sarah mallory - fragmentos da paixão

141

Upload: ludover

Post on 25-Jul-2016

230 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Sarah mallory - fragmentos da paixão
Page 2: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

2

FRAGMENTOS DA PAIXÃO

The Earl's Runaway Bride

Sarah Mallory

De volta ao leito de seu marido! O marido de Felicity, o elegante major Nathan Carraway, desaparecera na Espanha

quando o país se encontrava devastado pela guerra. Sozinha, ela descobre um obscuro segredo por trás de seu turbulento casamento e foge para a Inglaterra. Durante o dia, ela trata de expulsar qualquer pensamento relacionado a Nathan, mas à noite é assombrada pelas lembranças de sua intensa e apaixonada lua de mel... Cinco anos depois, Felicity é tirada para dançar por um homem bonito e perigoso. Mal sabe ela que está prestes a ficar frente a frente com Nathah, de volta para reivindicar a esposa fugitiva!

Digitalização e Revisão: Projeto Revisoras

Tradução Patrícia Chaves

HARLEQUIN 2012

PUBLÍCADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V/S.à.r.l. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a

transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas

ou mortas é mera coincidência.

Título original: THE EARL'S RUNAWAY BRIDE

Copyright © 2010 by Sarah Mallory Originalmente publicado em 2010 por Mills & Boon Historical Romance.

Projeto gráfico de capa: núcleo i designers associados Arte-final de capa: Isabelle Paiva

Editoração eletrônica: EDITOR1ARTE

Tel.: (55 XX 21) 2569-3505 Impressão:

RR DONNELLEY Tel.: (55 XX 11) 2148-3500

www.rrdonnelley.coni.br

Page 3: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

3

Distribuição exclusiva para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil: Fernando Chinaglia Distribuidora S/A.

Rua Teodoro da Silva, 907 Grajaú, Rio de janeiro, RJ — 20563-900

Para solicitar edições antigas, entre em contato com o DISK BANCAS: (55 XX 11) 2195-3186 / 2195-3185 / 2195-3182

Editora HR Ltda. Rua Argentina, 171, 4o andar

São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 Correspondência para:

Caixa Postal 8516 Rio de Janeiro, RJ — 20220-971 Aos cuidados de Virgínia Rivera

[email protected]

Capítulo Um

Felicity estava brava, muito brava. Todo o medo que ela sentira por estar sozinha e

sem dinheiro em um país estranho foi esquecido, substituído pela raiva ao perceber que a maleta que continha seus últimos pertences havia sido roubada.

Sem pensar duas vezes, ela saiu em perseguição ao espanhol de colete de couro para longe da Plaza, embrenhando-se em um labirinto de vielas estreitas e apinhadas de gente nos arrabaldes do porto de Corunha. Ela não parou, nem mesmo quando uma súbita lufada de vento arrancou-lhe a touca da cabeça. Continuou correndo, determinada a recuperar sua maleta.

Somente quando se aproximaram das docas e Felicity se viu em um pátio cercado por armazéns, foi que ela se deu conta do perigo. Viu o ladrão entregar a maleta a um garoto e depois se virar para ela com um sorriso maldoso. O garoto agarrou a maleta e saiu correndo.

Felicity parou. Um rápido olhar revelou outros dois sujeitos ameaçadores bloqueando a passagem. Ela reuniu toda a coragem de que foi capaz e falou, em tom altivo e autoritário:

— Aquela bolsa é minha! Devolvam-na para mim agora, e não se fala mais nisso. A resposta foi uma mão abrutalhada em suas costas que a empurrou. Ela tropeçou e

caiu de joelhos, mas rapidamente tratou de se levantar e desviou-se quando um dos homens fez menção de agarrá-la. Havia somente um homem na sua frente agora. Tudo o que ela tinha a fazer era esquivar-se dele e correr, mas com uma risada gutural, ele a

Page 4: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

4

agarrou pelo cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás, jogando-a nos braços de seus cúmplices.

Felicity tentou se desvencilhar, mas era impossível vencer a força daqueles brutamontes. Eles a seguraram firme enquanto o homenzinho de dentes amarelos e hálito fétido se aproximava, fitando-a com olhar lascivo; e ele rasgou a peliça dela.

Felicity fechou os olhos, tentando ignorar as risadas infames e os gracejos vulgares. Então ela ouviu outra voz, lenta, profunda e inconfundivelmente britânica.

— Afastem-se da moça! Felicity abriu os olhos. Atrás do ladrão, estava um oficial inglês alto e garboso, em

sua farda vermelha. Ele parecia completamente à vontade, observando a cena com ar despreocupado, mas quando o homem sacou uma faca da cintura, o tom de voz do oficial mudou:

— Eu pedi com educação — disse ele, mostrando a espada. — Mas parece que terei de ser mais evasivo.

Com um arquejo, os dois homens que seguravam Felicity a soltaram e correram para o lado do companheiro. Ela recuou e se encostou à parede, enquanto o oficial de farda vermelha tratava de despachar os agressores. Ele se moveu com uma rapidez surpreendente. Com um golpe da espada, ele acertou o pulso do homem baixote, sem o ferir, mas fazendo a faca cair ao chão. Um dos outros dois homens gritou quando a lâmina da espada roçou em seu braço. Quando o oficial voltou a atenção para o terceiro homem, este deu meia-volta e saiu correndo, seguido pelos companheiros.

O oficial limpou a lâmina da espada e enfiou-a de volta na bainha. Um raio de sol infiltrou-se entre as construções que abrigavam os armazéns e o envolveu num feixe de luz. O cabelo dele parecia mogno polido à luz do sol.

Ele sorria para Felicity, e os olhos castanhos dele tinham um brilho divertido, como se o que acabara de acontecer tivesse sido uma brincadeira. Em um lampejo, Felicity se deu conta de que ele era a personificação do herói com quem ela sempre havia sonhado.

— Está ferida, senhorita? A voz dele era profunda, calorosa e a envolvia como se fosse um veludo macio. Ela

balançou a cabeça. — Eu... Acho que não. Quem é o senhor? — Major Nathan Carraway, a seu dispor. — Eu lhe agradeço muito, major. — Venha. — Ele lhe estendeu o braço. — É melhor sairmos daqui antes que eles

resolvam voltar com mais amigos. — Mas... eles roubaram minha maleta! — Acho que vai ter de se conformar com sua perda, senhorita. Era algo de valor? — Sem preço! — Felicity engoliu em seco. — Tudo o que eu tenho no mundo estava

naquela maleta. De repente, Felicity se sentiu nauseada, ao compreender a gravidade da situação. — O que vou fazer agora? Eu não tenho nada, não tenho ninguém... Instintivamente, ela se virou para o homem a seu lado. Ao fitá-lo nos olhos? teve

consciência de uma súbita atração, uma repentina convicção de que havia encontrado nele uma pessoa amiga. O medo e a raiva se dissiparam.

Nathan sorriu. — Você tem a mim — disse ele. — BOM DIA, senhorita. Eu lhe trouxe chocolate quente. Felicity se mexeu, relutante em sair do sonho, mas quando a criada abriu a janela, o

sol inundou o quarto, banindo qualquer esperança de voltar a dormir.

Page 5: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

5

— Que horas são, Betsy? — Oito horas, senhorita. Com o menino John e o menino Simon agora na escola, a

senhorita pediu que eu não a acordasse muito cedo nesta manhã. Felicity sentou-se na cama. Era verdade, mas ela não tinha barganhado uma hora a

mais de sono para ser assombrada por sonhos indesejáveis! Felicity não demorou a sair da cama e se vestir para descer até a sala de estudos. O

recinto estava estranhamente silencioso: depois de quatro anos cuidando, e ensinando dois meninos cheios de energia e de acompanhar o crescimento deles até a idade escolar, não era de admirar que ela agora sentisse a falta deles. Como governanta e preceptora, Felicity tinha se afeiçoado muito aos meninos, que haviam sido uma excelente distração, ajudando-a a afastar um pouco a tristeza.

— Fee? Fee, onde você está? Felicity ouviu a voz suave de lady Souden e apressou-se a ir abrir a porta. — Precisa de mim? Estou arrumando tudo por aqui. — Lady Souden entrou na sala

ensolarada e olhou em volta, suspirando. — Está tudo tão quieto sem os meninos, não é? Mas você não é mais a preceptora

nesta casa, Felicity. — Ela pousou as mãos sobre o ventre. — Pelo menos, até este pequenino aqui precisar de você.

— O que ainda vai demorar alguns anos — observou Felicity, sorrindo. — Eu sei, mas... Ah, Fee, não é emocionante? Os meninos são muito queridos, e eu

adoro ser madrasta deles, mas mal posso esperar para ter o meu bebê. — Lydia meneou a cabeça, balançando os cachos dourados. — Depois de cinco anos, não pensava mais que seria possível! Mas não foi para dizer isso que vim procurá-la. Venha, você não precisa mais ficar aqui trabalhando.

Felicity pegou mais uma pilha de livros de cima da mesa. — Para mim, não é trabalho, Lydia. Eu faço com prazer e gosto de me sentir útil.

Além do mais, os meninos vão usar esta sala quando voltarem para casa, então o mínimo que posso fazer é deixar tudo como estava quando eles foram embora.

— Se for assim, então você vai ter de espalhar todos os brinquedos deles pelo chão e tirar todos os livros das prateleiras! Ah, Fee, deixe isso agora e venha comigo até o jardim. A manhã está linda, e eu quero conversar com você.

— Só mais cinco minutinhos... — Não, agora. É uma ordem! Enquanto acompanhava lady Souden, Felicity refletia que poucas pessoas no mundo

tinham uma patroa tão pouco exigente. As duas haviam sido amigas no colégio, e quando Felicity viera procurá-la, sem dinheiro e desesperada para arrumar um emprego, Lydia, que estava recém-casada, persuadira o apaixonado marido a contratá-la como governanta e preceptora dos dois filhos dele, enteados dela.

Felicity sabia que tivera muita sorte. Sir James era um cavalheiro atencioso, que tinha consideração pelos empregados, e ela se sentia grata por sua excelente formação possibilitar que ela fosse uma preceptora à altura dos meninos. Sir James estava tão satisfeito com o trabalho dela que, quando os garotos finalmente foram para o colégio interno, ele não se opusera à sugestão de Lydia de que Felicity continuasse morando em Souden Hall como dama de companhia da esposa. O arranjo funcionou perfeitamente bem, pois Sir James se ausentava de casa com freqüência e dizia que era um alívio para ele saber que a esposa não ficava sozinha. A única queixa de Felicity era que ela quase não tinha o que fazer, mas quando ela confessou isso a Lydia, lady Souden riu e disse a ela que aproveitasse. Agora, passeando entre os arbustos de braço dado com Lydia, Felicity deixou escapar um suspiro de contentamento.

— Está feliz? — perguntou Lydia. Felicity hesitou. Ela estava bem, em paz. Claro que havia um mundo de diferença

entre isso e a verdadeira felicidade, mas poucas pessoas podiam ter tudo o que queriam,

Page 6: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

6

se é que alguém tinha. — Quem não estaria feliz num lugar maravilhoso como este? — ela respondeu. —

Os jardins aqui em Souden ficam lindos na primavera. Você ainda está planejando projetar um knot garden? Eu andei folheando uns livros na biblioteca que têm várias gravuras de jardins, com canteiros entrelaçados formando padrões lindíssimos. Eu gostaria muito de ajudá-la, se puder.

— Ah, mas é claro que sim! Se bem que vamos ter de deixar isso para outra ocasião. James me escreveu dizendo que quer que eu vá encontrá-lo em Londres, no mês que vem, para a Celebração da Paz.

— Ah. Bem, enquanto você está fora, eu poderia... — Você vai comigo, Fee. Felicity parou de andar. — Ah, não, não há necessidade disso. — Há muita necessidade — retrucou Lydia, segurando as mãos da amiga. — Com

os meninos no colégio interno, não há por que você ficar aqui sozinha neste fim de mundo. Além do mais, você leu os jornais e sabe, tão bem quanto eu, que várias pessoas importantes estarão em Londres para a celebração: o imperador da Rússia e a irmã dele, a grã-duquesa de Oldemburgo, os príncipes da Prússia... Ah, são muitos para me lembrar de todos agora! E James já foi informado de que terá a incumbência de assessorar e ciceronear todos. Pense só, Fee, jantares, recepções, festas... James já me avisou que quer oferecer um baile! Por isso, vou precisar que você me ajude com os preparativos. Não vou conseguir cuidar de tudo sozinha.

— E é recomendável que você assuma esses compromissos estando grávida? — Ora, Fee, eu não estou doente! É mais provável que eu morra de tédio se ficar

aqui, sem nada para fazer. Além disso, o bebê só vai nascer no outono, e as festividades vão terminar muito antes disso. Não fique tão horrorizada, Fee, olhe para a coisa toda como um raro prazer.

— Um prazer! Lydia, você sabe que eu... Não sou muito jeitosa com esse tipo de coisa de eventos sociais. Tenho medo de decepcionar você.

— Bobagem. Você é uma moça bem-educada, sabe se comportar, só está um pouco sem prática. E isso porque aquele seu tio horroroso a tirou da escola para fazer de você uma escrava!

— Lydia! Tio Philip não era horroroso, ele era... Devoto. — Ele era um tirano! — insistiu Lydia, com uma veemência fora do comum. — Ele

fez de tudo para acabar com a sua alegria de viver. Felicity hesitou. — É verdade que meu tio considerava pecado toda e qualquer forma de prazer —

admitiu —, mas é porque ele era muito religioso. — Então ele deveria ter arranjado um criado "muito religioso" para servi-lo, em vez

de carregar você para os confins da África! Felicity riu. — Mas ele não fez isso! Nós não fomos além do Norte da Espanha. Pobre tio Philip,

se convenceu de que os católicos da Espanha estavam tão necessitados de salvação quanto qualquer tribo africana, mas eu sempre suspeitei que a verdade era que ele não queria enfrentar outra viagem por mar.

— Bem, foi muito errado da parte dele ter levado você em vez de lhe dar a oportunidade de se casar e ter filhos...

Felicity ergueu a mão num gesto de defesa. Ela não queria pensar em quem poderia ter sido.

— O que está feito está feito — disse ela, calmamente. — Eu estou feliz aqui em Souden e prefiro ficar enquanto você vai para Londres.

— Mas eu vou precisar de você! O tom de voz lamurioso de Lydia remeteu Felicity de volta aos tempos de escola,

Page 7: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

7

quando a amiga freqüentemente cobrava sua companhia. Lydia nunca conseguira ficar bem sozinha. E agora, como naquela época, Felicity não conseguiu resistir aos apelos da amiga.

Sentindo-a ceder, Lydia pressionou-lhe a mão. — Diga que você vai, Fee! Você é tão boa para organizar festas... — Mas você não espera que eu vá participar das festas, certo? — Só se você quiser, querida. — Você sabe que é a última coisa que eu iria querer. — Então você fica nos bastidores, invisível, está bem? — Felicity riu de novo. — Mas não vejo como isso será possível, Lydia. Como vou ser sua dama de

companhia se eu não sair do quarto? Sir James não vai aprovar isso! — Vou dizer a ele que você tem uma fobia mórbida de pessoas desconhecidas —

sugeriu Lydia. — Ele vai entender, porque ele tem um primo que é assim. Como é homem e rico, é "aceitável" que seja um recluso. E James sabe muito bem como eu dependo de você, ainda mais agora, com a gravidez avançando.

— Talvez fosse melhor você não ir, não acha? — Felicity fez uma última tentativa. Lydia deu uma risadinha. — Mas é claro que é melhor eu ir! Nunca me senti tão bem, e o médico disse para

eu não deixar de fazer nada do que costumo fazer. Pelo contrário, devo levar uma vida normal. Ah, por favor, Felicity, você é indispensável para mim, você sabe disso.

Era impossível para Felicity resistir ao olhar suplicante de Lydia. — Você é tão boa para mim que não tenho como recusar. — Então você promete que irá comigo à capital? — Sim, prometo. Lydia soltou um longo suspiro. — Que alívio! — Ela passou o braço pelo de Felicity e puxou-a gentilmente. — Agora

vamos, temos de nos movimentar, senão vamos congelar. Afinal, ainda estamos em abril. As duas caminharam em silêncio por mais alguns minutos. — Era só isso que você queria me dizer? — indagou Felicity. — Que nós vamos

para Londres? — Bem, era isso, mas tem mais uma coisa. — Lydia, o que você está tramando? — Nada, juro, mas há algo que você precisa saber. — Lady Souden sacudiu de leve

o braço de Felicity. — Lembre-se, Fee, você prometeu! — Está bem. Diga. — O conde de Rosthorne também estará lá. O coração de Felicity deu um pulo. O conde de Rosthorne... Nathan Carraway, o

lindo herói de Fee. O homem que ainda assombrava seus sonhos, que provara ser um mestre da sedução. Ela engoliu em seco, tentando permanecer calma.

— Como você sabe? — James escreveu contando. — Lydia! Você não contou a ele... — Claro que não, eu prometi a você que não diria nada. Ele escreveu falando dos

planos para as festividades. Disse que Carraway foi convocado, não só porque ele agora é o conde de Rosthorne, mas porque ele é, ou era, um militar, e o príncipe regente está um tanto desesperado para impressionar. Os parques reais serão abertos, haverá exposições, fogos de artifício e, ah, Felicity, vai ser muito emocionante! Você não está nem, ao menos, um pouquinho curiosa para ver tudo?

— Não se houver, ao menos, um pouquinho de chance de eu encontrar lorde Rosthorne!

Lydia a fitou com seus olhos azuis muito francos. — Eu sei que ele tratou você mal, querida, mas você não fica curiosa para vê-lo de

Page 8: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

8

novo? Felicity hesitou. Nathan a tinha socorrido, abrigado, comprado roupas para ela. Tinha

ensinado a amá-lo e depois partira o coração dela. — Não. Não tenho desejo nenhum de revê-lo. — Felicity, você está vermelha! Você ainda gosta dele... — Não gosto! Faz cinco anos, Lydia. Eu já superei. — Bem, pode ser que você não chore todas as noites até dormir, como no começo,

quando você veio morar aqui, mas às vezes, eu percebo você quietinha, calada, pensativa, com aquele olhar distante...

Felicity sorriu. — Lydia, você é romântica demais! Esses sintomas que você está descrevendo

muito provavelmente são de exaustão por cuidar o dia inteiro de dois meninos cheios de energia!

— Bem, não importa o que você diga, eu morro de curiosidade para conhecer o homem que...

— Lydia! — Felicity calou-se abruptamente. — Lydia, você me prometeu, quando eu vim para cá, que iria respeitar o meu segredo.

— E eu respeito, meu bem, mas... — Por favor, não vamos mais falar de lorde Rosthorne! Se você faz questão que eu

vá para a capital com você, eu vou, mas por favor entenda que, em hipótese nenhuma, ele deve saber que eu estou lá. Seria muito constrangedor para todos. — Ela engoliu em seco. — Eu estou morta para ele.

Lydia envolveu Felicity num abraço carinhoso. — Ah, minha amiga querida, você sabe que eu não faria nada para contrariá-la ou

aborrecê-la! — Claro que não, eu sei disso. Pelo menos, não intencionalmente. — Felicity olhou

para cima. — O céu está ficando nublado. Logo o sol vai desaparecer, então acho melhor entrarmos.

Elas não tornaram a falar sobre Londres nem sobre o conde de Rosthorne, mas quando Felicity se recolheu ao seu quarto naquela noite, ele estava ali, em seu pensamento, em sua imaginação, mais real do que nunca.

— O CONDE de Rosthorne, Sir. A voz sonora do mordomo reverberou no pequeno escritório revestido de estantes

de livros, dando ao anúncio um tom de solenidade. Nathan disfarçou uma tossidela. Doze meses depois, ele ainda não se sentia à

vontade com o título. O cavalheiro sentado atrás da grande escrivaninha de mogno levantou-se imediatamente e adiantou-se para cumprimentá-lo.

Nathan o estudou com interesse. Ele conhecia Sir James Souden só de nome, mas, mesmo que não soubesse que o homem era um fiel partidário de lorde Wellesley, sentiu-se predisposto a simpatizar com aquele cavalheiro de ar inteligente, franco e bem-humorado, que esbanjava energia e carisma. Ali estava um homem habituado a fazer as coisas acontecer.

Ele sorriu para Nathan e indicou uma cadeira. — Seja bem-vindo, milorde, e obrigado por vir tão prontamente. Nathan inclinou-se numa mesura. — Recebi sua mensagem quando cheguei à cidade, nesta manhã, Sir James. — Ah, mas conhecendo o motivo desta reunião, eu não ficaria surpreso se o senhor

a tivesse cancelado. O brilho nos olhos do homem mais velho provocou um sorriso irônico de Nathan.

Page 9: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

9

— É sempre melhor não postergar o inadiável, penso eu. — Fala como um militar autêntico. — Sir James gesticulou em direção às garrafas

alinhadas sobre uma mesa de canto. — Aceita um drinque, milorde? Tenho um conhaque muito bom. Roubado dos franceses, é claro. Imagino que vá apreciá-lo.

— Sim, obrigado. — Bem — começou Sir James, quando os cálices estavam cheios e seu convidado

estava sentado em uma das confortáveis cadeiras estofadas diante da escrivaninha. — E então, milorde, quanto o senhor sabe?

— Somente que Sua Alteza deseja que eu ajude a recepcionar os visitantes reais. — Sim. Ele está transformando— a cidade em um pandemônio neste verão — disse

Sir James, balançando a cabeça. — Mas, enfim, é por uma boa causa. É pela paz, portanto não posso me queixar.

Nathan tomou um gole de conhaque. O líquido era liso e aromático, definitivamente para ser saboreado aos poucos.

— Não faço idéia do que mais Sua Alteza espera de mim — disse ele por fim. — Eu imaginava que houvesse anfitriões suficientes em Londres para recepcionar as autoridades reais de toda a Europa. Minha casa é uma residência de solteiro; minha mãe não sai de casa. Ela é inválida e passa todo o tempo em Rosthorne Hall...

— Ah, Sua Alteza não espera que o senhor dê festas nem nada desse tipo. As damas estarão mais que dispostas a cuidar dessa parte. Na verdade, pedi à minha esposa que viesse justamente para isso... Não que seja preciso despender muito esforço para convencê-la a organizar uma festa! Mas o príncipe regente quer homens militares perto dele, especialmente para acompanhar o marechal Blucher. O prussiano é tão respeitado e estimado que inspira temor até em nosso príncipe. Teremos a presença de muitas pessoas importantes: Blucher, o rei da Prússia e os príncipes, o czar Alexander, a irmã dele, é claro, a grã-duquesa... Por isso, fomos todos recrutados para ajudar. Um exército de assistentes para garantir que os convidados da realeza não fiquem desacompanhados em nenhum momento. Sua primeira tarefa será escoltar o séquito do czar de Dover para Londres. Eu sei, meu rapaz, eu sei... Posso ver pela sua expressão que a idéia não lhe agrada.

— O senhor tem razão — admitiu Nathan. — Começo a achar que nunca deveria ter saído do Exército!

Sir James riu e se levantou para servir-se de mais conhaque. — Sente falta da vida militar, milorde? — Era a única vida que eu conhecia até um ano atrás. Fui alistado aos 16 anos de

idade. — Sua nomeação ao título foi uma surpresa? Nathan assentiu. — Sim. O antigo conde, meu tio, tinha três filhos saudáveis, por isso, nunca pensei

que fosse herdar o título. Mas meus dois primos mais novos morreram na Espanha. Nathan fez uma pausa, relembrando os invernos gelados e os verões escaldantes:

as chuvas torrenciais, os lamaçais, as moscas e as doenças que castigavam as tropas. Quase se podia dizer que mais homens morriam em conseqüência de doenças e das intempéries do clima que pelos ataques do exército de Napoleão.

A cicatriz ao lado de seu olho esquerdo começou a doer. Eram muitas lembranças tristes, e ele tratou de afastá-las.

— Acredito que a perda dos filhos tenha precipitado a morte de meu tio. Ele morreu no começo de 1812, e seu último herdeiro sofreu uma queda do cavalo durante uma caçada menos de seis meses depois. Quando eu recebi a notícia, julguei que era meu dever ir até a propriedade para resolver o que fosse necessário. E desde então, tenho estado tão atarefado com minhas novas obrigações que ainda não tive tempo para sentir saudade do Exército.

— E suas novas obrigações incluem encontrar uma esposa? Você vai precisar de

Page 10: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

10

um herdeiro. A resposta de Nathan foi curta: — Eu tenho outro primo, que é meu herdeiro. — As moças não vão concordar com isso. — Sir James deu uma piscadela. — Você

agora é o melhor partido no mercado casamenteiro. Nathan sentiu como se uma garra de ferro o apertasse por dentro. — Eu não penso assim. — Ah, não? Pelo que ouvi falar, meu rapaz, você nunca teve problemas para

conquistar uma mulher. A sua reputação precede, meu caro — explicou Sir James, quando Nathan arqueou as sobrancelhas. — Dizem por aí que a Europa está cheia de corações partidos por você. Embora seja justo dizer que eu nunca ouvi falar que você tenha seduzido meninas virgens e inocentes.

Não, pensou Nathan com amargura. Somente uma vez ele tinha quebrado essa regra, e o preço fora alto demais... — Os lábios dele se retorceram num esgar.

— Com uma reputação dessas, imagino que as mães das moçoilas não vão me deixar chegar perto de suas filhas.

— Você se engana, rapaz. Elas vão começar a fazer mil planos assim que souberem que você está na cidade.

Nathan levou a mão à cicatriz por um breve momento, e Sir James sorriu. — E não pense que essa cicatriz vai assustar alguém — acrescentou ele. — É mais

provável que as damas fiquem fascinadas por ela. Não deixa de ser um traço atraente para as moças, um homem que lutou e passou por muita coisa na vida.

Nathan se levantou. — Bem, se não há mais nada a conversar, eu preciso ir. — Ao ver seu anfitrião

arquear uma sobrancelha, ele tentou moderar o tom de voz. — Não creio que haja muita coisa a fazer até que os líderes aliados cheguem, no mês que vem.

— Você tem razão, é claro. Precisaremos nos encontrar outra vez apenas para definir nossas funções. — Sir James riu baixinho. — Graças a Deus, Sua Alteza se ocupa muito agora desenhando novos uniformes para suas tropas e fazendo planos para o grandioso espetáculo no Hyde Park para se preocupar conosco. Até qualquer hora, então, por enquanto, milorde. Se não tiver nenhum compromisso, talvez aceite meu convite para jantar na quarta-feira. Eu espero que lady Souden já tenha chegado até lá, mas não será um evento social, apenas um jantar íntimo.

— Quase ninguém sabe da minha presença na cidade, por enquanto, portanto não tenho nenhum compromisso fixo. — Nathan fez uma mesura. — Muito obrigado, sim será um prazer aceitar seu convite.

LONDRES ERA uma cidade populosa, suja e barulhenta, pensou Felicity

melancolicamente, enquanto olhava pela janela da carruagem. As ruas estavam forradas de sujeira deixada pelas centenas de cavalos e bois que transitavam para cima e para baixo, os paralelepípedos visíveis apenas onde as rodas dos veículos passavam ou quando algum varredor limpava a passagem para um pedestre e ganhava uma moeda por seu serviço. Os gritos do vendedor de flores se misturavam aos do amolador de facas e aos do homem que vendia tortas, conforme eles divulgavam suas mercadorias pelas ruas. Fileiras de casas altas margeavam a rua, metros após metros de pedra e tijolo, com poucos trechos de grama ou vegetação à vista.

No canto da carruagem, a austera criada pessoal de lady Souden ressonava baixinho, enquanto Lydia, por sua vez, sentava-se ereta, espiando lá fora, com os olhos brilhantes e um sorriso de antecipação nos lábios.

Ela tinha nascido para ser uma anfitriã da sociedade, refletia Felicity. Adorava festas

Page 11: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

11

e bailes e não conseguia entender a relutância de Felicity em vir para a capital. Afinal, se Felicity não queria participar de eventos sociais, que diferença fazia ir para Londres ou ficar em Souden?

Mas isso não importava. Felicity sabia que havia perigo em Londres. Nathan Carraway estava lá.

Capítulo Dois

A CARRUAGEM parou diante da residência de Sir James, em Berkeley Square, e Felicity seguiu Lydia até o escritório, no andar térreo da casa, onde Sir James as aguardava. Ao ver o marido, Lydia jogou de lado o casaquinho de flanela que trazia nas mãos e correu para os braços dele. Ele a beijou profundamente antes de afastar-se e olhar para ela.

— E então, moçoila, sentiu a minha falta? — perguntou, sorrindo. — O que será que a srta. Brown vai pensar desta inesperada demonstração de afeto?

— A srta. Brown está encantada com a demonstração de afeto e harmonia — murmurou Felicity, com os olhos brilhantes.

Sir James sorriu, mantendo um braço ao redor da cintura ainda marcada da esposa. — Fico contente em saber. E também estou contente em vê-la, srta. Brown. Não sei

se lady Souden a avisou, mas estaremos bastante ocupados nos próximos dois meses. — Ela me contou que o senhor vai receber muitos convidados ilustres, Sir James. — Sim, duques, duquesas, príncipes... Teremos pouco tempo de lazer para nós

mesmos. O que me diz, srta. Brown? — Eu digo que lady Souden está à altura do desafio, Sir. — Sim, eu também — declarou Sir James, dando outro beijo na esposa. — Mas eu

conto com a senhorita para tomar conta dela quando eu não estiver, srta. Brown. Lydia é muito descuidada com sua saúde, especialmente agora. Felicity olhou para ele e disse resoluta:

— Pode contar comigo, Sir James. Vou cuidar direitinho dela e do bebê. Sir James deu um sorriso agradecido. — Obrigado, tenho certeza disso. Lydia comentou comigo sobre sua relutância em

sair de casa, srta. Brown, e prometo que farei o possível para atenuar seu desconforto. Haverá uma carruagem à sua disposição o tempo todo, basta uma palavra sua e será trazida para cá. Agora subam e desfaçam as malas, as duas, pois temos um convidado para o jantar.

— Ah! — Lydia bateu palmas, feliz da vida. — É alguém que eu conheço? — Não, é um rapaz que conheci há poucos dias, mas ele é muito simpático e

agradável, eu garanto. Prevejo que vai alvoroçar muitos corações femininos durante a temporada.

— Ah, quem é? — insistiu Lydia. — Diga, meu amor, quem é ele? — Sir James beijou a ponta do nariz da esposa.

— É um jovem nobre. Rico, bem-apessoado e em idade e posição de se casar. — Sir James olhou de Felicity para lady Souden, e o sorriso dele se alargou. — É o novo conde de Rosthorne.

As mãos de Felicity se apertaram em torno da bolsinha de tecido que ela carregava.

Page 12: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

12

Que peça cruel era aquela que o destino estava lhe pregando, impondo a presença do conde até mesmo antes do início das comemorações? Ela lançou um olhar angustiado para Lydia, que disfarçou com um risinho enquanto se virava para o marido.

— R... Rosthorhe? Ah... — Ele chegou recentemente à capital — explicou Sir James. — Nós nos

encontramos para discutir os preparativos para receber os convidados de Sua Alteza para a Celebração da Paz, e eu fiquei muito impressionado com ele. É um rapaz bastante agradável. Achei que você iria gostar de conhecê-lo, meu amor.

— Eu... Sim... Mas... — Lydia gaguejou. — Sem dúvida, querido, apenas me parece um pouco cedo, só isso. Quero dizer, eu acabei de chegar e...

— Não se preocupe, ele não está esperando nenhuma cerimônia formal. E apenas um jantar íntimo, eu deixei isso claro para ele. Portanto, vá se arrumar e vista um daqueles seus lindos vestidos, meu amor. Tudo o que você precisa é estar encantadora nesta noite, e isso não será nada difícil.

— Então talvez seja melhor lady Souden subir e descansar um pouco — sugeriu Felicity, encaminhando-se para a porta.

Com outra risadinha levemente estridente, Lydia deixou que Felicity a acompanhasse para fora do escritório, deixando para trás um sorridente Sir James.

— Eu sinto muito, Fee — sussurrou ela quando as duas subiam as escadas. — Eu não fazia a menor idéia de que James convidaria Rosthorne para vir aqui!

Felicity suspirou. — Bem, eu imaginava que seria inevitável encontrá-lo, só não esperava que fosse

logo no primeiro dia! Lydia apertou a mão dela. — Não se preocupe, meu bem, você não precisa vê-lo. Esta casa é tão grande que o

conde poderia até vir morar aqui e não ficar sabendo da sua existência! APESAR DAS tentativas de lady Souden de tranqüilizar Felicity, ela sentia a ansiedade

aumentar à medida que se aproximava a hora de lorde Rosthorne chegar. Durante cinco anos, ela fizera o possível para se manter fora do alcance de Nathan Carraway e a idéia de que, em breve, estariam na mesma casa a aterrorizava. Entre outros motivos, porque ela tinha um desejo avassalador de tornar a vê-lo.

ERA PERIGOSO, mas ela não conseguia resistir. Alguns minutos depois que Lydia

desceu para a sala de estar, Felicity saiu silenciosamente do pequeno aposento que lady Souden havia escolhido como sua saleta particular. O pé-direito do hall de entrada de Souden House tinha a altura da casa, e a claraboia ornamentada no teto fornecia luz natural para a escadaria suntuosa que começava em um ponto central e subia até meio patamar antes de se dividir em dois lances que acompanhavam as paredes curvas até o primeiro andar, onde ficavam as salas principais da casa. Dali, uma escada mais estreita levava ao segundo andar, onde ficavam os dormitórios e um mezanino que propiciava uma vista impressionante do hall no andar térreo. Nas temporadas sociais anteriores, Felicity ia muitas vezes a esse mezanino, com os dois meninos, enquanto Sir James recebia convidados, e os três passavam momentos divertidos ali, observando a chegada das visitas. Agora ela decidiu usá-lo para seus próprios interesses.

Sentindo-se como uma adolescente travessa, esgueirou-se até o canto do mezanino e sentou-se. Felicity sabia por experiência própria, que os visitantes raramente olhavam para cima; no máximo, erguiam os olhos até as galerias decoradas do primeiro andar. Seu vestido cinza-escuro se confundia com as sombras, e através da balaustrada, ela tinha uma vista privilegiada da porta da frente, do hall de entrada e do primeiro lance da escadaria.

Page 13: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

13

O carrilhão, no primeiro andar, bateu as horas. Segundos depois, ouviram-se os sons e o movimento de alguém chegando. Felicity sentiu uma súbita e irracional vontade de rir... Nathan sempre fora pontual, disciplinado como o soldado que ele nunca deixara de ser.

Quer dizer então que ele estava ali... Estavam na mesma casa, no mesmo espaço. Felicity inclinou-se para frente, esticando-se para vê-lo. Seu coração deu um pulo quando ele entrou no hall. Ela nunca o vira usando outra roupa que não fosse a farda vermelha do regimento, e sempre o achara lindo de uniforme, mas ao ver aquele corpo alto e atlético num elegante fraque preto, se sentiu quase desfalecer de anseio para descer as escadas correndo e jogar-se nos braços dele. Então Felicity tratou de se reprimir, lembrando-se de como Nathan a tinha traído. Ela o odiava, afinal, não? Jurara para si mesma que estava tudo acabado, e, no entanto, ali estava ela, escondida nas sombras, desesperada para ver o homem que despedaçara seu coração.

Ele falou com o lacaio a quem entregou o chapéu. Felicity não conseguiu distinguir as palavras, mas o timbre profundo da voz despertou lembranças e enviou um formigamento ao longo de sua espinha. Ela reparou que o cabelo castanho já não estava amarrado atrás da nuca, havia sido cortado na altura do colarinho. Nathan dirigiu-se à escada, e Felicity ficou momentaneamente ofuscada pela brancura da gravata e do colete que ele usava. Quando ele ergueu ligeiramente o rosto, ela levou a mão à boca para abafar um grito. Uma enorme cicatriz atravessava o rosto de Nathan, da sobrancelha esquerda até o queixo. Ele estava mais magro, e os lábios, antes sempre sorridentes, estavam agora curvados para baixo, formando linhas mais pronunciadas nos cantos da boca. Ela esperara vê-lo parecer mais velho, mas a severidade de sua expressão a chocou.

Nos últimos cinco anos, Felicity acompanhara a carreira de Nathan tão de perto quanto possível. Ela sabia que o regimento dele havia se envolvido em várias batalhas sangrentas, portanto não deveria ficar tão surpresa ao ver que ele fora ferido, mas a cicatriz fazia tudo repentinamente parecer real demais.

Não seja tola, repreendeu-se. Você deveria ficar feliz por ele ter sido castigado pelo modo como a tratou, isso sim!

Felicity fechou os olhos e balançou a cabeça. Essa era a maneira como seu tio reagiria com quem o tivesse ofendido ou magoado, refletiu. Mas ela não era igual ao tio, e a idéia de Nathan ter passado por qualquer sofrimento lhe partia o coração. Ela olhou de novo para a figura alta que subia as escadas.

Olhe para cima, pediu em silêncio. Olhe para mim! Quando chegou ao primeiro patamar da escada, Nathan parou. O coração de Felicity

martelava feito um tambor dentro do peito. Se ele erguesse os olhos, ali de onde estava, ele a veria! Por um alucinante momento, ela achou que era justamente isso que ele ia fazer, mas então ele virou-se para cumprimentar o anfitrião, e Felicity ouviu a voz sonora e bem-humorada de Sir James saudando o convidado.

— Venha, milorde, suba! Não há necessidade de cerimônia entre nós. Minha esposa está aqui e está ansiosa para conhecê-lo.

A porta da sala de estar foi fechada, e o som das vozes se reduziu a um rumor baixo e abafado. Felicity deixou-se cair para trás, com os olhos fechados. Ela tinha visto Nathan. Ele estava vivo e, a não ser pela cicatriz no rosto, parecia bem. Parecia, inclusive, feliz.

E nem de longe imaginava que ela estava ali, tão perto. Os olhos dela se inundaram de lágrimas, e ela censurou a si mesma. Fora uma

enorme tolice vir para Londres, sabendo que ele estaria ali. Ela deveria ter imaginado que isso só lhe traria sofrimento..

Felicity arrastou-se de volta para seu quarto. Não fazia sentido ficar pensando em Nathan, imaginando-o rindo e conversando com Lydia e Sir James no esplendor dourado

Page 14: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

14

da sala de jantar, no andar abaixo. O melhor que ela tinha a fazer era tirá-lo do pensamento e tratar de dormir. Era a atitude mais sensata a tomar.

No entanto, quando o conde de Rosthorne foi embora, várias horas mais tarde, a sombra cinza e silenciosa estava outra vez observando, agachada atrás da balaustrada do mezanino.

TENDO PERDIDO sua primeira esposa no parto, Sir James preocupava-se

exageradamente com Lydia. Consciente disso, Felicity forçou-se a deixar de lado as próprias apreensões e ofereceu-se para acompanhar lady Souden nos passeios pela cidade. Pelo menos, a alegria de Lydia ao aceitar sua companhia não deixava de ser um conforto.

— Ah, que bom, Fee! Eu sabia que você iria gostar depois que visse como vai ser emocionante estar na capital neste verão. Eu gostaria de poder ter vindo assistir à procissão em homenagem ao rei Luiz, no mês passado, mas não faz mal... Teremos muita coisa para ver e fazer! Vai ser muito bom!

— Tenho certeza de que sim — concordou Felicity, corajosamente. Lydia olhou-a de soslaio. — E lorde Rosthorne? — Felicity hesitou. — Preciso fazer o possível para evitá-lo. Se eu me vestir com simplicidade, não vou

chamar atenção. Talvez ele nem me reconheça mais. Posso até usar um véu no rosto toda vez que sairmos durante o dia.

Lydia bateu palmas, aprovando a idéia. — Que emocionante! Mas por outro lado, as pessoas vão ficar curiosas... Bem, você

pode dizer que é uma viúva de luto... — Não, isso não, Lydia... Mas lady Souden estava tão empolgada que não a ouvia. — Varíola! — ela exclamou. — Você ficou com o rosto cheio de pústulas secas ou

então tem a cabeça deformada por causa do parto ou coisa assim. Apesar da inquietação e ansiedade, Felicity riu. — Quem sabe coloco um enchimento nas costas para parecer corcunda também?

Chega, Lydia... Não precisamos dar explicações. — Mas as pessoas vão achar estranho! — Prefiro que pensem que sou excêntrica. Deformada não. OLHANDO PARA seu reflexo no espelho no dia seguinte, Felicity não conseguia ver

nada em sua aparência que pudesse suscitar comentários. Lydia havia avisado que elas iriam passear no Hyde Park, no horário mais nobre. O vestido castanho-avermelhado de Felicity não era tão moderno e vistoso quanto o de lady Souden, de veludo azul com um gracioso bolerinho, mas caía-lhe bem, e o véu duplo que cobria seu rosto era perfeitamente aceitável para qualquer dama que quisesse proteger a pele do rosto da poeira levantada pelos cavalos e carruagens.

O passeio começou bem, mas havia tantas carruagens no parque e tantas pessoas querendo conhecer a elegante lady Souden que o avanço era bastante moroso. Lydia estava apreciando tudo imensamente. Ela apresentava "minha dama de companhia, srta. Browri" com a dose certa de indiferença, de modo que poucas pessoas olhavam duas vezes para a moça vestida com simplicidade e usando uma discreta touca e um véu sobre o rosto.

Felicity estava começando a relaxar e a aproveitar o dia tépido e ensolarado quando

Page 15: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

15

viu outra carruagem se aproximar, conduzida por dois cavalheiros. Um deles era o lorde Rosthorne.

Ela agarrou o braço de Lydia e gesticulou discretamente na direção da carruagem. — Por todos os santos, lady Charlotte Appleby! Eu não sabia que ela estava na

capital... — Mas Rosthorne está com ela — sussurrou Felicity aflita. — Não podemos passar

direto? — Tarde demais — murmurou Lydia, colocando um sorriso no rosto. — Eles já nos

viram. Ela foi obrigada a pedir ao cocheiro que parasse. Felicity prendeu a respiração e

permaneceu sentada, imóvel, rezando para não ser notada. Com as duas carruagens lado a lado, Nathan puxou as rédeas de seu cavalo e ergueu o chapéu para lady Souden.

— Bom dia, milady. A senhora já conhece minha tia, não? — Sim, é claro. Lydia Souden virou-se sorridente para a senhora sentada na carruagem descoberta,

mas tudo o que recebeu em troca foi um menear altivo de cabeça. Nathan apertou os lábios contrafeito. Sua tia fazia questão de que ninguém esquecesse que ela era filha de um conde.

Lady Charlotte ergueu a mão para indicar o outro condutor. — Permita-me lhe apresentar meu filho, milady. Sr. Gerald Appleby. Nathan disfarçou um sorriso quando seu primo tirou o chapéu e cumprimentou lady

Souden com todo o charme e simpatia que faltavam à mãe dele. — Encantado, milady! E sua amiga, não vai nos apresentá-la? Nathan piscou e censurou a si mesmo. Gerald não costumava tomar a iniciativa

daquela maneira quando estavam juntos, mas ele nem havia notado a presença da moça toda coberta ao lado de lady Souden, imóvel como uma estátua.

— Ah, esta é a srta. Brown, minha dama de companhia. Lady Charlotte, a senhora está na capital para a Celebração da Paz?

— Sim. Tivemos de alugar uma residência, já que Rosthorne House já não está disponível.

— A senhora sabe que se tivesse me avisado com antecedência eu teria mandado preparar os quartos de hóspedes, tia — respondeu Nathan.

— Na época do meu irmão, os quartos estavam sempre preparados e prontos para me receber.

— Por favor, mãe, a casa ficou fechada por mais de um ano — interveio Gerald Appleby. — Nathan não esperava vir à capital neste verão... Não é, primo?

— Não, não esperava. Por isso, mandei limpar e arrumar somente os cômodos da casa que pretendia usar.

— Por sorte, meu assistente conseguiu reservar uma casa em Cavendish Square — disse lady Charlotte para Lydia. — Com tantos visitantes na cidade nesta temporada, havia muito poucas que se adequassem. Bem diferente de Bath, é claro, onde tenho minha própria residência...

— Mãe, haveria muitas casas boas se a senhora não fizesse questão de ter tantos criados à sua volta. — Gerald virou-se para os demais, com um brilho bem-humorado nos olhos. — Imaginem a incumbência, o pobre rapaz tinha de encontrar uma casa que tivesse não só quartos suficientes para a criadagem de minha mãe como também uma estrebaria e acomodações para o cocheiro e o cavalariço!

— Gerard, como esperava que eu me locomovesse na cidade sem minha carruagem?

— A carruagem está bem, mamãe, mas a senhora não precisava do cavalariço. A senhora, não anda mais a cavalo.

— Harris trabalha para mim desde que eu era menina. Ele vai comigo a todos os

Page 16: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

16

lugares aonde vou. — Só fico pensando se ele não gostaria de umas férias — observou Gerald, mas a

mãe já não o escutava mais. — Dei instruções ao meu assistente para que encontrasse um lugar que fosse o

melhor do melhor — declarou ela. — E acho que ele não se saiu tão mal. A atenção de Nathan começou a divagar enquanto as damas falavam sobre a

iminente chegada dos dignitários estrangeiros. Gerald, ele notou, estava concentrado em flertar com a estranha dama de companhia de lady Souden. Enquanto a mãe dele especulava sobre a mais recente conquista da grã-duquesa de Oldemburgo, Gerald estava debruçado na parte lateral da carruagem, fazendo comentários audaciosos. A pobre moça parecia estar sem jeito e constrangida.

Nathan tentou atrair a atenção de Gerald e fazer um sinal para que parasse. Mas que coisa, por que aquele moleque não conseguia se comportar? Nathan

apertou os dedos em torno das rédeas. Precisava parar com aquele hábito ridículo de ver Gerald como um garoto. Ambos tinham a mesma idade, 28 anos, mas o primo não servira dez anos no Exército, uma experiência que, segundo Gerald, havia deixado o primo calejado e cínico. Era muito possível que sim, mas estava claro que a moça na carruagem não estava gostando nada das atenções de Gerald.

Alheio ao desconforto do primo, Gerald inclinou-se ainda mais e estendeu a mão, quase tocando o véu que cobria o rosto da jovem.

— Primo, está indo longe demais! A voz de Nathan cortou o ar entre eles. Era o tom que ele usava com os recrutas e

surtiu efeito. Gerald afastou a mão. — Peço-lhe perdão, senhorita. — Nathan dirigiu-se à figurinha rígida sentada ao lado

de lady Souden. — Meu primo, às vezes, perde um pouco a noção... Ela não respondeu, limitando-se a acenar com a mão enluvada. Nathan lançou um

olhar de advertência ao primo, que recuou imediatamente, com expressão séria. — De fato, srta. Brown, Rosthorne tem razão. Eu ultrapassei os limites e peço-lhe

desculpas. — Em seguida, ele voltou a sorrir. — A senhorita não quer falar? Por favor, eu lhe peço, tenha pena de mim... Não vou conseguir descansar enquanto não disser que me perdoa. Srta. Brown, eu lhe imploro...

Nathan não podia deixar de admirar a tenacidade do primo. — Eu o perdôo, Sir. Vamos esquecer esse assunto. — Nathan ergueu bruscamente

a cabeça. Aquela voz, com aquele timbre melodioso, lembrava-lhe alguma coisa, trazia uma recordação fugaz... Com certeza, ele já a ouvira antes. Ele olhou para a moça, tentando ver as feições por trás do espesso véu de renda que lhe cobria o rosto.

— Desculpe, senhorita... — Ele franziu ligeiramente a testa. — Nós já não... — Sou eu quem lhe pede desculpas, milorde — interrompeu lady Souden com seu

sorriso radiante. — Parece que estamos congestionando a passagem. Precisamos prosseguir. Com sua licença...

Não havia outra a coisa a fazer que não se afastar e deixar a carruagem passar. — Bem, bem, é preciso admitir que lady Souden é uma pessoa encantadora —

declarou lady Charlotte, benevolente. — Ela pretende dar um baile daqui a algumas semanas. Eu disse a ela que vou comparecer. E você também deve ir, Gerald.

Gerald sorriu para Nathan. — Não faz muito o meu gênero, mamãe, mas se a senhora insiste... E você, primo? Nathan deu de ombros. — Se eu for convidado, irei, penso eu. — Seu pensamento voltou para a figura de

rosto coberto na carruagem. Alguma coisa persistia em incomodá-lo, algo com que ele não conseguia muito bem atinar. — Quem era a moça que estava com lady Souden, tia? A srta. Brown... A senhora a conhece?.

— Lady Souden disse que era sua dama de companhia — respondeu lady Charlotte.

Page 17: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

17

— Deve ser alguma parenta pobretona. — Ela voltou-se para o filho. — E sendo assim, é bom que ela não se interesse por você, Gerald.

— Eu, hein... — retrucou Gerald, sorrindo. — Eu só estava sendo amável, mamãe. — É melhor ficar indiferente, como seu primo — insistiu lady Charlotte, — Ora, mamãe, não consigo ficar sério nem a metade do que Nathan fica! — Gerald

riu. — É impossível... A carranca dele é capaz de azedar uma caneca de leite! Nathan não pôde deixar de sorrir. — Bem, então tente, ao menos, um meio-termo entre a minha seriedade e a sua

cordialidade exacerbada, primo. — Exatamente — concordou lady Charlotte. — Você precisa se lembrar da sua

criação e posição social, meu filho. Quando a carruagem começou a andar, Gerald revirou os olhos na direção de

Nathan. — Como se eu pudesse me esquecer disso ao menos por um segundo... — PRONTO, EU acabei ficando cara a cara com ele. — Felicity fechou a porta do

cômodo pequeno, porém aconchegante, que era o seu quarto e encostou-se nela. Suas pernas ainda tremiam, e ela fechou os olhos. A imagem de Nathan surgiu em sua mente, tão familiar, tão querida... Protegida pelo véu, ela o observara detalhadamente enquanto as duas carruagens estavam paradas. Estudando-o de perfil, ela o achara ainda mais bonito do que quando haviam se conhecido... Estava mais magro, mais sério. Mesmo quando viu novamente a cicatriz do lado esquerdo do rosto, não ficou horrorizada. Refletiu que era uma sorte que o ferimento não tivesse atingido o olho. A visão dele estava mais aguçada que nunca, e por um momento, ela tinha se encolhido atrás do véu, convencida de que ele a reconheceria. Mas pior ainda que o medo de ser identificada foi o desapontamento que ela sentiu quando ele se dirigiu a ela, pois era evidente que Nathan não fazia a menor idéia de quem Felicity era, e sua indiferença a atingiu como um golpe físico.

— Já foi — ela repetiu e suspirou. — Agora que eu o vi de perto, estou preparada. ENTRETANTO, ESTAR preparada não evitava que Felicity se sentisse ligeiramente

nauseada quando, mais tarde, Sir James anunciou alegremente que ela deveria acompanhar sua esposa à residência de lady Somerton naquela noite.

— Eu sei que prometi comparecer — disse ele —, mas estou atrasado com o planejamento para a chegada do czar Alexander a Londres. Preciso apresentar um relatório a Carlton House amanhã de manhã.

— Nesse caso, você deve ficar em casa e terminar — respondeu Lydia calmamente. — Mas não há necessidade de Felicity me acompanhar. Lady Somerton é uma velha amiga...

Felicity sentiu o olhar de Sir James voltar-se para ela e apressou-se a dizer: — Eu gostaria muito de ir junto, lady Souden. Lydia arqueou as sobrancelhas. — Gostaria? — Claro — Felicity mentiu valentemente. — Lembra-se de que me mostrou o convite

de lady Somerton e disse que ela contava com a presença de lorde Byron para o recital? — Mas eu pensei que você não gostasse de Byron — protestou Lydia. — Não aprovo muito o estilo de vida dele — insistiu Felicity —, mas sua poesia é

extraordinária. A amiga olhou para ela, surpresa. Felicity manteve a postura serena, consciente de

que Sir James a observava, aprovador. Relativamente encorajada com isso, ela subiu ao

Page 18: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

18

quarto depois do jantar para se trocar. E se Nathan estivesse lá? Felicity sabia que esta seria a primeira pergunta que Lydia lhe faria, assim que estivessem a sós. Ela não tinha uma resposta, apenas rezava para que o conde não fosse um amante de poesia.

A RESIDÊNCIA de lady Somerton, em Londres, era uma casa alta e estreita. Estava

toda iluminada e bastante cheia, com o burburinho de conversas e o som de uma música suave ao fundo. Felicity seguiu Lydia até o primeiro andar, onde ficavam as salas de recepção, conforme a última subia as escadas, com as penas de avestruz esvoaçando na cabeça. Ela foi imediatamente cercada por pessoas amigas e conhecidas.

Felicity tratou de se manter bem próxima. Com seu vestido cinza simples, ela não atraía mais do que um ou outro olhar de relance dos cavalheiros que competiam pela atenção de Lady Souden e nenhum olhar das damas que se aproximavam para mostrar que conheciam uma das mais elegantes personalidades da sociedade.

Em tom bem-humorado, lady Somerton reclamou por Lydia ter chegado tão tarde e, em seguida, a conduziu até um espaçoso salão onde a declamação de poesia estava para começar. Felicity as seguiu, mas a aglomeração era tal que ela não conseguiu se sentar ao lado da amiga e foi obrigada a procurar um lugar vago no fundo do salão. O que não deixava de ser conveniente, pois dali ela podia observar as pessoas sem ser notada.

A frágil esperança de que Nathan não comparecesse foi logo frustrada, quando ela o viu entrar na sala. A princípio, pensou ter imaginado uma mudança na atmosfera quando ele entrou, mas logo em seguida, ouviu um murmúrio entusiasmado ondular pelo ambiente. Uma jovem sentada à sua direita abanou o leque e murmurou:

— Santo Deus, mamãe! O conde de Rosthorne chegou. — Então trate de se aprumar, Maria — respondeu uma senhora corpulenta de

turbante na cabeça. — Não vai atrair a atenção dele com essa postura desmazelada. Sente-se direito, meu amor, ele está observando as pessoas.

A moça abanou o leque com mais vigor. — Ah, mamãe, ele é tão sério, tão austero... Sinto medo dele! — Bobagem, filha, é só o efeito da cicatriz. Vamos, sorria... Ah, que pena, lady

Somerton está se afastando com ele! Mas não faz mal, Maria, enquanto ele estiver aqui, ainda há esperança. Erga o rosto. E não faça essa cara assustada! Você precisa ter desenvoltura se quiser se tornar condessa.

Felicity sentiu uma espécie de calafrio no coração. Seria por esse motivo que Nathan viera à capital? Para arranjar uma esposa? Era bem possível, pensou, desalentada. Ela tinha feito o que podia para desaparecer, cinco anos antes, convencida de que ele havia se esquecido dela na inevitável confusão de retirar de Corunha o Exército e seus seguidores.

A DECLAMAÇÃO se arrastou noite adentro. Felicity pouco ouviu da poesia, com sua

atenção fixa em Nathan. A certa altura, ele olhou em volta, como se pressentisse que estava sendo observado, e ela recuou o quanto pôde para se esconder nas sombras. Quando fizeram um intervalo no recital, Felicity notou que ele foi imediatamente rodeado por um considerável número de damas, todas ansiosas por sua atenção. A senhora de turbante não perdeu tempo, carregou a filha até o ajuntamento de mulheres e logo a estava apresentando a ele. Felicity gostaria de que fosse sua mão que ele levava aos lábios, de que suas palavras que o fizessem sorrir.

Ela se forçou a desviar o olhar. Não lhe traria nenhum benefício ficar devaneando sobre algo que jamais aconteceria.

Felicity avistou Lydia no centro de um animado grupo de damas, que falavam e riam sem parar, e vendo que estavam consideravelmente distantes de Nathan, levantou-se dá

Page 19: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

19

cadeira e foi até lá. Ao vê-la aproximar-se, lady Souden pediu licença com um sorriso simpático e afastou-se do grupo para segurar o braço de Felicity.

— E então, minha querida, o que está achando? — Ela riu baixinho. — Eu nunca ouvi poemas tão execráveis.

— Está assim tão ruim? Eu não prestei muita atenção... — Terrível, meu bem — murmurou Lydia, enquanto sorria de longe para a anfitriã. —

Rosthorne está aqui, você o viu? Felicity quase riu alto. Ela não tinha olhos para ninguém mais! — Sim. Mas ele não me viu, eu fiquei escondida. — Mas você está nervosa. — Lydia afagou as mãos da amiga. — O que acha se eu

me desculpar e formos embora? Se lorde Byron tivesse vindo, eu até gostaria de ficar um pouco mais, mas do jeito que está, prefiro ir para casa e fazer companhia ao meu querido James.

Felicity assentiu. Ela olhou para Nathan, na outra extremidade do recinto. Por um lado, gostaria de ficar e prolongar a tortura de observá-lo, mas sabia que isso não fazia o menor sentido. Por isso, aceitou a sugestão de Lydia e seguiu a amiga para fora da sala.

As duas estavam no hall, esperando a carruagem, quando Lydia estendeu o braço e levantou o capuz do manto de Felicity.

— Cubra-se — ela sussurrou. — Rosthorne está vindo para cá. — Ela deu uma palmadinha no ombro de Felicity para tranquilizá-la. — Milorde.

Felicity deu um passo para trás, afastando-se um pouco. — Já vai embora, milady, tão cedo? — Já, milorde. — Lydia sorriu. — Chega de poesia por hoje. Os cantos da boca de Nathan se curvaram num sorriso. — Não tiro a sua razão, milady! Eu esperava que Sir James também viesse. — Infelizmente ele está atarefado com o planejamento para a visita do czar. Tenho

certeza de que, quando chegar em casa, vou encontrá-lo ainda debruçado na escrivaninha.

— Bem, milady, se não tem escolta para voltar para casa, por favor, permita que eu a acompanhe a Berkeley Square...

Lydia deu uma risadinha. — Ah, não, milorde, longe de mim fazê-lo sair da casa de lady Somerton! — Se a sua opinião sobre o recital é a mesma que a minha, vai concordar que a

acompanhar será uma distração muito bem-vinda. O sorriso jovial que emoldurou as palavras foi como um golpe no coração de Felicity.

De repente, Nathan parecia muito mais novo, muito mais o lindo herói dos seus sonhos. — Mas eu não posso aceitar — Lydia falou, cordialmente. — Temos os lacaios,

portanto não há necessidade de lhe darmos esse trabalho, milorde. — Mas não será trabalho nenhum — insistiu lorde Rosthorne, encaminhando-se ao

lado dela para a porta. — Na verdade, vem a calhar, pois preciso mesmo falar com Sir James e, como ainda é cedo, não creio que ele vá se opor a me receber... Desculpe, srta. Brown, a senhorita disse alguma coisa?

