o discurso secreto_tom rob smith

Upload: dora-reis

Post on 07-Jul-2015

984 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O DISCURSO SECRETO TOM ROB SMITH

1

UNIO SOVITICA MOSCOVO 3 de Junho de 1949

Durante a Grande Guerra Patritica, tinha demolido a ponte de Kalach em defesa de Estalinegrado, armadilhado fbricas com dinamite, reduzindo-as a escombros e ateado fogo a refinarias indefensveis, enxadrezando os contornos do horizonte com colunas de leo ardente, com pressa de destruir tudo o que pudesse ser requisitado pelos invasores da Wehrmacht. Ao passo que os seus compatriotas choravam vendo as suas cidades natais desmoronarem-se sua volta, ele sobrevivera devastao com um sorriso de gozo nos lbios. O inimigo podia conquistar um territrio devastado, uma terra queimada e um cu repleto de fumo. Improvisando amide com quaisquer materiais que estivessem mo lana-granadas, garrafas de vidro, transvasando gasleo de camies militares abandonados e capotados ganhara a reputao de ser um homem de Estado no qual se podia confiar. Nunca perdera a calma, nunca cometera um erro, mesmo quando operava em condies extremas: noites glidas de Inverno, com gua pela cintura em rios de guas rpidas, a sua posio a ser atacada por fogo inimigo. Para um homem com a sua experincia e temperamento, a tarefa de hoje devia ser rotineira. No havia urgncia, nenhuma bala a assobiar-lhe por cima da cabea. E, porm, as suas mos, reconhecidas como as mais firmes do ofcio, tremiam. Gotas de suor rolaram-lhe para os olhos, obrigando-o a enxuglos com a ponta da camisa. Sentia-se agoniado, como se fosse de novo um novio, pois esta era a primeira vez que o quinquagenrio heri de guerra, Jekabs Duvakin, fazia explodir uma igreja. Era preciso colocar mais uma carga de explosivos, mesmo sua frente, no local onde anteriormente se erguia o altar. O trono do bispo, os bancos, os santos, os menalia tudo fora levado. At a folha de ouro tinha sido raspada das paredes. A igreja estava vazia com excepo da dinamite enterrada nas fundaes e atada aos pilares. Apesar de profanado, pilhado e saqueado, continuava a ser um espao amplo e impressionante. A abboda central, encastoada com uma coroa de vitrais coloridos, era to alta e to repleta de luz, que parecia fazer parte do cu. De cabea arqueada para trs, boca aberta, Jekabs admirou o cimo da abboda, cinquenta metros acima dele. Raios de luz penetravam nas janelas altas, iluminando as pinturas a fresco, que em breve deveriam ser detonadas, reduzidas s suas partes constituintes: um milho de gros

2

de tinta. A luz espalhou-se pelo pavimento liso de pedra, no muito longe de onde estava sentado, como se tentasse alcan-lo, a palma de uma mo dourada estendida. Murmurou: No h deus. Tornou a repeti-lo, desta vez mais alto, as palavras a ecoarem no interior da cpula: No h deus! Era um dia de Vero; era evidente que havia luz. No era um sinal de coisa nenhuma. No era algo divino. A luz no tinha qualquer significado. Estava a pensar demais, esse era o problema. Ele nem sequer acreditava em Deus. Tentou recordar-se de um dos muitos slogans anti-religiosos do Estado: A Religio faz parte de uma poca em que cada um era para si E Deus era para cada um. Ele no estava a destruir uma igreja: estava a criar um futuro melhor. Aquele edifcio no era sagrado ou abenoado. Devia v-lo como nada mais do que pedra, vidro e madeira dimenses: cem metros de comprido e sessenta de largo. Sem produzir nada, sem servir nenhuma funo quantificvel, a igreja no passava de uma estrutura arcaica erigida por razes arcaicas por uma sociedade que j no existia. Jekabs recostou-se, correndo com a mo ao longo do cho de pedra fria, polido pelos ps de muitas centenas de milhares de fiis que ali tinham ouvido as missas durante muitas centenas de anos. Impressionado pela magnitude do que estava prestes a fazer, comeou a engasgar-se como se tivesse deveras qualquer coisa presa na garganta. A impresso passou. Estava cansado e trabalhara em demasia, nada mais. Normalmente, num projecto de demolio daquela escala, seria assistido por uma equipa, o trabalho seria repartido. Naquele caso, decidira que os seus homens podiam desempenhar um papel secundrio. No havia necessidade de dividir aquela responsabilidade, os colegas no precisavam de ser envolvidos desnecessariamente. Nem todos eram detentores de um pensamento claro como ele. Nem todos se tinham expurgado de sentimentos religiosos. No queria homens com uma motivao conflitual a trabalhar a seu lado. Trabalhara cinco dias a fio, do sol nascer ao sol-pr, posicionando todos os explosivos de forma estratgica para garantir que a estrutura se desmoronava para dentro, e as cpulas caam ordenadamente no topo umas das outras. Longe de ser uma demolio catica, havia ordem e preciso no seu ofcio, e ele sentia orgulho desta sua habilidade especial. representava um desafio nico. Aquele edifcio No se tratava de uma questo moral, mas de um teste

