhe descia do rosto. O plano que horas antes achara mirabolante havia fracassado; e não apenas isso, mas talvez tivesse piorado a situação, levando Guy a cogitar a culpa de Simon. Afinal de contas, que mulher lançaria mão daquele tipo de tática se não tivesse nada a esconder?

— Ah, o que fui fazer? — gemeu Beth e enterrou a cabeça no travesseiro. Seria difícil se esquecer do olhar zangado do conde.

Não me vendo tão barato assim!

As palavras dele a atingiram como uma bala, mas além do péssimo estado em que se encontrava, estava o medo de Simon se encontrar em perigo. Ao olhar rápido para o relógio, entendeu que ainda era madrugada e não havia nada a fazer naquele instante. Assim que o sol se levantasse, iria procurar Guy e, caso ele tivesse saído a cavalo ou

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enviado um mensageiro ao magistrado, trataria de mudar Simon de lugar. Ele já não estava mais tão doente, a febre cedera, então podia se locomover até outro lugar, dentre os vários existentes nas ruínas do mosteiro. Talvez não fosse possível acomodá-lo com tanto conforto, mas qualquer coisa era melhor do que ver o irmão preso.

Beth sentou-se de repente ao ouvir o piso de madeira do corredor ranger. Uma pequena folha de papel apareceu debaixo da porta. Ela congelou, evitando até respirar para poder apurar os ouvidos.

O barulho, vindo do corredor, tinha cessado, ou quem quer que estivesse do lado de fora estava imóvel.

A madeira rangeu de novo, porém não podia ter certeza se tinha ouvido, de fato, ou imaginado os passos suaves se afastando.

Preocupando-se em também não fazer barulho, acendeu uma vela e se levantou para pegar a folha de papel. Na verdade, era um pedaço de papel pequeno e dobrado ao meio. Com os dedos tremendo, abriu o bilhete e virou-o na direção da vela. Havia apenas uma linha escrita em uma letra forte.

Não se preocupe. Guardarei seu segredo comigo.

Beth releu mais uma vez apenas para ter certeza de que lera certo. Fechando os olhos, elevou uma prece de agradecimento, antes de se ajoelhar em frente à lareira, então jogou o pedaço de papel nas brasas remanescentes, que logo pegou fogo, levantando uma pequena chama para depois dobrar-se chamuscado diante dos olhos atentos de Beth.

Então Guy não os trairia. Pela primeira vez, desde que entrara no quarto do conde, algumas horas antes, sentiu-se tranqüila. Não tinha dúvidas quanto a poder confiar no conde, assim o medo pela segurança de Simon se esvaiu. No entanto, seu sofrimento não diminuíra; ao contrário, estava mais intenso... Tinha errado ao julgar Guy e nem sequer imaginava o que ele estava pensando a seu respeito.

Apagando a vela, voltou a se deitar e, com o coração tão pesado quanto chumbo, puxou as cobertas até a cabeça e ficou aguardando o amanhecer.

Os nervos de Beth estavam em frangalhos quando a carruagem que levaria Davey e Guy de volta a Highridge deu a volta no jardim diante da casa, até parar próximo à porta da frente. Não tinha participado do desjejum mais cedo, aparecendo apenas quando os criados preparavam-se para carregar Davey até a carruagem. Em qualquer outra circunstância, teria se divertido com as tentativas de Sophie em ajudar. Ela flutuava ao redor da maca, como uma borboleta escada abaixo até colocarem Davey na carruagem, esmerando-se ao colocar travesseiros e almofadas ao redor da perna machucada, cobrindo-a por fim com uma manta.

— Pedi à minha irmã para vir a Highridge tomar conta de mim — falou Davey para Arabella, mas Beth não tinha dúvida de que ele tinha se dirigido a Sophie. — Vou pedir a ela que escreva para milady, mandando notícias de como está indo minha recuperação. Talvez todos possam ir me visitar. Ficaremos felizes com a companhia, não é, Darrington?

Beth não ouviu a resposta. Em vez disso, prestava atenção ao cavalariço do conde, que trazia os dois cavalos.

Não demora muito e ele terá partido, pensou. Mais alguns minutos e esse martírio

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termina.

Guy se despedia de Sophie e de Arabella. Beth engoliu em seco e se preparou. Não teria como evitar um último encontro.

— Sra. Forrester. — Guy fez uma mesura e pegou a mão dela.

Beth não conseguiu esconder os dedos trêmulos, que ele levou aos lábios.

— Adeus, milorde. E... muito obrigada — ela se forçou a falar primeiro, mas sua voz soou tão baixa que talvez tivesse sido inaudível.

Guy apertou ligeiramente a mão dela e, quando a fitou, seus olhos não demonstravam nada além de gentileza.

— Adeus — murmurou. — E boa sorte.

Guy se afastou do mosteiro de Malpass determinado a se esquecer de tudo o que tinha acontecido, e conseguiu por algum tempo.

Escoltar Davey de volta a Highridge e acomodá-lo, acalmar seu valete, que estava ressentido por não ter sido chamado para viajar e trazer a irmã casada de Davey, Julia, tomou dois dias de Guy. Mas assim que Julia se instalou em Highridge, Davey mostrou a intenção de convidar Arabella e as netas para visitá-lo. Na mesma hora, Guy decidiu que estava na hora de ir embora, pois não queria se encontrar com Beth novamente. Dera sua palavra de que não contaria a ninguém que ela estava dando abrigo a um fugitivo. Não que achasse a atitude correta. Durante os últimos anos vivera mais reservado, tentando esquecer a desgraça pública ocorrida à sua noiva denunciada como espiã. Essa já tinha sido uma experiência desagradável o suficiente para não querer se envolver com planos dúbios de outra mulher.

— Você não pode me deixar agora! — declarou Davey quando Guy o informou de sua decisão.

— Por que não? Você tem criados o suficiente para servi-lo, e sua irmã chega amanhã e vai mimá-lo muito. Sem contar que a srta. Sophie Wakeford virá para cá na primeira oportunidade. Por que você precisa de mim?

— Preciso da sua companhia — respondeu Davey de imediato. — Recebi uma carta de Julia esta manhã dizendo que Bletchworth não virá acompanhando-a. Você não vai me deixar sozinho com ela, vai?

— Você nunca se deu bem com seu cunhado, por isso é melhor que ele fique em Knaresborough — disse Guy, rindo. — Você e Julia se darão muito bem, sabe disso. Falando sério, Davey, faz muito tempo que estou longe de Wylderbeck.

— É verdade. — Davey suspirou. — Quando pretende partir?

— Amanhã.

— Não pode ficar mais um dia? Julia escreveu dizendo que irá levar a correspondência a Thirsk, e serei obrigado a ir encontrá-la e trazê-la para Highridge se você não puder. Além do mais, vai ficar muito estranho você sair correndo um dia antes de Julia chegar — acrescentou Davey, hesitante.

— Está bem, vou buscar Julia amanhã, e você terá o prazer da minha companhia por mais uma noite — disse Guy, rindo.

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Na manhã seguinte, Guy foi a Thirsk em sua carruagem de viagem para esperar Julia Bletchworth. Davey tinha lhe pedido que fizesse algumas compras para ele enquanto estivesse na cidade.

Assim, Guy deixou o cocheiro aguardando Julia enquanto ele cumpria sua tarefa.

Na volta, viu Beth Forrester. Ela andava a apenas alguns passos à sua frente, em um vestido cinza elegante, uma jaquetinha bem ajustada e um lenço branco preenchendo o decote baixo.

Em um primeiro momento, Guy imaginou se não a havia confundido, mas os cachos da cor do fogo pendendo do chapéu de musselina redondo não deixavam dúvidas. Uma criada a seguia, carregando uma capa e uma bolsa grande. Elas entraram em uma taverna, e eles as perdera de vista.

Guy diminuiu os passos. Não havia razão nenhuma no mundo por que não pudessem estar no mesmo lugar... Afinal, ela dissera que iria visitar uma amiga para comprar as roupas do casamento. Por um momento, considerou desviar o caminho, mas logo mudou de ideia. Evitar o encontro seria um ato de extrema covardia.

Sem mais considerações, ele entrou na taverna. Beth estava sentada, a uma mesa perto da janela, com a criada, levando a xícara de café à boca, quando o viu, e engasgou, sujando a manga da peliça. A reação conferiu a Guy certa satisfação.

— Desculpe se a assustei, Beth — disse Guy, com toda a civilidade possível, estendendo o lenço a ela, que o usou para limpar a mancha de café na manga.

— Não esperava vê-lo aqui. — O tom de voz e a aparência de Beth denotavam nervosismo.

— Vim para encontrar uma pessoa. E você? — indagou ele, tomando um lugar à mesa.

— Eu...humm...Estou indo a Ripon.

— Ah, sim, para comprar seu enxoval.

— Isso mesmo. — Beth conseguiu recuperar a compostura. — Como está Davey? Espero que a viagem não tenha sido muito cansativa.

— Foi tudo muito bem, obrigado. — Guy deu uma batida no bolso do casaco. — Ele se recuperou tão bem que me pediu para comprar rapé. Quanto tempo pretende ficar em Ripon?

— Não tenho muita certeza... — Ela parou de falar quando o dono da taverna se aproximou.

— A carruagem pública deve chegar em breve, milady.

— Londres? — indagou Guy, arqueando uma sobrancelha.

Beth corou no mesmo instante. A indecisão estava visível em seus olhos, e Guy achou ótimo quando ela decidiu não mentir.

— Meu advogado mandou notícias — explicou ela, colocando a xícara sobre o pires. — Segundo ele, o casal que foi testemunha do que houve com meu irmão em Portsmouth está em Londres.

— Não pode ir a Londres sozinha — objetou Guy, franzindo a testa.

— Minha criada está comigo. Não estou sozinha.

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— Não foi isso o que eu quis dizer. É uma distância muito longa para viajar nesse tipo de transporte. Seria mais seguro se usasse sua própria carruagem. — Guy percebeu uma leve mudança na expressão de Beth. — Lady Arabella sabe dessa viagem a Londres?

Beth hesitou antes de responder:

— Contei a Sophie...

— Não foi isso que perguntei.

— Ela não sabe. Vovó acha que fui a Ripon para ficar com Maria.

Como Guy não objetou, ela prosseguiu:

— Que outra chance eu teria? Simon ainda não está bem para viajar. Preciso encontrar esse casal e conversar com os dois. O testemunho deles limpará o nome de Simon.

— Então deveria levar Radworth consigo. Afinal, ele é seu futuro marido.

Beth pressionou os lábios com força, e seu olhar severo foi a resposta à sugestão de Guy.

— Deus do céu, você não pode fazer isso! — exclamou ele, exasperado.

— Eu posso e vou — disse ela, elevando o queixo, desafiando-o. — Comprei a passagem e devo partir. Isso não lhe diz respeito, e você não pode me impedir.

Guy evitou uma resposta mais cáustica. Um movimento na janela chamou a atenção dele, que viu o coche público, cheio de lama.

— Tem razão — afirmou ele, levantando-se de súbito. — Desejo-lhe boa sorte.

Guy saiu da taverna no momento exato em que a porta do coche público se abria.

— Darrington! — gritou Julia Bletchworth, quando Guy a ajudou a descer, entre véus, xales e uma estola enorme, que ela logo deu à criada para carregar.

Em seguida, ela o enlaçou pelo pescoço, indiferente aos olhares e sorrisos dos outros passageiros.

— Julia... — cumprimentou-a Guy, rindo. — Você não mudou nada. Sempre espalhafatosa.

— Não, não... Posso garantir que sou muito respeitável, mas encontrá-lo trouxe de volta minha mocidade, quando você e Davey não passavam de dois meninos gorduchos que adoravam atormentar a irmã mais velha. Como você está, Guy, já se casou?

— Não, Julia, e acho que nem vou. Minha carruagem nos espera ali adiante.

Guy a conduziu para a carruagem de viagem, andando meio de lado para evitar os cavalariços que corriam para trocar os cavalos do coche público.

Julia deu um tapinha no braço dele.

— Um dia, meu querido, você encontrará alguém que o fará esquecer aquela horrível mulher Bellington.

— Eu já a esqueci — disse ele em um tom casual.

— Mas agora você está comigo e desejando não ter vindo me encontrar — disse ela, rindo. — Está bem, não falemos mais desse assunto. Diga-me como está meu querido irmão.

— A perna dele está bem melhor, mas você terá um trabalho danado para mantê-lo

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deitado.

Guy a ajudou a subir na carruagem e voltou para ver se os dois pesados baús tinham sido colocados no coche.

— Cá entre nós, sei que podemos com ele — disse Julia, quando ele voltou para a porta da carruagem.

— Partirei amanhã de manhã. Eu...

O cocheiro gritou, fazendo a última chamada para o embarque no coche público. Guy espreitou os arredores e visualizou uma figura familiar saindo da taverna.

— Com licença, Julia. — Guy se afastou e seguiu para onde os passageiros do coche público se enfileiravam. — Beth, será que não consigo persuadi-la a atrasar a viagem até que encontre uma companhia apropriada?

Um dos guardas pediu a mala de Beth e não demorou a pegá-la. Ela mordiscou o lábio, fixando os grandes olhos no rosto dele.

— Vamos, senhorita, não temos o dia inteiro. — A voz forte de um dos passageiros, parado logo atrás dela, a assustou, levando-a a menear a cabeça.

— Não posso me atrasar. Com licença — disse Beth, correndo para alcançar a criada, que já se encaminhava para o coche.

Guy se virou e seguiu para sua carruagem, balançando a cabeça ante a impossibilidade de se racionalizar com uma mulher cabeça-dura. Lembrou-se de que não tinha nada a ver com aquele assunto. Além disso, muitas mulheres já tinham feito a mesma viagem a Londres e nada acontecera. Mesmo assim, uma estranha sensação dominou seu coração.

— Será que já podemos ir? — perguntou Julia, quando ele abriu a porta da carruagem. — Estou impaciente para chegar logo a Highridge.

— Não vou com você, Julia — anunciou Guy, ainda segurando a porta da carruagem.

E ignorando os comentários e pedidos de explicação, ele instruiu o cocheiro e correu para encontrar o vendedor de bilhetes.

Capítulo Dez

Beth se acomodou em um canto do coche com a criada sentada a seu lado. Além das duas, havia somente um passageiro, um homem forte e soberbo, que dirigira um olhar desaprovador a Tilly, levando-a a perguntar a Beth se não seria melhor ir se sentar no alto do coche.

— De jeito nenhum — respondeu Beth, lançando um olhar desafiador para o outro passageiro. — Paguei pelo seu bilhete e quero que fique a meu lado.

O homem torceu o nariz e puxou o relógio de bolso.

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— Estamos dois minutos atrasados. — E debruçando-se na janela, chamou: — Cocheiro, qual é o motivo do atraso?

— Não estamos atrasados, senhor — respondeu o cocheiro em tom jovial. — Partiremos quando o relógio da igreja bater a hora cheia, nem um minuto antes.

Assim que ele terminou de falar, Beth ouviu os sinos da igreja repicar. Ouviu-se um grito, e o coche balançou conforme o cocheiro subia para seu lugar. Beth alisou a saia com as mãos, ansiosa por seguir viagem o quanto antes. De repente, uma comoção do lado de fora, pessoas falando alto e, de súbito, a porta do coche se abriu. Um homem alto, de casaco escuro, pulou para dentro do veículo, que começou a andar, antes mesmo de a porta ser fechada.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Beth ao reconhecer o conde de Darrington sentando-se confortavelmente à sua frente.

— Estou indo para Londres — respondeu ele com um sorriso afável.

— Impossível! — exclamou ela, furiosa com a atitude de pouco-caso.

— Não sei por quê. Comprei uma passagem.

— Esse procedimento é irregular — protestou o outro passageiro. — Seu nome não estará no recibo de viagem.

Guy limitou-se a erguer uma sobrancelha e encarou o homem arrogante.

— Engano seu — disse friamente. — Comprei meu bilhete do mesmo jeito que o senhor, e vi quando o vendedor colocou meu nome na lista de passageiros antes mesmo de entrar. Além do mais, isso não é da sua conta.

Beth esperou que o impasse terminasse, mas não estava nem um pouco satisfeita.

— Não quero a sua companhia, milorde.

— Você não pode me impedir de viajar neste coche.

Beth contraiu os lábios. O outro passageiro observava tudo com indisfarçável curiosidade, razão suficiente para que ela não quisesse começar uma discussão. Sem muitas possibilidades de se mostrar contrafeita, ela se virou para a janela. As ruas de Thirsk logo foram substituídas por campos abertos, mas não se podia dizer que ela estivesse apreciando a paisagem, pois estava ansiosa demais para chegar a Londres.

As esperanças não eram muitas, mas se, ao menos, encontrasse monsieur de Beaune e ele depusesse em favor de Simon, o impasse estaria resolvido. Guy estava com a cabeça recostada e de olhos fechados, mas Beth não acreditava que ele estivesse dormindo. Por qual razão estaria ali? Tinha visto quando ele escoltara a matrona até a carruagem dele. Então por que, de repente, comprara uma passagem para Londres em um coche público? Será que a intenção era atormentá-la? Não, ele não estava ali para ajudá-la. Não depois de ela ter se oferecido para ele e ter sido rejeitada. E ainda assim...

De jeito nenhum! Recusava-se a pensar na hipótese de ele a ajudar, seria mais uma humilhação, e ela resistiria ao máximo.

Quando Beth se mexeu no assento, Guy abriu os olhos. Ela sabia que Tilly dormia a seu lado e ouvia o ronco do homem arrogante no outro canto do coche, por isso entrou em pânico... Era o mesmo que estar sozinha com o conde.

A única ideia que lhe ocorreu foi virar-se para a janela de novo.

— Será uma viagem entediante se você insistir em me ignorar disse ele, e suspirou de enfado.

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— Sugiro que desembarque na próxima parada.

— Não, não, estou determinado a ajudá-la.

— E eu estou determinada a não permitir.

— Nem mesmo para o bem de seu irmão? — perguntou ele, finando os olhos nos dela.

— Não preciso da sua ajuda, Guy Darrington. Sou perfeitamente capaz de resolver isso sozinha.

— Duvido — disse ele, cruzando os braços com uma calma ensandecedora.

Guy estava tentando fazê-la perder a calma, mas Beth não permitiria que isso acontecesse.

— Se desejar, siga-me e verá — disse com frieza.

Os dois permaneceram em um silêncio sepulcral até a parada seguinte. Beth concluiu, com pesar, que jamais tinha enfrentado uma viagem tão desconfortável. Tilly continuava em um sono profundo, apertando-a.

Guy se esticou em seu canto. Não demonstrou nenhum sinal de mal estar se por acaso estivesse perturbado pelo sacolejar da carruagem ou pelo ronco do homem arrogante.

Minutos depois, a carruagem balançou mais forte em um pedaço ruim da estrada. Beth segurou Tilly para que ela não caísse do assento, mas o homem corpulento foi jogado para cima do conde. Ele grunhiu algo similar a um pedido de desculpas e voltou para se sentar no outro canto.

Por uma fração de segundo, Guy demonstrou certa irritação, o que não passou despercebido a Beth.

— Suponho que não esteja acostumado a esse tipo de tratamento — disse ela com candura. — Você estará doente quando chegarmos a Londres.

— Não vejo necessidade de viajarmos até Londres neste coche público. Deixei ordens para meu valete para que arrumasse uma mala para mim e nos seguisse com minha carruagem. Ele deve nos alcançar até o fim do dia.

— Espero que até lá você tenha desistido dessa ideia tola de me seguir.

— De jeito nenhum. Quero persuadi-la a viajar com mais conforto.

— Estou muito bem aqui, obrigada.

Neste exato instante, a carruagem inclinou para o lado, levando Beth a se segurar para não cair em cima de Tilly e desmentindo o que acabara de dizer.

O sorriso irônico de Guy a irritou profundamente. Com movimentos nervosos, ela alisou a saia e virou-se para a janela.

As horas se arrastaram. A pressão para seguir viagem refletiu no tempo das paradas para trocar os cavalos. Apesar de os taberneiros oferecerem refrescos e café, eles mal tinham tempo para tomar um gole antes de o cocheiro gritar para subirem na carruagem para prosseguirem até a próxima parada. Em uma delas, o homem pernóstico gritou que havia pagado pelo sanduíche e, por isso, tinha o direito de levá-lo, mas o garçom correu atrás dele e tomou-lhe a metade embrulhada em um lenço.

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Nem o status de Guy contou muito, pois o taverneiro precisou servir sua refeição mais rápido do que o habitual, e o cocheiro não atrasou o grito de “Tudo pronto!”, e se não corressem, perderiam o transporte.

Beth olhou de soslaio para o conde algumas vezes e notou que ele também achava a viagem maçante. Toda vez que paravam para trocar os cavalos, ela observava se ele não desistiria da viagem, dizendo que não aguentava mais e que iria aguardar sua carruagem chegar para buscá-lo. Mas toda vez que partiam, lá estava ele, sentado à frente de Beth. Mesmo que relutasse, ela se sentia aliviada. Não o queria e não precisava dele, mas sabia que não estava tão sozinha.

O sol tinha quase desaparecido, trazendo sombras, quando Beth acordou de um cochilo por causa de uma forte buzina. A princípio, imaginou que era o cocheiro avisando que se aproximavam de um pedágio, mas logo viu que Guy estava com a cabeça para fora da janela. Sons de outra carruagem se aproximando foram ouvidos e logo dois cavalos ultrapassaram o coche público.

Ela ouviu o conde soltar um suspiro de satisfação ao ver sua carruagem passar, bloqueando por um instante a luz.

— Daqui a pouco poderemos continuar nosso trajeto com mais conforto, Beth.

— Não, Guy, você pode voltar para casa.

Já tinha escurecido quando eles chegaram a Newark. As luzes das carruagens iluminavam parte da estrada e davam as boas-vindas. Beth fez uma prece de agradecimento quando o cocheiro anunciou que passariam a noite ali.

Guy saiu do coche primeiro e estendeu a mão para ajudá-la a descer. Beth sentiu o aperto firme da mão dele, e seu coração se apertou. Seria tão mais fácil se permitisse que ele a escoltasse até Londres... Lembrou-se então de quando tinha se oferecido a ele e fora rejeitada, então reuniu forças para puxar a mão.

— Beth...

— Não! Não lhe darei ouvidos. Por favor, deixe-me sozinha.

Virando-se rápido, farfalhando as saias, pediu a Tilly que trouxesse sua mala e seguiu resoluta para a estalagem.

Guy ficou estático e estreitou os olhos para observá-la se distanciando. Um grito de seu valete, Charles Fitton, o trouxe à realidade.

— Milorde! Já havíamos vislumbrado o coche público a alguns quilômetros. Pedi a Thomas que se apressasse para que passássemos o coche público, mas não pudemos fazer nada antes da curva para South Muskham... Milorde chegou a nos ver?

— Vi, sim, e fiquei imaginando o que estavam fazendo — respondeu Guy. — Eu tinha dito para que nos seguissem, e não que pusessem minha carruagem e os cavalos em risco.

Sem se deixar afetar, Fitton limitou-se a sorrir.

— Foi o que fizemos até que a estrada ficasse larga o suficiente para que ultrapassássemos com segurança. Não estávamos apostando corrida, os pobres pangarés que puxavam o coche público não são páreo para nossos cavalos, milorde. Precisei comprar muita graxa na última parada que fizemos.

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— Espero que não tenha gastado todo o meu dinheiro, Fitton.

— Deus me livre, milorde — respondeu Fitton, enfiando a mão no bolso, tirando um maço de notas e passando-o para Guy.

— Obrigado. Agora vá checar quartos para nós... e peça mais um para a sra. Forrester e sua criada.

A estalagem estava bem movimentada e demorou alguns minutos para que todos os passageiros do coche público chegassem a seus quartos. Beth estava exausta e ficou tentada a se deitar e dormir, mas sabia que seria prudente comer alguma coisa. Assim, ti-rou a jaqueta e o chapéu, penteou o cabelo e lavou o rosto. Em seguida, puxou um lenço da valise e o colocou em volta do pescoço. Sentindo-se renovada, desceu as escadas para se encontrar com os outros passageiros para aguardar o jantar. Não havia sinal de Guy, e por um breve segundo, sentiu sua falta. Não que quisesse a companhia dele, mas admitia que a sua presença lhe assegurava certa proteção.

Ao entrar na ruidosa sala de refeições, percebeu que os homens a encararam conforme seguia para a mesa reservada para os passageiros do coche público. Infelizmente, os lugares estavam quase todos tomados, o que a obrigou a ir se sentar na outra extremidade da mesa, acompanhada por Tilly. Um dos passageiros, que tinha viajado do lado de fora do coche, logo se levantou para oferecer lugar a ela, mas o sorriso malicioso nos lábios a levou a desejar um lugar ao lado do homem grande e prepotente. Se possível, gostaria de passar despercebida em vez de ser o alvo das atenções de um magricela que cheirava a bebida e tabaco e que vez por outra tomava um gole de uma pequena garrafa de bolso prateada.

Beth passou a refeição de cabeça baixa, prestando atenção ao jantar e tentando se concentrar no que faria quando chegasse a Londres. Em primeiro lugar, precisaria de um lugar para ficar, mas se seguisse direto para o escritório do sr. Spalding, ele talvez lhe indicasse um hotel.

O sujeito inconveniente da garrafinha prateada a encarava mais uma vez, mas ela fingiu que não estava ouvindo nada. Porém quando sentiu a perna dele roçando na sua debaixo da mesa, levantou-se de supetão e pediu licença, sem se lamentar, pois já tinha perdido o apetite.

Nunca antes se sentira tão vulnerável, mas também nunca viajara em um coche público antes. Chegou a desejar que Guy estivesse ali, mas logo afastou o pensamento. Não podia se esquecer de que assegurara que não precisava da proteção dele, e iria provar isso. As coisas correriam mais facilmente se não estivesse se sentindo tão desconfortável.

Quando uma garçonete passou, pediu instruções para ir até o toalete. Quando voltou, pretendia chamar Tilly e se retirarem para o quarto pelo restante da tarde. Não esperava, contudo, que a tarefa se mostrasse tão difícil, pois depois de um dia tão exaus-tivo, era de se esperar que adormecesse assim que encostasse a cabeça no travesseiro. Quando atravessava o pátio, ouviu uma voz grave:

— Ah, vejam quem está aqui!

As palavras foram ditas de forma arrastada e, apesar da pouca luz, Beth

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reconheceu a figura esquálida do passageiro inconveniente. Tudo indicava que ele já havia consumido todo o conteúdo da garrafinha de bolso. Sem dizer palavra, ela pretendia passar por ali, mas ele a segurou pelo braço.

— Para que tanta presa, minha linda? Estou de olho em você.

— Se acha que isso é lisonjeiro, asseguro que não é essa a minha opinião — retorquiu Beth.

O riso alto e debochado causou soluços no desconhecido.

— Gosto que minhas mulheres sejam espirituosas.

— Não sou sua mulher! — exclamou Beth, tentando livrar o braço. — Deixe-me ir agora! Quero ir para o quarto.

— É para lá que vamos, querida, mas na hora certa. Vi como dispensou aquele sujeito corpulento e pensei que talvez precisasse de companhia.

— Não, obrigada. Agora solte o meu braço.

— Não seja tão hostil, querida. — Ele a puxou para mais perto. — Achei que poderíamos tomar uma bebida juntos, o que acha?

Beth virou o rosto, evitando o cheiro ruim de álcool e cebolas do sujeito. O pátio estava vazio e seria difícil alguém de dentro da taverna ouvi-la, tamanho era o barulho. Um calafrio de medo percorreu-lhe a espinha. Quando ouviu passos de outra pessoa se aproximando, virou-se rápido e abriu a boca para gritar, mas não disse nada ante a visão de Guy.

— Acho que milady já se cansou de sua companhia.

Embora não tivesse soado ameaçadora, a voz dele refletia autoridade. No entanto, nem isso assustou o sujeito inconveniente.

— Ah, quer tentar de novo, não é? Bem, você já teve sua chance, agora é a minha vez.

— Acho que não.

O tom de voz mais frio atingiu a mente embriagada do sujeito.

— Oh-oh... então você acha que vai conseguir, não é?

Beth aproveitou o momento para puxar o braço e se soltar. Nesse exato instante, o homem avançou para cima de Guy com os braços dobrados, exibindo os punhos fechados.

A partir dali, Beth não viu mais nada, apenas percebeu o tumulto na escuridão, alguns sons surdos de socos e gemidos até que o sujeito inoportuno foi ao chão, passando a mão no queixo.

— Está machucada? — indagou Guy, voltando a atenção para Beth, que demorou a responder, pois observava o bêbado se levantar meio cambaleante e voltar para a taverna. — Beth?

Beth olhou para Guy, ainda tonta pela seqüência de eventos que tinha acabado de acontecer.

— Estou bem. — Foi então que toda a indignação pelo ocorrido se abateu sobre ela. — Que homem horrível! Como é que ele ousou me abordar daquele jeito?

— Não se pode culpá-lo — murmurou Guy, estreitando a distância que os separava.

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— Como ousa dizer uma coisa dessas? — indagou ela, indignada.

Apesar das sombras, era possível ver o brilho dos olhos dele.

Beth engoliu em seco e logo a raiva que sentia foi substituída por outra sensação bem mais perturbadora. Sentiu que o corpo não obedecia a suas ordens e continuou imóvel quando ele capturou um cacho de seu cabelo, enrolando-o no dedo.

— Você circula por aí com esse cabelo glorioso sem estar coberto... Como um homem pode resistir?

A voz de Guy se transformara completamente para um tom aveludado, capaz de minar todas as resistências de Beth, despertando ondas de desejo. A figura intimidadora do conde cobria a pouca luz que entrava pelas janelas da taverna. E a sensação era de que ambos seriam engolidos pela escuridão se ele se aproximasse ainda mais. Como se não fosse mais dona de seus atos, ela inclinou a cabeça para trás em um convite silencioso a um beijo.

— Eu... minha intenção não era...

As palavras se afogaram em um rompante de um riso rancoroso. Um grupo de homens havia saído da taverna, rompendo a magia do momento.

— Não... — murmurou Guy, levantando a cabeça e pegando-a pelo braço sem muita delicadeza. — Definitivamente, você não tem ideia de como é sedutora.

Dito isso, ele a levou de volta à estalagem, mas sem passar pela sala de refeições.

— Para onde está me levando?

— Reservei quartos particulares para nós...

Frustrada, Beth balançou o braço para se soltar.

— Quantas vezes preciso dizer que não aceitarei sua ajuda? — Ela o desafiou com o olhar.

— Acha mesmo que conseguirá dormir em segurança esta noite? Consegui afastar um homem, mas e os outros? Reparei em cada um deles durante o jantar. Todas as atenções estavam sobre você.

— Você... estava me vigiando? — indagou Beth, sem saber se ficava agradecida ou ultrajada.

— Eu queria ter certeza de que ninguém lhe faria mal. — Guy olhou para o teto amarelo e suspirou, voltando a encará-la. — Beth Forrester, serei eternamente grato por ter acolhido e cuidado de Davey. Gostaria de pagar meu débito, e apenas isso. Não tenho outras intenções.

Beth baixou o olhar e o rosto, escondendo a vermelhidão e a humilhação ou dor que sentia.

— Disso, pelo menos, tenho certeza.

Mais uma vez, ouviram-se risadas vindas da sala de refeições.

— Tem certeza de que quer voltar para lá? — perguntou Guy.

Convencida de que não voltaria, Beth aquiesceu com um sinal de cabeça.

— Tenho quartos no andar de cima, incluindo uma sala de estar particular e um quarto para duas pessoas. Além disso, eu ficaria, honrado se me permitisse escoltá-la na cidade. Dou minha palavra de que o tratamento será muito respeitoso, enquanto estiver sob meus cuidados.

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Beth uniu as mãos e entrelaçou os dedos, O simples pensamento de passar a noite em um quarto pequeno, reservado para ela, era um tanto intimidante. Verdade que Tilly estaria ali também, mas não havia tranca na porta e, depois das últimas experiências, talvez não conseguisse dormir. Olhou de soslaio para o conde e concluiu que talvez não pregasse os olhos nem por um minuto sequer, mas porque sabia que Guy estaria ali bem perto, e não por medo.

— Muito bem — começou a falar bem devagar. — Aceito sua proteção, para minha criada e para mim. Mas preciso ter certeza de que não tentará flertar comigo.

O rosto de Beth corou, mas o conde não fez comentários, limitando-se a se curvar em reverência.

— Eu a tratarei como a um irmã — assegurou. — Permita-me escoltá-la escada acima. Vou pedir a Fitton que suba com sua criada e com as bagagens para o novo quarto.

Guy a conduziu por uma escada estreita e por um labirinto de corredores até chegarem à suíte. Beth ficou nervosa ao entrar e encontrar Fitton ali em uma aconchegante sala de jantar. No entanto, com toda a eficiência, ele logo saiu para procurar Tilly, deixando-a sozinha com o conde mais uma vez.

— Aqui é bem mais confortável do que a sala de jantar comum disse ela, aquecendo as mãos na lareira. — Será que conseguiremos chegar a Londres amanhã?

— Claro que sim, mas será uma longa viagem.

— Não tenho restrições quanto a isso — disse ela, vendo-o sorrir com o canto dos olhos.

— Não achei que tivesse mesmo.

A sensação de estar pairando no ar a invadiu mais uma vez, e as pernas fraquejaram, por isso ela se deixou cair em uma poltrona, cruzando as mãos sobre as pernas.

— Gostaria de deixar uma coisa clara, Guy. Aceito e agradeço por me escoltar à cidade, mas nos separaremos ao chegarmos lá. Não pretendo impor que continue comigo.

— Não é uma imposição...

— Assim que chegarmos a Cheapside...

— Cheapside!

— Sim — disse ela com frieza. — O escritório do meu advogado é lá. Vou deixar nas mãos dele encontrar um lugar para ficarmos.

— Acho melhor me permitir ajudá-la.

Guy estava postado ao lado dela, a altura imponente afetando a paz de espírito de Beth. Sem se deixar perturbar demais, ela se levantou e foi até a janela.

— Posso ter sido forçada a aceitar sua hospitalidade durante a viagem, mas não quero sua ajuda nesse outro assunto.

— Não foi essa a impressão que tive. Quando você me procurou naquela noite no mosteiro, me pareceu estar comprometida a comprar meu silêncio.

Quando Beth se virou, encontrou-o postado atrás dela.

— Minha intenção era proteger Simon — disse sem muita firmeza. — Essa foi a única razão pela qual me aproximei.

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— Sei disso, mas mesmo assim... — Guy passou o dedo pelo braço dela, deixando uma trilha de fogo até a manga do vestido. — Eu podia jurar que tinha gostado.

— Não! — exclamou ela, levando as mãos ao rosto.

Guy estreitou ainda mais a distância que os separava.

— Um de nós está enganado então. Talvez seja melhor nos beijarmos de novo para descobrir quem é.

Como se estivessem de comum acordo, os dois se aproximaram, como se puxados por uma miríade de fios de seda invisíveis. Beth espalmou as mãos no peito largo, mas não o empurrou; ao contrário, deslizou-as até os ombros de Guy. Os rostos estavam bem próximos, ela de lábios abertos, esperando ser beijada, cada terminação nervosa tensa por um contato. Ao respirar fundo, ela sentiu diversas nuances cítricas de perfume da pele morena e do lenço engomado no pescoço do conde. O desejo espiralava em brasa, movendo-se na direção do baixo-ventre de Beth, amolecendo suas pernas, tanto que foi preciso agarrar-se à lapela dele para não cair.

Guy pousou os lábios sobre os dela, as respirações se mesclaram até que a paixão explodisse quando se beijaram com paixão. Com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados, Beth ouviu passos se aproximando, e isso foi o suficiente para que voltasse à realidade e o empurrasse para trás.

— Ah, Guy, deixe-me! Minha criada...

— Ora, Beth, eu...

Ela conseguiu dar um passo para trás quando Fitton entrou, lutando com a valise de Beth em uma mão e a jaqueta e a capa na outra, enquanto o chapéu balançava em um dos dedos pelas tiras. Tilly vinha logo atrás, trazendo sua própria mala. Curvou-se ligei-ramente, cumprimentando os dois, e seguiu Fitton.

— Desculpe pela demora, milady, milorde... A mala abriu e precisei colocar tudo de volta.

Beth limitou-se a balançar a cabeça. Guy tinha se virado de costas e olhava para o fogo da lareira. Sentimentos contraditórios, ao mesmo tempo que arrepios de expectativa, percorriam seu corpo, levando-a a sonhar com o que poderia ter acontecido, deixando Beth confusa, mas aliviada. As mãos que antes deslizavam pelo casaco de lã de Guy agora pendiam ao lado de seu corpo. Confusa e ainda tonta, Beth murmurou um pedido de desculpas e seguiu Tilly para o quarto, determinada a ficar lá até a manhã seguinte.

Capítulo Onze

Guy apoiou o braço no mantel da lareira e encostou a cabeça, os lábios se movendo em uma torrente de blasfêmias silenciosas. Como aquela mulher conseguia enfeitiçá-lo daquele jeito? Seria o cabelo da cor do fogo que o atraía tanto? Ela possuía o poder de minar seu controle, mas podia jurar que era involuntário, e estava envergonhado de suas reações. Não se considerava melhor do que o biltre que havia afugentado

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naquele dia. Claro que a grande culpada tinha sido a luxúria, mas era compreensível, pois Beth era uma mulher muito bonita, de cabelo glorioso e olhos escuros e tão profundos que derretiam a alma dele.

O desejo lhe levantava a pele em arrepios só de pensar em Beth parada à sua frente. Gemendo baixinho, seguiu até uma mesinha lateral e procurou refúgio na bebida. Dois cálices de conhaque o ajudariam a dormir, mas sabia que seus sonhos seriam perturbados por aquela que dormia do outro lado da parede atrás de sua cama.