-— Ela tossiu — Lydia apressou-se a dizer. — Mas realmente, milorde, eu insisto, não há necessidade...

— Milady, quem insiste sou eu. Nathan ofereceu-lhe o braço, e após uma breve hesitação, Lydia o aceitou e permitiu

que ele a conduzisse até a carruagem que já aguardava. Felicity os seguiu de perto, consciente de uma enervante e ilógica tentação de esticar as mãos e agarrar as bordas da casaca do fraque de Nathan.

NATHAN FORA sincero em seu oferecimento. Estava contente por ter um pretexto para

Page 20: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

20

se ausentar da soirée de lady Somerton. Não pretendia mesmo ficar lá muito tempo, e a oportunidade de conversar rapidamente com Sir James lhe pouparia tempo no dia seguinte.

Ele ajudou lady Souden a subir à carruagem e voltou-se para a acompanhante. Sentiu a delicada mão enluvada tremer em seus dedos, o que não o surpreendeu. A srta. Brown parecia ser uma pessoa bastante nervosa e tímida. Ela nem mesmo ergueu o rosto para agradecer quando ele a ajudou a embarcar.

O trajeto para Berkeley Square era curto, e lady Souden iniciou uma conversa ininterrupta, a qual Nathan acatou com prazer, embora sua atenção constantemente se desviasse para a dama de companhia, sentada imóvel e em silêncio no canto. Mesmo envolta no manto e com o grosso capuz na cabeça, havia algo familiar naquela moça, na voz, na postura... Quem era ela? Por que ele tinha a sensação de que a conhecia?

Nathan pensou nas mulheres que havia conhecido na época do Exército e reprimiu uma risadinha. Talvez uma das prostitutas que ele havia conhecido tivesse vindo para a Inglaterra e decidido se tornar respeitável. E se fosse isso, era muito provável que tivesse escolhido um sobrenome comum, como Brown! Ele olhou novamente na direção da moça miúda e magrinha sentada à janela. Não, não era isso. Sua intuição lhe dizia que aquela fedelha não era uma meretriz desgarrada.

Pelo que ele pudera observar, ela estava mais para freira do que qualquer outra coisa.

Nathan deu-se conta de que lady Souden ainda falava com ele e interrompeu a tagarelice nervosa para observar, com um toque de impaciência:

— Receio que minha presença a deixe pouco à vontade, milady. — N-não... De j-jeito nenhum — gaguejou ela. — Eu lhe asseguro que não tenho intenção nenhuma de ultrapassar os limites do

cavalheirismo. Além disso, a senhora tem a srta. Brown aqui como sua acompanhante. — Ah, não, não, o senhor me interpretou mal, milorde — insistiu lady Souden. —

Se... Se eu pareço estar um pouco ansiosa é porque... Porque estou com dor de cabeça! Nathan ficou grato pelo interior escuro da carruagem, pois sabia que não conseguiria

disfarçar a descrença em sua expressão. Alguma coisa estava perturbando lady Souden, mas se ela preferia mentir para ele a explicar, paciência. Fazia já algum tempo que ele havia desistido de compreender as mulheres.

— Eu lamento — respondeu calmamente. — Mas sendo assim, talvez seja melhor não falarmos mais durante o resto do percurso.

O silêncio desconfortável que se seguiu foi misericordiosamente curto. Quando eles chegaram a Berkeley Square, Nathan ajudou lady Souden a descer e acompanhou-a até a porta, onde ela lhe agradeceu graciosamente.

Assim que instruiu um dos lacaios a acompanhá-lo até o escritório de Sir James, ela agarrou a mão da dama de companhia e se afastou, apressada.

Felicity não disse nada enquanto Lydia praticamente a arrastava escadas acima e para dentro de seus luxuosos aposentos. Depois de se certificar de que estavam sozinhas, Lydia encostou-se contra a porta fechada e exalou um longo suspiro.

— Mas que situação! Quando Rosthorne se ofereceu para nos acompanhar, eu não sabia para onde olhar.

— Eu percebi — respondeu Felicity, com um sorriso relutante. — Nunca vi você tão agitada.

Lydia a fitou, com ar cansado.— Ah, Fee, isso é tão desagradável! Não me sinto bem enganando um cavalheiro como Rosthorne. Não quer acabar com essa farsa logo?

Felicity afastou o capuz para trás. — Não posso, Lydia. Você sabe que eu não posso. — Ela se virou e baixou a

cabeça, enquanto desamarrava os cordões do manto. Muita coisa havia acontecido, coisas que nenhum dos dois conseguiria perdoar. Ela suspirou. — Eu morri para ele. É

Page 21: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

21

melhor assim. Lydia a segurou pelos ombros e forçou-a a virar-se. — Não, não é melhor assim! — retrucou com veemência. — Você não deu a ele a

oportunidade de se explicar. — Não há nada a explicar. Ele estava perdidamente apaixonado por outra mulher. —

Felicity se desvencilhou das mãos de Lydia. — Ele me esqueceu. Deixe como está, Lydia, acabou.

— Se você não quer que ele saiba, então é porque não acabou. Mas eu não vejo como você vai conseguir levar essa encenação adiante. O conde não é nenhum tolo, ele vai acabar reconhecendo você, mais cedo ou mais tarde.

Felicity suspirou. — Vou tomar todo o cuidado para que ele nunca precise saber que estou em

Londres. — Um sorriso triste curvou seus lábios. — Afinal, há muitas moças bonitas disponíveis para distraí-lo.

— Nesse caso, é melhor você voltar para Souden. Ficará mais segura lá. — Mas quem vai cuidar de você? Que bela dama de companhia eu seria se fosse

embora agora?! Não, vou cumprir minha função, Lydia, e acompanhar você sempre que Sir James não puder. Além do mais, não é provável que eu volte a ver lorde Rosthorne muitas vezes mais... Sir James irá com você à maioria dos bailes e concertos da temporada, e nessas ocasiões, eu não precisarei pôr o nariz para fora de casa.

Lydia não pareceu ficar inteiramente satisfeita com essa resposta, mas Felicity foi irredutível.

— Está bem então, se você tem certeza de que é isso o que quer — disse ela. — Toque a sineta, Fee. Vamos tomar o chocolate quente aqui no meu quarto. Eu gostaria de trocar de roupa e ir ao encontro do meu marido, mas Rosthorne pode estar com ele ainda e acharia estranho minha dor de cabeça ter acabado tão depressa!

UMA HORA mais tarde, Felicity foi para seu quarto. Ainda não era meia-noite, mas ela

estava muito cansada. A tensão por ter ficado tão perto de Nathan fora desgastante, e ainda assim, ao deitar a cabeça no travesseiro, ela se deu conta de que não perderia uma única chance de vê-lo, sempre que pudesse. Era doloroso, sem dúvida. Ele a conhecia somente como senhorita Brown, a dama de companhia de lady Souden, e a indiferença dele a fazia sofrer, mas apesar disso, havia um certo conforto em observá-lo, em estar perto dele. Era preferível à solidão e à saudade que ela havia sentido nos últimos cinco anos.

QUANDO A primeira claridade da aurora se infiltrou para dentro da suíte principal de

Rosthorne House, Nathan empurrou as cobertas e sentou-se na cama, esfregando as têmporas. Por que cargas d'água, depois de tanto tempo, ele fora sonhar com Felicity Bourne...?

Ele se levantou, foi até a janela e pressionou a testa na vidraça gelada. A vista que ele tinha dali era agradável, pois abrangia uma boa porção do Green Park, mas naquela, manhã, Nathan não enxergava nada; estava relembrando aqueles dias agitados em Corunha, cinco anos antes. Ele tinha sido enviado à terra firme por Sir David Baird, a fim de mediar as delicadas negociações com a junta espanhola local e tentar persuadi-la a autorizar o desembarque das tropas britânicas. Foi um trabalho moroso e frustrante, que exigia toda a sua atenção, até que, certo dia, ele dobrou uma esquina e viu três homens atacando uma moça.

Felicity. Ele a achara linda, mesmo com o cabelo dourado caindo em desalinho, sobre os ombros e os olhos brilhando de indignação.

Page 22: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

22

Bastara um olhar para ele compreender o que estava acontecendo, e quando os sujeitos se atreveram a pôr as mãos nela, ele interferira. Após uma breve contenda, os homens fugiram, deixando que Nathan recebesse sua recompensa, uma expressão de gratidão naqueles enormes olhos cinzentos.

— E então, senhorita, para onde posso levá-la? — Eu não sei... Quero dizer, não tenho para onde ir aqui em Corunha. — Ela fez

uma pausa. — Eu preciso ir para Madri. Tenho conhecidos lá. Nathan hesitou. Sem um governo efetivo na Espanha, não era aconselhável viajar

para Madri sem companhia, especialmente uma menina jovem e frágil como aquela. — Depois do que acabou de acontecer, talvez seja melhor eu não viajar sozinha. A voz melodiosa e a serenidade com que ela falou despertaram todos os instintos

cavalheirescos de Nathan. Ele gostaria de dizer que ela não precisava se preocupar porque nunca mais precisaria ficar sozinha. A própria reação dele o surpreendeu, e ele deu um passo para trás.

— Em hipótese nenhuma, a senhorita deve viajar para fora da cidade — declarou, incisivo.

Ela voltou-se para ele. — Mas o que eu vou fazer então? Não tenho para Onde ir, não tenho dinheiro... —

Ela indicou a peliça rasgada e amarrotada. — E agora não estou nem mesmo apresentável.

— Hookham Frere, o emissário britânico, está de partida para Madri nos próximos dias — disse Nathan. — Eu lenho certeza de que ele a levará de bom grado com seu comite. Permite que eu a leve até ele?

O alívio no semblante dela era evidente. — Sim, muito obrigada, é muito gentil de sua parte. Nathan dirigiu a ela o que esperava que fosse um sorriso tranquilizador. Tinha pouca

experiência com moças indefesas, e aquela, em especial, o perturbava. Quanto mais cedo conseguisse levá-la para a relativa segurança do comitê diplomático, melhor. Ele ofereceu o braço, e ela pousou a mão enluvada em sua manga, não sem certa relutância. Nathan reparou que a cabeça dela mal chegava ao seu ombro.

— Como acabou ficando sozinha, srta. Bourne? — Ah, isso... Eu... — A voz dela sumiu, e Nathan sentiu-a apoiar o peso em seu

braço. — Srta. Bourne, a senhorita está bem? — Perdão, eu... Quero dizer, é que faz alguns dias que eu não como nada... Nathan percebeu que ela estava quase desmaiando e refez os planos dele. — Se puder andar um pouquinho mais, eu tenho acomodações aqui perto, no

Cantão Grande. Deixe-me levá-la até lá, e depois que a senhorita se alimentar e descansar, nós prosseguiremos.

Um leve aceno de cabeça foi a única resposta que Nathan recebeu. Ele passou o braço sobre os ombros de Felicity e conduziu-a pelas vielas estreitas até uma casa elegante, cuja porta dupla e janela com venezianas eram sombreadas por um miradouro, um amplo terraço envidraçado no andar de cima. Ele avistou seu imediato sentado perto da porta, fumando cachimbo.

— Sam, vá chamar a senora Benitez, rápido! — Não posso fazer isso, major — respondeu Sam com voz arrastada. — Ela viajou,

foi passar uns dias com a filha. Ela mesma o avisou, hoje de manhã, lembra-se? — Droga, é verdade. Felicity gemeu baixinho e desfaleceu, caindo em cima dele. Com agilidade, ele a

pegou no colo e surpreendeu-se com a leveza do corpo dela e com o modo como Felicity se encaixava em seus braços. Alguma coisa se agitou em seu íntimo.

— Quem é a garota, Sir? — indagou Sam, apontando o cachimbo para Felicity.

Page 23: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

23

Nathan retorceu os lábios num sorriso cínico. — Uma donzela em apuros, Sam. Abra a porta para mim, rapaz.

— O senhor não vai levá-la para o seu quarto! — E para onde espera que eu a leve? — Bem, tem as freiras... — Não. — Os braços de Nathan se apertaram mais ao redor de Felicity. Ele se

lembrou da expressão dela quando se voltara para ele. Era um misto de confiança, dependência e algo mais, uma conexão que ele não sabia explicar, mas que também não podia ignorar. — Não — repetiu. — Eu mesmo vou cuidar dela.

Capítulo Três

— MINHA querida, você pode ficar sossegada — disse Lydia à mesa do desjejum,

alguns dias depois. — James e Rosthorne foram para Dover recepcionar os visitantes reais e trazê-los para Londres. O príncipe regente decidiu fazer um cortejo real pela cidade até o Palácio St. James, e James já reservou quartos para nós assistirmos de camarote, com todo o conforto.

Felicity recebeu a notícia com sentimentos controversos. Deveria estar aliviada por não haver possibilidade de encontrar Nathan, pelo menos por algum tempo, mas em vez disso, o que sentia era desapontamento.

— Sir James e o conde vão fazer parte do cortejo? — Ela tentou falar com tom de indiferença, mas corou quando ergueu os olhos e viu Lydia sorrindo.

— Vão sim. James me contou que o príncipe fez questão de que Rosthorne usasse uniforme de gala... Ele vai ficar tão lindo que as moças vão desmaiar!

Felicity olhou para sua xícara de café com a testa franzida. — Que desmaiem! — retrucou irritada. — Eu não ligo nem um pouco! Mas quando chegou o dia, Felicity não conseguia negar para si mesma que estava

inquieta e nervosa quando ela e Lydia se sentaram à janela do quarto alugado. — As pessoas começaram a chegar de madrugada — observou Lydia. — Todo

mundo quer ver o imperador. Improvisaram até uma arquibancada em alguns trechos do percurso, mas ainda

acho que daqui teremos uma visão mais privilegiada. Houve uma súbita agitação na multidão lá embaixo. — Eles já estão vindo — declarou Lydia, debruçando-se no peitoril da janela aberta. Felicity podia ouvir o rufar dos tambores. Uma ovação se elevou no ar quando a

cavalaria se aproximou, numa longa coluna de cores brilhantes e plumas esvoaçantes. Felicity olhava, fascinada com as intermináveis fileiras de soldados e dignitários que desfilavam lá embaixo.

— Ali está Prinny, o príncipe regente! — exclamou Lydia, apontando. — E aquele deve ser o rei da Prússia.

FELICITY OLHOU para baixo, para o homem ereto e altivo de calça branca e botas

lustrosas. O semblante dele estava muito sério, mas ela não pôde deixar de refletir que a postura dele era muito mais regia do que a do corpulento príncipe regente.

Lydia segurou seu braço.

Page 24: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

24

— Olhe, James está ali! — Ela agitou seu lenço para um grupo de cavaleiros que vinha logo atrás do séquito real e foi recompensada quando Sir James olhou para cima e ergueu o chapéu para ela. — Ah, ele é tão lindo...! E ele fica bem montado a cavalo, não acha?

Felicity balbuciou uma resposta. Ela estava vasculhando as colunas coloridas, ansiosa à procura de Nathan. O que era mesmo que Sir James tinha dito sobre as funções deles na escolta? Nathan iria acompanhar o imperador da Rússia.

— Ainda não vi o czar — murmurou, esquadrinhando a multidão com os olhos. — Talvez ele tenha seguido em outra direção. — Lydia riu. — Eu não me

surpreenderia se a irmã dele o tivesse feito ir diretamente ao encontro dela no Hotel Pulteney. James disse que ela não gosta do príncipe regente!

Felicity sentiu uma súbita frustração e repreendeu-se em silêncio. Durante cinco longos anos, havia se empenhado em esquecer Nathan Carraway... Agora fazia apenas alguns dias que não o via e já estava sofrendo de saudade!

Ela olhou para a parada colorida que passava lá embaixo e tomou uma decisão. Iria falar com ele. Na primeira oportunidade, ela se revelaria para Nathan. Observaria atentamente a reação dele. Se ele demonstrasse não querer nada com ela, então pediria a Lydia que a deixasse voltar para Souden e se empenharia em recomeçar sua vida, como se Nathan Carraway não existisse. Mas talvez... Apenas talvez... Felicity abraçou a si mesma, tentando não afastar o fiozinho de esperança que se recusava a extinguir-se.

Qualquer que fosse a decisão que ela viesse a tomar, certamente seria melhor do que aquela vida falsa que estava vivendo. A seu lado, Lydia deixou escapar um suspiro de impaciência.

— Parece que o czar não vai aparecer mesmo. Que maçada! Mas nós vamos descobrir a verdade hoje à noite. — Ela suspirou novamente. — Tantos rostos novos, e James espera que eu conheça todos eles, pois vai convidá-los para o nosso baile! Bem, Fee, eu conto com você para me lembrar deles, assim você me ajuda se eu esquecer algum nome!

— JAMES, O que houve? Por que o czar não apareceu? — Lydia conduziu o marido

para sua saleta particular. — E não adianta dizer que precisa ir jantar em Carlton House. Você não sai daqui enquanto não nos contar tudo. Não é, Felicity?

— Se puder nos conceder cinco minutinhos, Sir James, ficaremos gratas — apoiou Felicity.

O tom de voz calmo disfarçava a ansiedade dela para saber por que Nathan não participara do cortejo. Sir James deixou-se puxar para o sofá, ao lado da esposa.

— Ah, bem... Então vocês assistiram à passagem do cortejo... Lydia sacudiu o braço dele. — Você sabe muito bem que sim, pois nos viu na janela quando passou. O que

aconteceu com o czar? — Bem... — Sir James balançou a cabeça. — Nós viemos bem de Dover até aqui.

Havia pessoas acenando e dando vivas nas ruas e das janelas, mas conforme fomos chegando ao centro de Londres, a multidão cresceu tanto que os membros da realeza ficaram apreensivos. — Ele tentou disfarçar um sorriso, mas falhou. — Eles não estão habituados com a turba, entende? Os populares queriam aclamar seus heróis, se pudessem teriam desatrelado os cavalos e puxado eles mesmos as carruagens pelas ruas, mas os monarcas não gostariam nem um pouco disso. E ainda por cima, alguém atirou no czar.

— Não! — Sim, meu amor. Só que a bala atingiu Rosthorne, em vez do czar.

Page 25: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

25

— Ele... Ele ficou ferido? — quis saber Felicity, levando as mãos ao rosto. Sir James sorriu.— Nada, a bala apenas arrancou o chapéu da cabeça dele! Não

tive chance de falar com ele, pois ele precisou acompanhar o imperador, que quis ir ao encontro da irmã.

— No Pulteney. — Lydia meneou a cabeça. — Você disse que ele provavelmente iria querer seguir para lá.

— Eu disse? — Sir James levou a mão dela aos lábios. — Que memória você tem, minha querida! Bem, eu espero que ele esteja bem no hotel. Lorde Chamberlain, duas fanfarras e não sei quantas pessoas mais estavam a postos para recebê-lo desde a madrugada, e eis que Rosthorne envia uma mensagem avisando que o czar Alexander chegou à cidade pelo trevo de Hyde Park Comer e que então havia decidido ficar no Pulteney. Prinny ficou furioso, é claro, mas não teve outra escolha que não aceitar. E por isso que preciso ir agora, meu amor. Sua Alteza não está no melhor dos humores, então é bom que eu não me atrase!

— Pobre James — murmurou Lydia, beijando-o no rosto. — Acho que essas celebrações pela paz serão, tudo, menos pacíficas! Mas confesso que tenho curiosidade em conhecerão imperador da Rússia. Será que ele vai ao baile de lady Stinchcombe, amanhã à noite?

— Bem, ele foi convidado, sem dúvida. Resta ver se Rosthorne vai conseguir convencê-lo!

Felicity ergueu o rosto para se deparar com Lydia lhe lançando um olhar pesaroso. — Eu sinto muito, Fee, mas vou ter de lhe pedir que vá comigo amanhã outra vez...

Não vou conseguir esperar James terminar suas infindáveis reuniões antes de ir ao baile. Felicity assentiu com uma inclinação de cabeça. No fundo, estava ansiosa para se

certificar de que Nathan não havia sido ferido, e mesmo que não fosse isso, estava ansiosa para vê-lo de qualquer maneira. A noite seguinte iria demorar uma eternidade para chegar.

A CARRUAGEM saiu de Piccadilly e enveredou por uma rua pavimentada até parar

diante de uma charmosa casa de tijolo aparente, rodeada por um amplo e lindo jardim. Lady Stinchcombe cumprimentou-as calorosamente.

— Não precisamos fazer cerimônia nesta noite — anunciou ela, com jovialidade. — O imperador mandou lorde Kosthorne representá-lo, com um pedido de desculpas, mas vamos nos divertir bastante, mesmo sem a presença dele. Fiquem à vontade se quiserem passear no jardim, embora a iluminação só vá fazer efeito mesmo depois que escurecer.

— Vamos esperar até mais tarde, então, para conhecer os jardins — sugeriu Lydia. Ela entrou e se dirigiu à sala de jogos. — Cuidado, Fee — murmurou, parando no umbral da porta. — Rosthorne está aqui.

Grata pelo aviso, Felicity permaneceu na sombra de Lydia enquanto a seguia para dentro da sala. Ela avistou o conde quase no mesmo instante. Ele estava jogando pichei com outro cavalheiro, com um semicírculo de damas deslumbradas espiando e competindo pela atenção dele.

— Pobre homem, não pode nem sequer jogar em paz sem um bando de mulheres a perturbá-lo.

Ao ouvir o comentário de Felicity, um cavalheiro que estava perto dela riu baixinho. — Rosthorne não se deixa perturbar por nada! Mesmo levando um tiro, nem um

único fio de cabelo dele sai do lugar. Algum idiota, por pouco, não estourou a cabeça dele ontem.

— Sim, eu fiquei sabendo — interveio um homem de peruca branca cacheada e sobrecasaca desbotada. — Pontaria bem ruim, não acha, para mirar o czar e acertar em

Page 26: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

26

Rosthorne? Quem foi? Algum lunático bêbado? — Eles não o pegaram — respondeu o primeiro homem. — Ele fugiu no meio da

multidão. Rosthorne não se abalou, continuou firme ao lado do czar. — Ele é muito corajoso — murmurou Lydia. O homem de peruca deu de ombros. — Rosthorne é um soldado. Para ele, isso não é nada. Mas o chapéu ficou

destruído, o que é uma pena. Era de ótima qualidade. Felicity sentiu uma ponta de orgulho. Era óbvio que Nathan não se acovardaria com

a ameaça de perigo. Ele não tinha medo de nada. Lydia segurou seu braço. — Ainda assim, não vamos colaborar para perturbá-lo ainda mais — disse ela. —

Vamos para a sala de música. — Ela afagou a mão de Felicity. — O que foi, minha querida? Você está tremendo...

— Estou um pouco chocada com essa violência — sussurrou Felicity. — Não ligue para mim, Lydia, por favor... Vamos lá.

Ela estava sendo irracional, Felicity disse para si mesma. Nathan passara por inúmeros perigos quando estava no Exército... Por que aquele incidente sem conseqüências a afetava tanto? Ela mordiscou o lábio. Talvez porque ali, em Londres, não fosse comum acontecer esse tipo de coisa. E porque ela ainda gostava dele. Ela olhou para trás, para Nathan, sentado à mesa de jogo.

LYDIA E Felicity entraram na outra sala, onde a srta. Stinchcombe estava tocando

harpa. Quando o número chegou ao fim e as pessoas aplaudiram, Felicity viu Gerald Appleby se aproximando.

— Lady Souden, como vai? E srta. Brown? Está uma bela noite, não? Minha mãe está sentada ali, perto da janela. Posso acompanhá-las até lá? Sei que ela ficará feliz em vê-las.

Ele as conduziu até o outro lado da sala, tagarelando sem parar até chegarem perto de lady Charlotte, que cumprimentou Lydia com um sorriso régio. Para Felicity, ela apenas inclinou a cabeça, quase imperceptivelmente, com um olhar esnobe, antes de começar a conversar com lady Souden.

Felicity virou o rosto para o lado e revirou ligeiramente os olhos. Já ia se afastar, quando Appleby a deteve.

— Está gostando da música, srta. Brown? — Muito, senhor, obrigada. — Eu acho que superestimam a harpa. Prefiro piano — ele continuou, sorridente. —

A senhorita toca algum instrumento, srta. Brown? — Toco piano, um pouquinho. — Ah, todas as moças dizem que tocam "um pouquinho'' mas quando se sentam ao

piano, produzem verdadeiras maravilhas com as teclas! Podemos ter o prazer de ouvi-la tocar nesta noite, senhorita?

— Não, sr. Appleby. Eu não toco em público. — Não? — Ele arqueou as sobrancelhas. — Nunca? Mas por quê? Ora, precisamos

remediar isso imediatamente! — ele exclamou, entusiasmado. Felicity tentou dar um passo para trás, mas encontrou a parede às suas costas. — Não, senhor, é sério... Appleby pegou a mão dela e inclinou-se, sorridente. — Não é o momento para timidez e modéstia, senhorita. Permita-me levá-la até o

piano... — Gerald! — A voz estridente de lady Charlotte o interrompeu. — Gerald, deixe a

garota. Pare de flertar com esse tipo de moça. — Desculpe-me, lady Charlotte, mas a srta. Brown é o mesmo tipo de moça que eu

Page 27: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

27

— apressou-se a dizer Lydia, em defesa da amiga. — Assim espero — retrucou lady Charlotte, inabalável. — Eu não esperaria nada

diferente de uma dama de companhia sua. Felicity viu o rosto de Lydia ficar vermelho e desvencilhou-se de Gerald para segurar

o braço dela. — Vamos ver a iluminação do jardim, milady... — Que mulher insuportável — murmurou Lydia,— enquanto se afastavam. — Ela se

acha melhor que todo mundo!. — Obrigada pela intervenção — disse Felicity. — O sr. Appleby é extrovertido

demais para o meu gosto. — Talvez ele esteja apenas querendo demonstrar seu interesse por você. — Ah, não, Lydia, de jeito nenhum! — Não sei por que, Fee, mas ele ficou bastante interessado em você. — Mas... Como...? Eu não fiz nada para... — Não, nada além de ser encantadoramente tímida. — Lydia riu baixinho. — Você

não precisa fazer nada para atrair a atenção dos homens, meu bem... Você tem um ar de fragilidade que desperta neles o instinto protetor.

Felicity ergueu o queixo. — Mas eu não quero ser protegida! Ah, Senhor... Eu achei que se usasse roupas

simples e discretas e me mantivesse na retaguarda, ninguém prestaria atenção a mim. — E você estava certa... Em geral, é assim — concordou Lydia. — O sr. Appleby

deve estar querendo compensar a maneira como a mãe dele tratou você. — É possível — refletiu Felicity. Ela olhou para a amiga, com um ar levemente

sorridente. — O que não deixa de ser um pouco humilhante! Lydia riu. — Tem razão! Más a culpa é sua, Fee. Se você usasse um vestido bonito e

penteasse o cabelo de um jeito elegante, não tenho dúvida de que haveria dezenas de cavalheiros querendo conhecê-la!

Ainda rindo, as duas saíram para a varanda, onde uma voz familiar soou ha escuridão.

— Ah, aí estão vocês! Posso saber do que estão achando tanta graça? Lydia se atirou nos braços do marido. — Ah, meu querido, você chegou! Que maravilha! Nem pergunte, estamos rindo de

bobagens, brincadeiras de mulher... Eu achei que você iria demorar ainda, pelo menos, uma hora!

— Bem, deixei Sua Alteza com nossa anfitriã e mais uma centena de convidados. — Ele sorriu. — Quase não dá para se mexer no salão de baile!

— Eu sei, por isso, viemos aqui fora, para ver a iluminação do jardim. Está muito bonita, não acha? — Lydia passou o braço pelo do marido. — Vamos dar uma volta? Venha conosco, Fee.

— Obrigado, mas se não se importarem, acho que vou ficar aqui um pouco mais. — Felicity tinha visto o conde saindo da casa na outra extremidade da varanda. Ela acenou para Lydia. — Por favor, vão sem mim. Eu ficarei bem aqui.

Assim que Lydia e Sir James desapareceram entre as sebes bem aparadas, Felicity correu para o outro lado da varanda e desceu os degraus na direção em que Nathan havia ido. Aquela era a sua oportunidade de se revelar a ele.

Estava bem mais escuro daquele lado da casa, pois o caminho de pedra se afastava do jardim principal, onde uma miríade de lâmpadas coloridas ornamentava as árvores. Enquanto se apressava em meio à penumbra, Felicity reduziu o passo. Nathan poderia ter marcado um encontro com alguém... Como ela se sentiria se deparasse com ele abraçado a uma mulher? Ela ergueu o queixo. Bem, se fosse esse o caso, era melhor que ela soubesse logo. Então poderia tirá-lo do pensamento, e pôr um fim àquela obsessão

Page 28: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

28

crescente. A medida que Felicity se afastava da casa, a iluminação enfraquecia, sendo

suficiente apenas para enxergar um ou dois passos à frente. O caminho de pedras entremeadas com grama serpenteava entre sebes altas, separadas, de poucos em poucos metros, por silhuetas fantasmagóricas de estátuas de mármore. O vulto alto de Nathan surgiu à sua frente, nada mais que uma sombra na escuridão. No fim da alameda, ele hesitou antes de dobrar à direita. Felicity o seguiu e viu-se pisando um trecho malcuidado do jardim, com o mato crescido.

— Por que está me seguindo? Felicity deu meia-volta para fugir, mas Nathan estendeu a mão e a segurou pelo

pulso. — Ah, não! Você não vai embora sem me dar uma explicação! Ela engoliu em seco. Estava muito escuro para enxergar com clareza, e ela mal

podia divisar as feições de Nathan, reconhecendo-o somente pela voz. Ela baixou sua própria voz para um sussurro, numa tentativa de disfarçá-la.

— Eu... Eu vim aqui para... — Felicity hesitou. Deveria revelar-se a Nathan, confessar a ele que o seguira? Sua coragem esmoreceu. — Eu queria me afastar do burburinho da festa.

Não deixava de ser verdade. Ela o ouviu suspirar. — Eu também não gosto dessa agitação. — Ele a soltou. — Para ser sincero, nem

sei por que vim aqui hoje. Felicity sabia que deveria erguer as saias e sair correndo, mas seu corpo recusava-

se a obedecer ao comando do cérebro. Estar ali, sozinha com Nathan, falando com ele. Era muito perigoso, mas ela não tinha forças para resistir.

— Por que está na cidade, senhor, se não gosta dos eventos sociais? — Tenho deveres a cumprir. — Ele virou a cabeça abruptamente, estudando-a com

atenção. — Eu conheço você? Felicity se retraiu. — Não — respondeu ela ríspida. — Não. Eu não faço parte do seu círculo. Nathan deu de ombros. Ele tinha ido ao jardim para fumar uma cigarrilha em paz,

mas a casa não era sua, e ele não podia pedir àquela jovem dama que o deixasse sozinho. Os acordes de um minueto se elevaram no ar noturno.

— O baile começou. Gostaria de entrar? — Não. A resposta lacônica o surpreendeu, e ele riu. — Eu pensei que todas as moças adorassem dançar. — Eu não sei dançar. Não danço desde que estava no colégio. Nathan detectou o tom saudoso na voz dela e estendeu a mão. — Não quer tentar agora? Aqui mesmo? Um silêncio incômodo pairou sobre eles. Nathan teve a impressão de que a garota

estava prendendo o fôlego. Viu-a erguer o braço e= baixá-lo em seguida. — Obrigada, mas não. Damas de companhia não dançam. Então era isso que ela era. Nathan sentiu uma ponta de pena. — Mas aqui fora, longe da casa, não há necessidade de se ater às regras da

sociedade. — Ele estendeu a mão e segurou a dela, puxando-a para si. — Aqui somos simplesmente um homem e uma mulher. Podemos dançar, se você quiser, ou...

A voz de Nathan morreu em seus lábios conforme ele a puxava para mais perto. Não era intenção dele tomá-la nos braços, mas quando ela deu um passo à frente, foi uma reação natural abraçá-la. Ela se encostou a ele e pôs a cabeça logo abaixo do queixo. Nathan inspirou a suave fragrância floral que o cabelo dela exalava.

— Ah, não! — De repente, ela começou a se debater como um passarinho assustado, querendo se libertar.

Page 29: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

29

Nathan a soltou imediatamente. — Perdão, senhor... — Ela engoliu em seco. — Isto não poderia... Eu preciso ir,

desculpe! — Como quiser. — Ela parou diante de Nathan, no escuro. Ele não podia ver o

rosto, mas sabia que ela estava aflita. — Eu assustei você? — perguntou gentilmente. — Não... — Ela soluçou. — De maneira nenhuma. Ela então se virou e desapareceu na noite. Nathan ficou observando-a afastar-se e,

dando de ombros, enfiou a mão no bolso para pegar uma cigarrilha. FELICITY CORREU para fora da vegetação e parou, ofegante, quando alcançou a

alameda de pedra. O que ela tinha na cabeça? Falar com Nathan foi de uma insensatez sem tamanho. Permitir que ele a tomasse nos braços, então, foi loucura total! Por que ela não contou a verdade logo de uma vez?

Felicity baixou a cabeça. Podia muito bem imaginar a reação dele se tivesse contado. Raiva e repulsa. Como ela pudera sequer esperar que ele talvez a quisesse de volta? Ainda assim, no entanto, não conseguia se forçar a sair dali.

Dê a ele a chance de decidir. Felicity voltou até o fim da trilha e espiou na direção de onde Nathan estava. Avistou

o vulto dele logo ali, com o colarinho e o colete brancos brilhando no escuro. Ele se movia vagarosamente, e enquanto ela o observava, ele inclinou a cabeça para trás e soprou um rolo de fumaça no ar. Um aroma incomum, denso, chegou até ela. Ele estava fumando charuto. Ela tinha visto os oficiais em Corunha fumando aqueles pequenos cilindros envolvidos em folhas de fumo e deduziu que Nathan tivesse adquirido o hábito durante o tempo em que servira ao Exército.

Um movimento nas sombras atraiu a atenção de Felicity. Havia mais alguém ali, no meio dos arbustos. No mesmo instante, ela ficou em alerta, pressentindo perigo. Nathan tinha se afastado um pouco do canto do jardim, e Felicity viu um súbito clarão, um cintilar de metal sob o luar.

— Atrás do senhor, cuidado! — O grito de Felicity cortou o silêncio. Nathan virou-se depressa, os punhos erguidos. — Quem está aí? Uma sombra escura se moveu e saiu em disparada, com todas as tentativas de

discrição caindo por terra conforme a pessoa ia colidindo contra os arbustos. Felicity recuou de volta para as sombras. Pelo menos, ela tinha conseguido avisar

Nathan e, possivelmente, salvá-lo de um ataque. Agora ela precisava sair dali. Erguendo as saias, correu de volta para a varanda, pela trilha que levava ao jardim principal.

— Sir James, Sir James! Lydia e o marido estavam passeando de braços dados, sob as lâmpadas coloridas, e

olharam na direção de Felicity quando ela chamou. Ela correu para eles. — Sir James... Há um... Um invasor... — Ela falou, sem fôlego, impaciente para

fazer-se entender e apontou na direção do outro lado do jardim. — Ali, no meio dos arbustos.

James imediatamente correu até a varanda e tirou uma tocha do suporte, chamando um dos lacaios para que o seguisse. Ele se virou para Felicity.

— Vamos lá, mostre-me onde ele está. — James, tome cuidado! — gritou Lydia, correndo atrás deles. Eles estavam na metade da alameda quando encontraram Nathan vindo em sentido

contrário. No mesmo instante, Felicity recuou para as sombras. — Rosthorne — disse Sir James. — Há notícias de um invasor. Você o viu? — Sim, havia alguém ali atrás. Ele fugiu pelos arbustos. Eu o segui até a grade, mas

não havia ninguém na rua.

Page 30: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

30

Sir James virou-se para o lacaio. — Ele poderia ter fugido por ali? O rapaz balançou a cabeça: — Não, senhor. Milady faz questão de que o portão esteja sempre trancado. — Bem, ele foi aberto nesta noite — disse Nathan. — Há ferrolhos em cima e

embaixo. Eu estava atrás do sujeito quando ele abriu o portão. Ele não teve tempo de destrancá-lo. Ou ele já tinha deixado tudo preparado de antemão para fugir ou alguém abriu o portão para ele.

— Santo Deus! — exclamou Lydia, segurando o braço do marido. — Vou falar com Stinchcombe — disse Nathan. — Ele pode mandar os criados

revistarem a casa, para ver se algo foi roubado. — Cuidado para não alarmar os convidados — avisou Sir James. Em seguida, ele

afagou a mão de Lydia. — Não há mais nada que se possa fazer aqui, por isso, sugiro que entremos. Venha, srta. Brown. Pode ficar sossegada, não há ninguém aqui.

SIR JAMES levou as damas para Berkeley Square pouco depois, e ninguém tornou a

comentar sobre o incidente no jardim dos Stinchcombe, mas ele permanecia na lembrança de Felicity quando ela foi se deitar. Sir James havia conversado com a anfitriã antes de saírem, e ela garantira que nada tinha sido tirado da casa e que nenhum convidado indesejável havia sido visto por ali. Ainda assim, Felicity estava apreensiva. O ladrão teria de ser muito audacioso para entrar numa casa cheia de convidados. Havia qualquer coisa de ameaçador no modo como o vulto se movia nas sombras, no modo sorrateiro como tinha se aproximado de Nathan e no brilho de metal que. ela tinha visto. Seria uma faca? Felicity estremeceu. Havia muita gente em Londres para a Celebração da Paz, e talvez nem todo mundo fosse amigável.

— Agora você já está dando asas à imaginação — murmurou ela, repreendendo-se e afofando o travesseiro. — Vai ver que era algum mendigo querendo um prato de comida, só isso. Você está cansada, está fazendo tempestade em copo d'água!

Apesar de tudo, persistia a sensação de que ela havia salvado a vida de Nathan. NÃO HOUVE, no entanto, nenhum comentário sobre invasores na manhã seguinte. O

pensamento de Lydia estava totalmente focado na próxima festa. — James não gosta muito de bailes de máscaras, e eu estava com medo de que ele

não quisesse de jeito nenhum ir ao baile de lady Preston na semana que vem — disse ela, olhando para o marido com a sombra de um sorriso no rosto.

— Sua Alteza faz questão da nossa presença e de que usemos fantasias criadas por ele.

Lydia riu. — Que coisa irritante ter de ser grata ao príncipe regente pela companhia do meu

marido! Felicity virou-se para Sir James. — Sua Alteza deseja que vocês todos compareçam? — Sim, srta. Brown. Nem Rosthorne nem eu estamos escalados para escoltar o

grupo real nessa noite, mas ainda assim, temos de ir à festa usando as fantasias escolhidas pelo príncipe.

Felicity assimilou aquela informação enquanto Sir James pedia licença e se retirava para o escritório.

— Estou contente por você, porque James irá comigo à festa de lady Preston — disse Lydia, quando as duas ficaram sozinhas. — Assim você está dispensada, Fee. Não é uma coisa boa?

— Na verdade, eu gostaria de ir, se puder. Lydia olhou para ela, perplexa.

Page 31: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

31

— Fee, minha querida, não acredito que você queira ir! — Felicity baixou o olhar para as mãos.

— Você pediu especificamente a lady Preston que me enviasse um convite, lembra-se?

— Sim, mas, Fee, você tem certeza de que quer ir? Você pensou bem? — Pensei sim. Será um baile de máscaras, então poderei ir bem disfarçada. E irei

embora da festa antes da hora de tirarem as máscaras, à meia-noite. — Mas Rosthorne vai estar lá! — Eu sei. E por isso mesmo que eu quero ir. — Lydia inclinou-se para frente, com

um gritinho. — Você enlouqueceu? — exigiu ela. — Tem noção do risco que estará correndo em

um baile de máscaras? Felicity assentiu. — Eu já pensei nisso. Mas eu quero vê-lo de novo, Lydia. — Ela cruzou as mãos

com força sobre o colo. — Será a oportunidade perfeita para eu falar com ele. — Mas no momento em que você falar com ele, Rosthorne vai reconhecê-la. Felicity balançou a cabeça. — Ele nem imagina me ver lá. — Ela se lembrou do encontro no jardim. — Duvido

até que ele se lembre da minha voz. — Eu ainda acho loucura — repetiu Lydia. — Pense no perigo, Fee. Essas festas

podem ser um tanto exageradas, digamos assim. — Não tem importância — retrucou Felicity calmamente. — Tudo o que eu quero é

dançar com Nathan. Nós nunca dançamos juntos, e eu quero muito saber como seria dançar com ele. Uma vez que seja.

Lydia a fitou com lágrimas nos olhos. — Ah, minha querida... Felicity ergueu as mãos. — Não, Lydia, por favor, não sinta pena de mim ou vou começar a chorar também.

Em vez disso, quero lhe pedir que me ajude de outra maneira. — Ela olhou fixamente para a amiga. — Preciso de algumas aulas de dança. Além das poucas quadrilhas de country em Souden, eu não danço. Não danço decentemente, quero dizer, desde que estávamos no colégio...

— E você dançava tão bem! Vou pedir ao meu antigo professor de dança, Signor BeWim, que venha aqui lhe dar umas aulas — declarou Lydia. — Ah, Fee, que emocionante! E quando Rosthorne descobrir quem você é...

— Calma, Lydia, devagar! — Felicity franziu a testa. — Não tenho certeza ainda de que estou preparada para me revelar a ele.

Lady Souden parecia querer dizer alguma coisa, mas após uma breve hesitação, ela limitou-se a sorrir e assentir com a cabeça.

— Está bem, querida. Agora vamos pensar numa fantasia para você. — Eu pensei que talvez você possa me emprestar uma capa. E uma máscara. Lydia se recostou e estudou a amiga. Após alguns segundos, um sorriso arteiro

curvou os cantos de sua boca. — Acho que posso fazer bem mais que isso, meu bem. — Ela balançou a cabeça. —

Não, não vou lhe dizer mais nada agora, apenas que você deixe tudo por minha conta! APESAR DA insistência de Felicity, lady Souden recusou-se a contar qual era a sua

idéia. Felicity foi obrigada a refrear a curiosidade até o dia do baile, quando acompanhou Lydia em mais uma excursão às compras, que incluíram um par de meias vermelhas, que ela deu de presente a Felicity.

— O que eu vou fazer com isto? — perguntou Felicity, rindo.

Page 32: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

32

— É para a sua fantasia de hoje à noite. — O que você está tramando, Lydia? Conte logo! Mas lady Souden apenas lhe endereçou um olhar misterioso e disse que ela deveria

esperar até de noite. — FOI UMA sorte James não ter podido vir jantar em casa hoje — comentou Lydia,

enquanto ela e Felicity subiam para o andar de cima. — Assim posso ajudar você a se vestir sem medo de que ele queira saber o que estamos fazendo.

— Quem está com medo sou eu — respondeu Felicity, seguindo a amiga para dentro do quarto de vestir, decorado em rosa e branco. — Aquelas meias vermelhas são aterrorizantes...

Lydia riu. — Bobagem, elas são perfeitas! — Ela sorriu para a criada, que estava em pé ao

lado de um baú aberto. — E então, Janet, preparou tudo conforme minhas instruções? — Sim, milady. A jovem tirou de dentro do baú um vestido envolvido em papel de seda e o

desembrulhou. As sobrancelhas de Felicity se arquearam. — Lydia... — Ela falou num fio de voz. — Eu não... Você não tem uma capa que

possa me emprestar? Uma capa é tudo o que eu preciso... — Que nada, você vai ficar maravilhosa com este vestido. Nós somos da mesma

altura, então vai servir direitinho em você. Eu adoraria usá-lo, eu mesma, mas não creio que eu fosse ficar muito bem com ele no momento — Lydia sorriu e circundou a cintura com as mãos.

Felicity olhou de novo para o vestido que a criada segurava para que ela o avaliasse. Era um vestido de brocado, com saia rodada e corpete justo, mas não foi o estilo antiquado que fez Felicity arregalar os olhos. Foi a cor. O tecido era vividamente estampado num padrão vermelho e preto, e o acabamento era de renda preta.

— Se me permite, milady, não tenho certeza de que este vestido é apropriado para a srta. Brown usar — sugeriu Janet, olhando com ar de dúvida para o traje.

— É para uma aposta, Janet — explicou Lydia, em tom distraído. — Vamos, temos de ajudar a srta. Brown a se vestir. Rápido, há muita coisa a fazer.

Felicity se submeteu obedientemente à assistência das duas mulheres. Em poucos instantes, seu vaporoso vestindo de musselina tinha sido substituído por anquinhas, armações de arame e anáguas. Ela arquejou quando Janet puxou com força os cordões do espartilho, ajustando-o à curva da cintura.

— Não consigo respirar — ofegou Felicity, quando a criada se retirou para guardar o vestido que ela usava antes. Ela se olhou no espelho. O corpete justo enfatizava a cintura fina e o volume dos seios na altura do decote. Quando ela levou uma mão ao pescoço, os babados de renda preta caíram suavemente sobre seu braço. — Ah, meu Deus, Janet tem razão. Este vestido não é nem um pouco apropriado para mim.

— Você quer dançar com Rosthorne, não quer? — perguntou Lydia, prática como sempre. — Acredite em mim, ele não vai conseguir resistir a você vestida assim. — Ela suspirou, com ar sonhador. — A modista deu a este modelo o nome de Tentação! Eu me lembro de quando o usei, James não conseguia tirar os olhos de mim. — Lydia deu outro suspiro, mas quando a criada voltou, ela se recompôs e disse, num tom de voz que exalava eficiência: — Agora o cabelo. Sente-se aqui, querida, enquanto Janet me ajuda.

Uma pesada peruca preta foi encaixada sobre o cabelo castanho-claro macio de Felicity, e ela observou, com certa consternação, quando Janet puxou uma mesinha de apoio e começou a arrumar uma assustadora fileira de artigos de toalete e apetrechos de maquiagem.

— Isso é mesmo necessário? — protestou Felicity. — Eu não...

Page 33: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

33

— Shh — Lydia a fez calar-se. — Você precisa parecer verossímil. — É só um pouquinho de pó, senhorita —Janet a tranqüilizou. — Há 30 anos,

nenhuma dama sairia de dentro do quarto sem estar com o rosto pintado de branco como a neve.

— E o que é isso que você está pondo nos meus olhos? — Apenas um pouquinho de rolha queimada, senhorita, para fazer sombra. E assim o processo de maquiagem prosseguiu. Felicity olhava em silêncio para

frente enquanto Lydia e a criada realizavam sua transformação. A luz do dia se extinguiu e foi substituída pelo brilho suave de chamas de velas antes que a criada começasse a recolher os pequenos potes e escovas.

— Posso olhar no espelho agora? — Só mais alguns retoques — disse Lydia. Ela entregou a Felicity uma fita preta bordada com fios dourados. — Para prender as meias — explicou ela, em resposta ao olhar indagador de

Felicity. — Lydia abriu um estojo de jóias de couro e tirou de dentro dele um pesado colar de rubis. — Este colar era da minha avó, mas ninguém, mais usa este tipo de coisa hoje em dia. Também há os brincos... — Lydia segurou as mãos de Felicity e a fez levantar-se para ficar na frente do espelho. — Que tal?

Por um longo momento, Felicity examinou, em silêncio, seu próprio reflexo. Era uma mulher estranha e exótica que olhava para ela do outro lado do espelho, uma desconhecida de cabelo escuro e olhos cinzentos emoldurados por cílios longos e escuros.

— E então? — Lydia perguntou novamente. — Nem eu mesma me reconheço — respondeu ela, sem desviar os olhos da boca

refletida no espelho: lábios cheios e sensuais, pintados de um vermelho vivo que contrastava com a brancura da pele.

Lydia riu. — E justamente essa a idéia! — Ela entregou a Felicity uma máscara preta e

dourada, com longas fitas negras para amarrar atrás da cabeça. — Agora você vai ficar sentada quietinha enquanto Janet me ajuda a me vestir. Esta

noite eu serei Afrodite, a deusa do amor. — Ela lançou à amiga um sorriso travesso. — Bem apropriado, não acha? Nossa, olhe só a hora! Temos de nos apressar,

Janet, Sir James chegará a qualquer instante, e não podemos correr o risco de ele subir e encontrar a srta. Brown vestida desse jeito!

A criada ergueu abruptamente a cabeça. — Sir James não sabe que a srta. Brown vai ao baile? Lydia fez um sinal para que a moça baixasse a voz e gesticulou, impaciente. — Eu lhe disse que é uma aposta. Agora nem mais uma palavra, Janet, e venha me

ajudar, depressa! Lydia estaca dando um último retoque nos cachos dourados quando um lacaio veio

avisar que Sir James estava esperando lá embaixo. — Eu preciso ir — disse ela. — Deixei instruções para que a sua carruagem esteja

aqui na frente daqui a meia hora. Janet arrumou uma capa para você, portanto sua roupa estará totalmente coberta quando você sair. — Ela abraçou a amiga. — Cuide-se, Fee. Eu me encarregarei de evitar que James a veja no baile.

— Você tem medo de que ele possa me reconhecer? Lydia pegou sua máscara. — Não — respondeu ela, encaminhando-se para a porta. — Tenho medo de que ele

ache você atraente demais.

Page 34: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

34

Capítulo Quatro

NATHAN PERAMBULAVA, inquieto, pelo magnífico salão de baile da residência de lady Preston. As paredes estavam revestidas com faixas de seda azul-escuras, que pareciam absorver a luz dos imensos lustres. Os trajes coloridos perdiam parte de seu brilho à medida que os passos da dança levavam os dançarinos para a borda da pista, e eles ficavam ansiosos para voltar ao centro, para o meio da massa humana em constante movimento.

Não era o caso de Nathan, que aproveitava as sombras para se esconder junto às paredes escuras ou nos cantos do salão. Ele afrouxou um pouco o colarinho. Estava muito quente, apesar das janelas altas inteiramente abertas. Impaciente, ele ajeitou o cordão da máscara e ouviu um riso baixo atrás do ombro.

— Não, não, milorde, ainda não é hora de tirar a máscara. Ele se virou para se deparar com Sir James e lady Souden.

— Ora, querido, isso não é maneira de abordar alguém em um baile de máscaras. — A dama sorriu para ele através da faixa de renda que usava como máscara.

— Bem, não é o caso aqui. Não vou perguntar a Rosthorne se o conheço — retrucou Sir James. — E evidente quem ele é. Mas não me parece que você esteja se divertindo, rapaz.

Nathan deu de ombros. — Faz horas que estou aqui, Sir. Sua Alteza ficou sabendo do fiasco no jardim dos

Stinchcombe, e fui incumbido de vasculhar a área para garantir a segurança. — Ah, sim. Não podemos correr o risco de um atentado — respondeu Sir James. —

Isso arruinaria as comemorações. Mas já cumpriu seu dever, Rosthorne, pode aproveitar a festa agora.

— Para ser sincero, eu gostaria de que a noite já tivesse terminado — confessou Nathan, com uma careta,

— Está tão ruim assim? — Lady Souden lançou a ele um sorriso compreensivo. — Eu me sentiria mais confortável com uma simples capa, mas isto aqui... — Nathan

indicou seu traje, uma variação elaborada de uma farda da cavalaria hussarda, em azul-royal, vermelho, branco e dourado.

Sir James assentiu com a cabeça. — Um tanto espalhafatoso demais, não? Se, ao menos, a máscara escondesse a

minha identidade... Mas Sua Alteza fez questão. Uma demonstração de solidariedade pelos convidados, creio eu. E eles nem sequer apareceram — declarou Nathan, desconsolado.

— Mas eles virão. — Sir James deu-lhe um tapinha no ombro coberto de patentes douradas. — Agüente mais um pouco, Rosthorne. Prinny e os monarcas chegarão logo e partirão mais rápido ainda, pode ter certeza. Depois que eles forem embora, você poderá ir também.

— Sim, não vejo a hora de tirar esta roupa. — Nathan deu um sorriso azedo. — Tenho pena dos soldados prussianos se eles são obrigados a usar isto.

— Bem, eu acho que você está com ótima aparência. — Lydia sorriu antes de Sir James conduzi-la em direção ao grupo que dançava. — Todas as damas vão querer dançar com você.

Esse é o problema, pensou Nathan, recuando de novo para as sombras. Ele tinha a impressão de que todas as mães de moçoilas casadoiras haviam dado um jeito de conseguir um convite para aquele baile com o único propósito de lhe apresentar suas filhas. As pessoas o julgariam um tolo convencido se ele expressasse esta opinião em voz

Page 35: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

35

alta, mas o próprio Sir James o havia chamado de... Quais tinham sido mesmo as palavras que ele usara? "O melhor partido do mercado casamenteiro."

Os lábios de Nathan se curvaram numa expressão de desagrado. Quando ele era apenas o major Carraway, ninguém se importava com seu estado civil, mas o rico lorde Rosthorne era alvo de constante especulação.

Nathan não esperara tornar-se conde de Rosthorne, mas quando herdara o título, ele julgara ser seu dever interessar-se por suas propriedades. Agora, enquanto se escondia atrás de uma pilastra para evitar ser visto por outra mãe predadora, ele começava a desejar ter permanecido no Exército.

— Eu conheço você? — Uma voz suave a seu lado proferiu as palavras familiares. Nathan virou-se para se deparar com uma exótica criatura de cabelo preto. Os olhos

cinzentos da mulher brilhavam através das fendas da máscara de veludo negro, e quando ele a fitou, ela desviou o olhar, erguendo um leque de plumas negras para cobrir o rosto.

— Bem, eu é que pergunto — rebateu ele. — Eu conheço você? Nathan percorreu os olhos pela bela figura entesourada no luxuoso vestido vermelho

e preto, mas não a reconheceu. Como se percebesse o olhar apreciativo dele deter-se em seu decote, ela baixou o leque para cobri-lo.

— Eu sou Tentação — murmurou ela. — Você nunca me conheceu? — Não recentemente — respondeu Nathan, entrando no espírito do jogo. Um lacaio

passou por eles com uma bandeja de taças de vinho, e Nathan pegou duas. — Bebe um vinho comigo?

Os lábios vermelhos se curvaram num sorriso. — Com todo o prazer, milorde. — Ah, então você me conhece! Ela o fitou, pela borda da taça de vinho. — Todo mundo conhece lorde Rosthorne. — Então você está em vantagem, pois eu não sei o seu nome. — Eu sou Tentação — ela repetiu. — Eu existo somente nesta noite. A voz dela era baixa e ligeiramente sem fôlego. Nathan achou a combinação

bastante sedutora. Ele inclinou-se para mais perto. — Você é Tentação para todos os homens ou exclusivamente para mim? Os olhos atrás da máscara negra se arredondaram. — Somente para o senhor, Sir, se é o que deseja. Nathan olhou para ela, intrigado.

Havia alguma coisa vagamente familiar naquela mulher, na maneira como ela inclinava a cabeça, na cadência suave da voz. Aqueles lábios vermelhos pertenciam à boca de uma devassa, mas o timbre de voz baixo e melodioso era culto e contido e não havia nenhum indício de presunção em seus movimentos, nada que sugerisse que ela fosse qualquer outra coisa senão uma dama. E ainda assim...

— Diga-me... Ele se interrompeu quando uma mulher vestida de leiteira passou correndo por eles,

gritando, como se estivesse fugindo de dois cavalheiros fantasiados de turcos. Por um momento, Nathan observou a cena. Os três corriam na direção de Sir James, que estava de pé ao lado da esposa e foi obrigado a puxar lady Souden, afastando-a do caminho para evitar uma colisão. Encontrando o olhar de Nathan, ele balançou a cabeça.

— Por Deus, não entendo por que as pessoas se comportam de maneira tão espalhafatosa nesse tipo de festa! — queixou-se ele, aproximando-se. — Até já derramaram vinho na roupa da minha Afrodite!

— Eu disse a você que seria mais seguro se estivéssemos dançando — observou lady Souden, com um gesto de pouco caso na direção do traje arruinado.

Ela puxou Sir James de volta para o meio da multidão, e logo os dois sumiram de vista. Com um leve sorriso, Nathan olhou em volta à procura da dama de vermelho e preto, mas ela tinha desaparecido.

Page 36: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

36

LADY PRESTON apresentou a Nathan uma parceira de dança, uma jovem de capa

cor-de-rosa que não se atrevia a encará-lo e que parecia desprovida de voz. Nathan a conduziu até a pista de dança, mas logo se cansou de tentar iniciar uma conversação quando a única resposta aos seus esforços foi uma risadinha. A música terminou e ele acompanhou a moça de volta ao grupo com que ela estava, incluindo a mãe, que não media esforços para não deixar que ele se afastasse.

Então um vislumbre de vermelho e preto atraiu a atenção de Nathan. A misteriosa dama de cabelo escuro estava passando por ali, quase ao alcance de sua mão. Ele interrompeu a mãe da moça no meio de uma frase com um breve "com licença" e nem notou o arquejo de indignação da mulher, pois já se afastava abrindo caminho por entre os convidados.

Ele já estava quase a alcançando quando um homem vestido de cavaleiro e com enormes suíças se postou diante da dama. Ela tentou se desviar, mas ele bloqueou sua passagem, colando o corpo ao dela e rindo das tentativas dela de esquivar-se. Nathan não hesitou; com duas passadas largas, estava ao lado da dama.

— Minha vez de dançar, creio eu, senhorita. — O tom de voz era gentil, mas o olhar feroz que ele endereçou ao homem fez o sujeito recuar, murmurando um pedido de desculpas.

Triunfante, Nathan enlaçou a cintura da dama para afastá-la dali. — Você está tremendo — disse ele. — Porque você está me segurando. A voz dela era baixa e calma e quase se perdia rio burburinho do salão, mas uma

onda de prazer percorreu Nathan. A resposta da dama o deixara inexplicavelmente satisfeito. Foi com relutância que ele a soltou para que ela ocupasse seu lugar no grupo de dança.

— Eu pensei que você fosse me tentar somente nesta noite. Ela sorriu, exibindo dentes brancos e perfeitos entre os sensuais lábios vermelhos. — Para isso, eu preciso da sua companhia, milorde. Ela estendeu a mão para ele

quando a música começou a tocar. Nathan nunca dançara com tanto gosto antes. Talvez fosse o efeito do vinho e da atmosfera inebriante do salão apinhado que lhe afetava os sentidos. Sua parceira o fascinava. Ele tinha de se forçar a se afastar quando os passos da coreografia assim exigiam. As vozes e risos a seu redor desvaneceram, ele não ouvia mais nada, não via mais nada, somente ela. Eles seguiram a fila de casais na dança e se separaram, indo cada um para um lado, e Nathan viu-se impaciente para tê-la perto de si outra vez, enciumado dos outros homens que desfrutavam seu sorriso, mesmo que só por alguns segundos. A coreografia os aproximou novamente, e ele estendeu a mão para segurar a dela, sentindo os dedos delicados tremerem entre os seus.