3

intelectual. Com uma torre do sino e cinco cpulas douradas, cuja maior de todas era sustentada por um tabernculo de oitenta metros de altura, a demolio controlada e bem-sucedida daquele dia constituiria um desfecho adequado sua carreira. pagamento por um trabalho que mais ningum queria fazer. Abanou a cabea. No devia estar ali. No devia estar a fazer aquilo. Devia ter fingido que estava doente. Devia ter obrigado outra pessoa a colocar a ltima carga de explosivos. Aquilo no era trabalho para um heri. Porm, os perigos de se esquivar ao trabalho eram muito maiores, muito mais reais do que quaisquer ideias supersticiosas de que aquele trabalho pudesse estar amaldioado. Tinha uma famlia a proteger a mulher, a filha e amava-a muito. # Lazar encontrava-se entre a multido, afastado do permetro da Igreja de Sancta Sophia a uma distncia de segurana de cem metros, e a sua solenidade contrastava com o entusiasmo e a tagarelice daqueles sua volta. Concluiu que era o tipo de multido que teria assistido a uma execuo pblica, no por uma questo de princpio, mas apenas pelo espectculo, apenas para estar entretida com qualquer coisa. Havia uma atmosfera festiva, as conversas efervesciam de expectativa. As crianas balouavam-se nos ombros dos pais, esperando impacientemente que acontecesse alguma coisa. entretenimento. Na frente da barricada, sobre um pdio construdo a propsito para proporcionar elevao, uma equipa de filmagens estava atarefada a montar trips e cmaras, discutindo quais os melhores ngulos para captar a demolio. Prestavam especial ateno a acautelar que apanhavam todas as cinco abbadas e havia uma sria especulao sobre se estas se iriam despedaar no ar quando colidissem umas nas outras, ou s quanto embatessem no solo. Dependeria, arrazoaram, da percia dos especialistas que estavam a colocar a dinamite no interior. Lazar questionou-se se poderia haver tambm tristeza entre a multido. Olhou para a esquerda e para a direita, procurando almas com um pensamento idntico ao seu o casal ao fundo, ambos em silncio, rostos exauridos de cor; a anci l atrs, de mo no bolso. Escondia qualquer coisa no seu interior, um crucifixo talvez. Lazar queria dividir aquela multido, separar os que sofriam dos que se compraziam. Queria ficar ao lado daqueles que davam valor ao que estava prestes a ser perdido: uma igreja de trezentos anos. Baptizada e desenhada semelhana da Catedral de Sancta Sophia em Gorky, sobrevivera a guerras civis e a guerras mundiais. Os A igreja no lhes bastava: tinha de desmoronar para seu Depois daquele trabalho, fora-lhe prometida uma reforma antecipada. Falara-se at de receber a Ordem de Lenine, como forma de