Ao acordar na manhã seguinte, Beth levou alguns minutos para lembrar onde estava, mas assim que a memória voltou, vestiu-se com pressa e seguiu para a sala de refeições, na qual encontrou Guy já tomando o desjejum. Ele se levantou e a cumprimentou com toda a educação, e ela respondeu a contento e se sentou à mesa.

— Fitton e Tilly desceram para fazer o desjejum com os outros — disse ele, servindo-a de uma xícara de café. — Eles não ficariam à vontade em se sentar à mesa conosco.

— Não, claro que não.

Beth imaginou se ela própria não se sentiria melhor também, mas Guy não fez mais nenhum comentário, e ela começou a relaxar.

quando estava quase terminando a refeição, ouviu gritos e chamados vindos da rua. Eram chamados para o embarque no coche público, que estava prestes a partir. Beth foi até a janela e viu quando o coche partiu. Esboçou um sorriso ao avistar os passageiros que viajariam do lado de fora e o homem magricela puxando a garrafinha prateada do bolso, que, obviamente, tivera tempo de reabastecer.

— Espero que não esteja arrependida de ter decidido viajar comigo.

— Não — disse ela, voltando para a mesa. — Contanto que não se esqueça da promessa de me tratar como sua irmã.

Guy abriu um sorriso, e foi preciso que ela levasse a mão ao lenço para abafar a sensação de que seu coração tentava lhe fugir do peito, como um passarinho se debatendo.

— Se for o caso, posso ralhar com você dizendo que, se não estiver pronta na hora certa, irei embora, deixando-a para trás.

Beth relaxou com o tom de brincadeira.

—Por Deus, se for esse o caso, devo ir fazer minhas malas agora mesmo!

—Não precisa ter tanta pressa — ele a confortou, rindo. — Fique e tome mais uma xícara de café comigo.

Os momentos seguintes transcorreram em perfeita harmonia. Beth não se lembrara do que haviam conversado, mas sentiu uma ponta de tristeza quando Fitton e Tilly retornaram, e Guy anunciou que partiriam em breve. Guy a conduziu até a carruagem e enrolou uma manta ao redor dos pés dela.

— Fico feliz que o tempo esteja bom — comentou Beth, quando ele se sentou a seu lado. — Não gostaria que Tilly e Fitton passassem frio, sentados no banco atrás da

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carruagem.

— É por isso que sua criada veio? Para se sentar dentro do coche público a seu lado?

— Em parte sim, mas gosto de tê-la comigo para me fazer companhia.

— Bem, agora tem a mim. Diga-me como posso entretê-la.

Beth balançou a cabeça, confusa.

— Não pense que sou daquelas pessoas que precisam se divertir a toda hora, Guy.

— Claro que não. Então talvez possa me contar algo a seu respeito.

— Não há muito o que dizer — disse ela, envergonhada. — Cresci no mosteiro, casei, enviuvei e voltei para Malpass.

— Foi um casamento arranjado?

— Sim, meu pai conhecia o sr. Forrester havia muito tempo. Nós nos casamos quando eu tinha 19 anos, mas ele morreu depois de um ano, seu coração era muito fraco.

— Lamento muito. E então você voltou ao mosteiro?

— Sim. A propriedade do sr. Forrester já estava destinada a um primo distante. Recebo uma pequena pensão, mas fiquei feliz em poder voltar para minha antiga casa.

— Nunca entendi como você herdou o mosteiro — disse Guy, virando-se no assento para poder olhar de frente para Beth. — Não era para ser do seu irmão?

Beth cruzou as mãos sobre o colo.

— Deveria, claro, mas meu pai mudou o testamento quando soube que Simon havia se perdido no mar.

— Isso foi prematuro.

Ela suspirou conforme as memórias voltavam à sua mente.

— Eu sei. Quando Miles voltou a Malpass com a notícia de que Simon tinha se afogado, meu pai estava tão doente que achei que era melhor que ele não soubesse, pois só iria estressá-lo. Infelizmente Miles chegou quando eu estava fora, e meu pai pediu para vê-lo. Mais tarde, Miles me contou que meu pai disse desconfiar de que faltava alguma coisa e pediu a verdade. Assim que soube do ocorrido, ele alterou o testamento a meu favor. Papai temia que, se o corpo de Simon nunca fosse encontrado, pudesse haver complicações na transferência do mosteiro, assim ele tirou meu irmão do testamento e o tornou totalmente favorável a mim.

— Isso foi bem conveniente para Miles.

Beth levantou o queixo ao ouvir aquilo.

— Miles não tinha ideia de que meu pai mudaria o testamento!

— Seu pai sabia que seu irmão foi acusado de assassinato?

— Fiz Miles me prometer que não contaria nem a ele, nem a vovó. Ela adorava Simon, e eu queria que as memórias permanecessem imaculadas. Eu estava determinada a limpar o nome de Simon, se pudesse, então escrevi para o sr. Spalding, nosso advogado em Londres, e pedi que começasse a procurar o casal francês que tinha sido atacado. Conversei sobre isso com Miles, e ele achou boa a ideia.

— Sei que já perguntei isso antes, mas se Miles sabe tanto sobre sua família, por que não contou a ele que Simon está vivo?

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Beth temia aquela pergunta, pois não tinha uma explicação satisfatória nem para si mesma. Como não respondeu de imediato, Guy. se adiantou:

— Ao que parece, você confia menos em seu noivo do que confia em mim.

— Não tenho alternativa senão confiar. E acredite, Guy Darrington, eu gosto muito mais de Miles Radworth do que de você!

Beth se manteve educada, porém fria em relação a seu companheiro de viagem durante o restante da jornada. Em nenhum momento, Guy se mostrou ofendido, ao contrário, tratou-a com extrema cortesia; tanto que quando pararam em Hatfield para jantar, ela se sentia culpada, e teria ficado com vergonha de seu comportamento se não lembrasse a si mesma de que não havia pedido ao conde que a acompanhasse até a cidade... Na verdade, ele praticamente lhe impingira sua companhia.

Entretanto, quando se sentaram em uma sala particular para jantar, aquecida por uma lareira, e foram servidos de pratos suntuosos, ela concluiu que era muito mais agradável viajar com Guy do que em um coche público. Por isso, esforçou-se para manter uma conversa civilizada, talvez até inane, enquanto jantavam.

— Vai escurecer em uma hora — disse o conde, ao tirar o relógio do bolso. — Talvez seja melhor pernoitarmos aqui e terminarmos a viagem amanhã.

— Não, obrigada. — Beth meneou a cabeça. — Não quero abusar da sua hospitalidade mais do que o necessário. Se estiver de acordo, prefiro continuar na estrada.

— Como quiser.

Como ele concordou com educação, sem contestar, Beth se sentiu pressionada a dar uma explicação;

— Gostaria de me encontrar com o sr. Spalding o quanto antes. Além disso, não tenho ideia de quanto tempo o casal de Beaune ficará na Inglaterra. — Ela hesitou antes de continuar: — Espero que não se importe de nos apressarmos para chegar a Londres ainda esta noite.

O que Beth não disse foi que não gostaria de passar mais uma noite na companhia dele, mas pelo jeito como Guy a olhou, ficou claro que o recado tinha sido dado. Aliás, ela estava ciente de que o conde ficava cada vez mais hábil em ler seus pensamentos.

Por causa dos cavalos não muito bons e uma carroça de vegetais tombada na estrada, a última parte da viagem demorou mais do que o previsto. Já passava das 22h quando estacionaram em frente ao escritório Spalding, Spalding & Grooch, em Cheapside. Não foi uma grande surpresa que as luzes já estivessem apagadas e que ninguém tivesse atendido quando Fitton bateu na porta. Como se não bastasse, um vizinho abriu a janela e gritou, perguntando quem estava batendo a uma hora daquelas. Com toda a educação, Guy conseguiu saber que nenhum dos sócios do escritório de ad-vocacia morava nas redondezas e que todos já tinham ido para casa havia mais de uma hora.

— Sinto muito, mas chegamos muito tarde — anunciou Guy ao retornar à carruagem.

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— Acredito que mesmo sem o acidente não teríamos chegado a tempo — disse Beth. — Talvez você possa me aconselhar sobre onde passar a noite.

— Acredito que não...

Beth gelou. Foi impossível ver o rosto dele na escuridão dentro da carruagem, por isso não tinha certeza se ele estava sendo sincero.

— E por que não? — indagou diretamente.

— Os únicos hotéis que acho adequados para uma senhora respeitável em trânsito são proibitivos de tão caros — disse ele, levantando as mãos. — Você ainda não me disse quanto pretende gastar, mas não acho que tenha o suficiente na bolsa e tampouco acredito que me deixará pagar sua parte.

— Você está certo nas duas coisas — afirmou Beth, e olhou para a rua escura. — Ainda não sei quanto me custará para provar a inocência de Simon, por isso não estou preparada para gastar dinheiro com o meu conforto. Bem, preciso encontrar alguém a quem possa perguntar... Talvez o cocheiro me ajude.

— Se me permite sugerir...

— Será do meu agrado? — indagou ela, desconfiada.

— Talvez não, mas gostaria que levasse a sugestão em consideração. Fique em minha casa. — Guy apressou-se em prosseguir: — Antes de recusar com toda a veemência, gostaria que deixasse de lado seu maldito orgulho e pensasse. Minha casa na cidade é muito grande. Posso acomodá-la e à sua criada com toda a segurança... Se quiser, nem nos veremos, assim ficará mais fácil se concentrar em como ajudará seu irmão.

— E o que você pretende fazer?

— Gostaria de ajudá-la. Está certo que não costumo vir muito a Londres, mas acho que conheço mais a cidade do que você. Se quer mesmo ajudar seu irmão, aconselho considerar meu convite.

Beth mordiscou o lábio. Naquele instante, um grupo de boêmios passou, lembrando-a de como estaria vulnerável se insistisse em ficar sem a proteção de Guy. Para ser honesta, tinha passado a maior parte da viagem pensando em como se arranja-ria em Londres. Em nenhum momento, duvidou de como o conde lhe seria útil.

— Está bem. Aceito seu convite pelo bem do meu irmão.

— Ótimo.

Guy colocou a cabeça para fora da janela para dar ordens ao cocheiro, e a carruagem voltou a se movimentar.

Beth se recostou na almofada do assento e fechou os olhos. Sentia-se cansada até os ossos, mas não desanimada. Queria muito poder dispensar a proteção do conde e mostrar a ele que não precisava de sua ajuda, mas não foram poucas as situações duran-te a viagem que provaram que ele poderia facilitar muito as coisas, e por Simon ela deveria aceitar toda a ajuda disponível para provar a sua inocência. Por isso, tinha de deixar de lado o orgulho e permitir que o conde a ajudasse, mesmo que a irritasse muito.

— Aqui estamos.

Beth abriu os olhos quando a carruagem parou diante de uma imponente mansão

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de dois andares. Guy desceu primeiro e estendeu a mão para ela, enquanto Fitton corria escadas acima e batia na porta com força. Não havia luz em nenhuma das janelas, mas, depois de poucos minutos, Beth notou uma fraca luz vinda da clarabóia, e minutos depois, a porta se abriu.

Beth teria rido da expressão de espanto do mordomo ao se deparar com Guy se não estivesse tão exausta. Ela permitiu que o c onde a escoltasse para dentro da casa, deixando a bagagem por conta de Tilly e Fitton.

— Não está nada pronto, milorde — disse o mordomo, levando-os para a sala, acendendo com pressa as velas do caminho. — A sra. Burley e eu contamos com apenas um mensageiro e um garoto que trabalha na cozinha. Se soubéssemos antes de sua chegada...

— Eu não tinha me decidido até ontem... Deixe que eu me encarregue da lareira, Burley. Vá ajudar Fitton a preparar os quartos para minha hóspede e para mim. A sra. Forrester e sua criada precisam de uma suíte com dois quartos, presumo.

— Claro, milorde. E quanto às refeições? A sra. Burley mandará o garoto buscar alguma coisa assim que amanhecer, mas, por ora, receio que haja apenas pão e queijo...

— Então é o que comeremos — respondeu Guy. — Peça para servir aqui mesmo e traga uma garrafa de vinho, Burley.

Guy conduziu Beth até uma poltrona.

— Aconselho-a a continuar com a capa um pouco mais, Beth, até que o fogo esteja mais alto.

Beth apreciou sentar-se quieta, enquanto Guy se ajoelhava diante da lareira, arrumando a lenha e atiçando o fogo. Observou-o colocar gravetos nas chamas ainda fracas, esperando que o calor aumentasse para acrescentar o carvão. Concluiu que Guy não era indolente, pois em vez de estalar os dedos e chamar um séquito de criados, preferia cuidar de si mesmo sozinho. Com uma ponta de melancolia, imaginou como seria bom se tivesse um homem assim para tomar conta dela... mas logo em seguida se repreendeu.

Miles já havia deixado claro que estava pronto para tomar conta dela, bastaria um comando seu. Por alguma razão, a ideia a perturbou, e ela a baniu logo da cabeça. Pensaria em Miles quando voltasse a Yorkshire. Por enquanto, se concentraria em ajudar Simon.

Beth ouviu sons de atividade do outro lado da porta e imaginou o mordomo andando de um lado para o outro, importunando todos para preparar a casa para o patrão. Mas apesar da pressa e da afobação do lado de fora da sala, Burley mantinha o semblante impassível ao voltar com o vinho. Junto a ele, vinha uma senhora de rosto rosado e vestido preto, com lapelas brancas e um capuz branco. Beth concluiu que se tratava da sra. Burley, e suas primeiras palavras foram bem próprias de uma criada antiga, ou seja, de alguém que conhecia Guy desde criança.

— Que prazer vê-lo na cidade de novo depois de tanto tempo, milorde! E que bom que acendeu a lareira, pois as noites ficarão frias daqui para a frente, não é? Pena não ter mandando um mensageiro para nos avisar de sua chegada. Nós teríamos preparado tudo. Não que as coisas não estejam em ordem, mantenho as camas arejadas, conforme suas instruções. Precisamos apenas remover as colchas de linho da suíte de hóspedes e acender a lareira, para que fique em condições de ser ocupada. Mas estou preocupada com o que oferecer para comer, milorde. Não temos nada além de pão e queijo.

— Para mim, é mais do que suficiente — interveio Beth rapidamente. — Jantamos

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em Hatfield, por isso não preciso comer muito.

— Tem um pouquinho de caldo que eu estava guardando para nossa ceia...

— Não vamos pegar sua sopa de jeito nenhum — interrompeu Guy, com um sorriso divertido. — A sra. Forrester ficará aqui por alguns dias, então haverá tempo para conhecer os excelentes pratos que você faz.

— É muita gentileza sua dizer isso, milorde. Assim que o mercado abrir de manhã, irei comprar alguns mantimentos. — A sra. Burley colocou a bandeja na mesa e virou-se para Beth com um sorriso. — Vou deixá-los para que possam comer, enquanto vou ar-rumar e me certificar de que os quartos estejam confortáveis. Se precisar de qualquer coisa, basta tocar a sineta. — Seguiu o marido impassível e parou de novo. — Fico com dó por se ter gastado tanto para instalar esses sistema de campainhas e deixarem as sinetas ali em silêncio e sem uso. — Depois de uma breve reverência para Beth, acrescentou: — Avise-me quando quiser ir para o quarto, milady, que passarei o ferro na sua cama.

Quando o casal de criados saiu, a paz voltou a reinar na sala de novo.

— Devo-lhe desculpas — falou Guy, lançando um olhar triste para Beth. — Fiz tantas promessas de conforto, e tudo o que temos para oferecer é pão e queijo. Tem certeza de que será suficiente? Posso pedir para...

— Não, não se preocupe, jantamos bem durante a viagem e quero comer bem pouco — apressou-se a responder Beth, tirando a capa e pendurando-a no encosto da poltrona. Em seguida, tirou o paninho de cima da bandeja. — Temos queijo, pão, manteiga e picles... Uma fartura! Espero não faltar para a ceia do sr. Burley.

— De jeito nenhum... Não ouviu quando a sra. Burley disse que tomariam sopa?

— É verdade, então podemos comer tudo isso com a consciência tranqüila. — Beth tirou todos os pratos da bandeja, colocou-os sobre a mesa e se sentou. — Você não vai me acompanhar?

Guy sentou-se à pequena mesa e serviu dois cálices de vinho para acompanhar a refeição simples. Conversaram sem se preocupar com o tempo, primeiro sobre coisas triviais e depois mais sérias sobre um amplo espectro de assuntos. O fogo da lareira começava a baixar sem chamar muita atenção. Os ruídos vindos da rua também foram cessando enquanto falavam sobre os problemas da França e a independência dos estados norte-americanos antes de focarem a conversa sobre as terras de suas propriedades.

As velas já haviam queimado bastante quando Guy encorajou Beth a contar mais sobre sua vida no mosteiro. Logo ficou claro que ela tomava conta da casa, como também da fazenda, no dia a dia. Era responsável também por algumas tarefas que ele cumpria do mesmo modo, como verificar a contabilidade dos inquilinos das fazendas e a discussão com os colonos sobre o que plantar.

A certa altura, Guy levantou as mãos rindo e pediu para que mudassem de assunto, quando Beth quis saber sobre as práticas de semeadura no inverno.

— Vejo que você é muito mais bem informada do que eu. Meus arrendatários me aconselham sobre o que é melhor plantar em cada estação, mas só decido se as ideias são boas depois que vejo os resultados.

— Não sou muito diferente — respondeu Beth, sorrindo. — A propriedade foi dividida em fazendas pequenas, assim, qualquer falha na safra irá gerar adversidades, mais para os colonos do que para mim, por isso é do interesse deles cuidar da terra. Discutimos o que se deve fazer, as melhorias, e eles precisam me convencer de que suas

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ideias valem a pena antes que eu invista.

— É uma grande responsabilidade — respondeu Guy, cortando mais um pedaço de queijo. — Claro que depois que você se casar, Miles irá tomar conta disso ou contratará um administrador. Segundo me disse, ele tem outra propriedade. Talvez a intenção seja tornar essa a residência principal.

— Não, viveremos em Malpass, pelo menos no começo.

— Será um alívio ter com quem compartilhar o fardo.

Beth não respondeu de imediato, mas baixou a cabeça, deixando evidente uma ruga de preocupação entre as sobrancelhas.

— Beth?

Ela levantou o olhar, desfazendo a ruga e sorrindo.

— É verdade. Isso será uma boa vantagem. — Balançou a cabeça em seguida, ao ouvir o gongo do relógio anunciando que já se fazia tarde. — Preciso me recolher — anunciou.

Durante o pequeno espaço de tempo entre Beth falar e se movimentar para se levantar, Guy percebeu que não queria deixá-la sair da sala.

— Ainda tem vinho na garrafa... Não gostaria de me acompanhar numa última taça?

Beth empurrou a taça na direção dele, aceitando o convite em silêncio, porém Guy entendeu que ela também gostaria de prolongar a conversa e esboçou um sorriso.

A certa altura, quando ainda ceavam, os dois ficaram mais perto, os joelhos se tocando sob a mesa, as mãos apenas centímetros separadas sobre a toalha. Guy encheu as taças mais uma vez. Tinha tomado apenas duas taças, mas experimentava uma estranha sensação dominá-lo, como se estivesse muito alerta e bem ciente do efeito que lhe causava a mulher sentada à sua frente, por isso não perdia um movimento sequer, nem uma mudança na expressão daquele rosto delicado.

Quando estendeu a taça a Beth, os dedos se tocaram de leve.

— Vou tomar essa taça e subirei para o quarto.

Vá para o meu.

Guy se perguntou se teria falado em voz alta, porque ela o encarou com aqueles lindos olhos grandes e escuros, como as profundezas da noite. Em algum momento, Beth havia tirado o lenço dos ombros, e por várias vezes, ele se pegou admirando o pescoço delgado e a pele clara sem nenhum ornamento. Naquele instante, reparou que uma pequena veia pulsava acelerada, como a respiração que elevava e baixava os seios dela.

Com muito esforço, conseguiu conter o desejo que crescia em seu íntimo, procurando qualquer argumento que o impedisse de tomá-la nos braços e cobrir aquela pele deleitável com beijos quentes e apaixonados. Mas tratava-se da noiva de outro homem, embora estivesse sob sua proteção. O irmão dela era um assassino. Este último pensamento o trouxe de volta à realidade e ao motivo que a trouxera à cidade. Talvez naquilo, pelo menos, pudesse ser de alguma ajuda.

— Um brinde à boa sorte quando nos encontrarmos com seu advogado amanhã — disse ele, levantando a taça de vinho.

— Obrigada.

Os olhares se encontraram por cima da borda dos cálices e Beth se mostrou

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comedida. Ela também estava ciente da posição perigosa em que se encontravam. A camaradagem que tinham compartilhado até então havia terminado. Guy ficou contente, pois seu autocontrole estava frágil demais para seu gosto.

Beth tomou alguns goles de vinho e depositou o cálice sobre a mesa.

— Se me der licença, devo me retirar...

Guy se levantou no mesmo instante e atravessou a sala para tocar a sineta.

— A sra. Burley irá mostrar seu quarto.

No esforço de parecer calmo, as palavras saíram em um tom frio e indiferente. Para compensar, ele deu um passo à frente e tomou a mão dela, pousando um beijo nos dedos. Mas Beth se afastou apressada, ocupando-se em pegar seu lenço e a capa.

— Obrigada, você tem sido muito gentil — disse, sem olhar para ele.

Quando a sra. Burley chegou, ela murmurou mais alguma coisa em despedida e se afastou apressada.

Os quartos reservados para Beth e Tilly eram muito confortáveis. Tilly teceu alguns comentários a respeito, enquanto ajudava sua patroa a se despir. Mas Beth quase não a ouviu, pois tentava se convencer de que a sensação de expectativa que a percorria era por causa do encontro que teria com o sr. Spalding no dia seguinte. Contudo, quando ficou sozinha no escuro do quarto, foi a imagem do conde que lhe veio à mente.

Guy estava sorrindo, e a maneira como a observava com olhares convidativos a inundava de um desejo insuportável. Blasfemando baixinho, virou-se na cama, batendo no travesseiro. Recusava-se a ser tola a ponto de achar que podia significar alguma coisa para Guy. Um homem podia levar qualquer mulher para a cama se tivesse oportunidade... Soubera disso pelo próprio marido, quando o flagrara com uma bonita camareira pouco antes do casamento.

E já tinha se oferecido abertamente ao conde, ou não? Guy a recusara e ficara furioso com a insinuação de que aquilo compraria seu silêncio. Entretanto, depois da breve convivência na viagem, ficara evidente que ele mudara de ideia e estava esperando que ela se rendesse e se oferecesse de novo como pagamento pela ajuda que ele lhe prestava.

Guy dissera que a trataria como a uma irmã, mas ela bem sabia da atração inclemente que os atraía. Estava evidente que o frágil véu da respeitabilidade se romperia a qualquer instante e que os dois se renderiam a uma paixão avassaladora, desprezando quaisquer conseqüências. Por um triz, não tinha acontecido quando tomavam a última taça de vinho. A atmosfera estava tão carregada que ela chegara a sentir um choque quando seus dedos se tocaram.

Depois de se lembrar de tudo o que tinha acontecido naquela noite, Beth teve receio de se mover ou falar e abrir as comportas do desejo e afogar-se em uma irremediável paixão.

— Você é mesmo uma tola incurável, Beth Forrester — murmurou para o travesseiro. — Você está aqui para limpar o nome de Simon. Nada deve distraí-la desse objetivo.

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Capítulo Doze

Ao deparar com a farta mesa do desjejum, Beth aplaudiu em pensamento a governanta. Guy já estava à mesa, e ela respondeu ao cumprimento com um sorriso tímido.

— Obrigada por ter me mandado a caixa de escrever, Guy. Fiz o que sugeriu e enviei um bilhete ao sr. Spalding assim que me levantei. Você tem sido muito bom para mim.

— Não há por quê. Estou apenas antecipando que será um inconveniente para meus criados caso seu advogado não possa atendê-la esta manhã.

Pelo sorriso, ficou claro que as palavras frias eram apenas uma brincadeira, mas Beth não respondeu e começou a tomar o café. Imaginou se um dia se acostumaria à presença do conde. Toda vez que o via, sentia um frisson de emoção. Bastava que ele sorrisse para que um aperto inexplicável tomasse seu coração.

Guy não fez nenhuma tentativa de flerte durante o desjejum... Ao contrário, afora a brincadeira inicial, ele a tinha ignorado, de- tendo a atenção no jornal, empilhado sobre a mesa.

Beth estava na segunda xícara de café quando o sr. Burley entrou na sala com um bilhete para ela.

— Ah... — Foi difícil disfarçar o desapontamento conforme lia o bilhete. — O sr. Spalding me pede para adiar minha visita para amanhã, quando ele espera ter mais notícias para me dar. — Depois de dobrar o bilhete, ela comentou com falsa leveza: — Ainda bem que você não pediu a carruagem.

— O que pretende fazer agora?

— Bem, nada — respondeu ela, virando as palmas das mãos para cima. — Serei obrigada a arrumar o que fazer.

E antes que Guy dissesse alguma coisa, ela acrescentou:

— Por favor, não precisa se preocupar em me distrair. Milorde tem uma biblioteca vasta, ficarei muito bem...

— Duvido — disse ele, colocando o jornal de lado. — Se ficar presa dentro de casa por um dia inteiro sem fazer nada, você enlouquecerá. — Levantou-se. — Sei que nunca veio a Londres antes. Vá buscar seu casaco e chapéu, vou levá-la para um passeio.

Beth se surpreendeu quando saiu e viu Holt parado ao lado de uma caleche. O cavalariço bateu a mão no quepe e sorriu.

— Lorde Darrington pediu que eu trouxesse logo os cavalos de volta de Highridge. Cheguei aos estábulos à meia-noite, assim deu tempo de atender ao chamado esta manhã. E foi bom, pois eu não confiaria em ninguém para conduzir estes belos animais.

— Espero que não os tenha forçado demais na viagem — observou Guy, calçando

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as luvas.

— Se tivesse sido assim, eu teria chegado antes de milorde — respondeu Holt, com audácia. — Eles estão descansados, milorde, e prontos para sair.

Beth duvidou da explicação de Holt quando se sentou na caleche e os cavalos bufaram e bateram os cascos no chão. Assim que a porta foi fechada, os animais começaram a andar tão rápido, que ela olhou para trás para se certificar se Holt estava no assento traseiro.

— Não se preocupe — disse o conde, quando ela se segurou no banco. — Nunca tombamos uma carruagem.

— Sempre há uma primeira vez para tudo — respondeu ela, tensa. — Por favor, não se distraia comigo! Preste atenção aos cavalos!

Guy riu e se virou para a frente, concentrando-se em conduzir o veículo pelas movimentadas ruas de Londres.

O sol estava brilhando, e Beth olhava em volta, curiosa. Havia gente e carruagens por todo lado, sem contar que em quase todas as ruas havia construções. Guy dirigia por toda parte com incrível mestria. Primeiro foram a Somerset House, onde ele apontou o palácio da sociedade letrada, antes de virar na direção do cais agitado, para que Beth apreciasse a vista das pilastras imponentes que sustentavam pórticos modernos.

— Nunca vi nada assim — disse ela, encantada. — Se bem que não gostaria de morar tão próximo do rio.

— Durante o verão, não é muito agradável, por causa do cheiro. — Ele se virou para fitá-la. — Quer ver Carlton House?

Guy passou diante do palácio do príncipe de Gales e pela St. James Street, onde vários cavalheiros pararam para vê-los passar.

— Ah, não... — Beth se mexeu no assento. — Talvez a ideia de acompanhá-lo não tenha sido tão boa. Aqueles homens...

Guy levantou o chicote para saudá-los.

— São apenas conhecidos, surpresos por me verem na cidade — disse ele. — Não se preocupe com eles. Não há mal algum em ser vista comigo a esta hora da manhã.

— Ah, não. Estou gostando muito do passeio, obrigada.

— Já passamos por muita gente e confusão — disse ele, virando na direção de Piccadilly. — Vamos até o Hyde Park.

— Não é um lugar muito elegante? — indagou Beth.

— O horário mais requintado é às cinco da tarde. Acredito que não veremos muita gente por lá a esta hora.

Guy seguiu dirigindo, passando por portões e ruelas. Depois que entraram no parque, o barulho diminuiu.

— Aqui é tão mais tranqüilo — admitiu Beth, relaxando. — Eu havia me esquecido de que as cidades são muito cheias.

— Você não tinha planejado aparecer para a sociedade?

— Na verdade, não. Minha intenção era apenas encontrar o casal de Beaune.

— Não trouxe nenhum vestido de noite?

— Trouxe um vestido de seda lilás — respondeu ela, surpresa com a pergunta.

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— Ótimo. Pode vesti-lo esta noite quando formos à soirée de lady Shott.

— Guy, eu... acho que não... — Beth começou a protestar, retesando o corpo.

— Sir Henry Shott foi embaixador francês — interrompeu ele. — Ainda tem fortes laços com o país e oferece uma festa para todos os refugiados políticos que vêm de Paris para Londres. Acho que é uma boa oportunidade para procurarmos o casal.

— Ah, entendo.

— Espero que sim.

— Como? Pensei que...

— Sei exatamente o que pensou. Gostaria que tirasse da cabeça a ideia de que tenho algum plano contra sua integridade.

Guy tentou se convencer de que era verdade, mas reconhecia que era mais seguro que Beth não confiasse nele. Volta e meia, a imagem de Beth deitada em sua cama em Malpass, coberta apenas por uma camisola fina que evidenciava seu corpo perfeito e o cabelo aberto em leque sobre a fronha branca, como se fosse um pôr de sol avermelhado, assaltava sua mente. Desde aquela noite, vinha tentando enganar o desejo, o que era praticamente impossível. E não foi diferente quando ela apareceu na sala de estar naquela noite, pronta para sair.

Não era a primeira vez que a via em vestido de noite, mas, dessa vez, não havia o lenço branco cobrindo o decote. O único adorno era uma carreira de pérolas no pescoço e um cacho de cabelo batendo no ombro nu, que chamava a atenção para os seios macios. Ah, como desejava tomar aqueles seios e enchê-los de beijos...

Beth reconheceu o brilho do desejo nos olhos dele e logo desviou o olhar, levando a mão trêmula ao colar.

— Estou um pouco fora de moda. Espero que este vestido não seja simples demais...

Guy tomou-lhe as mãos, erguendo uma delas até os lábios.

— Você está linda...

Beth engoliu em seco. Sabia que estava muito envolvida por aquele homem, que, pouco a pouco, roubava-lhe o coração. Mas não havia tempo para se preocupar com isso, pensou, enquanto ele colocava a capa em seus ombros. O importante era que Guy iria ajudá-la a encontrar o casal de Beaune, nada mais.

Quando chegaram à casa de sir Henry Shotts, Beth e Guy foram levados aos vários ambientes lotado de pessoas, encontrando em um deles lady Shott, que cumprimentou Guy com um sorriso genuíno.

— Darrington, meu querido, eu não fazia ideia de que você estava na cidade! — exclamou, estendendo a mão para que ele beijasse.

— Espero que nos perdoe por invadirmos sua casa sem termos sido convidados.

Beth observou que lady Shott parecia se derreter diante do charme de Guy.

— Permita-me apresentá-la à sra. Forrester, do mosteiro de Malpass, próximo a

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Fentonby. Ela acaba de chegar à cidade.

O olhar especulativo de lady Shott não passou despercebido a Beth.

— É mesmo? Você deve ser uma das meninas de Wakeford, não? Lembro-me muito bem de lady Arabella. Ela era o terror dos salões de baile quando cheguei a Londres. Pretende passar muito tempo na capital?

— Ainda não posso afirmar nada, lady Shott.

— A sra. Forrester está na cidade à procura de antigos conhecidos — Guy se antecipou. — Na verdade, um casal de sobrenome Beaune.

Lady Shott franziu a testa ligeiramente.

— Não me recordo do sobrenome, mas não posso dizer que não estejam aqui. Como sempre, convidamos muitos refugiados políticos. Talvez Henry possa ajudar mais do que eu. Ele deve estar por aí em algum lugar... — disse, balançando a mão, antes de se afastar em direção a outros convidados recém-chegados.

Guy conduziu Beth pela sala, cumprimentando um e outro conhecido com um aceno de cabeça, mas não parando para falar com ninguém.

— Estamos chamando muita atenção — murmurou Beth, procurando ignorar os olhares de um grupo de cavalheiros mais velhos e empoados.

— Não sei por que a surpresa — respondeu Guy. — Você é uma bela mulher.

— Acho que me olham mais porque estou com você — retrucou ela, forçando um sorriso quando o cavalheiro mais velho se aproximou e se dirigiu a Guy.

— Então você está de volta, não é, Darrington? Fico surpreso que tenha tido coragem de se mostrar.

— Verdade, Kilton? E por que seria?

Pelo tom de voz, Guy não pareceu nem um pouco alterado, mas como estava de braço dado com Beth, sentiu que ela se retesava.

— Você sabe muito bem — disse Kilton, elevando o tom de voz. — Pode ter acontecido há uma década, mas...

— Ninguém tem a memória tão boa quanto você.

A ameaça subliminar da resposta de Guy fez com que Kilton desse um passo atrás, com os olhos faiscando.

— Malditos sejam seus olhos. Você é uma desgraça para seu nome e sua política.

Beth apertou a mão de Guy. Será que tinha sido essa a traição a que Miles se referira?

— Guy...

— Vamos, não podemos nos deixar distrair.

O leve sorriso de Guy foi o suficiente para que ela entendesse que o assunto não seria discutido, mas, quando atravessaram a sala, outras pessoas também os encararam, alguns com curiosidade, outros com evidente expressão de poucos amigos. No entanto, um senhor de rosto redondo e costeletas grandes abriu um sorriso quando viu o conde se aproximar.

— Darrington, meu menino!

Guy o apresentou a Beth como sendo o anfitrião, sir Henry Shott. Como Henry foi

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muito receptivo, ela não perdeu tempo em perguntar se ele conhecia o sr. de Beaune, recém-chegado da França.

— Beaune... humm. Esse nome me diz alguma coisa. Ah, sim, agora me lembro. A sra. de Beaune veio me visitar há alguns dias. Ela chegou da França faz pouco tempo e estava precisando de dinheiro. Eu a ajudei a vender algumas de suas joias.

— E porventura milorde sabe onde ela mora? — quis saber Beth.

— Ela preferiu não me dizer nada e manter segredo. — Henry meneou a cabeça. — Não fique desanimada — acrescentou ele, notando a expressão desconsolada de Beth. — A maioria desses refugiados chega aqui em condições desesperadoras e ansiosos por segurança. Quando entendem que não lhes queremos mal, acabam sossegando.

— Talvez algum de seus conhecidos saiba onde encontrar o casal de Beaune — sugeriu Guy.

— E possível. Leclerc, por exemplo. — Henry inclinou a cabeça na direção de um cavalheiro de casaca bordada e uma peruca bem empolada. — Há anos que ele tornou seu trabalho abrigar refugiados recém-chegados. Vá cumprimentá-lo, Guy, ele na certa se lembra de você, mas está um pouco surdo, por isso é melhor puxá-lo para um canto. — Dito isso, ele deu o braço para Beth e sorriu: — Pode deixar que eu tomo conta da sra. Forrester.

Assim que Guy se afastou, Henry disse:

— Foi uma perda para o país quando esse rapaz deixou o governo.

— É mesmo? Acredito que tenha sido há dez anos, não?

— Isso mesmo.

— Por que ele renunciou? — Beth tentou manter o tom de voz bem casual.

— Foi por causa de um escândalo — respondeu Henry, displicente.

— Acabamos de nos encontrar com o sr. Kilton...

— Não dê ouvidos ao velho Kilton. Ele briga com a família Darrington há gerações. Não acredite em tudo o que ouve a respeito do conde, milady. Ele pode ter defeitos, mas atesto que é um inglês leal. Mudando de assunto, Guy disse que milady vem de Yorkshire. Conhece Ripon? Tenho boas memórias daquele lugar...

Beth se conformou ao perceber que Henry não lhe daria mais detalhes sobre o passado de Guy e permitiu que ele continuasse falando o quanto queria, murmurando uma palavra ou outra em resposta.

Não demorou muito mais para que outro convidado chamasse Henry, e Beth se afastou, feliz em recuperar a liberdade para circular pela sala. Muitos dos convidados tinham acabado de chegar da França, e ela agradeceu pela excelente educação que recebeu, o que lhe permitiu comunicar-se com os refugiados em francês.

Quando passava por um grupo de senhoras, ouviu uma dizer:

— Então é essa o novo flerte de Darrington?

— E dessa vez não foi uma criada — comentou outra. — Melhor assim, se ele quiser evitar outro episódio como o escândalo Brentry.

Os risos e os comentários fizeram Beth corar de raiva. Ao tentar sair rápido, encontrou-se com lady Shott, que a pegou pelo braço:

— Venha, lady Forrester. É uma pena que algumas pessoas gostem tanto de

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fofocas maliciosas. Claro que nada é verdade.

— O escândalo a que elas se referiram... era sobre a srta. B. descrito pelos jornais? — Beth não resistiu a perguntar.

Lady Shott assentiu.

— Lady Brentry tentou jogar a pobre moça para cima de Darrington durante meses. Um filho de um pároco não se compara com o rico lorde Darrington. A moça engravidou do namorado, e lady B. tentou dizer que o filho era de Darrington, mas, como não deu certo, eles se casaram.

Beth espreitou o salão e viu Guy conversando com um grupo de cavalheiros.

— Como pode ter tanta certeza de que isso não é verdade? Afinal, os comentários foram tantos...