Seu coração deu um salto. Então ela também estava sentindo a mesma coisa, aquela atração... A música estava chegando ao fim, os casais estavam se cumprimentando com mesuras e saindo da pista de dança. Somente Nathan e sua parceira permaneceram, parados um diante do outro, fitando-se. Como em um sonho, ele estendeu a mão para ela. Lentamente, os dedos enluvados em seda negra deslizaram para dentro da mão de Nathan. Entrelaçando o braço ao dela, ele a conduziu para fora da pista. Avistou Sir James logo adiante, observando-os. A máscara não era suficiente para disfarçar a curiosidade enquanto ele olhava para a parceira de Nathan.

Nathan estava pensando em como iria apresentar a Sir James sua misteriosa companheira, quando lady Souden olhou em sua direção, deu um ligeiro sorriso e, murmurando algo para o marido, conduziu-o na direção oposta. Nathan não lamentava. Não queria que nada quebrasse o encantamento que o envolvia.

Page 37: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

37

A orquestra já tocava outra música quando Nathan conduziu a dama até um canto mais isolado do salão. Ele fez um sinal para um criado que se encontrava ali perto, e o rapaz lhes serviu duas taças de vinho. Sob a iluminação fraca, o líquido parecia tão negro quanto as ondulações do vestido que ela usava.

Havia um prazer sensual em observá-la bebericando o vinho. A excitação ondulou pelo corpo de Nathan quando ela passou a ponta da língua pelos lábios. Aquela mulher era, de fato, uma tentação. Ele se aproximou mais, até que o tecido das saias do traje dela roçasse em suas calças.

— E então, milady, vai ficar comigo até o fim da noite? UMA AGRADÁVEL onda de calor percorreu Felicity. Ela olhou para Nathan, reparando o

modo como os olhos escuros brilhavam através das fendas da máscara. Ele estava atraído por ela, ele a desejava! Ou melhor, estava atraído e desejava a personagem exótica e misteriosa da qual ela estava vestida.

Felicity não tinha ilusões; as pessoas se comportavam de outra maneira quando usavam uma máscara no rosto. Ela própria estava fazendo isso. No instante em que pusera os pés no salão de baile e percebera os olhares de admiração, refugiara-se na segurança de seu disfarce, atrás da máscara e do extravagante traje vermelho e preto, e seu nervosismo desapareceu. Ela não era ela mesma, era uma entidade, uma feiticeira, poderosa e sedutora, capaz de conquistar qualquer cavalheiro ali. Era um papel que ela estava bem feliz em representar se ele fosse garantir que Nathan ficaria a seu lado.

Felicity olhou para ele e sorriu. — Se é o que quer, milorde... — Eu quero — murmurou ele. — Quero muito. Vagarosamente, ele inclinou a cabeça e tocou os lábios dela. Felicity estremeceu,

mas não se retraiu. Saboreou o vinho nos lábios dele, inalou a fragrância máscula e experimentou uma momentânea frustração quando ele se afastou. Nathan sorriu e virou-se para observar os casais na pista de dança. Felicity ficou ao lado dele, contemplando o sorriso que lhe curvava os lábios, perguntando-se se teria coragem de pôr-se na ponta dos pés e beijá-lo no rosto. Queria desesperadamente ficar perto dele, sentir a proximidade, sentir os braços dele à sua volta. Felicity deu-se conta, chocada, de que queria fazer amor com Nathan.

É o vinho, disse a si mesma com veemência. Ele está deixando você imprudente. Você precisa tomar cuidado. Mas um diabinho em sua mente a provocava: esta pode ser sua única chance. Aproveite!

Como se pressentisse que estava sendo observado, Nathan virou-se e olhou para Felicity. Ele colocou a taça sobre um aparador e estendeu a mão para ela.

— Vamos dançar? Nathan se sentia como se estivesse em transe. Aquela mulher o havia enfeitiçado.

Ele estava ciente dos olhares de inveja dos outros homens e dos de ciúmes das damas, mas naquele momento, tudo o que queria era olhar para sua parceira, ver os olhos dela brilharem atrás da máscara quando ele fazia algum comentário divertido, admirar o pescoço delicado, a pele alva dos ombros, a elevação macia dos seios sob o debrum de renda do decote.

Uma agitação na entrada indicou a chegada do grupo do príncipe regente, mas Nathan não se abalou. Só tinha olhos para a beldade em seus braços.

Eles dançaram por um longo tempo, e quando ela comentou que estava com calor, Nathan a conduziu até uma das janelas abertas e, em seguida, à porta que dava para a varanda.

— Pronto. — Ele tirou das mãos dela o leque de plumas e começou a abaná-la

Page 38: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

38

gentilmente. — Obrigada, agora está bem melhor. — Ela se recostou na parede e fechou os

olhos, sorridente. Nathan a fitou. O colar de rubis brilhava ao luar, convidando-o a chegar mais perto.

Ele levou uma mão ao rosto dela e inclinou-se para beijar-lhe o pescoço. Ela estremeceu e apoiou as mãos em seus ombros, enterrando os dedos em seu cabelo, abraçando-o.

Um murmúrio sussurrado escapou dos lábios dela, e ele levantou a cabeça. — O que você disse? — Nada, eu só suspirei. — Você me chamou de Nathan. — Não. Você se enganou. Ele a fitou atentamente. — Nós já nos vimos antes, eu tenho certeza. Ela balançou de leve a cabeça. — Só se tiver sido em sonhos... — Já sei! Você é a dama misteriosa que estava no jardim dos Stinchcombe! Meu

anjo da guarda. Os olhos cinzentos brilharam, e uma covinha se formou ao lado da boca sensual. — Isso é um elogio e tanto, milorde. — Eu preciso saber quem você é. Nathan levou a mão à máscara que cobria o rosto dela, mas ela o deteve, segurando

sua mão e tornando-se subitamente séria. — Não. Se tirar minha máscara, serei obrigada a ir embora. Vamos aproveitar este

breve momento. — Mas... Ela levou os dedos a seus lábios. — Eu sou Tentação, nada mais que isso. Nathan segurou o rosto dela entre as mãos. Gentilmente, ela o puxou para si, até

que os lábios de ambos se tocaram. O primeiro contato logo se inflamou, e Nathan se rendeu ao desejo que vinha crescendo em seu íntimo desde o começo da noite. Ele segurou os ombros dela e cobriu-lhe a boca com a sua, forçando-a a entreabrir os lábios. Ela retribuiu com avidez, entrelaçando a língua à dele. Novamente, ele repensou sua opinião a respeito daquela dama: não se tratava de uma moça tímida demonstrando um comportamento incomum por conta de um baile de máscaras e de uma taça de vinho. A reação apaixonada dela o surpreendeu. Ela estava, de fato, ansiosa para ser beijada e disposta a entregar-se.

Nathan passou um braço pelas costas dela enquanto, com a outra mão, lhe acariciava o pescoço, movendo o polegar suavemente ao longo da linha do maxilar. Ela agarrou-se a ele, arqueando o corpo para moldar-se ao dele. O sangue pulsava nas veias de Nathan. Ele se sentia vivo, de uma maneira como não se sentia havia muito tempo. Afastou os lábios da boca sensual e começou a beijar os seios, mal controlando o desejo quando a ouviu gemer baixinho.

Pare já, antes que seja tarde demais... A advertência cruzou a mente de Felicity como um relâmpago. Ela nunca pretendera

que as coisas fossem tão longe. Uma dança era tudo o que ela havia imaginado, mas o vinho e as atenções de Nathan a arrebataram para um mundo de sonho onde nada mais importava, a não ser estar nos braços dele. A vozinha de advertência soou novamente, mas ela a ignorou. Seu corpo ansiava por Nathan, para que ele fizesse amor com ela como havia feito naqueles poucos e inesquecíveis dias em Corunha.

Felicity estava completamente entregue à paixão que cascateava por todo o seu ser. Abraçou Nathan com força, retribuindo cada beijo, cada carícia, e ofegou quando ele introduziu a mão dentro do corpete e acariciou um seio.

Um êxtase profundo tomou conta de Felicity... Ela se sentia viva, irresistível, perigosa.

Page 39: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

39

Nathan ergueu o rosto e a fitou nos olhos. — Vamos levar isto até o fim? Ela encostou o rosto no peito dele e sentiu os batimentos rápidos de seu coração por

baixo do paletó grosso. — Deveríamos voltar lá para dentro — sussurrou. Nathan suspirou. — Eu não quero que isto acabe. Venha comigo — ele sussurrou, ansioso. — Venha,

agora. Era tentador. Eles poderiam se esconder e continuar aquele interlúdio até Nathan

descobrir a identidade. Então começariam as perguntas. Haveria acusações, ressentimentos. Com expressão triste, Felicity balançou a cabeça.

— Eu não posso. — Por quê? Existe algum marido ou namorado ciumento pronto para ajustar contas

comigo? . — Não, mas eu não posso sair daqui com você. O silêncio pairou entre eles. Por fim, Nathan meneou a cabeça e ofereceu-lhe o

braço. — Vamos entrar então? Por um momento, ele teve a impressão de ver uma sombra anuviar o semblante da

dama, e ela o fitou como se quisesse memorizar cada detalhe de seu rosto. — Um último beijo — ela sussurrou. Nathan atendeu prontamente ao pedido. A inebriante fragrância floral inundou seus

sentidos. Ele olhou para a mulher em seus braços. — Eu não consigo parar aqui. — É preciso, milorde. É assim que deve ser em um baile de máscaras. — Mas diga-me, ao menos, o seu nome. Um sorriso tremulou nos lábios dela. — Eu já disse, Sir. Não há mais nada que precise saber a meu respeito. Nathan deixou escapar um gemido baixo de frustração. — Eu preciso saber tudo a seu respeito. Não vou permitir que vá embora sem que

eu saiba tudo sobre você! O sino de uma igreja próxima repicou, anunciando as horas. Nathan ergueu o rosto,

contando. — Doze. — Ele riu. — Meia-noite! Hora de tirar as máscaras. Ela levou as mãos ao peito. — Pode entrar... Eu irei daqui a pouco. Ele hesitou, cobrindo os dedos dela com os seus. — Está bem — concordou, depois de um momento. — Mas não se demore. Ela assentiu. — Eu irei em seguida. Vá. Nathan não resistiu e roubou um último beijo antes de virar-se e afastar-se de volta

em direção ao salão. A orquestra começou a tocar uma música alegre quando as últimas batidas da meia-

noite ecoaram no ar, e em meio a risos e gritos, os convidados retiraram suas máscaras. Através da multidão de gente, Nathan viu Sir James e lady Souden se abraçando, já sem as máscaras.

Finalmente. Ele tirou sua máscara, aliviado por poder livrar-se daquele incômodo. Olhou em volta, à procura de sua dama. Ela ainda não tinha entrado, e ele saiu para a varanda, impaciente.

Estava deserta. Nathan percorreu toda a extensão da varanda, até a extremidade, e voltou, mas não havia sinal da dama, somente um leque de plumas negras caído no chão.

Nathan desceu rapidamente os degraus para o jardim e contornou a casa até a alameda de entrada. Bem a tempo de ver uma carruagem saindo pelos portões.

— Droga!

Page 40: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

40

Ele ficou observando o coche desaparecer na escuridão. Era tarde demais. Mesmo que ele pegasse seu cabriolé, a fugitiva já estava fora do seu alcance, camuflada entre as outras carruagens que transitavam nas ruas de Londres.

Respirando fundo, Nathan sentou-se numa mureta baixa e fitou a escuridão, ciente de uma opressiva sensação de perda.

Tentação. Ela havia encontrado um nome bem apropriado para sua personagem. Em poucas horas apenas, aquela mulher tinha mexido com ele de uma maneira como nenhuma outra havia feito em toda a sua vida. Com uma única exceção...

Capítulo Cinco

Foi SÓ quando estava em segurança dentro da carruagem, voltando para Berkeley Square, que Felicity se permitiu pensar a respeito do que fizera. Ela havia falado com Nathan, dançado com ele e muito mais. Por algumas poucas horas, ele fora seu, tivera olhos somente para ela. Em vão, ela repetia para si mesma que aquilo não havia significado nada para Nathan, que, para ele, não passara de um simples flerte com uma desconhecida. Mas ela estivera nos braços dele, sentira sua paixão, e nada poderia romper a tênue esperança que crescia em seu íntimo. Ela cruzou os braços, abraçando a si mesma. Seu corpo ainda ardia em conseqüência do toque dele.

Felicity fechou os olhos e reviveu a noite, relembrando cada palavra que Nathan dissera, cada pequeno gesto. Quando pensava nos beijos e carícias, sentia-se derreter por dentro outra vez, do mesmo jeito que se sentira nos braços dele. Ela havia passado tanto tempo tentando esquecê-lo, e todo o esforço fora em vão. Ainda o amava, com o mesmo desespero de cinco anos atrás.

A dor e o ressentimento que ela sentira pela traição de Nathan tinham perdido a intensidade.

Talvez ela tivesse esperado demais dele. Rever Nathan e estar nos braços dele a fizera perceber que era melhor ser uma pequena parte da vida dele do que não ser parte nenhuma.

Isto é, se ele a aceitasse de volta. Lentamente, Felicity tirou a máscara. Talvez devesse ter se revelado a ele. Ela sabia

que os homens prometiam qualquer coisa no auge da paixão. A tentação fora grande, mas alguma coisa a impedira de dizer a verdade, um medo de que ele se arrependesse do que havia feito, quando a paixão arrefecesse. E isso ela seria incapaz de suportar.

Felicity mordiscou a ponta de um dedo enquanto refletia sobre o que faria dali para frente. Isso foi algo que ocupou seus pensamentos durante a maior parte da noite.

COM O amanhecer, veio a solução. Determinada a não perder tempo, Felicity vestiu-

se depressa e foi até o quarto de Lydia. Quando ela entrou no quarto atrás da criada, lady Souden soltou uma exclamação abafada de surpresa.

— Céus, Fee, o que está fazendo aqui tão cedo? Nem estou apresentável ainda... Felicity avaliou a fina camisola de renda da amiga e a touquinha combinando sobre

os cachos dourados.

Page 41: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

41

— Você está muito apresentável, Lydia, e sabe disso. Por favor, eu preciso falar com você. É importante.

— Ah, está bem. — Lady Souden fez um sinal para que a criada se retirasse. — Confesso que não vejo a hora de saber como foi ontem à noite... Eu vi você dançando com Rosthorne e fiquei morrendo de curiosidade. Se James não estivesse comigo, juro que eu teria ido até o seu quarto ontem à noite para saber o que aconteceu! Ele reconheceu você?

Felicity sentou-se na beirada da cama. — Não. Eu saí antes da retirada das máscaras. — Isso, pelo menos, era verdade. — Mas ele dançou com você, várias vezes, e eu vi vocês saindo do salão. Felicity enrubesceu ante o escrutínio da amiga. — Sim. Ele me beijou. — É? — Lydia colocou sua xícara de chá na mesinha. — Só isso? Felicity sentiu uma onda de calor queimar seu pescoço e o rosto. — Foi um beijo

bastante apaixonado — murmurou ela. — Ah, eu sabia! — Lydia bateu palmas. — Eu sabia que ele não conseguiria resistir

a você! E ele parecia estar tão preocupado quando o vimos no salão, mais tarde... — E mesmo? — Hum-hum. Ele estava dispersivo... Foi embora pouco depois da meia-noite. Toque

a sineta para chamar Janet, Fee! Tenho de me vestir, e depois vamos pensar no que vamos fazer...

— Eu já decidi o que vou fazer — Felicity a interrompeu. — Vou escrever para ele. Não vou contar a ele minha ligação com você. Não quero que ele culpe você ou Sir James pela minha farsa. — Ela cruzou as mãos sobre o colo. — Vou explicar tudo e contar com a compreensão dele. Se... Se ele quiser me ver outra vez, muito bem. Se não quiser — ela tentou sorrir —, espero que você me deixe voltar para Souden.

— É claro que você pode voltar, mas eu não creio que seja isso que vai acontecer. Duvido que Rosthorne não queira ver você novamente.

Felicity gostaria de poder compartilhar o otimismo da amiga. Havia tanta coisa que Lydia não sabia... Ela falou em voz baixa:

— Não tenho tanta certeza. Na Espanha, ele me apoiou por pena. — Não foi por pena que ele ficou com você ontem a noite inteira — observou Lydia.

Ela estendeu as mãos e segurou as de Felicity. — Tenha confiança em si mesma, Fee. Eu tenho certeza de que o conde vai querer você de volta.

— Vamos ver. Seja qual for o resultado, eu lamento muito deixar você sem acompanhante...

— Isso é insignificante em comparação com a sua felicidade. Além do mais, tenho minha prima viúva, Agnes. Ela virá correndo ser minha dama de companhia se eu a chamar. Mas nós estamos perdendo tempo, minha querida. Já fiz planos para irmos ao armarinho em Covent Garden, nesta manha, mas depois disso, você estará livre para escrever sua carta!

QUANDO LYDIA espiou dentro do quarto de Felicity, pouco antes da hora do jantar, ela

ainda estava sentada à escrivaninha. — Não acabou ainda? Felicity indicou as bolas de papel amassadas no chão. — Não consigo. É mais difícil do que eu pensava explicar tudo o que aconteceu. — Por que não sugere a ele que vocês se encontrem? Será que não é mais fácil

pessoalmente? O simples pensamento fez o coração de Felicity pular. — Mas eu me comportei como uma libertina ontem à noite... O que ele vai pensar de

Page 42: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

42

mim? — Você está se escondendo dele há cinco anos — retrucou Lydia. — Acha que

alguma coisa é mais difícil de perdoar do que isso? — Não, acho que não. — Eu gostaria de ficar aqui e ajudar você com essa carta, mas James e eu temos de

acompanhar o príncipe regente ao teatro nesta noite. Fique acordada, na volta, eu lhe conto como foi. James ouviu dizer que a princesa de Gales também vai!

— Pobre mulher — murmurou Felicity. — Aposto que ela está arrependida de ter se casado. Sei que ela não se comporta lá muito bem... Tanto ela quanto o príncipe são bastante indiscretos, mas não consigo deixar de sentir pena dela.

— Sinta pena de James — disse Lydia. — Ele terá a ingrata tarefa de acalmar o príncipe se a princesa aparecer, bem como explicar qualquer possível situação embaraçosa ao czar e sua irmã.

DEPOIS DE um jantar solitário, Felicity voltou para sua escrivaninha, mas logo

descobriu que seus inúteis esforços haviam acabado com o estoque de papel e de tinta. Em vez de perturbar os criados, ela decidiu descer até a saleta, onde ficava a elegante escrivaninha de lady Souden.

Uma das melhores coisas de se viver em Berkeley Square, refletiu Felicity, era que Sir James deixava ordens para que houvesse velas acesas em todos os cômodos, durante toda a noite, para que a casa estivesse iluminada quando ele voltasse dos eventos aos quais ele e lady Souden tinham de comparecer.

Portanto, não havia necessidade de ela levar o castiçal de seu quarto para iluminar as escadas, nem para iluminar a saleta. Ela só precisava deslocar um dos castiçais já existentes na sala para mais perto da escrivaninha. Felicity passou algum tempo procurando folhas de papel não timbradas e ajeitando sua pena, até que, ansiosa para concluir logo a tarefa, começou a escrever.

Ainda não tinha terminado a primeira linha quando ouviu a porta se abrir e a voz do criado anunciar:

— O conde de Rosthorne! A pena caiu de sua mão. Ela virou-se na cadeira e olhou, desconcertada, enquanto

Nathan entrava na sala. A luz da vela, que ela tinha achado tão aconchegante momentos antes, agora

parecia brilhante demais. Não havia nenhuma sombra onde ela pudesse se esconder. E mesmo que houvesse, ela não conseguiria se mover. Estava petrificada.

— Quer dizer, então, que é você. Felicity não conseguia falar. O criado se retirou, fechando a porta. Um calafrio de

medo percorreu a espinha de Felicity quando ela viu o brilho nos olhos de Nathan. Ocorreu-lhe, por um momento, que ela preferiria estar trancada ali com uma fera selvagem.

— Eu pensei que você tivesse morrido. — Não, eu... — Ela sentiu a boca seca. — Como você me descobriu aqui? Ele colocou o chapéu e as luvas sobre um aparador. A chama da vela se refletia no

anel de sinete que ele usava na mão esquerda, fazendo-o brilhar. — Seu disfarce de ontem à noite foi muito eficaz, mas havia alguma coisa... familiar

em você. Eu não consegui definir o que era, somente depois que você partiu eu me dei conta.

— Como... Quem lhe contou que eu estava aqui? — Você mesma. — Mas... — Felicity balançou a cabeça. — Eu não... — No jardim dos Stinchcombe — ele a interrompeu. — Você me contou que era

Page 43: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

43

dama de companhia. Não era preciso ter uma inteligência de gênio para pensar na insossa srta. Brown, a discreta acompanhante de lady Souden.

Felicity se encolheu, chocada e magoada com o tom sarcástico de Nathan, bem como com as palavras dele. Ele atravessou a sala e parou diante dela.

— Qual era o seu plano? — exigiu. — Você queria me enredar? Queria me emaranhar numa teia de desejo antes de se revelar, é isso?

— Não! Eu estava justamente, neste momento, escrevendo uma carta para você... — Mais mentiras! — É verdade, eu juro! Felicity forçou-se a ficar de pé. Era menos intimidador, muito embora seus olhos

ficassem no mesmo nível da gravata de Nathan. — Nathan, ouça, por favor... Eu nunca quis enredar você. Quando eu saí de

Corunha, eu não pensava que fosse ver você novamente. — Até que eu me tornei conde! — ele retrucou, mordaz. — Você não estava

interessada em ser a esposa de um simples oficial do Exército, mas uma condessa... Sem dúvida, a idéia deve ser irresistível.

— Não é verdade! — Ela se virou, tentando ignorar o magnetismo que emanava de Nathan. — A noite de ontem não deveria ter acontecido, não deveria ter existido. Tudo o que eu queria era dançar com você. — Ela se crispou ao ouvir a exclamação de descrença dele. — Depois eu achei que talvez houvesse ainda alguma esperança para nós. Eu passei a tarde inteira tentando redigir uma carta para você.

— Você acha que pode me explicar tudo? Felicity ficou em silêncio. A idéia de abrir o coração para aquele homem zangado e

implacável era inconcebível. — Eu tentei encontrar você — ele declarou por fim, esfregando a cicatriz sobre o

olho. — Coloquei anúncios nos jornais. Você não viu? — Sim — confessou ela, desamparada. — Mas... — Eu disse a mim mesmo que só poderia haver duas razões para você não

responder aos anúncios. Uma delas era se você estivesse morta, a outra era se você não quisesse ser encontrada. Eu esperava que fosse a primeira.

Felicity fechou os olhos. Quantas vezes, naqueles primeiros meses de volta à Inglaterra, ela realmente tinha desejado morrer?

— O que você fez com o dinheiro? — Como? — A minha bonificação. Cada centavo que eu tinha economizado. Eu deixei com

você antes de sair de Corunha. — Eu... Gastei. — Ah, é mesmo? E quanto tempo durou? — Uns seis, sete meses. Felicity se encolheu diante do brilho de raiva nos olhos dele. — Por Deus, você deve ter vivido em alto luxo para ter esbanjado tudo em tão pouco

tempo, não? Bem, espero que tenha aproveitado bem, porque não vai arrancar de mim mais nem um níquel furado!

— Eu não quero o seu dinheiro! — retorquiu Felicity, irritada. — Não quero nada de você, nunca mais!

— Então por que me procurou ontem à noite? Felicity o encarou, sem saber o que responder. Por mais que seus sonhos e esperanças parecessem infantis e tolos agora, ela não poderia suportar ver Nathan zombar deles. — Pense o que quiser — respondeu com frieza, virando-se. — Não tenho de dar explicações.

Nathan segurou-a pelos ombros e a obrigou a virar-se. — Pois eu acho que tem, sim, senhora! Ontem à noite, você me seduziu... — Eu não seduzi você!

Page 44: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

44

— Ah! Então como você chamaria aquilo? Nenhuma simples dama de companhia conheceria os truques que você usou.

— Se eu usei algum truque, foi com você que aprendi! — Espera que eu acredite que não existiu outro homem em sua vida desde que você

me deixou? Felicity desvencilhou-se das mãos dele. — Eu não espero que você acredite em nada do que eu digo! Ele cruzou os braços. — Pois deveria. Estou disposto a ouvir. — Nathan esperou, e quando ela não disse

nada, acrescentou: — Será que pode me explicar como veio parar nesta casa? — Lydia... Lady Souden e eu estudamos juntas. Quando... Quando eu voltei para a

Inglaterra, eu não tinha para onde ir, então a procurei, e ela me aceitou em sua casa. — Então faz cinco anos que você é pensionista dela. — Nada disso. — Felicity se empertigou. — Até alguns dias atrás, eu era preceptora

dos filhos de Sir James. — E você se denomina "srta. Brown". Ela desviou o olhar. — Eu queria esquecer o passado. — E você achou que a melhor maneira de fazer isso era começar uma vida nova,

usando um novo nome? Ela deu de ombros. — Eu não queria causar problemas... — Problemas?! — Com uma exclamação exasperada, Nathan virou-se e começou a

andar pela sala. Por fim, parou ao lado da lareira. — E você achou que não causaria problemas se desaparecesse? Por todos os santos, você por acaso faz idéia de como foi aquele inverno na Espanha? — Ele olhou para baixo, para a lareira apagada e empretecida.— Nós marchamos através do inferno para voltar para Corunha, o tempo todo com os franceses atrás de nós! Passamos fome, frio, com as solas das botas furadas, e sabíamos que ficaríamos encurralados entre os franceses e o mar. Eu esperava que você estivesse lá, em Corunha, esperando por mim... E quando chego, descubro que você foi embora! A cidade estava um caos, eu não sabia o que pensar, não tinha idéia de onde procurar. Havia mais de 20 mil soldados para embarcar nas balsas e ir até os navios que esperavam para trazê-los para a Inglaterra. Ninguém tinha tempo nem cabeça para me ajudar a encontrar uma mulher desgarrada num momento como aquele. Eu rezei, com todas as minhas forças, para que você tivesse conseguido embarcar em segurança para a Inglaterra, mas não tinha como confirmar. Cinco anos. Cinco anos e nem uma notícia sua. E de repente, encontro você morando aqui, bem debaixo do meu nariz!

— Eu não planejei nada disso! — gritou ela. — Então por que veio para Londres? — Lady Souden está esperando bebê e me pediu que viesse para fazer companhia

quando Sir James não pudesse. — Vocês duas devem ter achado que seria muito engraçado me fazer de tolo! — Não é nada disso! Eu nem queria vir para Londres. Eu imaginava que seria

complicado, mas Lydia insistiu para que eu viesse. Eu não podia recusar, devo muito a ela.

— Pois chegou a hora de me dar o que você deve a mim, Felicity. — Nathan estendeu a mão. — Venha.

Ela o fitou, cautelosa. — Eu não entendo... Ele a segurou pelo pulso. — Vou levar você de volta comigo para Rosthorne House. — Não! A esta hora da noite? O que as pessoas vão pensar...? — Não sei, e não me importo. Felicity tentou resistir.

Page 45: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

45

— Não, eu não vou com você! — Pois eu digo que você vai. — Ela tentou se desvencilhar, mas Nathan puxou-a

para si e a ergueu nos braços. Felicity arquejou e começou a chutar e a se debater, em vão. Ele a segurou com força contra o peito.

— Fique quieta, mulher. Você não ofereceu toda essa resistência ontem à noite... Ela soluçou. — Solte-me, seu monstro! Ele riu, áspero. — Monstro, milady? Eu sou seu... — Posso saber o que está acontecendo aqui? Sir James Souden estava parado na soleira da porta. Atrás dele, Lydia assistia à

cena com os olhos arregalados. Felicity sentiu o rosto queimar. Ela parou de lutar e olhou para Nathan. Ele parecia tranqüilo, impassível. — Lamento informá-lo, Sir James — disse ele — que o senhor está oferecendo

abrigo a uma impostora. — Você andou bebendo, Rosthorne? Coloque a srta. Brown no chão imediatamente. Nathan ignorou a ordem. — Ah, é justamente essa a questão. Esta não é srta. Brown coisa nenhuma. — Seu

olhar fulminante transferiu-se para Felicity. — Esta é minha esposa, a condessa de Rosthorne.

Capítulo Seis

SIR JAMES franziu a testa. — Homem de Deus, agora não tenho dúvida de que você está embriagado! Um sorriso sardônico espalhou-se pelos lábios de Nathan. Felicity gostaria de poder

livrar o braço e estapear o rosto dele. — Está enganado, Sir — respondeu Nathan calmamente. — Pergunte a lady

Souden. Acredito que ela saiba a verdade. Lydia puxou o marido para dentro da saleta e fechou a porta, bloqueando a cena

para os dois criados que estavam no hall. — Eu sabia da ligação, mas não... — Ela olhou para Felicity. — É um pouco

complicado... Sr James era um diplomata, já fazia um bom tempo, e não se chocava facilmente.

Com um suspiro, ele se desvencilhou da esposa e deu um passo na direção de Nathan. — Muito bem, então eu exijo uma explicação do que está acontecendo na minha

casa. Rosthorne, por gentileza, ponha a senhorita no chão e me diga o que está havendo. O tom de voz calmo de Sir James surtiu efeito. Nathan colocou Felicity no chão, e

ela se afastou dele, alisando a saia e fulminando-o com os olhos. Sir James sorriu. — Muito bem então... — disse ele, com toda a cordialidade. — Posso pedir que

sejam servidos alguns drinques? Nathan esperou em silêncio enquanto Sir James tocava a sineta. A rapidez com que

Page 46: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

46

os criados atenderam ao chamado sugeriu que estavam logo ali, provavelmente com o ouvido encostado à porta. Lady Souden tinha convencido Felicity a ir até o sofá, onde ela estava sentada empertigada, com os olhos baixos. Com os cachos revoltos sobre os ombros e o rosto levemente corado, Nathan refletiu como ela era tentadora.

Maldição. Ele estava mesmo disposto a levá-la para Rosthorne House, momentos antes, mas

agora, com a raiva sob controle, reconhecia que a situação teria de ser resolvida de uma maneira mais civilizada se quisesse evitar um escândalo. Seu propósito ao ir até Souden House fora para provar que sua suspeita estava correta, mas o choque de encontrar Felicity fora esmagador. Ela estava ainda mais bonita do que ele se lembrava, um pouco mais magra, com o rosto mais fino, mas os grandes olhos cinzentos ainda tinham o poder de perturbá-lo. E a lembrança do comportamento dela na varanda, na noite anterior, lhe despertava uma onda de emoção tão avassaladora que ele chegava a sentir que perderia o controle. Alívio, alegria, sofrimento e raiva brigavam por supremacia... E a raiva ganhara a primeira vitória.

Eles esperaram em silêncio até as bebidas serem servidas. Enquanto bebericava seu conhaque, Nathan reparou que as mãos de Felicity tremiam um pouco quando ela se serviu de uma taça de vinho. Era certo consolo saber que ela também estava perturbada.

— Bem — disse Sir James, recostando-se na poltrona com um sorriso nos lábios. — Quem vai explicar? Lady Rosthorne, talvez queira começar.

Lady Souden inclinou-se para frente e falou, com os olhos brilhantes: — Rosthorne salvou Felicity de um grupo de assaltantes em Corunha. — Talvez seja melhor, minha querida, deixar que ela mesma nos conte sua história.

— Sir James virou-se para Felicity. — Eu gostaria de saber, antes de mais nada, o que a senhorita estava fazendo na Espanha... Em poucas palavras, por gentileza. A noite foi longa, e eu lhe peço que seja breve.

Felicity ficou imóvel e em silêncio por um longo momento, como que coordenando seus pensamentos.

— Meus pais faleceram quando eu era criança. Eu fui entregue à guarda de meu tio, mas ele era solteiro e não tinha condições de me criar sozinho. No entanto, meus pais deixaram dinheiro suficiente para que eu pudesse ir para um excelente colégio interno.

— Foi onde nos conhecemos e nos tornamos amigas. — Lydia acenou com a cabeça. — Ela era Felicity Bourne na época, é claro...

— Entendo — murmurou Sir James. — Por favor, continue, senhorita. — Eu viajei para a Espanha em junho de 1808, com meu tio Philip Bourne. Ele é...

era clérigo. A intenção dele era ir para a África, como missionário, mas nosso navio aportou em Corunha, e nós desembarcamos. Meu tio disse que ficaríamos ali, que ele sentia que era a sua missão. Ele alugou acomodações para nós e pensou em abrir uma igreja, para atender a viajantes ingleses, mas isso acabou nunca se concretizando. A saúde dele era muito frágil. Ele ficou doente algumas semanas depois de chegarmos à Espanha e nunca se recuperou completamente. Em outubro, ele adoeceu novamente, e dessa vez... — Felicity hesitou, e Nathan viu que o queixo dela tremia ligeiramente. — Meu tio também não era um bom administrador de suas finanças. Eu não fazia idéia de quão pouco dinheiro nós tínhamos até... — Ela suspirou. — Depois que paguei o médico e as despesas do funeral, descobri que não tinha dinheiro suficiente para pagar o aluguel da pensão.

Nathan observou enquanto ela se recompunha e cruzava as mãos no colo, então sentiu pena. Não tinha sido fácil para ela. Mas a expressão de Felicity era de determinação quando ela prosseguiu seu relato:

— Eu vendi tudo o que pude, com a esperança de que o dinheiro durasse até eu arrumar um emprego, mas eu era muito nova. — Ela ergueu a cabeça. — Eu tinha 19 anos. Se eu tivesse permanecido no colégio, eu poderia ser auxiliar de professora em

Page 47: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

47

uma das classes das meninas pequenas e talvez, até mesmo, me tornar professora titular. Em Corunha, eu vi moças da minha idade já casadas e com filhos, mas sendo solteira e sozinha, parece que as pessoas não me levavam a sério, a não ser para...

Nathan cerrou os punhos involuntariamente. Ele sabia o que ela ia dizer. — A não ser para...? — encorajou Sir James gentilmente. Felicity estremeceu. — O senhorio disse que eu podia, ficar em um dos quartos da pensão se... Se eu

concedesse a ele alguns... Favores. Então eu resolvi ir embora. Eu estava a caminho do centro da cidade quando roubaram minha maleta.

— E foi, nesse momento, que o então major Carraway a socorreu. — Isso mesmo, Sir James. Nós nos casamos uma semana depois. Sir James tomou um gole de vinho. — Não parece fazer sentido — murmurou ele por fim. NATHAN SE recostou e fechou os olhos. Não fazia sentido, de fato, quando colocado daquela forma tão crua. Mas fizera

sentido na época. Na ocasião, parecera a coisa mais lógica do mundo. Ele havia levado Felicity para a Casa Benitez, dera-lhe o que comer, colocara-a na cama, tirara suas roupas enlameadas e lavara os cortes e arranhões em seus braços. Ele a abraçara quando ela acordara mais tarde, assustada no meio de um pesadelo, e ficara a seu lado observando-a voltar a dormir. Ainda hoje ele se lembrava nitidamente de ficar admirando o delicado perfil dela, o contorno do nariz e do queixo, o cabelo dourado espalhado sobre o travesseiro.

Ele tinha planejado comportar-se como um perfeito cavalheiro, mas quando ela acordou e sorriu para ele, ele se inclinou e beijou-a na testa. Os olhos cinzentos se arredondaram de surpresa, e ele reconheceu neles a fagulha do desejo. Incapaz de resistir, ele roçou os lábios nos de Felicity, e quando ela não se retraiu, ele abriu os lábios e capturou os dela num beijo sensual. Um leve tremor sacudiu o corpo delicado, è no segundo seguinte, ela já estava retribuindo o beijo. O abraço tímido e inexperiente o inflamou por dentro. Ele sentiu a paixão selvagem e indomada que havia dentro dela e queria ser o homem que iria libertar essa paixão.

O primeiro beijo deles foi longo e prazeroso, mas Nathan percebeu a inexperiência de Felicity e tratou de interrompê-lo. Ela permaneceu deitada sobre os travesseiros, respirando pesadamente, com os olhos da cor do mar tempestuoso. Com relutância, ele se afastou.

— Felicity, escute uma coisa: eu preciso trabalhar hoje de manhã, porém, mais tarde, vou com você até a embaixada britânica, e vamos explicar a sua situação. Uma vez que eles sejam informados, você ficará em segurança. — Ele se virou, com medo de recair na tentação. — Preciso ir agora. Tenho de conversar com o conselho local sobre o desembarque dos soldados. Você precisa ficar aqui, entendeu? Não saia para a rua enquanto estiver aqui, onde sei que você está em segurança. — Ele a ouviu suspirar e acrescentou, num tom de voz mais brando: — Eu lamento ter de deixar você aqui, mas tenho um serviço a cumprir.

— E claro — respondeu ela calmamente. — Eu compreendo que tenha suas obrigações, major.

Três horas depois, Nathan retornou para a Casa Benitez irritado e amaldiçoando todos os processos burocráticos. Subiu correndo as escadas até seu apartamento e encontrou Felicity à sua espera. Quando ele entrou, ela abriu um largo sorriso, e para ele, foi como se o sol tivesse inundado o quarto. De repente, o dia já não parecia ter sido tão ruim, e ele sentiu a tensão se dissipar.— Esse é o seu vestido? Nem parece o mesmo...

Page 48: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

48

Felicity abriu as saias e dobrou os joelhos numa mesura. — Obrigada, major. Sam conseguiu tirar quase todas as manchas, e eu costurei a

renda que estava rasgada na gola. — Muito bem! Esse trabalho lhe tomou a manhã inteira? — Quase. — Ela apontou para a sacada envidraçada. — O resto do tempo fiquei

sentada ali, à sua espera. Ele sorriu. — Uma tarefa entediante! — De jeito nenhum. O Cantão Grande é bem movimentado, sempre há alguma coisa

interessante para ver. — Felicity indicou uma bandeja pequena. — Sam trouxe seu licor. Ele achou que seria aconselhável nos fortificarmos antes de irmos falar com o adido do embaixador. — Ela serviu dois cálices e entregou um a Nathan. — Confesso que estou um pouco nervosa.

— Não há por quê. Hookham Frere vai achar você muito simpática — afirmou Nathan.

Felicity suspirou e colocou seu cálice de lado. — Eu tive bastante tempo para refletir sobre minha situação, major, e vou entender

perfeitamente se não quiser continuar me ajudando. Nathan franziu a testa. — Como assim? — O senhor já fez muito por mim, e sei que é bastante ocupado. Não quero lhe dar

mais trabalho do que já dei, portanto, se me informar o endereço do sr. Hookham Frere, eu irei até lá falar com ele e pedir proteção. Se eu conseguir que alguém me empreste o dinheiro da passagem para voltar para a Inglaterra, posso procurar o advogado da nossa família. É possível que tenha sobrado alguma coisa dos bens de tio Philip para que eu possa pagar a dívida. Senão, posso voltar para o colégio e pedir um emprego lá...

— Não! Felicity olhou para ele, surpresa. — Como? — Você não vai fazer isso. — Mas não tem cabimento eu ficar aqui de braços cruzados enquanto o senhor

providencia tudo, major. Eu preciso fazer alguma coisa. — Então case-se comigo. — Como disse, lorde Rosthorne? Nathan abriu os olhos para se deparar com Sir James e lady Souden o observando. — O capelão nos casou — contou Nathan. — Foi um casamento relâmpago, mas

perfeitamente válido. Eu marchei para fora de Corunha com meu regimento mais tarde, no mesmo dia, e foi a última vez que vi minha esposa ou que tive notícias dela. Depreendi que ela tivesse morrido. E era o que eu pensava... Até agora.

— E por que será que sua esposa desapareceu desse jeito? — quis saber Sir James.

Nathan olhou para Felicity, cujo semblante era uma máscara de seriedade e tensão. Com certeza, ela imaginava que ele iria anunciar para o mundo inteiro que ela havia roubado seu dinheiro.

— Foi um mal-entendido — respondeu ele, seco. Os olhos cinzentos de Felicity cintilaram.

— Sim — ela murmurou, desamparada. — Um mal-entendido. Sir James lançou um olhar indagador à esposa. — E você sabia de tudo isso, Lydia? Ela retorceu nervosamente o tecido da saia. — Não de tudo. Felicity me procurou, pedindo ajuda, e eu não podia recusar. — Lady Souden não tem culpa de nada — Felicity interveio. — Ela não sabia sobre

Page 49: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

49

o casamento. — Além do mais — disse Lydia —, lorde Rosthorne, ou o major Carraway, na época,

tinha voltado para a Península na ocasião em que Felicity escreveu para mim. Então não havia mesmo outra coisa a fazer.

Nathan não pôde deixar de admirar o olhar que Lydia lançou ao marido. Era um misto de arrependimento, pedido de desculpas e súplica. Ele se viu desejando que Felicity também o olhasse daquele jeito, mas ela apenas permanecia ali sentada, com a cabeça baixa. Uma onda de irritação o percorreu.

— Bem, já chega — ele declarou, levantando-se. — Está muito tarde. Se me derem licença, vou levar minha esposa para casa agora.

Pelo canto do olho, ele viu Felicity erguer a cabeça abruptamente. Sir James colocou seu copo sobre a mesinha.

— Eu entendo sua ansiedade para reconciliar-se com sua esposa, Rosthorne, mas talvez seja melhor a senhorita lady Rosthorne ficar aqui mais algum tempo. — Antes que Nathan pudesse protestar, Sir James prosseguiu, no mesmo tom de reflexão. — Há algumas questões a considerar, meu rapaz. Primeiro, Rosthorne House é uma residência de solteiro, não é verdade? Certamente, você vai querer fazer algumas modificações antes de levar sua esposa para lá. Segundo, e possivelmente mais importante, quando se tornar de conhecimento público que você arrumou uma esposa da noite para o dia, você se tornará alvo de especulações de todos os fofoqueiros da cidade.

— Depois do que aconteceu aqui, seus criados já estão especulando, com toda a certeza — retrucou Nathan.

— Sir James fez um gesto de pouco caso. — Eu pago meus empregados também por sua discrição, mas fora daqui, não

acontece o mesmo. Você não pode negar que deixou que todo mundo pensasse que era solteiro.

Nathan corou ligeiramente diante da gentil repreensão. — Não foi proposital — justificou-se. — Aqueles que sabiam do meu casamento

estavam lutando a meu lado, na Península. A maioria morreu em combate. Quando voltei para a Inglaterra e não tive mais notícias de Felicity, não vi motivo para revolver o passado.

— Certo, mas agora ele será revolvido, discutido e comentado em cada salão e casa de chá de Londres — observou Sir James. — É inevitável.

— Não, não é inevitável — interveio Felicity, muito pálida. — Eu posso desaparecer outra vez.

— Não! — exclamou Nathan, irritado. Por todos os santos, por que aquela mulher tinha tanta aversão a ele? Nem os

franceses que ele havia capturado na guerra tinham demonstrado tanta vontade de ficar longe dele...

— Receio que isso seja impossível, minha querida — disse Sir James gentilmente. — Você é legalmente casada com Rosthorne... Não podemos ignorar esse fato. Mas talvez possamos amenizar um pouco o veneno do falatório e especulações.

Nathan tornou a sentar-se. — Qual é a sua idéia? — indagou. — Podemos dizer que você mandou sua esposa de volta à Inglaterra por motivos de

segurança — sugeriu Sir James. — Afinal, seria perigoso para ela ficar no coração da guerra, portanto ninguém vai achar estranho. E sendo assim, era mais que natural que ela procurasse sua velha amiga e ficasse com ela.

— Por cinco anos? — Nathan não conseguiu disfarçar o ceticismo. — Faz apenas alguns meses que a guerra terminou. — E qual seria a explicação para ela não ter o meu sobrenome? Sir James sorriu discretamente.

Page 50: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

50

— Uma precaução. As mulheres costumam ser cautelosas, não? — Ah, é perfeito, meu amor! — exclamou Lydia, batendo palmas. — Excelente! Sir James aceitou a aprovação da esposa com um ligeiro sorriso, mas seu olhar

estava fixo em Nathan, à espera de uma resposta. Nathan deu de ombros. — Eu não tenho nenhuma objeção, mas será que lady Rosthorne concorda? Felicity assentiu em silêncio, tão pálida e com expressão tão pesarosa que quem

não soubesse poderia pensar que ela estava concordando com sua própria execução. Nathan ficou com pena dela, e ao mesmo tempo, se sentiu pouco à vontade. Ele se levantou, apressado.

— Ótimo, está combinado então. Voltarei de manhã para buscar minha esposa... — Ele notou a expressão de Sir James e perguntou, impaciente: — Por Deus, homem, qual é o problema agora?

— Eu disse, há pouco, que sua esposa deveria ficar aqui e ainda penso assim. Não só para que vocês dois tenham tempo de se adaptar à nova situação, mas — Sir James fez uma breve pausa —, precisamos também levar Sua Alteza em consideração. Nathan o fitou.

— O que o príncipe tem a ver com isto, por Deus? Sir James fez um gesto amplo com as mãos.

— Estamos em plena Celebração da Paz — explicou. — As coisas já não estão correndo às mil maravilhas. Esta noite mesmo, a princesa de Gales apareceu no teatro e foi o centro de todas as atenções. A notícia sensacional de que o conde de Rosthorne tem uma esposa pode causar o mesmo efeito, e você sabe como o príncipe odeia ficar à sombra. — Ele fez uma pausa. — Não seria uma boa coisa ter o príncipe regente como inimigo, Rosthorne.

Nathan chegou a abrir a boca para amaldiçoar o príncipe com todas as letras quando seu olhar recaiu sobre Felicity. A evidente angústia no semblante dela desviou um pouco a sua atenção. No que lhe dizia respeito, ele não se importava grande coisa com os mexericos ou que o príncipe o excluísse dos eventos sociais, mas para a própria condessa não seria tão fácil. Ele podia não se importar nem um pouco com a opinião de príncipe, mas sabia que Sua Alteza poderia dificultar bastante a vida de sua esposa. Se as fofoqueiras influentes da sociedade decidissem mostrar suas garras, elas poderiam destruir todas as possibilidades de Felicity ser aceita nos círculos sociais. Poderiam fazer da vida dela um inferno, e por mais que a vontade dele fosse torcer aquele pescocinho, estava para passar por cima de seu cadáver a pessoa que quisesse magoar sua esposa.

Ele esfregou o queixo. — Seus deveres como escolta do imperador da Rússia o deixarão com muito pouco

tempo livre nas próximas duas semanas — lembrou Sir James. — Sei que estão programadas visitas ao Royal Exchange, à Torre de Londres e à Abadia, bem como vários outros compromissos...

— Está bem, não precisa continuar — interrompeu Nathan. — Vou deixá-la aqui aos seus cuidados, até o czar ir embora de Londres. — Ele lançou um olhar severo para lady Souden. — A senhora fica responsável por minha esposa, milady. E bom que cuide para que ela não escape de mim outra vez.

— Ta-talvez seja melhor eu ir embora da cidade — sugeriu Felicity. Nathan balançou a cabeça. — Não. Eu quero você aqui, onde posso vê-la. Sir James concordou. — Se ficar aqui, senhorita, dará a si mesma e ao lorde Rosthorne uma oportunidade

de se reconciliarem. Lydia ergueu os olhos brilhantes para Nathan. — Milorde, permite que Felicity continue sendo minha dama de companhia enquanto

ela estiver aqui?

Page 51: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

51

— Essa decisão não cabe a ele — protestou Felicity. — Bem, eu prefiro que seja de comum acordo entre todos — respondeu Lydia,

inabalável. — Mas para mim, seria perfeito, pelo menos, até minha prima Agnes chegar. — Ela virou-se para o marido, com expressão esperançosa. — Pode ser, querido?

— Como a minha principal preocupação é com o seu bem-estar, meu amor, é claro que sim, mas eu diria que lorde Rosthorne e a condessa é que têm de decidir.

Nathan hesitou. Ele não queria que Felicity fosse companhia de ninguém além de si próprio, mas depois de fazer tamanha trapalhada daquele encontro, ele admitia que isso poderia ser um ponto positivo.

Por fim, ele assentiu. — Eu vou permitir que essa pequena farsa continue por mais algum tempo. — Ótimo. — Sir James se levantou. — Bem, agora chega por hoje, não? Acho que

todos nos beneficiaríamos de uma boa noite de sono. Permita-me que o acompanhe até a porta, milorde.

Nathan virou-se para as senhoras, mas ao ver o modo como Felicity parecia se encolher sob seu olhar, ele simplesmente se curvou numa mesura antes de acompanhar Sir James para fora da sala:

— Esta foi uma noite bastante interessante — murmurou Sir James para Nathan. — Isso, Sir, é um eufemismo! — Quer dizer que você e a srta. BouBourne se conheceram e se casaram no espaço

de uma semana? Pouco tempo para se conhecer uma pessoa, não acha? Nathan relembrou aqueles dias, cinco anos antes. Ele soube, desde o primeiro

momento, e a cada segundo tivera mais certeza de que Felicity era diferente de qualquer outra mulher que ele havia conhecido. Que ela era a única mulher que ele queria ter como esposa. E nada acontecera nos últimos cinco anos para fazê-lo mudar de idéia.

— Espero que você encontre tempo em meio aos seus compromissos para planejar sua campanha — disse Sir James.

Nathan ergueu uma sobrancelha. — Campanha, Sir? O sorriso do outro homem se alargou, e ele deu uma palmadinha nas costas de

Nathan. — Para cortejar novamente a sua mulher, meu jovem!

Capítulo Sete

FELICITY ACORDOU com os sons naturais da manhã debaixo de sua janela: o canto dos pássaros, o ruído das rodas das carruagens e dos cascos dos cavalos sobre o cascalho. Sons que ouvia todos os dias desde sua chegada a Berkeley. Mas havia alguma coisa diferente naquela manhã, algo que a fez revirar-se nos travesseiros. De repente, tudo voltou, e ela se sentou na cama, abraçando os cobertores. A noite anterior não tinha sido um pesadelo, Nathan tinha mesmo ido até lá e a tinha reconhecido de fato.

Ela saiu da cama e foi até a cômoda sob a janela. Debaixo das camisolas e anáguas bem dobradas na primeira gaveta, seus dedos se fecharam em torno de uma bolsinha de 'couro. Puxando-a para fora, abriu-a; virou-a para baixo e dois anéis caíram na palma de sua mão.

Page 52: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

52

Lembrava-se, com muita clareza, de quando Nathan lhe dera o anel de diamante. Tinha sido um dia antes do casamento deles. Nathan tinha ido buscá-la para jantar e conhecer seus amigos militares.

Não tinham ido muito longe quando ele parou. — Eu quase ia me esquecendo. Comprei isto para você hoje. Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma caixinha. Felicity a pegou já com um sorriso

se delineando nos lábios, que se transformou em um suspiro quando, ao abrir a tampa, se deparou com um delicado anel de brilhante reluzindo diante de seus olhos.

— Ah, é lindo! — Vamos nos casar amanhã, e não posso apresentá-la como minha noiva se você

não estiver usando um anel. Tire a luva e experimente. Espero que seja do tamanho certo.

— E perfeito. — Ela suspirou. — Obrigada, major. — Eu tenho um nome, como você deve saber. Acho que já é hora de sermos menos

formais. — Claro que sim. Obrigada, Nathan — disse ela, olhando para ele e sorrindo

timidamente. Felicity corou quando percebeu o brilho de carinho nos olhos dele. Achou que, talvez

por estar em uma rua movimentada, ele não a tivesse tomado nos braços e a beijado. Mas ele apenas desviou o olhar e deu uma tossidela.

— É melhor você calçar a luva de novo. — É preciso mesmo? — indagou ela, olhando para a mão. — Quero que todo

mundo veja meu anel. — Muito bem — disse ele, rindo e apoiando a mão dela sobre seu braço dobrado. —

Mas essa maresia vai rachar sua pele. — Só desta vez, não vai fazer mal. Devo lhe dar um anel também? — Isso não é necessário, já tenho um. — Nathan tirou um pesado anel de ouro da

mão direita. — Minha mãe me presenteou com este quando atingi a maioridade, há três anos. Daqui para frente, vou usá-lo na mão esquerda.

— E o outro anel, no dedo mindinho? — Esse foi um presente do meu avô quando entrei para o Exército. Segundo ele,

daria para pagar algumas noites de hospedagem, um par de botas ou o que eu precisasse.

— Isso não é muito comum — observou ela, inclinando-se mais para perto para estudar o anel perto dos tocheiros que queimavam perto de uma das casas.

— É um espinheiro, símbolo da família Rosthorne... Veja, é o espinho de uma rosa. Felicity observou o anel de ouro com os. espinhos gravados em toda a volta.

Ocorreu-lhe, por um momento, que ele podia ter lhe dado aquele anel em vez de comprar um novo, mas um olhar de relance para o pequeno solitário em seu dedo afastou o pensamento fugaz. O anel serviu com perfeição em seu dedo e seria guardado para sempre como um tesouro.

— Diga-me de novo, major, para onde vamos? — Para o Hotel Fontana d'Oro. Quero apresentá-la a Adam Elliston. Nós crescemos

juntos e somos como irmãos. — Ficarei encantada em conhecê-lo — ela respondeu, sorrindo. — Elliston estará ria companhia de... — ele hesitou e tossiu — da sra. Serena

Craike. Ela é esposa do coronel Craike. — O coronel Craike estará lá também? — Felicity perguntou inocentemente, mas

olhou para cima. — Ah, você. Você quer dizer que ela e seu amigo são amantes? — Felicity sussurrou a última palavra.

— Bem, ele está enfeitiçado por ela, não sei se a palavra seria amor... — Nathan torceu os lábios em sinal de desaprovação.

Page 53: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

53

— Talvez ela seja infeliz no casamento — ponderou Felicity. — Talvez, mas Adam não é o primeiro homem que fica enfeitiçado por ela. — Ah... Ela é bonita? — É, sim, para que gosta de ruivas. FELICITY PEGOU O segundo anel de ouro liso e o segurou entre os dedos. As

lembranças do dia de seu casamento eram apenas vislumbres. Ela estava rodeada de homens em uniformes reluzentes, um oficial com voz grave e

grandes bigodes gritava ordens para o padre terminar logo a cerimônia, uma vez que a Guarda já estava marchando para fora de Corunha. A esposa do oficial segurava firmemente um pequeno ramalhete de flores silvestres. Felicity reconheceu mais um ou dois oficiais ali presentes, mas o melhor amigo de Nathan, Adam Elliston, não conseguira escapar das obrigações, e ela sentia muito por ele.

Felicity não tinha amigos, nem fazia questão, já que Nathan estava sempre a seu lado, fazendo os votos matrimoniais com toda a segurança, deslizando o anel de casamento no dedo da noiva e roçando os lábios nos dela.

— Bem, sra. Carraway — Nathan virou-se para fitá-la —, como se sente? — Um pouco estranha — disse ela devagar. — Não sinto nada de diferente. — Desculpe-me... Mas se casar assim com tanta pressa, sem... Felicity levou um dedo aos lábios dele, calando-o. — Os votos é que importam, Nathan, não o lugar ou o modo como foram feitos. Nathan estendeu a ela uma bolsinha. — Isto é tudo que tenho agora. Há mais do que o suficiente para você se sustentar

até ficarmos juntos de novo. Paguei a estadia e as refeições aqui para os próximos três meses, quando pretendo lhe mandar mais. — Ele a abraçou. — Lamento ter de a deixar sozinha...

— Não se preocupe comigo. Você precisa cumprir suas obrigações, e quanto a estar sozinha, vivo isolada com meu tio, portanto estou acostumada. Pelo menos agora, tenho a senora Benitez, que é muito gentil, e logo devo conhecer as outras senhoras inglesas da cidade.

Com um sorriso nos lábios, ele tomou-lhe a mão e a beijou. Depois levantou o queixo dela com o dedo e beijou-a delicadamente nos lábios. O contato gerou uma faísca que percorreu todo o corpo de Felicity. Ela fechou os olhos, usufruindo a sensação do beijo e o perfume da pele de Nathan. Se fosse possível, gostaria de que aquela carícia não terminasse jamais.

Depois, ele a levou de volta ao apartamento, no Cantão Grande, e a carregou para dentro do quarto.

— Mas Nathan, seus homens... — protestou ela com o coração partido. — O coronel disse que você precisa alcançá-los...

— Eles que esperem — murmurou ele, colocando-a de pé. — Cavalgarei durante a noite inteira para encontrá-los se for preciso.

Nathan pôs as mãos sobre os ombros dela, fazendo-a tremer com o toque. — Quanto tempo temos? — ela perguntou timidamente. O sorriso de Nathan

levantou a pele de Felicity em doces arrepios, descendo até os dedos do pé. — Tanto quanto precisarmos, querida. FELICITY ESTREMECEU Colocou os anéis em uma bolsinha e a escondeu bem no fundo

da gaveta de novo. Estava tudo terminado. Ela o tinha amado e confiado nele, e isso tinha custado muito, por isso, não permitiria que acontecesse de novo.

— Ah, como fui tola! — exclamou.

Page 54: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

54

— O que é isso, minha querida? — Lady Souden entrou no quarto, seguida de perto por Betsy, que trazia a bandeja de café da manhã.

— Gostaria de ter ficado em Souden — disse Felicity, irritada. Felicity permitiu que Betsy colocasse a bandeja na cama, mas não tomou o

chocolate quente, ficou apenas mirando as profundezas do líquido marrom. Quando a criada saiu do quarto, ela olhou para a amiga.

— Ah, Lydia, o que eu faço? — choramingou. — O que você faz? — Lydia serviu-se de uma das delicadas fatias de torrada com

manteiga, dispostas na bandeja. — Ora, minha querida, você precisa aprender a ser uma condessa.

— Mas Rosthorne me odeia! — Nada disso, Fee. Pode estar certa de que ele estava um pouco irritado na noite

passada, o que é compreensível. — Lydia sorriu. — Foi um choque para mim quando entrei com James na sala e encontrei você nos braços de Rosthorne. Eu não sabia que ele era tão passional.

— Não foi nada engraçado — retrucou Felicity, ofendida. — Foi assustador. Nunca vi Nathan tão bravo. Só Deus sabe o que teria acontecido se você não tivesse chegado naquela hora.