4

recentes estragos causados por bombardeamentos eram uma razo para preserv-la, no para destrui-la. Lazar lera, com desprezo, o artigo publicado no Pravda, que alegava instabilidade da estrutura no passava de um pretexto, uma mo cheia de falsa lgica para tornar aquele feito aceitvel. O Estado ordenara a destruio da igreja e o que era pior, muito pior, a ordem tinha sido dada com o acordo da Igreja Ortodoxa. Ambas as partes envolvidas naquele crime alegavam que aquela se tratava de uma deciso pragmtica, no ideolgica. Tinham enumerado uma srie de factores concorrentes para a deciso: estragos causados pelos raides da Luftwaffe; o interior precisava de renovaes complexas, que no se podia pagar; alm do mais, a terra no corao da cidade era necessria para um projecto de construo de vital importncia. Toda a gente no poder estava de acordo com a resoluo. Aquela igreja, que no era com certeza uma das mais belas de Moscovo, devia ser deitada abaixo. Por detrs do vergonhoso acordo ocultava-se a cobardia. As autoridades eclesisticas, depois de terem aliado todas as congregaes a Estaline durante a guerra, eram agora um instrumento de Estado, um departamento do Kremlin. Aquela demolio era uma mostra de subjugao. Faziam-na ir pelos ares pura e simplesmente para provar a sua humildade: um acto srdido de automutilao para afirmar que a religio era inofensiva, dcil, domesticada. J no precisava de ser perseguida. Lazar compreendeu a poltica do sacrifcio: no seria melhor perder s uma igreja do que perd-las todas? Em jovem testemunhara seminrios serem transformados em casernas de operrios, igrejas convertidas em centros de exibio anti-religio. Os cones eram usados como lenha, os padres postos na priso, torturados e executados. Contnua perseguio ou subservincia irreflectida: fora essa a escolha. # Jekabs ouvia o barulho da multido reunida l fora, o alarido enquanto esperavam que o espectculo comeasse. Era tarde. J devia ter terminado. Porm, nos ltimos cinco minutos permanecera imvel, de olhos postos na ltima carga, sem fazer nada. Atrs dele, ouviu o ranger da porta. Lanou um olhar por cima do ombro. Era o seu colega e amigo, parado na soleira da porta, como se temesse entrar. Chamou, a sua voz repercutiu-se no interior: Jekabs! O que que se passa? Jekabs respondeu: Nada. Estou quase pronto. O amigo hesitou antes de acrescentar um comentrio, adocicando a voz:

5

Vamos beber uns copos logo noite, ns os dois, para celebrar a tua reforma? Amanh acordas com uma terrvel dor de cabea, mas noite j te sentes muito melhor. Jekabs sorriu tentativa de consolo do amigo: a culpa no seria pior do que uma ressaca; passaria. D-me cinco minutos. Dito isto, o amigo deixou-o a ss. Ajoelhou-se numa imitao burlesca de uma prece e, a escorrer em suor, de dedos escorregadios, limpou o rosto o que, porm, no fez grande diferena: a camisa estava ensopada e no o podia absorver. Acabaria o trabalho! E nunca mais teria de trabalhar na vida. No dia seguinte ia levar a filha mais pequena a passear beira do rio. No dia seguinte, ia comprar-lhe qualquer coisa, v-la sorrir. No final da semana seguinte, j se teria esquecido daquela igreja, daquelas cinco abbadas douradas e da sensao do cho de pedra frio ao toque. Agarrou rapidamente na espoleta e agachou-se para a dinamite. # Os vidros foram catapultados em toda a volta da igreja, todas as janelas de todos os pisos se estilhaaram em simultneo, enchendo o ar de fragmentos coloridos. A parede traseira deixou de ser uma massa slida para se converter numa nuvem de p que tudo devorava. Pedaos de pedra desiguais voaram num arco pelos ares, caindo depois com estrondo no solo, carcomendo a relva, resvalando em direco multido. A frgil barreira no oferecia qualquer proteco e foi derrubada com um som estridente. esquerda e direita de Lazar, as pessoas comearam a cair, atingidas nas pernas. As crianas agarravam-se aos rostos, cortados pelos fragmentos sibilantes de pedra e vidro. Como se fosse uma nica entidade, um grande cardume, a multido comeou a dispersar em unssono, agachada, escondendo-se atrs uns dos outros, temendo o bombardeamento de mais destroos. Ningum estava espera que acontecesse alguma coisa ainda; muitos nem estavam a olhar na direco certa. As cmaras de filmar no estavam ainda instaladas. Havia trabalhadores no permetro da exploso, um permetro mal estimado ou uma exploso mal calculada. Lazar ali estava de p, os ouvidos a retinir, de olhos fixos na nuvem de p, espera que esta assentasse. medida que a nuvem se rarefez, revelou um buraco na parede do dobro da altura de um homem e igualmente largo. Era como se um gigante tivesse acidentalmente enfiado a ponta da sua bota na igreja, retirando depois o p em constrangimento, poupando o resto do