— Conheço Darrington — respondeu lady Shott. — Ele não se aproveitaria de uma inocente. Sem contar que estava do outro lado do continente quando a moça engravidou. — E depois de um suspiro de indignação, continuou: — O pior foi que Darrington decidiu ajudar o jovem casal, presenteando-os com uma boa soma em dinheiro. Ficou parecendo que ele estava pagando por um erro que não cometeu. Mas Darrington não se arrependeu nem um pouco, e o casal ficou feliz com o presente. Eles partiram e agora vivem na obscuridade, em Gales. — Assim que terminou de falar, lady Shott sorriu ao ver Guy aproximar-se. — Ah, olá, milorde. Alguma novidade?

— Temo que não. Leclerc não viu o casal de Beaune, apesar de ter sido solicitado para procurá-los.

— Madame de Beaune tem família na Inglaterra — disse Beth, devagar. — Talvez eles a tenham procurado.

— Pode ser isso mesmo — concordou lady Shott. — Todo o mundo procura Leclerc para pedir informações dos franceses. — E com mais um sorriso largo, ela os deixou sozinhos.

— Existe mais alguém aqui a quem possamos perguntar? — Beth olhou ao redor.

— Duvido. Creio que devemos esperar para falar com seu advogado pela manhã. Você quer ir embora?

— Quanto antes, melhor. — Beth estremeceu. — Todo canto para onde olho há alguém me encarando. Nunca fui o centro de tanta atenção.

Guy apoiou a mão dela em seu braço dobrado e deu alguns tapinhas.

— Logo você se acostuma. As mulheres querem saber quem é você, e os homens estão com inveja de mim.

— Será que é só isso? — perguntou Beth, virando o rosto para ele. — E o que disse aquele homem... Kilton?

Guy a fitou com os olhos semicerrados.

— Kilton é um velho tolo. Não há nada com que se preocupar, sra. Forrester. Venha, vamos dar uma volta inteira pelas salas e depois podemos ir embora.

Apesar disso, Beth não ficou mais à vontade, e até mesmo quando se dirigiam para a porta de saída sentiu que alguém a encarava. Quando se voltou, avistou de relance uma barra de vestido se esconder nas sombras.

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Os dois não se falaram muito durante o caminho de volta para a casa de Guy. Beth recapitulou tudo o que tinha visto e ouvido na recepção dos Shott. Será que deveria ser mais ou menos cautelosa em relação a Guy? Não restava dúvida de que Henry e a esposa tinham o conde em alta consideração, mas a lembrança do olhar venenoso de Kilton e de suas palavras voltou a assustá-la. Claro que ele tinha se referido ao antigo escândalo que Miles mencionara. Sem saber o que pensar, levou as mãos às têmporas.

— Está cansada?

A voz melodiosa e o carinho de Guy apenas contribuíram para deixá-la ainda mais confusa.

— Um pouco.

A carruagem parou, e ela permitiu que ele a ajudasse a descer. Assim que a carruagem se afastou, Guy passou a mão dela por seu braço e a acompanhou escadas acima, onde o sr. Burley os aguardava, segurando a porta aberta.

Beth notou que uma moça veio correndo na direção deles, com uma capa de cetim cobrindo o vestido. Não era muito comum que uma mulher andasse sozinha naquela parte da cidade. Quando Guy tentou entrar em casa, a moça de capuz colocou-se na frente de ambos.

— Boa noite, Darrington.

Guy apertou os dedos no braço de Beth. A moça levantou as mãos e gentilmente tirou o capuz, libertando o cabelo loiro. Beth olhou de lado para Guy, que fitava a mulher em silêncio.

— Não vai me apresentar? — perguntou a moça, içando uma sobrancelha e olhando para Beth em seguida. — Vejo que está curiosa a meu respeito, e se Guy não lhe contou, informo que sou a noiva dele.

Dito isso, ela desmaiou na soleira da porta.

Capítulo Treze

— Ah, meu Deus! — Beth deu um passo na direção da moça caída no chão.

— Deixe-a.

Beth olhou para Guy sem acreditar na frieza de sua voz.

— Não podemos deixá-la aqui na chuva! Devemos levá-la para dentro — disse, gesticulando para o sr. Burley. — Rápido, ajude seu patrão.

Sob os comandos de Beth, Guy e o mordomo ergueram a mulher e a levaram para dentro de casa. Beth ia na frente, abrindo as portas até a sala de estar, que estava preparada para recebê-los.

— Deite-a no sofá perto da lareira.

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— Beth!

Ignorando os protestos de Guy, ela tirou o casaco, estendendo-o sobre as almofadas antes que Guy e o sr. Burley a deitassem. Depois se ajoelhou ao lado do sofá, tirou as luvas da moça e esfregou-lhe as mãos, não tão frias quanto imaginara. Reparan-do no rosto da desconhecida, notou que ela estava melhor do que parecia. Estaria fingindo?, imaginou, tentando ordenar os pensamentos. Noiva de Guy... As palavras pesaram em seu coração, mas foi preciso deixá-las de lado e se concentrar em ajudar a outra a se recuperar.

As roupas da desconhecida eram finas, apesar de a barra do vestido estar enlameada, bem como os sapatos de cetim. Ela usava uma peruca clara, mas as olheiras tinham sido escurecidas, além de uma palidez incomum. Estudando-lhe os traços, Beth concluiu que ela já tinha sido bonita. Ainda se tratava de uma bela figura, um tanto espalhafatosa.

— Eu trouxe um copo de água — avisou Guy. — Vou borrifar um pouco no rosto dela. Isso deve acordá-la.

— Não será necessário. Ela está se mexendo.

— Ora, muito conveniente.

Beth ignorou o comentário cínico e, com gentileza, conversou com a moça, que se movia perturbada.

— Fique quieta. Está tudo bem.

A moça abriu os olhos e fixou-os em Beth por um instante, para em seguida fitar Guy.

— Estou mesmo segura, Darrington?

Beth notou o tom carinhoso. Levantou-se e se afastou um pouco, sentindo-se uma intrusa.

— Vou deixá-los...

— Não vá — pediu Guy, segurando-a pelo braço. — Não há nada que ela queira me dizer em segredo. Deixe-me apresentá-la à srta. Clarice Bellington, e aproveito para assegurar que não estamos noivos. Essa história terminou há dez anos!

— E não sou mais a srta. Bellington — respondeu Clarice, se sentando. — Sou a viúva Cordonnier. — E colocando a mão na testa, pediu: — Posso aproveitar esse copo de água?

Guy deu o copo a ela, e Clarice tomou alguns goles sem tirar os olhos de Beth.

— Essa é seu último flerte? Se me permite dizer, Darrington, ela não faz o seu tipo. Pelos relatórios que tive, suas aventuras amorosas são loiras, parecidas comigo...

— Basta! — gritou Guy, contraindo o maxilar. — Diga o que veio fazer aqui.

Beth sentou-se em uma poltrona perto da janela. Àquela altura, Guy parecia ter se esquecido de sua existência, focado que estava em Clarice, que lhe lançava olhares sedutores por entre os cílios.

— Eu o vi na festa dos Shott e segui sua carruagem. Ainda bem que não é muito longe, porque não tenho dinheiro para tomar um coche, e tive de vir a pé.

— Pensei que estivesse na França.

— Você quer dizer, fora do caminho? — Clarice sorriu, mas Beth percebeu que a conversa não seria amena. — Estive lá até pouco tempo. Eu me casei com Cordonnier

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assim que cheguei à França. Mas ele era um perdulário e perdeu todo o nosso dinheiro no jogo antes de dar um tiro na cabeça. Isso não foi tão ruim, visto que tenho muitos admiradores... condes, viscondes, marqueses... mas agora não é uma boa época de ser amante de um nobre. Então... estou de volta a Londres.

— À minha porta.

Clarice deu de ombros.

— Essa não era minha intenção inicial, mas os tempos mudaram. Parece que meus... amigos não me conhecem mais.

— E você acha que pode culpá-los? — indagou Guy, curvando os lábios.

— Talvez não. Preciso de dinheiro, Darrington. Não tenho nada mais no meu nome.

— Isso não é problema meu.

— Foi por isso que fui à casa de sir Henry. Sei que ele vê a França com bons olhos e sempre consigo uma refeição por lá. Mas, mesmo não tendo me expulsado da casa, é óbvio que não sou bem-vinda.

— Aqui também não — disse Guy com toda a franqueza.

— Não tenho nem como pagar um hotel.

— Pare com esses seus joguinhos, Clarice.

— Se você não me ajudar, serei obrigada a entrar para o convento mais próximo! — exclamou ela, sarcástica.

— Então faça isso. — A resposta dura fez com que Beth se aproximasse, e Guy lembrou que ela estava na sala. — Não perca seu tempo com ela. Clarice é muito astuciosa.

— Não pode jogá-la na rua!

— Eu... não quero que ela fique na minha casa. — O tom de voz de Guy era implacável. As palavras foram mais ferozes do que o vento que fazia a chuva bater contra a janela.

— Por favor, já passa da meia-noite. — Beth se aproximou e tentou convencê-lo. — Nenhuma mulher merece ficar na rua sozinha a esta hora.

A primeira reação de Guy foi acariciar o rosto de Beth com as costas da mão.

— Está bem. Vou mandar uma carruagem levá-la até onde ela estiver hospedada.

— Ora, ora... Quem é esse anjo de candura? — indagou Clarice, observando a cena.

— Meu nome é Elizabeth Forrester. E apesar do que pode parecer, não sou amante do conde. Ele está me ajudando com... um problema de família.

— Não é preciso dar satisfações a ela. — Guy atravessou a sala para tocar a sineta.

Beth concluiu que, com a rapidez com que Burley respondeu, devia estar colado do outro lado da porta.

— Chame minha carruagem de volta o mais rápido possível.

— Eu gostaria de comer alguma coisa enquanto aguardamos — pediu Clarice, encolhendo-se com elegância no sofá.

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Guy meneou a cabeça, e Burley saiu da sala, voltando minutos depois com uma bandeja de pães e frios.

Refletindo, Beth concluiu que a sucessão de eventos daquela noite se assemelhava a um sonho. Aliás, as últimas semanas tinham sido cansativas e extraordinárias ao mesmo tempo, tanto que chegou a duvidar se tinham sido reais. E naquele momento, àquele horário de uma noite chuvosa, estava ali, sentada em uma sala elegante, observando a mulher, que clamava ser noiva do conde, fartando-se de uma ceia.

Clarice estava muito à vontade, ignorando Beth e dirigindo-se apenas a Guy, que ora respondia com monossílabos, ora não dizia nada. Por fim, ela empurrou o prato e recostou-se no sofá, suspirando.

— Sua excelente governanta não perdeu o jeito, Darrington — disse Clarice, limpando os lábios com a pontinha do guardanapo. — Lembro-me de que ela podia preparar uma refeição deliciosa mesmo quando avisada em cima da hora.

Beth olhou para as mãos cruzadas no colo. Era evidente que Clarice estava usando todo o seu charme, mas Beth ficou aliviada por notar que Guy não demonstrava nenhuma reação.

— Fico feliz que tenha gostado — disse ele com educação, seguindo até a janela e abrindo-a um pouco. — Se estiver satisfeita, a carruagem já está a sua espera.

Beth notou quando Clarice bateu os cílios de maneira afetada.

— Vou voltar para meu alojamento, mas não tenho um tostão. O que farei quando a proprietária exigir pagamento?

— Não faço ideia.

— Guy! — protestou Beth, revoltada pelo tom de voz dele.

Clarice o encarou com ares de inocência. Guy olhou de uma para a outra com os lábios contraídos.

— Está bem, espere aqui.

Assim que ele saiu, Clarice se voltou para Beth.

— Ora, vejam só, parece que a senhora tem muita influência sobre Darrington. Onde ele a estava escondendo?

— Ele não está me escondendo em lugar nenhum — respondeu Beth com frieza. — Tenho uma propriedade em... — hesitou antes de completar: — No norte de Yorkshire.

— Imagino que seja perto de Fentonby — comentou Clarice com um sorriso jocoso. — Perguntei a lady Shott sobre você. — Suspirou. — Acho que ele foi abrir o cofre. Quanto será que vou receber?

— Não tenho ideia — respondeu Beth. — Espero que saiba usar o dinheiro com sabedoria.

Dito isso, afastou-se determinada a não perguntar mais nada, apesar de estar cheia de dúvidas. O noivado tinha terminado havia dez anos... Na mesma época em que Guy fora acusado de traidor? Teria sido essa a razão do rompimento do compromisso?

— Ele era louco por mim — disse Clarice. — Soube que, depois que o deixei, ele jurou que nunca mais confiaria em outra mulher.

Beth endireitou os ombros e inclinou a cabeça.

— Não sei do que está falando.

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— Mas você quer ser aquela que o salvará, estou certa? — indagou Clarice. — Vejo essa vontade nos seus olhos. Você acredita que pode ensiná-lo a amar. Bem, tenha cuidado, sra. Forrester, pois ele pode abandoná-la, como fez comigo.

Beth ouviu passos de alguém se aproximando e foi poupada de responder.

— Aqui está — anunciou Guy, estendendo um maço de notas a Clarice. — Isso é tudo o que receberá de mim.

Clarice examinou o maço, deslizando o dedo nas notas.

— Não é muito, levando-se em consideração o que fomos um para o outro.

Como Guy não respondeu, ela bateu os cílios de novo.

— Não vai me expulsar, vai, Darrington? A chuva está tão forte e é tão tarde.

— Mais uma razão para se apressar — disse Guy, abrindo a porta da frente e gritando para o lacaio.

— Você não costumava ser tão cruel.

— Não, eu não costumava ser tão esperto.

Fez-se um silêncio pesado. Beth ouviu que Clarice batia o pé no chão sob a barra suja do vestido. De repente, o barulho cessou, e ela encarou o conde com um brilho nos olhos.

— Você me deve mais do que isso, Darrington. Eu fui sua noiva!

— Para ser sincero, milady, devo-lhe muito menos. Já avisei que é melhor ir embora antes que eu perca a paciência.

Burley apareceu na sala para informar que a carruagem estava à espera.

— E então? — perguntou Guy.

— Muito bem. — Clarice se levantou, balançando as saias. — Vou deixá-lo aqui com sua... — Com desdém, mirou Beth de cima a baixo.

Percebendo o desconforto de Beth, pelo conhecido comportamento de Clarice, Guy intercedeu:

— Saia daqui, Clarice, antes que eu mude de ideia e chame a polícia para tirá-la da minha casa.

Clarice levantou o nariz e o fuzilou com um olhar cheio de veneno.

— Você vai se arrepender, Darrington.

— A única coisa da qual me arrependo é de ter caído nas suas garras.

Beth ouviu quando Clarice respirou fundo, depois o farfalhar das saias, e a porta foi fechada. Deixou-se cair na poltrona em silêncio.

— Gostaria que não tivesse presenciado essa cena — murmurou Guy, dirigindo-se até um aparador e servindo duas taças de vinho.

— Você... teria agido diferente? — indagou ela, lembrando-se das insinuações de Clarice.

— Sim. Eu a teria deixado deitada na calçada.

Beth ficou sem saber se tinha ficado chocada ou aliviada com a resposta.

— Obrigada, mas não. — recusou quando ele ofereceu o cálice de vinho. — Quer me contar... sobre ela?

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— Sobre Clarice? Não. Gostaria que esquecêssemos tudo sobre ela. Por favor, não brigue comigo. Essa mulher não vale um milésimo de preocupação. Vá se deitar e poupe suas energias para amanhã.

Beth procurou seguir o conselho de Guy e se esquecer de Clarice Cordonnier. Não foi muito difícil, pois já tinha problemas demais.

Levantou-se cedo no dia seguinte, ansiosa pelo encontro com Spalding. Ciente de que o dia seria longo, fartou-se no desjejum, servindo-se de fatias de presunto e carne fria, seguido de mel e pão condimentado, além de café preto. Já estava quase terminando a refeição quando Guy entrou na sala, desculpando-se pelo atraso.

— Fitton separou uma roupa de veludo, mas achei que um casaco mais simples seria mais apropriado para não chamar muita atenção em Cheapside.

Beth relanceou o olhar para Guy, concluindo que ele sempre chamaria a atenção, independentemente da roupa. O porte altivo e a atitude jamais passariam despercebidos. Ele havia escolhido um casaco verde-oliva com botões prateados, um colete creme e botas até os joelhos. A camisa branca, com colarinho e punhos engomados, era da mais fina qualidade, e o cabelo castanho brilhava ao sol da manhã que inundava a sala. Beth precisou contrair os lábios. para não deixar um suspiro escapar.

Ah, por que ele tem de ser tão bonito?

— Você está mesmo determinado a me acompanhar? — perguntou. — Posso perfeitamente...

Guy levantou a mão, pedindo que ela parasse.

— Não tenho dúvidas, mas insisto em ir junto. Já concordamos que posso ajudá-la. Minha caleche já está nos aguardando. Peço apenas alguns minutos para tomar meu café e logo seguiremos para Cheapside.

Beth se retirou da sala para ir buscar o chapéu e o xale. Estava feliz que não se aventuraria sozinha, mas ciente, por outro lado, de que quanto mais tempo passasse ao lado de Guy, mais difícil seria a partida.

Uma hora mais tarde, eles chegaram aos escritórios da Spalding, Spalding & Grooch e foram conduzidos a uma sala escura, revestida de madeira, que cheirava a papéis antigos. Um senhor de idade e de peruca cumprimentou Beth com um sorriso paternal. Olhou para o conde, como se questionasse sua presença, mas, depois de apresentados, convidou-os a se sentar.

— Seu bilhete de ontem dizia que haveria notícias — disse Beth sem preâmbulos. — O casal de Beaune ainda está na Inglaterra?

— Acredito que sim, apesar de que a primeira informação estava incorreta. Somente a sra. de Beaune chegou a Londres. — Spalding deu uma tossidela. — Devido à atual situação na França, não é de se estranhar que o marido tenha sido... detido.

— Ela pode estar viúva — ponderou Beth. — Acredito que ele era bem mais velho que a esposa.

— E onde ela está agora? — perguntou Guy.

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Spalding se mexeu na cadeira.

— Assim que recebi sua carta dizendo que viria a Londres, entrei em contato com a sra. de Beaune, intimando-a, afirmando que tinha uma cliente que gostaria de vê-la. Não tive resposta. Ontem, quando recebi seu bilhete, mandei um mensageiro com outra inti-mação. Ele voltou dizendo que a sra. de Beaune estava para partir no coche público para Portsmouth.

— Portsmouth! — exclamou Beth. — Ela está voltando para a França.

— E bem capaz — concordou Guy. — Mas se sairmos agora, ainda poderemos alcançá-la. Quem sabe ela ainda espera pela passagem.

Beth meneou a cabeça e virou-se para Spalding.

— Ela deixou algum endereço?

— Sim, o White Bear.

— Você me levaria até lá? — Beth pediu a Guy.

— Claro.

Spalding começou a remexer em alguns papéis sobre sua mesa.

— Se isso for tudo, peço licença. Prometi visitar um cliente em Hertfordshire. — Suspirou. — É um assunto que vai me manter fora da cidade durante alguns dias,e quero partir ainda hoje...

— Sim, não vamos mais atrasá-lo. — Beth se levantou. — Obrigada, sr. Spalding. Vamos correr para Portsmouth agora mesmo.

Beth saiu praticamente correndo do escritório, parando apenas na calçada.

— Quanto tempo o coche público leva para chegar a Portsmouth? — Beth perguntou a Guy, que a ajudava a subir na caleche.

— Acredito que leve a maior parte do dia — respondeu ele, encolhendo os ombros.

— Então existe mesmo a possibilidade de ela ainda estar lá. Quanto tempo levaremos para chegar?

Guy não respondeu de imediato, deixando-a aflita.

— Então?

— Se voltarmos para minha casa e pedirmos a carruagem, chegaremos a Portsmouth no início da noite.

— Tão tarde assim?

— Existe outro meio.

— E...?

Guy virou o rosto para encará-la com um brilho de desafio nos olhos.

— Podemos partir já na minha caleche. Acho que estaríamos lá em menos de cinco horas.

O cavalariço se espantou, mas Beth o ignorou.

— Se é assim, vamos agora mesmo.

Sem dizer mais nada, Guy tomou as rédeas da caleche e seguiu por uma série de ruas estreitas até chegar a Blackfriars Bridge.

— Que caminho tomaremos? — indagou Beth, olhando para o rio Tâmisa e

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observando a quantidade de barcos e balsas que ali navegavam e o conseqüente movimento.

— Se seguirmos por Battersea e Wandsworth, iremos mais rápido do que se lutarmos contra o tráfego ao norte do rio.

Por eles, passaram carruagens de todos os tipos, desde as mais elegantes às mais simples, como carroças puxadas por bois. Quando as ruas ficaram menos movimentadas, Guy induziu os cavalos a trotar. Beth relaxou, admirando a paisagem banhada pelo sol de outono.

— Você está muito quieta. Nervosa? — perguntou Guy.

— Você conduz muito bem e não o repreenderei por andar rápido demais. Mas se a sra. de Beaune voltar para a França, não sei o que farei.

Beth não conseguiu disfarçar a ansiedade na voz e, para acalmá-la, Guy soltou uma das rédeas e apertou a mão dela.

— Não vamos nos preocupar antes da hora.

Beth não respondeu, pois estava aturdida. O gesto de lhe segurar a mão tinha sido rápido, porém de uma intimidade chocante, como se ambos se conhecessem havia muitos anos. O carinho simples foi o responsável por uma onda reconfortante que envol-veu seu coração, encorajando-a, acalmando-a e enchendo-se de gratidão. Ela guardou a sensação boa e nem reparou na estrada ou nos pedágios.

— Milorde está forçando muito os cavalos! — gritou Holt. — Precisaremos trocar de cavalos em Guildford.

— Não, eles chegarão até Bramshott — respondeu Guy, sem tirar os olhos da estrada. — Assim viajaremos apenas 32 quilômetros com cavalos desconhecidos.

Beth não sugeriu nenhuma parada para se refrescar. Quando checaram a Bramshott, ela desceu enquanto Guy negociava com o dono do estabelecimento por cavalos melhores. Quando voltou, de a ajudou a subir e já tinha substituído os cavalos.

— Holt! — gritou ela para Guy, depois de alguns metros na estrada. — Ele ficou lá!

— Holt vai ficar com meus cavalos. Vamos pegá-lo na viagem de volta. Somos só nós dois agora.

— Já que estamos sozinhos, poderíamos conversar sobre ontem à noite.

— Não há nada para se falar.

— Mas...

— Por favor, não se preocupe com Clarice. Ela é como uma gata que sempre cairá de pé.

— Mas ela foi sua noiva.

— E o que você tem com isso?

As palavras ásperas fizeram-na se calar. O que poderia dizer? Que estava com ciúme de todas as mulheres que ele conhecia? Até podia ser verdade, más jamais admitiria.

— Nada, é claro.

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— Se não se importar, não vamos discutir. Por que não falamos sobre onde poderemos encontrar a sra. de Beaune?

Beth engoliu em seco, procurando se lembrar do que acontecera na última parada.

— Falei com uma das criadas de lá. Ela me contou que há uma taverna chamada White Bear, ao norte de Portsea Island.

— Deve ser lá que encontraremos a sra. de Beaune. Bom trabalho!

O elogio repentino a surpreendeu. Ela endireitou o corpo e fixou o olhar na estrada.

— Achei que era uma boa ideia fazer algumas perguntas — disse, repreendendo-se por sua voz estar tão fraca.

— Foi um dia exaustivo para você. Imagino que esteja cansada.

— Estou agitada demais para estar cansada. Espero até o fim do dia encontrar a prova da inocência do meu irmão.

— Você tem se esforçado bastante por ele.

— E você não teria feito o mesmo? É a vida de Simon que está em jogo. Se fosse apenas pelo sobrenome, ele poderia fechar-se do mundo, vivendo escondido e ignorando os acusadores, como você mesmo... — Beth se arrependeu do que tinha dito no mesmo instante.

— O que exatamente quer dizer isso, Beth?

Ela tentou outra posição no assento, desejando estar em qualquer outro lugar, menos ali.

— Eu... hum... soube que... houve um escândalo. E por isso você vem pouco a Londres, por que vive nos estados do norte a maior parte do tempo...

Os cavalos não sentiram a tensão com que Guy segurava as rédeas. A raiva dele não afetou a maneira como os conduzia.

— Imaginei que soubesse — respondeu ele por fim. — Desde que embarcamos nessa maratona, você nunca perguntou nada sobre mim. Não sou um inútil, mas fiquei ofendido por ter demonstrado tão pouco interesse em mim. A menos que considerasse já saber tudo a meu respeito.

— Seu passado não é problema meu.

— De fato não é. Qual você acha que é minha culpa? Vamos, diga — desafiou-a Guy quando Beth fez um gesto de mão para que o assunto fosse deixado de lado. — Agora você já falou bastante para deixar de contar o restante. Talvez Clarice a tenha informado sobre algum detalhe picante ontem à noite.

— Não!

— Vamos, diga logo o que sabe.

— Não sei de nada. Deveria ter ficado quieta, desculpe-me.

Blasfemando baixinho, Guy puxou as rédeas, parando a caleche.

— Não me satisfarei com isso. Quero saber com quem imagina estar viajando.

— Por favor, falei sem pensar. Será que não pode esquecer? — Beth se virou para o lado, mas ele a desvirou, segurando-a pelos ombros.

— Não, não posso — afirmou, com os olhos faiscando. — O que lhe contaram a meu respeito? Que sou um monstro? Um assassino? Ou talvez um libertino que se

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aproveita de mulheres vulneráveis? — E segurando o rosto dela, prosseguiu: — Por acaso, está com medo de que eu faça alguma coisa com você?

— Não, você não faria nada.

— Ah, veja o que acabou de dizer. — Guy riu e balançou a mão. — Estamos sozinhos e a quilômetros de distância de qualquer lugar. Por que não faço com você o que me der vontade?

Apesar de toda a raiva, evidente no rosto contraído, Beth viu também que havia muita dor. Havia cutucado uma ferida profunda que continuava aberta. Como a raiva não era totalmente dirigida a ela, Beth teve coragem de encará-lo.

— É óbvio que não acredito que você seria capaz disso — disse com calma. — Eu não teria vindo até aqui se acreditasse que você me feriria.

Guy apertou os braços dela com mais força, e Beth precisou morder o lábio para não gritar.

— O que acha que eu sou?

— Eu soube que... — Ela virou o rosto para o lado antes de sussurrar a palavra: — Traição.

Guy a soltou, e ela passou as mãos nos braços.

— Você sabe o que há de pior em mim.

— Não sei dos detalhes. Imagino que não seja algo tão grave, já que você é um homem livre...

— Talvez deva me perguntar sobre isso.

— Não tive provas de que confia em mim o suficiente. Você se esquivou de minhas perguntas na noite da festa e se recusou a me explicar sobre sua noiva. O que teria me dito sobre isso se eu tivesse perguntado também?

— O pior que se pode dizer a meu respeito é que sou um grande tolo — disse ele, tomando as rédeas.

A caleche recomeçou a andar, e Beth concluiu que a frágil amizade que tinham construído fora rompida por causa de uma palavra dita em hora errada.

— Não posso julgá-lo pela minha própria experiência — disse ela, tentando consertar os danos. — Acredito que você seja um bom homem.

— Espero que nunca tenha motivos para mudar de opinião.

Guy agradeceu pelo fato de ter cavalos novos puxando a caleche, assim tinha desculpa para manter os olhos fixos na estrada. Repreendeu-se por ter deixado a raiva aflorar. Não era mais um jovem imaturo que explodisse por tão pouco. Fazia tempo que já não se afetava mais com as insinuações e o desprezo que tinham sucedido ao escândalo, forçando-o a se afastar da vida pública. Com exceção dos amigos íntimos, não se importava com o que pensassem dele, apesar de ter tratado com desdém as mulheres que se atiraram aos seus pés, ansiosas pelo título e pela fortuna, sem se importar que seu nome estivesse manchado por um escândalo.

A verdade era que Beth Forrester tinha minado todas as suas defesas. No início da viagem, pensou que eram apenas um homem e uma mulher que apreciavam a companhia um do outro. No entanto, durante todo o tempo, ela o achava um traidor, por

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isso imaginou que podia comprar seu silêncio oferecendo-se a ele!

Toda a ira se dissipou ao olhar para o lado e se deparar com a frágil figura sentada a seu lado. Que direito tinha de julgá-la? Optara por se retirar do ciclo social em vez de limpar seu nome. Mal podia julgar uma mulher por não acreditar nele.

— Logo chegaremos à taverna White Bear — disse ele, na tentativa de recomeçar a conversa. — Estranho que a sra. de Beaune tenha dado esse endereço se pretendia partir de Portsmouth.

— Pensei a mesma coisa — respondeu Beth. — A menos que a experiência em Portsmouth a tenha deixado relutante em partir.

— Bem, espero descobrir a verdade em breve. — Guy levantou o chicote, apontando uma grande construção a distância. — Se não estiver enganado, presumo que aquela seja a taverna.

Cinco minutos depois, a caleche de Guy parou diante da taverna. Tratava-se de uma grande e antiga construção de dois andares, e havia muita atividade por ali quando chegaram. Os cavalariços estavam amontoados em um canto, conversando, e não vieram pegar a caleche de imediato. Sabendo da impaciência de Beth, Guy gritou por ajuda, e assim que os cavalos estavam seguros, pulou e ajudou-a a descer.

— Esse não foi o serviço mais eficiente que já vi — comentou ao dar a mão para Beth. — Nem mesmo o taverneiro veio nos cumprimentar.

— Talvez tenha sido pelo excesso de movimento — disse Beth, ao abrir a porta. — Espero que lá dentro o serviço seja melhor.

Guy a seguiu e passaram pelo bar barulhento. Beth hesitou antes de entrar na sala de café no exato momento em que um garçom com expressão de poucos amigos surgiu, enxugando as mãos em um avental. Depois de cumprimentá-los com um sinal de cabeça, ele perguntou se podia ajudá-los.

— Estamos procurando a sra. de Beaune — disse Guy. — Acreditamos que ela esteja hospedada aqui.

O garçom franziu o cenho e ficou imóvel.

— Estão procurando a sra. de Beaune.

— Sim. — O garçom continuava perplexo.

Guy o instigou:

— Ande, homem, diga onde ela está!

O garçom engoliu em seco e olhou em volta, como se procurasse ajuda.

— Por favor — implorou Beth. — Viajamos de Londres até aqui para encontrá-la. Por favor, diga-nos se ela está aqui.

— Bem... ela está, por assim dizer... — O garçom não enxugava mais as mãos no avental, mas o torcia, — Ela está, mas... morta.

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Capítulo Catorze

Beth ficou atordoada com a notícia e sentiu quando Guy a segurou pela cintura. Antes que dissesse alguma coisa, um cavalheiro distinto de sobrecasaca marrom e peruca cinza apareceu.

— Esta senhora e o cavalheiro acabam de chegar de Londres, sir, e querem saber da francesa. — Dito isso, o garçom saiu apressado, grato por ter passado adiante a responsabilidade das informações.

— Sou sir Jeffrey Farnborough, o magistrado — anunciou o cavalheiro. — Posso saber o que fazem aqui?

— Primeiro gostaria de uma cadeira para milady — respondeu Guy, que ainda segurava Beth bem próxima de si.

Fia nem ousou se libertar, por receio de que suas pernas fraquejassem.

— Ah, claro. Venham, por favor.

Sir Jeffrey os conduziu para um corredor até uma pequena sala de jantar, distante da entrada da taverna.

— Muito bem. Qual o interesse na sra. de Beaune? — perguntou sir Jeffrey, fechando a porta.

Guy conduziu Beth até uma cadeira e se abaixou um pouco para dizer:

— Deixe que eu cuido disso. — E, endireitando o corpo, dirigiu-se ao magistrado: — Conhecemos a sra. de Beaune na Inglaterra. Ela viajava com o marido, que tinha vindo para cá a negócios. Gostaríamos de renovar a amizade. Infelizmente chegamos tarde a Londres, e ela já havia partido, mas nos deixou um bilhete dizendo que estaria aqui.

— Onde está o bilhete?

— Infelizmente não pensei que seria necessário. — Guy arqueou uma sobrancelha antes de prosseguir: — Talvez seja melhor eu me apresentar. Sou lorde Darrington, e esta é a sra. Forrester.

— Bem, lamento, milorde, milady, mas vocês perderam a viagem. Como informou o garçom, a sra. de Beaune faleceu ontem à noite.

— Qual foi a causa da morte? — indagou Guy, balançando o monóculo.

— Ela foi assassinada, milorde.

Beth arregalou os olhos, mas não disse nada.

— É mesmo? — Guy ajeitou o monóculo no olho. — Que coisa chocante. Será instaurado um inquérito para se saber como... ou por quê?

— Pelo que soubemos, um ladrão a assaltou durante a noite. A pobre mulher deve ter dito que seus bens estavam nas malas e ele a esfaqueou. O hóspede do quarto ao lado ouviu a confusão e deu o alarme, mas o assassino foi rápido demais ao pular a jane-la e fugir.

— Isso é apavorante — murmurou Beth.

— E verdade, milady — concordou sir Jeffrey. — Bem, preciso ir. Como acabaram

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de chegar, suponho que não poderão me ajudar no caso. Por acaso, sabem se a sra. de Beaune tinha família?

— Não — disse Beth.

— Pelo que sabemos, ela havia acabado de chegar da França — complementou Guy.

— Ah, sim, uma refugiada. — Sir Jeffrey suspirou. — Foi um triste fim. Imagino que milady e milorde voltarão para Londres.

— Sim, mas não imediatamente — informou Guy. — Depois desse choque, precisamos de tempo para refletir. Isso se milorde não fizer nenhuma objeção. Pretendo tomar alguma coisa. Posso lhe oferecer...?

— Obrigado, mas não — respondeu o magistrado, inflando as bochechas. — Preciso ir. Há muita coisa a se fazer por aqui.

Assim que sir Jeffrey fechou a porta atrás de si, Beth olhou para Guy.

— Por que não disse a verdade?

— E contar que você pretendia questionar a sra. de Beaune sobre um assalto anterior? Achei que a informação só complicaria ainda mais a situação — disse Guy, observando-a. — Você ainda está muito pálida. Fique aqui enquanto peço uma refeição leve para nós...

— Ah, não, não estou com fome.

— Tolice. Não comemos nada desde hoje cedo. Isso não vai lhe fazer bem.

Guy saiu da sala, deixando Beth em silêncio. Ainda estava abalada por tudo o que tinha ouvido, mas não apreensiva. Muita gente circulava pela taverna e não havia o que temer, no entanto, ela ficou aliviada quando o conde voltou.

— A senhoria está preparando uma refeição para nós. Pedi que trouxessem café imediatamente — anunciou ele. — Posso pedir vinho, se preferir...

— Não, não, uma xícara de café está ótimo.

Beth mal terminara de falar quando uma criada surgiu com uma bandeja e colocou na mesa as xícaras, uma jarra de leite e um bule de café.

— Quer um pouco de café? — ofereceu Beth, mas não conseguiu levantar o bule por causa das mãos trêmulas, e precisou colocá-lo de volta.

— Deixe que eu sirvo.

— Obrigada. — Beth o observou colocar o café na xícara e estender a ela. — Desprezo minha fraqueza.

— É natural estar assim depois do que ouviu. Admito que me surpreendi por sir Jeffrey nos ter contado detalhes do ocorrido.

— Imagino que ele esteja mais acostumado a lidar com roubos ocasionais do que com assassinato. Talvez precisasse falar a respeito. Pobre mulher, que tragédia... — Beth pôs a xícara sobre a mesa. — Sei que pode parecer egoísta da minha parte — continuou com a voz fraquejando —, mas não consigo parar de pensar que não há ninguém para defender Simon...

Guy tirou o lenço do bolso e deu a ela, que, agradecida, limpou os olhos, lutando para não cair em prantos, determinada a não desmoronar na frente dele.

— Se tivéssemos vindo ontem — lamentou, segurando o lenço com as duas mãos

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sobre o colo. — Pensar que chegamos tão perto por nada...

Guy se abaixou e tomou as mãos dela nas suas.

— Não perca as esperanças ainda. É provável que haja outros meios de ajudar seu irmão. Apesar da minha reclusão, ainda tenho muita influência.

Beth o fitou através das lágrimas, entrelaçando os dedos nos dele.

— Vai mesmo nos ajudar? Depois de tudo o que eu disse...

— Shh... — Libertando uma das mãos, Guy pegou o lenço e enxugou uma lágrima furtiva no rosto dela. — Sou muito obstinado, Beth. Quando estou determinado, não sossego enquanto não resolvo.

Guy sorriu, e Beth percebeu que os olhos que lhe pareceram insondáveis agora estavam mais azulados, suaves e macios, como uma nuvem. Por outro lado, a reação que tivera ao sorriso dele não fora nada suave, foi algo tão profundo que chegou à alma, afastando todos os medos e as preocupações.

Uma fagulha se acendeu, percorrendo-lhe o corpo, quando ele lhe segurou o rosto. Ela fechou os olhos quando ele lhe acariciou os lábios com os dedos, murmurando de prazer. Em vão, a razão tentava alertá-la para voltar a si e não se deixar levar por aquela loucura, mas o movimento foi ínfimo, seguido de um suspiro.

Beth sentia dificuldade para respirar, estava totalmente submissa à vontade dele. Inútil seria tentar fugir, e em um momento insano constatou que tampouco era esse seu desejo. Estavam sentados tão próximos que era possível sentir o calor da perna dele na sua.

Guy. Ela poderia repetir esse nome milhões de vezes, e ele a beijaria, a tomaria nos braços e minaria toda a sua resistência. A ideia fez com que seu coração pulsasse apressado, jorrando adrenalina em sua corrente sanguínea, dificultando a respiração, en-quanto o desejo ardia em seu baixo-ventre. A paixão era tão contundente que ela achou que não suportaria sem desmaiar. Apenas um raio conseguiria evitar que ele a tomasse.