Lydia a encarou com um brilho maroto nos olhos. — Você não sabe mesmo, querida? O rosto de Felicity corou, e sorrindo, Lydia se aproximou e afagou a mão dela. — Desculpe-me, não vou mais brincar com você. Achei que James lidou bem com a

situação, não acha? Ele é sempre tão calmo e sensível... E que bom que Rosthorne aceitou que você continuasse aqui comigo.

— Mas por quanto tempo? — perguntou Felicity. — Estou bem tentada a ir para a minha cama, sabendo que ele pode vir me chamar a qualquer hora.

Corno para provar o que ela tinha acabado de dizer, uma criada bateu de leve na porta para anunciar que lorde Rosthorne estava na sala, querendo ver a srta. Brown.

Felicity ficou pálida e fitou a amiga com olhos assustados. Lydia limitou-se a dar uns tapinhas em suas mãos. — Diga ao lorde Rosthorne que, se ele não se importar de esperar um pouco, a srta.

Brown vai descer em meia hora — disse ela à criada e voltou a atenção para Felicity. — Betsy vai ajudá-la com o vestido, e vou pedir a janet que arrume seu cabelo. Agora que o conde sabe quem você é, não há necessidade de parecer uma Quaker.

— Meu tio diz que é uma aparência muito adequada. — Seu tio tentou minar sua autoestima — replicou Lydia. — Treinaram-nos no

colégio para sermos parceiras adequadas para nossos maridos e não para servir de criadas. Lembre-se disso.

Pouco mais de meia hora mais tarde, Felicity estava pronta para descer. — Gostaria de que viesse comigo — disse ela, lançando um olhar suplicante para

lady Souden. — Mas eu ainda nem estou vestida! — exclamou Lydia, deslizando os dedos pela

camisola. — Além disso, Rosthorne vai me pedir que os deixe a sós, tenho certeza. — Ela deu um tapinha encorajador nas costas de Felicity. — Vá e enfrente-o. Afinal, ele é um cavalheiro civilizado.

Felicity dirigiu um olhar sombrio para a amiga. — Isso ele é. Só espero que ele se lembre disso! O CONDE a aguardava na biblioteca. Ele estava perto da janela, girando um globo, e

não a viu imediatamente. As calças de camurça, as botas de cano alto e o paletó talhado combinavam, com perfeição, com seu porte atlético. Porém, a claridade da janela atrás

Page 55: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

55

dele impediu-a de ver a expressão de seu rosto. — Eu vim... — disse ele de repente. — Queria me desculpar pelo meu

comportamento rude de ontem à noite. — Estávamos um pouco nervosos — comentou Felicity, inclinando ligeiramente a

cabeça. — Você arrumou o cabelo de um jeito diferente. — Sentindo o rosto corar, ela levou

a mão à cabeça. Era uma situação estranha sentir os cachos caindo sobre os ombros depois de tanto tempo..

— Lady Souden sugeriu... — Ah, eu deveria ter imaginado. Ela sabe como agradar a um homem. Felicity enrubesceu e endireitou o corpo, empinando um pouco o queixo. — O que posso fazer pelo senhor, milorde? — Ela tentou falar da maneira mais fria

possível, mas não surtiu efeito nenhum. O conde não pareceu se abalar. — Posso me sentar? Felicity se deixou afundar em uma poltrona, encolhendo-se quando ele se sentou

bem à sua frente, encarando-a. — Parece que você não dormiu muito bem — comentou ele por fim. — Se servir de

consolo, eu também não. Sua presença na cidade foi um choque para mim. — Eu queria ter me anunciado de maneira mais sutil. — Não era necessário se anunciar — retrucou ele. — Você assinou um contrato

legal quando nos casamos. Ficou claro que os votos matrimoniais, que pareciam tão importantes, significaram tão pouco para você que você fugiu de mim na primeira oportunidade.

— Não foi isso... — Felicity precisava fazê-lo compreender. — Você tinha uma... — Foi preciso um esforço hercúleo para falar calmamente. — Alguém disse que você tinha uma amante.

— Uma o quê? — perguntou ele, arqueando as sobrancelhas. — E você acreditou sem mesmo falar comigo?

— Era pouco provável que me contasse a verdade — retrucou ela. — Além do mais, você já tinha saído de Corunha.

— Então você poderia ter escrito para mim, mas não é essa a questão. Não importava se eu tivesse uma fileira de amantes, você é minha esposa! Não tinha o direito de ir embora sem dizer nada. Em nome dos céus, o que acha que eu pensei? — Nathan fez uma pausa e respirou fundo. — Quando voltei para a Inglaterra, fiz de tudo para encontrar você. Coloquei advogados para trabalhar, procurei até o contador do seu tio. Aliás, você deveria ter recorrido ao dinheiro dele, pois como deve saber, ele não morreu na miséria.

— Tive medo de procurá-lo e ele contar para você onde eu estava. Felicity manteve a cabeça baixa, mas podia sentir o olhar fixo quase a perfurando. — Eu a assusto tanto assim? — perguntou ele com calma. — Que você se

distanciou de todos que poderiam tê-la ajudado? — Nem todos... — É verdade. — O desprezo no tom de voz dele era inconfundível. —Você procurou

lady Souden. Não tenho dúvida de que ela deve ter achado muito romântico acolher e esconder você...

— Ela queria que eu o procurasse! Eu a fiz prometer que não contaria à ninguém, nem mesmo a Sir James!

— Então, como se não bastasse não levar o próprio casamento em consideração, ainda persuadiu a amiga a enganar o marido.

— Quando eu saí da Espanha, estava brava e magoada. — Felicity suspirou. — Só pensava em fugir de você. Estive doente por um tempo e quando me recuperei, seu regimento já tinha partido para a Península. Lady Souden me ofereceu um lar e uma

Page 56: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

56

ocupação. Foi melhor assumir um novo nome e esquecer que um dia fomos casados. Achei que nunca o veria de novo.

Nathan a fitou com os braços cruzados e um sorriso cínico nos lábios. — Você acha que sou tolo? Foi a vez de Felicity encará-lo com desprezo. — E tão difícil assim acreditar que não quero mais nada com você? — Ah, não, acredito mais que você estivesse feliz ao abandonar um oficial sem

dinheiro. A situação mudou bastante quando percebeu que seu marido era o conde de Rosthorne.

Ela o fuzilou com o olhar e deu-lhe as costas. — Sim, isso faria mais sentido — continuou ele, levantando-se e postando-se atrás

dela. — Ser casada com um lorde rico seria bem mais confortável do que ser esposa de um soldado pobre, não é? Uma soma polpuda pode até reconciliá-la com minhas... Diversões.

Ela se virou de repente e ficou tão perto dele que precisou olhar para cima para fitá-lo.

— Eu nunca quis o seu dinheiro! Se fosse isso, eu teria aparecido assim que você se tornou conde de Rosthorne.

— E por que não fez isso? Por que me deixou pensar que eu era um viúvo? Deus do céu, eu poderia ter me casado de novo! Você me tornaria um bígamo.

— Claro que não! Felicity se levantou e tentou se afastar, mas ele a segurou pelo braço. — Então o que você teria feito se eu tivesse escolhido outra noiva? Teria ido até a

igreja, talvez, e feito um pronunciamento no dia do meu casamento? — Nada disso! Eu nunca pensei... Eu apenas queria me esconder, ter uma vida

pacata com outro nome... — E agora? O que vamos fazer? — Nathan enterrou os dedos na pele macia. — E

então, milady? Irritada, ela lutou para se livrar dele. — Eu poderia ir embora, morar em outro país. — Ela levantou a cabeça. — Ou,

então, podemos optar pelo divórcio... Só Deus sabe a quantas mulheres seu nome não está vinculado.

Felicity o enfrentou com o olhar. Havia uma centelha de alguma coisa reluzindo nos olhos dele, talvez raiva ou surpresa, era difícil dizer. Quando ela se viu livre, moveu-se para ficar fora do alcance, esfregando as mãos nos braços.

Com uma expressão de rancor, ele se distanciou e ficou olhando pela janela durante alguns minutos.

— É isso o que você quer? — indagou por fim. Esperou a resposta e acrescentou de um jeito rude: — Presumo que seu silêncio signifique que sim. — Ele se virou devagar. Bem, eu estaria louco se facilitasse as coisas para você. Estamos casados, na alegria e na tristeza. Eu avisei que pretendia reivindicar minha esposa!

— Esses não são sentimentos dignos de um homem civilizado. — É bem provável — ele revidou. — Mas não estou me sentindo muito civilizado no

momento. — Bem, deixe-me lembrá-lo, Sir, de que esta casa pertence a um cavalheiro, e

enquanto não se comportar como tal, sugiro que fique afastado. Assim dizendo, ela saiu da sala, batendo a porta. FELICITY CORREU escada acima com o corpo formigando. Tinha medo de que Nathan

resolvesse segui-la e a forçasse a voltar. Só ouviu os passos dele no piso de mármore do hall quando já estava no andar de cima. Correu até a varanda a tempo de vê-lo deixando

Page 57: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

57

a casa. — Felicity, minha querida, o que houve? — Lydia se aproximou. — Eu ouvi vozes

alteradas. — Foi isso mesmo — respondeu Felicity, com a voz trêmula de raiva. — Esse

homem é grosseiro e intimidador. Não posso nem imaginar como pude gostar dele um dia!

Lydia a levou para o próprio quarto e fechou a porta. — O que ele disse? Felicity pegou um lencinho e assou o nariz, com raiva. — Eu disse que sabia da amante dele, e ele nem ligou! Disse que poderia ter dúzias

delas, mas que isso não me dava o direito de abandoná-lo! — Bem, legalmente ele está certo... — Eu não me importo com a lei! — exclamou Felicity, estreitando os olhos. — Ele

disse que não vai desistir de mim. — Isso é um bom sinal, não? — Não tenho tanta certeza. Acho que isso está acontecendo apenas porque ele não

gosta de ser contrariado. — Ela suspirou. — Ele é tão difícil, Lydia, tão bravo... Não tem nada que se pareça com o homem educado e gentil que conheci em

Corunha. Acho que fui ingênua ao esperar que ele fosse o mesmo. — Você deve tê-lo assustado, foi só isso. — Lydia acariciou as mãos de Felicity. —

Sempre achei Rosthorne um homem encantador, e James o considera muito. Acho que ele será um marido muito atencioso.

— E quanto às amantes dele? Você ouve os comentários, Lydia... A Europa está poluída com esse tipo de mulheres. É muito improvável que ele mude.

— Mas não é impossível — disse Lydia, acrescentando: — Devemos encarar os fatos, minha querida. Muitos homens têm amantes, apesar de eu achar que James nunca... Bem, mas acho que ele é uma exceção. Ter um marido educado, generoso e atencioso é muito mais do que uma mulher pode esperar, e acho que lorde Rosthorne agrega todas essas qualidades. Creio que, depois que vocês se acostumarem um ao outro, vão se entender muito bem. Mas não há nada mais para ser feito no momento. Agora vá e troque esse vestido por um de passeio. Um pouco de exercício lhe fará bem. Espero você lá embaixo em meia hora.

— Por quê? Aonde nós vamos? — perguntou Felicity quando Lydia se dirigiu para a porta.

— Para a nova Boyd Street. — Lydia respondeu feliz. — Vamos fazer compras! PASSARAM-SE TRÊS dias até que Nathan tentou se encontrar com a esposa

novamente. Entre a ida a Richmond para escoltar o czar Alexander de volta à cidade e acompanhar o marechal Blucher a uma reunião militar, ele passou em Berkeley Square apenas para ser informado de que lady Souden e a srta. Brown tinham saído e só voltariam à tarde. Ele foi até lá outra vez quando o czar e sua irmã participavam de uma das muitas festas em sua homenagem e soube que as senhoras da casa tinham ido jantar fora.

No dia seguinte, escreveu um bilhete sucinto, requisitando uma visita, mas recebeu uma resposta muito civilizada de lady Rosthorne explicando que a Celebração da Paz gerava um grande número de compromissos e que era impossível prever quando estaria em casa. Nathan não se convenceu com a desculpa no bilhete e o amassou com raiva. Era evidente que Felicity o estava evitando.

Depois de dar vazão à raiva com um árduo treino de esgrima, Nathan conseguiu refletir sobre o último encontro que tivera com Felicity e reconhecer que tinha dado a ela poucos motivos para procurá-lo. Mas ele também tinha motivos para estar bravo. A

Page 58: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

58

errônea convicção de que ele tinha uma amante em Corunha era uma desculpa muito fraca para fugir dele. Era mais provável que ela quisesse o dinheiro dele... Ele não seria o primeiro soldado a ser vítima de uma interesseira. Se bem que poderia jurar pela própria vida que Felicity não era tão insensível, e era bem possível que ela tivesse precisado do dinheiro quando voltara para a Inglaterra... Ela tinha comentado que ficara doente... Precisava falar com ela de novo.

Com essa idéia em mente, Nathan compareceu a um evento na casa de lady Templeton na noite seguinte. Seu humor não estava dos melhores quando ele entrou no salão de baile lotado. Ele tinha conseguido uma folga de suas tarefas de escolta, e a última coisa que gostaria de fazer era comparecer a outra festa, mas aquele era um dos eventos mais sofisticados da temporada, e ele tinha certeza de que Felicity estaria ali. Parecia que Londres em peso estava presente, comprimida entre as paredes elegantes.

Nathan se esgueirou rapidamente em meio à multidão para evitar lady Charlotte, coberta de diamantes e rendas. Não demorou para que visse o primo Gerald flertando ostensivamente com a irmã do czar, a grã-duquesa de Oldemburgo.

Ele se virou, grato por, pelo menos, não ter de se preocupar com os convidados da realeza. Sua estatura facilitava espreitar-se pelo salão e não demorou a vislumbrar lady Souden conversando com a anfitriã e, sim, Felicity estava ao lado dela. No mesmo instante, notou a sutil diferença na aparência dela. Ela não usava lenço no pescoço, e o vestido de musselina cor-de-rosa acentuava o tom suave da pele perfeita. O cabelo cor de mel não estava mais puxado para trás em um coque, mas preso em cachos suaves, um deles caindo ao lado do pescoço, até quase o decote. Eram mudanças pequenas, mas o efeito o deixou perplexo.

FELICITY NOTOU Nathan desde que ele entrara na sala, e com certo desconforto, ela

percebeu como ele abria caminho entre as pessoas, munido de uma expressão de determinação. Ela puxou a manga de Lydia e se acalmou quando a amiga lhe apertou a mão. Quando Nathan se aproximou, Lydia gentilmente encerrou a conversa com lady Templeton e virou-se para cumprimentá-lo.

— Que prazer, lorde Rosthorne! — Ela estendeu a mão e não deixou opção para ele de não a tomar, embora a impaciência dele estivesse evidente.

— O prazer é meu, milady. Srta. Brown. Ainda se lembrando do último encontro, Felicity o cumprimentou com um frio aceno

de cabeça. — Eu gostaria de saber, srta. Brown, se me daria a honra de... — Ah, você quer dançar com a srta. Brown! — interrompeu Lydia. — Ótimo, faça

isso, querida, não preciso da sua companhia no momento. — Ela colocou o braço sobre os ombros de Felicity, empurrando-a para frente. — Aí está, milorde, uma parceira encantadora. Mas não se esqueça de trazê-la de volta assim que a música terminar.

— Você não ia me convidar para dançar, não é? — Felicity o desafiou quando ele a conduziu pelo salão.

— Não. Eu queria um tempo para ficar a sós com você. Ela estremeceu. Não havia nada de romântico no tom de voz dele.

— Talvez não seja possível, estamos muito ocupadas... — Entendo, mas é preciso. — Ele tomou lugar na fileira de cavalheiros para o início

da dança, sem desviar o olhar do rosto de Felicity. A música começou. Eles se deram as mãos, aproximaram-se e afastaram-se sem também olhar em outra direção que não fosse o rosto do parceiro. Nathan estava tão sério que era difícil acreditar que era o mesmo homem com quem ela havia dançado no baile de máscaras. Naquela ocasião, ele estava sorridente, e seus olhos brilhavam. Mas naquela ocasião, ele não sabia quem ela era.

— Está suspirando, srta. Brown. Será que sou um acompanhante tão tedioso?

Page 59: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

59

Estavam tão próximos que ela podia responder sem que ninguém ouvisse. — Eu estava me lembrando da última vez que dançamos, milorde. — No baile de máscaras? — Ele inclinou a cabeça, aproximando-se mais. — Eu já

lhe disse, milady, aquela não era propriamente uma dança de sedução. Felicity corou. — Peço desculpas, agi como uma libertina. Nathan apertou bastante a mão dela, mas antes que ela pudesse reagir, os passos

da dança os separaram. O estado de espírito de Felicity afundou ainda mais. Ele não a havia contestado. Talvez aquele comportamento fosse aceitável para uma amante e não para uma esposa.

— Então vai me dizer quando posso encontrá-la? — perguntou Nathan, enquanto voltavam juntos da pista de dança.

— Lady Souden e eu vamos sair... — Diga que não poderá acompanhá-la. — Não. — Felicity se lembrou da expressão escandalizada dos criados na última vez

que tinham ficado sozinhos em Berkeley Square. Ela tinha receio de que a própria reputação não suportasse outro encontro daqueles. — Não posso encontrá-lo sozinha na casa.

Um músculo do rosto de Nathan saltou, evidenciando o esforço que ele fazia para se controlar. Quase que no mesmo instante, ela acrescentou:

— Eu vou pensar em outro lugar, mas me dê um tempo. — Você tem até o fim da noite. — Mais uma vez ele apertou a mão delicada com

força. Eles terminaram de dançar num silêncio contundente, e Nathan a escoltou com uma

pressa quase vulgar, com a expressão fechada e fria. Felicity teve a sensação de que ele não via a hora de se separar. Ao ir na direção de lady Souden, encontrou Gerald Appleby bloqueando o caminho.

— Ora, ora, srta. Brown, agora é a minha vez! Achei que a senhorita não dançasse, mas a estive observando dançar com meu primo. Se consegue dançar com Rosthorne, não pode me negar essa honra! Venha, srta. Brown.

Quando Gerald estendeu a mão para pegar a dela, Nathan se colocou entre os dois. — Você é muito impaciente, Appleby. A senhorita não aceitou o convite. Felicity piscou, perplexa com a ameaça fria na voz de Nathan. Gerald o encarou com

um misto de surpresa e riso estampado no rosto. — O que fez com meu primo, srta. Brown? Ele está prestes a me chamar para

briga. — Eu não permitiria que você importunasse a senhorita, isso é tudo — Nathan disse

em um tom gélido, soltando o braço de Gerald. — Sou tão sem importância assim? — Gerald sorriu e arqueou uma sobrancelha

para Felicity. — Bem, milady, aceita dançar comigo? Felicity hesitou. Atrás de Gerald, lady Souden estava sorrindo e meneando a

cabeça, enquanto Nathan a fuzilava com o olhar. Talvez ele não estivesse tão indiferente. Decidida, ela endireitou os ombros e levantou a mão. — Por que não, sr. Appleby?

Aceito seu gentil convite. — Nathan contraiu os lábios em uma linha fina e, sem sorrir, curvou-se numa mesura para Felicity. — Até mais tarde, srta. Brown.

Capítulo Oito

Page 60: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

60

DANÇAR COM Gerald fez o humor de Felicity melhorar. Ela se divertia com o jeito alegre dele, com as brincadeiras, porém, mais do que isso, percebeu que Nathan não tirava os olhos dela durante a música inteira.

— Juro que fiquei impressionada com o comportamento de lorde Rosthorne — murmurou Lydia quando se dirigiram para a sala de jantar logo em seguida. — Enfrentar o sr. Appleby daquele jeito não é de seu feitio. Só há uma explicação para esse comportamento, Fee. Ele está com ciúmes.

— Você acha mesmo? — Claro que sim! Enquanto você dançava, ele ficou parado, vigiando, com os braços

cruzados e um olhar ameaçador. Ninguém sequer ousou se aproximar. — Ela deu um risinho. — Muito romântico, igual ao Corsário, de lorde Byron.

— Ainda não li o poema, portanto não faço idéia do que se trata. Felicity tentou não pensar em Nathan como uma figura taciturna e ameaçadora, pois

isso a fazia sentir-se sem forças. Em vez disso, tentou pensar em um lugar seguro onde pudesse encontrá-lo no dia seguinte. Na sala de jantar, um valete se aproximou e murmurou alguma coisa no ouvido de lady Souden, e Felicity viu quando ele indicou lady Charlotte Appleby do outro lado da sala, meneando a cabeça e sorrindo para eles.

— Fomos convocadas — murmurou Lydia, virando-se para Felicity com um olhar pesaroso.

Lydia atravessou a sala, cumprimentou lady Charlotte com sua voz melodiosa e sentou-se graciosamente ao lado dela.

— Minha querida lady. Souden, que situação, não? Achei que era melhor trazê-la até aqui.!. Só Deus sabe quem poderia se sentar a seu lado na mesa, não é mesmo?

O tom de voz estridente de lady Charlotte ecoava por todo o salão. Felicity viu que algumas pessoas olhavam na direção delas. Lydia comentou alguma coisa seguida de um riso, mas lady Charlotte já estava concentrada em outra coisa. Ela pediu vinho e voltou a olhar para Lydia.

— Sir James não veio nesta noite? — Não, senhora, ele foi acompanhar o marechal Blucher em um jantar na cidade. —

Lydia relanceou o olhar para Felicity e sorriu. — Mas não estou sozinha. — Eu percebi. — Lady Charlotte empertigou-se. — Vi sua acompanhante dançando. — Ah, sim, a srta. Brown dança com muita elegância. — Não se trata disso — declarou lady Charlotte. — Eu a vi dançando com Gerald.

Isso não é nada bom. — Ela aproximou-se mais para acrescentar: — Deveria adverti-la, minha querida lady Souden. Meu filho é um rapaz cativante, mas ela não deve ter esperanças. Gerald não é para ela.

Mesmo em tom de sussurro, Felicity ouviu a conversa, bem como as pessoas nas mesas vizinhas.

— Não — continuou lady Charlotte, ignorando regiamente os sorrisos afetados, à sua volta. — Ele é o herdeiro de Rosthorne, como sabe. Gerald está destinado a posições mais altas.

Lydia estreitou os olhos com raiva, mas não sentiu necessidade de responder e delicadamente mudou de assunto. Felicity manteve a cabeça baixa, olhando para o prato de salgadinhos que lady Templeton tinha providenciado para a degustação de seus convidados. Era deprimente pensar que, se aquela mulher não a considerava adequada para o filho, obviamente também não a julgava uma consorte à altura de lorde Rosthorne.

Felicity ficou aliviada quando, por fim, lady Souden se levantou da mesa e a levou de volta para o salão de baile, murmurando:

— Pobre Fee, que noite atribulada, não? Vamos para casa?

Page 61: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

61

— Quando quiser, milady. — Então, por favor, vá lá para baixo pegar nossas capas, enquanto me despeço de

nossa anfitriã. Felicity apressou o passo e atravessou o salão, mas, quando chegou às escadas,

uma voz arrastada a fez parar. — Está planejando fugir sem me avisar? — Nathan encurtou a distância entre eles. Felicity esticou o braço por instinto, para mantê-lo distante. Mas ele cobriu a mão

delicada com a sua. — La-Lady Souden quer ir embora. — Você deveria ter me procurado para dar boa-noite. — Eu... — Felicity não conseguia pensar enquanto os dedos dele acariciavam seu

pulso, muito menos, falar alguma coisa. — Você já decidiu onde podemos nos encontrar amanhã? — Vai... Vai ser difícil — ela gaguejou. — Estarei muito ocupada. — Eu também — murmurou ele, puxando-a para mais perto. — Que seja bem cedo

então. Que tal às seis horas? Acredito que lady Souden não precisará dos seus serviços a essa hora.

Felicity engoliu em seco. — N-não, claro que não. E onde podemos nos encontrar? — No Green Park, na Alameda da Rainha. Estarei lá às seis horas. — Nathan levou

a mão miúda de Felicity até os lábios. — Não vá me decepcionar. Felicity meneou a cabeça. Conforme Nathan se virou e foi em frente, ela percebeu

um movimento perto da porta da sala de jantar... Lady Charlotte estava ali parada, com um olhar cortante.

— Parece que a senhorita é a estrela do baile nesta noite, não, srta. Brown? Sem responder, Felicity correu escada abaixo. LONDRES ERA surpreendentemente agitada às seis horas da manha, no verão. A elite

ainda dormia, mas um exército de criados já estava em plena atividade, escovando, limpando e polindo as mansões, enquanto, na rua, uma fileira de carroças passava carregada de vegetais frescos até caixas de papelão para os encadernadores. Felicity escapou da casa silenciosa em Berkeley Square e se embrenhou no tumulto de mais um dia de trabalho.

Ninguém prestou a atenção em uma figura de roupa simples e capuz que se movimentava sem pelas ruas movimentadas até ela chegar aos portões do Green Park.

Não foi difícil encontrar a alameda que Nathan mencionara. A rua era ladeada por árvores, e à esquerda, despontavam as casas de Arlington Street, as janelas dos fundos com vista para o parque. Ela sabia que uma daquelas casas pertencia ao lorde Rosthorne. Se tivesse dado tudo certo, ela estaria morando ali com Nathan agora. Procurou afastar o pensamento e adentrou o parque, onde as construções eram escondidas por muros altos ou vegetação, e os ruídos da rua foram substituídos pelo canto dos pássaros.

Havia uma névoa matinal pairando no topo das árvores. Felicity puxou a capa, apreensiva com toda aquela quietude depois de ter passado pelo burburinho de Piccadilly Street. Desejou ter trazido um acompanhante. O caminho estava deserto, levando-a a olhar para a esquerda e para a direita a todo instante, receando que algum indivíduo ameaçador pulasse à sua frente. Chegou a uma curva no caminho onde seus ouvidos captaram ruídos assustadores, que levaram seu coração a bater mais forte. Eram gemidos, seguidos de pancadas. Ela sabia que deveria dar meia-volta e sair correndo, mas a curiosidade a levou além do arbusto que bloqueava sua visão.

Page 62: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

62

NATHAN CHEGOU cedo ao encontro, admitindo para si próprio que estava ansioso para

ver Felicity de novo. Ainda estava bravo por ela ter se escondido durante todos aqueles anos, mas ela era sua esposa, e era preciso resolver logo o assunto. Ele abriu caminho pelos arbustos com uma bengala. Sir James tinha lhe sugerido que cortejasse Felicity, mas ele não queria perder tempo com isso. Um homem não precisava cortejar a própria esposa! Ainda assim, uma vozinha em sua mente sussurrava que se ele a tivesse namorado apropriadamente cinco anos atrás, talvez ela nunca tivesse fugido. Mas Nathan logo afastou o pensamento.

De súbito, uma sensação de perigo invadiu seus pensamentos, e ele ficou em alerta. Um som abafado vindo de trás o fez se virar a tempo de ver um bastão descendo em sua direção. Nathan se abaixou, mas não a tempo de se esquivar do golpe na cabeça, mandando seu chapéu para longe.

Deixou a bengala cair no chão e se atracou com o assaltante, segurando-lhe o pulso com força, girando-o até que o outro derrubasse o bastão. Com a visão mais clara depois do golpe, Nathan deu um soco certeiro no estômago do assaltante, que gemeu e se curvou para frente, apenas para levar outra pancada no queixo. O sujeito desmaiou, e Nathan deu um passo para trás, enxugando o sangue da testa. Naquela fração de segundo, seu oponente voltou a si, ficou em pé, atabalhoado, e correu para o meio dos arbustos. Nathan estava prestes a ir atrás dele quando ouviu um movimento e, ao olhar para trás, viu Felicity encarando-o, pálida.

— Sinto muito — disse ele. — Eu não queria que tivesse testemunhado isso. — Você está sangrando. — Não é nada. — Não, não limpe o sangue do rosto com a manga do casaco — advertiu ela,

aproximando-se e tirando um lenço da bolsinha. Nathan levou a mão ao bolso. — Eu também tenho um... — Então o pressione contra o corte, enquanto limpo seu rosto. — Ela guiou a mão

dele para o ferimento. — Isso, agora está coberto. Nathan prendeu a respiração. Felicity estava muito próxima, prestando atenção ao

machucado, mas com o rosto a centímetros de sua boca. Era uma tentação não se curvar só um pouquinho e beijá-la. Como se tivesse ouvido seus pensamentos, ela baixou a mão e deu um passo para trás.

— Desculpe — disse ele. — Meu rosto ensangüentado e a cicatriz... Devo estar parecendo um monstro.

— Abominável — concordou ela, rindo. Com a ponta da língua, ela umedeceu o lenço. — Permita-me limpá-lo um pouco.

Nathan ficou parado passivamente enquanto ela limpava o sangue do rosto e das sobrancelhas. Retraiu-se quando ela tocou a cicatriz.

— Quando aconteceu isso? — perguntou ela. — Na Espanha. Estávamos nos retirando de um pequeno vilarejo chamado Pozo

Bello. Fui atingido por uma espada da cavalaria francesa. — Eu sinto muito. Nathan encolheu os ombros, desconfortável com a compaixão que ela demonstrava. — Fui um dos que tiveram sorte. Elliston morreu nesse dia. — Adam Elliston? Ah, eu não sabia. — Os olhos grandes e acinzentados de Felicity

se encheram de lágrimas. — Você desapareceu, eu não tinha como a avisar. Felicity recuou diante do tom de

voz, e Nathan se amaldiçoou pelo descuido. Chegou a pensar em algo conciliador para dizer, mas ela se antecipou, com um comentário corriqueiro:

— Agora está mais apresentável. Sua cabeça já parou de sangrar? Vamos voltar

Page 63: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

63

para Piccadilly, é mais seguro lá. Se o assaltante voltar... Nathan pegou o chapéu e o colocou na cabeça, enrugando um pouco a testa

quando a parte interna do chapéu pressionou o corte recente. — Ele não vai voltar. — Não pode ter tanta certeza. — Felicity estendeu-lhe a bengala. — Gostaria de que

tomasse cuidado, milorde. — Eu tomo cuidado, mas se corre o risco de ser assaltado em Londres. Não presto

atenção a esses gatunos, eu me garanto. — Garantir-se diante de um assassino é que quero ver. — Que disparate é esse? — perguntou Nathan. — Três atentados à sua vida, Sir... Ele riu. — Está pensando no suposto intruso no jardim dos Stinchcombe? — Havia alguém lá, milorde, eu sei porque o vi. Além disso, notei algo brilhando,

como a lâmina de uma adaga. E o soco que derrubou seu chapéu... — Isso foi um mero acidente. — E se aquele ataque foi direcionado para você e não para o czar? — ela persistiu. Sorrindo, ele tomou-lhe a mão e a passou por seu braço dobrado. — Fico sensibilizado com sua preocupação, mas não deveria dar importância a esse

tipo de incidente. Por que alguém iria querer me matar? — Não sei, mas... Nathan levantou a mão. — Chega desse assunto. Prometo que vou pensar a respeito. Eles começaram a voltar na direção de Piccadilly. Felicity tentou não se apoiar muito

no braço de Nathan, retesando o corpo até chegarem à entrada do parque, então respirou aliviada quando viu o movimento na rua.

— Você está tremendo — observou Nathan. — Vou acompanhá-la até Berkeley Square.

— Não é preciso, milorde. — É sempre bom. Felicity inclinou à cabeça. No íntimo, ficava aliviada por não precisar voltar para casa

sozinha. Tinha ficado impressionada de encontrar Nathan lutando com um assaltante, e suas pernas ainda tremiam.

— Você ainda não me contou por que queria se encontrar comigo. — Porque só a vejo acompanhada. Confesso que não tive intenção de colocá-la em

perigo. Achei que o parque fosse seguro a esta hora da manhã. O que me fez lembrar uma coisa — comentou ele de súbito. — Por que saiu de casa sozinha? Por que não trouxe uma aia consigo?

— Eu estava tentando evitar falatório — retorquiu ela. — Como você, pensei que fosse seguro um encontro bem cedinho.

— Graças a Deus, você não foi a primeira a chegar ao parque e não foi a vítima do assaltante. Ele devia estar vadiando perto do portão, esperando alguém entrar no parque.

Felicity mordiscou o lábio. Ainda estava convencida de que não havia sido um ataque aleatório e estava prestes a voltar ao assunto quando Nathan chamou sua atenção de novo:

— Você é muito descuidada com sua segurança, Felicity. Acho que talvez fosse melhor você sair de Londres.

— Mas por que eu faria isso? — Enquanto não for público que você é minha esposa, não posso protegê-la. — Não preciso da sua proteção — ela objetou, irritada. — Não? Appleby já está prestando muita atenção a você. — Está com ciúmes, milorde? — indagou ela, arqueando uma sobrancelha. — Deus do céu, claro que não! Só estou preocupado com você. Discrição não é um

Page 64: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

64

dos pontos fortes de Gerald. — Nathan baixou o olhar para fitá-la. — Então, vai sair da cidade?

— Lamento, mas não posso — respondeu Felicity, depois de uma breve hesitação. — Lady Souden precisa de companhia, e a prima dela não poderá vir antes do fim do mês.

— Duas semanas! Tenho certeza de que lady Souden pode ficar sem companhia até lá.

Felicity balançou a cabeça. — Você sabe que lady Souden espera um bebê para o outono, e Sir James quer que

ela esteja acompanhada sempre. — Ela fez uma pausa e acrescentou com certa dificuldade: — Sei que não gostou de ela ter me ajudado a enganar você, mas ela tem sido uma boa amiga para mim. Sem contar que a gravidez é um período de ansiedade para qualquer mulher. Quero ficar com Lydia para apoiá-la.

Nathan não respondeu imediatamente. Por fim, cobriu a mão delicada, apoiada em seu braço, com a dele.

— Muito bem, então vamos manter o plano original. — Ele respirou fundo, e Felicity notou uma ponta de frustração. — Mas você precisa tomar cuidado, ficar em casa a maior parte do tempo.

— Isso não vai me tornar uma boa acompanhante — disse ela, esboçando um sorriso.

— Lady Souden não pode sair a toda hora! — Bem, durante o dia, há os passeios de carruagem e visitas matinais e, à noite,

claro, há as festas, os bailes, as reuniões... Nathan blasfemou baixinho. — Milorde? — Ela ergueu os olhos, com ar inocente. — E você precisa comparecer a todos esses eventos? — Ah, não a todos eles. Apenas aos que Sir James não pode ir. Nathan contraiu o maxilar. — Então, quando sair, certifique-se de não chamar muita atenção. — Sim, milorde — ela respondeu, obediente. — E também não deve dançar nos bailes. — Não? — Não — repetiu ele veemente. — Isto é, não pode dançar com ninguém além de

mim!

Capítulo Nove

O retorno de Felicity para Berkeley Square não passou despercebido, e não havia a menor esperança de que lady Souden a deixasse descansar enquanto ela não contasse todos os detalhes da aventura daquela manhã.

Felicity ficou desapontada quando Lydia não levou muito a sério o ataque a Nathan. — Minha querida, isso acontece o tempo todo. Ninguém está seguro nas ruas... Ah,

e isso mostra uma coisa... Você não deveria ter saído sem a companhia de um lacaio. A criadagem do meu marido é muito discreta, ainda mais se você colocar alguns xelins a

Page 65: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

65

mais na mão deles! Mas que história é essa de Rosthorne querer que você saia da cidade?

— Ele está preocupado com a minha segurança. Lydia a olhou de soslaio. — Ele é possessivo demais com relação a você, Fee. — Nathan não é ciumento, se é isso que você está querendo dizer. — Não? Mas você disse que ele determinou que você só dance com ele e ninguém

mais. — Sim. Lydia deu um gritinho de alegria e bateu palmas. — Ah, se ao menos conseguíssemos convencer alguns cavalheiros a flertar com

você embaixo do nariz dele... — Não! Eu não vou provocá-lo, Lydia. Você não sabe como ele fica quando está

zangado. Ele perde a cabeça. — Mas isso é porque ele está desesperado por você, meu bem — ponderou Lydia,

com sabedoria. Felicity balançou a cabeça. — Não é isso, é que ele não gosta de ser contrariado. — Vamos ver... Ah, já sei o que vamos fazer! — disse Lydia, animada. — Vou enviar

uma mensagem ao conde agora, convidando-o para vir jantar conosco antes de irmos à recepção em Carlton House, hoje à noite.

— Não, Lydia! — Sim, Felicity! — retrucou lady Souden, acrescentando com falsa comiseração: —

Pobre rapaz! Já me dói pensar nele jantando sozinho naquela casa enorme... — Lydia, por favor, não escreva para ele! — pediu Felicity, seguindo a amiga para a

saleta de estar. — Eu gostaria imensamente de não me encontrar com ele tão cedo. — Minha querida, se você faz tanta questão, eu não o convidarei, mas por que isso,

meu bem? — Eu estou atormentada, confusa... Preciso de tempo para pensar. — Para pensar em quê? Ele tinha uma amante, então você arrumou suas malas e o

deixou. Isso foi há cinco anos, meu amor... Ele ficou zangado quando descobriu que você tinha fugido, mas você já explicou tudo a ele, não explicou?

Felicity não respondeu. Havia um segredo que ela não podia partilhar com ninguém, muito menos, com Nathan Carraway.

QUANDO SIR James disse que iria acompanhar a esposa ao ridotto na noite seguinte,

Felicity declinou o convite para ir com eles. — Por favor, não pensem que vou ficar entediada aqui sozinha — explicou ela,

sorrindo. — Eu tenho meus livros e acho que vou escrever para o advogado do meu tio, avisando-o do meu paradeiro. Se eu tiver alguma coisa a receber dos bens de tio Philip, será um conforto saber que não vou para Rosthorne House sem um vintém.

Assim que Sir James e Lydia saíram de casa, Felicity foi para a saleta de estar. Depois de várias tentativas, ela conseguiu redigir uma carta a seu contento e estava selando o envelope quando ouviu vozes baixas no hall.

Um pressentimento de perigo a fez sobressaltar-se, mas antes que ela chegasse à porta, esta se abriu, e lorde Rosthorne entrou.

— Srta. Brown... Por favor, não fuja de mim. Sem desviar os olhos do rosto dela, ele ergueu uma mão e fez um sinal,

dispensando o criado. A porta se fechou, e ele ficou ali por um momento, observando-a. Os lábios dele se retorceram.

— Pobre Fee, parece que você está trancada em uma jaula com um tigre.

Page 66: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

66

— S-Sir James e lady Souden saíram, milorde. — Eu sei, eu os encontrei no riaotto. É por isso que vim aqui, para vê-la. Não quer

se sentar? Prometo que eu vou me comportar. Ele a conduziu até o sofá e gentilmente a fez sentar-se, acomodando-se na outra

ponta e virando-se de modo a olhar para ela. — Com está sua cabeça, Sir? — Ainda dolorida, mas melhorando. Felicity mordeu o lábio e retorceu os dedos, nervosa. — Você não costumava ter medo de mim, Fee. — E você não costumava ser tão bravo. — Não. Os anos de lutas na Península deixaram sua marca. Não sou o mesmo

homem de cinco anos atrás. — Eu acompanhei seu paradeiro o máximo que pude — ela contou. — Sir James

recebe os jornais de Londres em Souden. Eu lia todas as notícias. — Felicity o fitou. — Foi uma longa empreitada. Deve ter sido difícil para você.

— Foi mais difícil me desligar do Exército e assumir o controle do patrimônio dos Rosthorne.

— Mas a guerra é uma coisa tão horrível, com tanta violência, morte... A perda de seus amigos, como o sr. Elliston.

Nathan franziu a testa, e por um instante, Felicity pensou que ele não fosse responder.

— Sim, isso foi péssimo — disse ele por fim. — Os pais dele moram perto de Rosthorne Hall. Eu trouxe todos os pertences dele quando voltei, mas, na época, escrever para eles contando que Adam havia morrido foi a coisa mais difícil que eu tive de fazer em toda a minha vida.

Ele olhou para as próprias mãos, pensativo. Felicity respeitou o momento de silêncio por longos minutos, até que ela tornou a falar, tentando manter o tom de voz leve e sereno:

— Você ainda encontra alguma das pessoas que estavam em Corunha? O coronel e a sra. McTernon, a sra. Craike...

Nathan ergueu o rosto. — O coronel e a esposa estão na França agora. O marido da sra. Craike morreu no

recuo para Corunha, e ela voltou para a Inglaterra. Menos de um ano depois, já estava casada com Sir Alfred Ansell.

— Sir Alfred? Mas eu pensei que... — Felicity calou-se! — Pensou que ela se casaria com Adam? — Ele retorceu os lábios. — Adam era uma diversão para ela, mas não era suficientemente rico para manter

seu interesse. Ela gostava de seduzir rapazes ingênuos. E você, Nathan? Ela seduziu você? A pergunta pairou na ponta da língua de Felicity,

mas ela não teve coragem de proferi-la em voz alta. — Elliston ficou arrasado quando soube — continuou Nathan. — Acho que ele teria

suportado melhor se o casamento tivesse sido por amor, mas Ansell tinha idade para ser avô dela... Era óbvio que ela se casou pelo dinheiro.

As palavras seguintes de Nathan responderam à pergunta não formulada de Felicity: — Ela provavelmente estaria aqui em Londres agora, mas Sir Alfred faleceu no

último inverno, e ela ainda está de luto. Felicity baixou os olhos para as próprias mãos, rigidamente cruzadas no colo. — Você parece estar bem atualizado das notícias sobre ela. — É impossível não ouvir os comentários. — Ele gesticulou, impaciente. — Mas

chega desse assunto. Eu vim aqui para falar sobre você. — So-sobre mim? — Sim. Eu pretendia perguntar ontem, mas fomos interrompidos. Quero saber tudo o

Page 67: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

67

que aconteceu com você depois que saiu de Corunha. — Eu comprei minha passagem para voltar para a Inglaterra. — E viveu como uma duquesa até o dinheiro acabar. Felicity não respondeu. — Eu não teria lhe deixado um único vintém se soubesse como você iria gastar o

dinheiro! — rosnou Nathan. Felicity o encarou. — Fazia uma semana que nós nos conhecíamos — ela o desafiou. — Quer que eu

acredite que você ficou desolado quando descobriu que eu havia partido? — Claro que não. Incomodado apenas. Ela se pôs de pé e foi até a janela, contemplando a semiescuridão. — Se eu era um incômodo para você, agora me surpreende que me queira de volta. Nathan tinha refletido a respeito disso. Ele achava que era porque ele não conseguia

resistir a um desafio, mas havia algo mais. Quando ele dançara com Felicity no baile de máscaras, ela o fitara como se ele fosse o único homem no salão. Isto era algo que o perturbava profundamente, mas ele se recusava a deixar-se levar por essa lembrança. Por ora, ele queria uma resposta lógica.

— Você é minha esposa. Podemos ter sido casados por um capelão, mas são os votos que importam. Suas palavras, Felicity, lembra-se?

— Sim, eu me lembro... E me lembro também de você prometer renunciar a todas as outras mulheres.

Nathan franziu a testa, perplexo. — O que você quer dizer com isso? — Eu também ouvi os comentários, milorde! Você não tem vivido exatamente como

um monge nos últimos anos. Proferindo um impropério com voz abafada, ele atravessou o cômodo em duas

passadas e segurou-a pelos ombros, virando-a para si. — Santo Deus, mulher, você testa a minha paciência! Você foi embora, como pode

dizer que fui infiel? — Você me culpa, então, por ter ido embora? — E claro que sim! Eu a culpo por não ter esperado por mim, por não ter dado uma

chance ao nosso casamento! Felicity ficou olhando para ele, abalada com a fúria daquela explosão. Seria possível

que ela tivesse se enganado? Ela errara ao deixá-lo? Se ela tivesse ficado, se não tivesse sido enfraquecida por aquela árdua travessia marítima...

Nathan a soltou abrutamente e virou-se, passando uma das mãos pelo cabelo. Não fora sua intenção recriminar nem magoar Felicity, mas aquela mulher tinha o poder de tirá-lo do sério!

— Talvez — murmurou ela, hesitante. — Talvez eu não devesse ter saído de Corunha. Talvez fosse melhor ter esperado para conversar com você.

— Teria sido muito melhor, sem dúvida — rosnou ele, impiedoso. Felicity procurou nos bolsos pelo lenço, e Nathan ofereceu o seu a ela, em silêncio.

Ele ansiava por abraçá-la, mas, quando deu um passo à frente, ela recuou. — Vamos deixar o passado para trás, Fee. Nós somos capazes de lidar com esta

situação de uma maneira bem melhor que esta, não acha? Precisamos nos conhecer direito novamente.

Ela assoou o nariz. — Não acho que alguma vez tenhamos nos conhecido direito. Nathan arriscou a dar mais um passo na direção dela. — Então vamos fazer isso agora... Vamos nos dar essa chance. Um cacho de cabelo havia se soltado do penteado de Felicity. Ele estendeu a mão e

o afastou para trás da orelha, deslizando em seguida os dedos pelo pescoço delicado. Ela não o repudiou, o que deveria ser um bom sinal. Ele se aproximou ainda mais.

Page 68: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

68

— Não tenha medo de mim, Fee. Ela enxugou os olhos. — Eu não tenho — murmurou, retorcendo o lenço entre as mãos. Mais um passo levou Nathan para tão perto dela, que ele poderia beijá-la. Ele

segurou-lhe o queixo. — Então estamos de bem? Somos amigos de novo? Com gentileza, porém com

firmeza, ele a forçou a erguer o rosto. Felicity olhou para ele e viu-o fitando-a com tanta ternura que suas pernas

enfraqueceram. Ela foi forçada a se apoiar nele para não cair. — A-amigos? — ela gaguejou, temendo que seu coração fosse pular pela boca. — Sim. Bons amigos. Então Nathan sorriu, selando o destino dela. Ele inclinou a cabeça e tocou-lhe

gentilmente os lábios. Foi um beijo leve, suave como uma pluma, e Felicity viu-se esticando-se, na ponta dos pés, para retribuir e prolongar as sensações incríveis que ele lhe despertava. Nathan a tomou nos braços, aninhando-a, e aprofundou o beijo, enquanto toda a tensão se esvaía e restava somente aquela sensação inebriante de flutuar nas nuvens... Flutuar ou afogar-se, ela não sabia ao certo.

Depois de alguns momentos, que para Felicity pareceram eternos e, ao mesmo tempo, efêmeros, ele afastou os lábios, embora ainda a segurasse em seus braços, como se temesse que ela saísse correndo.

— Ah, como eu posso, ao menos, pensar quando você me beija desse jeito? Ele riu baixinho. — O que há para pensar? Ela apoiou a cabeça no peito largo, ouvindo os batimentos firmes decoração dele. —

Eu preciso pensar sobre o que fazer, como agir. Nathan beijou-lhe o topo da cabeça. — Eu diria que você está agindo muito bem. — Não, não. Eu não deveria ficar sozinha com você — murmurou ela, embora

faltasse convicção em sua voz. — Sir James é um diplomata. Os criados dele são conhecidos pela discrição,

embora eu não tenha dúvida de que o silêncio deles vá me custar um quarto de libra quando eu sair da casa.

Ele a conduziu de volta para o sofá, mas dessa vez, os dois se sentaram lado a lado, Nathan com um braço sobre os ombros dela. Ele segurou a mão esquerda de Felicity e olhou para os dedos nus.

— Eu ainda tenho os anéis que você me deu — disse ela, tímida. — Estão bem guardados, no meu quarto.

— E você vai voltar a usá-los, para mim? — Claro que sim. Vou pegá-los hoje. — Ela olhou para as mãos de Nathan. — Você

costumava usar dois anéis:.. — Como...? Ah, sim.— Ele levantou a mão direita e olhou, por um momento, para o

dedo mindinho, no qual usava o aro de ouro trabalhado com espinhos de rosas em relevo. — O outro eu perdi, há muito tempo.

O ar distante no olhar dele e o suspiro baixo que acompanhou suas palavras espicaçaram a felicidade que crescia dentro de Felicity, mas ela sufocou suas dúvidas. Era hora de esquecer o passado.

Ela fez menção de se levantar, mas ele a puxou de volta. — Não... Fique e fale comigo. — Falar sobre o quê, Sir? — Sobre qualquer coisa. O tempo, o teatro... Ainda tenho uma hora antes de ter de

voltar para o ridotto. Felicity riu. — Acho que não consigo conversar sob encomenda, milorde... Apesar disso, ela descobriu, que, uma vez iniciada, a conversa fluiu com facilidade.

Ela ficou surpresa, e um pouco desapontada, quando o relógio, no hall, bateu as horas.

Page 69: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

69

Nathan ergueu a cabeça, atento. — Preciso ir — disse ele. — O czar e a irmã têm um compromisso à meia-noite, na

residência de lady Collingwood, e preciso estar lá para escoltá-los. — Ele ajudou Felicity a se levantar. — Logo poderemos acabar com toda esta encenação, e vou levar você para Hampshire.

Nathan a beijou e depois a fitou por um longo momento. A expressão dos olhos dele enviou um arrepio de antecipação ao longo da espinha de Felicity, e os dedos dos pés dela se curvaram involuntariamente quando ele acrescentou baixinho:

— Será a nossa lua de mel.

Capítulo Dez

O BAILE de lady Souden era o último evento a que os visitantes da realeza compareceriam antes de o imperador concluir sua visita e ir embora de Londres.

Nathan estava escoltando o séquito real para Dover e, quando voltasse, levaria Felicity embora de Rosthorne Hall. Lydia confessou que estava contente por Felicity estar lá para ajudá-la naquele suplício.

— Lydia, como pode chamar um baile de suplício? — comentou Felicity, rindo. — Você adora receber, vamos, confesse.

— É verdade, mas nunca recebi uma grã-duquesa, nem mesmo essa quantidade de gente européia na minha casa!

— Não será necessário me apresentar a todos eles, não é? — Felicity perguntou, nervosa.

— Não, a menos que você queria — murmurou Lydia em tom confortador. — Decididamente, eu não quero. — Então você deve ficar afastada, mas jure que não ficará muito longe de mim.

James dará atenção aos convidados, assim fico contente de saber que você estará por perto para me ajudar se for necessário.

Felicity notou algo diferente no tom de voz de Lydia e a fitou com mais atenção. — Você não está bem, Lydia? — Estou ótima, obrigada. — Lydia colocou as mãos sobre o ventre. — Mas estou

ficando cada vez maior, e James está preocupado... Acho que ele acabou me transmitindo um pouco de sua ansiedade.

Felicity prometeu cuidar da amiga, depois foi para o quarto colocar o vestido de cetim verde, aprontando-se para a noite. Lady Souden pediu que sua criada particular arrumasse o cabelo de Felicity e colocasse no pescoço dela um colar de pérolas finas que Sir James e Lydia tinham dado a ela.

— Considere isso como um presente de casamento — Lydia tinha dito quando a presenteara naquela manhã. — Logo você assumirá sua nova vida como condessa de Rosthorne.

Felicity lembrou-se das palavras de Lydia ao se olhar no espelho enquanto a criada terminava de penteá-la. Chegou a tremer um pouco, mas de prazer, ao pensar que Nathan a levaria dali.

— Não precisa ficar nervosa, milady — disse Janet, interpretando erroneamente a reação. — Se me permite dizer, a senhorita está linda.

Chocada, Felicity notou, pelo reflexo do espelho, que estava expondo demais a pele

Page 70: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

70

pelo decote acentuado do vestido. — Não está muito... Revelador? — murmurou quando Lydia veio buscá-la. — De jeito nenhum. O vestido acentua seus ombros e o pescoço. Aliás, você está

maravilhosa! — Acho que ficaria melhor se eu jogasse um lenço sobre os ombros... — Não temos tempo, querida. — Lydia tomou-lhe a mão. — Precisamos descer e

receber os convidados. UMA HORA mais tarde, as salas estavam tão apinhadas de convidados que Felicity

teve certeza de que o baile seria um sucesso. Os preparativos tinham sido perfeitos, e os criados de Sir James eram tão bem-treinados que não lhe restava muito a fazer a não ser movimentar-se entre as salas, observando Lydia discretamente.

A sociedade tinha se acostumado a ver a acompanhante de lady Souden, mas Felicity estava atenta aos olhares surpresos de muitas mulheres, bem como aos discretos olhares de admiração dos cavalheiros. Ela ergueu o queixo. Eles que olhassem e especulassem sobre a mudança em sua aparência. Em poucos dias, todos saberiam a verdade.

Ela viu a comitiva real chegar e se divertiu observando os convidados se empurrando e se acotovelando na tentativa de serem notados pela grã-duquesa de Oldemburgo ou pelo imperador. Ficou surpresa e grata quando viu Nathan vindo em sua direção.

— Espero persuadi-la a dançar comigo nesta noite, srta. Brown — disse ele, sorrindo com os olhos.

— Acho que não, Sir. — Um leve riso tremeu em sua voz. — Se dançarmos, milorde, como poderei recusar o convite de outros cavalheiros?

Ò brilho dos olhos dele desapareceu assim que ela terminou de falar. — Fácil. Diga que seu namorado é ciumento. — Nathan se aproximou. — Ou então,

diga que é casada. Com um gesto rápido, ela abriu o leque e se abanou, nervosa. — Milorde, tome cuidado — implorou ela, espreitando ao redor. — Ninguém nos ouvirá — Nathan respondeu, rindo. — Mas devo concordar com

você: se dançar comigo, e rejeitar os outros pretendentes, vai gerar suspeitas. Então está bem, dance com quem quiser.

— Se eu fizer isso — retorquiu ela com ousadia —, meu único parceiro será você. Nathan arqueou as sobrancelhas, mas não disfarçou o olhar triunfante. — Tenho o compromisso de dançar a primeira música com a grã-duquesa, mas

depois disso, vou procurá-la, srta. Brown — ele prometeu, fazendo uma mesura. Felicity o observou ir embora com um sorriso no rosto. Não esperava dançar com

muitos homens e certamente não a primeira música, mas esperava que Sir James a convidasse e mais um ou dois cavalheiros conhecidos. Viu Gerald Appleby andando resoluto em sua direção, mas lady Charlotte pegou seu braço e o conduziu na direção oposta.

O sorriso de Felicity se abriu... Se lady Charlotte soubesse que estava desperdiçando seus esforços...

— Então, milady, está livre para dançar comigo? — convidou Nathan, parado a seu lado.

— Foi assim que convidou a grã-duquesa para dançar? — Não, milady, foi ela que me convidou. — Ele ofereceu-lhe o braço. — Vamos? — Apesar de seus modos duvidosos, lorde Rosthorne, vou aceitar o convite. Rindo, ele a arrastou para a pista de dança. E mais uma vez ela sentiu a felicidade

que era dançar com Nathan. O toque das mãos, apesar das luvas, fazia-a tremer inteira.

Page 71: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

71

O sorriso sensual a exultava ao extremo. Em um passo da dança, Nathan segurou a mão esquerda de Felicity e apertou seus dedos.

— Você está usando seus anéis! — Achei que já era tempo — respondeu ela. — E ninguém percebeu? Ela o encarou com olhar travesso. — É costume dançar apenas tocando as pontas dos dedos do parceiro, milorde. O

seu aperto é bem mais íntimo! Ele riu, e então foram separados pelo próximo passo da dança. Quando a música terminou, Nathan foi procurar um cálice de vinho para Felicity. — Obrigada. — Ela olhou em volta e reparou que havia grupos de pessoas rindo e

conversando, mas nenhum perto o suficiente para ouvi-la, então voltou a fitá-lo. — Recebi uma carta do advogado do meu tio hoje. Parece que o legado dele cresceu a uma soma considerável. Acho que preciso lhe agradecer por isso.

— Eu o encontrei quando voltei de Corunha, pois achei que você o tivesse procurado. Quando ele soube que eu era seu marido, revelou-me detalhes dos bens do seu tio. Eu o aconselhei a investir para você.

— Como meu marido, você podia ter ficado com a quantia para repor o dinheiro que me deu — disse ela com cautela.

— Se eu quisesse, poderia mesmo. Felicity manteve o olhar fixo no cálice de vinho em suas mãos. — Você não achou que eu tivesse roubado seu dinheiro? — Nunca pensei uma coisa dessas a seu respeito. — Fico aliviada em ouvir isso, milorde — murmurou ela com um sorriso tímido,

sentindo-se mais animada. Nathan não estava com pressa para sair dali. Felicity ficou surpresa ao descobrir como era fácil conversar com ele, mas com o passar dos minutos, sentiu-se obrigada a comentar:

— Estamos atraindo as atenções, milorde. Você não deve passar tanto tempo com a... — ela hesitou — a insossa acompanhante de lady Souden.

Os olhos dele reluziram com o sorriso. — Eu disse isso? Maldição... Felicity sorriu também. — Não foi mais do que eu merecia. Mas falo a sério, devemos nos afastar agora. As

pessoas vão comentar. Ao contrário do esperado, Nathan diminuiu a distância entre eles. — Deixe que comentem. Em poucos dias, isso não fará a menor diferença. A ansiedade provocou arrepios nas costas de Felicity. — Mais tarde haverá uma valsa — continuou ele. — Quer me dar a honra? — Talvez, milorde, se eu não estiver comprometida. — Acredito que você está se divertindo à minha custa — observou ele, estreitando

os olhos. — Será que eu seria tão audaciosa, milorde? — Acho que, com esse humor, você ousaria qualquer coisa. — Nathan se curvou

para beijar a mão dela. — Amanhã parto com o imperador e a grã-duquesa para Portsmouth. Ficamos uma noite lá e depois vou levá-los para Dover. Assim que eles partirem, meu compromisso termina, e volto para você. — Ele acrescentou baixinho: — Mal posso esperar para tê-la em meus braços de novo, Fee.

O olhar lânguido de Nathan fez o coração dela acelerar. A intensidade daquele momento era quase palpável, tanto que Felicity pensou que ele a levantaria no colo e sairiam dali naquele instante. Ficou chocada por desejar que ele fizesse justamente isso. No entanto, em vez disso, ele estendeu o braço para ela.

— Quer que eu a leve de volta para lady Souden agora, srta. Brown?

Page 72: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

72

Felicity se repreendeu em pensamento. Aquele era o baile de lady Souden, parte das Celebrações pela Paz do. príncipe regente. Nathan tinha compromissos a atender, tal como ela. Mas logo...

— Ah, aí está você, primo. — A voz animada de Appleby soou atrás deles. — Eu estava procurando você.

— Pronto, Gerald, agora me encontrou. — Nathan ficou visivelmente impaciente. — Ah, aqui está alguém que estava ansiosa por encontrá-lo de novo — disse

Gerald, quando ficaram frente a frente. Apoiada no braço de Nathan, Felicity sentiu quando ele tensionou os músculos. Ao

lado de Gerald, estava Serena Craike. De repente, Felicity se viu no centro de um furacão, com pensamentos desordenados. Tinha ajudado Lydia com a lista de convidados e vira a lista de respostas. Lógico que teria notado o nome de Serena Craike ou Ansell...