6

edifcio. Lazar levantou os olhos para as abbadas douradas. Toda a gente sua volta seguiu o exemplo, uma s questo na mente de todos eles: iriam as torres cair? Pelo canto do olho, Lazar conseguia ver a equipa de filmagens numa azfama para ligar as cmaras, a limpar o p das lentes, abandonando os trips, num desespero desenfreado para capturar as imagens. Se perdessem o colapso, fosse qual fosse a desculpa, as suas vidas estariam em risco. Apesar do perigo, nenhum deles fugiu; ficaram parados no mesmo stio, procura do mais pequeno movimento: um pendor, um abano, uma trepidao. Por um instante, parecia que at os feridos tinham feito silncio na expectativa. As cinco abbadas no caram, distantes do insignificante caos do mundo em baixo. Enquanto a igreja permaneceu de p, muita gente na multido sangrava, estava ferida, chorava. To certo como o cu acima se encobrir, Lazar sentiu uma mudana de humor. Emergiram dvidas. Teria algum poder sobrenatural intervindo para impedir aquele crime? Os espectadores comearam a afastar-se, alguns lentamente, outros juntaram-se-lhes, mais e mais, afastando-se com passo apressado. Ningum queria continuar a assistir. Lazar debateu-se para conter uma gargalhada. A multido cara, ao passo que a igreja sobrevivera! Voltou-se para o casal, na esperana de partilhar com eles aquele momento. O homem que se encontrava atrs de Lazar estava to prximo que quase se tocavam. Lazar no o ouvira aproximar-se. Ele sorria, mas os seus olhos eram frios. No usava uniforme nem mostrou o seu carto de identidade. Contudo, no havia dvida de que era da Segurana do Estado, um oficial da polcia paisana, um agente do MGB uma deduo que podia ser feita no a partir do que estava presente na sua aparncia, mas do que estava ausente. sua direita e esquerda encontravam-se pessoas feridas. Todavia, aquele homem no tinha interesse neles. Fora plantado na multido para vigiar a reaco das pessoas. E Lazar falhara: estivera triste quando devia ter estado contente, e contente quando devia ter estado triste. O homem falou por entre um sorriso fino, sem nunca desviar os seus olhos mortios de Lazar: Um pequeno revs, um acidente, resolve-se facilmente. Devia ficar: talvez ainda acontea hoje, a demolio. Quer ficar, no quer? espectculo tremendo. Sim. Uma resposta cautelosa e tambm a verdade, ele queria de facto ficar, mas no, ele no queria ver a igreja cair e certamente no diria que sim. O homem prosseguiu: Quer ver a igreja cair? Vai ser um

7

Neste local ir situar-se uma das maiores piscinas cobertas do mundo. Para que as nossas crianas cresam saudveis. bom as nossas crianas serem saudveis. Qual o seu nome? A mais comum das perguntas e, porm, a mais aterradora: O meu nome Lazar. Qual a sua ocupao? Aquele dilogo deixara de estar sob o disfarce de uma conversa casual e passara a ser um interrogatrio aberto. Subjugao ou perseguio, ser pragmtico ou reger-se por princpios: Lazar tinha de escolher. E ele tinha de facto uma escolha, ao contrrio de muitos dos seus confrades, que eram instantaneamente reconhecveis. Ele no tinha de admitir que era um padre. Vladimir Lvov, antigo Procurador-Geral do Sagrado Snodo, defendera que os padres no tinham de se diferenciar dos outros pela suas vestes e que podiam despir as suas sotainas, cortar o cabelo e transfigurarem-se em comuns mortais. Lazar concordava. De barba aparada e trivial aparncia, ele podia mentir quele agente. Podia negar a sua vocao e esperar que a mentira o protegesse. Trabalhava numa fbrica de sapatos ou fazia mesas tudo menos a verdade. O agente esperava de rosto apreensivo pela suspeita. Lazar teve de escolher.