Mas a porta se abriu de repente.

— Aqui está o jantar, milorde.

A voz do garçom a trouxe de volta à realidade. No susto, pulou para o lado com o rosto corado. Já o conde não se mostrou tão sem graça. Ao contrário, virou a cadeira e observou enquanto o garçom servia à mesa.

— Vocês têm sorte de receber esta refeição. O assassinato afetou tanto a cozinheira que ela ficou histérica. Foi preciso que a senhoria lhe jogasse um balde de água fria na cabeça para que se acalmasse e voltasse a ser ela mesma.

— Duvido que um crime desses aconteça a toda hora — comentou Guy.

— Eu nunca tinha visto nada parecido em toda a minha vida — afirmou o garçom. — Sei que a velhinha francesa era muito exigente e não falava nenhuma palavra em inglês, mas não merecia ser esfaqueada até a morte, não é?

— Velhinha? Qual era a idade dela? — perguntou Guy.

— Não sei ao certo, mas era uma senhora já — disse o garçom, encolhendo os ombros. — Coitada da jovem que viajava com ela, soube que é viúva do filho da sra. de Beaune. Não concordo com a maneira como o rei francês e seus lordes tratam os menos afortunados, mas também não acho justo a fúria assassina e a matança.

Beth ficou petrificada. Olhou para Guy e viu que ele também prestava muita

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atenção ao que o rapaz dizia.

— Quem era essa jovem? Você sabe o nome dela?

— Ah, milorde, ela também era sra. de Beaune. Ela ficou tão desolada que partiu assim que soube que a sogra tinha falecido, mas ninguém sabe para onde foi.

— Sir Jeffrey não disse que havia outra sra. de Beaune — observou Beth.

— Talvez porque não saiba.

— Mas ele é o magistrado! — protestou Beth.

— Bem, se ele não perguntou, duvido que alguém tenha contado alguma coisa — disse o garçom com um olhar de piedade. — Afinal, de que adiantaria procurar a pobre jovem e trazê-la para cá? Não foi ela que matou a sogra, e temia ser morta também. Nin-guém tentou impedi-la quando disse que estava partindo.

— Como partiu ela?

Beth se encantou com a calma de Guy em conseguir fazer as perguntas certas, quando ela mesma mal era capaz de conter seu entusiasmo.

— Ela embarcou na estação de Southampton. — O garçom sorriu. — Pagou o que devia e desapareceu.

Beth fixou o olhar em Guy.

— Você acha...

— Sim, acho que sim — assentiu ele, meneando a cabeça. — A sra. de Beaune que procuramos ainda está viva. Tudo o que precisamos fazer é encontrá-la.

— Simon disse que o casal visitava a irmã da sra. de Beaune, que era casada com um inglês e morava num vilarejo não muito longe de Portsmouth. — Beth olhou para cima. — Não devem existir muitos ingleses que se casaram com francesas.

— É concebível que ela esteja indo para lá também. Podemos começar a fazer perguntas no caminho à estação de Southampton.

Beth balançou a cabeça e pegou o garfo.

— Terminaremos de comer e iremos em seguida... — Parou de falar, quando percebeu que Guy sorria. — Eu disse alguma coisa errada?

— Percebeu que não poderemos voltar para Londres esta noite?

— Claro. — As maçãs do rosto de Beth enrubesceram. — Por acaso está preocupado com minha reputação? Penso nesse problema depois. No momento, é muito mais importante encontrar a sra. de Beaune!

Não tardou muito para que terminassem a refeição e já estavam a caminho. Depois de ajudá-la a subir na caleche, Guy deu uma manta para Beth.

— Eu... ahn... comprei do senhorio. Não sabemos por quanto tempo viajaremos, e pode esfriar mais tarde.

Ele acenou com a mão quando ela agradeceu e correu para o outro lado para se sentar. Depois de alguns quilômetros, Beth fez uma pergunta que a estava perturbando:

— Você lembra quando o garçom disse que a sra. de Beaune estava com medo de ser morta também? Posso estar indo longe demais, mas... Será que esse assalto não tem

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a ver com o outro que eles sofreram em Portsmouth?

— É coincidência demais que essa pobre mulher esteja envolvida em uma seqüência tão brutal de eventos. Se for o caso, temos mais uma razão para encontrá-la e protegê-la.

Beth juntou as mãos.

— Se houver uma conexão... você acha que pode ter refletido no caso de Simon também?

— É possível — concordou Guy. — Mas não devemos nos adiantar, primeiro precisamos encontrar a sra. de Beaune. Se nossa teoria estiver correta, ela pode estar em qualquer ponto do caminho entre aqui e Southampton. Vamos demorar, pois teremos que parar para fazer perguntas.

— Eu sei. — Beth meneou a cabeça. — Ela pode também estar em alguma transversal e a perderemos.

— Vamos ver.

Foi fácil seguir pelo caminho que levava à estação, e sempre que passavam por uma taverna, Guy parava e pedia por uma refeição leve. O jeito simpático e as gorjetas polpudas encorajavam os taverneiros a responder às perguntas supostamente casuais sobre se alguém tinha descido ali naquela manhã ou se havia na região algum cavalheiro casado com uma francesa.

Beth admirava os métodos de Guy, mas teria preferido ter uma participação mais ativa na busca. Era dona de suas ações havia muito tempo para ficar passiva enquanto Guy assumia o comando da situação. A bem da verdade achara-o autoritário demais. Sentada ao lado dele na caleche, era impossível não estar ciente de sua imponente figura, sobretudo quando seus corpos se colidiam com o balançar da caleche ou quando observava as mãos hábeis com as rédeas, tudo a remetia à sensação fascinante que sentira quando, por pouco, não tinham se beijado.

Para sua própria segurança, era preciso afastar aqueles pensamentos, pois a deixavam com frio e calor ao mesmo tempo, e em vez de manter a distância, sua vontade era de se aconchegar a ele e se confortar com a presença máscula. Isso não iria acontecer, claro.

Guy confundiria seu desejo por conforto com algo mais. O que não era o caso. Pelo menos, era do que tentava se convencer, procurando inclusive se manter afastada dele, o mínimo que fosse. Tinha de tomar muito cuidado, pois não estava com nenhuma criada e não havia nem mesmo um cavalariço que atuasse como acompanhante. Fora tolice ter se aventurado em uma caçada alucinada apenas na companhia de Guy, mas se não tivesse feito isso, poderia ter perdido a chance de encontrar a sra. de Beaune.

Beth endireitou os ombros. Afinal, era uma viúva respeitável, que, com o passar dos anos, aprendera a desencorajar a empolgação de qualquer homem que se tornasse muito próximo. Se fosse necessário, não hesitaria em usar as mesmas táticas com Guy. Entretanto, uma vozinha em sua mente fazia troça da maneira como mantivera o conde a distância.

Isso foi diferente, ela se repreendeu de mau humor. Ele me pegou desprevenida. Agora já estou ciente das minhas fraquezas e será mais fácil me prevenir

— Você está muito quieta. Cansada?

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Até mesmo a voz profunda a derretia, mas ela se recuperou logo.

— Um pouco — respondeu, feliz por ter demonstrado calma. — Tudo o que fiz desde que saímos da White Bear foi tomar cerveja ou vinho. Acho que não consigo nem chegar perto de outra bebida alcoólica.

— Mas foi por uma boa causa. Você percebeu com que rapidez nos responderam? Mesmo que as respostas tenham sido negativas? A próxima cidade deve ser Wickham, tomara que tenhamos mais sorte aqui. Poderemos pedir o jantar.

Definitivamente, tinha de parar de achar boa a novidade de ter um homem cuidando dela. Assim, Beth decidiu provocá-lo:

— É mesmo? Não tenho certeza se é isso o que quero fazer.

— Agora não é hora de ser petulante — respondeu ele, estacionando a caleche em uma praça em frente à maior taverna. — Duvido que haja outro lugar civilizado entre aqui e Southampton, e se você não está com fome, eu estou.

Beth chegou a abrir a boca para responder, mas fechou em seguida ao perceber que não tinha como contestar uma verdade. Guy sorriu e passou a ponta dos dedos sobre o rosto dela.

— Você se irrita quando tenho razão, não é? — Guy não deu tempo para uma resposta; desceu da caleche, passou as rédeas para um cavalariço e deu a volta para estender a mão a ela. — E agora está brava comigo — comentou pouco antes de entrarem na taverna.

Beth fez questão de ignorá-lo. O taverneiro logo apareceu cheio de mesuras e, sorrindo, os conduziu até uma sala particular, na qual Beth ficou furiosa ao ouvir Guy solicitar quartos e pedir que o jantar fosse servido o quanto antes. Que homem insuportável! Teria machucado se a consultasse onde ela queria parar ou jantar? Puxou com força os cordões da capa, tirou-a e colocou-a sobre uma cadeira, jogando ali o chapéu também. Ouviu o taverneiro se despedir e a porta fechar. Olhou com o canto dos olhos para Guy e viu que ele havia desabotoado o casaco, mas não o tirara. Estava parado à porta, observando-a. Beth continuou de costas até ouvi-lo suspirar.

— Acredite, só estou pensando no seu bem-estar.

— Não me importo de jantar aqui — respondeu ela. — Mas não gosto de vê-lo decidindo tudo por mim. Além disso — continuou, mais aliviada — não quero ser chamada de petulante! Você não me trataria assim se eu fosse um homem! Não que eu não lhe seja grata por tudo, mas o acho arrogante, prepotente e determinado a se encarregar de tudo...

Beth parou de falar quando Guy a tomou pelo braço e a fez se virar para ele. Estavam com os corpos colados, e ao encará-lo, ela deu um passo atrás ao notar fogo nos olhos dele.

— Estou cansado, faminto e sem nenhuma paciência para chiliques.

— Chilique?

— Eu já disse uma vez e repito que a trato como a uma irmã. Se minha irmã começasse a reclamar e resmungar desse jeito, eu a deitaria nos meus joelhos e lhe daria umas palmadas. No seu caso, minha vontade é fazer outra coisa com você...

O brilho maquiavélico dos olhos dele a fez parar de respirar por um instante.

— Vo... você não ousaria — gaguejou Beth, depois de umedecer os lábios com a língua.

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Guy estava com o rosto a uma distância mínima do seu. Aos poucos, ele a puxava para mais perto, e quando falou, a respiração quente varreu o rosto dela.

— Quando me desafia assim, não se trata do que eu não ousaria, mas de até que ponto consigo me controlar.

Beth arregalou os olhos, mas não os desviou. Estavam bem próximos de novo, e seu coração batia tão forte que receou que ele ouvisse. As imagens geradas pela ameaça deixaram-na exaltada de um jeito nunca sentido antes. Era como se cada célula de seu corpo ganhasse vida e sentisse em dobro a força daquelas mãos fortes que a prendiam. Engoliu em seco quando ele a estudou com olhos de um predador, em dúvida sobre onde morder primeiro.

— Não pode... me... violentar. — Beth lutava para manter a voz calma. — Eu não permitiria.

— Não estou pedindo sua permissão.

Ela engoliu em seco de novo e fechou os olhos. Guy estava falando sério e iria dominá-la naquele segundo, independentemente de onde estavam.

O mais inusitado era que Beth desejava que ele se comportasse daquela forma. Precisou reunir as últimas forças para levantar os olhos e enfrentá-lo.

— Isso seria um ato de libertinagem — disse ela, o mais séria que conseguiu parecer.

— Você conhece minha reputação.

As bocas estavam à distância de um beijo. A tentação de desistir de lutar era imensa, mas Beth ainda conseguia se manter firme.

— Sim, mas eu o conheço bem para acreditar que você seria capaz de algo assim.

Guy levantou o rosto e afrouxou a mão nos braços dela.

— Você não me forçaria a fazer nada contra a minha vontade.

— E você se oporia mesmo?

Beth respondeu que não, movendo a cabeça ligeiramente.

— Não, mas deveria. Seria muito errado. — Ao ouvir o som de pratos e talheres, ela acrescentou: — Acho que nosso jantar chegou.

Em seguida, aproximou-se da mesa e esperou que ele puxasse a cadeira. Depois de se sentar, procurou se convencer de que estava aliviada por a ameaça não ter se consumado.

Os dois observaram em silêncio quando o garçom e uma criada puseram uma toalha na mesa e espalharam os pratos. A sala estava ficando escura, quando um mensageiro apareceu com algumas velas, que Guy tirou de sua mão.

— Deixe que eu cuido disso. — Guy se impressionou com como sua voz estava normal. — Deixem tudo sobre a mesa e nós mesmos nos serviremos. Não precisam voltar se eu não chamar.

Os criados saíram da sala apressados. Confuso, Guy olhou para a vela, como se não soubesse de sua serventia. Ao relancear o olhar para Beth, viu que ela olhava pela janela, o colo subindo e descendo rápido. Ela havia se impressionado com o que acabara de acontecer mais do que o levara a crer. Antes de dizer alguma coisa, Guy ocupou-se em distribuir e acender as velas.

— Eu devia ter pedido para atrasarem o jantar em uma hora — disse, tentando

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parecer trivial. — Que chegada mais fora de hora.

— Não. — Beth falou tão baixo que ele precisou apurar os ouvidos. — Não, fiquei feliz por termos sido interrompidos antes que algo de que nos arrependeríamos acontecesse.

Guy pensou em fazer uma brincadeira, mas percebeu o quanto ela estava confusa.

— De minha parte, eu não me arrependeria — disse, gentil.

— Talvez não, mas é como se eu estivesse casada com outro homem — disse ela com pesar. — Desculpe-me, mas acho que estou viúva há muito tempo.

Guy se encantou com a compostura. Qualquer outra mulher estaria ralhando pela tentativa de sedução, mas não Beth Forrester. Ela bem conhecia seu poder como mulher.

— Você não nega a atração que existe entre nós.

Beth se serviu de um copo de água e deixou transparecer o tremor das mãos.

— Não posso negar, mas também não quero me render.

— Por causa de Miles?

— Sim, prometi que me casaria com ele, esquecendo-me de todos os outros.

— Mas vocês ainda não estão casados.

— Os contratos estão assinados. É como se o casamento já tivesse acontecido. — Beth olhou para ele, prevendo os argumentos. — Você faria com que eu deixasse Miles de lado por uma paixão de momento? Fomos jogados um contra o outro pela situação. Aceitei sua ajuda para salvar meu irmão, mas depois disso, voltaremos aos nossos mundos diferentes. Não é certo que nos encontremos de novo.

Guy sentiu como se tivesse levado um banho de água fria, mas ela estava com a razão. A atração física entre eles era forte, mas não o suficiente para durar. Como poderia se comprometer com alguém que não passava de uma ilustre desconhecida semanas an-tes? Não seria justo pedir que ela desistisse de um bom casamento e da chance de ser feliz para sempre em troca de algumas noites de luxúria.

— Você é muito sábia e muito honrada.

— Estou apenas sendo prática — disse ela, dando de ombros. — Vamos comer?

Apesar da aparente frieza, Beth não conseguiu apreciar a comida. Estava calma por fora, mas ardia de desejo pelo homem à sua frente. Ao menos, ele tinha sido tolerante.

Entre fatias de presunto e cálices de vinho, Guy falou sobre assuntos diversos que a ajudaram a recuperar o equilíbrio.

Em um primeiro momento, poderia julgá-lo insensível se não tivesse notado o tremor da mão dele ao passar um prato, nem a hesitação em dizer alguma coisa que a deixasse desconfortável.

Aos poucos, a tensão foi se esvaindo. Beth já conseguia falar com ele sem corar. E quando o taverneiro voltou para se certificar se estavam bem servidos, ela assumiu a conversa, lembrando a razão de estarem ali.

— Creio que uma conhecida minha more por aqui. Trata-se de uma senhora francesa. — Beth abriu um sorriso triste. — Infelizmente perdemos contato, ela se casou com um cavalheiro interiorano cujo nome não me lembro...

— Ah, pode ser a sra. Graveney, que mora em Bourne Park.

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— Tomara que seja — disse Beth, procurando não parecer muito, ansiosa. — Gostaria muito de me encontrar com ela de novo. Será que a família estaria em casa?

— Ah, sim, é raro eles viajarem, salvo visitas ocasionais a Bath, por causa das águas. O sr. Graveney sofre de gota.

— A que distância fica Bourne Park daqui? — indagou Guy.

— Uns cinco quilômetros — respondeu o senhorio, coçando a cabeça. — Engraçado como são as coisas — continuou ele, juntando os pratos vazios —, aluguei minha charrete para uma jovem hoje pela manhã. Ela também queria ir a Bourne Park.

Beth olhou para Guy animada e cheia de esperanças.

— Deve ser a irmã da sra. Graveney — disse. — Eu sabia que ela estava planejando vir para cá.

— Então deve ser isso. — O senhorio sorriu para os dois. — Pena vocês não terem chegado antes. Acho que a pobre jovem ficaria contente em ter companhia, pois parecia nervosa demais viajando sozinha por ser estrangeira e não falar direito inglês.

Beth mal conteve a alegria até o senhorio sair da sala.

— Só pode ser a sra. de Beaune! — exclamou animada, assim que ficaram sozinhos. — Hoje é noite de lua cheia. Se o senhorio estiver certo quanto a distância, podemos chegar lá em uma hora.

— Está me propondo visitar uma família às dez horas da noite? — Guy arqueou as sobrancelhas. — Acho que o sr. Graveney não ficará muito feliz.

Beth juntou as mãos, como se estivesse rezando, apoiando a ponta dos dedos na boca.

— Eu sei, mas e se o assalto na White Bear tivesse como alvo a sra. de Beaune mais jovem e não a mais velha? E se o assassino a seguiu até aqui? Se alguma coisa acontecer...

Beth sabia que estava implorando, mas achou que valia a pena. Tanto que Guy concordou, meneando a cabeça.

— Está bem. Vou pedir que encilhem os cavalos — disse, sorrindo. — Coloque sua capa de novo e vamos para Bourne Park.

Sair à noite em uma caleche era uma experiência nova para Beth. Viajavam por um mundo sem cores, restrito a sombras em tons de cinza, produzidas pelo luar. Para se proteger contra o ar frio, ela não tirou o capuz da capa.

Não encontraram ninguém no caminho. O silêncio absoluto reinava, a não ser quando uma ou outra ave noturna piava ou voava de um galho a outro.

As instruções do senhorio estavam certas, pois uns quarenta minutos depois, a caleche parou diante dos portões fechados de Bourne Lodge. De onde estavam, vislumbravam apenas um caminho curvo, ladeado por árvores altas, mas não avistavam a casa.

Guy passou as rédeas para Beth e desceu. Minutos depois, ela ouviu o barulho de correntes.

— Está trancado.

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Ele mal acabou de falar quando houve uma comoção nos jardins. Dois cães latindo e rosnando pularam nos portões, e Guy saltou para trás.

— Cães de guarda. Eles estão se protegendo — disse, olhando para Beth, que tentava acalmar os cavalos assustados. — Você consegue segurá-los?

— Claro que sim, eles não vão disparar.

Os cavalos tinham acabado de se acalmar quando se ouviram gritos, assanhando os cavalos que balançavam as cabeças e bufavam nervosos.

— Quem está aí?

De onde se encontrava, Beth conseguiu discernir a figura de um homem chegando ao portão, mas não pôde ver o rosto dele direito.

— Quem são vocês? O que fazem aqui?

— Se estivermos em Bourne Park, gostaríamos de falar com o sr. Graveney — anunciou Guy, levantando a voz para ser ouvido apesar dos latidos.

— Quietos, Samson, Ajax! — O capataz afastou um dos cachorros com o pé. — Estão no lugar certo, mas o patrão já se recolheu e deu ordens para não receber ninguém.

— Muito prudente. — Guy enfiou a mão no bolso e tirou um porta-cartões prateado. — Eu agradeceria muito se pudesse entregar este cartão a ele e dizer que estarei de volta amanhã de manhã.

Beth ficou mais tranqüila quando Guy se aproximou do portão o suficiente para entregar o cartão, ficando longe dos cachorros. Em silêncio, o capataz pegou o cartão.

— Obrigado. — Guy jogou uma moeda. — Isso é pelo seu trabalho. E ganhará outra se estiver aqui amanhã para abrir o portão para nós e prender esses cachorros.

— Essa ordem terá de vir do patrão — disse o capataz, enfiando a moeda e o cartão no bolso.

— Claro. — Guy subiu na caleche e pegou as rédeas das mãos de Beth. — Acho que seremos recebidos. — Dito isso, virou a caleche e saíram trotando. — Não precisaremos temer pela segurança da sra. de Beaune esta noite. — E com este último comentário, seguiram pela escuridão.

— Espero que esteja correto. — Beth estremeceu. — Eu não gostaria de passar por aqueles portões com os cães soltos.

— Nem eu. Mas tenho esperança de encontrarmos a sra. de Beaune certa. Não há nada mais a fazer até amanhã de manhã, por isso sugiro que voltemos à taverna para tomarmos uma bebida quente antes de nos recolher.

Beth estava tão entretida com a busca da sra. de Beaune que apenas se deu conta da presença de Guy quando já estavam diante da lareira na sala particular. No caminho tinham conjecturado sobre possíveis conexões entre o assassinato na White Bear e Simon, mas não chegaram a nenhuma conclusão.

— Talvez seja melhor aceitar que foi uma coincidência desastrosa — comentou Guy, ao se inclinar na direção da lareira, para atiçar o fogo.

— Para mim, não faz sentido que alguém tenha atacado a sra. de Beaune, roubado seu colar, e, dois anos mais tarde, quando ela resolve voltar para a Inglaterra, sua sogra seja brutalmente assassinada. Deve haver uma conexão.

— Se não houver, será apenas mais um triste incidente nos jornais. — Guy

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bebericou o ponche. — Ainda há um elo que não consideramos — disse, colocando mais rum no pote, enquanto Beth aguardava. — Miles Radworth.

Beth começou a rir.

— Miles? O que ele tem a ver com isso?

— Ele estava na mesma taverna com seu irmão e o casal de Beaune. Muito providencial a aparição dele depois do assalto, não?

— Foi bom que ele estivesse por perto. Ele fez de tudo para ajudar Simon.

— É mesmo?

Guy serviu-a de ponche em uma pequena caneca, e ela não respondeu de pronto. Enquanto inalava o forte aroma do rum quente com limão, relembrava tudo o que Simon havia contado.

— Ajudou sim — disse por fim, enfática. — Ele disse aos policiais que estavam cometendo um erro ao acusar Simon. Depois disso, ele viajou para Malpass para nos levar a notícia da morte de meu irmão.

— Você não acha que foi muito trabalho por alguém que ele conheceu por acaso?

— Estamos falando de um ato de generosidade incomparável. Quando penso em como o traí...

— Você não o traiu — respondeu Guy, seco.

— Não, mas fiquei muito tentada.

— Se não houvesse tentação, a honra em resistir seria pouca. — Guy sorriu, fitando-a por cima da caneca.

Bastou um olhar para que Beth sentisse o desejo queimando-lhe a pele. Quanto tempo duraria sua resistência? Na dúvida, manteve os olhos baixos, concentrando-se em bebericar o líquido doce e quente.

— Está tarde, e estou cansado — anunciou Guy, colocando a caneca na mesa. — Venha, permita-me acompanhá-la até seu quarto.

Beth pegou a capa e o seguiu pelos corredores sombrios. A chama tremeluzente da vela no castiçal de parede lançava sombras que dançavam nas paredes ao lado deles, como se fossem criados atrapalhados. Um mensageiro solícito os conduziu ao segundo andar.

— Parece que somos vizinhos de quarto — murmurou Guy, abrindo a porta.

Beth aguardou enquanto ele entrava no quarto e voltava minutos depois com um castiçal, que entregou a ela, depois de acender a vela de um candeeiro na parede.

— Boa noite, sra. Forrester.

Beth entrou no quarto e trancou a porta. Ouviu outra porta abrir e passos no quarto ao lado do seu. Devia ser Guy, pensou, sorrindo, encostada à porta do quarto. Quando será que começara a pensar nele como Guy, e não como conde Darrington?

Era difícil lembrar quando ele tinha deixado de ser um convidado inconveniente e passado a ser alguém indispensável. Bem no fundo de seu coração, reluzia uma chama de esperança. Talvez, quando todo aquele drama findasse, pudesse encontrar uma maneira...

Não! Ela se repreendeu e deixou o pensamento de lado. Não ousaria sequer cogitar um futuro enquanto Simon não estivesse a salvo. Desencostando-se da porta,

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inspecionou o quarto com a luz de uma única vela. Painéis escuros se estendiam do teto ao chão, sem nenhum enfeite além de um pequeno espelho, preso à parede.

Uma cama com dossel ocupava a maior parte do quarto. Em um dos cantos, havia uma mesa com um lavatório. Estava dando a volta na cama quando reparou numa linha de luz debaixo de um dos painéis. Ao se aproximar mais, viu uma frágil tranca de metal e uma chave...

No segundo seguinte, pulou para trás, assustada quando a porta se abriu. Guy estava ali sob o batente, uma figura sólida e escura, delineada pela luz do outro quarto.

— Se você planejou isso... — Ela contraiu os olhos em sinal de suspeita.

— Não, garanto que não. Eu pedi quartos separados. — Na voz grave, havia uma nesga de humor. — Temo que o senhorio tenha entendido mal. — E olhando ao redor, comentou: — Por que não acendeu as outras velas? — perguntou, tomando o castiçal da mão dela.

— Eu... Era isso que eu ia fazer. — Beth se calou. Não diria mais nada, muito menos que estava ali, parada no escuro, pensando nele.

Guy circulou pelo quarto, acendendo todas as velas.

— Aí está — disse ele, devolvendo o castiçal. — Assim você enxerga o caminho para a cama.

Ao estender o braço para pegar o castiçal, os dedos de ambos se tocaram. Será que ele ousaria beijá-la? Guy a observava de cima a baixo com olhos insondáveis.

Ele está esperando, pensou de súbito. Está aguardando por um sinal meu.

— Boa noite — disse ela formalmente, endireitando o corpo e apontando para a porta aberta.

— Tem certeza de que devo sair? — O sorriso indefectível quase a fez ceder.

— Tenho certeza sim. — Beth espalmou a mão no peito largo e o empurrou com gentileza, mas com firmeza, para a porta.

— Está bem — disse ele, voltando para o outro quarto e dizendo pouco antes de ela fechar a porta: — Se precisar, basta chamar.

Ao girar a chave, Beth ouviu um clique que a deixou satisfeita.

— O quê? — A voz de Guy estava abafada pelos painéis de madeira. — Não confia em mim?

Apesar de estar sensível demais diante da sensação, Beth começou a rir.

— Boas cercas fazem bons vizinhos.

Como se tivesse todo o tempo do mundo, Beth se preparou para deitar. Como não tinha camisola, decidiu ficar com a roupa de baixo. O vestido e as anáguas tinham que ser sacudidos e dobrados com cuidado sobre uma cadeira, prontos para serem usados na.manhã seguinte.

Depois de pronta, ainda sorria ao se deitar, pensando em Guy. Será que ele já estaria dormindo ou ainda acordado também? Beth virou-se de lado, acomodando o rosto sobre a palma da mão. Ele não a coagiria. Ela era livre para trancar a porta de ligação e mantê-lo a uma distância segura. No entanto, a cama foi esquentando, e ela desistiu de dormir, pensando que poderia passar a noite nos braços de Guy.

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Capítulo Quinze

O sol se infiltrou no quarto através da vidraça empoeirada da janela, e Beth ficou imóvel por alguns minutos. Logo se animou. Vestiu-se rápido, assobiando uma música enquanto prendia o cabelo. Fazia muito tempo que não se sentia tão feliz. Claro que era porque tinha encontrado a sra. de Beaune, disse a si mesma enquanto arrumava o lenço no pescoço. Seu estado de espírito nada tinha a ver com o fato de Guy a estar esperando.

O sorriso dele ao vê-la entrar na sala para tomar o desjejum foi conspirador.

— Imagino que tenha dormido bem.

— Muito bem, obrigada — respondeu ela, sem conseguir disfarçar o brilho dos olhos.

Ele também a fitava de um jeito carinhoso, acentuando a sensação maravilhosa que dominava todo seu corpo.

Enquanto ela servia o café para ambos, ele cortava finas fatias de presunto e carne e colocava no prato dela. Poderíamos ser um casal que está junto há muitos anos, imaginou Beth, afastando o pensamento logo em seguida. Estava ciente de que andavam em uma corda bamba. Bastaria uma palavra errada, um toque, e ambos se jogariam um nos braços do outro.

Isso não podia acontecer, Beth sabia que havia muita coisa em jogo para arriscar sua felicidade e a de sua família por causa de um caso amoroso. Sorrindo para ele, absorveu cada palavra dita, cada olhar, e guardou no fundo do coração, pois as lembranças seriam as únicas coisas que restariam do conde.

A caleche de Guy seguiu pela estrada sob o sol quente de outono. Quando chegaram a Bourne Park, os portões estavam abertos e não havia sinal do capataz nem de seus cães. A casa era uma residência sólida, quadrada e construída de tijolos e pedras de Portland, com poucos degraus até a porta de madeira sólida entre duas pilastras.

Beth notou a pintura recente, as janelas reluzentes e um jardim muito bem cuidado que indicavam a boa administração da casa.

Ao se aproximarem pelo caminho de cascalho, um mordomo apareceu à porta, e um criado correu para pegar as rédeas dos cavalos.

— Estavam esperando por nós — murmurou Guy, ao ajudar Beth a descer.

O mordomo os conduziu até uma elegante sala de estar, na qual foram recebidos por um cavalheiro de peruca marrom, que se apresentou como sendo sir Richard Graveney.

— Meu capataz me disse que milorde veio nos ver ontem à noite — disse sir Richard depois de feitas as apresentações. — Não era uma hora habitual de uma visita de

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cortesia.

— Estamos em circunstâncias anormais — explicou o conde. — Acreditamos que a sra. de Beaune esteja visitando a família.

— É mesmo? — perguntou o sr. Graveney, sem demonstrar nenhuma alteração no semblante.

— Viemos da taverna White Bear, em Widley — disse Beth. — chegamos lá pela manhã... depois da tragédia que lá ocorreu.

— E como imagina que eu possa ajudá-la, milady?

— Sabemos que a jovem sra. de Beaune deixou a hospedaria ontem pela manhã. Soube que a irmã dela mora nos arredores e que é casada com um inglês. — Beth sorriu, tímida. — Assim chegamos até aqui, sir.

— Viemos ontem à noite porque achamos que sua cunhada pode estar em perigo — acrescentou Guy. — Nossa preocupação foi aplacada pela sua... recepção.

O sr. Graveney os encarou em silêncio e seguiu até a janela com a testa contraída. Depois de observar o jardim por alguns minutos, chegou a uma decisão.

— Minha esposa recebeu uma carta da irmã, revelando que ela e a sogra tinham fugido dos terrores da França e procuravam refúgio. Respondemos de pronto oferecendo nossa casa. Minha cunhada chegou ontem à noite muito estressada. Ela nos contou que a sra. de Beaune fora assassinada e que ela fugira, temendo por sua vida. Ela nos implorou para não revelar seu paradeiro a ninguém. — E franzindo o cenho, dirigiu-se a Guy: — Qual é o seu interesse nesse assunto, milorde?

— É provável que nenhum — respondeu Guy. — Gostaríamos de falar com ela sobre algo que aconteceu há dois anos...

— Fora de questão! — exclamou o sr. Graveney, fazendo um sinal com a mão.

— Por favor, sir — implorou Beth com urgência na voz. — Não viríamos de tão longe se não fosse tão importante. A vida do meu irmão está em jogo — continuou ela rápido. — Milorde deve saber do ataque que ela e o marido sofreram quando deixavam o país há dois anos.

— Sim, eles nos escreveram contando quando já estavam na França em segurança. O maldito ladrão não escapou da punição — disse o sr. Graveney. — Acho que morreu afogado.

— Ele não era ladrão e não morreu afogado — informou Beth, lutando para se manter calma. — Ele é meu irmão, que lutou contra os assaltantes e foi acusado injustamente.

A emoção impediu que Beth continuasse.

— Talvez seja melhor eu explicar — ofereceu Guy.

Guy relatou o ocorrido como Simon tinha contado e, ao terminar, esperou por uma reação do sr. Graveney. Beth estava com os nervos à flor da pele e não aguentou esperar em silêncio.

— Queremos falar com a sra. de Beaune por apenas alguns minutos — murmurou ela, com o olhar fixo no sr. Graveney. — Se ela testemunhar sob juramento o que de fato aconteceu em Portsmouth, meu irmão pode ser declarado inocente.

— E onde está seu irmão agora, milady?

Beth mordiscou o lábio, mas foi Guy quem respondeu:

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— Ele é um fugitivo. Se ele for a julgamento sem o testemunho da sra. de Beaune, não haverá chance de justiça.

O sr. Graveney permaneceu solene, tamborilando os dedos no braço da poltrona, até que, por fim, olhou para Guy.

— Certo, mas será que devo acreditar em vocês? Será que posso confiar? Nunca ouvi falar dessa senhora, mas milorde tem uma bela reputação. Lembro-me de um escândalo desagradável...

— Isso aconteceu há dez anos — interrompeu-o Guy.

— Sim, mas envolveu segredos do estado.

— Nenhum dito por mim. Eu errei, mas foi uma indiscrição da juventude que paguei retirando-me do governo e da vida pública...

— É mesmo? — O sr. Graveney bateu a mão em um jornal ao lado da cadeira. — Milorde pode passar a maior parte do tempo em Wylderbeck, e não faço ideia das suas atividades por lá, mas seu nome sempre é mencionado de maneira indiferente nas páginas sociais. E quando aparece, está sempre vinculado... a mulheres vistosas. Seu caráter, milorde, é duvidoso, para se dizer o mínimo.

— Por favor, senhores! — Beth se levantou quando o clima ficou perigoso, e se dirigiu ao sr. Graveney: — Contrário a tudo que tenha ouvido falar de lorde Darrington, sir, atesto que em se tratando do meu irmão e de mim ele tem sido muito íntegro. Quando meu advogado disse que a sra. de Beaune estava na Inglaterra, eu decidi procurá-la, sozinha, mas o conde não permitiu que isso acontecesse. A ajuda dele nesse assunto tem sido valiosa demais.

A fúria, que instantes antes transfigurava o rosto de Guy, amainou-se. Ao olhar para ele, Beth transmitia uma confiança que enterneceu seu coração.

— Ainda tenho vários amigos no governo que me avalizariam, sr. Graveney, e se tivéssemos tempo, eu colheria um número razoável de referências. Mas cada minuto de atraso aumenta o risco do irmão da sra. Forrester, por isso imploro que nos permita falar com a sra. de Beaune.

Outro longo e agonizante momento se passou antes de o sr. Graveney finalmente menear a cabeça.

— Está bem. Vou falar com minha cunhada. Se ela quiser falar com vocês, eu a trago até aqui. Caso contrário, peço que deixem a propriedade imediatamente e peçam ao advogado que nos aborde da maneira correta.

— Entendo. — Beth balançou a cabeça e se sentou quando o sr. Graveney saiu da sala.

Guy a observava, mas ela não se virou para o lado.

— Beth, o que ele disse... sobre o meu passado...

— Agora não é hora — interrompeu ela, levantando a mão e- sorrindo brevemente.

O passado dele não importava, e no presente Guy era de uma ajuda inestimável para limpar o nome de Simon. Quanto ao futuro... não ousaria nem pensar. Os sonhos que tivera na noite anterior tinham de ser esquecidos a qualquer custo.

O silêncio da sala era sepulcral até que ouviram-se passos e o sr. Graveney retornou na companhia de duas senhoras. A mais velha, com um vestido de cambraia e um lenço na cabeça, foi apresentada como a sra. Graveney. Assim que as apresentações terminaram, Beth prestou atenção à mulher pela qual vinha procurando havia tanto tempo.

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A sra. de Beaune.

A julgar pela aparência, Beth imaginou que ela não tinha muito mais de 20 anos, mas o sofrimento deixara marcas no rosto e sombras escuras sob os olhos. Usava um xale sobre os ombros do vestido tipo chemise e um capuz amarrado sobre os cachos escuros.

— Milady... — Guy se adiantou e curvou-se. — Peço desculpas por importuná-la.

Ela fez um breve aceno com a mão e se sentou ao lado da irmã. Depois se dirigiu a Beth:

— Recebi um bilhete de seu advogado, sra. Forrester, dizendo que gostaria de me encontrar. Agora meu cunhado me diz que deseja falar sobre a última vez em que estive na Inglaterra...

— Isso mesmo, milady — disse Guy, olhando para Beth de relance. — O advogado da sra. Forrester vem tentando localizá-la há algum tempo, mas claro que, com a situação instável na França, a busca ficou muito difícil. Perdoe-me pela pergunta, mas seu marido também está aqui?

A sra. de Beaune encolheu os ombros, enquanto procurava um lenço. A sra. Graveney colocou o braço sobre os ombros dela.

— Meu cunhado está morto, milorde — disse ela. — Foi morto durante um tumulto em Paris. É por isso que a mãe dele e Cecile decidiram deixar a França e vir para a Inglaterra. — A voz da sra. Graveney falhou antes de ela prosseguir: — Elas acharam que estariam a salvo aqui.

— E deveriam estar — completou o sr. Graveney, balançando a cabeça. — Vivemos tempos tão conturbados e sem leis.

— Lamento muito por sua perda, milady — disse Guy. — Se houvesse uma maneira de adiarmos este encontro, nós o faríamos, mas o sr. Graveney deve ter dito que precisávamos falar com milady com urgência.

— Sim, claro. Farei o possível, milorde — disse a sra. de Beaune, enxugando os olhos.

— Há dois anos, creio que havia um homem na taverna onde milady e seu marido aguardavam para embarcar para a França que foi ajudá-la depois de um assalto.

A sra. de Beaune baixou a cabeça, mas quando olhou para cima havia um sorriso tímido em seus lábios e já não parecia tão pálida.