— Lady Ansell chegou à cidade hoje pela manha — continuou Gerald, irradiando alegria. — Sabendo que vocês eram amigos, o general Rowland a convidou.

A srta. Ansell abriu um sorriso, soltou-se do braço de Gerald e deu um passo à frente, estendendo a mão.

— Ora, Nathan, pelo seu silêncio, imagino que tenha ficado surpreso em me ver. Isso é gratificante.

Nathan segurou a mão enluvada e fez uma breve reverência. — Milady, o que a traz à cidade? Ela exibiu mais um daqueles sorrisos sedutores. — Ah, o tédio e o desejo de rever velhos amigos. — Ela abriu as mãos. — Como

pode perceber, ainda estou de luto. O vestido de seda cinza escuro tinha um decote profundo, deixando à mostra boa

parte dos seios fartos. A cintura era bem apertada e o tecido favorecia as pernas bem-torneadas. Felicity refletiu que não havia traje menos apropriado para uma viúva. Não era à toa que Gerald não tirava os olhos dela.

— Lady Ansell — disse Gerald —, permita-me apresentá-la a srta. Brown. Felicity sentiu o corpo gelar. Lady Ansell não lhe dispensou mais do que um olhar

rápido, não demonstrando tê-la reconhecido. No entanto, o alívio foi logo substituído pela raiva quando percebeu que tinha sido tratada como alguém de menor importância. Lady Ansell logo voltou o olhar tranqüilo para Nathan. Gerald começou a falar de novo:

— Bem, imagino que vocês tenham muito o que conversar. Srta. Brown, acho que esta é a nossa dança...

Gerald estendeu o braço, mas Felicity estava relutante em separar-se de Nathan. Ainda estava indecisa quando ele levantou seus dedos da manga do casaco e passou a mão dela para o primo, dizendo:

— Obrigado pela companhia, srta. Brown, mas não posso monopolizá-la. Felicity permitiu que Gerald a levasse dali, mas viu, pelo canto do olho, quando a

viúva se apressou a tomar seu lugar ao lado de Nathan. — Bem, milorde, vamos encontrar um lugar com mais privacidade... — convidou ela,

quase ronronando. — Voltando a usar seus velhos truques, Serena? — perguntou Nathan, esquivando-

se da mão dela em seu casaco. — Não faço idéia do que esteja falando. — Quando ele não retrucou, ela contraiu os

lábios, voltando a pousar a mão no braço dele. — Não me diga que ainda está aborrecido por eu ter preferido Adam Elliston a você.

— Nunca fui um de seus admiradores, Serena, você sabe disso. Nathan percebeu que algumas pessoas se viraram na direção deles, o que só

aumentou sua irritação. Os olhares cúmplices apenas comprovaram que muitos dos convidados tinham tirado suas próprias conclusões a respeito do relacionamento dele com Serena Ansell. Ainda bem que Gerald tinha afastado Felicity dali. Não queria que

Page 73: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

73

Serena destruísse a frágil confiança que havia conquistado. — Meu luto está quase no fim — disse Serena com um suspiro. — Acho que não há

mal nenhum em dançar com você. — Primeiro é preciso ser convidada — disse ele. — Ora, que falta de gentileza, milorde! — exclamou ela, rindo. — Bem, pelo menos,

me acompanhe até a mesa de jantar, Nathan. — Lamento, mas não é possível. Fui designado para atender à gra-duquesa nesta

noite. — Isso não evitou que dançasse com a pilantrinha que acabou de sair com seu

primo. — Não, mas prometi retornar logo, o que vou fazer agora mesmo. Sugiro que volte

para o general Rowland e peça a ele que a escolte. — Pela segunda vez, ele se livrou da mão dela, inclinou a cabeça e saiu, deixando Serena olhando para suas costas.

— Você...você conhece bem lady Ansell? A voz de Felicity estava esquisita, mas Gerald não pareceu notar. — Ah, não, hoje foi a primeira vez que a vi. Mas já tinha ouvido falar dela. Eles ocuparam seus lugares na formação da dança, e Felicity esperou se lembrar

dos passos. Sua mente estava preguiçosa. Nos primeiros momentos, ela se concentrou na dança. Quando se aproximou de Gerald, sentiu o cheiro de vinho em sua respiração. Não era à toa que estava tão tagarela. Se quisesse, poderia usar aquilo a seu favor.

— O que sabe sobre lady Ansell? — Ah, coisas não muito agradáveis para os ouvidos de uma dama. Felicity sorriu, esperando encorajá-lo a continuar falando: — Mas para mim, você pode contar. — Está bem. — Gerald baixou um pouco a voz. — Ela tem um passado duvidoso. —

Ele fez um movimento com a boca como se dissesse a palavra "amantes" e piscou. — Eu não ficaria surpreso se Rosthorne já tivesse se interessado por ela alguma vez. — Um sorriso dissimulado se delineou nos lábios dele. — Talvez ela tenha voltado para reacender a velha chama. Não há dúvida de que ela é muito atraente. Aquele cabelo glorioso e os olhos verdes formam uma combinação irresistível.

Felicity não respondeu. A serenidade que a envolvia até então foi substituída por um fardo. Não aceitou dançar com Gerald uma segunda vez, alegando que estava com dor de cabeça. Assim que ele deu as costas, ela espreitou o salão à procura de Nathan, mas ele e Serena haviam desaparecido. Foi o bastante para seu coração enregelar. Na certa, Gerald acreditava que nenhum homem viril poderia resistir à beleza luxuriante de Serena Ansell.

E Nathan era um exemplo perfeito de virilidade. De repente, houve uma movimentação num dos cantos da sala. Uma dama tinha

desmaiado, algo comum em dias quentes em um salão de baile superlotado. Ao atravessar a sala para ver se podia ajudar, Felicity viu uma parte de um vestido cor-de-rosa e, tremendo, foi abrindo caminho pela multidão. Seus temores se consolidaram: era Lydia.

— O que houve? — É você, Fee? — Lydia estendeu a mão trêmula. — Estou me sentindo fraca. Será

que você poderia me levar para o meu quarto? — Conforme Felicity a ajudou a se levantar, Lydia sorriu para as pessoas a sua volta. — Não há necessidade de tamanho tumulto. Continuem se divertindo, devo melhorar daqui a pouco.

— Precisamos encontrar Sir James... — disse uma voz na multidão. Lydia acenou com a mão. — Não é preciso, ele está ocupado entretendo nossos convidados. A srta. Brown

Page 74: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

74

cuidará de mim. Enquanto Janet colocava sua patroa na cama, Felicity mandou um lacaio ir buscar o

médico. Quando voltou, Lydia estava recostada nos travesseiros, mas muito pálida. Mesmo

assim, abriu um sorriso ao ver Felicity. — Tamanha balbúrdia por nada — ela murmurou. — Nada disso. Temos de cuidar de você e do bebê. Vou ficar aqui sentada até o

médico chegar. Felicity puxou uma cadeira para perto da cama e segurou a mão de Lydia, que

suspirou e fechou os olhos. Depois de alguns minutos, a respiração ficou mais calma e regular, indicando que ela tinha adormecido. Com o quarto em silêncio, Felicity relembrou a última vez que tinha visto Serena.

Felicity tinha ficado à janela, com as mãos espalmadas contra o vidro, enquanto observava Nathan ir embora para se unir ao regimento. Estava determinada a não chorar, mas a solidão lhe comprimia o peito. Depois de uma noite sem dormir direito, ela concluiu que precisava encontrar alguma atividade para preencher os longos dias até que soubesse noticias de Nathan. Lembrou-se de como a esposa do coronel McTernon a tratara com delicadeza durante o casamento e decidiu ir procurá-la. Estava prestes a vestir uma peliça quando uma criada espanhola bateu na porta do quarto, anunciando uma visita.

Serena Craike entrou na sala como uma nuvem de veludo verde-oliva, com as mãos enfiadas em um rolinho de pele.

— Ah, minha querida, achei que deveria vir até aqui e saber como você está. — Eu estava prestes a sair. — Felicity a cumprimentou timidamente, mostrando a

peliça no braço. — Pensei em visitar a sra. McTernon... — Ah, é muito cedo para isso, ela ainda nem tomou o café da manhã. — Serena riu.

— Vejo que ainda não se acostumou com nosso jeito, senhorita... Digo, sra. Carraway. Felicity se virou para colocar a peliça sobre uma cadeira. — Vamos nos sentar, sra. Craike? — Obrigada, mas vou ficar só um pouco. Achei que deveria vir avisá-la. — Avisar-me de quê? — Com nossos homens fora da cidade, devemos nos entreter sozinhas, e quando

mulheres se juntam, o que mais gostam é de fofocar. — Ah. E como isso afeta a mim? Serena abriu outro sorriso. — Abençoada seja, minha querida, você precisa saber que seu casamento é o

assunto do nosso pequeno círculo de amizades. Felicity se mexeu, desconfortável. Não tinha intenção de falar sobre seu casamento. Passaram-se um ou dois minutos antes que Serena continuasse: — Bem, quando o atraente major Carraway avisa, de repente, que vai se casar, você

nem faz idéia da especulação que essa notícia gera. — Mas isso não é segredo nenhum. Minhas circunstâncias. .. — Ah, sim, deve ser muito difícil para você, querida. — Como assim? O sorriso de Serena era solidário. — Deve ser duro saber que Nathan se casou com você por pena. Não precisa corar,

mocinha. Estou certa de que a sra. McTernon e seus amigos pensam que ele agiu com muita honra, mas você precisa estar preparada para uma conversinha.

— Que conversa, milady? — Felicity balançou a cabeça. — Não consigo pensar numa razão...

— Ah, não? — Os olhos verdes de Serena dardejavam o rosto de Felicity. — Todo mundo sabe que Nathan está perdidamente apaixonado por mim.

Felicity ficou atônita. A sensação era de ter sido engolida por uma das imensas

Page 75: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

75

ondas que quebravam na praia. Receando desmaiar, ela se sentou numa poltrona, mas em nenhum momento, desviou o olhar da visitante. Serena Craike a encarava com um misto de alegria e solidariedade.

— Ele não lhe disse? Talvez por achar que você já soubesse. — Não acredito em você — Felicity se lembrou das palavras de Nathan quando

falara sobre Serena... Adam não é o primeiro homem que fica enfeitiçado por ela. Santo Deus, será que ele estava falando de si próprio? Tentando afastar a avalanche de pensamentos e imagens que a assolou, ela murmurou: — Isso não é verdade.

— Eu já imaginava que fosse dizer isso. — Serena puxou uma carta de dentro da estolinha de pele que aquecias suas mãos e estendeu-a para Felicity. — Você reconhece a caligrafia? Nathan me deu isso ontem. — Um sorriso iluminou-lhe o rosto. — Ele não contou que foi me ver pouco depois de deixá-la?

Felicity pegou o papel dobrado com a mão trêmula. Era uma única folha de papel escrita em tinta preta com a letra de Nathan. As palavras dançavam sobre a página, e ela precisou piscar várias vezes para conseguir entender o que estava escrito. "Minha paixão" As primeiras palavras já lhe partiram o coração, mas ela se forçou a continuar a leitura. Nathan não tinha usado a palavra "amor" mas o sentimento estava evidente nas entrelinhas. Felicity ficou com os olhos marejados.

— Não. — Ela balançou a cabeça. Deveria haver alguma outra explicação, apesar de que seu cérebro não encontrava nenhuma. Devolveu o papel. — Não vejo nome nenhum, nem está endereçado a você.

Felicity ergueu as sobrancelhas, e Serena a enfrentou com o olhar brilhante e um sorriso de vitória.

— Não foi preciso endereçar, Nathan me deu a carta pessoalmente. — Serena tirou a luva e estendeu a mão. — Veio acompanhada disto.

Felicity sentiu o manto negro de uma profunda tristeza envolvê-la. Bem diante de seus olhos, no dedo alongado de Serena, havia uma aliança de ouro

incrustada com espinhos de rosa. No salão de baile, Nathan procurou por Felicity, em vão. Se ela não aparecesse

logo, seria tarde demais para dançarem a valsa. Ele se lembrou de que alguém dissera que lady Souden tinha passado mal, então talvez Felicity estivesse com ela. Com o maxilar contraído, pensou que sua mulher não precisava mais ser acompanhante de ninguém. Quanto antes a restaurasse a seu lugar de direito, melhor! Ele ouviu uma voz grave e com sotaque atrás de si, e ao virar-se, viu o imperador se aproximando de braço dado com Serena Ansell.

— Ah, aqui está lorde Rosthorne, o homem que procurávamos. — O imperador sorriu de alegria. — Lady Ansell deseja dançar a valsa. Já dançamos duas vezes nesta noite, e você bem sabe como são as línguas afiadas, não?

— Majestade, lamento... — Nathan fez uma pausa, olhando mais uma vez à sua volta. Ainda não havia sinal de Felicity. Então ele se virou e fez uma reverência, tentando ignorar o olhar de triunfo nos olhos felinos de Serena.

— Majestade, será um prazer dançar com lady Ansell. Felicity secou uma lágrima furtiva. Então Serena tinha voltado para reacender a

velha chama, segundo Gerald. Quando a criada abriu a porta, ela ouviu a orquestra começar a tocar a valsa. Nathan a tinha convidado para dançar.

Lydia se mexeu. — Fico feliz de não ter acabado com a festa — disse ela. — Você deve ir lá para baixo, Fee. — Sim, eu vou, se puder. Serão apenas alguns minutos. Assim dizendo, ela saiu

Page 76: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

76

correndo do quarto e desceu as escadas, parando no meio do caminho, em frente às portas duplas escancaradas. Chegara ali a tempo de ver Nathan rodopiando pelo salão com Serena Ansell nos braços.

Felicity segurou o corrimão com força, com medo de suas pernas se dobrarem. Sem pensar duas vezes, voltou a subir as escadas, de volta para o quarto de Lydia.

— Já voltou? — Lydia murmurou. — Não precisava, Fee. Estou muito bem aos cuidados de Janet.

— Não, eu pensei bem e vou ficar com você até o médico chegar, Lydia. — Felicity forçou um sorriso torto. — Não há nada para mim lá embaixo, de qualquer forma.

Capítulo Onze

— ERA madrugada quando finalmente Felicity saiu do quarto de Lydia. O médico já tinha ido embora, mas Felicity continuou lá, segurando a mão da amiga até que esta adormecesse, quando a orquestra parou de tocar e os derradeiros convidados deixaram a casa.

Felicity decidiu não descer mais. Estava muito cansada. O reaparecimento de Serena tinha despertado todas as suas antigas angústias. As palavras de Gerald ainda ecoavam em sua mente, e a imagem de Nathan valsando com Serena não a convenceu de que ele estivesse imune ao charme óbvio da viúva. Talvez a pequena bolha de felicidade que estava começando a crescer em seu coração fosse feita de vidro e tinha se quebrado, deixando em seu lugar uma desilusão insuportável.

Nathan voltou a Londres uma semana depois e seguiu direto para Berkeley Square.

Não tivera tempo de falar com Felicity antes de ir embora do baile na casa dos Souden. Era compreensível, claro, pois lady Souden havia passado mal, e Felicity subira com ela para o quarto. Mas naquele momento, estava ansioso para encontrar Felicity de novo.

— Quer dizer, então, que seu protegido real deixou a Inglaterra... — comentou Sir James, quando Nathan entrou no escritório.

— Sim, Sir Jantes. Partimos de Portsmouth, onde havia uma multidão aplaudindo, e foram dadas 21 salvas de saudação para homenagear Sua Alteza. Depois, na manhã de sábado, o imperador e o séquito prussiano tomaram café da manhã com o duque de Carence antes de partir para Dover, onde, graças a Deus, o tempo estava favorável e nada atrasou a partida da comitiva. Agora estou de volta e gostaria de ver minha esposa.

Houve uma ligeira pausa na conversa. — Ah. Nathan observou quando Sir James se levantou para servir dois cálices de

conhaque. — Aconteceu alguma coisa de errado? — Nathan ficou tenso de repente. — Felicity

não está bem? — Não, não, sua esposa está muito bem, lorde Rosthorne. — Sir James estendeu o

cálice para Nathan e voltou para a poltrona. — Você deve se lembrar de que lady Souden passou mal na noite do baile.

— Claro que sim. Imagino que ela tenha se recuperado, não? — Infelizmente, não. — O rosto de Sir James assumiu uma expressão muito séria.

Page 77: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

77

— Tivemos medo de que ela perdesse o bebê, o que graças a Deus não aconteceu. Mas o médico prescreveu repouso absoluto. Eu queria que ela voltasse para Souden, mas ela está muito fraca para viajar.

— Lamento ouvir isso. — Obrigado. Sua esposa tem sido uma grande ajuda neste período... Você deve

saber que Lydia tinha pedido que a prima viesse morar conosco, mas infelizmente ela quebrou a perna e não pode sair de casa. Mas mesmo que ela estivesse disponível... — Sir James baixou o olhar para o líquido âmbar em seu copo. Quando voltou a levantar a cabeça, seus olhos acinzentados encontraram os de Nathan. — Minha esposa precisa de paz de espírito, Rosthorne. O dr. Scott insiste que ela não seja contrariada ou perturbada de jeito nenhum. Você conhece a estreita ligação que existe entre nossas esposas. Tenho receio de que, se lady Rosthorne partir agora, Lydia fique muito contrariada. Sendo assim, gostaria de pedir que deixe sua esposa conosco um pouco mais. — James levantou a mão, para impedir que Nathan o interrompesse. — Pela sua expressão, vejo que vai recusar, e você está no seu direito. Pela lei, Felicity é sua esposa. Mas gostaria de pedir, como amigo, que a deixe ficar.

Nathan comprimiu os lábios para não comentar o que tinha em mente e se levantou. — O que Felicity acha disso tudo? — Lady Rosthorne não quer fazer nada que possa arriscar a saúde de Lydia. Depois de andar de um lado para o outro na sala, Nathan parou diante da janela e

olhou para fora. — Mais um atraso... Quanto tempo isso vai durar? — Provavelmente até outubro, quando o bebê nascer. — Sir James parou ao lado

de Nathan diante da janela. — Podemos perder o bebê. Se for esse o destino, paciência, mas eu me preocupo com Lydia. Farei qualquer coisa que estiver ao meu alcance para salvar minha esposa.

Nathan fitou o homem a seu lado. Notou tristeza em seus olhos e linhas de preocupação marcando-lhe o rosto. Foi um choque perceber como Sir James estava desesperadamente preocupado com a esposa. Aquele grande diplomata, que aconselhava príncipes, correspondia-se com a realeza e prestava consultoria ao governo estava praticamente implorando que ele não levasse Felicity.

Nathan se virou para a janela de novo e suspirou. O sol esplendoroso ainda reinava no céu azul, o dia estava cheio de promessas,

mas não para Nathan. — Eu faria o mesmo em seu lugar — disse ele com calma. Sir James tinha colocado

a mão em seu ombro, um toque eloqüente de alívio, gratidão e compaixão. — Gostaria de ver minha esposa se for possível.

— Claro. Eu vou chamá-la. Felicity entrou no escritório de Sir James. Nathan estava parado à janela,

observando o movimento na rua. — Fico feliz que tenha voltado em segurança, milorde. — É mesmo? — Ele se virou e atravessou a sala para cumprimentá-la. Beijou-lhe a

mão e teria repetido o gesto no rosto, mas ela se retraiu num gesto evidente de recusa. — Não posso ficar muito tempo — disse ela. — Lydia fica agitada quando estou

longe. Nathan segurou-lhe o queixo. — Seu trabalho é constante para atender à lady Souden, não é? Pobre Fee... Isso

explica as suas olheiras. Forçando um sorriso, ela deu um passo para trás. — É verdade. Sir James deve ter contado... Explicado...

Page 78: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

78

— Sim. Pensei em levá-la para Hampshire amanhã. Eu já tinha escrito para minha mãe... Ela está ansiosa para conhecê-la. Mas parece que esse encontro terá de ser adiado.

— Lamento muito. — Eu também. Talvez eu deva ficar em Londres. Poderia levá-la até nossa casa da

cidade... — Não. Lydia sempre precisa de mim durante a noite. — Estou começando a achar que você quer me enganar. — Ah, não, milorde. Lady Souden está doente e precisa da minha atenção. — Talvez fosse bom que dedicasse alguma atenção ao seu marido também! —

exclamou ele, enrugando a testa. ' — E vou, dou-lhe a minha palavra, assim que puder deixar Lydia bem — prometeu

ela, juntando as mãos e olhando para baixo, a fim de não o encarar. — O que está acontecendo, Fee? — ele perguntou baixinho. — Por que é tão

importante ficar aqui? — Lydia precisa de amor, conforto e cuidado constante, tudo o que uma gestante

precisa para gerar um bebê saudável. — Acredito que não adiante muito sugerir que ela procure esse apoio em outra

pessoa. — Claro que poderia, mas é importante que eu a ajude nessa tarefa difícil. — E qual a razão de toda essa dedicação? — Ela é minha amiga, e farei tudo o que puder para garantir que ela não sofra a

tristeza de perder um bebê. Nathan fixou os olhos em Felicity. Ela continuava olhando para baixo e

demonstrando verdadeiro desconforto por estar ali. Havia mais alguma coisa que ela não estava dizendo. Estava distante, não era mais a agradável companhia de quem ele se lembrava do último encontro.

Sua vontade era abraçá-la com força, mas de nada adiantaria para liberar a mulher encantadora e vivaz que ele sabia existir naquele corpo frágil. Talvez até a distanciasse mais. Sendo assim, decidiu mudar de tática.

— Então é melhor você ficar aqui. Felicity não sabia se ficava aliviada ou desapontada por ele ter concordado com

tanta calma. — Tudo indica que nosso casamento precisa esperar mais um pouco, querida. Irei

para Rosthorne preparar tudo para a sua chegada. — Nathan segurou a mão dela de novo. — Vou deixá-la voltar para perto de sua paciente. Escreva para mim, avisando assim que puder sair daqui.

— Escrevo sim, milorde. Ele apertou a mão delicada. — Por que tanta formalidade? Gostaria de que me chamasse pelo meu nome. É

possível? — Claro... Nathan. Com toda a delicadeza, ele a puxou para seus braços e, com uma das mãos,

levantou o queixo dela para um beijo rápido. Felicity sentiu uma leve frustração. Queria que ele a abraçasse com mais força, que revidasse seus argumentos e a levasse para sua casa. Perderia algumas horas de sono com prazer apenas para ficar um pouco com Nathan.

— E então, milady, vai sentir saudades de mim? Era a chance que ela esperava... Poderia pedir que ele ficasse, confessar o quanto a

presença dele a apoiaria. Entretanto, conforme imaginava o que dizer, a visão dos olhos verdes de Serena e do cabelo cor de fogo tomou conta de seus pensamentos. Jamais se rebaixaria a tanto, comprovando sua vontade de estar junto, quando na verdade, ele estava encantado por outra mulher.

Page 79: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

79

Assim, curvou os lábios num sorriso e se afastou do conforto dos braços de Nathan. — Claro, milorde, mas estou muito ocupada e seria bom que não viesse aqui para

me distrair. Mas a Celebração da Paz continuará por alguns meses... Deseja ficar na cidade para acompanhar?

— Estou cansado de multidões e espetáculos — disse ele, fazendo uma careta. — Há muito trabalho a ser feito em Rosthorne.

— Quer dizer que vai para Hampshire amanhã? — Assim que for possível. — Ele fez uma pausa. — Se não há mais nada a dizer,

vou deixá-la agora. — Está bem — concordou ela, forçando um sorriso. — Desejo que faça uma boa

viagem, milorde. Nathan ainda a ficou encarando durante longos minutos, e Felicity achou que não

agüentaria se fingir de feliz nem por mais um segundo sequer. Então, com uma mesura, ele se foi. Ela correu até a janela para espiá-lo de longe.

Um cavalariço estava andando com o alazão preto de Nathan na rua. Enquanto ela observava, o rapaz voltou rapidamente e estava no portão no momento em que Nathan saiu. Sem esforço algum, Nathan subiu no cavalo e trocou algumas palavras com o cavalariço antes de juntar as rédeas nas mãos.

Felicity se escondeu rápido quando Nathan lançou um olhar sério para a casa antes de esporear o cavalo e partir.

— O QUE está fazendo, Fee? Felicity olhou para cima. — Ah, está acordada, Lydia? Janet e eu achamos que você fosse dormir por mais

uma hora, mais ou menos. — Não, querida, estava aqui observando você... Está escrevendo para Rosthorne? Felicity largou a caneta e foi até a cama enorme, em que Lydia se apoiava em vários

travesseiros de cetim, brancos como a neve. — Eu estava, mas não tem pressa. Quer que eu abra as cortinas? O sol está forte... — Não tem importância, gosto de ver um dia bonito. — Lydia deu tapinhas na cama.

— Venha, sente-se aqui e me conte o que estava escrevendo. — Bem, ele me perguntou de sua saúde, contei que o dr. Scott está feliz com seu

estado e que agora você passa parte do dia recostada na sala diante de uma janela aberta.

Lydia colocou as mãos no ventre inchado e suspirou. — Por acaso, contou também que estou enorme de gorda? — Claro que não! Eu a descrevi como se estivesse em pleno desabrochar. — É mesmo? Então ele vai pedir que você me deixe. O sorriso de Felicity se esvaiu. — Ainda não. Segundo a última carta, ele disse que irá a Vorkshire por algumas

semanas para visitar suas propriedades por lá. — Ele não disse se vem para a cidade? — Não. Lydia, não me faça falar sobre isso. Concordamos que devo ficar aqui

enquanto precisar de mim. — E preciso mesmo, querida. Enquanto James é obrigado a passar tanto tempo em

função do príncipe regente, devo ficar aqui enfurnada com você. Felicity sorriu. — Como pode dizer isso se recebe diariamente dezenas de cartas e flores de seus

amigos? Até lady Charlotte mandou um buquê. — Meu Deus, é verdade, fiquei surpresa em saber que ela ainda está na cidade.

Page 80: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

80

Aposto que está tomando conta do filho. — Lydia riu. — Soube que ele está muito interessado na viúva ruiva, lady Ansell. Lady Charlotte vai acabar logo com esse relacionamento.

Felicity se esforçou para não demonstrar nada. Pensou em contar a Lydia sobre Serena, mas mudou de idéia. Lydia se mexeu, inquieta.

— Estou desapontada com Rosthorne — reclamou Lydia. — Achei que ele estava tão apaixonado por você, mas se é assim, por que ficar tanto tempo longe da cidade?

— Talvez ele não estivesse tão enlouquecido assim — respondeu Felicity, tentando imprimir um tom casual na voz.

— Ah, Fee, eu sinto muito... Se eu não tivesse ficado acamada, você estaria feliz e ao lado de seu conde a uma hora destas.

Felicity deu de ombros, com o coração confrangido de tristeza. Que felicidade, poderia haver se Nathan ainda estava caído de amores por Serena Ansell?

OS TRÊS meses seguintes demoraram a passar. Os dias quentes de verão deram

lugar às névoas mais frias e chuvas de outono, e Nathan não tinha voltado a Londres. Ele costumava escrever com freqüência bastante para Felicity. As cartas eram bem-educadas, até amigáveis, mas não havia nenhuma palavra de amor, sequer subentendida, e Felicity enterrou as esperanças que tinham se desenvolvido com tanta força no começo do verão. Ela se restringiria a cumprir suas tarefas até o fim, mas antes tinha de passar pelas semanas de apreensão que antecediam o término do confinamento de Lydia.

AQUELAS ERAM as notícias que Nathan estava esperando. A breve nota de Sir James

o informava que lady Souden tinha tido um parto normal e dado à luz a uma menina forte e saudável. Mãe e filha passavam bem. O dr Scott estava confiante de que não havia mais nenhum risco de complicações do parto e declarou que ambas estariam bem para viajar para Souden, no fim de outubro.

Nathan redigiu uma mensagem curta de congratulações a Sir James e esposa e uma nota ainda mais curta a Felicity, informando que chegaria a Londres no fim de semana e pedindo que ela estivesse pronta para viajar na sexta-feira de manhã. Ao selar a segunda missiva, recordou a frustração dos meses que haviam passado, quando mergulhara na administração de suas propriedades, abafando a urgência de voltar para a capital.

Estava surpreso com a intensidade da saudade que sentira de Felicity. A dor chegava a ser física. Agora que a espera se aproximava do fim, e ele se permitiu pensar na esposa de novo, lembrando-se do sorriso tímido, que a seu ver iluminava todo o ambiente, e do brilho maroto que percebia nos olhos dela.

Tinha se contido ao máximo. Felicity tinha pedido que não a distraísse, e ele,— de fato, se mantivera afastado. Mas agora entrando na carruagem para viajar numa enevoada manhã de outubro, ansiava por reivindicar sua esposa de volta.

Capítulo Doze

Page 81: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

81

— MAS QUE coisa mais arrogante e impessoal! — Felicity quase bateu os pés lendo

os rabiscos apressados de Nathan. — O que foi, Fee? — Lydia perguntou, ninando o bebê adormecido no colo, sem

olhar para cima. — Este bilhete de Rosthorne. Ele me comunica que vou sair daqui amanhã de

manhã, quase na mesma hora em que você estará partindo! — Bufando de frustração, Felicity amassou o papel e o atirou para o outro lado da sala.

Lydia limitou-se a sorrir. — Ele tem sido muito paciente, querida, e não posso mantê-la aqui para sempre, por

mais que eu gostasse, pois você é muito boa e jeitosa com a sua afilhada. A raiva de Felicity se dissipou ao olhar para a amiga e o bebê. — Elizabeth é tão linda, não é difícil adorá-la. — Ela é mesmo uma gracinha, não é? Mas você é muito jeitosa. — Lydia fitou a

amiga com olhos brilhantes. — E difícil acreditar que não tenha tido experiência como babá.

Felicity olhou para o bebê por um longo tempo. Precisou respirar fundo para desfazer o nó na garganta.

— É verdade — respondeu Felicity. — Nunca segurei um bebê antes de Elizabeth. — Bem, depois que reassumir sua vida com seu marido, tenho certeza de que não

demorará muito para você começar a sua família... — Ah, Lydia, tomara que não... — Fee, querida! O que houve? Felicity hesitou, mas não demorou para se ajoelhar ao lado da cadeira de Lydia,

soluçando. — Estou com medo — confessou, apoiando a cabeça no joelho de Lydia. — Medo de ir para o quarto com ele? Que bobagem... Felicity corou. — Não é isso... É... Nathan. — Ela procurou o lencinho. — Não tenho certeza de que

ele... Acho que não o conheço mais... Lydia, ainda exultante depois de meses de preocupações, sorriu e pousou a mão na

cabeça de Felicity. — Você só está apreensiva, Fee. Você o ama? — Sim — sussurrou ela, depois de um suspiro. — Isto é, amava, mas ele está tão

diferente agora... — Vocês dois estão cinco anos mais velhos. Reparei na expressão do conde,

quando ele olha para você. Ele a deseja, Felicity. — Mas será que ele me ama? — ela persistiu, enxugando os olhos. — Para os homens, amor e desejo estão intimamente ligados — disse Lydia

sorrindo. — Para James, um segue o outro, e veja como somos felizes. — Ela se afastou de Felicity com delicadeza. — Vá fazer suas malas, minha querida, e considere-se afortunada: Rosthorne é um homem gentil e honrado. Além de ser muito rico e atraente, apesar da cicatriz na testa. Juro que se não estivesse tão apaixonada por James, eu jogaria meu charme para ele!

NERVOSA, FELICITY amarrou o laço do chapéu. Já tinha visto uma carruagem

suntuosa estacionar na frente da casa e recebera um recado de que lorde Rosthorne a aguardava no hall de entrada. Olhando pela janela, viu que os criados já carregavam seus baús para fora.

Page 82: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

82

Sir James fazia companhia ao conde, e ambos olharam quando Felicity despontou no alto da escada. O chapéu e a peliça nova tinham sido presentes de Lydia, que insistira que aquele tom de verde lhe caía muito bem e levantaria sua confiança. Muito útil, pensou ela, ao se deparar com o rosto sério do conde.

— Milorde — ela o cumprimentou com uma vênia graciosa. Nathan respondeu inclinando a cabeça. — Bem, lady Rosthorne, precisamos nos despedir — disse Sir James, dando um

passo à frente e inclinando-se para beijar-lhe os dedos. — Minha esposa já lhe disse o quanto somos gratos?

— Sim, Sir. Acabei de sair do quarto dela. — Então só me resta dar adeus e desejar a milady e a lorde Rosthorne muitas

felicidades. Nathan ofereceu o braço a Felicity. — Vamos, milady? Felicity percebeu um brilho brejeiro nos olhos dele. Nathan estava ciente da vontade

dela de sair correndo. Mas não havia complacência em sua expressão. — Vamos, milady? — repetiu. Felicity segurou-lhe o braço e seguiram juntos para a carruagem. Ainda houve tempo para acenar sorrindo para Sir James antes de o coche partir, com o trote dos cavalos ressoando nos cascalhos das ruas de Londres. Ela estava consciente de que o conde, sentado em um dos cantos da carruagem, observava-a com atenção. Aquele olhar fazia sua pele arrepiar, pois tinha a impressão de que ele podia distinguir cada curva de seu corpo, apesar da peliça de musselina que a envolvia. Não sabia ao certo se estava apavorada ou seduzida pela idéia. Seduzida, admitiu para si mesma. Claro que tinha sentido saudades.

— Fiquei surpreso ao receber a carta de Sir James — comentou Nathan. — Pensei que você fosse escrever primeiro para contar as boas-novas.

— Eu... Eu estava esperando para ter certeza... — Felicity deu uma tossidela. — Adiando o dia fatídico? — O tom frio da voz de Nathan a fez corar. — Eu não diria fatídico, milorde. — Ela arriscou uma olhada rápida na direção dele e

o viu sorrindo, encorajando-a a continuar: — Confesso que estou um pouco apreensiva. — Não há necessidade. — Não? Você foi bem categórico no bilhete, e saímos tão apressados de Berkeley

Square... — Lamento tê-la apressado para deixar seus amigos — disse ele. — É natural que

eu esteja ansioso para que você assuma seu lugar como minha esposa, mas há outra razão por que quero chegar a Rosthorne logo. Minha mãe está nos aguardando, e ela se recolhe cedo... A saúde dela não é boa. Ela machucou o quadril numa queda de cavalo há alguns anos e nunca se curou totalmente. Ela se cansa com facilidade.

— Ah, sinto muito por ela — Felicity logo expôs seu pesar. — Estamos muito longe de Rosthorne?

— A pouco mais de 80 quilômetros. A mansão fica a oeste de Petersfield, perto da vila Hazelford. Não é a maior das minhas casas... Alguns casamentos vantajosos de meus antecessores acrescentaram algumas propriedades no Norte, mas essa é a que eu mais uso.

— A sra. Carraway mora lá? — Sim, ela tem aposentos próprios da ala leste da mansão. — Estou ansiosa para conhecê-la. Sem mais nada a dizer, Felicity virou o rosto para a janela da carruagem. Ouviu

Nathan se mexer, sentar-se a seu lado e roçar a coxa na dela. — Não tenha medo de mim, Felicity — disse ele, baixinho. Ela permaneceu imóvel. Sentiu quando ele começou a brincar com os cachos na

parte de trás de seu pescoço, provocando-lhe um calafrio na espinha.

Page 83: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

83

— Eu... Eu não estou com medo— ela gaguejou, lutando contra o desejo de apoiar a cabeça na mão dele.

— Ótimo. Não farei nada para assustá-la. Felicity sentiu o calor da respiração dele acariciar-lhe as maças do rosto. — Nós nos daremos muito bem, você só precisa confiar em mim. Felicity continuava na mesma posição, com o olhar fixo na paisagem. — Confio em você, Nathan. Os lábios carnudos beijaram-lhe o pescoço. Ela estremeceu e gemeu baixinho.

Nathan a segurou pelos ombros e a fez se virar, procurando-lhe a boca. Nos minutos seguintes, Felicity ficou presa nos braços dele, sendo beijada com carinho a princípio e logo se entregando à pura paixão. Ela o enlaçou pelo pescoço. Sem pressa, Nathan passou a desabotoar a peliça, deixando a pele alva do pescoço dela exposta a seus lábios.

A pulsação de Nathan acelerou quando o beijo foi correspondido. Felicity pressionou-se contra o peito forte. Os dedos delicados dela brincavam com o cabelo farto dele. As carícias tímidas o excitavam, pois evidenciavam a paixão latente por trás da hesitação de Felicity. Ele se afastou, reprimindo o desejo de se perder naquela suave e inocente beleza em flor. Depois, delineou a linha do queixo dela com a ponta do dedo. Com os olhos semicerrados, Felicity entreabriu os lábios num convite silencioso e irresistível. Ele a beijou novamente,— depois a afastou.

— Você é muito tentadora, minha esposa. Vou voltar para o meu canto antes que perca a cabeça. — Nathan percebeu na expressão dela um misto de surpresa e prazer, então riu. — Você não tem idéia do quanto é encantadora, não é? — Embora parecesse impossível, Felicity corou ainda mais.

— Sou mesmo? Verdade? — Sim, de verdade. — Nathan levantou a mão dela e beijou-a no curto espaço de

pele entre o laço da luva e o punho da manga. Felicity não puxou a mão, e ele percebeu que era observado por um par de olhos

brilhantes. A mensagem contida ali fez seu coração levitar, por isso, tratou logo de soltar a mão dela.

— Componha-se, milady. Vamos parar logo para trocar os cavalos e nos refrescar. Não vou conseguir sair daqui se continuar me olhando desse jeito.

Felicity sentiu o sangue subir-lhe às maçãs do rosto e olhou para fora, feliz por surtir aquele efeito no marido.

A carruagem prosseguiu pelas ruas movimentadas de Londres, e logo o cheiro acre de carvão ficou para trás. Seguiram-se pequenos vilarejos e povoados, onde as crianças os observavam passar boquiabertas e os lavradores interrompiam a que estavam fazendo para admirar a elegante carruagem passar.

Felicity assistiu a tudo com interesse, principalmente quando chegaram a Hampshire

e Nathan apontou para os ricos pastos e montanhas cobertas pela floresta de sua propriedade.

— Quando veremos a casa? — indagou ela, olhando para o pôr do sol. — Chegaremos antes do anoitecer?

— Sim, estamos quase lá. Rosthorne Hall fica escondida para quem passa pela estrada. Espere até chegarmos ao parque.

Assim que ele terminou de falar, a carruagem diminuiu o ritmo. O som de uma trombeta levou o guardião da mansão a correr para abrir os portões, que descortinavam uma alameda ladeada por árvores altas. Nathan abriu a janela para trocar algumas palavras com o caseiro quando passaram e depois voltou a se sentar, pegando a mão de Felicity.

Page 84: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

84

— Bem-vinda a Rosthorne, milady. A carruagem saiu do cinturão de árvores, e Felicity teve a primeira visão de seu novo

lar. O sol que tinha resplandecido e vencido as nuvens durante o dia todo agora proporcionava sua aparição final em cores gloriosas, como se estivesse determinado a envolver Rosthorne Hall numa moldura dourada e brilhante.

A casa fora construída com tijolos vermelhos e pedras claras. Havia três fileiras de janelas que brilhavam com a luz do sol. Um frontão de pedra, com o brasão de armas da família Rosthorne, jazia sobre a porta principal, que se abria acima de uni lance de degraus de pedra. A simetria das janelas grandes proporcionais e alinhadas do térreo ao ponto mais alto do telhado, passando pelas janelas dos dormitórios até as chaminés altas, beirava a perfeição. Felicity ficou encantada.— Fico feliz por ter gostado — disse Nathan, quando ela elogiou a arquitetura da casa. — Houve algumas mudanças e redecorações no interior. Por exemplo, agora a sala de jantar fica bem mais perto das cozinhas, assim a comida chega quente à mesa, mas o exterior da casa é quase o mesmo de quando foi construída, há mais de um século.

Assim que a carruagem parou, uma multidão de criados veio correndo e se alinhou nas escadas. Felicity sentiu a ansiedade tomar conta de seu corpo, o que devia estar evidente em seu semblante, pois Nathan sorriu ao olhar para ela.

— Eles desejam dar as boas-vindas à nova dona da casa — explicou ele, enquanto a ajudava a descer da carruagem. — Você só precisa sorrir daqui para frente, querida... A sra. Mercer vai apresentá-la a todos amanhã. Não é isso, Mercer?

O empertigado mordomo os aguardava à porta com um sorriso patriarcal no rosto. — Isso mesmo, milorde. A sra. Carraway já instruiu que o jantar seja servido em

uma hora e pediu que passassem na sala de estar, caso não estejam, muito cansados da viagem.

Nathan olhou para Felicity para consultá-la. Ela assentiu com a cabeça, e ambos seguiram o mordomo até o hall de entrada, onde Nathan tirou o chapéu e as luvas, colocando-os sobre um console. Um criado ajudou Felicity a tirar o chapéu e a peliça.

Ela procurou não se pendurar no braço de Nathan, mas quando foi conduzida à sala de estar, imaginou que seu coração estivesse evidente no vestido, tamanha a força com que pulsava.

As semelhanças entre mãe e filho eram marcantes. Os dois tinham, olhos castanhos e cabelo da mesma cor, com mechas douradas, embora a sra. Carraway já apresentasse alguns fios grisalhos. Ela estava sentada em uma cadeira de balanço perto da— imensa janela, com um bastidor de bordado nas mãos. Sentada em um canto da sala, estava uma mulher alta e magra, com um vestido cinza que combinava com seu cabelo, lendo em voz alta. Assim que Nathan e Felicity entraram, ela parou a leitura e olhou para cima. Um cachorrinho peludo saiu de trás do sofá e veio latindo na direção deles. A sra. Carraway colocou o bordado sobre o colo e abriu os braços para Nathan, sorrindo.

— Que bom que você está aqui e chegou em boa hora! Bem que Norton disse que conseguiria, mas eu não o esperava antes do anoitecer.

Nathan se abaixou para brincar com o cãozinho, que se entrelaçava entre suas pernas, depois beijou as mãos da mãe e, a seguir, deu-lhe um beijo no rosto.

— Mamãe! Prometi que chegaríamos para o jantar. A sra. Norton sabe que cumpro minha palavra. — Ele fez uma pausa para cumprimentar a outra senhora. — As estradas estavam vazias, não havia nada para nos atrasar. E como está a senhora, mamãe? Bem, espero.

— Estou bem melhor, agora que você está aqui. Felicity ficou um passo atrás, observando mãe e filho enquanto o cãozinho marrom e branco cheirava seus pés.

— Veja, mamãe, finalmente trouxe minha esposa para casa. Felicity dobrou os joelhos numa vênia. — Como vai, milady?

Page 85: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

85

A sra. Carraway estendeu a mão. — Desculpe-me por não me levantar. Nathan deve ter lhe contado que tive um

problema no quadril. Não ligue para Bella, ela logo perderá o interesse quando perceber que você não tem comida para dar a ela.

— Não ligo, milady — murmurou Felicity, inclinando-se para acariciar as orelhas da cadelinha.

— Ainda bem — disse Nathan, sorrindo —, porque é Bella que manda nesta casa. — Bastou ele estalar os dedos para à cachorrinha correr em sua direção, encarando-o com adoração nos grandes olhos castanhos, enquanto ganhava um carinho na cabeça. — Eu a trouxe para minha mãe quando me alistei pela primeira vez, achando que uma faria companhia para a outra.

— E ela está comigo desde então — disse a sra. Carraway, meneando a cabeça. — Ela já está velhinha, é verdade. Não sente mais cheiro de nada, os olhos estão fracos, mas não deixa de ser minha companheira constante. Bella raramente sai do meu lado.

— Porque a senhora a mima, mamãe. — Nathan fez um agrado final em Bella e endireitou o corpo. — A senhora dá muitos petiscos a ela.

— Pode ser, mas não vou discutir isso com você hoje, Nathan. Quero falar com sua esposa. Venha aqui, minha querida, sente-se mais perto onde eu possa vê-la melhor. — Ela sorriu para Felicity, que, nervosa, puxava uma cadeira. — Norton, seria ótimo se você providenciasse alguns refrescos. Depois pode levar Bella para passear enquanto converso com lady Rosthorne. Isto é, se não estiver cansada depois da longa viagem.

Felicity teve uma vontade imensa de responder que estava exausta, mas reprimiu o impulso.

Não demorou muito para que um suco de framboesa fosse providenciado para as senhoras. A sra. Carraway pediu que Nathan fosse tomar uma caneca de hidromel com o mordomo, que tinha vários assuntos a conversar e prestar contas.

Quando ela e Felicity ficaram sozinhas, a sra. Carraway fixou os olhos escuros na sua convidada e disse gentilmente:

— Bem, querida, você fez meu filho padecer um pouco, não foi? — É verdade, e sinto muito por isso, milady. Não tive a intenção de atrapalhar tanto.

— Felicity olhou para o copo de suco nas mãos. — A senhora tem todo o direito de me condenar.

A sra. Carraway ficou em silêncio por um breve momento antes de continuar: — Qualquer mãe diria que é muito difícil perdoar alguém por ter magoado seu filho.

Mas prometi a mim mesma que não a julgaria antes de conhecê-la. Agora você terá a chance de se explicar, querida. Nathan me contou a versão dele dos fatos, mas sem nenhum detalhe.

— Ele disse que roubei o dinheiro dele? — Felicity perguntou de repente. — Não, ele teve o cuidado de não mencionar isso. — Não sou nenhuma caçadora de fortunas, milady, posso lhe garantir. Eu o deixei

porque... Por ele não me amar. — É estranho, uma vez que ele se casou com você. — Foi um ato de cavalheirismo, milady. Ele estava apaixonado por outra pessoa.

Uma mulher casada. Quando descobri, decidi ir embora. Eu precisava do dinheiro que ele me deu para ir à Inglaterra e fiquei muito doente por um tempo e precisava pagar os médicos. Pensei que ele fosse me esquecer.

— Eu pensei o mesmo — respondeu a sra. Carraway. — Foram inúteis as tentativas de encontrá-la, depois ele foi obrigado a voltar para a Península, sem notícias suas. Achei que o assunto estivesse encerrado. Depois de tudo isso, eu não tinha nenhum interesse em encontrar a mulher que desertou, meu filho.

— Sinto muito — sussurrou Felicity, com os olhos fechados. — O assunto foi esquecido. Quando Nathan se tornou conde, foi como se seu

Page 86: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

86

casamento nunca tivesse ocorrido. Ele nunca mais mencionou seu nome até alguns meses atrás, quando me contou que você estava viva e morando na capital.

— Ele... — Felicity umedeceu os lábios com a ponta da língua. — Ele ficou feliz em me encontrar?

— Acho que ficou bastante surpreso — concluiu a sra. Carraway. — Mas ele está determinado a honrar seus compromissos.

— Ah... — Aquilo não soara muito encorajador. — Eu não queria que ele me encontrasse, mas...

— Mas? O semblante da sra. Carraway era gentil, incentivando Felicity a confidenciar: — Lady Souden me levou para Londres com ela, e depois que vi Nathan, eu não me

contive. Quis vê-lo vezes seguidas. Eu sabia que era perigoso, que eu deveria me afastar, mas não resisti. Acho que era inevitável que ele me descobrisse. — Felicity abriu as mãos com as palmas para cima. — E aqui estou eu.

— É verdade. Você o ama, não é? — indagou a sra. Carraway. — Sim, amo muito, para ser sincera. — E inclinando-se para frente, prosseguiu: —

Se ele me der oportunidade, pretendo ser uma boa esposa. Fui uma tola em fugir, mas agora meu maior desejo é fazê-lo feliz.

A sra. Carraway observou Felicity e, depois de alguns minutos, meneou a cabeça, aparentemente satisfeita.

— Sim, querida, acho que acredito em você. Houve uma batida na porta, e no instante seguinte, Nathan apareceu na soleira.

— Posso entrar? O que Collins tinha para me mostrar pode esperar até amanhã. — Então junte-se a nós, Nathan. — A sra. Carraway olhou para o relógio. — Eu já ia

pedir a Norton que me levasse para o quarto, e vocês dois precisam se trocar para o jantar. Pedi a Mercer que arrumasse a mesa na saleta de estar — acrescentou. — Será muito mais romântico para vocês dois.

— Ah, a senhora não vai nos fazer companhia, milady? — Felicity perguntou. — Esta noite, não, querida. Estou um pouco cansada. Norton levará meu jantar no

quarto. Além do mais, acho que vocês precisam ficar sozinhos.

Capítulo Treze A MESA de jantar na sala acomodaria quatro casais sentados confortavelmente, mas

para Felicity, que entrou de braço dado com o marido, a distância das duas cabeceiras parecia ser de um quilômetro, coberta por uma toalha de linho branco.

Havia também um exagero de talheres de prata, além de um saleiro enorme e um pote de mostarda, dois cálices em forma de sino, alguns castiçais e um balde de prata de gelo com p vinho.

Nathan esboçou um sorriso ao relancear os olhos para Felicity e virou-se para o mordomo:

— Está tentando impressionar lady Rosthorne com toda essa opulência? — Ele murmurou algumas instruções para Mercer antes de conduzir Felicity para fora da sala.

— É assim que você janta normalmente? — Felicity indagou, olhando-o apreensiva e curiosa.

— Quando temos visitas importantes sim, mas normalmente elas seriam recebidas

Page 87: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

87

na sala de jantar — explicou ele sorrindo. — Pobre Mercer. Ela estava aqui na época do meu tio, e o último conde gostava de receber com muito mais cerimônia do que eu. Lamento atrasar seu jantar, querida, mas acho que vai achar bem melhor depois que Mercer fizer as modificações que pedi.

QUANDO MINUTOS depois, voltaram para a sala, a mesa tinha sido transformada. Todo

o excesso de prataria tinha sido retirado, e a toalha só estava estendida em uma das cabeceiras da mesa, onde estavam postos os lugares de Nathan e de Felicity na lateral direita.

O fogo que crepitava na lareira iluminava a sala em vez de dezenas de velas. Havia também pequenas arandelas presas às paredes e apenas um castiçal no centro da mesa.

— Assim está melhor — Nathan aprovou e puxou a cadeira para Felicity se sentar antes de tomar seu lugar à cabeceira da mesa.

Depois da sopa de entrada, ela se serviu de um pouco de peixe e permitiu que Nathan lhe servisse algumas fatias de frango. A princípio, ficou nervosa por comer apenas alguns bocados da fileira de pratos dispostos na mesa, mas a atenção e gentilezas discretas de Nathan logo a deixaram à vontade.

Felicity recusou um segundo cálice de vinho, preferindo água. Para sobremesa, escolheu pudim de ameixa.

Eles conversaram sobre assuntos triviais. Nathan estava ciente da presença silenciosa de Mercer a seu lado, limpando alguns copos, mas era óbvio que ouvia tudo o que estava sendo dito à mesa.

— Devemos promover um baile, querida, para apresentá-la à vizinhança, mas posso esperar mais um pouco de bom grado, até que você esteja mais adaptada. Mas temos de fazer um anúncio, claro. Amanhã mandarei publicar uma nota nos jornais de Londres, mas não vejo necessidade de qualquer comemoração formal antes do fim do ano.

— Como quiser, milorde. — Se bem que será impossível manter minha tia Charlotte afastada — brincou

Nathan. — Ela mora a uns 30 quilômetros daqui e vai insistir em vir até aqui para saber de tudo. — Ele riu. — Não se apavore, não vou deixá-la incomodar você. — Ele cobriu a mão de Felicity com a sua. — Aliás, não vou permitir que ninguém a perturbe.

Felicity corou ante a mudança repentina do tom de voz e pelo carinho na mão. Levantou a cabeça para encará-lo, mas reconheceu o brilho nos olhos dele e se intimidou. Nathan continuou com a carícia, e os dois permaneceram sentados à mesa até que tudo fosse retirado, restando apenas a polida mesa de mogno. Um pratinho de doces foi colocado sobre a superfície reluzente. Nathan levantou a mão e sinalizou para o mordomo.

— Pode deixar os copos na mesa, por favor. Eu mesmo servirei minha esposa. Pode se recolher, não precisarei mais de seus serviços nesta noite.

Talvez tivesse sido a retirada da toalha branca da mesa que deixou a sala aparentemente menor e um pouco mais escura, mas houve uma mudança na atmosfera quando eles, enfim, ficaram sozinhos.

Felicity teve a impressão de que seu corpo inteiro sentia a presença de Nathan a seu lado. Se esticasse o braço, poderia tocá-lo. Só de pensar na possibilidade, sentiu-se tomada por uma onda de emoções. Nathan era seu marido e estava se esforçando bastante para agradar a ela.

Esta é a minha vida agora, pensou. Serena Ansell e todos os problemas que tivera no verão pareciam tão distantes quanto a lua.

Nathan puxou um dos pratinhos de doces para mais perto. — Estes confeitos são feitos por um imigrante francês, em Londres. Costumo

mandar sempre alguns pacotes para minha mãe, que gosta bastante.

Page 88: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

88

— Acho que não quero... Nathan pegou um biscoito em formato de concha. — Experimente. — Ele levou o biscoito até ela. — É de chocolate. Quando Felicity abriu um pouco a boca, ele colocou o confeito perfumado. — Pronto. Gostou? — perguntou sorrindo. Ela assentiu com um movimento de cabeça, degustando o biscoito de sabor soberbo

e textura aveludada. — Ótimo. Agora deixe-me servi-la de um pouco de vinho para acompanhar. Não sei

bem qual escolher, se um tinto do Porto ou... — Nathan pegou uma das garrafas — talvez um Madeira, acho.

Felicity continuou em silêncio, observando-o colocar o vinho nas duas taças. — Nunca provei esse vinho — admitiu ela. — Então terá a oportunidade agora. Devemos brindar para que noites como esta se

repitam. — Ele entregou o cálice a Felicity, que deu um golinho e se deliciou com o sabor ligeiramente amendoado e a temperatura conforme a bebida desceu por sua garganta. Nathan a observava, esperando uma opinião.

— Gostei muito, Sir. Nathan sorriu, satisfeito. A luz das velas, continuaram ali conversando. Ela

respondeu com naturalidade a tudo o que Nathan perguntava sobre os anos que tinha passado com lady Souden, descrevendo as alegrias e desventuras de uma governanta, que era também babá, preceptora e muito amada. O clima da conversa a incentivou a questioná-lo sobre o trabalho com as propriedades. Entre um golinho de vinho e outro, ouviu-o falar das várias mansões e das benfeitorias que estava fazendo.

A voz profunda de Nathan a envolvia, causando a mesma sensação que o chocolate provocara. Por isso, fazia questão de absorver tudo o que ele contava, animado, sobre os planos de mais construções e melhorias nos sistemas de irrigação e na colheita.

— Acho que você adora a função de ser conde de Rosthorne — ela se arriscou a comentar quando ele fez uma pausa para servir mais vinho.

— A princípio, fiquei amedrontado, mas estou rodeado de pessoas muito boas, como Collins, meu administrador.

Há muito o que fazer, é trabalho para a vida inteira. — Ele a fitou. — E você pode e vai me ajudar bastante, Fee.

Felicity retornou o olhar intenso com o estado de espírito nas alturas. — Não há nada que eu deseje mais, Nathan. — Ótimo. Então você me acompanhará conhecendo as terras e as pessoas. Esse é

o primeiro passo. Mais um golinho no vinho Madeira, e ela sentiu uma sensação prazerosa

percorrendo-lhe o corpo todo, num misto de conforto, felicidade e ousadia. Nathan apontou para o prato de doces.

— Quer mais um, milady? — Não. — Ela colocou o cálice na mesa. — Agora é a minha vez. E escolhendo um dos confeitos, levou até ele. Nathan abriu a boca, sorrindo. Com um olhar intenso focado na esposa, mordiscou o

confeito e o dedo dela. Depois lhe tomou a mão e, com muito carinho, traçou uma trilha de beijos rápidos na pele alva do antebraço.

Felicity ficou imóvel, percebendo que mordiscava o lábio inferior, mas sem nenhuma vontade de se soltar. O roçar dos lábios úmidos gerava faíscas de prazer que lhe incendiavam o corpo todo, principalmente a região baixa do ventre. Fixou os olhos nele, encantando-se com o efeito da luz bruxuleante da vela, que ressaltava os reflexos dourados do cabelo de Nathan e as linhas fortes do rosto. Admirou-se com a concentração que ele dispensava a cada beijo em seu braço.

— Ah, céus — sussurrou, incapaz de se conter.

Page 89: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

89

— Você não gostou? — Não... Quero dizer, sim... — confessou ela. — Gostei muito. Para desapontamento de Felicity, Nathan soltou sua mão. — Vou-me levantar — disse ela, com a voz não muito firme. — Acho que é hora de

me retirar para a sala de estar. — Como? Vai me deixar aqui saboreando minha bebida sozinho? — É o costume, milorde. — Pode ser, mas não nesta noite. — N-não? Felicity sentiu a mesma onda de calor de antes dominar-lhe os sentidos, mas dessa

vez, não era por causa do vinho, e sim por conta do olhar profundo de Nathan. Ele se levantou e estendeu a mão para ela. Ela a aceitou, e em silêncio, os dois

entrelaçaram os dedos, num gesto de cumplicidade. Felicity o seguiu para fora da sala e para as escadas escuras. A única luz vinha da vela que Nathan pegou no hall de entrada, no caminho.

O coração de Felicity reverberava no peito, desafiando um instrumento de percussão. Já fazia cinco anos que não compartilhava a cama com Nathan. E ele tinha sido muito paciente. O que deveria esperar dessa vez? Não havia como saber, era como se fizesse cinco dias, e não cinco anos, que estava casada.

No quarto principal, eles encontraram castiçais de velas no console da lareira e o valete de Nathan ajoelhado diante da lareira, atiçando o fogo. O rapaz se levantou assim que a porta foi aberta.

— Que bom encontrá-la de novo, milady — cumprimentou ele, curvando-se ligeiramente. — Bem-vinda a Rosthorne Hall.