8

No mesmo dia

Nas primeiras semanas, Anisya no se preocupara muito com o assunto. Maxim tinha apenas vinte e quatro anos. Graduara-se no Seminrio Acadmico Teolgico de Moscovo, encerrado desde 1918 e recentemente reaberto como parte do esforo para a reabilitao das instituies religiosas. Ela era seis anos mais velha do que ele, casada, inatingvel, uma perspectiva tentadora para um jovem que ela julgava ter pouca, ou mesmo nenhuma experincia sexual. Introspectivo e tmido, Maxim no se dava com ningum fora da igreja e tinha poucos amigos ou famlia, ou pelo menos nenhum deles vivia na cidade. No era de surpreender, pois, que tivesse desenvolvido qualquer tipo de sentimento a partir de um arrebatamento. Ela tolerara os seus olhares demorados, sentindo-se talvez at lisonjeada por eles. Porm, de forma alguma o havia encorajado. Ele compreendera mal o seu silncio, considerando-o como uma permisso para continuar a cortej-la. Era por essa razo que ele agora lhe segurava na mo e dizia: Deixa-o. Vem viver comigo. Estava convencida de que ele jamais teria coragem de tomar uma atitude com base no que poderia ser apenas um devaneio vo e pueril: os dois fugirem juntos. Porm, enganara-se. Extraordinariamente, ele escolhera aquele lugar para atravessar a fronteira da fantasia privada para uma proposta aberta: encontravam-se de p no interior da igreja do marido, com as pinturas a fresco dos discpulos, demnios, profetas e anjos julgando os seus movimentos ilcitos das alcovas sombrias. Maxim arriscava tudo para o que estudara, enfrentando a desgraa certa e o exlio da comunidade religiosa, sem esperana de redeno. O seu pedido srio e sincero era to errado e absurdo que ela no pde se no reagir da pior forma possvel. Soltou uma risada curta, surpreendida. Antes que ele tivesse tempo de responder, a pesada porta de carvalho fechou-se com um baque. Anisya voltou-se, assombrada, dando de caras com o marido Lazar que se aproximava deles com passo apressado, numa urgncia tal que s podia supor que ele interpretara aquela cena como uma prova da sua infidelidade. Afastou-se de Maxim, num movimento brusco que apenas aumentava a impresso de culpa. medida que ele se aproximava, porm, compreendeu que Lazar, o homem com quem estava casada h dez anos, parecia preocupado com qualquer outra coisa. Lanava olhares para a porta atrs dele. Ofegante, como se tivesse vindo a

9

correr, pegou nas suas mos, mos essas que apenas poucos segundos antes tinham sido seguradas por Maxim: Fui identificado na multido. Um agente questionou-me. Lazar falou depressa, as palavras saram-lhe atabalhoadamente, e a sua importncia relegou para segundo plano a proposta de Maxim. Ela perguntou: Foste seguido? Confirmou com um gesto de cabea: Refugiei-me no apartamento de Natasha Niurina. O que aconteceu? Ele ficou l fora. Fui obrigado a sair pelas traseiras. Iro prender Natasha e question-la? Lazar levou as mos ao rosto: Entrei em pnico. No sabia para onde mais ir. No deveria ter ido para casa dela. Anisya agarrou-o pelos ombros: Se a nica forma de nos encontrarem prendendo Natasha, temos algum tempo. Lazar abanou a cabea: J lhe disse o meu nome. Ela compreendeu: no podia mentir. No comprometeria os seus princpios, nem por ela nem por ningum. Os princpios eram mais importantes do que as suas vidas. A verdade que no devia ter ido assistir demolio: avisara-o de que era um risco desnecessrio. A multido iria inevitavelmente ser vigiada e ele seria um espectador fcil de identificar. Ele ignorara-a, como era seu costume, parecendo sempre que ouvia os seus conselhos, mas sem nunca lhes prestar devida ateno. No lhe tinha ela pedido que no alienasse as autoridades eclesisticas? A posio deles era to forte que se podiam dar ao luxo de fazer inimigos tanto no Estado como na Igreja? Mas ele no tinha interesse nas polticas da aliana: queria to-somente dizer a sua opinio, ainda que esta o deixasse isolado, por criticar abertamente a nova relao entre bispos e polticos. Teimoso, obstinado, exigia que ela apoiasse a sua posio, sem que a sua opinio contasse. Ela admirava-o, era um homem ntegro. Mas ele no a admirava a ela. Era muito mais nova do que ele e tinha apenas vinte anos quando se casaram. Ele tinha trinta e cinco. Por vezes chegara a questionar-se se ele se teria casado com ela porque por ser um Padre Branco, um padre casado, que fizera um voto monstico, essa era em si uma declarao reformista. O conceito eralhe apelativo, adequava-se ao seu esquema filosfico liberal. Ela estivera sempre preparada para o momento em que o Estado se iria atravessar nas suas vidas. Porm, agora que esse momento