— Mais oui. Monsieur Wake... Wakeford. Não esqueci o nome. Ele foi muito corajoso. Lutou sozinho contra dois homens. Fernand, meu marido, já estava caído no chão e não pôde ajudar...

— Por que não nos conta o que aconteceu? — pediu Beth com toda a educação.

A sra. de Beaune meneou a cabeça, segurando as pontas do xale.

— Estávamos indo para o porto quando fomos atacados. Eu gritei, mas ninguém veio nos ajudar. Eles bateram no pobre Fernand, depois vieram para cima de mim. — Ela fez uma pausa para pegar a mão da irmã. — Um deles puxou meu colar, e temo que teriam sido mais agressivos se monsieur Wakeford não tivesse aparecido. Um assaltante fugiu, e o outro ficou para brigar. Monsieur Wakeford o jogou no chão... Acredito que o tenha machucado, mas não tenho certeza, pois assim que pude, corri para ajudar Fernand.

— O que aconteceu depois, milady?

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— Não sei. Fernand estava ansioso demais para não perder o barco. Ele estava muito dérangé depois do assalto e só queria ir para casa. Na hora, ele não tinha percebido que haviam roubado seu relógio também. Isso o entristeceu ainda mais.

— Mas o que houve no cais? — Beth inclinou-se mais para a frente, pressionando as mãos. — Por favor, pense, madame. E muito importante.

A sra. de Beaune pressionou os dedos indicadores nas têmporas.

— Não sei. Lembro que outro homem apareceu, alguém que prometeu tomar conta do ladrão enquanto monsieur Wakerford nos acompanhava até o barco.

— Mas tem certeza de que monsieur Wakeford não era um dos assaltantes?

Outro sorriso iluminou o rosto da sra. de Beaune.

— Mais non, milady — murmurou. — Ele foi um... como se diz? Um herói.

— Obrigada, milady. — Beth se recostou, aliviada.

— E o assaltante que fugiu? Viu o rosto dele? Reconheceria se o visse de novo?

— Francamente, milorde — protestou o sr. Graveney. — Como pode perguntar uma coisa dessas, depois de todo esse tempo...?

— Não tem importância, Richard, vou responder. Estava muito escuro, milorde, e os dois homens estavam com o rosto coberto. — A sra. de Beaune levantou o xale, deixando apenas os olhos visíveis.

— Não se lembra de nada? Qualquer coisa estranha...?

— Não... eles usavam casacos surrados, fedendo a peixe. — Ela pressionou os lábios, mostrando-se enojada. — Um deles, o que monsieur Wakeford capturou, tinha baixa estatura e portava uma faca, o que demonstrou que monsieur era mais corajoso por tentar lutar com ele. O outro... — Ela levantou os ombros — ...era alto. Isso é tudo o que me lembro, além de ter derrubado o chapéu de um deles. — Levou a mão aos cachos. — Cheveux en brosse... O cabelo era muito... pequeno.

— Curtos — sugeriu Beth. — Como uma escova?

— Oui, lamento não poder ajudar mais.

— A senhora já ajudou muito — garantiu Beth. — Será que estaria disposta a assinar uma declaração em juramento de tudo o que nos contou? Isso é muito importante, já que meu irmão foi acusado do assalto.

— Mais oui. Gostaria de ajudar monsieur Wakeford. — Ela olhou para o cunhado. — Contanto que eu não tenha que sair daqui...

— Meu advogado mora na cidade a não mais de dez minutos daqui. Vou mandar chamá-lo e damos um fim nesse assunto.

— Obrigado. — Guy fez uma reverência.

— Ótimo. — A sra. Graveney sorriu para todos. — Enquanto esperamos, vamos beber alguma coisa. — Ela tocou a sineta, e logo o mordomo entrou na sala, trazendo uma bandeja com cerveja para os cavalheiros e um refresco para as senhoras.

— Obrigada mais uma vez pela ajuda, milady — disse Beth assim que o criado saiu. — Sei o quanto isso tem sido estressante.

A sra. de Beaune encolheu os ombros.

— Talvez se estivéssemos esperado para falar com você em Londres, minha belle-mère estivesse viva.

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— Se você tivesse me pedido para enviar uma carruagem... — lamentou o sr. Graveney.

— Belle-mère era muito orgulhosa — disse a sra. de Beaune, enxugando uma lágrima. — Ela não queria ser um fardo para ninguém. Viemos para a Inglaterra com quase nada. Trouxemos cartas de nosso banco em Paris, e ela insistiu que as levássemos para os bancos em Londres, mas todos nos disseram que elas não valiam nada. Vendemos nossas poucas joias para pagar pelo alojamento, mas belle-mère não permitiu que eu alugasse uma carruagem particular e cavalariços para nos trazer até aqui. Segundo ela, atrairíamos menos atenção se viajássemos em um coche público...

— E por que faziam tanta questão de viajar em segredo? — indagou Guy, enrugando a testa. — Por que partiu tão de repente de Londres?

— Achei que alguém nos vigiava. Havia um homem na rua diante de nossa hospedaria. Eu o vi de novo quando chamei por sir Henry Shott e também quando fomos ao banco. Belle-mère não acreditou, dizendo que eu estava muito nervosa. Mas quando saímos da cidade e paramos na taverna...

De repente, a sra. de Beaune caiu em prantos enquanto a irmã a segurava pelos ombros.

O sr. Graveney olhou para elas, depois dirigiu-se ao conde solenemente:

— Não sei se há alguma verdade nisso tudo. Não faço ideia de quem poderia querer fazer mal à minha cunhada, mas por via das dúvidas, tomei minhas precauções, deixando os cachorros soltos durante a noite. — E depois de franzir os lábios, continuou: — Eu apreciaria sua discrição nesse caso, milorde. Meus criados trabalham conosco há muito tempo e juraram não dizer nada... espalhamos que estamos hospedando madame Rendoit. Ainda estou resolvendo como fazer para proporcionar um enterro para a pobre senhora assassinada. Tenho de fazer tudo de maneira anônima, através de uma terceira pessoa.

— Acho bem sensato — Guy concordou. — Claro que respeitaremos sua vontade, mas no longo prazo...

— Não se preocupe com isso — interrompeu o sr. Graveney. — Em breve, estaremos partindo para a América. Já passamos por muita coisa nesta terra esquecida por Deus. Não tenho dúvida de que não demora muito para o conflito na França se espalhar por aqui... — Ele parou de falar ao notar um coche passar pela janela. — Ah, aí está o advogado. Vamos terminar logo com isso.

Uma hora mais tarde, Beth e Guy deixavam Bourne Parke com o depoimento da sra. de Beaune guardado em segurança dentro da bolsa de Beth.

— Não acredito que finalmente estou com este documento — disse Beth, sem esconder o sorriso. — Não vejo a hora de voltar para casa e contar para Simon. — Olhando de lado para Guy, acrescentou timidamente: — Você vai me escoltar de volta a Yorkshire? Eu seria muito grata...

— Mas é claro que sim. Minha carruagem está à sua disposição.

— Quando podemos partir? Amanhã de manhã?

Guy a fitou com as sobrancelhas arqueadas.

— Se formos direto para a cidade agora, é possível. Mas acredito que queira ver

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Spalding primeiro e deixar o depoimento com ele...

— De jeito nenhum! — exclamou ela, abraçando-se à bolsa. — Não se lembra de que ele nos disse que estaria fora da cidade? Não pretendo deixar o depoimento com um funcionário ou aguardar o retorno do sr. Spalding. Vou deixar um bilhete para ele, mas entregarei o documento para Simon. Só então iremos juntos levar para nosso magistrado, sir John Marton, em Thrisk.

— Se essa for sua vontade...

— É sim. Gostaria de voltar a Malpass o mais rápido possível.

Guy ficou em silêncio um pouco, calculando o tempo de viagem.

— Já passou muito do meio-dia, não devemos chegar à cidade antes do anoitecer. Será bem cansativo. Tem certeza de que é isso que quer?

— Tenho sim.

— Então não precisamos parar na White Bear. Vamos direto para Bramshott buscar Holt. Assim que meus cavalos forem atrelados, a viagem será bem mais rápida.

A caleche de Guy seguiu pela estrada rapidamente. Guy procurou poupar os cavalos ao máximo, mas quando chegaram a Branshott, os animais estavam suados e bufando. A parada durou apenas o tempo suficiente para que os cavalos fossem trocados e Holt embarcasse no banco traseiro.

Beth se sentou ao lado de Guy em uma posição ereta, sem tirar os olhos da estrada. Vez por outra, lembrava-se do importante documento na bolsa e a segurava firme contra o peito. Levava consigo a liberdade de Simon.

O outono se aproximava do fim, e com isso, chegavam as temperaturas mais frias. Por sorte, Beth trazia uma manta no colo, que a aquecia do vento fresco da noite. Durante a maior parte da viagem, os dois permaneceram em silêncio. Mesmo que não estivesse distraída ou perdida em seus pensamentos, Beth procurava não distrair Guy, que mantinha a atenção fixa na estrada e na direção dos cavalos.

Se Guy não tivesse insistido, ela não teria parado nem mesmo para uma refeição rápida.

— Você precisa estar forte, principalmente se quer mesmo viajar de novo amanhã.

O sol da tarde entrava pela janela, iluminando a sala da taverna, e não havia necessidade de velas. Guy e Beth estavam sentados frente a frente, terminando o jantar. Quando acabaram a refeição, ela observou o rosto dele atentamente, notando as marcas de tensão sob os olhos.

— Estou sendo muito egoísta. Afinal de contas, não faço nada além de me sentar a seu lado... Não gostaria de descansar um pouco mais?

— Não, estou tão ansioso para voltar quanto você. Não vejo a hora de dormir na minha cama.

Guy também a fitava, e o brilho que Beth viu naqueles olhos escuros combinava com as palavras que conjuravam a imagem do luar iluminando os corpos nus, fundidos em um só.

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— Ainda não pensei em como explicarei isso a Miles — disse ela, distraída.

— Ah, sim. Radworth. Eu tinha me esquecido dele.

Guy serviu o restante do vinho nas duas taças, enquanto ela se abraçava, tremendo um pouco.

— Ainda não sei se devo contar a Miles sobre esta viagem a Londres.

— Você não confia nele.

Beth inclinou o corpo na mesa, segurou o cálice e pôs-se a observar as profundezas do líquido vermelho.

— Pensei que confiasse. Miles não fez nada que depusesse contra ele. — Beth fechou a mão em punho e colocou sobre o peito. — Mas alguma coisa me diz que preciso tomar cuidado.

— Pena que você não ouviu a voz do seu coração quando ele a pediu em casamento. Por que aceitou o pedido?

— Acho que... Acredito que estava muito sozinha. Eu tinha ficado viúva, Simon tinha se afogado... Minha avó e Sophie dependentes de mim... — Um sorriso amargo brotou-lhe nos lábios. — Achei que aos 26 anos de idade não me apaixonaria mais. Eu via apenas solidão no futuro. — Ao levantar a cabeça, encontrou os olhos dele. — Uma previsão muito lúgubre.

Minutos se passaram sem que dissessem nada um ao outro. Guy estava impassível, mas ela agradeceu por, ao menos, não detectar pena em sua expressão. Teria sido insuportável.

— Desolador, de fato — murmurou ele, terminando de tomar o vinho. — Vamos partir?

Capítulo Dezesseis

O crepúsculo se estendeu enquanto a caleche de Guy passava com pressa pelas cidades na direção de Londres. Beth teve a sensação de que o mundo encolhia conforme o sol se punha. Estreitando a pouca distância que os separava, exausta, Beth apoiou a cabeça no ombro de Guy e passou o restante da viagem mergulhada em um sono profundo.

Acordou apenas quando a caleche parou na frente da casa de Guy e o ouviu chamá-la.

Ao abrir os olhos, deparou-se com ele sorrindo.

— Ah, desculpe-me — murmurou, bocejando. — Eu deveria ter lhe feito companhia durante a viagem.

— Não tem importância, viajamos em segurança. — Guy deu a volta na caleche para ajudá-la a descer, segurando-a pela cintura. — Chegamos bem na hora, está

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começando a chover. Vamos entrar.

Burley os recebeu na porta, dizendo que já havia fogo na lareira da sala de estar.

— Ótimo, vamos para lá. Traga uma garrafa de vinho, Burley.

— Eu gostaria de me recolher — disse Beth.

— Ainda não. — Guy segurou-a pelo braço. — Gostaria de passar alguns minutos a mais na sua companhia.

Beth o acompanhou em silêncio até a sala e se sentou diante da lareira, enquanto Burley servia as taças de vinho.

Guy estava com o braço apoiado na extremidade do mantel sobre a lareira, olhando as chamas. E continuou quieto mesmo depois que Burley foi embora.

— Já é tarde... — insinuou Beth.

— Eu sei, mas vim pensando durante a viagem toda e quero lhe contar... sobre Clarice e... meus crimes.

Beth prendeu a respiração. Será que estava mesmo disposta a saber tudo sobre aquele homem? Talvez ele contasse coisas que não gostaria de saber, como, por exemplo, que ainda amava Clarice. Seria melhor se manter distante.

Mas era tarde demais...

— Está certo, estou ouvindo...

— Obrigado. — Guy se sentou em frente a ela, mas não começou a falar imediatamente.

Com o cenho franzido, imaginou como faria para se justificar, e talvez ela nem acreditasse. Estava se forçando a dar uma explicação que lhe causaria dor.

— Guy... você não precisa fazer isso.

— Preciso sim — afirmou ele e, levantando-se, começou a andar de um lado para o outro da sala. — Há dez anos... Não, preciso voltar mais para trás no tempo. Há 12 anos, meu estimado pai faleceu, e eu me tornei conde. Eu tinha 25 anos, era inexperiente com mulheres e na política, mas um admirador entusiasta de Chatham... Também acreditei que poderíamos desarmar as colônias norte-americanas em paz em vez de iniciar uma série de agressões e de cobranças de impostos, que só poderiam terminar em guerra. Eu estava contente em trabalhar com Chatham e encontrar com o dr. Franklin para discutir os termos de uma reconciliação, mas o povo era contra. Foi nessa época que conheci Clarice Bellington. Ela era jovem e bonita. Admito que fiquei cativado. Eu me deixei levar... Afinal, estava claro que a oposição não podia ganhar o conflito com a América, e a guerra era inevitável. A família de Clarice freqüentava os meios políticos e era radicalmente contra as tentativas de reconciliação de Chatham. Ela me disse que não tinha a mesma opinião dos pais. Quando nos conhecemos melhor, eu vi... isto é, pensei que tivéssemos interesses em comum. Achei que tivesse encontrado uma mulher... perfeita. Quando pedi a mão dela em casamento, o pedido foi aceito apesar das diferentes visões políticas de nossas famílias.

Guy contraiu os lábios e respirou fundo antes de continuar:

— Que pais seriam contra um título de nobreza e uma fortuna? Ficamos noivos, e fui acolhido pela família e pelos amigos dela. Para eles, tinha sido uma conquista trazer o nome Darrington e a fortuna para o movimento contra Chatham. E verdade que nunca fiz segredo do meu posicionamento político, mas também não falava abertamente das minhas crenças, e tampouco me afastei daqueles familiares de Clarice que eram

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favoráveis à guerra contra a América. Clarice se aproveitou de sua função como anfitriã política, e seu status como minha futura esposa permitiu que ela se juntasse a membros ilustres da alta sociedade, como Sandwich e Gower, entre outros. Ela adorava os jantares políticos, e eu... eu cedi. Então notas particulares começaram a aparecer nos jornais, mostrando a preocupação de que o rei e os príncipes alemães fossem contratar mercenários para lutar no nosso lugar. Não que isso colocasse vidas em risco, mas constrangeu o governo. Ter ficado ao lado deles era tão sério quanto uma traição.

Guy fez mais uma pausa antes de prosseguir:

— Acreditava-se que Clarice estivesse envolvida, mas antes de ser questionada, ela me deixou e fugiu para a França. Só então comecei a enxergá-la de maneira diferente. Ela havia me usado para galgar posições melhores na sociedade e poder circular em importantes meios políticos. E antes que me pergunte, vou lhe dizer, sim, fomos amantes, mas ela dormia em camas bem mais importantes do que a minha.

Beth procurou algo para dizer para quebrar o súbito silêncio.

— Foi bom você ter se livrado dela...

— Sim. — Guy voltou a se sentar na frente dela, descansando os cotovelos nos joelhos e olhando para as chamas da lareira. — Mas o estrago já tinha sido feito. Estávamos noivos, mas de nós dois eu era conhecido por ser mais solidário aos americanos. Chegaram a sugerir que eu a tinha encorajado. Fui envolvido por associação, e o caso se tornou um constrangimento para a oposição. Talvez eu devesse ter ficado, insistido que era leal. Meus amigos próximos sabiam a verdade e acreditavam em mim, mas eles tinham suas próprias carreiras, para se arriscarem a me defender publicamente. Chatham me enviou uma nota de apoio. Se ele estivesse na cidade, talvez eu tivesse ficado, mas ele estava muito doente nessa época e ficou confinado em casa. Eu, então, saí da vida pública, levando um coração partido e um nome enxovalhado de volta para casa.

— Mas a culpa deveria ter ido bater na porta de Clarice, não?

— Os homens que tinham se deixado levar por ela não admitiram ter sido enganados por uma mulher. Se ela tivesse ficado na Inglaterra, claro que teria sido diferente, mas depois que ela desapareceu, o assunto foi abafado. Aqueles culpados pelas indiscrições mantiveram seu bom nome e o posto no governo, enquanto eu, cuja única falta tinha sido se apaixonar por uma mulher bonita, fui considerado um tolo e o pior traidor.

— E você a amava.

— Sim.

Beth sentiu o coração se confranger por aquele jovem enganado de forma tão lastimável, mas ao mesmo tempo uma ponta de ciúme a incomodou.

— E hoje? — se forçou a perguntar ela. — Você ainda... a ama? É compreensível que estivesse bravo com ela, afinal ela o magoou, mas isso não significa que você tenha superado esse amor.

— Ah, não, já superei sim. — Guy a puxou para se levantar.

— Mas você não se casou...

— Você me culpa por ser cauteloso? — indagou ele, aproximando-se mais.

A voz aveludada a envolveu como uma manta. Com um dedo no queixo dela, Guy a forçou a olhar para cima. As chamas da lareira se refletiam naqueles olhos profundos. Quando os lábios se tocaram, Beth se entregou à paixão desconcertante que dominava

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seu coração havia tempo e contra a qual vinha lutando com a mesma intensidade. Guy abrira a alma, contando sobre seu passado, e ela queria consolá-lo, aconchegá-lo com amor e apagar para sempre todos os resquícios da dor causada por outra mulher.

O beijo foi longo e apaixonado. As línguas se encontraram em um bailado que obedecia a um antigo ritual capaz de atingir-lhe a alma. Quando, por fim, se separaram, continuaram abraçados, ofegantes. Guy mordiscou o lóbulo da orelha dela, levando-a a levitar de prazer.

— Peça-me para parar agora — murmurou ele, os lábios movendo-se da orelha para o pescoço, salpicando-o de beijos que demoliam as últimas resistências que ainda existiam. — Negue o que sente e chamo agora mesmo a sra. Burley para levá-la para seu quarto.

— E se eu concordar? — As palavras saíram em um sussurro, o máximo que conseguiu, enquanto ele continuava a provocá-la com beijos ardentes. — Ah, Guy! Sim, por favor...

No instante em que Beth concordou, viu o brilho de triunfo nos olhos dele, quando foi levantada e conduzida para a porta. Apoiou o rosto naquele ombro largo e respirou fundo, sentindo o perfume másculo prevalecendo sobre o cheiro familiar da lã e do sabão da camisa branca.

Encantou-se com a facilidade com que ele a carregava. A porta da sala serviu como uma breve pausa antes de cruzarem o hall vazio e subirem as escadas. O caminho todo era iluminado pela luz tremeluzente das velas. Beth levantou a cabeça apenas quando ele parou diante de outra porta. Ouviu-o empurrá-la com o pé e fechá-la em seguida. Perscrutou o ambiente e viu que estavam em um quarto muito grande, de teto alto, dominado por uma imensa cama com dossel e um cortinado bordado que parecia azul e amarelo sob as chamas da lareira. Não havia nenhuma vela no quarto, mas nem seria necessário.

Quando ele a colocou no chão, estavam a centímetros de distância, e Beth se viu admirando a beleza dos cílios longos que emolduravam os olhos dele e a boca bem desenhada. Abriu os lábios e passou a ponta da língua para umedecê-los. Foi a faísca que restava para ele beijá-la com volúpia.

Com a cabeça inclinada para trás, Beth enroscou a língua na dele, enquanto enfiava a mão pelo cabelo farto de Guy. Não protestou quando ele arrancou o lenço de seu pescoço e beijou-lhe a pele alva, deixando uma trilha de fogo por onde passava.

Uma urgência antecipatória a dominou, os seios pareciam inchados sob o corpete. Prendeu-se a ele com os braços quando foi pressionada contra a parede.

Com uma pressa inominável, Guy desceu as mãos pelo tronco de Beth e pelas saias, até conseguir levantá-las e acariciar-lhe as coxas. Ela suspirou ao sentir as mãos experientes deslizarem por sua pele macia e riu ao mesmo tempo, pois percebeu que ele a possuiria ali mesmo, e de súbito soube que seria essa a resposta a todos os seus anseios, que o desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo. Todo seu corpo exalava desejo.

Impaciente, levou as mãos à calça dele, tentando inutilmente desafivelá-la, atordoada que estava com as mãos dele subindo por sua coxa. Curvou o corpo para trás, suspirando, contraindo os músculos e se oferecendo aos dedos ágeis, que buscavam sua intimidade.

Como em um passe de mágica, estavam corpo contra corpo, pele com pele, fundindo-se em um único ser.

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Beth gemeu alto quando o sentiu penetrá-la com uma urgência única. O prazer supremo os envolveu, como uma gigantesca onda de múltiplas sensações. A respiração de Guy tornou-se mais ofegante, até que ele também gritou, e seu corpo todo tremeu, prendendo-a contra a parede.

Ela enterrou a cabeça no pescoço dele, sentindo toda a tensão esvair-se em segundos.

— Não era minha intenção possuí-la desta maneira — disse ele, rindo baixinho.

— Foi maravilhoso.

— É mesmo? — indagou ele, procurando-lhe os olhos.

Com um sorriso nos lábios, Beth segurou o rosto de Guy com as duas mãos e o puxou para alcançar-lhe os lábios. Ele correspondeu e aprofundou o beijo até estarem tremendo de desejo mais uma vez.

Em uma fração de segundo, ele a pegou no colo e carregou-a para a cama, deitando-a com o mesmo cuidado com que lidaria com uma peça de fina porcelana. Mas Beth estava impaciente e o puxou, sedenta por outro beijo. Ele obedeceu, estendendo o corpo sobre o dela, cobrindo-lhe a boca, o rosto, o pescoço, até que não restasse nenhum centímetro de pele que não tivesse sido beijado.

As peças de roupas remanescentes foram tiradas e jogadas ao chão com pressa. Beth não se lembrava de ter soltado o cabelo, que agora caía em cascata sobre seus ombros.

Guy livrou-se do colete e soltou-se dela para tirar as botas e a calça. Quando se virou, viu que Beth tinha tirado os sapatos e, sentada na cama, de blusa e espartilho, tirava as meias.

— Não — disse ele, segurando-lhe as mãos. — Deixe que eu faço isso.

Ele, então, a puxou mais para o meio da cama e ergueu o pé delicado, enquanto com a outra mão puxava a meia até pousar-lhe beijos a cada centímetro de pele revelado. Quando finalmente chegou aos pés, beijou-os e acariciou-os até ela se contorcer e mur-murar de prazer. Quando terminou, ele se concentrou na outra perna, esforçando-se para seguir o mesmo ritual sem a mínima pressa, aumentando o prazer para ambos.

— Eu disse que a beijaria inteira — murmurou ele, tirando e descartando a meia.

Em seguida, ajoelhou-se na cama e beijou a pele macia atrás do joelho de Beth.

— Morro de desejo por você — murmurou ela.

— Então vou fazer com que se queime de tanta paixão.

As mãos dele viajaram pelas coxas bem torneadas de Beth, seguindo os dedos experientes com beijos espaçados. Ela abriu os braços, se segurou nos lençóis e afastou as pernas, oferecendo sua parte mais delicada para os beijos ardentes. A cada beijo, um suspiro, um tremor antecipatório, um gemido, tornando cada vez mais difícil evitar um grito de prazer. Seu corpo se contorcia e pulsava em um êxtase que jamais sentira antes e tão repetidas vezes.

— Ah... — Suspirou por fim e, sentando-se, abraçou-se a Guy. — Nunca imaginei que existisse tamanho prazer. Mas... e você?

— Shh... — Ele a beijou. — Ainda temos tempo para mim. Afinal, mal terminamos de nos despir. — Sentando-se, ele colocou as mãos na cintura dela. — Agora vire-se e deixe-me livrá-la desse espartilho.

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Ela obedeceu e apoiou o queixo nas mãos.

Guy começou a soltar as amarras do espartilho, puxando-as com firmeza. De vez em quando interrompia o processo, inclinando-se para a frente para afastar uma mecha de cabelo e beijar-lhe o pescoço.

Beth fechou os olhos, relaxando, mas só até o espartilho se soltar, quando sentiu o calor da paixão invadi-la de novo. Quando Guy tirou a peça, ela se virou, pronta para tirar a blusa, mas ele a impediu. Sem dizer nada, puxou a blusa para cima, deixando-a sentir o tecido fino roçar-lhe as laterais do tronco. Com mãos experientes, acariciou a suave curvatura das nádegas dela, depois as escorregou para a frente e a levantou de joelhos, descendo com os dedos no meio das coxas roliças.

Beth sentiu o corpo se incendiar quando percebeu que ele estava prestes a dominá-la de novo. E como da primeira vez, afastou as pernas, inclinou-se para a frente e movimentou-se para cima e para baixo.

Guy não parou de acariciá-la enquanto a possuía, levando uma das mãos por baixo da blusa solta para aprisionar-lhe o seio. Ouviu-se um grito, mas ela não soube qual dos dois havia se manifestado ao atingir o frenesi da excitação que os engoliu como um ciclone.

Quando a tensão se esvaiu, Guy continuou abraçado a ela por trás e, com toda a delicadeza, puxou-a para se deitar. Os dois se encaixaram quase na mesma posição, a camisa volumosa protegendo os corpos ardentes do ar frio da noite.

Guy deslizou o nariz pelo pescoço de Beth, inspirando o perfume doce e mergulhando o rosto no cabelo sedoso. Ainda estava com o corpo inteiro sensível, enfeitiçado, o sangue correndo apressado pelas veias.

Mais uma vez, deslizou as mãos pelas curvas daquele corpo feminino, encantado com a suavidade da pele rósea. Na lareira, só restaram cinzas. Os dois deveriam se cobrir e se esquentar, mas Beth estava tão em paz em seus braços que ele não quis quebrar o encanto do momento. Assim, puxou-a para mais perto e fechou os olhos.

Guy acordou pouco depois, com Beth se virando inquieta. O fogo tinha se apagado, mas o quarto estava banhado pelo luar. O desejo voltou a se fazer presente conforme ela roçou nele.

— Nunca senti algo assim — murmurou. — Eu não queria que terminasse.

— E não vai — respondeu Guy com ternura. — Ainda quero vê-la nua.

Ele se soltou e tirou a camisa, e ela fez o mesmo, livrando-se da blusa. Guy precisou se conter quando ela ergueu os braços, prendendo-se ao tecido por um momento.

Afoito, ele tomou-lhe os seios com as mãos e mergulhou o rosto na sua maciez. Beth estremeceu e apoiou-se nele. Enterrou os dedos no cabelo dele, puxando-o para cima, até que pudesse capturar-lhe os lábios. Guy sentiu-se completamente dominado pela paixão daquele abraço e deixou-se cair na cama. Beth, então, passou a explorar o corpo musculoso, primeiro com as mãos, depois com a boca, beijando cada pedacinho de pele, brincando com os sentidos de Guy. Quando ele resmungou e se contorceu, ela riu, exultante.

— Você está se divertindo por ter-me à sua mercê, não é? — indagou ele, abrindo os braços e fechando os olhos.

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Beth estava com um joelho de cada lado do corpo dele. Com o cabelo caindo sobre os ombros, ela o provocou, brincando.

— Claro, é assim que deve ser.

O riso pleno de Beth revelou-se poderoso ao incitá-lo novamente.

— Isso é o que veremos — disse ele, puxando-a para um abraço e beijando-lhe a boca com paixão.

Beth deixou-se cair, pressionando o corpo úmido e quente contra o dele. Amaram-se com a mesma urgência que da primeira vez, com a mesma ansiedade sensual, até, por fim, perderem-se na noite e adormecerem um nos braços do outro, até a claridade da manhã tingir o céu azul.

Capítulo Dezessete

Beth acordou devagar, com o som da chuva batendo contra a vidraça. A primeira sensação que teve foi a de estar aconchegada em um casaco protetor, mas logo percebeu que era Guy que a estava abraçando. As lembranças da noite anterior voltaram, e uma luz deliciosa preencheu todo seu ser, represando-se no baixo-ventre, provocando o desejo.

Havia se entregado a Guy e não estava arrependida. Ela o amava, mas manteve o segredo. Havia problemas, claro... A liberdade de Simon ainda não estava garantida, mas era apenas uma questão de tempo até entregar o depoimento da sra. de Beaune às auto-ridades. Teria também de dizer a Miles que não poderia mais se casar com ele. Seria doloroso, mas tinha esperança de que ele a entendesse.

Tocou a campainha para chamar Tilly, mas acabou se vestindo sozinha. Quando a criada não apareceu, ela saiu à sua procura. No caminho, encontrou a sra. Burley, que lhe informou que ainda não tinha visto Tilly naquela manhã. Beth seguiu até os aposentos dos empregados e encontrou Tilly na cama, gemendo de dor.

— Ah, milady, estou me sentindo tão mal... Meu estômago está doendo e não ouso sair deste quarto para não passar constrangimentos.

Beth pegou uma toalha e mergulhou em uma bacia de água que estava sobre uma mesa.

— Pobre Tilly — lamentou, colocando a toalha úmida na testa da criada. — Será que foi alguma coisa que você comeu?

— Não sei, milady, com a senhora e lorde Darrington fora, a sra. Burley não cozinhou muita coisa. Fitton e eu saímos para comprar uma torta ontem de manhã. Eu não comi inteira na hora e guardei para terminá-la ontem à noite. Pensando bem, estava com um gosto estranho.

Tilly parou de falar e virou a cabeça para a bacia ao lado da cama.

Quando Beth desceu, encontrou Guy já vestido e aguardando-a para o desjejum.

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Ele puxou a cadeira e, quando ela se sentou, ele colocou as mãos sobre seus ombros e se curvou para beijá-la no rosto.

— Você me deixou dormindo sozinho. Senti saudade.

— Desculpe-me se o deixei esperando. Minha criada não está se sentindo bem. Acho que ela comeu carne estragada, e está indisposta demais para viajar hoje. — Suspirou. — Não gostaria de atrasar nossa viagem em nem mais um minuto além do necessário. Vou deixar dinheiro para ela comprar uma passagem...

— Não há necessidade disso — ele a interrompeu. — Fitton irá seguir com o coche de bagagem e Holt irá levar minha caleche para Wylderbeck. Um dos dois pode ficar e esperar sua criada se recuperar. — Encarou-a com os olhos brilhantes. — O que você prefere?

— Acredito que Tilly gostaria mais da companhia de Fitton. Não me incomodo se ele atrasar a viagem, e assim o problema fica resolvido.

— Então está feito. Você gostaria que eu pedisse para a sra. Burley mandar uma de nossas criadas para acompanhá-la?

— Não será necessário. Posso me vestir sozinha.

— E eu também posso tirar sua roupa — murmurou ele, despertando o desejo nela. Riu antes de continuar: — Bem, você precisa se alimentar antes de partirmos. O que prefere?

Sabendo que Guy tinha razão, Beth começou a comer, recusando a cerveja e preferindo a água.

— Quanto tempo levaremos para chegar a Malpass? — indagou, empurrando o prato para o lado.

— Se o tempo estiver bom e se você não se importar de viajarmos no escuro, chegaremos ao mosteiro tarde da noite, amanhã.

Beth se levantou e andou até a janela.

— Essa chuva incessante não nos atrapalhará?

— Espero que não. Seguiremos pela estrada principal, que está em muito boas condições. — Guy se aproximou e colocou a mão no ombro dela. — É apenas uma garoa, Beth. Isso não me impedirá de levá-la a Malpass em segurança.

Ela inclinou a cabeça para o lado, roçando o rosto na mão dele.

— Tenho certeza de que sim. Se há uma pessoa que pode me levar, esse alguém é você.

A garoa se transformou em uma chuva leve, que batia nas janelas da carruagem, formando pequenos riachos que obscureciam a visão.

— Finalmente estamos a caminho — disse ele, pegando a mão dela. — Está feliz?

— Ficarei mais feliz quando Simon estiver em liberdade e depois de falar com Miles.

— Ah, é verdade. Você vai dizer que viajou a Richmond para comprar seu enxoval e que, no meio do caminho, mudou de ideia e foi para Londres?

— Ah, por favor, não brinque! — implorou ela. — Acho, sem dúvida, que devo

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contar a história inteira a ele.

— Tudo mesmo?

— Devo contar a ele que eu... não posso mais retribuir o carinho.

— Qual você acha que será a reação dele?

Beth soltou a mão de Guy e entrelaçou os dedos.

— Acho que ele insistirá em que o acordo do casamento seja honrado. Miles fica com nossa casa. — Estremeceu. — Temo perder Malpass para sempre. Espero que Miles concorde em passar o mosteiro para Simon, agora que ele é um homem livre, mas... — Encolheu os ombros e continuou: — Acredito que meu pai fez o melhor ao deixar tudo para mim quando achou que Simon tinha se afogado.

— Além disso, a Coroa poderia tomar a propriedade se Simon fosse culpado de assassinato ou de roubo.

— E verdade, mas meu pai não sabia que Simon tinha sido acusado. Fizemos questão de que ele não soubesse.

— Mas Miles sabia.

— E o que isso tem a ver com tudo? — indagou Beth, piscando.

— Ora, Miles tinha todo o interesse em que a propriedade ficasse com você.

— Isso é um absurdo! Miles nunca tinha estado em Yorkshire antes de vir nos trazer notícias de Simon.

— Talvez, quando ele viu a propriedade, tenha decidido que a possuiria a todo custo.

Um silêncio pesado se abateu no interior da carruagem.

— Você acha que ele me pediu em casamento apenas para ficar com Malpass? — perguntou ela com frieza. — Isso não é muito lisonjeiro.

— Acha que ele a ama?

— Claro que sim. — Beth se endireitou no assento.

— Por que, então, você não quis dizer a ele que Simon estava vivo? — questionou ele e, quando não obteve resposta, prosseguiu: — Beth...

— Não! — Ela se esquivou e se encolheu em um canto. — Essa é uma maneira desprezível de falar. Não tenho nada contra Miles Radworth!

— Não diga!

— Aposto minha vida que ele não sabia de nada sobre Malpass ou sobre minha família quando veio até o norte do estado para nos contar sobre Simon. Há dois anos ele vem nos dando todo o apoio, chegando inclusive a negligenciar suas propriedades no sul e alugando uma casa em Fentonby. Essas não são atitudes de um homem sem caráter.

— Mas são atitudes de um homem paciente — retrucou Guy. — Diga-me uma coisa, Beth... Durante todo o tempo em que ele esteve lhe fazendo a corte, nunca tentou levá-la para a cama?

— Ele já tentou me...beijar.

— Um verdadeiro devasso!

— Nem todo mundo é tão... impetuoso como você — respondeu ela, corando.

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— Ora! Beth, nenhum homem que diz amar você poderia manter as mãos afastadas por muito tempo, pode acreditar.

— Não! — exclamou Beth, tapando os ouvidos com as mãos. — Você está insinuando que Miles é um caça-dotes, e eu me recuso a acreditar! — Levantou a cabeça para evitar que as lágrimas escorressem de seus olhos. — Já não basta saber que vou terminar o noivado? Ainda quer difamá-lo?

— Não quero fazer nada, mas gostaria que ficasse de sobreaviso, Beth.

— Obrigada — respondeu ela com firmeza. — Posso perfeitamente decidir o que acho dele, e tenho certeza de que ele não tem maldade.

Guy decidiu ficar quieto, embora aplaudisse a lealdade de Beth. No entanto, seu instinto dizia para não confiar em Miles Radworth. Beth podia estar certa e Miles ser, de fato, um bom homem. Talvez fosse o ciúme que o deixasse tão desconfiado, mas era difícil. Se suas suspeitas estivessem corretas, a chegada a Malpass poderia ser perigosa.

Não havia razão para discutir sobre o futuro, pois a viagem em si também consistia em um perigo. Depois de pouco tempo na estrada, a carruagem diminuiu a velocidade, e um criado veio comunicar que a estrada estava inundada. Com certa dificuldade, acabaram passando sem problemas, mas a chuva continuou causando transtornos, è a viagem seguiu lentamente até Godmanchester, quando a enchente os manteve presos em uma taverna por três dias.

Beth estava ansiosa para voltar logo para casa e mostrar o depoimento da sra. de Beaune para Simon. Contudo, precisou conter a impaciência, pois as notícias que chegavam eram que estavam ilhados, carruagens e animais vinham sendo arrastados pela força das águas.

— É melhor esperar — disse Guy. — Estamos a salvo aqui, melhor do que se estivéssemos procurando um caminho pelas águas.

Beth sabia que era verdade, mas a espera a enervava. Só se esquecia dos problemas à noite, quando Guy a tomava em seus braços e a enchia de carinhos. Ficavam tão próximos e tão bem juntos que ela chegou a se perguntar como vivera sem ele até então.