— Obrigada, Sam. Ele sorriu, saudou Nathan e correu na direção da porta. — Sam. — A ordem de Nathan fez com ele parasse imediatamente. — Encontre a

aia de lady Felicity e diga que ela pode ir se deitar. Não precisaremos dela. Sam baixou a cabeça e saiu do quarto, deixando-os a sós. — Foi muito cavalheirismo de sua parte, milorde — disse Felicity, esforçando-se

para disfarçar o nervosismo com um comentário irreverente. — Acha mesmo que não posso despi-la? Venha aqui — ele a chamou, fitando-a nos

olhos. Quando estavam bem próximos, ele pousou as mãos no ombro dela, puxando-a

mais para perto. O que se seguiu foi um beijo lento, mas que completava todos os sentidos de Felicity. A ansiedade de antes foi substituída pelo desejo de ser possuída. As lembranças da noite de núpcias, suprimidas durante tanto tempo, reviveram em sua mente, levando-a a ansiar pelo pleno prazer de estar com o corpo colado ao dele. Enquanto Felicity o abraçava, Nathan se ocupou em desfazer os laços que pendiam das mangas bufantes de seu vestido. Depois passou a soltar todos os minúsculos fechos das costas. Ao terminar, afastou-se para soltar o restante dos laçarotes.

Felicity sentiu-se despojada, com o único desejo de retornar àqueles braços, que tinham o tamanho exato para envolvê-la, e ser beijada de novo. A pequena parte de seu cérebro que ainda raciocinava registrou a emoção da respiração descompassada de Nathan, quando ele levantou os braços dela e tirou o vestido devagar, desnudando primeiro os ombros, para deixá-lo, por fim, amontoar-se delicadamente no chão.

Nathan começou a beijá-la atrás do pescoço, enquanto desatava os cordões do corpete que confinava o corpo dela, mas mesmo depois de a peça amontoar-se junto com as outras, no chão, Felicity ainda estava aprisionada, só que pelas mãos de Nathan, que agora lhe acariciavam os seios.

Com um gemido, Felicity se virou e deixou-se beijar mais uma vez. Impaciente, começou a tirar as roupas dele. O paletó e o colete foram descartados com facilidade,

Page 90: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

90

depois as calças. Nesse instante, ele a levantou no colo, levando-a para a imensa cama e deitando-a sobre as cobertas. Felicity estendeu os braços para alcançá-lo, o corpo já saudoso de seus toques. Beijaram-se como se fosse a última vez, camuflados pelas sombras do quarto, enquanto ela delirava ao sentir a pele sobre pele. A sensação era de ser uma flor, desabrochando em toda a sua plenitude ao calor do sol, entregando-se de uma maneira que chegou a assustá-la.

As carícias se tornaram mais urgentes e selvagens. Rolaram juntos pela cama, com as pernas entrelaçadas, beijando-se e explorando-se. Até que, no auge da paixão, Nathan a possuiu até a exaustão, quando se deixaram cair lado a lado sobre as cobertas.

Uma sensação de bem-estar abateu-se sobre Felicity, que passou a mão sobre o rosto de Nathan, com os dedos movendo-se até a testa, acariciando a cicatriz. Nathan cobriu os dedos dela com os seus e disse com dificuldade:

— Você acha esta... Deformidade... Repulsiva? — Não — ela respondeu com carinho. — Faz parte de você, de quem você é. —

Afastando a mão, Felicity beijou a cicatriz. Nathan a puxou para si e a possuiu mais uma vez, até que, finalmente saciados,

renderam-se a um sono profundo. NA MANHÃ seguinte, Felicity acordou sozinha. Sentou-se na cama ao ouvir o ranger

da porta se abrindo e sua criada entrando. — Ah, desculpe-me, milady, eu a acordei? — Não, Martha. Onde está o conde? — Milorde já saiu para cavalgar, milady, mas deixou ordens para que a deixássemos

dormir e disse que voltaria para tomarem o café da manhã juntos. — Então ajude-me a me vestir — pediu ela, jogando as cobertas para o lado. NATHAN CHEGOU uma hora depois. Bella o ouviu se aproximar e saiu dos pés de

Felicity debaixo da mesa, correndo e latindo assim que Nathan apareceu na porta. Felicity também estava contente em vê-lo e abriu um largo sorriso. Ele vestia uma Jaqueta de montar e botas de cano alto. Felicity achou que se parecia, de fato, com um cavalheiro do campo. Com uma aparência relaxada e a pele reluzente pelo exercício matinal, ele se sentou a seu lado, ansioso para contar seus planos para entretê-la.

Depois de ouvi-lo por cinco minutos sem parar, ela levantou a mão, sorrindo. — Já chega, milorde — pediu. — Por mais que eu queira visitar todos os seus

vizinhos e o salão de festas local, você deve se lembrar de que não possuo tantos vestidos dignos de uma condessa.

Nathan se serviu de uma xícara de café. — A roupa não importa, mas o que você é por dentro. — Ele se virou para ela com

os olhos brilhantes. — E o que está sob seus vestidos é muito adequado a uma condessa, milady.

Felicity corou violentamente e agradeceu a oportunidade de estarem sozinhos na sala.

— Eu não gostaria de envergonhá-lo, milorde. Nathan pegou a mão dela e beijou-a. — Você jamais me envergonharia, mas tem razão: precisamos comprar um enxoval

para você. Será que devemos voltar a Londres e abrir a casa de lá? Ou prefere que minha mãe a ajude? Ela raramente sai de Rosthorne e contrata costureiras e chapeleiras que atendem a ela aqui em casa.

— Prefiro não voltar para Londres e vou ficar feliz com a assistência de sua mãe — respondeu Felicity. — Gostei da solução.

Page 91: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

91

DEPOIS DO café da manhã, Nathan levou Felicity aos aposentos da sra. Carraway,

que ficou exultante com a ideia de ajudar a nora. — Geralmente eu chamo Jannine, de Wichester. Ela tem uma irmã aqui na cidade

que é ótima para os detalhes da última moda. Vou escrever para ela agora mesmo e explicar que precisamos de amostras de tecidos o mais rápido possível. Direi que você precisa de um guarda-roupa completo: vestidos de passeio, peliças, boleros e de uma chapeleira...

— Querida sra. Carraway, não pode se cansar tanto — Felicity pediu, alarmada. — Não pensei que fosse dar tanto trabalho!

A sra. Carraway afastou as preocupações, dizendo: — Norton e eu vamos gostar muito de participar dessa tarefa. Claro que as decisões

de estilo e tecidos serão suas, minha querida, mas espero que nos permita ajudá-la. Felicity suspirou. — Eu não saberia por onde começar se não fosse sua ajuda, milady. — E

acrescentou, embora hesitante: — Meu tio Philip não aprovava roupas elegantes. Segundo ele, eram adornos do diabo.

— Pois ele estava redondamente equivocado — respondeu sra. Carraway com ênfase. — São roupas apropriadas para a sua posição como condessa de Rosthorne. Nathan é o senhor destas terras, e todos esperam que a condessa se vista de acordo.

DENTRO DE poucos dias, um exército de costureiras chegou a Rosthorne Hall, trazendo rolos de musselina, chintz e seda nos mais variados padrões e cores. Felicity se deixou medir, provar, alfinetar, mas a compensação era cavalgar pela manhã com Nathan.

Nesses momentos, as vestimentas dela eram mais práticas do que elegantes, mas a jaqueta azul a deixava elegante e, segundo Nathan, era ótima para cavalgar pela propriedade.

Ele a apresentou para os caseiros e arrendatários, jardineiros e guardas de caça com quem cruzavam durante os passeios. Numa certa manhã ensolarada, quando chegaram aos limites da propriedade de Rosthorne, Nathan sugeriu que se afastassem um pouco mais.

— Podemos ir mais adiante, a menos que você tenha de voltar para casa. — Para provar mais vestidos? — perguntou ela, rindo. — Ah, não, obrigada! — Pensei que gostasse de comprar roupas novas. — Claro que sim, mas não tudo de uma vez! Sua mãe tem sido muito eficiente no

comando da sala de costura. Eu só preciso escolher o tecido e o modelo, e ela faz todo o resto. Sou muito grata a ela.

— E eu sou grato a você — ele respondeu rápido. — Você promoveu um novo interesse à minha mãe, e ela está se divertindo.

— Fico feliz. Sua mãe é muito gentil e amável comigo. — Felicity fez uma pausa e acrescentou, hesitante: — Em um primeiro momento, achei que ela não tivesse gostado de mim. Estaria no direito dela, pois agi de maneira abominável com você.

— Ao contrário, ela gostou muito de você — garantiu Nathan, segurando-lhe a mão. — Obrigada — sussurrou Felicity. Piscou seguidas vezes antes de mudar de

assunto: — E agora, milorde? Aonde estamos indo? — Vamos até West Meon, não fica muito longe. Os pais de Adam Elliston moram no

vilarejo... Gostaria de que os conhecesse. Felicity não respondeu imediatamente. A simples menção do nome de Adam Elliston

foi suficiente para lhe trazer memórias vividas de Corunha. — Talvez seja pedir demais, afinal, já cavalgamos bastante... — Nathan apressou-se

a acrescentar.

Page 92: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

92

— Não, não — ela o interrompeu com um sorriso. — Vou ficar muito feliz, honrada em conhecê-los, a menos que ache que estou malvestida para a visita.

— Não. Você está com um pouco de terra no rosto, mas, removendo isso, acredito que passará pela revista.

— Terra? Onde? Nathan aproximou o cavalo. — Fique quieta que eu resolvo isso. — Nathan tirou a luva e puxou um lenço do

bolso. — Você fez o mesmo por mim em Green Park, lembra? — Como poderia esquecer? — Felicity sentiu arrepios pelo corpo. — Houve mais

ataques desde que você deixou a cidade? — Nenhum. Está vendo, não há nenhum plano contra mim. — Segurando-lhe o

queixo com uma mão, Nathan limpou o rosto dela. — Pronto, agora está apresentável de novo.

Felicity continuou parada, olhando para ele. Os cantos da boca de Nathan se curvaram para cima, revelando um sorriso provocante.

— O que acha de adiarmos a vista à família Elliston? Podíamos desmontar aqui e... ahn... passear pela mata.

Felicity sentiu o coração disparar. Sabia que tinha entendido as intenções de Nathan, a começar pelo olhar maroto. Apesar de o convite ser um ultraje, sua surpresa maior foi o impulso de aceitar. Assim, engoliu em seco e respondeu, animada:

— Se fizermos isso, milorde, não estarei nem vestida para ser apresentada a alguém.

Nathan gargalhou. — É verdade, você tem razão, é melhor irmos a West Meon. — Ele a soltou com um

suspiro. — E uma pena... Felicity também achou graça, mas completou em tom sério: — Que vergonha, milorde. Vamos continuar a cavalgar, você precisa cumprir suas

obrigações sociais. — Era exatamente isso que eu planejava. Ela riu de novo e decidiu que não deveria responder à altura, por isso, optou por

esporear o cavalo, na esperança de recuperar a compostura quando chegassem ao destino.

— ENTÃO NATHAN a está apresentando para os vizinhos. A sra. Carraway jantou com o casal na sala menor, com as velas dos castiçais todas

acesas. — Fomos a West Meon para conhecer o sr. e a sra. Elliston e a filha — respondeu

Felicity. — Eles mandaram lembranças para a senhora, e a sra. Elliston prometeu vir visitá-la em breve.

— Um casal encantador, e a filha, Judith, também é um amor! — A sra. Carraway suspirou. — Ela é a única companhia deles desde que perderam Adam, um rapaz de bom caráter. Senti muito a morte dele quando soube. — E acrescentou com a voz pausada: — Nessas horas, penso na sorte que tenho.

Nathan alcançou-lhe a mão por sobre a mesa. — Eu também, mamãe. Mas não vamos falar do passado. Conte-me como foi o seu

dia. A senhora se ocupou o dia todo com as costureiras? — Não, a sra. Orr, a esposa do vigário, veio tomar chá comigo. Uma mulher

agradável, mas viciada em fofocas.— A sra Carraway sorriu para Felicity. — Acho que a visita foi mesmo para saber sobre você, minha querida. Não há com que se preocupar, eu disse que você estava morando com amigos em Londres até que Nathan pudesse trazê-la para cá. Ela achou muito romântico. Todos aguardam sua presença na igreja amanhã.

Page 93: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

93

— Deus do céu! — exclamou Nathan. — Temos mesmo de ir? Lembra-se de como todos ficaram me olhando quando vim aqui pela primeira vez? Parecia a exibição de um prêmio.

— Claro que deve ir, filho! É muito importante que você e sua esposa sejam vistos. E você bem sabe que logo isso deixará de ser novidade. — A sra. Carraway pegou um chocolate do pratinho de doces à sua frente. — E Felicity não será a única recém-chegada à congregação. A sra. Orr me contou que a propriedade Godfrey Park foi alugada.

— Eu não sabia disso. Godfrey Park é uma propriedade muito bonita, a uns cinco quilômetros daqui — Nathan explicou a Felicity. — Nós passamos por lá a caminho da cidade. — E então, mamãe, quem são nossos novos vizinhos?

— Segundo o corretor, é uma viúva de um cavalheiro rico de Somerset, uma tal de lady Ansell.

Capítulo Catorze

TODA alegria que Felicity vinha sentindo até então se evaporou no mesmo instante. Ela olhou para Nathan, mas ele continuava parado, fitando a mãe.

— Ansell! Casada com o coronel Craike? — Isso eu já não sei. Soube apenas que é uma viúva rica. — Bem, logo descobriremos — Nathan respondeu friamente. — Já contei que dei

instruções para que a trilha para Home Wood seja limpa? As plantas cresceram demais neste verão...

O nome de lady Ansell ainda surgiu na conversa mais algumas vezes, e Felicity sentiu a presença dela como uma nuvem sobre sua felicidade.

Quando subiu para o quarto naquela noite, decidiu que falaria com Nathan. Estava sentada na penteadeira, escovando o cabelo, quando ele entrou no quarto. Até mesmo sob a luz das velas, o tecido escuro do pesado paletó de seda reluzia.

— Você se despe depressa — disse ele. Felicity dispensou a criada. — Estive olhando meus vestidos novos. Dois já estão prontos, e estou decidindo

qual deles usarei amanhã. Se sua mãe estiver correta, seremos observados com atenção ao entrar na igreja.

— É normal que todos queiram ver quem é a nova condessa. — Nathan se aproximou por trás, olhando-se no espelho.

Page 94: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

94

Ela sorriu e olhou para os potinhos de vidro sobre a mesa. — Aposto que também vão querer conhecer a nova proprietária de Godfrey Park —

disse ela, arriscando um olhar para Nathan. — Gostaria de saber o que ela veio fazer em Hampshire.

— Não tenho a menor idéia. Milhões de palavras povoaram a cabeça de Felicity, mas não poderiam ser ditas...

Na verdade, sua vontade era perguntar a Nathan se ele ainda amava Serena e se a tinha convidado para morar tão perto. E se ainda eram amantes. Ela bem sabia que esses arranjos eram comuns. As perguntas não formuladas ainda a torturavam quando ele a puxou. Pergunte a ele, a vozinha da consciência estava quase gritando. Exija a verdade agora.

Mas quando Nathan a pegou no colo e a levou para o quarto, ela apoiou a cabeça nos ombros largos, domando o diabinho irritante que lhe tirava do sossego, sabendo que não o questionaria justamente porque temia as respostas.

O INÍCIO de uma manhã ensolarada de domingo restaurou o ânimo de Felicity, e sua

confiança aumentou quando Nathan ficou encantado ao vê-la em um vestido novo branco com um bolerinho de veludo verde, combinando com o chapéu.

— Então, milorde, estou bem? — ela perguntou, mexendo com as fitas do chapéu. — Adorável — Nathan elogiou e estendeu-lhe o braço. Encontraram a sra. Carraway

esperando por eles na carruagem, com a fiel sra. Norton a seu lado. — Vejam só, vocês formam um casal muito bonito — declarou ela, enquanto Nathan

ajudava Felicity a subir na carruagem. — Só mais uma coisinha, se me permitir, querida. Norton, amarre o laço do chapéu de lady Rosthorne de novo, por favor. Isso, faça um laço bem embaixo da orelha.

Quando a acompanhante da sra. Carraway deu um passo atrás para admirar seu trabalho, Felicity arriscou um olhar ansioso para Nathan.

— Muito vistoso. — Ah... — suspirou ela, amedrontada. — Não está chamativo demais para ir ao

culto? — Nem um pouco, querida — declarou a sra. Carraway. — É perfeito para uma

recém-casada, bem como a cor das maçãs do seu lindo rosto. Dê a ordem de partida para o cocheiro, Nathan, não nos atrasemos.

A PEQUENA igreja do vilarejo de Hazelford estava lotada. Felicity estava feliz por

Nathan a escoltar pelo braço até os bancos reservados para a família, abaixo do púlpito. A congregação toda se virou para olhar para ela, sem a preocupação de serem discretos, o que a levou a acreditar que muitos estavam ali apenas para ver a nova lady Rosthorne.

— AINDA BEM que o sermão do sr. Orr não foi muito longo — murmurou a sra. Carraway conforme sé preparavam para sair da igreja, depois do culto. — Agora, meu filho, você deve levar a condessa lá para fora ê enfrentar os dragões.

Felicity acompanhou Nathan para fora da igreja, piscando com o sol forte, e foi confrontada por muita gente desconhecida, todos querendo ser apresentados.

Com Nathan a seu lado, ela sorriu e disse todas as frases apropriadas para a ocasião. Pelo canto do olho, viu Norton escoltando a sra. Carraway para a carruagem. Só mais alguns minutos, pensou, e poderiam ir embora, voltar para a paz e a privacidade de Rosthorne.

— Ah, milorde... — A voz forte do vigário destruiu as esperanças de Felicity. — Não posso permitir que o senhor e a condessa vão embora sem antes conhecer um novo membro da nossa congregação.

Page 95: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

95

Felicity se virou e viu Serena, alta e linda em um vestido lilás. Uma única pena de avestruz enfeitava o chapéu, que servia de moldura para as feições perfeitas.

— O conde e eu estivemos juntos em Corunha — Serena disse ao vigário, radiante. Felicity respirou fundo e empinou o nariz ante o significado daquelas palavras. — Eu o conheci antes de se casar — Serena completou, dirigindo-se para Felicity apenas por educação. — Mas naquela época, você era apenas a sra. Carraway, milady.

— E verdade. — Felicity se surpreendeu com a firmeza de sua voz. — E você era a sra. Craike.

— Sim. Coitado do Craike, faz tanto tempo... — Serena suspirou e olhou para Nathan. — Meus parabéns, milorde. O senhor deve estar muito feliz em estar com sua esposa novamente.

— Obrigado, milady: Estou muito feliz. — Nathan virou-se para o vigário e se afastaram, deixando Felicity e Serena Ansell sozinhas.

— Quer dizer, então — a viúva sorria, mas não havia compreensão naqueles olhos verdes frios —, que você não resistiu à idéia de ser uma condessa.

— Pode pensar assim se quiser — Felicity respondeu com um breve sorriso, determinada a não se deixar intimidar, virando-se para ir para a carruagem.

Mas Serena a seguiu. — E o que todos vão pensar quando souberem a verdade. — Que verdade? Eu estava apenas morando com amigos. — Usando um sobrenome falso. — Não tenho intenção de chamar a atenção para minha situação. — Felicity deu de

ombros. — E qual é exatamente a sua situação agora, milady — Serena perguntou, quase

ronronando. — Nathan sabe por que você o deixou na Espanha? — Sim. — Felicity parou. — O que aconteceu há cinco anos não desperta mais

interesse. — Tem certeza? — Serena arqueou uma sobrancelha. — Eu a considero apenas uma conhecida minha, milady, nada mais do que isso. —

Felicity se aprumou. — E eu considerarei você a esposa de Nathan apenas no nome e nada mais. —

Serena a encarou, com toda a pretensa afabilidade desaparecendo. — Você acha mesmo que alguém inocente e sem habilidades como você pode segurar um homem?

— É essa a minha intenção — retorquiu Felicity, irritada. — E acho que já é hora de devolver o anel dele.

Serena a fitou, entre desconfiada e alarmada. — E então, milady, ainda tem o anel? — indagou Felicity num tom de voz gélido. — Bem... Eu... Deve estar no meu porta-joias — Serena respondeu sem pensar. A indignação de Felicity só aumentou. Se Nathan tivesse dado uma lembrança

daquelas a ela, ela guardaria com todo o carinho e nunca teria dúvidas de onde estava guardada.

Serena a observava com um sorriso frio nos lábios. — Você não contou a ele sobre nosso último encontro, não é? — perguntou ela. —

Nunca chegou a desafiá-lo. — Quando Felicity não respondeu, Serena riu. — Imagine tamanha ousadia... Nem agora você teria coragem de confrontá-lo. — Ela se inclinou mais para perto. — Pobre coitada, você não era ninguém quando Nathan a pegou nas ruas de Corunha... Você bem sabe que nunca estará à altura dele!

Felicity a fuzilou com o olhar, hesitando intimamente conforme Serena verbalizava seus rnedos mais profundos.

Antes mesmo que pudesse responder à altura, Nathan as alcançou. — Desculpe-me, querida, eu não tinha intenção de deixá-la sozinha. — Ele a

segurou pelo braço.

Page 96: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

96

— Sua esposa e eu estávamos nos conhecendo melhor — disse Serena com toda a calma. — E muito bom saber que tenho bons amigos morando perto. — Ele inclinou a cabeça com um sorriso, antes de se afastar.

Felicity acompanhou Nathan em silêncio até a carruagem, onde a sra. Carraway os aguardava.

— Você está pálida, querida — observou ela, depois que Nathan ajudou Felicity a entrar na carruagem. — Foi uma prova e tanto encontrar tanta gente.

— Foi mesmo, Fee? — perguntou Nathan, olhando-a de perto. — Espero que lady Ansell não tenha dito nada que a aborrecesse.

Felicity sabia que, mesmo que quisesse contar tudo o que Serena dissera, não poderia ser ali, na frente da mãe dele. Optou, então, por balançar a cabeça, envergonhada de sua covardia.

— Confesso que nossa vizinha me intriga — comentou a sra. Carraway, enquanto a carruagem voltava para Rosthorne Hall. — Ela é muito bonita, claro. Mas fico pensando na razão pela qual ela decidiu se enterrar aqui em Hampshire. Talvez devamos convidá-la...

— Não! — Felicity respondeu por instinto, atraindo a atenção de Nathan. — Espero que não queira ficar íntima de lady Ansell, mamãe. — Ora, ora... — Os olhos da sra. Carraway brilharam. — Estou sentindo cheiro de

fofoca, Norton! Então, meu filho, não vai nos contar o que há de errado com a viúva? — Claro que não — respondeu Nathan, com um sorriso embaraçado. — Abomino

fofocas. Digo apenas que conheci essa senhora em Corunha e que ela não faz parte da sociedade.

— Mas não podemos ignorá-la. Uma viúva tão rica... Ela receberá vários convites. — Não para a minha casa. Era isso que a estava preocupando, Fee? — Nathan

apertou a mão de Felicity. — Serena Ansell tem seu lugar em algum canto, mas definitivamente não em Rosthorne Hall.

Felicity se afundou no canto, limitando-se a um breve menear de cabeça, mostrando que estava de acordo com o marido.

Quando chegaram em casa, a sra. Carraway foi para sua ala da mansão com a acompanhante. Assim que Felicity tirou o bolero e o chapéu, Nathan a escoltou para a sala de estar.

— Bem, o martírio maior foi vencido — comentou ele. — Ser obrigado a sentar numa igreja enquanto todos os homens estão boquiabertos...

— Não foi tão ruim — disse ela, entrando na sala primeiro que ele. — Sua mãe estava lá para me apoiar.

Nathan segurou-lhe a mão e a puxou para o sofá. — Estavam todos encantados com você. — Ele levou o dedo até os lábios dela. —

Ouvi vários comentários de como sou sortudo por ter encontrado uma esposa como você. — Nathan. — Ela segurou a mão dele. — Eu nunca soube o que aconteceu com o

seu anel, aquele gravado com os espinhos de rosa que você usava no dedo mindinho. — Eu disse que perdi durante a guerra. Não há mais nada para contar. Felicity respirou fundo e criou coragem para perguntar: — Você... Você o deu de presente a alguém? — Faz muito tempo, Fee. — Ele afastou a mão dela dos lábios. — Vamos esquecer

isso, por favor. — Nathan se levantou. — Collins me disse que terminaram de limpar o caminho até Home Wood. Eu pretendia ir até lá mais tarde. Quer ir comigo?

O rosto dele estava impassível, mas havia algo estranho em seu semblante, e um olhar que dizia para que não houvesse mais perguntas.

Felicity compreendeu. — Sim, eu gostaria muito de acompanhá-lo. Deixe que ele guarde seus segredos, pensou ela, e eu guardo os meus.

Page 97: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

97

Felicity se acostumou logo com a casa nova. Gostava da companhia da sogra e

conseguira se apaixonar ainda mais pelo marido. Ele a incentivava a se interessar pela propriedade, sempre muito atencioso e gentil, mas mesmo assim, as dúvidas ainda a assombravam. Gostaria muito de ter coragem de tocar no assunto com Nathan, confidenciar seus temores, mas não queria arriscar a recém-descoberta felicidade.

A excelente costureira da sra. Carraway entregou mais alguns vestidos em tempo para a festa em Hazelford, e Felicity teve uma tarde muito agradável, escolhendo o que vestir.

— Você estará em evidência, por isso, é importante que esteja linda — disse a sra. Carraway quando Felicity pediu sua opinião.

Estavam no grande e ensolarado aposento que fora designado como quarto de vestir da condessa. Felicity provava seu novo vestido de musselina para a tarde. O tecido era de cor creme, bordado com fios verdes e dourados na gola, nas mangas e na barra.

— Sei que todos os olhares estarão sobre mim quando eu entrar — murmurou Felicity. — Vou ficar muito nervosa.

— Basta ser você mesma que todos vão amá-la. — A sra. Carraway girou na cadeira. — Martha, minha querida, vá até meu quarto e peça que Norton procure minha manta dourada.

— Ah, não, por favor, a senhora já fez muito por mim — disse Felicity, consternada por a criada já ter saído da sala.

— Deus do céu, e por que não? Você é minha filha agora. — Ela estendeu as mãos. — O que a preocupa?

Felicity se aproximou e ajoelhou-se no chão ao lado da cadeira da sra. Carraway. — A senhora tem sido tão generosa... Desde que cheguei aqui foram todos tão

gentis... Não sei se mereço tanto... Eu trouxe muito pouco para cá. — Bem, agora chega dessa conversa boba. Você ganhou nossos corações, e isso é

o mais importante. — Ela segurou o queixo de Felicity, que levantou o rosto, sorrindo. — Tenha um pouco mais de confiança em si mesma, querida, e você se sairá muito bem.

Aquelas palavras ecoavam na cabeça de Felicity quando ela entrou no salão do Swan Inn naquela noite. Com a mão no braço de Nathan, ficava bem mais fácil ser senhora de si. Acreditava até que eles poderiam ser felizes juntos. Bastava um olhar de soslaio para ele e seu coração se enchia de orgulho.

Ela tinha visto o sr. Brummell em Londres, e sabia que Nathan seguia seus preceitos, mas particularmente achava que seu marido era muito mais bonito do que o ícone da moda. A silhueta esbelta de Nathan e os ombros largos estavam emoldurados por um paletó muito bem cortado, e as calças justas formavam um conjunto perfeito. A intrincada gravata branca realçava-lhe a pele morena do rosto, bronzeada depois de anos de batalhas na Espanha e na França, mas Felicity preferia a beleza do marido à do outro senhor de cavanhaque.

Nathan olhou para a figura silenciosa a seu lado. Ele sabia o quanto a esposa estaria nervosa por abrir o baile em um salão apinhado de pessoas que mal conhecia, mas a dignidade e postura dela o impressionaram. Vários cavalheiros já se dirigiam para a sala de jogos, mas ele decidiu que não deixaria Felicity antes de ter certeza de que ela estaria mais à vontade.

— Insisto que suas duas primeiras danças sejam comigo — disse ele, feliz ao ver o rosto dela se iluminar.

Mesmo depois de um mês juntos, o desejo corria por seu corpo, junto com a corrente sangüínea, quando ela sorria daquele jeito. Enquanto rodopiavam pelo salão, ele não tinha olhos para ninguém que não fosse sua esposa. Gostava de admirá-la se movimentando em passos graciosos. Sua vontade era puxá-la para um canto e beijar a

Page 98: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

98

delicada curva de seu pescoço, mas tinha de esperar. Mesmo que quisesse, não poderia dançar com ela novamente, pelo menos por enquanto, pois tendo apresentado a nova condessa para a sociedade, não tinha o direito de monopolizá-la. Assim que deixaram a pista de dança, ele se frustrou mais ao encontrar o primo, mas fingiu alegria ao cumprimentá-lo:

— Gerald! Que bom vê-lo, primo! Pensei que ainda estivesse na capital. O sr. Appleby se aproximou sorrindo. — Estava, mas minha mãe insistiu em que viéssemos para cá imediatamente

quando recebeu sua carta. — Entendo. — Nathan olhou para Felicity. — Querida, deixe-me apresentá-la ao

meu primo, sr. Gerald Appleby. Gerald sorriu ao segurar a mão de Felicity para cumprimentá-la. — Ora, ora, lady Rosthorne, você enganou a todos direitinho! Mal pude acreditar

quando Nathan escreveu, explicando que você estava na capital durante todo o verão, bem debaixo dos nossos narizes. Por mais impossível que possa parecer, minha mãe perdeu a voz quando descobriu que a pequenina srta. Brown era na verdade a esposa de Nathan! Eu disse que o esquema tinha sido bem tramado por lady Souden, que a manteve escondida do público, enquanto Nathan preparava Rosthorne para sua nova condessa. Estou certo?

— S-sim. — Felicity olhou para o marido, e ambos riram. — Você foi preciso, Gerald. Gerald meneou a cabeça. — Há um rumor correndo pela cidade de que meu primo a havia perdido de vista,

lady Rosthorne. Só digo que Nathan foi muito descuidado. Espero que ele tome conta de milady melhor no futuro.

Felicity corou e balbuciou algo incompreensível. — Perdoe o senso de humor do meu primo — replicou Nathan, forçando um sorriso.

— Lady Charlotte está com você? — Não, chegamos a Appleby Manor nesta tarde, e ela estava exausta para sair de

novo. Eu, por outro lado, estava ansioso para encontrar minha nova prima. — Gerald virou-se outra vez para Felicity. — Se já não estiver comprometida, milady, me daria a honra da próxima dança?

Nathan meneou a cabeça ao perceber que Felicity hesitava, incentivando-a a aceitar o convite.

— Eu adoraria dançar, sr. Appleby. — Ótimo. Vou voltar para exigir meu prêmio — disse Gerald, acrescentando: —

Espero que não a perca antes disso, primo. — Que rapaz simpático ele é — murmurou Felicity, conforme Gerald se afastava. —

Ele sempre foi muito atencioso comigo quando estávamos em Londres. — Eu sei disso — grunhiu Nathan. — Insolente, é isso o que ele é.— Felicity riu do

comentário. — Ele estava apenas sendo cordial com a dama de companhia de lady Souden. — Sim, e me envergonhando, por contraste, fazendo ressaltar a pouca atenção que

eu dava a você. — Se você tivesse me dado atenção, eu teria sido obrigada a me esconder, para

não ser descoberta. Nathan parou e virou-se para ela. — E agora? — perguntou. — Você lamenta que eu a tenha descoberto? O rosto de Felicity enrubesceu graciosamente. Ela não olhou para Nathan, mas ele

viu o leve movimento de negação que ela fez com a cabeça. Com todo o burburinho de vozes no salão, ele teve de se inclinar para ouvi-la.

— Não, eu não lamento — ela repetiu. O coração de Nathan se encheu de alegria. Ele tinha esperanças de não estar se

Page 99: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

99

pavoneando como um esnobe arrogante enquanto continuavam a circular pelo salão. Felicity estava se divertindo. A aprovação de Nathan a acalmou a ponto de quase

rejeitar o convite de Gerald para dançar. Depois disso, outros cavalheiros a convidaram também, inclusive o sr. Elliston, que tinha chegado com a esposa e a filha, enquanto Felicity dançava com Gerald. Estavam conversando com Nathan quando Gerald a escoltou depois da música.

— Ah, aí está sua adorável esposa, Rosthorne! — o sr. Elliston exultou em um excelente humor. — Boa noite, lady Rosthorne. Estávamos dizendo que é uma bênção que Rosthorne não esteja mais no Exército.

— Eu acho que tenho muita sorte, Sir — respondeu Felicity, sorrindo para o marido. — Mas e se Bonaparte se libertar? — perguntou Gerald. — Se ele for uma ameaça à Inglaterra, então suponho que serei convocado de novo

— disse Nathan. — E o que acha disso, lady Rosthorne? — Elliston arqueou uma sobrancelha. — Se meu marido considera sua obrigação ir lutar, então devo apoiá-lo —

respondeu ela, sorrindo. — E acho que posso ajudá-lo ficando aqui e tomando conta das propriedades.

— Uma excelente e verdadeira resposta, meu amor. Obrigado. — Nathan tomou a mão de Felicity, beijou-a e sorriu. — Eu sabia que você seria uma esposa perfeita.

Mais tarde, quando Nathan pediu a srta. Elliston que dançasse com ele, o pai virou-se gentilmente para Felicity.

— Eu ficaria muito honrado em dançar uma música country com a senhora, lady Rosthorne. Isto é, se seu marido permitir.

— Com prazer, Sir, se sua esposa permitir — respondeu Felicity, radiante. — Podem ir — disse sra. Elliston, rindo. — Vou até ali fofocar um pouco com minhas

amigas! Depois de duas animadas músicas country, Felicity e seu parceiro estavam sem

fôlego, mas de muito bom humor. Elliston a levou para procurar um refresco na sala de jantar.

— Desculpe-me dizer, milady, mas fico muito feliz em ver Nathan tão bem — confessou ele, servindo-lhe uma taça de ponche. — A guerra já o fez pagar muito, tirando vários de seus companheiros.

— Inclusive seu filho — Felicity se aventurou a dizer, timidamente. — Sim... Isso o afetou bastante. Mesmo depois de tanto tempo, ele não gosta de

falar no assunto e procura se esquivar de qualquer menção a Adam. Veja você, ele se acha culpado de alguma forma porque Adam se alistou, de certa forma, para segui-lo. Nathan veio nos visitar assim que saiu de licença e trouxe as coisas de Adam. Eles eram como irmãos, cresceram juntos, e Nathan é como um segundo filho para nós. — Elliston balançou a cabeça. — Não digo que perder meu filho não partiu nossos corações, mas a sobrevivência de Nathan, mesmo tão abalado, foi o nosso consolo. Aquela cicatriz no rosto dele não a impressiona? — perguntou de súbito o sr. Elliston.

— Procuro não reparar muito. — Felicity sorriu. O rosto abatido do senhor de idade se iluminou.

— O espírito é esse mesmo! Agora é melhor devolvê-la ao seu marido antes que ele pense que fugi com você.

Nathan viu quando Felicity e Elliston seguiram para a sala de jantar, enquanto devolvia Judith para a mãe, apenas a tempo de vê-la ser arrastada de volta para a pista por Gerald Appleby.

Nathan foi para o salão de jogos tranqüilo, porque Felicity não precisaria de sua companhia por enquanto. No entanto, logo percebeu que não havia lugar vago em nenhuma mesa de cartas. Por isso, voltou para o salão de baile à procura de Felicity. Quando atravessava um corredor vazio, ouviu seu nome e parou. Lady Ansell estava

Page 100: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

100

descendo as escadas. — Estou tão atrasada... Perdi as danças? — Ainda não. A orquestra ainda vai tocar por mais uma hora. — Imagino que seria tempo perdido pedir que você seja meu par. Nathan devolveu o olhar desafiador com um semblante calmo. — Seria mesmo. — Bem, então poderia, ao menos, me levar até a pista de dança? Ele não fez movimento algum para oferecer o braço a ela. — Por que veio para cá, Serena? — Por quê? Para dançar, claro. — Eu quis dizer, por que veio morar em Hazelford? — Você não sabe, Nathan? — murmurou ela, fitando-o por entre os cílios. — Eu deveria saber? Ela riu e balançou a mão em um gesto de desdém. — Fui convidada para ir a Bath, no Natal — contou ela, esticando as luvas longas. —

Tenho familiares lá. Mas posso desistir se você me pedir para ficar. — Não tenho o menor interesse no que faz, milady. — Ah, não? — Não. — Ele a prendeu com o olhar sério. — Está perdendo seu tempo comigo,

milady. — Estou mesmo? — Serena estreitou a distância entre eles e passou os dedos pelo

peito e pelo ombro de Nathan. — Você não está nem um pouco tentado? — perguntou ela em um tom de voz sedutor e convidativo.

Estavam tão próximos que Nathan sentiu o perfume das flores presas no busto do vestido dela.

— Foi tão bom enquanto estávamos em Corunha — continuou ela —, mas Adam Elliston chegou antes de você, e havia aquele seu cavalheirismo em não roubar a amante do amigo. Além disso, na época, você era praticamente um garoto. Agora eu gostaria de experimentar o homem em que se transformou...

Serena roçou os lábios contra os dele. A princípio, Nathan não se moveu, permitindo-se beijar. Ela o enlaçou pelo pescoço e o toque o despertou do transe momentâneo. No instante seguinte, ele a segurou pela cintura e, gentilmente porém com firmeza, afastou-a.

— Já chega, milady. Homem ou garoto, eu nunca fui e nunca serei para você. Nathan percebeu o brilho de ódio que passou pelos olhos de Serena, mas logo ela

se recuperou e sorriu. — Suponho que você e aquela sua noivinha insípida ainda estejam em lua de mel.

Mas quando a novidade se desgastar, estarei esperando por você — disse ela, dando de ombros.

Sem mais nenhuma palavra, Nathan se virou e saiu. A autoconfiança dela era incompreensível. Quando chegou ao salão de baile, seu principal sentimento por Serena Ansell era pena.

Capítulo Quinze

Page 101: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

101

— Mas veja só... Quem diria?... Passeando pelos salões depois de saírem da pista de dança, Felicity e Elliston

tinham visto a imagem que ficaria impressa na mente de Felicity: Serena com os braços ao redor do pescoço de Nathan e as mãos dele na cintura dela.

— Eu jamais esperaria um comportamento desses de Rosthorne — murmurou Elliston, angustiado.

— O senhor entendeu errado, Sir — respondeu Felicity. — O conde a conhece há muitos anos. Tenho certeza de que não passou de um cumprimento de amizade.

A frase vazia não convenceu, nem mesmo a ela. Elliston tinha sugerido que procurassem Nathan na sala de jogos, mas quando se aproximaram viram a cena constrangedora entre Nathan e Serena Ansell. Aquele não era um cumprimento de amizade, tanto ela quanto o sr. Elliston sabiam disso.

— Por Deus, teria sido melhor se tomássemos outra direção — disse Elliston. — Eu deveria dizer a ele o que penso desse comportamento ultrajante! Mas quando o vir...

— Não! — Felicity parou de andar. — Eu lhe peço, sr. Elliston, por favor, não diga nada do que vimos.

— Mas isso é um escândalo! Eu não esperava tal coisa de Nathan. — Então não pense mais nisso — implorou ela. — Vamos procurar a sra. Elliston e

esquecer o que vimos. Elliston bafejou, inflando as bochechas, e a encarou. Felicity retribuiu o olhar,

implorando silêncio e segurou-lhe o braço. — Por favor, Sir, faça isso por mim. Elliston suspirou, contrafeito. — Está bem, minha querida, se essa for a sua vontade. Mais isso me contrariou

muito e destruiu a diversão da noite. — Ê verdade. — Felicity meneou a cabeça. — Acabou com a minha noite também. Elliston a levou até onde sua esposa estava, observando a filha dançando com

Gerald Appleby. Felicity ficou contente com a companhia da família Elliston e fixou um sorriso no rosto, embora seu coração estivesse aos pedaços. Chegou a ver Nathan atravessando a multidão, mas não deu um passo para chamar sua atenção. Ele demorou para encontrá-la. Conforme ele se aproximava, Felicity lançou um olhar angustiado para Elliston, que estava visivelmente enfurecido.

Percebendo o olhar suplicante de Felicity, Elliston balbuciou alguma coisa e apenas meneou a cabeça para o conde quando se encontraram.

— Aí está você. Pensei que iria gastar os sapatos de tanto dançar. O sorriso de Nathan aumentou a raiva silenciosa de Felicity. Como ele ousava agir

sem a menor preocupação, quando, minutos antes, estava abraçado com a amante? Ficou satisfeita quando a sra. Elliston respondeu por ela.

— Acho que é a condessa que está cansada — disse ela, sorrindo. — A pobre moça esteve sentada aqui nesta última meia hora, sem dizer uma só palavra.

— Estou um pouco cansada sim — admitiu Felicity, incapaz de encarar Nathan. — Então vou levá-la para casa. — Nathan estendeu a mão para ajudá-la a se

levantar. — Ninguém sentirá nossa falta se sairmos agora. — Sim, faça isso, leve-a para casa e a paparique bastante — disse a sra. Elliston. —

Boa noite, querida. Vou visitá-la daqui a alguns dias para saber como está indo. Felicity manteve a cabeça erguida, enquanto acompanhava Nathan para fora da

casa. Havia chegado ali tão cheia de esperanças e felicidade e agora saía enclausurada numa nuvem de sofrimento. Precisou conter as lágrimas, que não deveriam escorrer de seus olhos de jeito nenhum, afinal, era a condessa de Rosthorne e tinha de manter sempre um sorriso no rosto.

A caminho da saída, viram lady Ansell, cercada por um grupo de homens risonhos.

Page 102: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

102

O sorriso de Serena lembrava o de uma gata que tinha acabado de se fartar em um pote de leite.

Por sorte, a carruagem estava escura, e Felicity desmanchou o sorriso. Ainda estava dominada pela raiva. Será que deveria confrontar Nathan? Será que ele admitiria o envolvimento com Serena ou diria apenas que aquilo não era da sua conta? Ela se lembrou das palavras dele naquela noite em Berkeley Square, quando ela o confrontara:

Não importava se eu tivesse uma fileira de amantes... Felicity reprimiu um suspiro. Infelizmente, seus conhecimentos relativos ao

comportamento masculino eram parcos. Além de Sir James Souden, que era um marido dedicado, o único outro homem com

quem morara fora o tio, Philip Bourne, com quem aprendera que qualquer tentativa de confronto ou questionamento de autoridade resultaria em castigo físico. Não que achasse que Nathan a machucaria, mas machucava bem mais que um tapa só pensar em ouvir dos lábios dele a confirmação de que Serena Ansell era sua amante e que ela deveria engolir isso.

Nathan ajeitou a manta da carruagem nos joelhos dela e sentou-se a seu lado. — Pronto... — Ele segurou a mão de Felicity. — Foi o barulho e o calor que a

cansaram? — Acho que sim. — Ela hesitou. — Lady Ansell chegou tarde, não? Ela é bem

popular entre os homens. — Sempre foi assim. — O sr. e a sra. Elliston não sabiam que ela era amiga de Adam? — Não. — E não deveriam saber? Nathan inclinou a cabeça para trás e suspiro. — Por que mexer em feridas antigas? — perguntou ele por fim. — Isso só traria

transtornos para eles. Além do mais, acho que ela não tem intenção de prejudicá-los. Felicity mordiscou o lábio. Claro que Serena não tinha interesse nenhum na família

Elliston, mesmo porque seu ataque estava direcionado a outra presa. Felicity se deitou assim que chegaram a Rosthorne, mas não dormiu de pronto. Toda

vez que fechava os olhos, via Serena Ansell com os braços no pescoço de Nathan, e a imagem a fazia perder o sono.

Não se mexeu quando Nathan se deitou, quase nem respirou quando ele se inclinou e beijou-a no pescoço. Ouviu-o murmurar alguma coisa e virar-se para o lado. Só ousou se movimentar quando percebeu que ele já estava dormindo.

Felicity usou a mesma tática na manhã seguinte, esperando até que Nathan saísse do quarto, e só depois mandou um recado dizendo-se cansada demais para a costumeira cavalgada matinal. Quando apareceu na sala do café da manhã, estava tão abatida que a sra. Carraway insistiu em chamar um médico.

Nathan não sabia de nada até voltar dos estábulos e encontrar a casa num pandemônio e um recado da mãe para procurá-la imediatamente.

— Então, mamãe, o que a fez deixar a casa em alvoroço? — Nathan atravessou a sala, ainda segurando o chapéu e o chicotinho de montaria na mão.

Ela sorriu e inclinou o rosto para ser beijada. — O dr. Farnham veio ver Felicity. — Por quê? — Não precisa se alarmar, querido. — A sra. Carraway fez um gesto para que o filho

se sentasse. — O dr. Farnham acha que foi apenas um ataque de nervos. Ele fez uma sangria, e ela está mais calma agora. — Ela olhou os anéis nos dedos. — O médico recomendou quartos separados.

— O quê? — Ora, Nathan, não se assuste. Você bem sabe que o último conde dormia

Page 103: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

103

separado da mulher. — Claro que sei disso. Fui eu que mandei que um dos quartos fosse redecorado

para ser da condessa. — É verdade. Bem, Mercer está arrumando uma cama lá para Felicity. Essa é

apenas uma medida temporária — ela apressou-se a acrescentar. — O dr. Farnham acha que a recuperação será rápida se ela descansar bastante.

Blasfemando baixinho, Nathan se levantou e começou a andar pela sala. — O médico disse que a culpa é minha? Será que eu... — Não, não, querido. Muitas mulheres têm dificuldade na transição para a vida de

casada, e você tem de admitir que as circunstâncias de seu casamento foram um tanto incomuns.

Nathan meneou a cabeça e se dirigiu até a janela. Apesar da beleza dos jardins e da paisagem verdejante, ele não enxergava nada, seus pensamentos estavam voltados para Felicity.

— Tenho de ir vê-la. — Claro. Felicity estava deitada na cama enorme, com a cabeça e os ombros apoiados em

travesseiros alvos e macios. O dr. Farnham tinha sido muito delicado, diagnosticando que seu emocional estava um pouco alterado, mas nada que um pouco de repouso não resolvesse. Quando veio a sugestão da separação dos quartos, ela concordou, apesar de um pouco ansiosa quanto à reação de Nathan. Naquele momento, depois da visita médica e apenas sua criada particular circulando pelo quarto, ela se sentia cansada demais até para ficar ansiosa.

Abriu os olhos quando Nathan entrou no quarto. Ele ainda estava usando o casaco e as botas de montaria. E quando se aproximou, a pequena ruga entre as sobrancelhas estava mais visível.

Nathan dispensou a criada e sorriu para ela. — O que foi, Fee? Por que tudo isso? A preocupação na voz dele a surpreendeu. — Parece que estou um pouco confusa, mas se repousar, ficarei boa em breve. Nathan se sentou na cama e pegou a mão dela. — Vai me contar o que houve? O tom carinhoso da voz dele quase a levou às lágrimas, e ela respondeu com um

ligeira aceno de cabeça. Sons de batidas abafadas vinham do quarto ao lado. — Então, milady, vai me abandonar de novo...? — Nathan franziu a testa quando ela

soluçou baixinho. — Ah, meu amor, não tive a intenção de fazê-la chorar, eu estava só brincando... Eu a assustei com nossas noites de amor, foi isso?

Felicity corou e cobriu o rosto com um lencinho. — Não — respondeu com a voz abafada. — Você tem sido tão gentil, educado... — Não foi exatamente uma troca de gentilezas a primeira vez que dormimos juntos

— comentou ele, áspero. — E nem quando eu ameacei tirá-la à força da casa dos Souden. Mas descanse, querida... Dou a minha palavra de que não tocarei em você, a menos que queira, e não virei ao seu quarto sem ser convidado. — Nathan a beijou na testa. — Vou deixá-la dormir agora.

Nathan saiu tão silencioso como entrara, e Felicity ficou olhando para a porta fechada. Ele não tinha contestado as ordens do médico. Ela teria seu próprio quarto e cama. Com um peso no coração, não havia como não imaginar que o estava empurrando para os braços de Serena Ansell.

Não era de se esperar que Felicity ficasse acamada por muito tempo. No dia seguinte, ela se levantou, e no fim de semana, estava bem o suficiente para se aventurar a sair do quarto, apesar de ter declinado o convite de Nathan para voltar a cavalgar. Achou que ter uma conversa sobre amenidades durante o café da manhã e à mesa do

Page 104: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

104

jantar, com a presença da sra. Carraway, seria bem mais seguro do que ficar sozinha com Nathan.

Felicity se ocupou com vários afazeres durante o dia: as provas finais das roupas novas, passeios leves na companhia da sra. Carraway e visitas matinais. A sra. Elliston e a filha as visitavam sempre e eram bem-vindas, ao contrário da inesperada chegada de lady Charlotte Appleby.

— Tenho certeza de que ela veio aqui com o único propósito de ver as mudanças que você causou e para criticar! — exclamou a sra. Carraway, depois que a cunhada partiu. — Começo a me arrepender de ter convidado ela e Gerald para passar o Natal conosco. Acho que vamos sair nos tapas.

Nathan riu alto. — Bobagem, mamãe, a senhora nunca brigou com ninguém. A senhora é muito

doce, igual a Fee. — Nathan olhou para a esposa, que estava se servindo. — Você enfrentou a língua cáustica de minha tia, querida?

Felicity ergueu a cabeça, com os olhos sombreados de tristeza. Nathan desejou saber como acabar com aquele sentimento.

— Só um pouquinho, milorde. — Ela tentou sorrir. — Eu estava muito ocupada com meu bordado quando ela chegou. Além de me dizer que as novas cortinas da sala são de uma cor inapropriada, ela lamentou que você não estivesse presente para cumprimentá-la.

— Mas eu nem sabia que ela viria! — Isso não é desculpa, Nathan — repreendeu a sra. Carraway, rindo. — Minha

cunhada acha que o mundo vai parar por causa dela! Mesmo assim, eu disse que, a menos que ela viesse mais tarde, não teria chances de encontrá-lo em casa, já que você passa a manhã administrando as propriedades, andando para lá, para cá e por toda parte.

— Bem, fico feliz que não estava em casa — Nathan declarou. — E por falar em cavalgar, parece que amanhã teremos um lindo dia. Felicity. Quer que eu mande selar sua égua?

— O-obrigada, é muita gentileza sua, mas acho que ainda não. Nathan controlou o desapontamento, mas comentou friamente: — Como quiser, querida. Mas sé mudar de idéia, tem apenas de mandar um recado

para os estábulos. Felicity se lembrou daquelas palavras ao acordar na manhã seguinte, quando se

deparou com o sol se infiltrando pela janela. Quando a porta se abriu, suas esperanças se esvaíram quando viu que era apenas a criada trazendo-lhe uma xícara de chocolate quente.

— O quarto ao lado está muito quieto. O conde ainda está dormindo? — Não, milady. Eu o vi sair pela porta da frente quando vim trazer seu café da

manhã. Felicity ficou desapontada, mas agora já tinha perdido a oportunidade. Só então

percebeu como gostaria de ter saído para cavalgar com Nathan. Mas o dia ensolarado surtiu efeito positivo em seu humor. De repente, teve vontade de se levantar e fazer alguma coisa.

Assim, jogou as cobertas para o lado e se levantou. — Por favor, Martha, pegue um vestido para caminhar. Eu vou sair! Apesar do sol brilhante, soprava um vento frio quando Felicity saiu para andar pelo

parque, mas ela continuou mesmo assim, consciente de que seu estado de espírito estava se fortalecendo. Parou e deu uma olhada ao redor.

O parque se estendia em todas as direções, com alamedas ladeadas por plátanos até perder de vista, além das cercas longínquas que delimitavam as propriedades de Rosthorne em pastos, campinas e florestas até a linha do horizonte.

— E eu sou a senhora de tudo isto — murmurou ela, e seu coração se encheu de

Page 105: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

105

uma estranha mistura de mistério, apreensão e prazer. Não tinha dúvida de que Nathan gostava dela. Poderia não ser amor, mas ele era

gentil e generoso. Muitas mulheres viviam com bem menos que isso. Logo afastou a idéia de que não merecia o amor dele, mas faria tudo para conseguir. O passado tinha ficado para trás, e agora era hora de fazer algumas modificações. Depois de algumas noites dormindo sozinha, se convenceu de que não queria mais manter Nathan distante. Tinha muitas saudades. E se tivesse de o dividir com uma amante, ou uma fileira delas, que assim fosse.

Ao virar a cabeça, admirou as árvores com as folhas em tons de amarelo, marrom e laranja que formavam um lindo mosaico sob os raios solares. Os caminhos pela propriedade podiam mudar, mas ela sabia que Nathan, ao. voltar para casa, sempre passava por Home Wood. Havia várias trilhas entre as árvores, mas apenas uma estava em condições de ser usada. Ela decidiu cortar caminho para encontrá-lo.

Vinte minutos de uma caminhada rápida a levaram ao fim da floresta. Então ela optou por outra trilha coberta de folhas secas, ladeada por arbustos. Continuou andando apressada, ansiosa para encontrar Nathan, que supostamente logo apareceria no sentido contrário. As sombras das árvores altas cobriam o caminho, mas ela não se intimidou e continuou andando, apesar dos galhos atravessados no solo. O silêncio não era sequer maculado pelo farfalhar das folhas das árvores ao vento.

Quando começou a imaginar que talvez tivesse tomado o caminho errado, ouviu o som de cascos de cavalos à sua frente. Aliviada, apertou o passo. O ruído estava cada vez mais alto.

De repente, cavalo e cavaleiro apareceram em meio aos galhos, com uma enorme sombra escura surgindo na trilha. Então o cavalo parou e relinchou. Felicity ouviu um baque, um barulho surdo e, em seguida, silêncio. Teve a impressão de que seu coração tinha ido parar na boca. O grande alazão preto estava parado, inquieto e bufando, nervoso. Olhando ao redor, ela sentiu um forte acesso de náusea quando viu Nathan caído imóvel no chão.

— Nathan! Felicity correu e caiu de joelhos ao lado dele. Nathan estava muito pálido, mas ela

notou, aliviada, que a veia de seu pescoço estava pulsando. Seguindo o instinto, pensou em gritar por ajuda, mas estava tudo assustadoramente quieto. Olhou em volta, apavorada. De súbito, avistou um pedaço de corda fina no chão no meio das folhas. Intrigada, puxou a corda e percebeu que era provável que estivesse esticada de um lado a outro do caminho, na altura das patas do cavalo. Sentiu um calafrio percorrer seu corpo, deixou cair a corda e se virou rápido, com os olhos à procura de algo no meio das árvores. Não dava para ver muita coisa, mesmo assim, ela pegou um galho e ficou circulando, atenta a qualquer ruído. Ao ouvir outro cavalo se aproximando, ficou em dúvida se deveria ficar assustada ou aliviada. Mas logo a seguir, o mordomo do conde apareceu.

— Collins! Graças a Deus! — gritou Felicity. — Preciso de sua ajuda, milorde está ferido!

Collins pulou da sela e a seguiu até onde Nathan estava deitado. Ela se ajoelhou e sentiu uma lágrima correr pelo rosto. Precisava manter a calma para pensar direito.

— Temos de o levar de volta a Rosthorne. Vá para casa, Collins. Chame alguns homens e traga uma carroça.

— Espere, milady. Ele está recuperando a consciência. Enquanto Collins falava, Nathan mexeu as pálpebras.

— Ah, graças a Deus — sussurrou Felicity, tomando a mão dele na sua. — Não tente se mover até nos certificarmos de que não quebrou nada.

— Acho que só o meu orgulho está ferido — murmurou ele, lutando para se sentar. — Amanhã aparecerão alguns hematomas. Não imagino por que Jet tropeçou...

Page 106: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

106

— Não foi isso — disse Collins, examinando as pernas do cavalo. — Alguém ou alguma coisa o derrubou. Ele está todo arranhado.

— Tem uma corda ali na frente — acrescentou Felicity. Nathan a encarou e levou a mão à cabeça.

— Dessa vez, não há dúvidas. Alguém quis feri-lo deliberadamente. — Temos de o levar para casa, milorde — disse Collins de uma maneira brusca. —

Se milady ficar aqui, vou buscar uma carruagem. — E melhor pedir que alguns homens vasculhem a mata e o parque — ordenou

Nathan. — Se bem que acredito que o assaltante já esteja longe. Traga um cavalariço. para levar Jet de volta ao estábulo.

Ele esperou que o criado se afastasse para olhar para Felicity de novo. A cicatriz estava evidente, chamando a atenção para a mancha roxa que se formava em seu rosto. Nathan olhou para o galho ao lado dela.

— O que é isso? Por acaso, pretendia me espancar até a morte enquanto eu estava desacordado?

— Não brinque. Eu peguei para nos proteger. — Hum... — Nathan colocou a mão na cabeça. — O que estava fazendo por aqui? — Saí andando para encontrá-lo. Eu me arrependi de não ter saído cavalgando em

sua companhia nesta manhã. — Diga-me o que viu. — Nada, milorde. Eu estava chegando a esta trilha quando ouvi seu cavalo cair.

Corri e encontrei você. — Então não viu ninguém? — Não. — Felicity apontou para a corda, ainda no mesmo lugar. — Quem quer que

estivesse segurando a ponta da corda estava bem longe da trilha. Ele ou eles já tinham fugido quando cheguei. — Ela tremeu e olhou em volta, apreensiva. — Foi mais um atentado contra a sua vida, Nathan. Dessa vez, não há como negar.

— É verdade. Não vou mais cavalgar sozinho. — Ótimo. — Você terá de me acompanhar para me proteger. O comentário levou-a abrir um

sorriso largo. — Claro que vou, com todo o prazer, mas minha presença não é o suficiente. Nathan apontou para a corda no chão. — Permita que eu discorde. Quem quer que esteja querendo me matar está se

preocupando em não ser reconhecido. — Não concordo, milorde. Eu... — Chega desse assunto. — Nathan levantou a mão e lutou para ficar em pé. Felicity também se ergueu e o segurou pela cintura quando o viu fraquejar. — Você ainda está tonto, não deve se levantar. — Mas também não posso ficar deitado no chão úmido. Ela o guiou até uma árvore

caída e sentou-se a seu lado, estremecendo. — Está com frio, Fee? — Não, mas um pouco assustada. O atacante pode voltar. — Duvido. — Ele acariciou a mão dela. — Não com você a meu lado. Ficaram fazendo companhia um para o outro por cerca e cinco minutos antes de ele

se erguer, impaciente. — Ah, que inferno ficar aqui sentado! Vamos andando encontramos a carroça no

caminho. — Mas, Nathan... — Não sou um inválido — retrucou ele, levantando-se e seguindo na direção do

cavalo. — Se você fizer a gentileza de pegar meu chapéu para mim, é melhor irmos andando antes de morrermos de frio, sentados aqui. Venha.

Page 107: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

107

Nathan estendeu a mão para Felicity, e seguiram pela trilha, caminhando devagar entre as árvores, com Jet mancando logo atrás.