10

chegara, sentia-se defraudada. Estava a pagar pelas opinies dele, opinies essas para as quais nunca contribuira e que nunca tivera permisso para influenciar. Lazar colocou uma mo no ombro de Maxim. O melhor regressares ao Seminrio e denunciar-nos. Uma vez que vamos ser presos, a denncia serviria apenas para te distanciares de ns. Maxim, tu ainda s um jovem. Ningum ir pensar mal de ti por partires. Vinda de Lazar, aquela oferta de fuga era uma proposta armada. Lazar considerava esse tipo de comportamento pragmtico abaixo de si, adequado para os outros, homens e mulheres mais fracos. A sua superioridade moral era sufocante. Longe de oferecer uma sada a Maxim, estava a encurral-lo. Anisya atalhou, tentando manter um tom de voz amigvel: Maxim, tens de partir. Ele reagiu, rispidamente: Quero ficar. Melindrado pela anterior risada, mostrava-se inflexvel e indignado. Falando num duplo sentido invisvel para o marido, disse-lhe: Por favor Maxim, esquece tudo o que aconteceu, no irs ganhar nada em ficar. Maxim abanou a cabea: J tomei a minha deciso. Anisya notou o sorriso de Lazar. No havia dvida de que o marido gostava de Maxim. Tomara-o sob a sua proteco, cego paixo do seu protegido por ela, alerta apenas s deficincias do seu conhecimento das escrituras e da filosofia. Parecia estar satisfeito com a deciso de Maxim em ficar, acreditando que tinha alguma coisa a ver com ele. aproximou-se mais de Lazar: No podemos deixar que ele arrisque a sua vida. No podemos obrig-lo a partir. Lazar, esta luta no dele. E no era tambm a sua. Ele f-la dele. Eu respeito isso. E tu tambm deves respeitar. um absurdo! Moldando Maxim a partir de si prprio, um mrtir, o seu marido escolhera humilh-la e conden-lo. Lazar exclamou: Basta! No temos tempo! Queres que ele esteja seguro. Maxim quer ficar, fica. Eu tambm. Mas se Anisya

11

# Lazar encaminhou-se apressadamente para o altar de pedra, despojando-o

precipitadamente. Todas as pessoas ligadas quela igreja corriam perigo. No podia fazer muito pela sua mulher ou Maxim: tinham uma ligao muito prxima a ele. A sua congregao, porm, as pessoas que se confidenciavam a ele, que compartilhavam os seus medos, era essencial que os seus nomes se mantivessem em segredo. Com o altar despido, Lazar agarrou num dos lados: Empurra! No muito sbio, mas obediente, Maxim empurrou o altar, retesando-se com o peso. A spera base de pedra resvalou ruidosamente pelo cho, deslizando devagar para o lado e revelando um buraco, um esconderijo criado cerca de vinte anos antes, durante os ataques mais intensos igreja. As lajes de pedra tinham sido retiradas, expondo a terra que fora cuidadosamente escavada e aprumada com suportes de madeira para a impedir de aluir, criando um espao de um metro de profundidade e dois de largo. Continha uma arca de metal. Lazar debruou-se para a cova e Maxim fez o mesmo, segurando na outra ponta da arca e levantando-a, colocando-a depois no cho, pronta para ser aberta. Anisya levantou a tampa. Maxim agachou-se a seu lado, incapaz de suprimir o espanto da sua voz: Msica? A arca estava repleta de partituras escritas mo. Lazar explicou: O compositor costumava vir aqui missa, era um jovem, no muito mais velho do que tu, estudava no Conservatrio de Moscovo. Procurou-nos uma noite, aterrorizado porque estava prestes a ser preso. Porqu? No sei. Creio que ele tambm no sabia. No tinha um lugar para onde se virar, no tinha famlia ou amigos em quem pudesse confiar. Por isso, procurou-nos. Concordmos em ficar na posse do trabalho que fez em vida. Pouco tempo depois, desapareceu. Maxim olhou para as notas: A msica boa? No ouvimos toc-la. No nos atrevemos a mostrar a ningum, ou a pedir que a toquem para ns. Podem fazer perguntas. No fazes ideia de como soa? Temendo que o seu trabalho fosse destrudo, confiou-nos as suas composies. Grande parte do seu trabalho fora condenado como anti-sovitico.