Finalmente veio a notícia de que a estrada já estava transitável, e eles partiram bem cedo na manhã seguinte, para juntar-se à longa procissão de carruagens, charretes e carroças que atravessavam a ponte medieval em Huntingdon.

Beth observou, alarmada, que eles haviam viajado o dia inteiro em uma paisagem de lamaçais. Árvores de raízes imensas poluíam as margens dos rios, a estrada estava coberta por uma camada de lama, as casas tinham marcas da lama nas paredes externas, às vezes chegavam até as janelas. Os habitantes tinham levado a mobília e os pertences para o sol, para secar.

Quanto mais para o norte seguiam, mais se distanciavam das enchentes, e Beth voltou a se concentrar em seus próprios problemas. Passaram mais uma noite na estrada, e depois de outro longo e extenuante dia de viagem, a carruagem de Guy entrou em Thirsk quando o sol de outono se punha.

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— Gostaria que eu alugasse uma carruagem para você? — perguntou Guy, conforme entravam na cidade. — Talvez você queira evitar perguntas capciosas e voltar para casa sozinha.

— O que você vai fazer?

— Fico em Fentonby.

— Obrigada, mas não. — Beth pegou na mão dele. — Acho que já está na hora de colocar um fim nesse fingimento. Além do mais — disse ela, sorrindo — , vou ficar com muita saudade sua.

— Fico feliz em ouvir isso. — Guy beijou os dedos dela. — Para dizer a verdade, não quero perdê-la de vista.

Ele se debruçou na janela para dar instruções a Thomas.

Beth sentiu um tremor antecipatório. Faltavam poucos quilômetros para chegar em casa. Imaginou como Sophie teria se saído sem ela, tomando conta da avó e de Simon. Tomara que ele já estivesse melhor. Quando partira, a febre dele tinha cedido, a aparência melhorara, e ele já começava a agir normalmente. Sem dúvida, o estado geral de Simon melhoraria quando ouvisse as novidades.

Ela havia mandado um recado para Sophie, quando pararam para pernoitar em Retford, pedindo que a irmã a aguardasse. A cada quilômetro mais perto de casa, maior era a sua alegria. Segurou a bolsa contra o peito. Mal podia esperar para mostrar a carta a Sophie e a Simon. No dia seguinte mesmo pediriam para sir John Marton aparecer, e então... Não sabia como o processo de lei funcionava, mas tinha certeza de que sir Thomas permitiria que Simon permanecesse em Malpass, enquanto corriam os trâmites processuais.

Olhou pela janela, procurando alguma coisa familiar, mesmo no escuro. Ao passarem por Fentonby, viu a casa elegante que Miles tinha alugado. Pobre Miles... Não queria ter de conversar com ele, mas era preciso, e depois, poderia se casar com Guy. Engoliu em seco para conter a emoção e a esperança que borbulhavam em seu coração.

Era melhor não antecipar muito ainda, pois havia obstáculos a serem ultrapassados. Beth era supersticiosa a ponto de achar que, se desse a felicidade como certa, era capaz de tudo lhe ser arrancado.

— Chegamos.

As palavras de Guy a trouxeram para o presente. A carruagem diminuiu a velocidade para passar pelos portões do mosteiro, e no momento seguinte, ela lutava para abrir a porta do veículo.

— Deixe que eu abra — ofereceu Guy, abrindo a porta e pulando para fora.

Beth mal pôde esperar até ele colocar os degraus para descer.

— Onde estão todos? Na certa, deviam estar nos esperando. Quem sabe não receberam meu recado.

E segurando as saias, ela correu escada acima. A porta da frente se abriu, e ela entrou correndo.

— Sophie! Vovó! — Correu pelo salão nobre, tirando a capa e o chapéu e colocando junto com a bolsa sobre o banco da entrada, não reparando em um outro par de luvas e em um chicotinho de montaria que também estavam ali. — Ah, aí estão vocês! Fico feliz em rever as duas. Eu...

Beth parou de andar. Arabella estava sentada em sua poltrona de sempre, com

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pose de realeza e um pouco pálida. Já Sophie estava aos pés dela com a cabeça enterrada nas saias pretas. Ela olhou para cima ao ouvir a voz de Beth, com os olhos inchados de tanto chorar.

— Ah, Beth... — disse ela, soluçando ao mesmo tempo. — Simon... Ele foi preso!

Capítulo Dezoito

— E você, Elizabeth? — Arabella forçou os olhos e estendeu a mão. — Por onde andou? Você não costuma desaparecer por tanto tempo assim.

Beth correu até a poltrona, deixando Guy para trás.

— Ela está muito chocada — murmurou Sophie. — Eu disse a vovó que você tinha ido a Londres, mas acho que ela não entendeu.

— Estou aqui, vovó — disse Beth, ajoelhando-se do lado de Arabella e pegando sua mão. — Estive fora, mas estou de volta e vou tomar conta de tudo.

— Onde está Simon? — indagou Arabella, ranzinza. — Você me disse que ele estava morto e agora Sophie me disse que não. Se ele estiver vivo, quero vê-lo.

— Prometo que vamos trazê-lo para casa em breve. — Beth olhou para a irmã. — Não estou entendendo... Por que não tinha ninguém para abrir a porta? Onde está Kepwith?

— Estamos todos muito confusos... Os guardas insistiram em fazer uma busca na casa inteira. Duas das criadas ficaram histéricas e um dos criados resistiu. Ele foi jogado no chão e abriu a cabeça. A sra. Robinson está com ele agora — respondeu Sophie, enxugando os olhos. — Kepwith foi até a cozinha com...

— Voltei... Achei as ervas de que precisava para fazer um chá, lady Arabella. Isso deve acalmá-la. — E Clarice Cordonnier entrou na sala, carregando um pires e uma xícara com um líquido flamejante.

— Que você está fazendo aqui? — indagou Guy, quase gritando.

Ao olhar para o lado, viu que Beth havia se levantado e encarava Clarice.

— Cheguei esta tarde — respondeu Clarice, arregalando os olhos. — Aluguei um cavalo em Fentonby.

— A sra. Cordonnier estava aqui quando levaram Simon — explicou Sophie, enxugando os olhos.

— Estava confortando a família. — Clarice colocou a xícara e o pires na mão estendida de Arabella. — Aí está, milady. Beba devagar e logo se sentirá melhor.

— Como você veio de Londres até aqui? — quis saber Beth.

— Peguei o coche público da noite e depois aluguei uma carruagem até Fentonby. Uma coisa eu digo, não esperava que você estivesse tão longe de mim.

O tom de ironia enervou Guy, que contraiu o maxilar.

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— Aposto que não está aqui com boas intenções.

— Como você é desconfiado, Darrington. — Clarice riu. — Depois que a sra. Forrester foi tão gentil comigo em Londres, eu quis vir até aqui para ver se podia ajudar. — Seu sorriso se alargou ainda mais. — Afinal, foi você mesma que disse que era para eu gastar o dinheiro de Darrington com sabedoria.

— Mas como você encontrou minha casa?

— Você tinha dito que sua família morava perto de Fentonby, e para minha sorte, a srta. Sophie estava na cidade no mesmo dia em que cheguei.

Clarice dirigiu o sorriso melado para Sophie, e Guy teve vontade de se colocar entre as duas, como se assim pudesse proteger Sophie e Arabella.

— Obrigada pela ajuda, mas não vamos mais tomar seu tempo — disse Beth. — Kepwith irá acompanhá-la até a saída.

Fez-se um silêncio constrangedor.

— Eu convidei a sra. Cordonnier para ficar — murmurou Sophie, e se encolheu quando Guy abafou uma blasfêmia e olhou para Beth. — Ela... disse que encontrou você em Londres e que era uma amiga íntima de lorde Darrington...

— Talvez eu tenha forçado um pouco a verdade — disse Clarice, ainda com um sorriso no rosto. — Mas como a família está passando por um momento tão complicado, achei que eu pudesse ser de alguma ajuda.

— Obrigada, mas acho que é melhor que nos deixe agora, milady — disse Beth se levantando, com toda a educação, mas não deixando de ser firme. Em seguida, meneou a cabeça para Kepwith, que tinha entrado na sala em silêncio. — Kepwith, por favor, mande um recado para os estábulos. Peça que tragam o cavalo da sra. Cordonnier até a porta da frente imediatamente.

— Entendo que queira ficar sozinha com sua família — disse Clarice com a voz afetada. — Acho que não me mandaria embora tão tarde da noite...

A expressão de Clarice não convenceu Guy, que se limitou a dizer:

— É noite de lua cheia, você não vai se perder.

Ainda mantendo a pose, Clarice apenas riu com compostura.

— Creio que não fará mal algum se ela ficar — intercedeu Sophie, lançando um olhar de súplica para a irmã. — Ela sabia tanto a seu respeito de lorde Darrington, além de ser uma pessoa muito fácil de conversar. — Fez uma pausa antes de continuar: — Eu estava me sentindo tão sozinha com tanta coisa acontecendo, tanta ansiedade...

Arabella levantou a cabeça, parando de beber o chá.

— Foi muito errado você deixar Sophie sozinha aqui, Elizabeth — disse com austeridade. — A pobre criança não tem sido ela mesma.

— Não vou mais fazer isso, vovó, prometo. — Beth bateu de leve no ombro de Arabella.

— Por que Darrington está com você? Pensei que tivesse ido ficar com Maria Crowther em Ripon.

— Shh, vovó — murmurou Sophie. — Eu contei que houve uma mudança de planos e Beth foi para Londres.

— Estou désolée em deixá-la, srta. Sophie, mas vejo que não há necessidade da minha presença, agora que você tem sua irmã e lorde Darrington para apoiá-la. — Clarice

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se dirigiu até o banco de entrada e pegou suas luvas e o chicotinho. — Por favor, mandem me avisar sobre o que aconteceu com seu pobre irmão. Até logo, lady Arabella.

Sophie murmurou algo incompreensível. Arabella olhava sem entender, tremendo, com a xícara na mão. Beth se apressou a tirar a xícara da pião da avó, que estava muito agitada.

— Aonde ela está indo? É tarde demais para viajar... — Os olhos opacos de Arabella pousaram em Guy. — Darrington... é você? Você deveria acompanhar a senhora...

— Ela estará bem sem a minha companhia, milady.

— Parece que terei de seguir sozinha mesmo — comentou Clarice. — Não, não, srta. Sophie, não precisa se desculpar. Fique sossegada, não estou ofendida. Seu mordomo já veio me avisar que meu cavalo está aguardando. Por favor, não se preocupem em me acompanhar até a porta.

Assim dizendo, Clarice lançou mais um sorriso ofuscante e saiu da casa.

— Ela chega a Malpass e Simon é preso em seguida. — Guy franziu a testa. — Aposto que os fatos estão interligados.

— Se, ao menos, tivéssemos chegado antes — lamentou Beth. — Sophie, como você ficou tão amiga da sra. Cordonnier em tão pouco tempo?

Dessa vez, foi Guy que respondeu com um riso amargo:

— Não culpe sua irmã por isso, milady. Essa mulher é capaz de se insinuar até conquistar o que quer!

— Ela foi muito delicada — concordou Sophie. — Miles achou que não haveria mal algum em...

— Miles a conhece? — exclamou Beth.

— Eu os apresentei — admitiu Sophie. — Miles chegou aqui quando Clar... a sra. Cordonnier tomava chá comigo. Ele a escoltou de volta a Fentonby. Fiquei aliviada de vê-lo partir. Você bem sabe como ele paira sempre por aqui. Fiquei preocupada que desco-brisse Simon.

— Bem, na certa, alguém descobriu — replicou Guy.

— Não acho que tenha sido Miles — respondeu Sophie. — Ele não voltou mais aqui desde esse dia. Ontem cedo recebi um bilhete dele dizendo que estaria em uma de suas viagens de aquisições, dessa vez na Escócia, e que não voltaria antes do fim de semana.

— Tem certeza de que a senhorita não disse nada sobre Simon à sra. Cordonnier? — perguntou Guy, franzindo a testa.

— Não diretamente. — Sophie parecia nervosa. — Conversamos sobre tantas coisas... Nós nos demos muito bem... claro que mencionei Simon, mas nunca disse que ele estava vivo ou que era um fugitivo. Mas uma vez ela me viu subindo dos porões. Eu disse que tinha ido procurar um baú de viagem e acho que ela acreditou.

— Não se preocupe com isso agora. — Beth levantou a mão. — Conte-me o que houve com Simon. Quando o levaram?

— Os guardas vieram no fim da tarde. Eles tinham ordens para dar uma busca na casa e disseram ter informações de que Simon poderia estar aqui.

— Está claro que alguém deu informações sobre seu irmão — concluiu Guy. — Se

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não foi Miles, aposto todo meu dinheiro em Clarice Cordonnier.

— Não e não! — gritou Sophie. — Ela ficou tão chocada quanto nós quando os guardas esmurraram a porta. Foi ela que insistiu para que eles se identificassem. Depois ficou tomando conta de vovó, enquanto eu tentava impedi-los...

— Eles não a feriram, não é? — quis saber Beth, alarmada.

— De jeito nenhum. — Sophie negou com a cabeça. — Mas insistiram em olhar em todos os cômodos da casa, inclusive a adega. Eles encontraram a porta da cripta, e Simon os ouviu. Ele melhorou tanto que já se veste sozinho e anda pelo porão para se exercitar. — Voltou a chorar. — Havia soldados por toda parte...

— Para onde o levaram? — perguntou Guy.

— Para o presídio de Thirsk.

— Então ele estará sob a jurisdição de sir John Marton — disse Beth. — Se tivéssemos sabido antes, teríamos parado lá no caminho para cá. — Abraçou a irmã. — Seque seus olhos, Sophie, traremos Simon para casa antes do amanhecer.

— Mas... mas... como? Por quê? — De súbito, o rosto de Sophie se iluminou de esperança. — Você encontrou o casal de Beaune?

— Sim! Temos um depoimento da sra. de Beaune confirmando que Simon é inocente. — Beth se levantou. — Vamos levar o documento para sir John esta noite. Não suporto a ideia de Simon ficar trancado por mais tempo que o necessário...

As palavras de Beth se esvaíram conforme ela vasculhava a bolsa, cada vez mais desesperada. Guy sentiu um aperto no coração quando ela o fitou com o rosto lívido.

— Não entendo... Sumiu.

— Clarice!

Guy atravessou correndo a sala, quase colidindo com Kepwith, que voltava para a sala, e abriu a porta da frente. Desceu voando as escadas e parou, olhando para o vazio da noite. Não se virou ao ouvir passos se aproximando, nem quando Beth o segurou pelo braço.

— Será que ela roubou a carta?

— Temo que sim.

— Mas... por quê? Não tinha como saber o que estava escrito.

Guy entrelaçou os dedos aos dela.

— Ela viu uma oportunidade de fazer intriga.

— Podemos ir atrás dela? — perguntou Beth com urgência. — Conseguiremos alcançá-la?

— Ser usarmos cavalos velozes, talvez...

— Então vamos tentar!

Ela soltou a mão da dele, e Guy a seguiu para dentro de casa, onde a ouviu dar ordens. Quando o encarou de novo, tinha um brilho de exaltação nos olhos.

— Preciso de apenas um minuto para vestir minha roupa de montaria, enquanto os cavalos são selados.

— Beth, tem certeza de que quer fazer isso? Estamos viajando há dias.

— Simon é meu irmão. Quem mais faria isso por ele? — questionou ela, erguendo

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o queixo.

— Posso ir sozinho...

— Não. Estamos juntos nisso, Guy.

Quinze minutos mais tarde, os dois saíram a galope de Malpass. O vento tempestuoso empurrava as nuvens, que ocasionalmente cobriam a lua, deixando a estrada em plena escuridão. Mas nada atrapalharia a velocidade da jornada. Beth estava com os nervos à flor da pele, sabendo que cada minuto era precioso. Era de se duvidar que Clarice voltasse a Fentonby em grande velocidade, pois além de estar em um cavalo de terceiros, a estrada era desconhecida. Beth possuía a vantagem de conhecer cada curva do caminho. Se, ao menos, encontrassem Clarice antes que ela tivesse tempo de esconder a declaração...

Quando entraram em uma pequena floresta, Beth diminuiu a velocidade.

— É melhor não galoparmos na escuridão total — disse a Guy, quando ele emparelhou os cavalos. — Além disso, minha égua está cansada... assim ela pode se recuperar. — Fez uma pausa. — Clarice deve achar que tem nas mãos a chance de se vingar de você... Você acha que ela pode destruir a declaração?

— Tenho minhas dúvidas.

— Tirar a liberdade de Simon seria a vingança mais terrível que posso conceber.

— Mas Clarice não se parece em nada com você, minha querida. Não tenho dúvida de que a vingança dela segue mais para... uma linha mercenária.

— Acha que ela tentará vender a declaração para mim?

— Sim, e a um preço exorbitante. Seria algo além do imaginável.

— Qual outra chance teríamos? — Beth suspirou. — A sra. de Beaune estava de partida para a América com a irmã... Levaríamos meses para encontrá-la de novo.

— Beth...

— Já decidi. Preciso recuperar o depoimento de qualquer maneira... Não suporto a ideia de Simon continuar preso por mais um minuto sequer.

Ao saírem da floresta, o caminho surgiu à frente deles como uma fita prateada pela luz do luar.

— Está bem. — O cavalo de Guy seguiu à frente. — Vamos retomar nosso caminho!

A cidade de Fentonby estava em silêncio, e as casas, na escuridão quando eles passaram pela rua principal. Foram direto para a Swan, a hospedaria em que Sophie dissera que Clarice tinha alugado um quarto. Era tarde da noite e não havia ninguém na recepção, olhando-se pela janela, mas a porta estava aberta, e as lamparinas ainda estavam acessas. Um cavalariço sonolento se apresentou para levar os cavalos.

Guy e Beth entraram no estabelecimento e encontraram um garçom limpando as mesas. Quando Guy perguntou sobre Clarice, ele negou com a cabeça.

— Ela saiu cedo hoje de manhã e ainda não voltou.

— Por acaso, ela disse se tinha amigos por aqui? — perguntou Guy, dando disfarçadamente uma moeda ao rapaz.

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— Não, senhor. Ela ficou sozinha... — respondeu o garçom, olhando para a moeda na mão.

— Será que a perdemos? — Beth olhou ansiosa para Guy, enquanto o garçom continuava a recolher os pratos. — Só há um caminho que sai de Malpass. Viajamos rápido, talvez ela tenha levado um tombo...

— Não creio que tenha sido isso — disse Guy lentamente. — Clarice sempre foi uma excelente amazona. Acho que é mais provável que esteja se escondendo. Ela sabia que eu viria em seu encalço.

— O que devemos fazer agora?

— Não nos resta muita coisa a não ser voltar para casa e esperar.

— Podemos explicar o que houve a sir John...

— Sem a prova física, ele não poderá soltar seu irmão. E antes que me diga que devemos tentar, acho que, a não ser que ele seja um santo, não vai gostar muito de ser acordado a esta hora da noite.

Beth chegou a abrir a boca para argumentar, mas bastou olhar para o rosto de Guy para saber que não adiantaria muito. Suspirou, exausta. Sem dizer nada, permitiu que Guy a conduzisse até os cavalos, e logo estavam voltando para Malpass.

A viagem de volta foi feita em um passo bem mais lento. Beth cavalgava em silêncio ao lado de Guy, fazendo o possível para esconder a frustração.

— Querida, desculpe-me por você ter conhecido Clarice — comentou Guy, depois de um tempo.

— Não é sua culpa, Guy.

— Eu nunca devia ter permitido que ela entrasse na casa.

— Acredito que foi seu dever cristão acolhê-la.

— Ora, que dever...

Beth meneou a cabeça, sorrindo ante a veemência das palavras dele.

— A culpa é tanto sua quanto minha. Achei que você tinha sido ríspido demais.

— Sua bondade dificulta que enxergue o pior das pessoas.

— Meu Deus! — Beth soltou um longo suspiro. — Acho que eu mesma fiz isso comigo, punindo-me por quebrar os votos pré-nupciais...

— Você sabe que isso é bobagem.

— Sei que estou sendo tola, mas não consigo deixar de imaginar... — Beth parou de falar e estremeceu o corpo. — Acho que estou cansada.

— Foi um dia estafante. — Guy aproximou mais o cavalo para pegar a mão dela. — Vamos, Beth, não fique tão desanimada. Voltaremos para Malpass e esperaremos que Clarice se manifeste. Ainda não está tudo perdido.

SOPHIE estava acordada, esperando por eles. Ficou desapontada por a declaração

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da sra. de Beaune não ter sido recuperada, mas recebeu com otimismo a notícia de que Clarice poderia tentar vender a declaração para eles. No entanto, não gostou de ouvir as explicações distorcidas de Beth na tentativa de justificar a razão de estar viajando na companhia do conde.

— A sra. Cordonnier me disse que os viu juntos em Londres — disse Sophie, conduzindo-os a uma pequena sala. — Não imaginam como foi difícil lidar com Miles quando ele apareceu por aqui. Eu disse a ela que vocês estavam em uma missão secreta e pedi para que não mencionasse o assunto a Miles.

— Esteja certa de que isso instigou o interesse de Clarice — resmungou Guy, franzindo a testa.

— Se eu soubesse que ela era tão perversa, jamais a teria convidado para entrar em casa! — revidou Sophie, com o rosto corado.

— Você não tinha como saber — se apressou em dizer Beth, olhando de relance para Guy. — Ela enganou cada um de nós. Mas está ficando tarde, e precisamos estar bem amanhã.

— É verdade — disse Sophie. — O quarto vermelho estava preparado para a sra. Cordonnier, e milorde pode ficar lá. Eu dispensei os criados. Se quiser, posso mostrar o caminho.

— Eu faço isso — disse Beth sem demora, e beijou o rosto da irmã. — Boa noite, querida.

Esperou que Sophie fechasse a porta e virou-se para Guy, que a observava com uni sorriso no rosto.

— Bem, milady, quer compartilhar minha cama?

— Você ficará bravo se eu negar? Agora que voltamos para Malpass, sinto o peso do meu noivado nas costas.

— Imaginei que essa seria a sua resposta. — Guy estendeu os braços, e ela se aninhou ali em busca de conforto e força.

— Perdoe-me — disse com voz abafada. — Assim que eu encontrar Miles...

— Você não me deve explicações — murmurou ele, beijando-lhe o cabelo. — Venha... Leve-me até meu quarto, e eu me contentarei com um casto beijo de boa-noite.

Capítulo Dezenove

Beth passou uma noite miserável. Os pensamentos giravam entre a ansiedade por Simon, apreensão para se encontrar logo com Miles e um amargo arrependimento por ter perdido o depoimento da sra. de Beaune. Foi com alegria que viu o dia frio de outono amanhecer, quando se vestiu e saiu do quarto.

Passou a hora seguinte com a governanta, resolvendo os cardápios e assuntos da casa, o que a acalmou bastante. Mas quando viu Guy à mesa do desjejum, sentiu-se

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reconfortada. Ele se levantou quando ela entrou na sala e sorriu. Beth acreditou que, se estivesse ao lado de um homem como aquele, lindo e forte, tudo se encaixaria.

— Bom dia, milorde. — Ela tentou parecer animada. — Você está muito bem, apesar da falta de seu valete.

— Bem sabe que me viro bem sem Fitton, tanto quanto você sem Tilly — disse ele, sorrindo e puxando a cadeira para Beth se sentar. — Se bem que eles devem chegar até o fim do dia, pois não estavam tão longe de nós.

— Será que também ficaram presos pela inundação em Huntingdon? — perguntou Sophie, entrando na sala naquele momento, unindo as sobrancelhas em sinal de preocupação. — Gostaria que aquela mulher fosse levada pela enchente... Na verdade, eu queria mesmo que ela tivesse se afogado.

— Irrita saber que ela tem tanta vantagem sobre nós — disse Beth. — Se, ao menos, houvéssemos chegado mais cedo.

— Não vamos nos preocupar com isso agora. — Sophie procurou ser prática. — Podemos ir a Thirsk para ver Simon?

— Eu gostaria muito de visitá-lo — admitiu Beth. — Quero me certificar de que está bem.

— Ele melhorou muito, Beth. A febre tinha cedido, e ele começava a comer melhor... — Sophie não aguentou continuar e cobriu o rosto com as mãos.

Beth levantou-se na mesma hora e foi abraçá-la.

— Sophie, não se preocupe tanto. Isso é apenas um contratempo. Assim que... — Beth parou de falar ao ouvir vozes atrás da porta de entrada. Alguém estava chegando. — Será a sra. Cordonnier? — indagou a Guy.

— Acho que não — respondeu ele, colocando o guardanapo na mesa e se levantando quando a porta se abriu.

— Não precisa me anunciar, posso encontrar meu caminho sozinho.

— Edwin!

O grito de alegria de Sophie pegou Beth de surpresa ao ver a irmã correndo pela sala e se atirando sobre Davey. Ele estava apoiado em uma bengala, mas logo a abraçou com o braço livre.

— Está bem, meu amor, não derrame suas lágrimas em mim. Quando você não foi me visitar ontem, conforme o prometido, achei que devia vir e saber o que está acontecendo. — Davey olhou para Guy por cima dos cachos cor de mel de Sophie.

— Ah, que bom que está aqui, Darrington! Julia estava furiosa com você... Não por tê-la abandonado em Thirsk, mas por não contar o que andava fazendo! Vejo que a sra. Forrester também voltou de Ripon.

— Bom dia, Davey.

Beth notou a frieza na voz de Guy, cumprimentando o amigo. Mas ainda estava chocada demais com a visão de Sophie se atirando nos braços de Davey.

— Beth não foi a Ri... Ripon — contou Sophie, enxugando os olhos. — Venha se sentar, Edwin e explicaremos tudo.

— Sophie! — gritou Beth, reprendendo a irmã. — Acho que não...

— Está tudo bem, querida — interrompeu-a Guy. — Eu confiaria minha vida a Davey. A julgar pela recepção, acredito que ele planeje se tornar um membro de sua

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família em breve.

— Bem, sim, na verdade... — murmurou Davey, corando. — Estávamos aguardando seu retorno, milady.

— Eu não contei nada a Edwin — disse Sophie, guiando Davey para a mesa e se sentando ao lado dele. — Fui tão discreta. Como aquela mulher sabia sobre Simon...?

— Ela tem um bom faro para escândalos — disse Guy, amargo. — Mas estou vendo que Davey está confuso. Beth, meu amor, talvez seja melhor mandar preparar mais café. Acho que devemos confiar nele e contar o que está acontecendo.

— Então quer dizer que Clarice está de volta à Inglaterra! — Edwin Davey balançou a cabeça, com o semblante de menino consternado.

Demorou um pouco até que Davey soubesse de toda a história, mas seu sorriso habitual tinha lhe fugido do rosto.

— Eu sempre soube que ela ia causar problemas para você, Guy.

— Não foi para mim exatamente — respondeu Guy, olhando para Beth. — Se eu tivesse negado que tive participação quando ela roubou as cartas dos nossos partidários... Se eu tivesse contado a verdade...

— Você não podia saber como Clarice era. — Beth se esforçou para sorrir.

— Ah, não, ele podia sim — contrapôs Davey. — Ele é muito fiel! Guy podia ter aberto o jogo há dez anos em vez de desistir de uma carreira brilhante, e tudo por uma mulher que não vale a pena.

— Não adianta discutir sobre o passado — interveio Beth, percebendo o arrependimento e mágoa de Guy. — Vamos resolver o que tem de ser feito agora.

Antes que alguém respondesse, Kepwith apareceu na sala.

— A sra. Cordonnier quer vê-la, milady.

— Ahá — exultou Guy com olhos brilhantes. — Vamos lá.

— Deixe-a comigo, vou mostrar o que acho... — ofereceu Davey, levantando-se.

— Não, é melhor que somente Beth e eu a encontremos — disse Guy. — Você fica aqui e cuida de Sophie.

Não foi preciso dizer mais nada para que Davey logo voltasse a se sentar. Depois Guy se dirigiu para Beth:

— Bem, vamos ver o que ela tem a dizer?

Beth seguiu para o salão nobre, resistindo à vontade de pegar no braço de Guy. Clarice os aguardava com a mesma roupa de montaria, mas dessa vez com as luvas, e batia na saia com o chicotinho.

— Soube que foram me procurar na noite passada — disse ela com um sorriso desafiador. — Acham mesmo que eu seria tola o suficiente para me deixar encontrar antes de colocar aquele depoimento num lugar seguro?

— Foi você que denunciou meu irmão? — exigiu Beth com frieza.

— Sim, eu disse às autoridades que um fugitivo desesperado estava escondido aqui. Seu comportamento em Londres me fez suspeitar que tivesse... segredos, sra.

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Forrester, por isso vim para cá. Foi fácil ficar amiga de sua irmã e perceber que ela escondia alguma coisa.

— Não acredito que Sophie tenha sido tão indiscreta.

— Acredite no que quiser, isso não tem importância. Seu irmão será levado de volta a Portsmouth para ser julgado. Sem o depoimento, não vejo muita esperança para ele.

— O que você fez com o documento? — perguntou Beth, mas Clarice limitou-se a sorrir.

— Você precisa da carta para garantir a liberdade do seu irmão, não é? Fique tranqüila que o depoimento está em segurança, mas não direi onde.

— Vamos fazer com que diga — ameaçou Beth. — Vamos levá-la agora mesmo para Thirsk, para o magistrado...

— E eu negarei tudo. Direi que fui raptada, talvez num ato de puro ciúme por eu ter sido noiva de Darrington.

— Quanto quer? — perguntou Guy, impassível.

Clarice estreitou os olhos, considerando a pergunta.

— Dez mil libras.

Beth a encarou, o medo corroendo-lhe os ossos.

— Antes que eu lhe pague, nos encontraremos no inferno.

Clarice limitou-se a rir do comentário de Guy.

— É mesmo? Como pretende salvar Simon agora que a sra. de Beaune se foi?

— Como sabe disso? — Beth levantou a cabeça para enfrentá-la.

— Tenho minhas fontes. — E acrescentou: — E não me encare com tanta maldade, Darrington. Sei que gostaria de me matar, mas tomei algumas precauções quanto à minha segurança. Se eu não retornar até o meio-dia, meus amigos têm instruções precisas para queimar seu documento precioso.

— Não! — gritou Beth e olhou para Guy, que ainda fuzilava Clarice com o olhar. Em seguida, dirigiu-se a Clarice de novo: — Eu não tenho dez mil libras.

— Talvez não tenha mesmo — disse Clarice. — Mas Darrington tem. Ele nem sequer sentiria falta.

— Não lhe darei nem um centavo.

— Ora, mas nem por sua amante? O irmão dela irá para a forca sem esse depoimento.

— Posso garantir que não.

— Ele conseguiu enganar o carrasco há dez anos, mas dessa vez não haverá multidão para ajudá-lo. Simon será levado para o sul e julgado. Você pode alegar que foi apenas um homicídio casual, mas há o colar. — Clarice estreitou o olhar. — A vida pode não valer muito nas cortes inglesas, mas roubo é levado muito a sério. Não há dúvida de que ele irá para a forca.

Guy meneou a cabeça.

— Repito que Wakeford não será enforcado.

Beth se esforçou ao extremo para manter a fleuma. Pensar em Simon na cadeia já

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era torturante, mas imaginá-lo sendo julgado e no resultado era insuportável.

— Parece que temos um impasse — disse Clarice, encolhendo os ombros. — Vou deixá-los para resolver o assunto, mas aviso que sejam rápidos. Depois que Wakeford for levado para o sul para julgamento, meu preço subirá. Não se incomode em chamar o mor-domo para me mostrar a saída, conheço o caminho. E não tentem me seguir — avisou ela, dirigindo-se para a porta. — Não quero que descubram onde estou.

— Mas e se quisermos falar com você... — disse Beth.

— Eu negociarei com você, sra. Forrester. Quero exatamente dez mil libras para entregar o depoimento, nem um centavo a menos. Se me pagar, pode mandar uma mensagem a Swan. Eu me protegerei.

— Você vai se decepcionar — disse Guy, com toda frieza possível. — Não me renderei a você.

— Ah, não? — Clarice dirigiu um olhar insolente a Beth. — Talvez não esteja mais tão apaixonada pelo seu herói depois de ouvir isso, sra. Forrester.

Assim dizendo, Clarice se virou e saiu pela porta.

— Como essa mulher descobriu que a sra. de Beaune estava indo para a América? — indagou Beth, depois de um breve silêncio.

— Não acho que ela soubesse tanto, mas está claro que é bem mais do que podia ter tirado de você e da sua irmã.

— Dez mil libras... — Beth balançou a cabeça. — Teríamos de vender muita coisa para levantar essa quantia, sem contar que também levaria tempo.

— Você não deve nem considerar a hipótese de pagar a essa mulher. — Guy se aproximou e tomou as mãos dela nas suas. — Beth, preciso que confie em mim.

— Mas Simon...

— Por enquanto, ele está a salvo.

— Ele está na cadeia! — Ela se soltou das mãos dele. — Você tem de entender que farei tudo o que estiver ao meu alcance para salvá-lo.

— Contanto que isso não inclua pagar essa maldita quantia à Clarice.

— Acho que seu ódio por essa mulher o cega e não permite que enxergue o que precisa ser feito.

— De jeito nenhum. Acredite em mim, Beth, não tenho a intenção de permitir que coisa alguma aconteça a seu irmão.

— O que pretende fazer? — indagou Beth, fechando ;os olhos, pois estava difícil pensar com clareza.

— Mantenho o que disse. Seu irmão estará em segurança enquanto estiver em custódia. Vou até Thrisk hoje para encontrar com o magistrado.

— Não. — Beth se afastou mais um pouco. — Não precisa se dar ao trabalho. Eu vou a Thirsk.

— De jeito nenhum!

Beth levantou a mão, como se estivesse enfrentando uma espécie de pesadelo que não a deixava raciocinar direito. Tudo o que sabia era que esperava que Guy a ajudasse mais, e ele havia falhado. Sua cabeça, todo o seu ser tinha sido devassado por uma de-cepção irracional.

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— Simon é meu irmão. Sou eu quem decide qual a melhor maneira de ajudá-lo. Não preciso de sua ajuda dessa vez. Aliás, não preciso de sua ajuda para nada! — Ela o encarou, desafiando-o a discordar.

Ele, então, fez uma breve reverência.

— Isso mesmo, milorde, vá. Eu me arrumo muito bem sem você.

Beth precisou dar uma volta no jardim antes de unir-se aos outros. O primeiro confronto que tivera com Guy fora tão terrível quanto a exigência de Clarice. Havia um lampejo de esperança de que ele a tivesse seguido, pois a braveza maior tinha passado, e ela percebeu que estava sendo injusta, por isso, apreciaria bastante uma chance de se desculpar. Entretanto, ele não estava em lugar algum quando ela voltou para casa e encontrou Sophie e Davey ainda à mesa do desjejum.

— E então?

Beth viu a expressão esperançosa de Sophie e esforçou-se para conter as lágrimas.

— Ela que... quer dez mil libras pela declaração.

— Dez... — Sophie levou as mãos ao rosto. — Ah, céus, não temos essa quantia.

— E Darrington? — perguntou Davey.

— Ele está inflexível, dizendo que não devemos pagar. — Beth meneou a cabeça.

— E ele está certo — concordou Davey. — Não há como ter certeza de que ela devolverá o depoimento.

— Eu daria dez vezes mais para salvar Simon! — gritou Sophie com o rosto vermelho de raiva.

— Eu também daria, meu amor — disse Davey. — Mas se estivéssemos certos de que Clarice devolveria a declaração. Não tenho dúvida de que Darrington tem um plano. Onde ele está?

— Não faço ideia — respondeu Beth, encolhendo os ombros, tentando parecer indiferente.

— Bem, precisamos saber o que ele pretende fazer — declarou Davey. — Toque a sineta, Sophie, vamos pedir que o encontrem.

Mas quando Kepwith entrou na sala minutos depois, trouxe a notícia de que lorde Darrington tinha deixado Malpass.

— Não acredito! — exclamou Davey. — Ele falou para onde ia?

— Sim, deixou recado que estaria em Fentonby — respondeu Kepwith, mantendo a postura.

— Fentonby! — Davey correu os dedos pelo cabelo claro. — Por Deus, com o que ele está brincando?

Beth não respondeu. Mesmo porque não diria nada, mas permaneceu enraizada no lugar, com os olhos fixos em Kepwith.

Ele partiu.

As palavras ecoaram em sua cabeça. Relembrou os últimos minutos que tinham

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passado juntos. Na certa, ele saberia distinguir a verdade do que havia sido dito em um momento de raiva. A menos que estivesse procurando uma desculpa para partir. Talvez não a quisesse mais. Não podia esconder o fato de que já havia lido nos jornais que o perigoso lorde Darrington já havia amado e deixado outras mulheres para trás. Não podia negar que ele estaria fazendo jus à reputação.

— O que faremos agora? — perguntou Sophie com o lábio tremendo.

— Vamos a Thirsk falar com sir John Marton — respondeu Beth, colocando os ombros para trás.

— Irei acompanhá-las — declarou Davey.

Beth estava prestes a recusar a companhia, quando percebeu o olhar trocado entre Davey e Sophie. Sentiu uma dor aguda, como se uma adaga afiada lhe ferisse o coração. Pensara que Guy a amava com aquela mesma intensidade, mas agora já não sabia mais em que acreditar.

— Está certo. Mas antes, Sophie, devemos ir ver a vovó. Não vamos contar sobre o depoimento perdido, mas diremos que vamos visitar Simon.