A notícia do ataque se espalhou depressa. Nathan se encontrou com os donos das terras vizinhas, e buscas intensas foram feitas em toda a área. Quando souberam que não era a primeira vez que alguém tentava matar o conde, organizaram-se em grupos para vigiar as estradas locais e os campos. Gerald Appleby foi o primeiro voluntário para a tarefa.

— Pensei que você tivesse partido para Londres — comentou Nathan, surpreso. Gerald limitou-se a sorrir. — Não tenho a menor intenção de voltar para a capital quando a emoção está por

aqui — disse Gerald, sorrindo. Apesar de toda a atividade, Felicity só se acalmava quando Nathan voltava para

casa toda noite. No entanto, nenhuma notícia a alegrava... Soubera que Serena Ansell tinha deixado Hampshire e só voltaria na primavera. A notícia foi trazida por Elliston quando a família visitou Felicity e a sra. Carraway.

A sra. Carraway, que claramente não simpatizava com a viúva, expôs sua teoria para a partida de lady Ansell.

— Vocês não acham que ela pode ser a responsável pelo ataque e foi embora apenas para esperar a poeira baixar?

Felicity ficou em alerta no mesmo instante. — O que a leva a pensar assim, milady? — Eu percebi o jeito como ela olha para o meu filho. A sra. Elliston começou a rir. — Será que ele menosprezou as investidas dela? Uma mulher desprezada, como

dizem... — A senhora pretende passar o Natal em Hazelford, sra. Elliston? — perguntou

Felicity, apressando-se a mudar de assunto. — Sim, costumamos passar o Natal em paz, em casa. Judith vai fazer a visita anual

à tia em Bedfordshire, mas quando ela voltar, não vamos sair antes do Ano Novo. E milady? A vizinhança espera grandes festejos aqui, agora que Rosthrone está casado.

Felicity ficou sem saber o que responder, mas a sra. Carraway veio em seu auxílio: — Este ano, não. Vamos passar as festas tranqüilos em casa. Entretanto, espero

que aceite um convite para vir jantar conosco uma noite dessas. Lady Charlotte e seu filho estarão hospedados aqui por alguns dias. Sei que ela ficará feliz em encontrar vocês e sua filha, é claro.

— Ficaremos encantados — respondeu a sra. Elliston.—Judith e o sr. Appleby se entenderam muito bem na festa da semana passada, e não tenho objeção nenhuma a que continuem com a amizade. — Ela acrescentou em um tom desafiador: — Se bem. que duvido de que lady Charlotte, do jeito que é, gostará da idéia de o filho ter amizade com uma mera senhorita Elliston. Ela sempre faz questão de nos lembrar que é filha de um conde!

Capítulo Dezesseis

— Logo estaremos em casa, milorde. Nathan detectou uma ponta de alívio na voz do mordomo. Eles tinham saído a

cavalo para verificar as plantações, mas o céu do curto dia de dezembro escureceu muito

Page 108: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

108

rápido acima deles. Collins sempre insistia em acompanhar o conde em suas cavalgadas pela propriedade, apesar de não haver mais notícias da presença de estranhos na área.

Felicity também estava em conluio com a criadagem para que Nathan nunca ficasse sozinho.

Ele pensava na esposa enquanto atravessava os portões para os jardins. Ela se mostrava tão preocupada com a segurança dele, mas o mantinha a distância. Eles tinham voltado a cavalgar juntos todas as manhãs, e durante o dia, ela era simpática, amigável, calorosa até, mas ela resistia a cada tentativa dele de aprofundar a intimidade, erguendo uma barreira invisível entre ambos. Nathan tinha o cuidado de não demonstrar sua impaciência, mas não sabia quanto tempo ainda agüentaria até que sua determinação esmorecesse e ele quebrasse a promessa de não entrar no quarto de Felicity.

O vento gelado de dezembro atingiu seu rosto em cheio, fazendo a cicatriz sobre o olho latejar. Ao menos, isso ajudava a distraí-lo do desconforto em outras partes do corpo, pensou ele com amargura.

Eles trotaram para dentro do estábulo, onde uma carruagem grande e antiquada estava sendo manobrada para um dos cantos.

— Lady Charlotte chegou, Sir — observou Collins. — Ah, Senhor... — murmurou Nathan, resignado. — Eu tinha esquecido que ela viria

hoje. — Ele desmontou e entregou as rédeas da égua ao cavalariço. — Dê uma olhada no machinho esquerdo traseiro dela, Pat. Desconfio que esteja distendido.

Um jovem baixo e atarracado se aproximou correndo. — Deixa-me cuidar dela, sr. Patrick? Eu cuido dela. — Patrick entregou as rédeas ao

rapaz e voltou-se para Nathan com um sorriso de desculpas. — É Harris, milorde. O cavalariço de lady Charlotte — explicou, enquanto

observavam o rapaz levar o cavalo para o estábulo. — Ele é meio simplório, mas tem uma habilidade natural com os animais. Entende-se muito bem com eles.

Nathan assentiu. — Está bem, se você acha, Patrick. Avise-me mais tarde como ela está. Ele se virou e viu Felicity atravessando o pátio em sua direção, com uma manta

xadrez sobre os ombros e Bella em seus calcanhares. — Eu estava preocupada com você — disse ela. — Você demorou. — Desculpe-me. Minha égua começou a mancar, e eu não quis forçá-la. Felicity avaliou com expressão ansiosa o rosto de Nathan, e ele balançou a .cabeça,

sorrindo. — Não foi nada demais, eu juro. Como os joelhos de Jet ainda não estão totalmente

curados, eu tenho abusado um pouco de Juniper ultimamente. — Ele a segurou pelo cotovelo..— Vamos entrar, fugir deste vento frio? Onde está minha tia? — indagou Nathan, quando eles entraram no hall.

— Na sala de estar, com sua mãe e o sr. Appleby. — Felicity ergueu os olhos para fitá-lo. —Você está com frio... Eu pedi a Sam que acendesse a lareira em seu quarto de vestir. Não quer ir trocar de roupa?

— Não é melhor eu cumprimentar minha tia primeiro e me desculpar pelo atraso? Felicity riu. — Eu receio que qualquer coisa que você faça vai sempre estar errada. Sabe como

é sua tia... Vá se trocar, eu explico para ela. Felicity começou a se afastar, mas ele a deteve, segurando-lhe a mão. — Deixe minha mãe fazer sala para as visitas — sugeriu, puxando-a para os seus

braços. — Você poderia subir comigo e me ajudar a me livrar dessas roupas enlameadas...

A iluminação ali no hall era fraca, mas Nathan teve a impressão de ver um súbito anseio nos olhos de Felicity, um lampejo fugidio de desejo. Durou apenas um segundo, logo substituído pela expressão cautelosa que ela tão freqüentemente mostrava nos

Page 109: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

109

últimos dias. Nathan passou as mãos pelos braços dela, para cima e para baixo. — O que foi, minha querida? O que a preocupa? — P-preocupa? — Ela deu um risinho nervoso. — Ora, nada, a não ser, talvez, a

idéia de ter lady Charlotte como hóspede e não conseguir agradá-la. Eu já tive de trazer Bella comigo, porque ela não aprova cães dentro de casa...

Felicity olhou sobre o ombro de Nathan para o outro lado do hall e depois para a cadelinha. Olhava para qualquer coisa menos para o rosto de Nathan, pois não havia como confundir o significado do olhar dele, e as pernas dela já começavam a tremer. Ela queria tanto ceder às investidas dele e a seus próprios anseios, mas o espectro de Serena Ansell a assombrava, e ela não conseguia se livrar da convicção de que Nathan sempre faria comparações entre ambas e que ela sempre sairia perdendo para a bela viúva.

Os pensamentos de Felicity voltaram para o primeiro encontro, ou reencontro, em Souden House, quando ele a surpreendera, querendo levá-la embora consigo. Se, ao menos, ele demonstrasse a mesma determinação agora... Se, ao menos...

As mãos de Nathan deslizaram de seus ombros. — Claro. Leve Bella para os aposentos de minha mãe. Norton tomará conta dela.

Depois volte para a companhia de nossos hóspedes, eu me juntarei a vocês em breve. Felicity observou-o afastar-se. Bella galopou atrás dele, mas uma palavra em tom de

comando a fez voltar para perto de Felicity, com as orelhas abaixadas. Como a sra. Carraway e a' lady Charlotte não tinham o hábito de dormir tarde, a

noite foi dada por encerrada antes de meia-noite. — Espero que não tenha sido muito desagradável para você — disse Nathan,

enquanto acompanhava Felicity até o quarto dela. — Minha tia não é das pessoas mais simpáticas do mundo. Os comentários dela sobre o ataque em Home Wood foram ultrajantes. Espero que você não a tenha levado a sério.

— Não, não levei. Você... — Felicity hesitou. — Será que ela pensa mesmo que eu tentei matar você?

— Minha tia gosta de causar confusão, é só isso. — Mas a situação é suspeita! Quando o sr. Collins chegou eu estava segurando

aquele galho... — Shh. Você já me explicou. — Eles tinham chegado à porta do quarto, e Nathan

parou e virou-se para fitá-la. — Quando eu me virei e vi você debruçada sobre mim, a expressão do seu olhar não era a de uma assassina.

— N-não era? — Felicity ergueu o olhar para o rosto de Nathan e, de repente, sentiu dificuldade para respirar.

— Não. Ele inclinou a cabeça até seus lábios tocarem os dela. Felicity espalmou as mãos no

peito largo e segurou as abas do paletó. Sorrindo, ele segurou-lhe uma das mãos e virou-a.

— Lembre-se — murmurou e beijou a palma — de que eu estou no quarto ao lado se precisar de mim. É só atravessar a porta.

— Eu... Eu... Nathan depositou um beijo leve na testa de Felicity e se afastou. Um momento

depois, ela ouviu o clique da porta do quarto dele se fechando. Sam estava estendendo o traje de dormir de seu patrão na cama quando Nathan

entrou no quarto. Com uma palavra, ele dispensou o valete e ficou parado, com a cabeça inclinada, atento. Ele ouvira Felicity entrar no quarto, os passos dela sobre o piso de tábuas, o murmúrio de vozes. Ela não lhe era indiferente, Nathan tinha certeza disso. Notara o alívio dela quando ele chegara em casa, vira o tímido anseio nos grandes olhos cinzentos, sentira o carinho dela quando lhe dera um beijo de boa-noite.

Page 110: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

110

Ele poderia tê-la forçado, poderia tê-la trazido para seu quarto e a seduzido, beijando-a até que ela se entregasse. Nathan tinha certeza de que ela corresponderia, mas queria mais de sua esposa. Queria que ela tomasse a iniciativa.

Nathan foi até a porta de comunicação e encostou o ombro à parede, olhando para a maçaneta, desejando vê-la girar, desejando que Felicity viesse para o seu quarto.

Mas a porta que os separava permaneceu resolutamente fechada. A véspera de Natal amanheceu cinzenta e açoitada pelo vento, refletindo bem o

estado de espírito inquieto de Felicity. Lady Charlotte era uma hóspede difícil, mas Felicity estava determinada a não se deixar intimidar pelas maneiras autocráticas nem pelas constantes referências ao modo como a casa era administrada. Sua coragem enfraqueceu um pouco quando ela encontrou somente Gerald e a mãe dele sentados à mesa do desjejum, mas, para seu alívio, um instante depois, a sra. Carraway entrou na sala, de braço dado com Nathan.

Gerald estava servindo a mãe de café e deu bom-dia aos recém-chegados, oferecendo-se para servi-los também.

— Sim, obrigada. — A sra. Carraway sentou-se ao lado de Felicity. — Eu dei folga a Norton para ir visitar a família, por isso, Nathan foi me buscar para o café da manhã.

— Por favor, não hesite em me dizer, milady, se precisar de alguma coisa — ofereceu Felicity.

— Esse cachorro precisa ficar aqui dentro? — exigiu lady Charlotte, franzindo a testa para Bella, que estava dando cambalhotas nos pés de Gerald e arranhando as pernas da mesa.

— Eu receio que sim, tia — respondeu Nathan, bem-humorado. — Ela está acostumada a ficar dentro de casa. Mas não se preocupe; nós não a deixamos comer na mesa. Ela fica apenas esperando para o caso de cair alguma migalha.

— E poupar as criadas do trabalho de varrer o chão. — Gerald sorriu, ainda segurando o bule de café.

— Exato. Não quero café, obrigado. — Nathan pegou o jarro de hidromel no aparador e encheu uma caneca feita de estanho. — Este é um dos costumes do velho conde a que eu dei continuidade — explicou, com os olhos brilhantes, quase sorrindo.

Gerald olhou para a janela, que a chuva começara a fustigar. — Teremos de arranjar coisas para fazer dentro de casa hoje — observou ele. — A que horas você disse que os Elliston viriam? — No fim da tarde — respondeu Felicity. — A menos que eles desistam por causa

da chuva. Nathan balançou a cabeça. — Eles moram perto, e Elliston não é de se acovardar por causa de uma chuvarada. Gerald andou até a janela. — Quando eu os encontrei no salão, a sra. Elliston me convidou para visitá-los

quando eu quisesse. De repente, posso ir até lá mais tarde e acompanhá-los no caminho para cá.

— Faça isso sim — aprovou Nathan. — Eu não vejo a menor necessidade — rebateu lady Charlotte. — Aliás, se o tempo

continuar assim de tarde, quero que você fique aqui e me faça companhia. Felicity retorceu os lábios. — Não podemos obrigar os cavalheiros a ficarem à nossa disposição o dia todo,

milady. Precisamos nos entreter com alguma coisa. Algum jogo, talvez, ou charadas... Gerald riu. — A idéia de minha mãe de entretenimento é ter alguém lendo para ela enquanto ela

Page 111: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

111

fica deitada na cama. — Nesse caso, terei o maior prazer em fazer isso — declarou Felicity. — Aliás,

Lydia, lady Souden, enviou-me um exemplar de Waverley. Eu ia emprestar para a sra. Carraway, mas posso perfeitamente ler para ambas!

Com o entretenimento de lady Charlotte planejado, Gerald saiu para dar instruções ao cavalariço para aprontar seu cavalo para mais tarde. Quando todos terminaram de tomar o café da manhã, a sra. Carraway levou a cunhada para a sala de estar.

Nathan deteve Felicity quando ela já ia atrás das duas. — É muita gentileza da sua parte dedicar seu tempo à minha tia. Felicity sentiu-se bem com o elogio. De repente, o dia chuvoso e escuro pareceu

ficar ensolarado. — Bobagem, estou apenas cumprindo a minha parte como anfitriã. Eu quero muito

ler Waverley, portanto não será nenhum sacrifício. — Ela riu. — Só espero que seja suficiente para distrair lady Charlotte até o fim do dia... Quem sabe, se ela ficar satisfeita, não estará mais tranqüila à noite?

A expectativa de Felicity se concretizou, pois lady Charlotte se mostrou

excepcionalmente afável durante o jantar. Ela recebeu o sr. e a sra. Elliston com tanta simpatia que os olhos do sr. Elliston chegaram a brilhar, e ele passou a dominar a conversa.

— Ela age como se fosse a anfitriã — murmurou a sra. Carraway quando ela e Felicity conduziram as senhoras para a sala de estar, após o jantar.

— Contanto que ela não faça nenhum de seus comentários indesejáveis, está ótimo na parte que me toca — retrucou Felicity, jovialmente.

A noite estava transcorrendo muito melhor do que ela esperara. O sr. Elliston tinha sido um pouco brusco com a anfitriã a princípio, mas reparou no olhar ansioso de Felicity e, na primeira oportunidade, a tranqüilizou.

— Não há necessidade de se sentir desconfortável, mi-lady — disse ele, durante uma das reminiscências de lady Charlotte das tradicionais festas de Natal da linhagem dos condes de Rosthorne. — Por mais que eu queira esganar Nathan por seu comportamento infame no salão, eu lhe dei a minha palavra, e não vamos mais falar sobre isso.

A única outra preocupação de Felicity era que lady Charlotte se incomodasse com as atenções do filho a srta. Elliston, mas, apesar dos olhares frios que ela lançava na direção do casal de vez em quando, ela não fez nenhum comentário e chegou até a expressar o desejo de que houvesse mais convidados.

— Quando eu era jovem, as festas em Rosthorne Hall eram bem mais grandiosas — comentou ela, com um olhar acusador para Nathan. —Todas as salas principais eram abertas, e a casa ficava repleta de convidados. Se bem que, neste ano, poucas pessoas vieram para o campo. Se lady Ansell estivesse aqui, vocês poderiam tê-la convidado também.

— Não, milady, nós não poderíamos — retorquiu Felicity, que acrescentou, ciente dos olhares surpresos de todos: — Eu não a conheço muito bem.

— Nós também não — interveio a sra. Elliston. — Meu marido não faz questão nenhuma de contato com ela. Parece que a reputação dela não é lá das melhores.

— Isso é verdade, Rosthorne? — indagou lady Charlotte. — Acho que você conheceu lady Ansell quando estava na Península, não?

Felicity arriscou um olhar na direção de Nathan. A expressão dele era impassível. — Sim, ela estava em Corunha. — O tom de voz de Nathan era de enfado. — Ela

era a sra. Craike na época, mas acredito que ela tenha sido bastante popular entre os

Page 112: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

112

oficiais. — É estranho que ela tenha escolhido vir morar aqui — ponderou a sra. Carraway.

— Hazelford é pacata demais, há poucos cavalheiros solteiros para despertar o interesse dela.

— Talvez ela não esteja interessada em um cavalheiro solteiro — contrapôs Felicity. Nathan ergueu a cabeça abruptamente. — O que quer dizer com isso, minha querida? Poderia explicar? Felicity corou e ficou aliviada por sua sogra não ter notado a interrupção e continuar

com suas conjecturas. — Não me agrada a idéia de algum dos cavalheiros de nossas relações aceitar esse

tipo de... ligação. —A sra. Carraway riu. — Imaginem o respeitável dr. Farnham sendo apanhado na teia dela... Ou até mesmo o vigário!

O sr. Elliston deu uma tossidela de desaprovação e se afastou. — Pode ficar sossegada — disse Gerald, sorrindo. — Suas especulações estão bem

distantes da realidade... Minha mãe recebeu uma carta de lady Ansell avisando que ela não tem intenção de voltar para Godfrey Park, que pretende ficar em Bath.

— O que é bastante inconveniente — comentou lady Charlotte. — Há poucas famílias nesta região com quem podemos nos socializar.

O sr. Elliston, que estava de pé, junto à janela envidraçada, anunciou que estava ansioso para voltar para casa antes que o tempo piorasse.

— Não me parece que esse vento vá abrandar — disse ele. — E tenho receio de que possam cair árvores na estrada durante a madrugada.

Um vento particularmente feroz sacudiu as vidraças naquele instante, solidificando o argumento dele, e os convidados começaram a se despedir logo em seguida, com Gerald acompanhando as senhoras até o coche.

— Eu pensei em cavalgar atrás deles — ele comentou, ao voltar para a sala de estar. — Ficaria mais tranqüilo se soubesse que eles chegaram bem.

— A maior parte do caminho é pelo vale, o que vai garantir a eles um abrigo seguro — lembrou Nathan. Ele olhou para cima quando uma porta bateu em algum lugar da casa. — Vou pedir a Mercer que verifique se todas as janelas estão fechadas.

— Sim, faça isso. — Lady Charlotte voltou-se para o filho. — Você me acompanha até meu quarto, Gerald? Essas tempestades à noite são assustadoras.

— Eu nunca imaginei que lady Charlotte pudesse se assustar com alguma coisa — observou Felicity, depois que o sr. Appleby se retirou com a mãe.

A sra. Carraway riu. — E não se assusta mesmo. Essa mulher tem nervos de aço. — Ela se levantou

com alguma dificuldade, apoiando-se na bengala. — Bem, eu também vou me recolher. Felicity pôs-se de pé. — Eu a acompanho, milady, enquanto Nathan se encarrega de verificar a segurança

da casa — ofereceu Felicity. Ao voltar alguns minutos depois, Felicity foi obrigada a proteger, com a mão, a

chama de sua vela, pois o vento zumbia, infiltrando-se na casa e ao longo dos corredores escuros. Foi com alívio que ela chegou ao seu quarto.

Tratou de se deitar logo e assoprou a vela, encolhendo-se debaixo das cobertas, escutando os ruídos do temporal.

Ela ouviu um estrondo quando alguma coisa caiu na sacada abaixo de sua janela e um trovão ribombou, tornando a escuridão mais ameaçadora. Felicity se encolheu ainda mais e puxou as cobertas até os olhos. Depois de algum tempo, apesar de inquieta, ela adormeceu.

Após uma última ronda pela casa, Nathan também foi se deitar, mas estava sem sono e ficou se revirando na cama.

Aquele temporal, sem dúvida, causaria estragos. Ele já tinha escutado o barulho de

Page 113: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

113

um vaso ou telha se partindo na varanda e esperava que sua plantação não fosse destruída.

Ele se virou para o outro lado. Não havia nada que ele pudesse fazer até de manhã, portanto o melhor era tratar de dormir.

De repente, um grito cortou o ar. Nathan se sentou na cama. O som tinha vindo do quarto de Felicity. Logo em seguida, ela gritou de novo.

Nathan acendeu a vela, vestiu o robe e foi até a porta de conexão entre os dois quartos. No instante em que ele entrou no quarto de Felicity, a porta do corredor também se abriu e a criada apareceu, segurando uma vela com a mão trêmula.

— Ah, perdão, milorde... Eu escutei milady gritar... Os dois olharam para a cama, onde Felicity balbuciava, agitada. — Está tudo bem, Martha — disse Nathan baixinho. — Eu ficarei com ela. Com uma vênia, a aia recuou e fechou a porta. Uma súbita lufada sacudiu as

venezianas e a chama da vela tremulou. Felicity resmungou alguma coisa e deu um soluço angustiado. Nathan se aproximou da cama.

— Felicity. Ele colocou o castiçal ao lado da cama. Os olhos de Felicity estavam fechados, e ela

começou a se debater, jogando as cobertas para longe. — Não, não... Solte-me! Déjame! Ela estava gritando em espanhol, exatamente como fizera cinco anos antes, quando

ele a salvara dos gatunos em Corunha. E exatamente como fizera cinco anos antes, Nathan subiu na cama e a envolveu nos braços. Felicity tentou se desvencilhar, mas ele a abraçou com força, murmurando palavras tranquilizadoras.

Ela começou a chorar. — Eu perdi tudo! Não sobrou nada, nada! — Shh. — Nathan afagou-lhe o cabelo. — Vamos comprar tudo outra vez. — Não, não... Eu o perdi! — Ela estava delirando. — Foi castigo de Deus! Para que

preciso continuar vivendo...? — Você está sonhando, Felicity. Acorde. — É tarde demais. Eu o perdi! Ah, Deus, deixe-me morrer... Nathan estreitou os braços à volta dela e a sacudiu de leve. — Eu não vou deixar você morrer! Acorde, Felicity! — Ela parou de se debater, e ele

a sentiu tremer em seus braços, como um passarinho. — Está tudo bem, Fee... Você está comigo.

— Eu sinto tanto, tanto... — Ela soluçou contra o peito dele. — Não me deixe! Nathan se acomodou mais confortavelmente na cama e a aninhou em seus braços. — Shh. Eu não vou deixar você, nunca. Felicity continuou a chorar, com o corpo sacudido por soluços. Nathan sentia-se

impotente para fazer qualquer coisa, a não ser a abraçar. Ele puxou, as cobertas até a altura dos ombros dela e ficou ali, embalando-a, enquanto o temporal rugia lá fora.

A vela já tinha queimado até o fim quando Felicity finalmente se acalmou. Por algum tempo, ela ficou deitada no escuro, com a cabeça apoiada no peito de Nathan.

Até que ele a sentiu se mexer. — Nathan? — Estou aqui. Ela puxou a barra do lençol para enxugar os olhos. — Eu não mereço você — murmurou. — Você tem tanta paciência comigo... Eu

gostaria de saber por que você é tão bom para mim. — Você é a minha condessa. — Eu não mereço você — ela repetiu, sonolenta. — Não sei por que você iria me

querer... Nathan sorriu no escuro.

Page 114: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

114

— Porque você é insubstituível. Deus sabe que eu tentei! Eu tentei esquecer você, Fee, tentei provar para mim mesmo que você não me fazia falta. Mas faz, e muita. — Ele beijou o cabelo dela. — Você é muito, muito importante para mim.

Felicity não respondeu. Apenas permaneceu ali, aconchegada a Nathan, com a respiração profunda e regular. Ela tinha adormecido.

Capítulo Dezessete

Felicity só acordou quando Martha entrou no quarto e abriu as janelas. O temporal tinha passado, e o sol inundou o quarto. Ela se espreguiçou.

— Que horas são? Minha nossa, eu sonhei... Não sei, não me lembro direito, mas foi horrível.

— O patrão disse para não a acordar cedo, milady. — Ah, é? — Felicity puxou as cobertas. Ela então se lembrou de quando ele a abraçou, percebendo, assim, que essa parte

não fora um sonho. — Sim, milady. Ele ficou aqui com a senhora, de noite, quando a senhora estava

tendo um pesadelo. Deve ter sido terrível, mesmo, milady. — É, foi. Curiosamente, todo o horror da noite se desfez, e Felicity só se lembrava de se

sentir segura nos braços de Nathan. Martha parou ao lado da cama, sorrindo para ela. — O patrão mandou avisar que virá buscá-la daqui a meia hora para tomar o café da

manhã. — Céus, então tenho de me apressar! Felicity saiu da cama, sentindo um misto de alegria e apreensão. Estava feliz, por

Nathan ter se preocupado com ela, mas inquieta com o motivo que a levara a gritar em seu sonho.

QUANDO Nathan bateu na porta, meia hora depois, Felicity estava pronta. — Desculpe-me por ter perturbado o seu sono nesta noite, milorde. Ele segurou a mão dela. — Você teve um pesadelo — disse ele. — Estava muito agitada. — E você ficou comigo. Obrigada. — Ela sorriu. — Você costuma ter pesadelos com freqüência? — Não, faz tempo que não tenho. Acho que foi por causa do temporal. Eu escutei

um barulho de alguma coisa caindo e se quebrando... — Felicity hesitou e acrescentou, tímida: — Fiquei muito feliz por você ter vindo ficar comigo, Nathan.

Ele apertou a mão dela. — Eu sempre estarei com você. Ela o acompanhou até o andar térreo. — Estamos atrasados, Sir. E hoje é dia de Natal... Receio que não haja mais tempo

para ir ao culto matinal.

Page 115: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

115

— Não há mesmo. — Nathan sorriu. — Não tenho dúvida nenhuma de que minha mãe foi sem nós, mas a presença de minha regia tia Charlotte vai compensar a nossa ausência! — Quando eles chegaram ao hall, Nathan parou. — Pode ir, minha querida... Eu vou descer para falar com Collins. Quero saber se o temporal causou muito estrago.

Nathan prosseguiu em direção à ala dos empregados, e Felicity foi para a sala do café da manhã. Bella se aproximou correndo, e ela se abaixou para fazer um carinho na cadelinha.

— Onde você estava, hein, menina? — brincou ela, acariciando as orelhas macias do animal. — Foi todo mundo para a igreja e deixou você aqui, é? Não faz mal, daqui a pouco vamos passear, nós duas.

Felicity se pôs de pé e entrou na sala do café da manhã, com Bella rodopiando em suas pernas. Não havia ninguém na sala, mas, antes de que ela tivesse tempo de se sentar, Mercês entrou, trazendo um bule de café fresco. Felicity tinha acabado de encher sua xícara quando Nathan entrou.

O sorriso caloroso dele enviou um arrepio de prazer por todo o corpo dela. Um jovem lacaio entrou apressado e colocou uma travessa de torradas quentes na

mesa. — Café, milorde? — perguntou ele, pegando o bule. — Não, obrigado, Toby Traga-me um pouco de hidromel, por favor. — Nathan

sentou-se ao lado de Felicity. — O barulho que ouvimos ontem à noite foi um dos vasos do terraço lá de cima. A folhagem estava muito crescida, e o vento derrubou o vaso. Collins já foi verificar o terreno. Perdemos algumas poucas árvores, nada muito sério. Mais tarde vou dar uma volta por aí para dar uma olhada. Se você quiser ir comigo...

— Mas e nossos hóspedes? — Acho que eles podem me emprestar você por uma hora ou coisa assim. — Então, está bem, eu vou. Obrigada pelo convite, vou gostar muito de ir com você. Felicity olhou para Bella, que andava de um lado para o outro. Ela abriu a boca para

avisar, mas era tarde demais... O criado que trazia o jarro de hidromel para Nathan numa bandeja não viu a cadela e tropeçou. Homem, bandeja e jarro se espatifaram no chão, e Bella, satisfeita com o caos que tinha provocado, correu para lamber o hidromel espumante derramado no chão.

— Não tem problema. — Nathan dispensou o pedido aflito de desculpas do rapaz. — Vá buscar um pano para limpar essa sujeira toda. Pare, Bella! — Ele olhou para Felicity e disse, severo: — E eu ficaria grato, milady, se a senhora se contivesse e não risse da desventura de meu criado.

Felicity não se deixou enganar. Ela viu que Nathan estava se segurando para não rir e parou de cobrir a boca com as mãos.

— Eu sei, milorde, já vou parar... Prometo que não vou rir quando ele voltar. Com um sorriso, Nathan segurou o rosto dela entre as mãos. — Eu gosto de ver você assim, contente. Estava sentindo falta dos seus sorrisos. —

Ele se inclinou para frente, deu-lhe um beijo e voltou a se recostar na cadeira, olhando para Bella.

— Pelo jeito, quando Toby voltar, o chão já vai estar limpo. — Ele apanhou a caneca do chão e limpou-a com o guardanapo.

Ainda eufórica por causa do beijo, Felicity começou a espalhar manteiga numa torrada.

— Ainda bem que lady Charlotte não estava aqui para ver isso — observou. — Ela nunca mais iria permitir que Bella entrasse em casa! Que começo para um dia de Natal! Sua mãe vai... Nathan!.

Felicity levantou-se tão bruscamente que sua cadeira caiu para trás. Surpreso, Nathan seguiu a direção do olhar dela. Ela mal conseguia falar.

— Olhe... Bella... — Ela olhava horrorizada para a cachorrinha, que cambaleava

Page 116: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

116

trôpega sobre o piso de madeira, com as patinhas se dobrando sob ela. — Nathan, o que ela tem? — sussurrou Felicity. A cadela caiu de lado, com a

respiração arfante. — Eu não sei... — Ele pegou a caneca e a cheirou, com uma ruga na testa. —

Veneno. O hidromel está envenenado. Nathan se levantou e atravessou a sala, alcançando Bella com duas passadas.

Felicity olhou para a cachorrinha e viu, consternada, que ela a fitava com os olhos arregalados de susto, sem entender o que estava acontecendo. Ela cobriu a boca com as mãos.

— E agora? O que vamos fazer? — Eu ouvi dizer que café, às vezes, funciona... Felicity agarrou o bule de café que

estava na mesa, mas colocou-o de volta. — Acho melhor este, que já está mais morno — disse ela, correndo para pegar o

bule que estava sobre o aparador. — Rápido. Nathan segurou a cachorrinha e forçou-a a abrir a boca, enquanto Felicity derramava

café por sua garganta abaixo. Bella se debateu, mas Nathan a segurou firme. — Espero que isso seja um bom sinal — ele murmurou. — Dê um pouco mais. — Acabou — disse Felicity, desamparada. — Será que damos do outro bule, que

está quente? — Não, espere. Nathan soltou a cadela e se afastou um pouco, quando ela começou a vomitar. O

criado, que voltava nesse momento, trazendo um balde e um esfregão, parou na soleira da porta, boquiaberto.

— Ela vai ficar bem? — perguntou Felicity, aflita, quando Bella se deitou no chão, arquejando.

— Não sei. — Nathan a ergueu nos braços. — Vou levá-la até o estábulo. Patrick saberá mais do que eu o que fazer. — Ele virou-se para o criado. — Levante a cadeira de milady é limpe essa sujeira, mas fora isso, não toque em mais nada nem deixe que ninguém mexa em nada.

Felicity deu um passo à frente. . — Eu vou com você. — Não, prefiro que você fique aqui e se certifique de que ninguém entre na sala. Depois que Nathan saiu, Felicity voltou a se sentar à mesa. Seu apetite tinha

desaparecido. Na verdade, ela se sentia nauseada, mas tratou de combater o mal-estar e, depois que o criado limpou tudo e saiu, ela ficou olhando fixamente para a porta aberta, esperando Nathan voltar.

O CARRILHÃO no hall, indicou a Felicity que fazia só meia hora que ela estava ali

sentada sozinha, mas parecia que uma eternidade havia se passado quando Nathan voltou. Ele estava muito sério, e o coração dela falhou um batimento.

— Como ela está? — perguntou, num fio de voz, mal ousando respirar. Nathan olhou para ela, como se seu pensamento estivesse longe dali, e respirou

fundo. — Patrick acha que ela vai ficar bem. Parece que fizemos a coisa certa. — Graças a Deus! Felicity viu Nathan pegar o jarro de hidromel e entornar um pouco dentro de um copo

limpo. Ele ergueu o copo contra a luz, depois o cheirou. — O que foi? Nathan estendeu o copo para ela. — Que cheiro você acha que é este?

Page 117: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

117

— Não tenho certeza. Lúpulo, eu acho — ela torceu o nariz — e outro odor desagradável... De mofo...

— Pois é. — Ele colocou o copo sobre o aparador. — É cicuta. Mas o cheiro é tão fraco que uma pessoa poderia beber uma caneca inteira sem perceber. E a pobre Bella, como bem sabemos, não está com o olfato muito aguçado ultimamente.

Felicity cobriu a boca com as mãos. — Se você tivesse bebido... — O simples pensamento a fez gelar. — Mas quem

faria uma coisa dessas? Nathan segurou as mãos dela e voltou a sentar-se. — Tem um frasco de tintura de comum no estábulo — disse ele devagar. — Patrick

a usou para aplicar sobre o inchaço na pata da égua. — Ah, Jesus! E o frasco desapareceu? — Não, está lá, mas Patrick acha que está mais vazio. Se bem que ele diz que não

pode jurar. — Mas quem faria uma coisa dessas? — repetiu Felicity. — Quem teria a oportunidade de pôr cicuta no hidromel... Eu passei na cozinha

agora e falei com Mercer. Ela me disse que bebeu um pouco de hidromel hoje cedo e que foi ela quem abasteceu o jarro e trouxe para cá. Minha mãe e minha tia já estavam tomando café quando ela entrou.

— E os outros criados? Nathan balançou a cabeça. — São todos moradores locais e trabalham aqui desde crianças. Eu terei de os

interrogar, mas não acredito que algum deles fosse capaz de fazer qualquer coisa parecida.

— Mas e se não for um dos criados?... — Felicity deixou a frase inacabada e olhou para Nathan, horrorizada.

Nathan enfrentou seu olhar. — Quem estava aqui quando você entrou de manhã, Fee? Pense bem. Ela franziu a testa. — Ninguém — respondeu. — Mercer entrou logo depois de mim, com o bule de

café, e o colocou na mesa, mas ela nem chegou perto do aparador. — Então é possível que alguém tenha colocado á cicuta no hidromel quando a sala

estava vazia, sabendo que eu ainda não tinha tomado o desjejum. Felicity segurou a mão dele com força. — Ah, Nathan, não gosto de pensar que alguém nesta casa queira lhe fazer mal. — Eu também não. — Ele sorriu de leve. — Mas apesar de tudo, nós precisamos

comer alguma coisa, não é verdade? Vou chamar Mercer e pedir a ela que leve tudo isto -daqui e prepare um café da manhã fresco para tomarmos na saleta de estar.

Felicity não conseguiu apreciar o desjejum, embora Mercer garantisse que havia supervisionado cada passo da preparação. No entanto, ela admitiu que se sentia melhor depois de comer e que já estava mais calma.

A reação de choque e horror do grupo que voltou da igreja era compreensível, mas Felicity achou as repetidas perguntas e conjecturas estressantes e pediu licença para se retirar. Como anfitriã, contudo, ela sabia que não deveria se ausentar por muito tempo, então depois de alguns minutos, voltou para perto dos hóspedes.

O curto dia de dezembro continuou nublado, e a casa parecia mais sombria do que

nunca. Na sala de estar, todos estavam reunidos em volta da lareira, onde a claridade do fogo, combinada com as chamas das velas, fornecia uma iluminação acolhedora.

Felicity entrou no recinto sem ser notada e ainda se encontrava nas sombras quando ouviu lady Charlotte dizer, enfática:

Page 118: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

118

— Pense bem, Rosthorne... Ela teve a oportunidade de jogar alguma coisa no hidromel. E não seria a primeira vez... Ela não estava no bosque quando você caiu do cavalo? E olhe, assim que cheguei aqui, percebi logo o mal-estar entre vocês dois.

O pequeno grupo percebeu a presença de Felicity, e todos os olhares se voltaram para vê-la emergir das sombras. O eco das palavras de lady Charlotte parecia pendurado no ar, pesado, esmagador. Felicity olhou para Nathan. Ela rezou para que ele a defendesse, mas foi a sra. Carraway quem falou, num tom de voz áspero:

— Que absurdo, Charlotte. Espero que nunca mais repita uma coisa dessas. Felicity, minha querida, venha se sentar aqui. Não ligue, estamos todos um pouco estressados. Nathan pediu a Mercer que reunisse a criadagem e vai falar com eles, mas eu não acredito que nenhum dos nossos criados permanentes fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Eles trabalham aqui há anos, os pais e os avós deles já trabalhavam aqui antes, e nenhum deles teria nada a ganhar com tal barbaridade.

— E quanto aos homens do estábulo? — perguntou Gerald, servindo uma taça de vinho para Felicity.

Nathan balançou a cabeça. — Eu os interroguei quando levei Bella. — Espero que você não tenha atormentado Harris com suas perguntas —

intrometeu-se lady Charlotte. — Você sabe que ele não é bom da cabeça, é bem capaz de dizer uma mentira se achar que é o que você quer ouvir.

— Não, senhora, tu não fiz nenhuma pergunta a ele. Ele se adiantou imediatamente para ajudar Patrick a cuidar de Bella. Ele ficou transtornado quando viu o estado dela. Não consigo ver aquele rapaz fazendo mal a alguém.

Felicity mal escutava a conversa. Ela ainda olhava para Nathan, esperando algum sinal de reafirmação, de confiança, mas ele parecia evitar seu olhar. Não era possível que ele achasse que ela havia tentado envenená-lo!

— Com licença — murmurou Nathan, levantando-se. — Vou falar com os criados agora.

— E eu sugiro que todos descansemos um pouco antes do jantar — disse a sra. Carraway. — Felicity, vamos?

— Minha cunhada se torna, cada dia, mais excêntrica — comentou ela, enquanto Felicity a acompanhava ao longo dos corredores sombrios em direção aos aposentos. — Nós não levamos em conta nenhuma palavra do que ela diz, não se preocupe.

— Mas é verdade, milady, que eu fiquei algum tempo sozinha na sala do café da manhã antes de Nathan chegar.

— E ele nos contou que você o aconselhou a não beber hidromel. Nathan teve um dia difícil, minha querida, mas só se ele fosse um tolo pára achar que você seria capaz de fazer uma coisa dessas.

Felicity se confortou um pouco com as palavras da sogra, mas a lembrança da expressão séria e tensa de Nathan não a abandonava.

Depois de deixar a sra. Carraway em seus aposentos, Felicity voltou parte do caminho, em direção ao seu quarto. Ela subiu a escada dos fundos e percorreu o corredor que dava vista para a estrebaria. Já estava escuro lá fora, e a luz fraca das velas em seus suportes na parede foi realçada pelo brilho dos braseiros no pátio. Felicity olhou pelas janelas conforme passava. Ela viu Harris saindo de uma das baias e percebeu que alguém o chamava. Em seguida, Gerald Appleby atravessou o pátio, passou um braço sobre os ombros do cavalariço e pôs-se a conversar zelosamente com ele, como se estivesse explicando alguma coisa a uma criança.

Felicity os observou por um longo momento, com uma ruga na testa, depois se virou e foi para seu quarto.

Quando ela desceu, cerca de uma hora depois, encontrou uma movimentação incomum no hall. Lacaios carregavam baús para fora, e Gerald estava de pé a um canto,

Page 119: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

119

conversando com Nathan. Quando ele viu Felicity, murmurou algo para Nathan e foi na direção dela, com um sorriso pesaroso nos lábios.

— Minha prezada lady Rosthorne, o que posso dizer? Como posso lhe pedir desculpas? Eu estava agora mesmo explicando a Nathan que minha mãe ficou muito abalada com os acontecimentos de hoje e quer voltar para Appleby Manor. — Ele levantou a mão. — Não, não, milady, sei que vai insistir para ficarmos, que vai dizer que o jantar já vai ser servido, que está muito escuro para viajar a esta hora, mas minha mãe está irredutível, ela quer ir embora já, então é melhor fazer-lhe a vontade, sabe como é...

Felicity, que não tinha pretendido dizer absolutamente nada, limitou-se a assentir com a cabeça e atravessou o hall para ficar perto de Nathan enquanto lady Charlotte descia as escadas, apoiada no braço de sua aia.

— Eu nunca fui a favor de animais perambulando pela casa, vejam só no que deu — queixou-se ela, ainda na parte superior da escada.

Felicity conteve-se para não revirar os olhos. Olhou para Nathan, mas a expressão dele estava impassível.

— Bem, vamos, ao menos, esperar que a cachorrinha se recupere, não é? Que não tenha sido nada grave — disse Gerald, dando um passo à frente. — Venha, mamãe, deixe-me levá-la até a carruagem.

— Transmita meu$ respeitos à sua mãe, Rosthorne — trovejou lady Charlotte, quando já ia saindo. — Ela vai ficar aborrecida por eu interromper a minha estada, mas infelizmente não tenho condições de ficar mais.

— Eu já expliquei tudo ao lorde e à lady Rosthorne, mamãe. — Gerald lançou um rápido olhar de desculpas para eles. — E mandei Harris na frente para já deixar tudo em ordem para a nossa chegada. O céu está claro, temos luar, então penso que faremos uma viagem rápida.

Nathan e Felicity foram até a porta e viram Gerald ajudar a mãe a subir na carruagem. A aia de lady Charlotte também entrou, e enquanto as duas se acomodavam Gerald voltou e subiu correndo os degraus da entrada. — Até logo, Nathan. — Ele estendeu a mão. — Eu espero que Bella fique bem. Na verdade, acho que a nossa partida agora será algo bom para vocês neste momento. — Ele apertou a mão de Nathan, fez uma mesura para Felicity e desceu novamente os degraus em direção à carruagem.

Nathan ficou observando enquanto a carruagem se distanciava pela alameda, mas seus pensamentos estavam longe dali, repassando repetidamente os eventos daquele dia. Depois de interrogar os criados, ele ficou convencido de que nenhum deles havia colocado cicuta no jarro, mas sendo assim, ele tinha de encarar uma possibilidade ainda mais indesejável. A seu lado, Felicity estremeceu e fechou o xale sobre os ombros. Nathan segurou-a pelo cotovelo.

— O vento está frio, vamos entrar. A lareira está acesa na sala, e minha mãe vai descer logo para lhe fazer companhia.

— E você? Ele desviou o olhar, ansioso para esconder dela o tumulto que se passava em sua

mente. — Eu tenho algumas pendências para resolver no escritório. — Então eu vou com você, porque preciso falar com você em particular. — Como quiser. Nathan sentiu o coração pesado. Em qualquer outra ocasião, ele ficaria feliz em

ouvir as confidencias de Felicity, mas naquele momento, ele precisava ficar sozinho, para pensar, refletir sobre o que acontecera.

Ele a conduziu até o escritório e fechou a porta. As velas já estavam acesas, e o aposento, aquecido, o que era reconfortante depois do vento frio da noite.

— Você já estava trabalhando aqui quando ficou sabendo que lady Charlotte e o sr. Appleby iam embora?

Page 120: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

120

— Sim.. — A partida deles foi repentina, não? — Sim, foi uma surpresa para mim. Eu ia chamar você para se despedir, mas Gerald

me pediu que não a incomodasse. Ele se sentou e folheou alguns papéis sobre a escrivaninha, enquanto Felicity

andava para um lado e para o outro. — Nathan. — Ela finalmente parou diante da escrivaninha. — Eu acho que seu

primo sabe alguma coisa sobre essa tentativa de envenenar você. — As palavras dela soaram mais precipitadas do que ponderadas.

— Por que você acha isso? A voz dele soou mais áspera do que ele gostaria, e Felicity hesitou antes de

continuar: — Eu o vi conversando com o cavalariço de sua tia. — Quando foi isso? — Depois que acompanhei sua mãe até o quarto dela. Eu estava indo para o meu

quarto e vi os dois lá embaixo, da janela do corredor. Não me pareceu que o sr. Appleby estivesse simplesmente dando instruções de rotina para Harris — ela apressou-se a dizer. — Parecia uma conversa mais reservada.

— O mais provável é que ele estivesse dando ordens para que ele já partisse na frente.

— Não creio. — Felicity balançou a cabeça. — O rapaz parecia estar assustado. — Harris tem um retardo mental. Você ouviu lady Charlotte comentar. — Sim, mas ele pode ter pegado a tintura no estábulo se o sr. Appleby o tiver

mandado fazer isso. Nathan a observou enquanto ela falava. — Você avisou que ia se atrasar para o desjejum — disse ela, devagar. — Gerald

pode ter voltado para a sala do café da manhã quando não havia ninguém lá e colocado o veneno no hidromel. Ele só pode estar envolvido, Nathan!

— Não, você está enganada. — Como você pode ter tanta certeza? — Não interessa... — Não interessa? — perguntou Felicity, corando de indignação. — Você prefere

acreditar que eu quis envenenar você então? — É claro que não! Que absurdo! — Então me diga qual é a sua suspeita. — Por enquanto, é melhor não... — Não, é claro que não! — interrompeu, ela, amarga. — É mais fácil desconfiar de

mim do que de alguém da sua família! — Não seja ridícula! — Você acha? Não seria conveniente você ter um pretexto para me mandar

embora? Nathan franziu a testa. — Do que você está falando, mulher de Deus? — Eu sei que você gostaria de pôr Serena Ansell no meu lugar. — O que... Como ê que é?! Felicity esfregou a mão sobre os olhos. — Ela é a mulher que você realmente quer, não é, Nathan? Eu vi vocês na festa,

abraçados! — Você não viu nada disso! Felicity, escute... Ela ergueu a mão. — Não precisa perder seu tempo negando que você gosta dela. Ela mesma me

contou. Nathan a fitou, perplexo. Ele se obrigou a falar com calma:

Page 121: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

121

— E quando foi exatamente que ela lhe contou? Felicity afundou numa poltrona e pressionou as têmporas.

— Em Corunha, logo depois de que você saiu da cidade. Ela foi me procurar para me dizer que você estava apaixonado por ela.

— E você acreditou? — Felicity ergueu a cabeça. — Por que eu não acreditaria se ela tinha a sua carta e o seu anel para provar? — Impossível. — Como você pode negar, Nathan? — É claro que eu nego! — Ele se recostou na cadeira de couro e cruzou os braços.

— Então foi por isso que você foi embora? Por causa do que disse uma mulher com a mesma moral de uma gata de rua?

— Ela tinha provas! — Absurdo. Nunca, em toda a minha vida, eu escrevi uma linha sequer para ela. O olhar de descrença de Felicity o irritou. — Mas que droga, Felicity, depois de cinco anos, como vou convencer você? Ela se levantou e virou-se de costas. — Não precisa — respondeu, com ar enfastiado. — Você mesmo disse que o

passado é passado. Com uma imprecação abafada, Nathan se levantou e estendeu o braço, agarrando o

pulso dela. — Pois eu me enganei! É evidente que precisamos falar sobre o passado!

Precisamos resolver isso agora, Fee, ou toda vez que tivermos um desentendimento, isso vai estar sempre entre nós.

Ela o fitou com os olhos brilhantes. — Sente-se, Fee. Está na hora de acabarmos com os segredos. Gentilmente, Nathan a fez se sentar de volta na poltrona e puxou outra para perto.

Quando ele se sentou e se inclinou para frente, os joelhos de ambos quase se tocavam. — Muito bem, Fee, eu vou lhe contar tudo. Serena me beijou na festa, mas se você

tivesse olhado mais um segundo, teria visto que eu a afastei. Aquela mulher adora criar confusão. Quando estávamos em Corunha, ela achava que todos os homens se encantavam com ela. Eu nunca me encantei, nem um pouco, mas parece que ela não conseguia entender isso. Eu imagino que ela tenha inventado alguma história de conto de fadas para afastar você de mim. — Nathan esfregou a têmpora, e seus dedos deslizaram sobre a cicatriz. — Talvez eu devesse ter prevenido você a respeito dela, mas ela era amante de Adam... Ingenuamente, eu deduzi que isso fosse suficiente para ela. Quanto a escrever uma carta para Serena... Não, Fee, eu nunca fiz isso.

Felicity baixou o olhar para as próprias mãos, fortemente cruzadas sobre o colo. Talvez ela tivesse mesmo sido uma tola. Ela nunca quis acreditar em Serena, mas...

— Ela tinha o seu anel, Nathan. Incrustado com os espinhos de rosas, não havia como confundir.

Ela arriscou um olhar para o rosto dele. Já o conhecia bem para saber que, embora ele estivesse olhando em sua direção, o pensamento estava bem longe dali.

— Eu dei aquele anel a Adam Elliston — disse ele por fim. — Adam? Mas por que você não me contou isso quando eu lhe perguntei sobre o

anel? Nathan esfregou o queixo. — Eu acho muito difícil falar sobre Adam. Quando ele morreu, foi como se eu tivesse

perdido uma parte da minha alma. Nenhum de nós era rico, mas quando chegamos a Corunha, ele gastou tudo o que tinha com Serena, até o último vintém. É bem possível que ele tenha dado o anel para ela. Ele estava enfeitiçado, perdeu a cabeça. De qualquer forma, depois disso, ele recuperou o anel, porque eu vi. Ele quis me devolver, mas eu disse para ficar com ele, para dar sorte... — Nathan voltou para o presente e olhou para

Page 122: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

122

Felicity. — Se, ao menos, você tivesse me esperado, Fee, nós teríamos acertado toda essa questão em poucos minutos.

Felicity não respondeu. Se, ao menos, ela tivesse esperado... — Eu entendo por que você quis se afastar de mim — disse Nathan. — Você se

sentiu magoada, enganada, mas depois, quando você teve tempo para refletir, por que não entrou em contato comigo? Por que se escondeu por tanto tempo?

Quando ela não disse nada, ele se inclinou para mais perto. dela. — Fee, por quê? Após um prolongado silêncio, durante o qual Felicity não desviou o olhar do chão,

ela finalmente falou: — Quando eu cheguei a Portsmouth, eu ainda tinha intenção, de desaparecer, mas

eu tinha passado muito mal no navio, estava fraca, e tive de encontrar acomodações o quanto antes. Usei o nome de srta. Brown, o mesmo que eu tinha usado a bordo. Foi então que eu descobri que estava grávida. — Ela deu um longo suspiro. — Eu gostaria de explicar a você o que eu senti naquela hora... A alegria, a felicidade... De repente, tudo parecia possível. Então eu decidi me mudar para mais perto de Londres, onde eu teria os melhores médicos ao meu alcance. Eu conclui que você não iria se opor a que eu usasse o seu dinheiro pelo bem do bebê. A minha senhoria tinha uma irmã que possuía uma pensão em Camberwell e me recomendou para ela.

Felicity fez uma pausa, respirou fundo e ergueu os olhos para Nathan. — Como ela me conhecia como srta. Brown, eu não contei a verdade, com medo

que ela não me achasse suficientemente respeitável ou confiável para ficar na casa dela, mas desde o começo, a minha idéia era que, depois que o bebê nascesse, escrever para você e tentar uma reconciliação — Ela estremeceu. — Então as náuseas recomeçaram. Eu dei dinheiro à senhoria e pedi que ela me arrumasse um bom médico. Infelizmente, nem a habilidade dele nem os cuidados da senhoria adiantaram. O bebê, um menino, nasceu prematuro e morreu depois de poucas horas. Eu nem cheguei a segurá-lo.

Felicity pestanejou para combater as lágrimas e fixou o olhar no tapete persa a seus pés. Agora que ela tinha começado, iria até o fim.

— Depois disso, eu cheguei a lamentar ter ido parar num lugar de gente tão boa e honesta. Tudo o que eu queria era dormir e não acordar nunca mais. Teria sido tão fácil para a senhora me deixar definhar até a morte e ficar com o dinheiro. Mas em vez disso, ela pagou ao médico para ir me ver regularmente e cuidou de mim como uma mãe cuida de uma filha, e eu comecei a melhorar. Aos poucos, fui recobrando as forças, e não sei de onde, veio uma vontade de voltar a viver outra vez. Eu vi uma nota no jornal, anunciando o casamento de minha amiga Lydia com Sir James Souden. Então resolvi escrever para ela e pedir ajuda.

— Por que você não escreveu para mim?— Felicity balançou a cabeça de leve. — Eu enterrei junto com o bebê todas as esperanças de recomeçar uma vida com

você. Eu achei que era um castigo. Quando meu tio morreu, eu não fiquei nem um pouco triste, como deveria, ao contrário, senti alívio por me ver livre dele. Depois, quando você me salvou em Corunha, parecia bom demais para ser verdade, tanta felicidade não poderia vir sem um preço. Foi, nessa altura, que eu li o seu anúncio, procurando informações do meu paradeiro. Naturalmente, ninguém em Camberwell sabia quem eu era, então eu simplesmente ignorei. Ainda vi mais um ou dois anúncios, mas depois pararam, e eu soube que o Exército tinha voltado para a Península. — Felicity fitou Nathan com os olhos marejados. — Eu tinha perdido meu filho, Nathan. Nosso filho. Como eu poderia esperar que você me perdoasse por isso se eu mesma não conseguia me perdoar?

Nathan esfregou os olhos. Tantos pensamentos o assolavam... Ele sofria só de imaginar tudo pelo que Felicity tinha passado, sozinha. Agora ele entendia por que ela fazia tanta questão de não sair de perto de Lydia.

Page 123: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

123

Felicity soluçou. — Eu sinto muito... Por favor, diga à sua mãe que eu também fiquei muito abalada

com tudo o que aconteceu hoje e que não vou jantar com vocês. Ela já estava na porta antes que Nathan pudesse coordenar seus conturbados

pensamentos. — Fee, espere! Mas quando ele chegou a porta do escritório, Felicity já havia desaparecido. Sua mãe estava de pé no hall, olhando perplexa para o andar de cima, e sem uma

palavra, ele passou por ela e subiu as escadas. Cinco minutos depois, Nathan voltou para encontrar a mãe esperando por ele. — Felicity estava chorando — disse ela. — Vocês brigaram? — Não, mamãe, não exatamente, mas ela está aborrecida. — Então não seria melhor você ficar com ela? — Eu tentei, mas ela trancou a porta. Ela não quer falar comigo. — Nathan ergueu o

queixo. — Não sou tão monstruoso a ponto de forçar minha presença a ela. Ele segurava com força o corrimão esculpido, e a sra. Carraway cobriu a mão dele

com a sua. — Você quer me contar o que houve, filho? Ele esfregou os olhos. — Outra hora, talvez, quando eu mesmo entender direito o que foi.

Capítulo Dezoito

Um prolongado acesso de choro deixou Felicity exaurida, mas depois que as lágrimas secaram e ela conseguiu raciocinar com clareza, compreendeu que não estava arrependida de ter contado a Nathan sobre o bebê. Ela não tinha mais segredos para Nathan agora.

A criada apareceu na porta, avisando que o patrão havia mandado trazer um prato de sopa quente para o jantar de milady, e o estado de espírito de Felicity melhorou um pouco. No dia seguinte, refletiu ela, eles recomeçariam do zero.

Felicity se levantou cedo na manhã seguinte e vestiu-se com esmero antes de descer para a sala do café da manhã, apenas para ver suas esperanças esmagadas quando Mercer a informou de que o conde já tinha tomado o desjejum e tinha saído para cavalgar.

— Ele foi sozinho? — indagou ela, ansiosa. — Não, milady, Patrick foi com ele. Felicity deveria se dar por satisfeita, mas ela não estava inclinada a tomar o café da

manhã sozinha, então foi procurar a sra. Carraway. Encontrou a sogra na saleta, escrevendo cartas.

— Entre, querida, isto pode esperar. — Obrigada. — Felicity parou para afagar as orelhas de Bella quando a cadela se

aproximou para saudá-la. — Ela parece estar totalmente recuperada, não é? — Eu acredito que esteja, e Nathan me disse que talvez tenha se enganado, que

Page 124: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

124

não havia veneno no hidromel, afinal. — Mas Bella... — Ela está velhinha, pode muito bem ter sofrido um leve derrame. Ela teria se

recuperado mesmo se vocês não tivessem dado café. — A sra. Carraway suspirou. — Espero que seja isso mesmo, porque não posso nem pensar na idéia de que alguém queira fazer mal ao meu filho.

— Eu também não, milady — acrescentou Felicity, muito séria. — Mas será que ele pode ter certeza absoluta de que não foi mais um atentado à vida dele? Não sei, não...

— Nathan e eu falamos sobre isso ontem, à noite. Ele diz que é tudo coincidência e conjecturas. Ele fez o possível para me tranqüilizar, garantiu que não acredita, nem por um segundo, que esteja correndo perigo.

— Bem, milady, eu gostaria de que ele fizesse o possível para me tranqüilizar também.

— Bem, isso é um pouco difícil, filha, você vive trancada no quarto... Felicity enrubesceu diante da gentil repreensão nas palavras da sogra. — Nós discutimos ontem à noite — ela falou, baixinho. — Ele lhe contou? — Não. — A sra. Carraway foi até o sofá e fez um sinal para que Felicity a

acompanhasse. — Nathan não é a pessoa mais aberta do mundo. E difícil ele falar sobre as coisas que são realmente importantes para ele.

Felicity torcia e retorcia as mãos, nervosa. Ela respirou fundo. — Nesse caso, acho que eu devo lhe contar. Tudo, milady. Hesitante, e um pouco chorosa, Felicity contou sua história. Ela corou quando

mencionou as amantes e vacilou antes de expressar suas suspeitas sobre Gerald Appleby, mas a sra. Carraway não ficou chocada. Ela apenas afagou as mãos de Felicity, quando esta terminou o relato.