12

No sei ler msica. E a minha mulher tambm no. Mas, Maxim, no ests a compreender a questo. A minha promessa de ajuda no dependia dos mritos do seu trabalho. Esto a arriscar as vossas vidas? Se no tiver valor Lazar corrigiu-o: Estamos a proteger estes papis; estamos a proteger o seu direito a sobreviver. Anisya achou a segurana do marido exasperante. O jovem compositor em questo tinha-a procurado a ela, no a ele. Ela falara depois com Lazar e convencera-o a aceitar a msica. No recontar da histria, suavizara as suas dvidas e ansiedades, reduzindo-a a uma simples apoiante passiva. Perguntou-se se ele estaria sequer consciente dos ajustes que fizera histria, enaltecendo automaticamente a importncia do seu papel, recentrando a histria em torno de si prprio. Lazar tomou a inteira coleco de folhas de msica soltas, cerca de duzentas pginas no total. Entre as partituras encontravam-se alguns documentos relativos ao negcio da igreja e vrios cones originais que tinham sido escondidos e substitudos por rplicas. Dividiu apressadamente o contedo da arca em trs pilhas, verificando com a mxima acuidade que lhe foi possvel que as partituras se mantinham juntas. O plano era transport-las dali para fora clandestinamente, mais ou menos em partes iguais. Divididas em trs, havia uma probabilidade razovel de que a msica sobrevivesse. A maior dificuldade era arranjar trs esconderijos distintos, trs pessoas que estivessem dispostas a sacrificar as suas vidas em prol de notas escritas numa pgina, sem nunca terem conhecido o compositor ou ouvido a sua msica. Lazar conhecia muitos na sua parquia que poderiam ajudar. Muitos deles estariam provavelmente sob algum tipo de suspeita. Para aquela tarefa precisavam da ajuda de um Soviete perfeito, de algum cujo apartamento nunca fosse ser revistado. Tal pessoa, a existir, nunca os ajudaria. Anisya atirou sugestes: Martemian Syrtsov. Fala demais. Artiom Nakhaev. Ele concordaria, levaria os papis e depois entraria em pnico, perderia a coragem e queim-los-ia. Niura Dmitrieva. Ela aceitaria, mas depois iria odiar-nos por lho termos pedido. No iria conseguir dormir, nem comer. No final, dois nomes: foi tudo em que conseguiram concordar. Lazar decidiu guardar parte da msica escondida na igreja, junto com os cones maiores, tornando a deposit-los na arca

13

e empurrando o altar para o seu lugar. Como Lazar tinha maiores probabilidades de ser seguido, cabia a Anisya e Maxim transportar parte da msica at s duas moradas. Sairiam em separado. Anisya estava pronta: Eu vou primeiro. Maxim abanou a cabea: No. Eu irei primeiro. Ela adivinhou a razo por que se oferecera: se Maxim conseguisse escapar, haveria hiptese de ela tambm o conseguir. Abriram a porta principal, levantando a grossa travessa de madeira. Anisya sentiu Maxim hesitar, indubitavelmente temeroso, comeava a interiorizar os perigos que enfrentava. Lazar apertou-lhe a mo. Maxim deitou-lhe um olhar por cima do ombro do marido. Quando Lazar terminou, Maxim aproximou-se dela. Boa sorte, Maxim. Abraou-o e viu-o entrar na noite. Lazar fechou a porta, trancando-a atrs dele, reiterando o plano: Esperamos dez minutos. Sozinha com o marido, sentou-se num banco prximo da dianteira da igreja. Ele juntouse-lhe. Para sua surpresa, em vez de rezar, ele segurou-lhe na mo. # Dez minutos depois, aproximaram-se da porta. Lazar ergueu a travessa de madeira. Os papis encontravam-se num saco, que ela levava a tiracolo. Anisya saiu para a rua. J se haviam despedido. Ela voltou-se, observando em silncio Lazar fechar a porta atrs de si. Ouviu a travessa de madeira assentar no lugar. Depois comeou a caminhar em direco rua, vigiando os rostos s janelas, os movimentos nas trevas. Uma mo segurou-lhe o pulso. Assombrada, deu meia volta. Era Maxim. Maxim? Que faria ele ali? Onde estava a msica que transportava consigo? Das traseiras da igreja uma voz, severa e impaciente, chamou: Leo? Anisya avistou um homem envergando um uniforme escuro: um agente MGB. Havia mais homens atrs dele, apinhados como baratas. As suas questes dissiparam-se, concentrando-