Enquanto a carruagem dos Wakeford seguia lentamente a Thirsk, Beth a comparou com a elegante carruagem de Guy, na qual tinha viajado tantas milhas em companhia do conde. A comparação só reforçou a distância em que estavam. Algo lhe dizia que Guy podia ter emprestado as dez mil libras para pagar Clarice se ele assim o quisesse. Em vez disso, ele a deixara. Piscou os olhos rápido e fixou-os na paisagem.

— Não entendi por que lorde Darrington se mudou para Fentonby — observou Sophie, enquanto balançavam dentro da carruagem em uma estrada irregular. — Ele não disse nada a você, Beth?

Beth engoliu em seco e respondeu com inacreditável calma:

— Não, mas esse assunto não tem nada a ver com ele.

— Não tem nada...? — Davey balançou a cabeça. — Claro que ele se preocupa, especialmente se Clarice Cordonnier estiver envolvida. — Esticando a mão, alcançou o braço de Beth. — Não perca a fé em Darrington, sra. Forrester. Ele deve ter tido uma boa razão para se recusar a pagar a Clarice.

— É verdade — disse Beth com amargura. — Ele não quer ser passado para trás por ela uma segunda vez.

Davey começou a protestar, mas Beth levantou a mão para silenciá-lo.

— Sei o quanto você é leal a seu amigo, sr. Davey, mais suas certezas parecem ocas. Se ele quisesse, de fato, nos ajudar, teria me dito. — Enquanto falava, lembrou-se dos dias que passara na companhia de Guy e as noites de muita paixão. Impossível que aquilo não tivesse significado algum para ele. — Será que ele não pode confiar em mim? — perguntou, quase em desespero.

— Acredito que ele pense que não é seguro confiar em ninguém.

Beth não gostou da resposta e preferiu se calar, convencida, no fundo do coração, de que tinha colocado muita expectativa naqueles breves dias que passara com Guy. Agora estava evidente que ele não a amava.

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A visita ao magistrado acalmou Beth um pouco. Ele ouviu a história da declaração roubada, mas afirmou, por fim, que não tinha poder para fazer nada.

— Sinto muito, sra. Forrester, mas não pode me dizer onde encontro essa sra. Cordonnier e a declaração, escrita por uma francesa que já não está mais no país... Isso tudo me soa improvável. Seu irmão deve responder às acusações contra ele. — Ao perceber que o olhar chocado de Beth, acrescentou: — O máximo que posso fazer é manter Wakeford aqui em Thirsk até ele ser chamado para julgamento. Assim, pelo menos, poderá visitá-lo com frequência.

Sir John os escoltou pessoalmente às celas, onde encontraram Simon bem-disposto, apesar de pálido e estremecido depois do ocorrido.

— Estou sendo muito bem tratado. Sophie conseguiu me dar uma bolsa antes de me levarem, com isso posso pagar uma cela separada e refeições melhores. E para ser sincero, Beth, estou feliz de ter saído daquela cripta. Agora, pelo menos, tenho uma janela.

Beth procurou sorrir quando ele apontou uma abertura gradeada no alto da parede. Os ruídos da rua soaram como se estivessem zombando deles, e ela decidiu que não se deixaria abalar.

— Você está, de fato, melhor do que a última vez em que o vi — admitiu ela.

— Você tem notícias do casal de Beaune?

Simon estava ansioso, e Beth não respondeu de imediato, mas logo contou tudo o que havia acontecido, terminando com a visita de Clarice a Malpass.

— Eu tive esperanças de que Darrington fosse me emprestar o dinheiro para comprar o depoimento de volta.

— É de se esperar que ele não disponha de uma quantia tão grande para um estranho — disse Simon, encolhendo o ombro.

— Tenha certeza de que Darrington tem uma boa resposta para isso — acrescentou Davey.

— Você se recusaria a me emprestar uma quantia dessas? — Sophie o desafiou.

— Não, claro que não — respondeu ele de imediato. — Se a tivesse, o que não é o caso...

Beth levantou a mão, pedindo silêncio.

— Não se ponha à prova, sr. Davey. Não duvido da sua amizade.

— E eu não gostaria que duvidasse de Darrington também.

— Não. Acho que talvez minha expectativa tenha sido muito grande em relação a ele.

Estava tarde quando voltaram a Malpass, e Beth cedeu à súplica de Sophie para que Davey pernoitasse no mosteiro. Pediu para que um quarto fosse preparado e saiu da sala para ir ver a avó.

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Arabella havia se recolhido, mas não estava dormindo, e Beth teve de passar por um longo e doloroso questionamento. Arabella quis saber por que ninguém tinha contado a ela que Simon estava escondido nos porões. Estava convencida de que se tivesse sabido antes, os soldados não o prenderiam.

Depois de acalmar a avó, Beth estava exausta, cansada demais até para prestar atenção à descrição de Tilly das provações que tivera que passar, viajando para Malpass junto com a bagagem. Disse apenas que estava contente de tê-la de volta em casa e foi para a cama, adormecendo assim que sua cabeça encostou no travesseiro.

A manhã seguinte chegou com outra provação para Beth: a visita de Miles Radworth. Tinha acabado de terminar o desjejum quando a chegada dele foi anunciada. Seguiu para o salão nobre e, conforme descia as escadas, ele se aproximava de braços abertos.

— Minha querida, que notícias horríveis sobre seu irmão!

— Então você já sabe?

Miles tomou as mãos dela, levantou-as e beijou uma depois da outra.

— Esse era o assunto em Fentonby quando cheguei em casa ontem à noite. Não há como evitar que isso aconteça. Preciso que me conte tudo, minha querida.

— Sim... — Beth reconheceu sinais de preocupação em Miles. — Acho que é preciso mesmo. Venha até a biblioteca, vou explicar o que aconteceu.

— ...então foi isso — terminou ela, levantando as mãos. — Não fui a Ripon, como todos imaginavam, mas para Londres, achando que poderia ajudar Simon.

— Gostaria que tivesse me contado, Elizabeth.

— Agora que tudo já passou, eu também acho que devia. — Suspirou. — Se eu tivesse confiado em você, talvez não estivesse nessa situação difícil agora.

— Darrington insistiu em acompanhá-la?

— Sim — respondeu ela, juntando as mãos no colo. — Não posso negar que ele foi de grande ajuda.

— Talvez por estar apaixonado por você?

Beth continuou de cabeça baixa.

— Não — disse, melancólica. — Não acho que ele me ame.

Ouviu quando Miles arrastou a cadeira para trás e levantou-se para andar pela biblioteca.

— Você voltou para Malpass com ele... sozinha?

— Sim.

— Entendo.

Duvido, pensou ela, sentindo-se horrível. Rezou para que ele não perguntasse mais nada, pois não gostaria de entrar em detalhes de como havia ficado íntima de Guy.

— Você sabe que se... quando... a fofoca se espalhar, sua reputação estará arruinada, não?

Beth fechou os olhos. Na certa, ele romperia o contrato, mas quem poderia culpá-

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lo? Na verdade, nem podia se aborrecer, agora que conhecia o próprio coração.

— Sim. Eu...

— Nessas circunstâncias, acho melhor anteciparmos o casamento — continuou ele, como se ela não tivesse dito nada. — Até o momento, nosso noivado estava apenas entre quatro paredes, mas agora devemos torná-lo público. Os proclamas devem correr, e nos casaremos dentro de um mês.

— Você ainda quer se casar comigo? — Beth arregalou os olhos.

— Claro que sim. — Os lábios finos de Miles se curvaram em um sorriso. — Faremos o anúncio para calar qualquer rumor que possa surgir dessa sua última... humm... aventura. Vamos convidar todos para celebrar conosco nosso noivado junto com a festa anual da Câmara de Fentonby, na semana que vem. A casa que aluguei na cidade é pequena demais para a festa, e não acho que aqui seja o lugar conveniente, nas atuais circunstâncias.

— Mas, Miles, como posso pensar em festas com Simon na prisão...

— Shh, querida. Entenda que quando for minha esposa, estarei em melhores condições para ajudá-la. Pelo que me contou, acho que essa sra. Cordonnier a está usando para atingir Darrington. Ela deve ter pensado que você conseguiria persuadi-lo a pagar.

— E verdade.

— Nosso noivado vai mostrar que ela estava errada e, com Darrington afastado, é capaz de ela ceder um pouco,

— Você acredita mesmo? — indagou ela, cheia de esperanças, fitando-o.

— Tenho quase certeza. — Miles se aproximou e estendeu as mãos, dizendo: — Bem, minha querida... O que acha disso tudo?

Beth permitiu que ele a ajudasse a se levantar. A intenção era contar a ele o que tinha acontecido e dizer que não poderia se casar, mas agora tudo havia mudado. Estava arrasada pelos eventos dos últimos dias, especialmente pela recusa de Guy em ajudá-la.

O redemoinho de fatos se resolvera com uma tempestade. Com a decisão de se casar, mostraria ao querido conde que pouco se importava com ele... Não precisava mais dele.

— Eu aceito, Miles — disse ela, resoluta, erguendo o nariz.

Não se moveu conforme ele baixou a cabeça e pousou os lábios nos dela. O beijo deveria acender a chama do desejo do mesmo jeito que acontecia sempre que Guy a tomava nos braços.

Em desespero, Beth procurou corresponder, mas não sentiu nada.

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Capítulo Vinte

Miles não ficou muito tempo em Malpass. Arabella ainda não tinha deixado seus aposentos, e ele recusou a sugestão de Beth de acompanhá-la a Thirsk, dizendo que tinha compromissos inadiáveis em Fentonby.

Ficou para ela a tarefa de contar a novidade do casamento para a família. Dirigiu-se primeiro ao quarto de Arabella, que tomava café. Uma das criadas avisou que ela não tinha dormido bem à noite.

Quando Beth explicou que ela e Miles tinham finalmente marcado a data do casamento, Arabella não demonstrou nenhuma emoção.

— Não vai me dar os parabéns, vovó? — murmurou Beth, ajoelhando-se ao lado da poltrona.

— Nada estará bem antes que Simon volte para casa.

— É verdade. — Beth piscou para evitar que as lágrimas, represadas em seus olhos havia algum tempo, escorressem por seu rosto. — A senhora tem razão, vovó.

A reação de Sophie foi bem mais explosiva. Beth esperara para contar quando estavam a caminho de Thirsk. Davey também estava presente, o fato de que os dois eram inseparáveis já era uma realidade.

— Você só pode estar brincando! — gritou Sophie, quando Beth contou a novidade.

— Darrington sabe disso? — perguntou Davey.

— Eu não estou brincando — replicou Beth, com o rosto vermelho. — E lorde Darrington não tem nada a ver com a minha vida!

— Ah, Beth, o que vai fazer? — Sophie pegou o braço da irmã e balançou. — Quando você chegou ontem à noite, dizendo que estivera em companhia de Darrington durante a última semana...

— Esse assunto não tem mais tanta importância. Se Miles não se importou, então não haverá graves conseqüências.

Beth olhou para os dois e se calou. O fato não seria esquecido, mas Beth afastou de sua mente quando chegaram à prisão e souberam que Simon tinha trocado de cela.

— Vejam só, um quarto maior e roupa de cama limpa — brincou Simon quando eles entraram. — A vista não é das melhores... daqui vejo o tribunal, da cela anterior eu via o céu. Ah, tenho também um novo carcereiro. — Apontou para um homem forte que guardava a porta. — Logan é bem civilizado, mas insiste em manter o olho em mim dia e noite.

— Um horror — comentou Sophie. — Pelo menos, você não está mais

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acorrentado.

— Não, e as refeições também melhoraram. — Simon sorriu. — Considerando tudo, não é tão ruim assim, bem melhor do que os porões de Malpass.

— Espero que você seja libertado logo — murmurou Beth.

— Ah... — Simon olhou para cima. — Alguma novidade?

— Receio que não, mas Miles jurou que vai nos ajudar.

— Então ele ainda está aqui?

— Ah, sim — disse Sophie. — Eles finalmente marcaram a data. Miles e Beth devem se casar no fim do mês.

— É mesmo? — Simon sorriu de alegria. — Tomara que eu já esteja livre para consentir com essa união.

A tentativa de humor dele foi demais para Beth, que não aguentou e o abraçou, soluçando.

— Ah, minha irmã, acalme-se. — Sem jeito, Simon deu algumas batidas leves nas costas dela. — Isso não ajuda em nada, e detesto vê-la chorar.

Beth puxou o lenço e enxugou os olhos, pedindo desculpas pela demonstração de fraqueza, mas as lágrimas não pararam de cair nos minutos seguintes, tanto que ela duvidou se chorava por Simon ou por ela mesma.

Voltaram a Malpass perto do horário do jantar. Ao entrarem no salão nobre, Kepwith segurava uma pequena bandeja de prata.

— Lorde Darrington esteve aqui na sua ausência. Ele deixou esse bilhete para milady.

Houve um minuto de uma tensão silenciosa. Beth sabia que Sophie e Davey a observavam, esperando sua reação.

— É mesmo? — Ela levantou uma das sobrancelhas, pegou o bilhete e quebrou o selo.

Estava tão concentrada em não deixar as mãos tremerem que mal entendeu a mensagem, porém uma coisa tinha ficado clara: ele não emprestaria o dinheiro para pagar Clarice. Isso era tudo o que interessava, Deixou de lado os avisos para ficar atenta e tomar cuidado. Tensionando o maxilar a fim de evitar uma cena, ela rasgou o bilhete em dois e lançou-o à lareira.

— Não é nada com que precisemos nos preocupar — disse, batendo as mãos. — Vamos fazer companhia à vovó para jantar?

Os dias seguintes foram trabalhosos para Beth com os preparativos para o casamento, tanto que mal teve tempo de pensar muito. Entre os afazeres, mandou uma carta para o sr. Spalding, em Londres, pedindo que ele retomasse a busca pela sra. de Beaune, e recebeu uma resposta de pronto, informando que a sra. de Beaune tinha deixado o país na companhia da irmã e do cunhado. Na certa, a casa alugada em Bourne Park estaria vazia.

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A missiva veio junto com uma carta de Clarice, que, em disfarçada amizade, não deixava dúvidas de que, se não recebesse o dinheiro, queimaria o depoimento. Quando contou a Miles, ele implorou para que ela não se preocupasse.

— Eu mesmo irei responder — disse ele, tirando a carta das mãos de Beth. — Vou falar sobre nosso casamento e que não receberá nada antes que estejamos casados.

— O problema é que Simon pode ser levado a Londres a qualquer hora.

— Vamos lidar com esses problemas à medida que eles forem aparecendo. Confie em mim, Elizabeth.

A garantia devia tê-la deixado feliz, e seu coração corroía-se de ansiedade quando desceu para o jantar. Havia convidado Miles para jantar com a família, e quando entrou na sala de estar, o viu conversando com Davey e Sophie, enquanto Arabella os observava em um silêncio reprovador.

Assumindo a cena com graça, Beth foi obrigada a colocar as preocupações de lado e assumir o papel de uma perfeita anfitriã. Era evidente que Arabella não aprovava sua intenção de se casar com Miles, mas se conseguisse a liberdade de Simon, teria valido a pena, apesar de prever um longo período para convencer a avó a aceitar seu casamento.

Estava escurecendo quando Guy trotava em seu cavalo a caminho de Malpass. Lembrou-se da primeira vez em que estivera ali, com Davey estendido no chão, na frente do portão. A imponente sombra do mosteiro tinha parecido ameaçadora. Podia jurar por tudo o que possuía que, se tivesse noção do quanto lhe custaria se envolver com Beth Forrester, teria carregado Davey nas costas até a casa dele, passando ao largo de Malpass.

— Não seja tolo, você sabe que não seria assim — murmurou, bravo, para si mesmo ao desmontar do cavalo e prender as rédeas em uma árvore perto das escadas.

Parou ali por uns instantes quando teve visões de Beth dirigindo os criados para levar Davey para dentro. Beth segurava uma lamparina, seus olhos grandes refletiam medo e apreensão, como os de um veado assustado, quando a encontrou no corredor no meio da noite. Em seguida, lhe veio a imagem dela com o cabelo solto, caindo em cascata pelos ombros, e nua à luz do luar.

Resolvido a apagar as lembranças da mente, subiu as escadas correndo. Kepwith abriu a porta, mas impediu que ele entrasse.

— Desculpe-me, milorde. — Kepwith hesitou, sem graça. — Milady deixou ordens para que não entrasse na casa.

— Duvido que ela tenha dado uma ordem dessas! Diga para milady que quero vê-la agora!

A porta foi fechada enquanto Kepwith levava a mensagem. Guy olhou no relógio. A família jantava cedo, e já teriam terminado àquela hora. Será que ela o receberia? Quando os minutos começaram a se arrastar, vieram as dúvidas.

Quando a porta se abriu de novo, as esperanças de Guy sumiram ao ver quem viera recebê-lo.

— Davey! Ela não quer me ver?

— Não, não quer. — Davey saiu, fechando a porta. — Miles está aqui, mas duvido que ela o recebesse mesmo se ele não estivesse. — Colocou a mão sobre o braço de

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Guy. — Vamos dar uma volta, assim poderemos conversar sem sermos ouvidos.

Os dois desceram as escadas.e se afastaram da casa. Guy retardou o passo para acompanhar Davey que mancava.

— Ela recebeu minha carta? — perguntou Guy de pronto.

— Sim, mas a queimou — informou Davey, meneando a cabeça. — Ela acha que você a desertou.

— Isso porque me recusei a dar dinheiro para aquela mulher sanguessuga? Pedi que confiassem em mim, e o que tenho em resposta é o burburinho de que ela e Miles se casarão em três semanas!

— Ela está muito brava com você, meu amigo.

— Achei que ela me conhecesse melhor. — Guy olhou para o céu cinzento, a respiração se assemelhando a um silvo. — Davey, quando Clarice chegou aqui pedindo dinheiro, ela estava muito bem informada, muito mais do que saberia lendo o depoimento da sra. de Beaune... e antes que grite comigo, não acho que ela tenha obtido tanta informação de Sophie.

— E agora você já descobriu quem é o cúmplice dela?

— Não, mas tenho minhas suspeitas. Acho que esse caso não está relacionado com dinheiro apenas. Desculpe-me — disse rápido quando Davey abriu a boca para falar. — Tenho um plano, mas precisa ser em segredo, não vou divulgar a ninguém, nem mesmo a você. E acredite quando digo que estou aliviado, sabendo que está hospedado aqui. — Depois de uma pausa, continuou: — Eu nem sequer perguntei como vai a perna, meu amigo.

— Está melhorando devagar. — Davey deu de ombros. — Como pode ver, estou me dando bem com a bengala.

— Mas talvez tenha andado demais por hoje. — Guy sé virou e voltaram para onde estava seu cavalo. — Vou ficar fora pelos próximos dois dias. Tome conta de Beth por mim enquanto isso, Davey.

— Aonde você vai?

Guy balançou a cabeça.

— E melhor que ninguém saiba. Mas pretendo voltar a tempo para ir à festa de noivado em Fentonby. — Guy soltou as rédeas do cavalo e estendeu a mão para Davey. — Volto assim que puder.

— Você quer mandar algum recado para a sra. Forrester? — perguntou Davey quando Guy subiu na sela do cavalo.

— Será que ela vai receber? — Apesar de estar escuro, foi possível ler a resposta no rosto de Davey. — Não, claro que não, mas vou deixar um recado mesmo assim. Diga a ela para continuar a ter fé em mim mais um pouco, isso é, se conseguir fazê-la ouvi-lo.

Beth olhou para o vestido reluzente estendido na cama. A seda azul brilhava sob a luz da vela. Era seu vestido mais novo, o único comprado desde a morte do pai que não era de luto. A última coisa que desejava era se vestir em cores luminosas, mas tinha prometido a Miles que se vestiria de maneira apropriada para a festa de noivado. Miles dissera que depois de casados poderia ajudar Simon, mas não disse como, e ela focou

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suas esperanças nisso.

Fazia apenas um dia que ele a havia dissuadido a fazer uma oferta a Clarice pelo depoimento. Eles voltavam de Thirsk, depois de visitarem Simon, e Beth tentava imaginar maneiras de levantar dinheiro.

— Sophie e eu podemos vender nossas joias. Há também os diamantes de Malpass e toda a prataria da casa...

— Minha querida, você se esqueceu... — disse ele, pegando gentilmente a mão dela. — As relíquias do mosteiro não são seus para vender.

— Ah, sei que assinei o contrato disponibilizando meus bens com o nosso casamento, Miles, mas para salvar Simon...

— Minha querida, saiba que minha maior preocupação atualmente é salvar seu irmão. Vamos à festa em Fentonby amanhã à noite, estarei a seu lado, e essa tal sra. Cordonnier perceberá que tem de lidar comigo.

Pobre e querido Miles. Beth não achava que Clarice se impressionaria com ele, a não ser que estivesse disposto a pagar o que ela exigia. Contudo, não havia recebido mais nenhuma ameaça, então talvez Miles tivesse uma chance.

Vestiu o vestido de seda azul, e Tilly prendeu seu cabelo em um coque, deixando apenas um cacho solto sobre o ombro nu. Todas as famílias estariam presentes na festa, prontas para dar falsas condolências sobre o destino de Simon e, não menos falsos, os parabéns pelo casamento.

Ela odiava ser alvo de tanto mexerico, mas não tinha alternativa, e Miles insistira ao afirmar que a demonstração de solidariedade seria benéfica para Simon. Pelo menos, Sophie estaria lá para apoiá-la.

Depois de colocar a capa, dirigiu-se para o salão nobre.

— Vovó! — exclamou, mas não afetou Arabella.

— Decidi que vou com vocês — anunciou Arabella, levantando- se da poltrona ao lado da lareira. — Vamos mostrar a todos que a família Wakeford não tem nada do que se envergonhar.

— Não tem mesmo.

— A vovó não está linda? — indagou Sophie.

Beth olhou com afeição para a avó, admirando o imponente vestido preto fechado até o pescoço, com uma gola e punhos brancos e um avental de seda preta por cima. Vestia um chapéu preto sobre o cabelo branco e usava uma relíquia de família de diamantes que consistia em um enfeite de cabeça, preso ao chapéu, delicados brincos, uma gargantilha e um bracelete largo preso sobre as luvas também pretas. As peças tinham passado de geração a geração. Apesar de Sophie considerar o conjunto de ouro adornado de diamantes e safiras fora de moda e muito extravagante para ser usado com as musselinas atuais, não restava dúvida de que ficavam magníficos sobre o vestido de seda de Arabella.

— Ela está muito bem! Mas tem certeza de que quer vir conosco, vovó? Faz tempo que a senhora não se aventura a sair de casa...

— Por isso mesmo que já é hora de eu sair — retorquiu Arabella. — Além do mais, acho que essa será a última vez que uso os diamantes de Malpass. Não tenho dúvida de que Miles Radworth irá dizer que são dele assim que terminar a cerimônia de casamento. Não precisa me olhar tão chocada — acrescentou, rindo de um jeito cruel da expressão

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de espanto de Beth. — Eu bem sei que Miles tramou bem para que o acordo fosse favorável a ele.

— Vovó, é muito comum que se façam acordos antes do casamento — disse Beth.

— Sei!

— A senhora não gosta de Miles, vovó? — indagou Sophie, segurando o braço da avó.

— Para dizer a verdade, não — respondeu Arabella bruscamente. — Sempre me lembro de uma descrição de Shakespeare de seus personagens: Ele tem um olhar mesquinho e faminto, ou algo parecido. Ah, olá, sr. Davey. Bem, se estamos todos prontos, podemos partir?

A antiga estalagem George era uma das maiores construções de Fentonby, e as salas da Câmara tinham sido construídas em uma reforma havia trinta anos. O novo edifício podia se comparar aos de York ou Bath. Beth quase não visitava o lugar, apesar do fato de Arabella ser uma das primeiras acionistas.

Muitas das famílias mais tradicionais tinham se mudado dali, e os que restaram preferiam freqüentar os salões da alta sociedade de Thirsk, assim os salões ficaram para o divertimento dos ricos comerciantes e fazendeiros. Entretanto, a notícia de que a ,sra. Forrester iria à festa para celebrar seu noivado tinha se espalhado pelos arredores. Foi com o coração apertado que Beth observou o grande número de carruagens que se enfileiravam na entrada, quando entraram na High Street.

— O mundo e sua esposa estão aqui!

— Já esperávamos por isso — disse Sophie. — A sra. Robinson me disse que só se fala no seu noivado na cidade.

— Será uma triste atração. Acho melhor nos resignarmos — comentou Arabella, olhando pela janela da carruagem. — Aquele não é sir John Marton e a esposa? Estou vendo a carruagem de lorde Embleton. Bem, pelo menos encontraremos alguns conhecidos.

A carruagem parou diante da entrada do prédio, e as senhoras aguardaram enquanto Davey descia e estendia a mão para ajudá-las. Como ainda precisava andar de bengala, ele deu o braço livre a Arabella, Beth e Sophie os acompanharam logo atrás.

Como Beth previra, as salas estavam lotadas, e foi difícil chegar até o salão nobre. A aparição de Arabella aumentou o atraso, pois muita gente queria falar com ela. Beth ficou feliz pela atenção que a avó despertava, assim poderia ficar à sua sombra.

A multidão e a confusão dentro do salão deram a Beth a oportunidade de espreitar o ambiente. Logo viu Miles do outro lado da sala, mas não fez esforço algum para chamar sua atenção, pois seus olhos estavam fixos na figura imponente de lorde Darrington, que acabava de sair do salão de jogos. A roupa escura não diferia da de outros jovens cavalheiros presentes, mas a postura e o físico atlético demandavam muito interesse. O cabelo castanho brilhava à luz dos candelabros. Beth o observou avaliar as pessoas, balançando o cálice de vinho entre os dedos longos.

Davey dissera que Guy estaria presente, e ela decidira não dar a menor importância ao fato, mas não conseguia desviar os olhos dele. Quando, ele virou a cabeça, como se soubesse que era observado, ela desviou o olhar.

— Sra. Forrester, está se sentindo bem? — perguntou Davey, preocupado.

— Não é nada não... — Mas Beth percebeu que, ao olhar na mesma direção que ela, Davey notou a presença de Guy.

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— Ah, entendo,milady...

— Por favor, não tente defender o conde — pediu ela. — Não vou ouvir nada do que disser.

— Não posso defendê-lo. Eu também não tenho ideia do que ele pretende, mas imploro, milady, creia que ele não é seu inimigo. Tenha fé.

— É impossível — disse ela, amargamente.

Sophie interrompeu a conversa:

— Vamos procurar lugares para nos sentar. Vovó precisa se acomodar, e você também, Edwin. Sua perna ainda não está curada para dançar.

— É verdade... — Ele sorriu. — E é desagradável também, pois gostaria de ficar em pé a seu lado.

Os dois saíram, e Beth ficou sozinha. Sentiu certa solidão, o que era um contrassenso, pois conhecia a maior parte das pessoas dali, e assim que Miles a visse, passaria a ficar a seu lado a noite inteira. Decidiu dar uma volta pelo salão, cumprimentando um e outro, mas nervosa, pois sabia que Guy a observava de um canto do salão. Parecia que toda vez que levantava a cabeça ele estava dentro de seu campo de visão. Se ele dava a impressão de vir a seu encontro, ela saía para outro lado. Entretanto, quando viu que ele conversava com sir John Marton, julgou que podia se aproximar de Arabella. Mas encontrou alguns conhecidos no caminho, ansiosos por lhe dar os parabéns pelo noivado, e acabou se atrasando. Assim, ao chegar perto de Arabella, Guy estava ali, rindo com alguma coisa que Davey dissera. Determinada a não permitir que ele estragasse sua noite, escapou de novo. A qualquer oportunidade, fazia questão de abrir mais o sorriso e rir alto, para mostrar que não ligava a mínima para a presença dele.

Miles surgiu a seu lado, e ela forçou um sorriso.

— Você está magnífico — elogiou, reparando na peruca empoada e a casaca de veludo. — Eu diria que está pronto para freqüentar a corte.

— Mas hoje é uma ocasião especial. — Ele levantou o relógio, antes de se curvar para beijar os dedos dela. — Eu estava procurando por você, minha querida, mas valeu a pena esperar. Você está... deslumbrante.

Beth sentiu o sangue lhe subir ao rosto pela maneira como ele a encarou. Se pudesse, teria coberto o decote com uma gola buffon de musselina. Com um sorriso sem graça, puxou a mão.

— Obrigada. Eu estava indo dar um recado à minha avó. Se me der licença...

— Sim, embora relutante. Mas espero dançarmos mais tarde.

— Claro. — Ela manteve o sorriso enquanto ele lhe beijava os dedos, em seguida seguiu na direção das cadeiras onde Arabella estava sentada com Sophie e Davey.

Mas não conseguiu se afastar muito, pois se deparou com uma muralha de tecido preto: o conde de Darrington.

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Capítulo Vinte e Um

Bastou um olhar para ver que Guy estava furioso, as linhas de tensão mais acentuadas nos olhos e na boca. Beth tentou passar, mas ele a segurou pelo braço. Havia muita gente ali, tanto que ninguém percebeu que ele a mantinha presa.

— Por que não quer falar comigo? Davey me disse que você nem leu meu bilhete.

— Não quero mais nada com você.

— Nada? Depois de termos viajado pela Inglaterra inteira juntos?

— Sou grata por sua ajuda, já lhe disse isso — respondeu ela, tentando desesperadamente se manter calma. — Você se recusou a me ajudar. Nossa amizade terminou.

— Nunca!

Guy apertou ainda mais o braço dela e puxou-a para uma pequena alcova ao lado do salão. Havia um garçom com uma bandeja cheia de cálices de vinho entre as pilastras, mas bastou uma palavra mais ríspida de Guy para que ele se afastasse rápido. Não havia candelabros perto da alcova, e as sombras os engolfaram.

— Como ousa me arrastar até aqui? Não há o que dizer, milorde.

Guy a virou para se fitarem nos olhos.

— Você acha que a abandonei só porque não quis pagar o maldito dinheiro à Clarice Cordonnier?

— Ora, e o que mais eu poderia pensar?

Guy estava parado entre ela e o salão, bloqueando qualquer tentativa de fuga.

— Beth, acredite em mim, tenho minhas razões por recusar pagar Clarice. Você não confia em mim?

— Acredito que confiei demais em você — respondeu ela. — Ah, como fui tola ao permitir que você me seduzisse. Se confiasse em mim também, teria me explicado suas razões.

— Posso acusá-la do mesmo, milady. Além de não me dar uma chance de me explicar, você ainda marcou a data do casamento com Miles. Achei que fosse romper esse compromisso.

— Verdade? E por que eu faria isso?

— Porque vai se casar comigo!

— Depois que você permitiu que meu irmão apodrecesse na prisão? Acho que não vou não...

Guy inclinou a cabeça para trás, como se tivesse levado um soco.

— Eu significo tão pouco para você?

— Sim! — exclamou ela. — Gostaria de nunca tê-lo conhecido! Go... Gostaria que saísse daqui e nos deixasse em paz.

— E o seu irmão?

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— Não preciso de você... Na verdade, não permitirei que me ajude!

Beth o encarou com um peso no peito. Mesmo na escuridão era possível ver o ódio nos olhos dele. Guy se aproximou, ameaçando-a com sua altura.

— Céus, vou trabalhar para soltar seu irmão, milady, quer queira ou não.

— Continuo negando a ajuda. Miles vai me ajudar a salvar Simon.

— Será?

— Por que a dúvida?

— Você acha que Miles ajudaria qualquer pessoa que possa alterar a posse de Malpass?

— Eu... não estou entendendo.

— Acredito que seu irmão está a salvo na prisão de Thirsk. Temo que ele sofreria algum... acidente se estivesse em liberdade.

— Não me diga que... que Mi... Miles... — O medo a dominou, levando-a a menear a cabeça. — Não. Não vou acreditar nessa blasfêmia contra ele. Pelo menos, não sem provas.

— Ainda não tenho nenhuma.

— E não encontrará nenhuma — retorquiu ela, furiosa. — Acho que está com ciúme.

— Sim, estou, porque você parece ter uma devoção inabalável a ele.

— E por que não teria? Ele não me deu motivos para duvidar.

— Mas ele, por acaso, fez alguma coisa para merecer?

— Claro que sim! E não tenho dúvidas de que faria mais se tivesse ido para Londres comigo no seu lugar!

Houve uma pausa, tão mínima quanto uma batida do coração antes que ele continuasse:

— Você teria preferido as carícias dele também?

A atmosfera, já carregada pela raiva, passou a pesar com o perigo. Beth tentou não se afogar nas memórias das noites apaixonantes que haviam passado juntos. Sentiu que seu corpo respondia àquela presença escura mesmo que seus olhos não pudessem enxergá-la. A ressonância da voz grave a envolveu como um veludo macio. Cada sentido, cada pedacinho de pele implorava para que cedesse e se deixasse ficar naqueles braços fortes.

— Beth...

Diga a ele, clamava a voz do coração dela. Diga que você não pode viver sem ele.

— Guy, eu...

— Ah, aí está você, minha querida.

A magia do momento foi quebrada com a chegada de Miles, carregando um candelabro, que colocou em uma prateleira na parede.

— Você tem uma propensão a ficar sozinha com lorde Darrington, não, minha querida? Isso terá que parar quando estivermos casados.

Beth entrelaçou as mãos. De repente, ficou claro o que deveria fazer.

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— Não posso me casar com você.

Miles olhou para um e para o outro, antes de se fixar em Beth.

— Mas acho que você deve.

— Não existe nenhum dever, Radworth — disse Guy friamente.

— Será? — Miles abriu um sorriso irônico.

— É verdade, Miles — concordou Beth. — Eu sinto muito, mas eu... estava enganada. Não posso me casar com você.

— Está bem...

Beth continha a respiração e soltou o ar, aliviada por Miles ser tão razoável. Mas o que ele estava prestes a dizer a deixaria apavorada de novo.

— Terei de tirar você e sua família de Malpass até o fim do mês.

— Não pode fazer isso! — Ela arregalou os olhos, enraivecida.

— Ah, posso sim... — A voz afiada surtiu um calafrio na espinha de Beth. — O acordo pré-nupcial está assinado. Creio que você deve se lembrar da cláusula que versa sobre o rompimento do casamento e que, nesse caso, o mosteiro e todo seu conteúdo passarão para mim. Não pode lutar contra isso, querida. É a lei.

Guy passou o braço nos ombros de Beth.

— Talvez a lei o veja de um jeito bem diferente quando souber a verdade a seu respeito, Miles. A começar pela maneira como você tinha se preparado para sacrificar Simon Wakeford para que ele não chegasse a Malpass.

Minutos antes, Beth podia jurar que havia encontrado a felicidade, mas agora, seu mundo estava de ponta-cabeça.

— Não estou entendendo — disse ela, olhando para um e para outro.

— Miles veio para Malpass determinado a tomar posse da propriedade — explicou Guy. — Não foi ele que persuadiu seu pai a deixar tudo para você?

— Pura fantasia, Darrington — zombou Miles. — É verdade que deixei escapar ao sr. Wakeford que seu filho havia se afogado, mas a ideia de mudar o testamento foi dele.

— Uma ideia que você induziu. — Guy olhou para Beth de relance. — Acho que seu instinto de não contar a ele que Simon estava vivo foi muito sábia, querida. Ele está usando você.

— Não posso acreditar que ele fizesse isso — disse Beth devagar. — Ele viajou até aqui e permaneceu em Fentonby por tanto tempo.

— Você está certa — concordou Miles. — O conde está sonhando acordado. Você sabe que não sou um caça-dotes. Por que eu ambicionaria o mosteiro quando tenho minha propriedade em Somerset?

— Você é um colecionador, Miles. — Guy deu de ombros. — Ama antiguidades, e o mosteiro está cheio delas. Creio que Simon Wakeford descreveu o mosteiro para você na noite em que jantaram juntos em Portsmouth, e a partir daquele momento você co-biçou a casa e tudo o que tinha dentro. Quando Simon foi acusado de assassinato, você viu a chance de realizar o sonho.

— Isso é o pior que sabe a meu respeito? — indagou Miles, levantando as mãos com as palmas para cima. — Que eu ambicionava ter o mosteiro e todo seu conteúdo?

— Não é só isso. Acho que você persuadiu Clarice Cordonnier a informar às

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autoridades que Simon estava escondido no mosteiro.

— Não, ele não faria isso! — A surpresa de Beth fez com que Miles focasse nela seu olhar gélido.

— Você mesma disse, querida. Eu a encontrei uma ou duas vezes.

— Tempo suficiente para falar sobre o depoimento da sra. de Beaune.

Nenhum deles se moveu do lugar. Além das pilastras, as pessoas continuavam a dançar, mas a música e os risos do salão de baile pareciam um mundo à parte daquele da alcova, carregado de tensão e ameaças.

— Clarice estava muito bem informada — continuou Guy. — Ela sabia de coisas que não estavam escritas. O colar, por exemplo, e o fato de sra. de Beaune estar morta.

— Ela contou isso a você, não foi? — Miles encolheu os ombros. — Você deve saber que ela encontrou o depoimento por acaso, atitude de alguém de mente investigativa. Foi apenas quando ela me entregou que percebi seu significado. Ela estava pronta para ganhar algum dinheiro, mas eu nunca tive intenções que você comprasse o depoimento de volta. No entanto, se ela conseguisse tirar algum dinheiro de Darrington, seria mérito e ganho só dela. Mas fiz a bobagem de discutir o assunto com ela. Foi uma besteira minha.

— Como você ficou sabendo da informação da sra. de Beaune? — perguntou Beth.

— Eu tinha gente vigiando os portos, para o caso de o casal francês voltar para a Inglaterra.

— Mas você sabia que eu já estava fazendo isso — disse Beth.

— As razões dele para encontrar o casal de Beaune eram bem diferentes das suas — opinou Guy. — Estou certo, Miles?

— Óbvio que eu não queria que eles testemunhassem na defesa de Simon.

— Então você mandou matar a sra. de Beaune — concluiu Beth.

Miles apenas deu de ombros.