— Obrigada por sua sinceridade, minha querida. Eu posso viver isolada aqui em Rosthorne, mas minhas amigas me mantêm bem informada a respeito do que acontece lá fora. Não acho que você precise se preocupar com lady Ansell. Eu a vejo como uma mulher ardilosa e manipuladora, e pode ter certeza de que Nathan também enxerga isso.

— Mas e o primo dele, milady! — Felicity retorceu novamente as mãos. Eu acredito que Nathan esteja em perigo e...

— Gerald nunca me pareceu interessado no título, muito menos ansioso para herdá-lo. Mas eu sei que Nathan não vai descartar a sua suspeita sem uma boa justificativa. — Ela sorriu. — Eu vou falar com ele quando ele voltar para casa. Por enquanto, acho que deveríamos... — Ela se calou quando a porta se abriu e a sra. Norton entrou, trazendo uma carta.

— Com licença, milady, esta correspondência acabou de chegar. E do conde. Felicity não precisaria ter ouvido a última frase, pois reconheceu imediatamente a

caligrafia forte escrita em tinta preta. Com um agradecimento, a sra. Carraway abriu o envelope e desdobrou a folha de papel.

— Ah — murmurou ela. — Ele está indo para Bath. O coração de Felicity se confrangeu.

— Tem alguma mensagem para mim, sra. Norton? — ela quis saber. — Não, milady. Patrick trouxe apenas duas cartas, a outra era para o valete de lorde

Rosthorne. Patrick está atrelando os cavalos ao coche de viagem do conde e pretende ir encontrá-lo nesta noite. Parece que milorde tem intenção de se ausentar por algum tempo.

— E verdade, Norton. Obrigada, isso é tudo. — A sra. Carraway esperou até que sua aia se retirasse e voltou outra vez a atenção para a carta.

— Ele vai visitar lady Ansell — murmurou Felicity. — Está vendo, milady, eu o afastei...

— Bem, é a letra de Nathan — disse a sra. Carraway, não parecendo muito abalada.

Page 125: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

125

— Mas ele mandou esta carta de Appleby Manor. Então foi por isso que ele saiu tão cedo nesta manha.

— A senhora acha que ele foi confrontar o primo? — perguntou Felicity, — Ele não diz, apenas conta que vai acompanhar Gerald e lady Charlotte a Bath. —

A sra. Carraway ergueu os olhos brilhantes. — Não me parece muito um homem partindo ao encontro da amante. — Ela dobrou a carta. — É estranho que eles saiam de viagem hoje. Eu sugiro que você escreva um bilhete para Patrick levar, pedindo uma explicação. Depois, não pense mais nesse assunto, porque hoje é dia de presentear os criados, e temos bastante trabalho à nossa espera!

Felicity fez um esforço para sorrir enquanto desempenhava suas funções de senhora de Rosthorne, distribuindo caixas de Natal aos criados e levando cestas de alimentos aos habitantes mais pobres do vilarejo.

De algum modo, ela conseguiu passar o dia razoavelmente bem, mas, apesar da decisão de não se entregar a conjecturas inúteis, quando foi se deitar à noite, seus sonhos foram perturbados por imagens de Nathan rodopiando na pista de dança com Serena Ansell nos braços.

— Três dias, e nenhuma notícia de Nathan, além de um bilhete dizendo que chegou bem e que está no York House Hotel — observou a sra. Carraway quando ela e Felicity se sentaram para tomar o café da manhã. — Eu esperava que, a esta altura, ele já tivesse escrito, explicando por que exatamente ele foi para Bath. — Ela olhou para Felicity por cima da borda da xícara de café. —Você escreveu para ele, como eu sugeri?

— Não, senhora, não escrevi. Eu já testei a paciência dele além do limite... Lorde Rosthorne não está mais interessado em mim.

— Ah, querida, isso não é verdade! — Não? — Felicity ergueu o queixo. — Então por que ele não teve, ao menos, a

consideração de escrever para mim avisando que estava de partida? — Ela afastou a cadeira para trás. — Se me der licença, vou levar Bella para passear. Estou precisando respirar um pouco de ar fresco.

Ela levou a cadela até o parque e, enquanto Bella se entretinha cheirando em volta das árvores e nos arbustos, Felicity ficou refletindo sobre como ela iria viver dali para frente. A culpa era toda sua. Talvez, se ela não tivesse contado a Nathan sobre o bebê, ele a teria perdoado por ter fugido. Eles tinham combinado que não guardariam segredos um do outro, mas agora Nathan ia para Bath sem lhe dirigir uma palavra sequer.

Felicity pestanejou. Ela não queria chorar, não adiantaria de nada. Precisava agora se concentrar em sua vida como senhora de Rosthorne. Não era tão ruim assim, ela disse a si mesma... Ela tinha uma casa confortável e poderia ter praticamente qualquer coisa que quisesse.

Ela tinha todos os motivos para ser feliz. Exceto um. Nathan não a amava. Felicity voltou para casa determinada a cumprir a sua parte. Falou com o jardineiro

sobre o plantio de primavera e, em seguida, foi falar com a sra. Mercer para decidir os cardápios da semana. Em meio a essas atividades, ela esperava manter-se ocupada, mas quando o relógio bateu as horas, ela se deu conta, desconsolada, de que ainda era meio-dia. O restante do dia se estendia interminavelmente diante dela, e com uma sensação de desânimo, ela afundou no sofá e chorou.

— Minha querida, o que aconteceu? A voz preocupada da sra. Carraway fez Felicity se levantar de imediato. — Ah, não é nada, milady! Estou um pouco estressada, só isso... Felicity foi até a janela para enxugar os olhos. Ciente de que seu rosto ainda tinha as

marcas do choro, ela ficou de costas para a sala, enquanto ouvia a sogra dando instruções a uma criada.

Page 126: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

126

— Venha se sentar aqui comigo, Felicity. Vagarosamente, ela voltou para o sofá. — Ah, milady, a senhora deve me achar tão tola... — disse ela, apertando o lenço

entre os dedos. — Nathan nunca deveria ter se casado comigo, e agora... — Shh. — A sra. Carraway segurou as mãos de Felicity. — O que eu acho é que

você e Nathan são uma dupla de crianças teimosas. — Ela olhou na direção da porta quando esta se abriu. — Ah, Norton. Você trouxe a caixa? Que Deus a abençoe, minha querida. Pode colocá-la aqui no sofá, entre nós. Obrigada.

Ela esperou até que as duas estivessem sozinhas novamente, descansou a mão sobre a caixa e disse calmamente:

— Eu acho que está na hora de compartilhar isto com você. — Nathan trouxe esta caixa com ele da Península e entregou-a para mim, para que eu a guardasse. Ela contém as lembranças dele mais preciosas: miniaturas, cartas da família e dos amigos...— Ela ergueu a tampa e vasculhou entre os papéis. — E isto. — A sra. Carraway pegou duas folhas de papel dobradas e entregou-as a Felicity. — E uma carta que ele escreveu para Adam Elliston no dia em que marchou para fora de Corunha. Acho que você deveria ler, porque ele fala de você na carta.

Felicity pegou a carta e olhou para as palavras escritas em tinta preta. A sra. Carraway prosseguiu:

— Eu sei que você está convencida de que Nathan se casou com você apenas para protegê-la, mas o que ele conta aí é uma história bem diferente.

Felicity desdobrou as folhas de papel e começou a ler. Adam, perdoe-me por estas palavras apressadas, e Deus queira que você leia isto

antes de sair de Corunha. Minhas ordens chegaram. Nós marcharemos para fora daqui hoje, e eu sei que você não estará muito atrás de nós. Era nossa intenção nos encontrarmos e fazer um brinde antes de nos reunirmos ao Exército de Moore que vem do Norte de Portugal, mas os usuais contratempos para conseguir comida e alojamento para um batalhão tão numeroso como este, acrescidos dos atrasos e frustrações de nosso desembarque aqui, impossibilitaram que tivéssemos mais do que apenas alguns momentos juntos. E é claro que também tenho de levar em conta minha querida esposa, mas, por favor, não lastime o tempo que passei com ela, pois você bem sabe como essa mulher roubou o meu coração. Felicity... Um nome bem apropriado, pois, de fato, ela se tornou a minha felicidade.

Ao chegar ao fim da primeira página, Felicity deu um pequeno soluço e levou a mão à boca.

— Ah — ela sussurrou. — Eu não sabia... — Não — murmurou a sra. Carraway, sorrindo. — E Nathan nunca lhe contou. É

melhor você continuar a ler, embora o resto da carta talvez não lhe interesse tanto. — Ah, interessa sim! — exclamou Felicity, virando para a segunda página. —

Interessa muito! Com o coração disparado, ela se deu conta de que já tinha lido aquela página antes,

mas em um contexto bem diferente. Minha paixão, Sei que você compreende que um novo marido tem suas obrigações. Este

casamento imprevisto custou tempo e dinheiro, por isso, não tenho condições de lhe deixar nenhuma moeda, mas, para aliviar a minha consciência por ter de a abandonar num momento como este, deixo aqui o meu anel, um pequeno porém valioso símbolo do meu apreço. Por favor, use-o por mim. Se as circunstâncias assim o exigirem, por favor, venda-o. Eu sei que você só faria tal coisa em caso de extrema necessidade, e eu jamais a censuraria por isso.

Com apreço, Nathan C. — Adam morreu na Espanha, em 1811 — disse a sra. Carraway quando Felicity

Page 127: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

127

terminou de ler. — Nathan me contou que ficou encarregado de trazer os pertences dele para os pais, e essa carta estava entre eles.

Felicity devolveu a carta à sra. Carraway. — Eu acho que Serena leu esta carta antes que Adam a visse. Ela usou a carta e o

anel para me enganar! E Serena agora estava em Bath. Com Nathan. — Então, minha, querida... — A sra. Carraway dobrou cuidadosamente a carta e

guardou-a de volta na caixa. — Ele amava você, e ainda ama, ao que tudo indica. Não quer escrever para ele, antes que seja tarde demais?

Felicity suspirou. Ela poderia escrever para Nathan, mas uma folha de papel parecia-lhe uma defesa muito frágil contra os ardis de Serena Ansell.

— Não. — Ela balançou a cabeça de leve. — Eu não vou escrever para ele. — Ela virou-se para a sra. Carraway com expressão determinada. — Eu vou para Bath — anunciou. — Desta vez, eu vou lutar!

Enquanto saía de Bladud Buildings, Nathan refletia que não existia lugar mais

soturno que Bath em uma tarde de inverno. Já não chovia, mas o ar frio e úmido parecia penetrar os ossos. Ele não via a hora de voltar para Rosthorne e sentar-se com Felicity diante da lareira acesa.

Ele passara a maior parte da noite escrevendo uma longa carta para ela, e enviara pelo correio expresso. Ele esperava que, depois que ela lesse a carta, compreendesse por que ele tivera de partir para Bath em caráter tão urgente.

Gerald o abordou assim que entrou na casa, em Laura Place. — E então? Nathan balançou a cabeça. — O dr. Thomas só deve voltar à noite. — Ele soltou um suspiro exasperado. —

Deve haver algum outro médico que possamos consultar. Gerald o conduziu para a sala de estar e fechou a porta. — Eu prefiro esperar o dr. Thomas. Ele é o médico de minha mãe há anos. Ela ficará

menos desconfiada se for ele. — Está bem, eu voltarei amanhã de amanhã. — Eu virei com você — disse Gerald. — E não vamos sair de Bladud Buildings

enquanto não falarmos com ele! — Ele colocou a mão no ombro de Nathan. — Eu sou muito grato por você ter vindo comigo, primo. Não havia ninguém mais em quem eu pudesse confiar. Eu não contei aos criados toda a verdade, só comentei que minha mãe não está bem.

— Não seria melhor trazer uma enfermeira? — Depois que o dr. Thomas examiná-la e tivermos a opinião dele, vou contratar

quantas pessoas forem necessárias para cuidar dela. — A expressão de Gerald estava atipicamente sombria. — Até lá, farei o que puder para evitar que se espalhe o motivo da... Aflição dela.

— Muito bem. — Nathan esfregou o queixo. — Eu posso ficar mais um dia, Gerald, mas depois preciso voltar para Rosthorne.

— Eu entendo, e sou muito grato pelo que você fez por mim. — Gerald sorriu. — Você janta conosco?

Nathan balançou a cabeça. — Obrigado, mas dada a condição de minha tia, acho melhor eu não ficar. Sir James

Souden está em Bath com a esposa, e eles me convidaram para jantar com eles hoje. — Bem, até amanhã então. Nathan apertou, a mão do primo.

Page 128: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

128

— Até amanhã. E vamos esperar que tudo se resolva sem alarde! Felicity levou dois dias para chegar a Bath. Como o conde levara seu elegante coche

de viagem, ela fora obrigada a usar a caleche mais velha e o igualmente idoso cocheiro da sra. Carraway, que se recusou a acatar a sugestão da condessa de que prosseguissem viagem durante a noite.

Quando eles finalmente pararam diante do York House Hotel, Felicity olhou para o relógio da carruagem. Ainda era cedo, e ela acreditava que havia uma grande chance de o conde ainda não ter saído do quarto.

Com o queixo erguido, ela entrou no hotel e subiu para os aposentos do conde. Seu ânimo esmoreceu um pouco quando Sam abriu a porta e anunciou que o conde já havia saído.

— Ele foi para Laura Place, eu creio, milady — avisou o valete, olhando para o pesado baú que estava sendo carregado escada acima com a ajuda de cordas, sob o olhar vigilante da aia de Felicity.

— Laura Place? — Para visitar lady Charlotte. Felicity deu-se conta de que estava prendendo a respiração. Ela deu um suspiro de

alívio, mas logo em seguida, ficou ansiosa de novo. — Ah. E o sr. Appleby deve estar lá, imagino. O conde levou Patrick com ele? — Não, milady. Milorde foi a pé, não precisou do valete. — Sam a observou

atentamente e sorriu. — Não precisa se preocupar com o sr. Appleby, milady. Ele pode ser meio doido, mas ele jamais faria nenhum mal para milorde, se é isso que a preocupa.

Felicity detectou a expressão de entendimento no olhar do criado e permitiu-se relaxar.

— Eu confesso que estava um pouco ansiosa — disse ela, com um sorriso cauteloso. — Obrigada, Sam. Irei a pé até Laura Place para encontrar o conde, se você me explicar o caminho.

Sam sorriu. — Acho que tenho um mapa aqui em algum lugar, milady... Quando chegou a Laura Place, Felicity foi conduzida até um cômodo

excessivamente mobiliado enquanto a criada ia buscar sua patroa. Felicity perguntou-se se teria sido impetuosa demais, se não teria sido melhor, pelo menos, trocar de roupa antes de sair à procura de Nathan. Ela tinha certeza de que lady Charlotte pensaria assim, mas refletiu, com uma pontinha de prazer, que não se importava nem um pouco com o que lady Charlotte pensava. Um olhar para o espelho mostrou que seu cabelo continuava bem-arrumado sob a moderna boina de flanela e que sua peliça verde-oliva não estava amarrotada, apesar da longa viagem. Além do mais, Nathan havia dito que gostava de vê-la usar particularmente aquele tom de verde, e isso era tudo o que importava para ela.

A porta se abriu, e Felicity virou-se com um sorriso sereno para cumprimentar sua anfitriã.

— Lady Charlotte. Eu soube que meu marido estava aqui. — Ele saiu com Gerald. — Lady Charlotte a fitou com um olhar frio. — Eu não sabia

que você estava em Bath. Rosthorne não disse nada. — Eu cheguei nesta manhã. — Então o conde não sabe que você veio? — Não, milady. Eu vim a pé do hotel, com minha aia, para fazer uma surpresa para

ele. Lady Charlotte deu um leve sorriso. Seria aquilo, finalmente, um pequeno sinal de

aprovação? Felicity fez essa pergunta a si própria. O tom de voz da velha senhora era,

Page 129: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

129

sem dúvida, mais caloroso quando ela falou a seguir: — Os cavalheiros devem demorar um pouco ainda. Lady Rosthorne, será que me

daria o prazer de sua companhia em um passeio até Sydney Gardens? Parece que o sol está querendo aparecer, e seria uma pena perder esse privilégio neste curto dia de inverno.

— Eu gostaria muito de ir, milady. — Dê-me só um minuto, para vestir meu agasalho. — Lady Charlotte parou na porta

e virou-se. — Sua aia pode voltar para o hotel, lady Rosthorne. Não há necessidade de ela ir conosco. Ficaremos mais à vontade sozinhas.

Felicity esperou, sorridente. Aquela era uma mudança e tanto, se até a orgulhosa e altiva lady Charlotte a tratava com tanta simpatia!

Dez minutos depois, elas chegaram à entrada de Sydney Gardens. Lady Charlotte andava surpreendentemente depressa ao longo de Great Pulteney Street, com as mãos abrigadas dentro de um rolinho de pele.

Um vento gelado soprava, apesar do sol fraco, e Felicity não se surpreendeu ao encontrar os jardins praticamente desertos.

— Este lugar deve ser maravilhoso no verão — observou ela, olhando ao redor. — Parece que hoje temos os jardins exclusivamente para nós.

Lady Charlotte não respondeu, e Felicity ficou ligeiramente irritada. Por que lady Charlotte a convidara para acompanhá-la e agora não parecia disposta a conversar?

Elas atravessaram a larga passagem para carruagens que contornava o perímetro dos jardins e seguiram por um dos caminhos sinuosos até o centro do parque, onde as árvores e arbustos abafavam os sons do tráfego em Sydney Place. Felicity já ia sugerir que começassem a voltar quando lady Charlotte parou..

— Aqui está bom. Felicity olhou para ela. — Para quê? — indagou, com uma risadinha. — Não há nada aqui além de plantas!

Por que não vamos ver a réplica do castelo ou o labirinto? — Felicity se calou. Lady Charlotte tinha se afastado um pouco.

— Não, nós não vamos ver nada, lady Rosthorne. — Ela retirou uma das mãos do rolinho de pele e apontou uma pequena pistola de prata para Felicity.

— Eu não estou entendendo. Os olhos de lady Charlotte se estreitaram. — Eu sei qual é o seu joguinho — sibilou ela. — Mas saiba que você não vai

conseguir. Você fez meu sobrinho se casar com você, depois o abandonou porque ele não era rico como queria. Então você volta depois que ele virou conde, e agora está empenhada em negar ao meu filho a herança que é dele por direito.

— Lady Charlotte, eu lhe asseguro que... — Você pretende garantir o título com um herdeiro, não é? Enquanto você e seu

marido estavam estremecidos, você não fez questão de ter um filho, mas agora..: Já chega o meu sobrinho estorvando o caminho, eu não vou permitir que você dê a ele um herdeiro, ainda por cima!

Felicity viu-a erguer a pistola e apressou-se a dizer: — Eu nunca pretendi negar o título a Gerald, milady, se é o que a senhora julga o

correto. — É claro que é o correto! — Os olhos de lady Charlotte pareciam soltar faíscas. —

Appleby morreu logo depois que Gerald nasceu, e nós fomos morar como meu irmão, o conde. Gerald foi criado para ser um nobre.

— Nathan me disse que o velho conde era um homem muito bom... — Isto não tem nada a ver com bondade! Era a intenção dele que Gerald herdasse o

título. Nathan nunca foi o preferido dele, nunca! — Mas o conde tinha três filhos, milady — lembrou Felicity. — Quem poderia prever

que...

Page 130: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

130

— Eu — lady Charlotte a interrompeu. — Quando os três rapazes morreram, eu sabia que era porque o destino queria assim. Era uma questão de bom senso. Nathan era soldado. Era apenas uma questão de tempo antes que ele morresse em combate.

Felicity olhou fixamente para o rosto da mulher e tentou não pensar na pequena pistola apontada para seu coração. Ela precisava fazer com que lady Charlotte continuasse falando.

— Mas Nathan sobreviveu à guerra e voltou para Londres. — Sim, e então eu soube o que eu tinha de fazer. O frio cortante penetrava as roupas de Felicity, e junto com o medo, fazia-a tremer. — Então era a senhora que estava por trás dos atentados para matar Nathan! Mas

como? A senhora pagou alguém para fazer aquilo? Lady Charlotte retorceu os lábios num esgar. — Nada tão plebeu assim... Foi Harris quem fez tudo. — Harris! Seu cavalariço? — Exatamente. Eu tive de explicar todos os detalhes para ele, claro, porque ele é

um pouco atrasado, mas ele é muito leal a mim. Infelizmente, ele não é lá muito hábil, por isso, a primeira tentativa falhou.

— E a segunda também — disse Felicity. — No jardim da casa de lady Stinchcombe. — Sim. Confesso que eu achei que ele se sairia melhor. Eu sabia que Rosthorne

gostava de fumar aqueles charutos horríveis, então mandei Harris ir atrás dele no jardim. Eu disse a ele para destrancar o portão dos fundos para fugir, mas ele não conseguiu, como em Green Park. Mas você estava lá, não é? Você o viu.

— Eu o vi, mas não o reconheci. — Um som abafado chegou aos ouvidos de Felicity. Vozes. Havia mais gente nos jardins. Se, ao menos, ela conseguisse ganhar um pouco mais de tempo! — E foi Harris, também, no Home Wood?

— Sim, mas você frustrou essa tentativa, não foi? Harris foi obrigado a fugir para não se arriscar a ser reconhecido. Pobre Harris, ele voltou injuriado, por causa do ferimento no cavalo de Rosthorne. Foi quando eu percebi que teria de fazer eu mesma o serviço. Harris trouxe a cicuta da estrebaria e a misturou no hidromel. Foi muito fácil.

— Se Bella não tivesse tropeçado no lacaio. As vozes estavam mais altas. A vontade de Felicity era de gritar, mas ela sabia que

se fizesse isso lady Charlotte atiraria. A mão da mulher estava tão firme que Felicity não tinha dúvida de que o tiro seria certeiro. Ela elevou um pouco a voz.

— E onde está Harris agora? Pela primeira vez, lady Charlotte pareceu ficar confusa. — Gerald o mandou cuidar de alguns assuntos, antes de virmos para Bath. E disse

que viria em seguida... Alguma coisa se moveu entre a vegetação atrás de lady Charlotte. Felicity notou que

havia várias pessoas se aproximando, mas não se atreveu a desviar os olhos do rosto de lady Charlotte, para não distrair a atenção da mulher.

— Vamos voltar, milady. Pode ser que Harris já tenha chegado... — Não! — Os olhos frios de lady Charlotte se estreitaram com desconfiança. — Não,

vamos acabar com isso agora. Com você morta, pelo menos, terei mais tempo para dar um jeito no meu sobrinho!

Ela esticou o braço, erguendo mais a pistola e mirando a pontaria. Felicity prendeu o fôlego.

Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Felicity viu Nathan pular de trás de um arbusto em cima de lady Charlotte no instante em que esta apertava o gatilho. Um estampido cortou o ar, e Felicity sentiu a bala passar zumbindo ao lado de sua cabeça. Ela pulou para trás, atordoada. Toda a tensão acumulada nos últimos minutos se liberou, e ela mergulhou na escuridão e no silêncio.

— O que pensa que está fazendo? — A voz enraivecida de lady Charlotte soou

Page 131: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

131

acima do tumulto. — Solte-me imediatamente! — Está tudo bem, mamãe, eu estou aqui. — Gerald se aproximou correndo e

gentilmente tirou a arma dos dedos da mãe. — Ela está morta? Ela estava no seu caminho, filho. Eu não podia permitir isso. Nathan olhou na direção do cavalheiro de jaleco branco ajoelhado ao lado de

Felicity. — Doutor? — A ansiedade fazia sua voz soar rouca. — A bala não a atingiu, milorde. Mas ela bateu a cabeça na queda. — Dr. Thomas. — Lady Charlotte parou de lutar com o filho e olhou para o médico.

— O que está fazendo aqui? — Ora, eu vim vê-la, milady — respondeu ele, levantando-se. — Cuide da sua paciente.— murmurou Nathan, passando por ele e ocupando o seu

lugar ao lado da forma inerte de Felicity. — Eu tomo conta da minha esposa. — Ele tirou as próprias luvas e as de Felicity e esfregou as mãos dela. Uma imensa onda de alívio o percorreu quando as pálpebras dela tremeram e Felicity abriu os olhos.

— Onde estou? Tio Philip? — Ela olhou para Nathan com uma ruga na testa. Nathan viu uma sombra de alarme anuviar-lhe os olhos, e Felicity afastou a mão bruscamente. — Você não é meu tio. Vá embora! Solte-me!

— Felicity. — Nathan tentou erguê-la, mas ela se debateu selvagemente. O dr. Thomas correu para ajudar. — Ela está histérica — explicou o médico. — Pode ser conseqüência do susto ou da

pancada na cabeça. Permita-me, milorde. — Ele se curvou e pegou as mãos de Felicity. — Venha, lady Rosthorne. Não precisa ter medo, eu sou médico.

Nathan assistiu, desamparado, enquanto o dr. Thomas colocava Felicity de pé. O olhar dela estava opaco, e ela continuava delirando.

— Ele não pode me encontrar. Eu sou esposa dele apenas no nome... Foi só um acordo... Nós nunca poderemos ser felizes. Perdoe-me, tio, eu não pretendia...

Felicity desfaleceu novamente. Nathan olhou para o médico, que tinha uma ruga na testa.

— Por favor, vá procurar um cabriolé, milorde. Eu levarei lady Rosthorne até a entrada dos jardins. Sr. Appleby, se puder ficar com sua mãe por enquanto... Eu vou vê-la depois.

O medo consumia Nathan enquanto ele acompanhava o dr. Thomas de volta ao hotel. Felicity foi colocada na cama, e ele mal pôde conter a impaciência até o médico sair do quarto.

— Ela está bem? Eu posso vê-la? — Pode entrar se quiser, mas ela está dormindo... Eu dei um pouco de láudano para

ajudá-la a relaxar. Ela tem um galo na cabeça, mas não creio que seja preocupante. — Mas ela estava delirando... — Os pensamentos dela estão confusos. Não quer dizer nada. — O médico sorriu.

— Ela é jovem e saudável, milorde. Ela vai acordar bem, daqui a algumas horas. Agora, se me der licença, preciso voltar para Laura Place.

Depois que o médico foi embora, Nathan voltou para o quarto. Felicity estava deitada, imóvel, no centro da cama de casal. Parecia muito frágil, com os olhos fechados e os cílios escuros sobre as faces pálidas.

Durante todo o tempo em que servira no Exército, Nathan nunca sentira tanto medo como quando ele e Gerald chegaram a Laura Place com o dr. Thomas e descobrira que lady Charlotte havia saído, cerca de meia hora antes, para passear com Felicity. Ele saiu no mesmo instante, seguido pelo primo e pelo médico, em direção a Sydney Gardens, sem se importar com os olhares curiosos dos transeuntes enquanto praticamente corria pela rua e para dentro do parque, esperando ouvir, a qualquer momento, os gritos de Felicity cortando o silêncio.

Page 132: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

132

Ele estendeu a mão e tocou-lhe gentilmente a testa. Ela não tinha febre, mas aquela imobilidade o deixava inquieto. E se quando ela acordasse não o reconhecesse? Ela havia chamado pelo tio... E se a mente dela estivesse presa no passado, se ela estivesse com amnésia dos fatos mais recentes? Ela não entenderia nada, ficaria apavorada quando se visse sozinha com um desconhecido...

Nathan se levantou, agitado. Não suportava mais aquela espera. Depois de instruir a aia de Felicity a ficar de olho nela, saiu para a rua. Já havia escurecido, e caía uma garoa fina, mas Nathan nem tomou conhecimento, tampouco da expressão perplexa do mordomo de Sir James quando ele pediu que falasse com lady Souden.

— Infelizmente, milady não se encontra, milorde. Sir James è lady Souden saíram para jantar e depois irão ao baile, em Lower Rooms.

Nathan voltou para a calçada. Ele olhou para seu paletó molhado e para as botas enlameadas. Não podia nem pensar em entrar em um recinto social naquele estado. Ajeitando o chapéu na cabeça, ele virou-se e voltou pelo caminho pelo qual viera.

A escuridão densa que havia engolfado Felicity estava começando a se dispersar.

Ela estava deitada, imóvel, com os olhos fechados. Alguma coisa estava errada. A cama era muito confortável, mas não era a sua cama. Ela não estava em Rosthorne.

Podia ouvir o tique-taque ininterrupto do relógio no quarto, o som de vozes e de uma ou outra carruagem que passava na rua. Talvez estivesse em Londres, em Souden House.

Felicity abriu os olhos devagar. A luz da vela era muito fraca para que ela enxergasse em detalhes, mas ela tinha certeza de que nunca havia estado naquele quarto antes. Olhou para a silhueta sentada junto à lareira e parte de sua apreensão desvaneceu.

— Martha. Sua voz saiu um pouco fraca, mas a criada a escutou e levantou-se, aproximando-se

da cama com um sorriso no rosto. — Milady! Estávamos preocupados com a senhora. Felicity franziu a testa e fechou

os olhos. A memória estava voltando. — Ah, sim... Sydney Gardens.— Ela ergueu o braço devagar até a nuca. — Alguém

me golpeou na cabeça? — Não, senhora, milorde disse que a senhora caiu e bateu a cabeça. Ele e o doutor

a trouxeram para cá. — Doutor? — O dr. Thomas, milady. — Martha ajudou-a a se sentar. — Parece que é um dos

mais conceituados em Bath e também é o médico de lady Charlotte. Ele deixou um frasco de láudano, caso queira tomar mais, milady...

— Não, não, obrigada, Martha... Só quero um pouco de água. Felicity se recostou nos travesseiros e tentou pensar. Sentia-se fraca, mas com

exceção do machucado na cabeça, não lhe parecia que houvesse nenhum outro problema. Lembrava-se de olhar para a pistola. Lady Charlotte tinha atirado, isso era certo, mas alguma coisa havia acontecido...

— Onde está lorde Rosthorne? — Não sei lhe dizer, milady. Felicity estendeu as pernas e pôs os pés no chão. — Vou me levantar. — Ah, milady, acho melhor não sair da cama até milorde voltar. — E quando vai ser isso? Martha hesitou.

Page 133: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

133

— Você também não sabe, estou vendo. Vamos, ajude-me a vestir o robe. Felicity ficou feliz em ver que suas pernas estavam firmes. Ela andou até a porta e

viu o valete de Nathan atiçando o fogo na saleta de estar. — Onde está seu patrão? Sam ergueu-se com um sobressalto. — Milady, que surpresa! Pensei que ainda estivesse dormindo. — Não estou — retrucou Felicity, sentindo-se melhor a cada segundo. — Onde está

lorde Rosthorne? — Ele saiu, milady. — Ah. Ele tinha algum compromisso? — Não que eu saiba, milady. — Quando tempo faz que ele saiu? Sam olhou para o relógio. — Há cerca de meia hora. Ele comentou algo sobre um baile em Lower Rooms,

trocou de roupa e saiu. — Um baile? — Felicity se apoiou no encosto de uma cadeira. Por que Nathan iria

para um baile enquanto ela estava na cama, inconsciente? A menos que... — Um baile em Lower Rooms seria freqüentado pelos moradores de Bath, eu suponho?

— Creio que sim — respondeu Sam, pensativo. — Parece que as festas lá são altamente prestigiadas.

Festas. Os dedos de Felicity se enterraram no estofo do espaldar da cadeira. Ele a deixara mergulhada num sono induzido pelo laudano enquanto ia a uma festa! Vagarosamente, ela deu meia-volta e voltou para o quarto, fechando a porta com um estalido.

Bath podia ser considerado um lugar pouco povoado, mas para Nathan, as cerca de 300 pessoas que lotavam os salões, em Lower Rooms, eram gente demais. Era praticamente impossível encontrar alguém no meio daquela multidão. De repente, porém, ele avistou Sir James Souden e abriu caminho entre as pessoas para interceptá-lo.

— E então, Rosthorne... — Sir James parou, sorridente. — Que cara brava é essa? — Pareço bravo? — retorquiu Nathan, com brandura, — Nem percebi. — Ah, está bem — volveu Sir James. — Se bem que não posso culpá-lo. Mantém os

enxeridos a distância. Perdi a conta das pessoas que me perguntaram sobre seu casamento misterioso. O assunto está ficando enfadonho, meu amigo!

— Diga a eles que cuidem da própria vida. — Eu digo, mas eles não param de especular. Você deveria ter trazido sua esposa,

Nathan. Seria a única maneira de calar os comentários. — De fato, ela está aqui em Bath, mas não está bem. Está acamada. Na verdade,

eu queria falar com lady Souden sobre ela... — Ela veio para o tratamento nos banhos? Nós também viemos pelo mesmo motivo,

para que Lydia recuperasse as forças. — Sir James olhou sobre o ombro de Nathan e sorriu. — Ah, aí está minha esposa, e lady Ansell também. Você a conhece, é claro, Rosthorne... Ela me disse que vocês são vizinhos em Hampshire.

Nathan virou-se para ver lady Souden se aproximando, ao lado de Serena. Ele apertou os lábios, contrafeito. Não era sua intenção mencionar Felicity a ninguém mais além de Lydia Souden.

— Vocês dois estão sérios demais — disse Lydia, sorrindo. — Lady Ansell sugeriu que viéssemos remediar isso.

Serena endereçou aos dois cavalheiros um sorriso radiante. — Boa noite, Sir James, lorde Rosthorne. A reação seca de Nathan, que se limitou a inclinar brevemente a cabeça, não surtiu

efeito. O sorriso dela se alargou. — Pretende ma intimidar com essa braveza toda, Sir? Sir James riu. — Era justamente o que eu estava dizendo a Rosthorne neste instante, milady, que

Page 134: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

134

a carranca dele pode assustar as damas. — Eu acho que o conde está há muito tempo sem companhia — murmurou Serena. Nathan fitou os olhos verdes dela e viu neles o convite descarado. — Obrigado, milady, mas eu estou perfeitamente bem! — Como pode alguém ficar perfeitamente bem em um baile se não dança? —

ronronou Serena. Ela deu um passo para mais perto dele e o fitou com as pálpebras semicerradas. — Venha, Nathan... Não quer ser meu parceiro?

— Obrigado, mas hoje não vou dançar. — Imagino que o conde esteja saudoso de sua esposa — interveio lady Souden,

com uma ligeira ruga na testa diante daquele diálogo. — Por que não trouxe Felicity? Antes que Nathan pudesse falar, Serena segurou o braço dele. —Eu achei lady Rosthorne muito tímida — murmurou, lançando a ele um sorriso

conspiratório. — Nós até preferimos que ela não estivesse em Bath, não é, Nathan? Ele observou a expressão desaprovadora de Lydia, enquanto afastava Sir James em

direção à sala de jantar. Droga, Serena estava insinuando que era sua amante! Ele teria de se livrar dela antes de ir falar com Lydia e pedir que fosse visitar Felicity.

Serena virou-se para ele. — Você é muito esquivo, Nathan. Não recebeu minha mensagem? — Sim, mas eu vim para Bath a trabalho, milady. — Mas certamente seu trabalho não vai lhe tomar o dia inteiro. — A voz dela era

suave e sensual. — Se não puder me visitar, eu posso ir ao York House... Nathan olhou para ela, e Serena riu baixinho. — Por que você resiste tanto a mim, meu querido, por quê? Por causa daquela

ratinha que não é uma mulher à sua altura? — Ela deslizou a mão enluvada sobre a aba do paletó de Nathan. — Nós podemos oferecer conforto um ao outro.

Nathan a fitou novamente, perguntando a si próprio por que aqueles traços perfeitos e brilhantes olhos verdes não exerciam nenhum efeito sobre ele. Tudo o que ele queria era um par de cândidos olhos cinzentos sorrindo para ele, como se ele fosse o único homem na face da Terra...

— A condessa de Rosthorne!

Capítulo Dezenove

Nathan ergueu abruptamente a cabeça ao ouvir o anúncio do criado. Ele devia ter

escutado errado, só poderia ser. Um burburinho percorreu o salão, e todos os olhares se voltaram para a porta.

Felicity estava parada no umbral, pálida, porém linda, num vestido de seda rosado, com uma estola dourada nos ombros e os cachos delicados emoldurando o rosto. O coração de Nathan se inflou de orgulho quando o sr. Guynette, o mestre de cerimônias, a escoltou em sua direção.

— Nem tão ratinha assim, milady — murmurou Nathan, desvencilhando-se de Serena.

Ele sorriu quando Felicity se aproximou, altiva, confiante e também sorridente. Bruxinha... Quando foi que ela se transformara numa mulher tão indômita? A expressão de surpresa e encantamento de Nathan animou ainda mais o estado de

Page 135: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

135

espírito de Felicity. Ela era a sua condessa, e ele tinha orgulho dela. Estava estampado nos olhos dele. Ela não era mais a tímida e acanhada Felicity Bourne, que não falava por medo de represálias. Ela era a condessa de Rosthorne!

Felicity atravessou o salão, tentando ignorar o fato de que todas as pessoas ali olhavam para ela e de que suas pernas tremiam. O sr. Guynette estava lhe dizendo alguma coisa, mas ela não ouvia. Toda a sua atenção estava concentrada no marido.

— Milorde, lamento não ter podido vir mais cedo. — Seu olhar se transferiu para Serena Ansell, alta e esplêndida ao lado de Nathan. Felicity respirou fundo e se empertigou ainda mais conforme estendia a mão para ele. — Mas estou aqui agora, Sir, ao seu dispor.

Por um longo momento, pareceu que ninguém respirava no salão, observando a cena que se desenrolava ali diante de todos. Felicity precisou de uma coragem que ignorava ter para ficar ali, com a mão estendida e o olhar fixo em Nathan. E incrivelmente, ela conseguiu não demonstrar, nem por uma fração de segundo, o medo que a consumia de que Nathan a rejeitasse.

E então ela viu o sorriso de Nathan aos poucos se alargar. Ele deu um passo à frente e segurou a mão dela.

— É um imenso prazer, milady. As palavras dele e o olhar que as acompanhou fizeram o coração de Felicity flutuar.

Nathan apoiou a mão dela em seu braço e se afastou com ela. O salão de baile, subitamente libertadodo feitiço, começou a zumbir outra vez com o som de vozes e risos. A orquestra iniciou a próxima música, e tudo voltou ao normal.

Felicity e Nathan foram assediados pelos conhecidos de Rosthorne, que queriam ser apresentados à condessa. Foi depois de quase uma hora que eles conseguiram ficar a sós. Nathan a levou até um nicho isolado, em um dos cômodos da casa e a observou com atenção.

— Você tem certeza de que está bem o bastante para estar aqui? Eu deixei você dormindo profundamente.

— Eu sei disso e fiquei muito aborrecida por você ter saído para uma festa sem mim! Nathan retorceu os lábios. — Eu lhe peço perdão. Eu vim porque queria falar com lady Souden. Você não me

reconheceu quando recobrou os sentidos, e eu achei que se você ainda estivesse confusa quando voltasse a acordar; você se sentira mais à vontade se sua amiga estivesse lá.

— Quanta consideração! — Felicity sorriu e enxugou uma lágrima. — Você é tão bom para mim!

Nathan sorriu também. — Você ainda está muito pálida. Seja sincera: não está sentindo nada, sua cabeça

não dói? — Não, eu estou bem agora. Senti um pouco de tontura logo que acordei, mas já

passou. — Ótimo. Agora me conte, com você veio parar em Bath? — Eu usei sua outra carruagem, milorde... — Sim, mas por que você veio? —.ele insistiu. — Eu vim para ficar com você — respondeu ela, com simplicidade. — Sua mãe e eu

chegamos à conclusão de que eu deveria vir. É claro que, se eu soubesse sobre lady Charlotte, eu não teria ido procurar você em Laura Place.

— Imagine a minha surpresa quando Gerald e eu chegamos lá e eu soube que você tinha saído com ela! Tive medo de não a encontrar a tempo...

— Quando eu compreendi tudo, eu tentei mantê-la distraída. — Felicity estremeceu. — Ela me contou tudo, Nathan. A pobre mulher está perturbada.

— Eu sei. Foi por isso que. Fui até Appleby Manor no dia seguinte ao Natal, para

Page 136: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

136

conversar sobre isso com Gerald, mas ele já tinha planos de trazê-la para Bath. Ele me pediu que viesse junto. Eu escrevi para você ontem, explicando tudo.

— Então sua carta deve estar lá, esperando por mim, quando eu voltar. — Felicity respirou fundo e fitou-o nos olhos. — Eu parei de fugir, Nathan. Quero ser a esposa que você merece, se você me der a chance.

— Se eu lhe der... Ah, meu amor, isso é tudo o que eu sempre quis! — Ele a abraçou. — Na verdade, eu quero beijar você, agora mesmo.

Felicity apertou os dedos de Nathan, sentindo-se aquecida por dentro ao ver a expressão com que ele a fitava.

— Eu também quero muito, mas não aqui... — Não, tem razão. Aqui não. Nathan se recostou, e Felicity viu o brilho se apagar nos olhos dele e a expressão

tornar-se séria. Ela franziu a testa. — Nathan...? O que foi? — Eu estava conversando com Sir James ontem à noite. Há rumores de agitação na

França. Se forem justificados, se Bonaparte resolver... Felicity segurou a mão dele e disse, calmamente: — Se você julgar que é seu dever voltar ao regimento, eu não vou impedi-lo, Nathan.

Apenas me prometa que vai voltar para mim, meu amor. Ele levou a mão dela aos lábios. — Não tenha a menor dúvida quanto a isso! Sabe — ele acrescentou, fitando-a no

fundo dos olhos —, de repente, estou me sentindo exausto. — A mensagem que Felicity Ha nos olhos dele a fez corar até a raiz do cabelo. — Vamos embora?

— Sim — sussurrou ela, sentindo o coração pular enlouquecido. — Se você quiser... Nathan se levantou e estendeu a mão. — Venha, vamos nos despedir. Eles voltaram para o salão de baile, onde uma dança estava em progresso. Felicity

viu lady Ansell e seu parceiro de dança, um rapaz loiro e jovem. A viúva olhou na direção de Felicity e a fuzilou com os olhos por um breve instante. Felicity retribuiu com um olhar altivo e arrogante antes de se virar e seguir Nathan até o outro lado do salão, onde estava Sir James Souden, que os recebeu com um sorriso.

— Já vai embora, Rosthorne? — Foi um dia longo — explicou Nathan. — Por favor, transmita minhas lembranças à

sua esposa. — Lydia vai lamentar não se despedir de vocês. Ela está dançando. — Sir James

balançou a cabeça. — Ela me disse que queria vir a Bath para recuperar as energias, mas não me parece que haja necessidade, uma vez que ela não perde uma dança!

— Eu gostaria de falar com ela — disse Felicity, consciente da mão de Nathan em seu cotovelo. — Mas nós precisamos mesmo ir. Diga a ela que deixei um grande abraço e que falarei com ela amanhã.

Ela se virou para acompanhar Nathan até a saída, mas não tinham dado muitos passos quando Serena Ansell os interceptou.

— Então sua esposinha ainda está pendurada em você — ela zombou. — A própria imagem da harmonia conjugal! Que cena provinciana!

Felicity se retesou. Era lamentável que a música tivesse parado e que as palavras de Serena rompessem o súbito silêncio. Ela ouviu alguém ali perto dar uma risadinha.

— Acha que é tão fora de moda assim um casal demonstrar carinho? — retorquiu Nathan.

— Você nem sempre foi um marido tão dedicado. — Talvez não. — Ele sorriu para Felicity. — Isso foi um erro, e eu admito. Mas

minha esposa e eu já não temos segredos um para o outro. Serena lançou a Nathan um olhar eloqüente.

Page 137: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

137

— Não mesmo, milorde? O significado daquilo era tão transparente que Felicity cerrou as mãos em punhos

involuntariamente. Nathan a puxou para mais perto. — Nenhum, lady Ansell. Nós conversamos sobre tudo. — Ele exibiu um sorriso tão

falso quanto o de Serena e virou-se para sair. — Então eu lhe desejo boa sorte, milorde! — exclamou Serena às costas dele. —

Até sua condessa fugir novamente! Felicity arquejou. Nathan parou e virou-se lentamente para Serena. — Vamos falar claramente, milady — disse ele com frieza. — E permita-me

aproveitar o ensejo para corrigir qualquer mal-entendido que possa ter havido. Nós dois nunca tivemos nada a ver um com o outro. Nunca fomos amantes, eu nunca me deixei impressionar por seu charme tão livremente oferecido, e o fato de você ter sido mulher do meu superior e amante do meu melhor amigo apenas deprecia qualquer consideração que eu poderia ter com relação à sua pessoa. Você tentou, em mais de uma ocasião, induzir minha esposa a acreditar que eu nutria afeição por você. Acredito que tenha interceptado a carta que escrevi a Elliston e a usado para sua própria vantagem antes de a entregar a ele. Mas seus estratagemas falharam, milady. Fico contente por ter a oportunidade, neste momento e neste lugar, de declarar publicamente que nunca fui e nunca serei seu admirador!

Uma expressão de horror e choque substituiu o sorriso de Serena enquanto a voz de Nathan reverberava pelo salão. Outras pessoas riam baixinho agora, mas Felicity as ignorou. Ela estava admirada com a honesta confissão de Nathan, e seu coração se inflou de orgulho ao se dar conta de como deveria ser difícil para seu reservado marido falar tão abertamente.

— Ah, bravo, milorde! — Felicity bateu palmas depois que eles saíram do salão.. — Isso vai render um bom assunto para os fofoqueiros de Bath.

— Receio que não haja possibilidade de reconciliação com lady Ansell. Felicity riu. — Isso é algo de que eu não faço questão nenhuma! — Felicity olhou para trás,

sobre o ombro. — Eu gostaria de ter podido falar com Lydia. Acho que Sir James considerou grosseiro da sua parte me arrastar para fora da festa tão intempestivamente...

— Souden é cavalheiro demais para pensar isso — murmurou Nathan, conduzindo-a para fora da casa. — Eu diria que é mais provável que ele entenda a minha conduta como a de um homem loucamente apaixonado. Felicity parou.

— Ah. E é isso mesmo? — Isso o quê? Felicity sentiu o rosto queimar na penumbra. Uma espécie de nó na garganta

dificultava sua respiração. — Você é um homem apaixonado? Loucamente? — É claro que sim. Tanto que vou beijar você agora mesmo. Aqui na rua. Antes que pudesse protestar, Felicity viu-se envolvida por um abraço esmagador.

Quando, por fim, Nathan ergueu a cabeça, os lábios dela ardiam em conseqüência do beijo sôfrego. Ela ouviu uma tossidela discreta e percebeu que a carruagem do conde estava parada ali ao lado, e o lacaio segurava a porta aberta para eles entrarem.

— Entre logo, criatura, antes que eu perca a cabeça de novo — Nathan brincou. Felicity sentou-se ao lado dele durante o curto percurso até o hotel, de mãos dadas

e com a cabeça apoiada no . ombro forte. — Nathan? — Sim, meu amor? — O que vai acontecer com lady Charlotte? — Gerald vai tomar providências para que ela tenha mais de uma acompanhante

em Appleby Manor.

Page 138: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

138

— E o cavalariço, Harris? — Eu o mandei para minha propriedade perto de Newmarket. Felicity se empertigou. — Mas, Nathan, ele tentou matar você! — Ele é um simplório. É inócuo, desde que fique fora da influência de lady Charlotte.

Ele tem o dom da cura e é muito afeiçoado aos animais. Será útil na fazenda, e vou garantir que esteja sempre vigiado pelos meus homens. Você vai ver, Fee, ele pode ser de grande ajuda na fazenda.

Felicity o fitou, em dúvida. — Se você tem certeza... Ele assentiu. — Eu tenho. — Pobre lady Charlotte — murmurou Felicity. — Você poderia ter me contado.

Quando você se mostrou tão reservado, eu pensei que você suspeitasse de mim... — Essa nunca foi a minha intenção, mas eu não podia contar a ninguém enquanto

não confirmasse a minha suspeita. Eu relutava em admitir para você que a minha tia, uma pessoa com o meu sangue...

— Você achou que eu pensaria mal de você por causa da doença mental de lady Charlotte? Ah, meu amor, eu jamais pensaria isso! — Ela virou-se para abraçá-lo. — O que dizer então do meu tio, que me arrastou até o Norte da Espanha e gastou até o último níquel que tinha, contando que Deus fosse repor!

— Não é o mesmo caso. — Não é muito diferente se você pensar que ele me condenou a uma vida de

missionária sem se preocupar com o que eu queria ou não. — Ela apertou as mãos dele. — É você que eu amo, Nathan, pelo homem que você é: bom, generoso... Eu amo você por sua natureza amorosa, por sua paciência, sua tolerância, quando eu fui tão tola...

Nathan a fez se sentar em seu colo. — Nós dois fomos tontos, meu amor, mas não mais....Não vamos mais deixar que

nenhum segredo sé interponha entre nós. — Não — sussurrou Felicity. — Nenhum. Nathan a abraçou com mais força quando ela correspondeu ao seu beijo. Ela o

inebriava, enchia-o de desejo, e foi com dificuldade que ele resistiu à tentação de despi-la ali mesmo, dentro da carruagem, e deleitar-se com o corpo que ele sabia que se escondia por baixo das roupas.

Com certa relutância, ele se afastou e suspirou pesadamente. — É melhor pararmos enquanto eu ainda consigo. Felicity suspirou também e

aconchegou-se a ele. Com admirável determinação, ele a afastou gentilmente. — Uma carruagem sacolejante não é o lugar mais apropriado para se fazer amor.

De qualquer forma, já estamos chegando.. Felicity ajeitou a estola em volta dos ombros e esperou pacientemente enquanto a

carruagem reduzia a velocidade até parar diante da entrada majestosa do hotel. Nathan saltou, ajudou-a a descer e enlaçou-lhe â cintura para conduzi-la para o interior do edifício.

Sam estava esperando na porta da suíte. — Traga um pouco de conhaque e de vinho. Ou talvez licor para lady Rosthorne, por

favor — pediu Nathan. — Depois está dispensado. Um fogo acolhedor crepitava na lareira da saleta de estar, Nathan tirou a estola de

Felicity e a fez sentar-se a seu lado no sofá. — Pronto — disse ele, depois que ficaram a sós. — Agora me diga o que a fez vir

para Bath. — Sua mãe me mostrou a carta que você escreveu para Adam antes de marchar

para fora de Corunha. Nathan beijou o pescoço dela.

Page 139: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

139

— E o que havia de tão especial nessa carta? — ele quis — saber. Felicity fechou os olhos, adorando a sensação dos lábios dele em sua pele. — Você dizia, nessa carta, que me amava. — Hum. — Você nunca me disse isso. Ele ergueu a cabeça para fitá-la. — Não? — Não até esta noite. E eu não acreditava que fosse possível, até que li a carta. Nathan a puxou para seu colo, cora um farfalhar de seda. — Que descuido da minha parte — murmurou ele, mordiscando-lhe a orelha. —

Porque eu amo você. Com loucura. Felicity passou os braços pelo pescoço dele. — Ah, Nathan, eu fico tão feliz de ouvir isso! Eu... Ele a interrompeu cobrindo-lhe a

boca com um beijo. Felicity sentiu-se derreter, quase desfalecer de amor, alívio e felicidade por estar nos

braços dele. outra vez. Depois de longos segundos, Nathan afastou os lábios, mas manteve Felicity sentada

em seu colo, abraçada a ele, em silêncio. O único som que se ouvia era o crepitar da lenha queimando na lareira.

— Uma coisa — disse Nathan por fim. — Em Hazelford, alguém viu Serena me beijando?

Felicity assentiu. — O sr. Elliston. — Ah! E por isso que ele anda tão distante ultimamente. Ah, Fee, por que você não

me desafiou na ocasião, por que não me deu um tapa na cara? Pensando bem, por que Elliston nunca me acusou?

— P-porque eu pedi a ele que não dissesse nada. — Felicity não se atreveu a encará-lo. — Serena Ansell é tão bonita, tão segura de si... Todos os cavalheiros se sentem atraídos por ela.

— Nem todos, Fee. — Desculpe-me por ter duvidado de você, Nathan — ela sussurrou. Ele a estreitou mais nos braços. — A culpa não é só sua. Se eu tivesse sido mais aberto com você, provavelmente

você não teria acreditado nela com tanta facilidade. Que coisa... Não me admira que você tenha sofrido tanto! Você pensou que eu tivesse instalado minha amante nas vizinhanças? Eu seria um canalha se fizesse isso... Como pôde pensar isso de mim, Fee?

— Desculpe — ela repetiu. — É que, às vezes, é mais forte do que eu, não consigo raciocinar direito.

Nathan beijou-a na testa. — Eu vou garantir que Serena nunca mais a magoará outra vez. Felicity ergueu os olhos para fitá-lo. — Ela não pode mais me magoar, agora que eu sei a verdade. Ah, Nathan, que tola

eu fui por não confiar em você! — Vamos deixar isso tudo para trás, meu amor. Com um movimento ágil, ele se pôs

de pé com ela nos braços e encaminhou-se para a porta. — Aonde você vai? — Levar você para a cama. Felicity deu uma risadinha trêmula e enterrou o rosto no ombro dele. — Nathan! Os criados vão ver... — Que vejam. É tradição na minha família carregar a noiva até a cama. — Ah é? Ele a fitou, com um brilho maroto nos olhos. . — E. A partir de hoje. Felicity não disse mais nada. Nathan a levou até o — quarto, onde a lareira também

Page 140: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

140

estava acesa e algumas velas iluminavam o ambiente. Não havia sinal de Sam, nem de Martha.

— Acho que eles previram que não seriam necessários hoje. — Nathan sorriu e a colocou cuidadosamente em pé no chão. — Agora se vire, que vou tirar sua roupa.

Em meio a beijos sôfregos, eles se despiram, ofegantes. Depois de várias imprecações de Nathan e risinhos de Felicity, finalmente o último pé de meia foi retirado, e Nathan a suspendeu nos braços para deitá-la na cama.

De repente, ambos ficaram imóveis, quase paralisados. Deitada de costas, Felicity olhava para Nathan, para o contorno dele delineado contra a iluminação fraca das velas. Ali, na penumbra, todos os sentidos de Felicity se aguçaram, e ela inspirou o cheiro másculo da pele de Nathan, que se misturava à fragrância das velas aromáticas e ao perfume suave da roupa de cama. Era como se deitar numa pradaria em uma noite de verão.

Ela deslizou a ponta dos dedos pelo corpo de Nathan, desde o pescoço até o umbigo. Uma indescritível sensação de felicidade a invadiu. Era exatamente ali que ela deveria estar, com Nathan, como esposa e companheira dele.

— Pelos céus, você é linda! — exclamou ele, com voz rouca. Ele inclinou a cabeça para beijar o vale entre os seios. Felicity o abraçou, movendo

as mãos pelas costas dele enquanto ele lhe cobria o corpo com beijos delicados. Ela se alongou sob Nathan, inclinando a cabeça para trás, entregando-se às sensações que as carícias dele despertavam. Nathan não se apressou, dedicando atenção a cada área do corpo de Felicity, acariciando e beijando, até que os sentidos dela alçaram voo, e ela começou a se contorcer e a gritar o nome dele, enquanto enterrava as unhas nos ombros largos.

Com um abandono selvagem, ela se entregou a Nathan, consciente da crescente excitação dele, à medida que o clímax se aproximava, incendiando-os de paixão. Felicity sentiu-se como se estivesse escalando as nuvens para o topo do mundo, já não tinha controle sobre nada. Agarrou-se a Nathan, e os dois se moveram em sintonia, cada vez mais rápido, até compartilharem o auge da exultação para, em seguida, desabarem, ofegantes, sobre os lençóis.

Felicity ficou ali, deitada na penumbra, exaurida pela intensidade da sua paixão. Ela deu um suspiro alto e trêmulo, e Nathan se entrelaçou a ela. Logo depois, no refúgio seguro dos braços dele, ela adormeceu.

A primeira coisa que Nathan fez ao acordar, antes mesmo de abrir os olhos, foi

estender o braço na direção de Felicity. Ela não estava na cama. Ele ergueu a cabeça, surpreso, e olhou ao redor. Sua apreensão inicial desapareceu quando ele a viu de pé, olhando na janela.

Ainda estava escuro, mas o luar que banhava o quarto através da vidraça atravessava o tecido fino da camisola, delineando cada curva do corpo de Felicity. O desejo voltou a se manifestar no mesmo instante.

Como se pressentisse que estava sendo observada, ela se virou. — Fee? Algum problema? Felicity se aproximou da cama, e Nathan se sentou. — O que foi, meu amor? Ela ignorou a mão estendida dele. — Nós combinamos que não haveria mais segredos, Nathan. Ele ficou imediatamente em alerta. Teve de se esforçar para falar com naturalidade. — Há alguma coisa que você queira me dizer? Felicity assentiu. — Eu vou ter um bebê. A princípio, Nathan achou que tivesse entendido mal. Logo em seguida, porém,

Page 141: Sarah mallory - fragmentos da paixão

Harlequin Histórico 105 – Fragmentos da paixão – Sarah Mallory

141

pulou para fora da cama. — Verdade? — Ele segurou as mãos dela. Mesmo no escuro, Felicity sabia que ele estava

sorrindo. — Verdade — murmurou, um pouco trêmula. — Eu já desconfiava fazia algum

tempo, mas agora tenho certeza. Nathan não se conteve. Deu um grito de alegria e ergueu Felicity nos braços,,

rodopiando e beijando-a sem parar. Então, tão de repente como começara, ele a pôs no. chão novamente.

— Eu não deveria ter feito isso. Você precisa se deitar, repousar... — Não, não. — Ela riu. — Eu estou ótima, juro. — Mas da outra vez... — lembrou Nathan, acrescentando, decidido: —Você precisa

consultar um médico. — É o que eu vou fazer, assim que voltarmos para Rosthorne Hall. — A voz de

Felicity suavizou quando ela percebeu a extensão da preocupação de Nathan. — Bem, já que estamos em Bath, não custa eu fazer um tratamento de banhos. Dizem que é muito eficaz.

— Talvez seja uma boa idéia. — Nathan a beijou, envolvendo-a nos braços e puxando-a para si. — Ouça...

Ele levantou a cabeça. Lá fora, os sinos da igreja começavam a repicar. — É o primeiro dia do ano novo, meu amor. Felicity encostou a cabeça no peito dele. — O primeiro dia da nossa nova vida, Nathan.

Epílogo

Anúncios: morning Post e St.James's Chronide: 25 de julho de 1815: NASCIMENTO

Na última segunda-feira, a condessa de Rosthorne deu à luz ao filho e herdeiro, na residência do conde em Hampshire. Lorde Rosthorne, herói da Batalha de Waterloo, regressou à Inglaterra duas semanas antes do nascimento. Mãe e filho passam bem.