— Acredite nisso se quiser, mas nunca poderá provar. — Miles sorriu. — Eu não sabia que você e lorde Darrington tinham viajado para Londres para caçá-los e que haviam encontrado a sra. de Beaune.

— Ainda não entendi... Por que você está tão ansioso para que meu irmão continue preso?

— Porque ele pode reivindicar a herança.

— E por isso você estava disposto a matar pessoas.

— Jamais assumirei essa culpa.

— Precisamos falar com sir John imediatamente — disse Beth a Guy.

— E o que dirá a ele? — perguntou Miles com desprezo. — Negarei tudo. Lembre-se de que sou bem respeitado por aqui. Tenho sido um inquilino modelo desde que cheguei a Fentonby e me esforcei para ser agradável com a sociedade. Você é irmã de Simon, então, é claro que mentirá para livrá-lo da justiça. E Darrington não é uma boa testemunha, principalmente se considerarmos a vida dessa família duvidosa... O pai dele era um homem que vivia de um jeito selvagem e conseguiu fortuna antes dos 30 anos. O sobrenome Darrington nunca foi muito honrado e, como se não bastasse, ele se aliou a uma pessoa que lhe causou um dano irreparável. — Esboçou um sorriso. — Parece que seu amigo se deixa levar por um rosto bonito.

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Guy avançou para cima de Miles, mas Beth se colocou no meio.

— Não! Lembre-se de onde estamos! Não provoque mais um escândalo!

Miles estava encostado na parede respirando com dificuldade. Quando Guy recuou, ele se aprumou e arrumou a casaca.

— Você tem direito de impedi-lo, querida. Mas pense duas vezes antes de romper nosso noivado, pois perderá tudo.

— Quando o mundo souber de sua perfídia...

— Minha falsidade! — Miles gargalhou. — Você andou viajando pelo país com Darrington... Chegou até a ficar na casa dele em Londres. Como acha que está sua reputação, milady? Todos me acharão um santo por tomá-la minha noiva. Além do mais... ainda há o depoimento.

— O que tem ele? — Beth enrijeceu o corpo.

— Está comigo. — Miles abriu um sorriso odioso. — Se puder convencer seu irmão a não ameaçar reivindicar sua herança, então eu lhe darei o depoimento como presente de casamento.

Beth tapou a boca com as mãos. Guy colocou a mão no ombro dela.

— Você não vai se casar com ele, Beth. Não importa o que acontecer, não se unirá a esse vilão.

— Faço qualquer coisa para salvar Simon — murmurou ela.

— Beth, ouça-me... — Guy foi impedido de continuar pela chegada de um mensageiro à alcova. — O que quer?

O rapaz se aproximou de Guy e sussurrou-lhe algo.

— Preciso sair... Tem uma pessoa à minha espera.

— Mas...

— Não tenho tempo para explicar agora. — Guy segurou a mão dela com firmeza. — Mas tem a minha palavra de que esclarecerei tudo. Confie em mim, Beth.

E no minuto seguinte, ele tinha saído da alcova e sumido no meio da multidão.

— Ora, mas que conveniente... — murmurou Miles.

— Ele vai voltar — garantiu Beth, empinando o nariz.

— Tem certeza? — Miles diminuiu a distância que os separava. — Venha, Elizabeth, vamos continuar a comemorar nosso noivado.

Beth deu as costas, mas ele se inclinou e continuou a ameaçá-la, sussurrando-lhe no ouvido:

— Case-se comigo e você terá tudo. Assim sua família pode continuar a morar em Malpass, e Simon será posto em liberdade.

— Jamais! Como espera que eu ainda case com você depois de tudo que ouvi? — indagou ela, livrando-se dele.

— Como quiser, minha cara. É uma pena porque você é muito bonita, e eu adoraria tê-la como minha noiva. Mas o fato é que... se insistir em terminar o noivado, seu irmão será enforcado pelos... crimes que cometeu. Será que Darrington irá querer se casar com a irmã de um assassino? Faz tempo que ele tenta reconquistar a posição social, e há quem o chame para voltar à Câmara também. Ele não conseguirá nada disso se estiver

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envolvido com outro escândalo. — Miles a segurou pelo braço com força. — Venha, milady. Seja sensata e faça o que é melhor para sua família.

Beth hesitou. De súbito, as pessoas se afastaram da pista, e ela viu onde Arabella estava sentada, os brilhantes reluzindo à luz das velas. Era preciso ganhar tempo. Tempo para considerar tudo o que estava acontecendo. Tempo para que Guy voltasse. Com vagar, levantou a mão e pousou os dedos no braço de Miles.

— Continuarei com essa farsa por esta noite — disse ela em um tom frio de voz. — Não consigo pensar direito.

— Tudo bem, minha cara. — Miles colocou a mão sobre a dela. — Veja, os pares estão ser formando para mais uma dança. Vamos acompanhá-los?

Beth permitiu que ele a conduzisse até o meio do salão mesmo sentindo-se um pouco tonta. Quando a dança exigiu, ele se aproximou e aproveitou a oportunidade para dizer:

— Eu já disse o quanto você está estonteante esta noite, minha cara?

— Por favor, as pessoas estão olhando — pediu ela, afastando a cabeça.

— Que olhem — desafiou ele, levando os dedos dela aos lábios finos. — Logo seremos marido e mulher, não é? Ninguém se surpreenderá se agirmos como dois amantes.

Amantes. Beth mal pôde conter o arrepio ante a palavra. A música seguiu, e ela dançou de um jeito mecânico, o sorriso fixo e falso, enquanto tentava ordenar os pensamentos. Aos poucos, se sentia tomada pelo pânico. Teria de romper o noivado. Mas como? Quando? Não podia nem pensar em fazer nada naquela noite em um ambiente público. Ao terminar a música, Miles a conduziu pelo salão em um tour de cumprimentos e felicitações por onde passavam, e ela percebeu que estava sendo levada na direção errada.

De súbito, seu olhar passou por um grupo de cavalheiros que contemplavam uma mulher voluptuosa em um vestido de cetim dourado e plumas na cabeça. Beth estancou.

— Ah... — Miles seguiu o olhar dela. — É a sra. Cordonnier. Vamos falar com ela?

— Prefiro morrer antes que isso aconteça.

— Está bem, vamos dar a volta — disse ele, rindo.

— Eu poderia contar a sir John...

— E por que faria isso? Já disse que estou com o depoimento da sra. de Beaune. — E apertando o braço dela, continuou: — Sorria, Elizabeth. Lembre-se de que esta é uma noite feliz!

Embora relutante, Beth conteve a impaciência e permitiu que Miles a conduzisse para a sala de jantar. Estava cansada e desanimada. Se, ao menos, pudesse ir para casa, ficar longe dos fuxicos e olhares curiosos; mas Miles estava disposto a exibi-la.

Ao passar pela avó, sugeriu que ela fosse embora, mas Arabella insistiu em ficar. Quando disse a Davey que podia se retirar, ele negou, alegando que estava em muito boa companhia. Como ele tinha passado a noite inteira ao lado de Sophie, seria difícil mesmo querer partir. Procurando se acalmar, ela olhou em volta. Onde estaria Guy?

Miles quis dançar a última das músicas country, mas assim que a orquestra parou

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de tocar, ela implorou para voltar para onde estava Arabella.

— Perdoe-me, Miles, mas ando muito ansiosa esses dias.

— Eu entendo, querida — disse ele, dando uns tapinhas na mão dela. — Acho que já é hora de eu me mudar para Malpass. Acho que estando lá eu poderia ajudá-la mais... e há tanto o que se fazer. Preciso organizar um inventário das peças.

Beth ergueu a cabeça, tomada pelo ódio, e estava prestes a esbravejar quando algo chamou a atenção de todos na direção da porta de entrada do salão.

— Deus do céu, quem poderia chegar a uma hora dessas? — quis saber Miles.

O estado de espírito de Beth se animou quando ela olhou para a porta. Guy havia voltado, trazendo consigo a sra. de Beaune, assustada. Então tinha sido por isso que ele pedira que confiasse nele. Não precisariam de uma declaração quando o depoimento poderia ser dado pessoalmente.

— O que Darrington pretende? — perguntou Miles por entre os dentes. — Como pode trazer companhia para a festa que já está acabando?

Ele não a reconheceu, pensou Beth. Mas também como poderia? Quando ele a conhecera, a sra. de Beaune era uma linda noiva francesa, maquiada e de peruca. Agora ela era apenas uma jovem viúva séria em um vestido comum e sem peruca, exibindo seu próprio cabelo encaracolado.

Beth disfarçou o sorriso e puxou o braço de Miles.

— Venha, vou apresentá-lo.

Sir John Marton e Davey conversavam com Guy e com a sra. de Beaune. Beth se aproximou devagar, relutante em interromper, mas sir John a viu e deu um passo em sua direção.

— Ora, ora, sra. Forrester, o caso deu uma bela reviravolta! — exclamou o magistrado. — Parece que lorde Darrington trouxe essa senhora para dar um depoimento em defesa de seu irmão.

— Fico muito feliz em revê-la — disse Beth. — Não sabe como estou agradecida por ter vindo aqui,sra. de Beaune. Permita-me apresentá-la a Miles Radworth, ele estava com Simon naquela noite fatídica.

Miles titubeou, mas se recuperou em tempo de cumprimentar a sra. de Beaune com um floreio.

— Claro que me lembro, monsieur. O senhor viajava com o pobre monsieur Wakeford.

— Ele não será mais o “pobre monsieur Wakeford” por muito tempo — declarou sir John, — Milorde, traga essa senhora amanhã de manhã para dar seu depoimento. Se tudo o que me contou é verdade, Simon Wakeford estará livre amanhã até a hora de almoço.

Com o canto dos olhos, Beth notou que Clarice fugia da sala. Teve vontade de chamar a atenção de Guy, mas logo mudou de ideia. Clarice já não era mais tão importante.

— Ótimas notícias! Vou contar à vovó e à Sophie agora mesmo.

— Por favor, me desculpem — disse Miles, dando um passo atrás. — Já está na minha hora de ir embora. Está ficando tarde.

— Espere um momento! — Guy falou mais alto e se antecipou.

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— O que houve com seu relógio, Miles?

— Meu... Eu o deixei em casa.

— Estranho, eu podia jurar que o vi consultando-o mais cedo — comentou Davey.

Guy puxou a corrente que pendia no colete de Miles. O relógio surgiu de um bolso. Guy levantou o objeto diante da luz.

— Esse é o relógio do meu marido! — gritou a sra. de Beaune, angustiada.

— Será? — Guy virou o relógio e leu as letras gravadas. — F. D. B. Hardly não são suas iniciais, Miles.

— Esse relógio pertenceu a meu marido, Fernand — declarou a sra. de Beaune. — É um Breguet, um dos melhores relógios do mundo. — De súbito, a cor se esvaiu de seu rosto, e encarou Miles horrorizada. — Foi você... — sussurrou ela. — Foi você que nos atacou!

A sra. de Beaune ainda falava quando Miles puxou o relógio da mão de Guy e tentou sair correndo, empurrando Beth para cima de Guy, para que não impedissem sua fuga. Houve muitos gritos e confusão, mas Davey agiu depressa e estendeu a bengala no nível das pernas de Miles, que tropeçou e caiu no chão. Sir John imediatamente se posicionou na frente dele com as mãos em punhos.

— Acho que devemos terminar esse assunto num lugar mais privado.

Capítulo Vinte e Dois

Todos se reuniram em uma sala pequena, no piso superior ao salão. Guy postou-se à porta. Já tinha lutado muito para chegar até ali e não permitiria que Miles escapasse. Olhou de relance para Beth, que lhe sorriu.

Ela parecia exausta, mas não menos bonita, com o vestido de seda brilhando à luz das velas, o tom de azul-esverdeado do tecido fazendo um belo contraste com o cabelo avermelhado. Estava sentada ao lado da sra. de Beaune, que prestava a atenção ao relógio, como se ainda quisesse acreditar que o tinha nas mãos.

— Bem, Miles, chegou a hora das explicações — disse sir John com autoridade. — O que aconteceu?

— Foi apenas um mal-entendido. Posso explicar tudo.

— Acho que não — disse Guy do fundo da sala. — Antes que você tente nos embromar, quero que saiba que o homem a quem você pagou para seguir a sra. de Beaune e matá-la foi capturado e já confessou tudo. — Desviou o olhar para Beth antes de continuar: — Antes de deixarmos Londres, fiz dois planos. O primeiro foi mandar um recado para Bourne Parke e persuadir a sra. de Beaune a ficar sob minha proteção. Depois pedi a sir Henry Shott que encontrasse o assassino de aluguel de Miles.

— Tudo isso foi fruto da ganância! — exclamou Beth.

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Miles estava em pé diante da lareira, olhando, pensativo, para as chamas.

— Não foi ganância, mas amor — disse ele com toda calma. — Amor, luxúria, desejo... chame do que quiser. Darrington está errado ao afirmar que sou um colecionador. Sou um connoisseur. Imagine meu deleite ao descobrir que estava viajando com um jovem ansioso por descrever sua casa para mim, um mosteiro antigo, repleto de antiguidades. Jantamos em Portsmouth junto com o casal de Beaune. O sr. de Beaune não era muito rico, mas tinha dois tesouros, a noiva jovem e um Breguet. Assim que coloquei os olhos naquela relíquia, soube que precisava consegui-la a qualquer custo.

— Então decidiu atacar a jovem e um senhor de idade — acusou Guy com desdém.

Miles encolheu os ombros.

— Não foi difícil tirar o relógio do velho, mas Simon surgiu. O jovem tolo e cavalheiro decidiu se passar por herói. Puxei o colar dela e fugi, mas decidi voltar, quando planejei uma maneira de possuir todos os tesouros que tinham sido descritos naquela noi-te. Depois de tirar a capa e trocar a peruca e o chapéu de três pontas, ninguém me reconheceria.

— E o que houve com seu comparsa ferido? — perguntou Guy.

— O tolo achou que eu tinha um plano para sua fuga. Depois de persuadir Simon a levar o casal de Beaune para o bote, foi fácil acertar outra facada. Ele já estava morto quando os policiais chegaram.

— Você o matou — disse Beth em um suspiro. — E colocou a culpa do roubo em Simon.

— O colar era apenas uma bugiganga, fácil de ser colocada na bolsa do seu irmão. Difícil foi convencer os policiais a revistarem-na, mas consegui por fim, e não demorou para que Simon fosse levado algemado para a prisão.

— E você ficou feliz por meu irmão ser acusado em falso.

— Achei que foi um desfecho bom — disse Miles, olhando para Beth e sorrindo. — Eu tinha o Breguet, Simon levaria a culpa do roubo e do assassinato, depois eu me casaria com a irmã dele e teria também sua herança.

— E nós o achamos tão gentil... — Beth meneou a cabeça. — Jamais conheci alguém tão diabólico.

— Mas isso não foi tudo, não é? — perguntou Guy, devagar. — Você tinha de se certificar de que Simon não fosse absolvido.

— Não. — Beth estava em choque. — Como ele fez isso?

— Ele deu bebida forte para os tripulantes de um bote não confiável para levar os prisioneiros libertados. Não foi isso, Miles?

— Exatamente. Muito astuto, Darrington. — Miles sorriu, como se orgulhasse de glórias passadas. — Era apenas uma questão de tempo até que as notícias do naufrágio viessem à tona. Claro que depois vim para Malpass oferecer minhas condolências à família.

— Seu esquema perverso quase deu certo. — Beth estreitou os lábios.

— Sim, se os incompetentes que paguei para matar a sra. de Beaune não tivessem falhado.

— Eles não falharam — disse Guy. — Apenas mataram a sra. de Beaune errada.

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Foi por isso que suspeitei que você estivesse envolvido, quando Clarice deu a entender que a sra. de Beaune estava morta. Eu sabia que não era verdade porque ela já estava sob a minha proteção.

— Fiquei muito feliz em ficar — disse a sra. de Beaune, com um ligeiro sorriso. — Lembro-me de monsieur Wakeford com grande carinho.

— Estou certa de que ele se lembra também, milady — respondeu Beth. — Sei que ele ficará encantado por poder reencontrá-la.

— Fui buscá-la no começo desta semana e a instalei numa casa nas proximidades — Guy falava à Beth diretamente. — Demos um jeito para que ela fosse convidada para esta festa. Eu queria confrontar Miles, mas soube pelo mensageiro, que me encontrou na-quela alcova, que ela estava com receio de viajar sem mim. Por isso precisei deixá-la. Não podia dizer nada e correr o risco de Miles desconfiar de alguma coisa...

— Não tem importância — disse ela, sorrindo. — Eu sabia que você voltaria para mim.

— Bem, acho que é tudo por hoje. Devemos partir — interrompeu sir John. — Milorde, gostaria de sua ajuda para trancarmos o sr. Radworth durante esta noite, e amanhã cedo vou levá-lo para Thirsk, e ele trocará de lugar com o jovem Wakeford. Não há mais razões para manter seu irmão preso, sra. Forrester.

— Eu não diria que será uma troca de fato — acrescentou Guy. — Dei algumas gorjetas para mudar Simon para uma cela segura e confortável, além de ter contratado um guarda particular para ele.

— Você está se referindo a Longan? — perguntou Beth. — Você o colocou no presídio para proteger Simon?

— Sim. Tive medo de que Miles pudesse tentar feri-lo.

— E tentei mesmo — confessou Miles. — Acabo de descobrir por que minhas gorjetas não foram suficientes.

— Não po... posso acreditar no que estou ouvindo! — exclamou Beth. — Você me fazia a corte, mas durante o tempo todo es...

— Simon era apenas um detalhe, meu amor.

Beth se virou de costas, ultrajada. Em dois passos, Guy a puxou, segurando-a até que o tremor passasse.

— Estou bem. Por favor, Guy, não precisa se preocupar comigo.

Embora Beth tivesse sido corajosa, Guy não se convenceu.

— Davey, você poderia levar as senhoras para casa, enquanto acompanho sir John...

— A sra. de Beaune pode se hospedar em minha residência — ofereceu Beth e, mesmo ruborizando, acrescentou: — Você também será bem-vindo, Guy. Por favor, vá para lá quando tudo estiver terminado.

O coração de Guy se derreteu com aquelas palavras.

— Irei, com prazer — murmurou, ao beijar-lhe a mão em despedida. — Estarei de volta assim que puder.

— Vou esperá-lo. — Ela o fitou nos olhos e esboçou um sorriso trêmulo.

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Depois de todo o tumulto e emoção da noite, foi um alívio entrar na carruagem de Arabella. O interior, confortável e espaçoso para acomodar todos.

Beth explicou à Sophie e à avó que a sra. de Beaune seria convidada de Malpass pelos próximos dias.

— Você será muito bem-vinda — declarou Arabella. — Acho que ainda não nos conhecemos.

— De fato, não, vovó — disse Beth com paciência. — Lembra-se de quando disse que a sra. de Beaune se encontrou com Simon em Portsmouth? Ela está aqui para testemunhar em favor dele.

Enquanto a carruagem seguia a estrada para Malpass, Beth e Davey explicaram tudo o que havia acontecido.

— De onde estávamos sentadas, do outro lado do salão, não tínhamos ideia da comoção que ocorria — disse Sophie.

— Soube que Miles foi preso — comentou Arabella.

— Sim, vovó. Foi ele quem assaltou a pobre sra. de Beaune e colocou a culpa em Simon.

— Ora! — arquejou Arabella. — Nunca gostei daquele homem, sempre achei que ele não tinha berço. — E colocando a mão sobre o colar, continuou: — Não gostei do jeito como ele ficou olhando para meus diamantes, como se mal pudesse esperar para possuí-los.

— Já não há nenhuma possibilidade de ele pegar nada nosso — assegurou Beth. — Vou dar instruções ao nosso advogado pela manhã, pois um contrato feito com base em tamanha vilania e fraude não pode ser aceito.

— Acho que não haverá dificuldade alguma, milady — afirmou Davey.

— Quando meu neto virá para casa?

— Espero que em breve, vovó. — Beth entrelaçou os dedos da mão. — Acho que, até amanhã à tarde, estaremos todos juntos outra vez.

A tranqüilidade do antigo mosteiro acolheu todos, e Beth seguiu na busca da governanta da casa.

— Precisamos de um quarto agora mesmo para acomodar a sra. de Beaune — informou. — Lorde Darrington também irá chegar antes do amanhecer, sra. Robinson, mas é melhor que prepare outro quarto de hóspedes para ele — acrescentou, incapaz de esconder o sorriso. — Acredito que amanhã Simon também precisará do quarto dele.

— Ah, Deus, milady, que notícia boa! — gritou a sra. Robinson, enxugando os olhos com a ponta do avental. — Milady não imagina o quanto rezei por esse momento! Fiquei em choque quando os guardas vieram buscá-lo e quando Kepwith me contou que ele estava vivendo nos porões... Mas ele está em liberdade mesmo? Será julgado? O quê...?

Rindo, Beth levantou as mãos para deter a enxurrada de perguntas.

— Lamento, mas ainda não tenho respostas para tudo isso, sra. Robinson. Porém saberei de mais detalhes quando o conde voltar. Por favor, prepare os quartos, e amanhã

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prometo explicar tudo.

Não demorou muito para que todos se recolhessem e Beth se deixasse cair em uma poltrona do salão nobre, feliz com um pouco de solidão para repensar no que tinha acontecido naquela noite. Pediu a Kepwith que acendesse a lareira, depois o dispensou, dizendo que iria esperar pelo conde.

O ambiente da casa a protegeu, como uma capa confortável. Ela olhou para o teto, notando que as vigas de madeira sumiam na escuridão. As chamas se refletiam nas espadas e nos troféus que cobriam as paredes. De repente, sentiu-se envolvida por uma sensação de paz. Apoiando a cabeça na cadeira e deixando-se hipnotizar pelo fogo e pelo tique-taque do relógio, logo começou a cochilar.

Beth não fazia ideia de quanto tempo havia dormido, mas acordou, de repente, com a grande porta de carvalho sendo aberta e passos ecoando no piso de pedras.

— Simon! — gritou Beth, saindo da cadeira voando.

— Eu sabia que você não aguentaria esperar até amanhã — disse Guy, parado bem atrás de Simon, com um sorriso largo. — Por isso, persuadi sir John a me deixar trazê-lo para casa.

Beth se soltou do abraço de urso do irmão e se atirou nos braços de Guy.

— Então foi por isso que você demorou tanto... Você foi até Thirsk e voltou! Obrigada! Ainda bem que pedi para que a sra. Robinson arrumasse os quartos antes de ir se deitar. — Soltando-se de Guy, dirigiu-se ao irmão: — Simon, venha se sentar perto da lareira. Está com fome? Sede? Quer que eu chame Kepwith...

— Não quero nada, minha irmã, a não ser dormir na minha própria cama.

— Seu quarto está arrumado. Quer que eu vá com você...?

— Não, já tive minha cota de ser acompanhado a todo lugar. Além do mais, tenho certeza de que me lembro do caminho. — Simon a beijou no rosto, deu boa-noite aos dois e saiu, assobiando.

Beth ficou observando-o sumir nas escadas.

— Apesar da permanência na prisão, ele está muito melhor do que da última vez em que o vi. — Depois virou-se para Guy. — Como posso agradecer por tê-lo trazido para casa?

— Vou lhe dizer como. — Ele a puxou, abraçou-a e beijou-a com paixão, levando-a a esquecer tudo e todos.

— Senti tanto a sua falta. Desculpe-me se duvidei de você — disse ela quando se separaram.

— Não, meu amor, eu é que devia ter me aberto com você — murmurou ele, apoiando a cabeça na dela.

— Somos dois tolos por não confiar um no outro. — Beth ficou na ponta dos pés para beijá-lo rapidamente. — Vamos dividir tudo daqui para a frente. Vamos começar com você me contando o que aconteceu depois que deixamos a festa. Miles foi mesmo preso?

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— Sim, meu amor. Ele não irá mais nos perturbar.

— E o que houve com a sra. Cordonnier? Ela conseguiu escapar no meio da confusão. — Beth suspirou. — Sei que pode parecer cruel demais da minha parte, mas gostaria que ela também fosse punida pela participação sórdida.

— Não se preocupe, ela será. Na verdade, Clarice estava esperando na porta quando embarcávamos na carruagem de sir John. Ela se jogou para cima de Miles, acusando-o de ter prometido duas mil libras para destruir o depoimento da sra. de Beaune.

— Um momento... Quer dizer que Miles e Clarice estavam trabalhando juntos?

— Na verdade, não. Clarice o conheceu quando visitou sua irmã, em Malpass, e logo o identificou como o vilão que ele é. Mas ela não percebeu que também foi uma peça no jogo dele.

— O que acontecerá com ela?

— Clarice estava tão furiosa com Miles que acabou por admitir a sir John como roubou o depoimento da sua bolsa e tentou extorquir dinheiro para devolvê-lo. Sir John a colocou dentro do coche e levou-a para prisão também. — Guy sorriu. — Foi um trajeto bem amargo.

— Mas Miles tinha dito que ele estava com o depoimento. — Beth franziu o cenho. — Ele disse que me devolveria... Ele mentiu sobre isso também?

— Sim, meu amor. Miles queria garantir que você se casaria com ele. O depoimento foi destruído há dias. Clarice não tinha intenção de devolvê-lo para você. Mas ela ainda tinha esperanças de me persuadir a pagar as dez mil libras.

— E eu que pensei que você estivesse decidido a não me ajudar! Será que pode me perdoar?

— Se eu tivesse contado todas as minhas suspeitas, você talvez entendesse a razão de eu não querer pagar. — Guy a abraçou. — Acho que daqui para a frente será tudo diferente, Beth. Vamos começar de novo, meu amor... meu único amor?

— Sim, por favor. Vamos deixar tudo isso para trás. Ah, como eu te amo, Guy Wylder.

Ao vê-lo com o olhar tão triunfante, Beth sentiu o desejo tomar conta de si e inclinou a cabeça para trás, insinuando que ele a beijasse. Guy tomou aqueles lábios macios em uma volúpia vertiginosa. Ela logo correspondeu à carícia, entreabrindo a boca, convidando-o a explorá-la. Enlaçou-o pelo pescoço, unindo-se a ele, entregando-se ao prazer do toque daquelas mãos grandes. Não demorou para que se derretesse inteira, o prazer se represando em seu baixo-ventre.

Ela estava totalmente entregue, lânguida quando Guy levantou a cabeça.

— Diga-me agora se quer que eu vá embora ou será tarde demais — ele a intimou com a voz máscula, rouca de desejo.

A resposta veio por meio de mais um beijo contundente quando ela entremeou os dedos pela vasta cabeleira de Guy e puxou-a para baixo. Seu coração já batia em pleno descompasso, mas quando o ouviu gemer, mostrando que também estava enlevado pela paixão, teve a sensação de que suas pernas não aguentariam seu peso por muito mais tempo. Como se tivesse percebido, Guy a levantou no colo, aninhando-a em seu tórax largo, atravessou o salão e subiu as escadas.

Beth aspirou o perfume de sândalo e especiarias, uma fragrância que tinha

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aprendido a associar à presença dele. Seu corpo frágil foi varrido por um tremor de expectativa, como se preparasse para o banquete de sensações que viriam dentro de instantes.

Quando deu por si, estavam em seu quarto. Ele a colocou no chão e, sem deixar de beijá-la, começou a soltar-lhe o espartilho. A essa altura, não havia mais reservas, hesitações ou medo que a impedisse de amá-lo com todas suas forças. Aflita, também tentou livrá-lo do casaco com pressa.

As chamas da lareira, que Tilly lembrara de acender, proviam uma luz tremeluzente, suficiente para iluminar os corpos nus e o caminho até a cama. O breu de parte do quarto contrastava com as peles claras sobre a cama, e as chamas completavam o quadro, fazendo um jogo de sombras nas paredes.

Dali em diante, a paixão tomou conta de ambos, mas não estavam com pressa nenhuma, pois tinham uma eternidade pela frente, se quisessem, para explorar os corpos sedentos e perder-se em beijos. As sensações galgavam picos de êxtase, levando-os a gemer de tanto prazer.

Beth revivia as sensações já conhecidas e inventava outras. Segurando-se aos lençóis de seda, permitiu-se ficar à mercê das mãos experientes, da boca e da língua de Guy até ter a impressão de que morreria de tanto prazer. Puxou-o para cima, ávida por mais um beijo, enquanto ele acariciava-lhe os seios até que os mamilos se enrijecessem, antes de descer com as mãos para partes mais íntimas.

O prazer se avultava, como, se fosse um júbilo selvagem até quase se tornar insuportável, levando Beth a serpentear debaixo dele, tentando por fim àquele doce tormento, mas ele a segurou com firmeza. Passou, então, a ser prisioneira do próprio prazer, incapaz de decidir se queria que Guy parasse ou se continuasse.

Houve uma breve pausa, tempo para que ele afastasse as pernas bem torneadas de Beth e se encaixasse, penetrando-a por fim.

Beth o enlaçou com as pernas e juntos passaram a dançar de acordo com o ritmo mais primitivo de todos os tempos. Em seguida, cravou os dedos nos ombros de Guy, sentindo-lhe os músculos se movimentarem ao mesmo tempo que assumia o poder que exercia sobre ele. Guy continuou a se movimentar cada vez mais rápido, na pressa de alcançar o ápice da relação, até uma última e definitiva estocada, quando tensionou o corpo inteiro e inclinou a cabeça para trás.

Beth esperava ouvir um uivo triunfante, ainda agarrada a ele, percebendo o próprio corpo exausto da força do ato de amor.

Aos poucos, sua respiração foi se suavizando e, apoiado nos cotovelos, Guy olhou para baixo. Beth não podia ver-lhe o rosto, mas sentia amor e candura emanando do corpo másculo. Abaixando a cabeça, ele procurou beijá-la, e ela levantou a cabeça para receber o beijo gentil como uma pluma.

Em silêncio, deslizaram para baixo dos lençóis. Beth estremeceu quando a seda roçou em sua pele nua, mas Guy a abraçou, aquecendo-a com seu próprio corpo, até ela adormecer.

O dia seguinte se apresentou como uma linda manhã de outono. Uma camada fina de orvalho cobria a grama, e o sol se fixou como soberano no céu limpo e azul. Uma névoa úmida pairava sobre o rio, estendendo-se até as árvores, diminuindo o brilho das folhas amareladas.

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Beth estava no meio das ruínas da igreja antiga. Evitou as sombras frias, aproveitando o calor do sol em seu rosto. Depois seguiu por entre as rochas tombadas, distanciando-se das paredes que ainda estavam em pé até um ponto de onde enxergava os jardins do mosteiro, cujas paredes eram banhadas pelo sol da manhã.

Alguma coisa, não exatamente um som, mas um sentimento a fez virar para trás. Guy vinha se aproximando. Ele vestia um casaco desabotoado sobre a camisa e a calça, o tecido se movendo em ondas conforme ele caminhava.

— Estou atrapalhando?

— Você estava dormindo, e eu não quis perturbar.

— Quando eu acordei, você já tinha saído — disse ele com um sorriso nos lábios.

— Como me encontrou?

— Pelas pegadas sobre o orvalho. Quando vi que tomava a direção da parte antiga do mosteiro, adivinhei onde você estaria.

Beth percebeu a incerteza nos olhos dele.

— Há algo errado?

— Não... — Beth passou os braços em volta do tronco. — Eu estava pensando sobre o futuro...

— Bem. Miles tinha reservado a igreja para daqui a três semanas. Acho que deveríamos aproveitar. Ainda dá tempo de alterar os proclamas. Você tem alguma objeção?

— Não, eu adoraria... Muito... — Ela corou.

O alívio de Guy foi quase palpável, o que a agradou bastante.

— Preciso ir até Wylderbeck antes disso, e gostaria que fosse comigo. Quero lhe mostrar minha propriedade.

— Sim, claro.

Beth se virou e entrou no prédio principal do mosteiro. O ar estava parado, e o sol tinha subido a ponto de brilhar acima das ruínas, banhando a área com calor e luz. Beth imaginou que centenas de séculos atrás, muitos casais deviam ficar bem naquele lugar, fazendo seus votos de amor eterno.

— Onde vamos morar depois de casados? — perguntou ela, notando que Guy se aproximava.

— Espero que goste de minha casa em Wylderbeck o suficiente para considerá-la como seu lar principal.

— Tenho certeza de que sim, ainda mais com você a meu lado.

— Talvez eu tenha que passar mais tempo em Londres. Soube que Pitt me receberia de bom grado. Com a situação atual na França, acho que posso ser útil ao governo.

— Então você precisa ir mesmo. E, se puder, irei acompanhá-lo.

— Eu não iria sem você. — Ele se postou a um passo atrás dela. — Você está tremendo — observou. — Devia estar usando algo mais pesado sobre o vestido. — E abriu os braços. — Venha aqui, deixe-me aquecê-la.

Beth o abraçou, escorregando as mãos por baixo do casaco, sentindo o calor de seu corpo através do tecido fino da camisa. Guy puxou as laterais do casaco para cobrir

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os dois.

— O que há de errado, meu amor?

— Eu estava pensando na minha família: Sophie, vovó e Simon.

Guy pousou o rosto no topo da cabeça dela.

— Se Davey mantiver suas intenções, creio que Sophie deve entrar na igreja logo depois de você, e lady Arabella continuará a morar aqui.

— Acho que é o que ela gostaria, se você não fizer objeção.

— Talvez seja melhor discutir isso com seu irmão.

Beth se afastou um pouco para encará-lo, com uma sobrancelha erguida.

— Você tinha dito que passaria Malpass para Simon.

Guy conteve o sorriso ao notar a surpresa de Beth.

— Isso é um direito dele de nascença. Se você quiser devolver, não tenho objeção alguma.

— Mas... se for assim, eu não levarei nada ao casamento. Bem, quase nada... há o espólio do meu marido...

O brilho dos olhos dele remetia ao amor profundo que sentia. Beth sentiu a pele se levantar em doces arrepios, mas não tinha nada a ver com o frescor da manhã, mas sim com as palavras que ele disse a seguir, que resumiam tudo o que ela queria ouvir:

— Tudo o que quero está comigo aqui, agora e para sempre.

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Próximo Lançamento

QUESTÃO DE INOCÊNCIA

LOUISE ALLEN

Londres, 4 de março de 1815.

— Você, minha cara senhorita Celina Shelley, é definitivamente uma grande vantagem para os negócios. — O senhor Gordon Makepeace estendeu as mãos sobre o grande mata-borrão da escrivaninha, enlaçou-as e sorriu.

Lina jamais tinha visto um crocodilo de carne e osso, más podia bem imaginar agora como era o réptil asqueroso.

— Acredito que isso signifique que sou uma vantagem para o desempenho comercial do estabelecimento, senhor Makepeace. Isto é, espero que queira dizer que, ao fazer a contabilidade dos negócios e administrar o lado doméstico do The Blue Door, estou, de alguma forma, pagando um pouco da minha dívida de gratidão para com a minha tia Clara por me hospedar. — Lançou um olhar rápido para a porta fechada que levava aos aposentos da tia. — E agora preciso mesmo ir até ela e saber como está. Só não fui ainda porque o senhor chegou.

— Acho que não. — O sorriso desapareceu. — Não queremos que você pegue a doença dela, qualquer que seja, queremos?

— Minha tia tem um problema crônico de estômago. Não é contagioso. — Lina se levantou e foi até a porta. Estava trancada.

— Sente-se, senhorita Shelley.

A vaga sensação de desconforto, que quase não havia percebido devido à grande preocupação com a tia, se tornou um arrepio gelado de medo. Vinte meses antes, Lina fugira de sua vida miserável na casa paroquial de uma aldeia de Suffolk e procurara refugio com a tia. Soubera de sua existência ao encontrar uma carta escrita para sua mãe, anos antes, e sofrerá um grande choque ao descobrir que tia Clara, longe de ser a solteirona respeitável que imaginava, era Madame Deverill, dona de um dos mais exclusivos bordéis de Londres.

Mas Lina havia queimado suas pontes; não podia voltar para a segurança infeliz da casa paroquial, voltar para uma das duas únicas pessoas no mundo que a amavam, a irmã de quem fugira e a quem deixara sozinha. O pai jamais permitiria que atravessasse de novo a porta de sua casa, e o escândalo que provocara ao se hospedar num bordel mancharia a reputação da irmã mais velha.

Lina fugira num impulso e se segurara ao tênue salva-vidas daquela carta secreta. Sentira-se tão profundamente miserável, tão presa a uma armadilha sem saída que a fuga era tudo em que conseguira pensar, especialmente depois que Meg, sua outra amada irmã, partiu. Agora, a consciência não a deixava em paz; não devia ter deixado Bella sozinha.

Sua linda e elegante tia a havia recebido com carinho, sem nenhuma restrição, e a hospedara no andar superior da casa, uma área particular, num quarto com janelas que se abriam para os telhados do St James’s Palace, e desde então a tratara como a uma

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filha. Como poderia voltar algum dia?, perguntara-lhe a tia. O pai lhe fecharia a porta sem hesitação ou pena. Bella era a irmã sensata e estoica, dissera a tia. Se quisesse partir também, partiria. Mesmo assim, a consciência de Lina a perturbava constantemente.

Gordon Makepeace se tornara um sócio sem ingerência nos negócios quando um problema com um senhorio difícil alguns anos antes quase levara Clara à falência. O dinheiro dele salvara o negócio, agora florescente de novo, explicara Clara a Lina quando a sobrinha insistira em fazer qualquer tipo de trabalho que não a envolvesse diretamente no objetivo do estabelecimento. Agora, todos os meses, Lina separava o dinheiro que correspondia à parcela de Makepeace nos lucros. Até então, ele se limitara a um papel passivo, mas esse último ataque de sua doença crônica deixara Madame Deverill tão mal que ela precisara ficar de cama, e ele simplesmente entrara e assumira a direção.

— Por que me impede de ver minha tia? — exigiu Lina. — O senhor não temo direito...