14

se no nome que ouvira chamar: Leo. Com o puxo de uma simples palavra o novelo de mentiras deslindou-se. Era por isso que ele no tinha amigos ou famlia na cidade, era por isso que ele estava to calado nas lies com Lazar: ele nada sabia acerca de escrituras ou filosofia. Fora por isso que quisera sair da igreja primeiro, no para proteg-la mas para alertar a vigilncia, para reunir a sua equipa, para preparar a priso deles. Ele era um Chekist, um oficial da polcia secreta. Enganara-a a ela e ao marido. Infiltrara-se nas suas vidas com o propsito de reunir tanta informao quanto possvel, no apenas sobre eles, mas tambm sobre as pessoas que com eles simpatizavam, desferindo um golpe contra os restantes ncleos de resistncia no interior da Igreja. Tentar seduzi-la fora um objectivo ditado pelos seus superiores? T-la-iam identificado como um alvo fraco, fcil de enganar, instruindo depois aquele belo oficial a criar uma persona Maxim para manipul-la? Falou com voz branda, intimista, como se nada houvesse mudado entre ambos: Anisya, dei-te mais do que uma oportunidade. Vem comigo. Fiz alguns acordos. Eles no esto interessados em ti. Esto atrs de Lazar. O timbre da sua voz, carinhoso e preocupado, era aterrador. A oferta que lhe fizera anteriormente, para fugir com ele, no fora uma fantasia ingnua. No fora romntico. Fora o calculismo frio de um agente. Prosseguiu: Segue o conselho que me deste e denuncia Lazar. Posso mentir por ti. Posso proteger-te. a ele que eles querem. No vais ganhar nada com manter-te fiel. Peo-te, por favor. # Leo estava a ficar sem tempo. Ela tinha de compreender que ele era a sua nica hiptese de sobrevivncia, independentemente do que pensasse dele. No ganharia nada em agarrar-se aos seus princpios. O seu oficial superior, Nikolai Borisov, encaminhou-se para eles. Com quarenta anos, possua o corpo de um halterofilista envelhecido, ainda forte, muito embora desleixado com o excesso de bebida: Ela est a cooperar? Leo estendeu a mo, os seus olhos suplicando que lhe entregasse o saco. Por favor? Em resposta, ela gritou to alto quanto conseguiu: Lazar!

15

Nikolai avanou um passo, esbofeteando-a com as costas da mo. Gritou aos seus homens: Vo! Os machados comearam a cravar-se na porta da igreja. Leo viu dio no rosto de Anisya. Nikolai arrancou-lhe o saco com um puxo. Ele tentou salv-la, cabra mal agradecida. Ela inclinou-se para diante, sussurrando ao ouvido de Leo: Acreditou deveras que eu poderia am-lo? No foi? Os oficiais seguraram-lhe nos braos. Enquanto a levavam, ela sorriu-lhe, um sorriso maldoso: Nunca ningum o ir amar. Ningum. Leo voltou-lhe costas, aguardando com desespero que a levassem. Nikolai pousou-lhe uma mo consoladora no ombro: De qualquer maneira, teria sido muito complicado explicar como que ela no era uma traidora. Complicado para si. muito melhor assim. Melhor para si. H mais mulheres, Leo. H sempre mais. Leo tinha concludo a sua primeira priso. Anisya estava equivocada. Ele j era amado: pelo Estado. No queria o amor de um traidor: esse no era sequer amor. Engano, traio: esses eram instrumentos de um oficial. Ele tinha um direito legtimo a eles. O seu pas dependia da traio. Antes de se tornar agente do MGB, fora soldado e experienciara a necessidade de violncia na derrota do Fascismo. Mesmo a mais terrvel das coisas podia ser desculpada pelo bem maior que estas serviam. Entrou na igreja. Em lugar de tentar escapar, Lazar ajoelhara-se diante do altar, rezando, aguardando o seu destino. Ao ver Leo, o seu ar de desafio altivo dissipou-se. Naquele momento de compreenso pareceu envelhecer vrios anos: Maxim? Pela primeira vez desde que se conheciam, procurou respostas no seu protegido: O meu nome Leo Stepanovich Demidov. Lazar permaneceu em silncio durante vrios segundos. Por fim, disse: Foi-me recomendado pelo Patriarca? O Patriarca Krasikov um bom cidado. Lazar abanou a cabea, recusando-se a acreditar naquelas palavras. O Patriarca era um informador. O seu protegido era um espio que lhe fora enviado pela mais proeminente figura religiosa do pas. Fora sacrificado ao Estado, do mesmo modo que a Igreja de Sancta Sophia fora

16

sacrificada. Era um idiota, aconselhando outros para que tivessem cuidado, pregando cautela quando mesmo a seu lado, tirando notas, se encontrava um oficial do MGB. Nikolai avanou: Onde esto os restantes papis? Leo gesticulou para o altar: Por baixo. Trs agentes desviaram-no para o lado, descobrindo a arca. Nikolai indagou: Ele deu-te mais alguns nomes? Leo respondeu: Martemian Syrtsov. Artiom Nakhaev. Niura Dmitrieva. Moisei Semashko. Vislumbrou o rosto de Lazar: o choque transformava-se em repulsa. Leo aproximou-se dele: Mantenha os olhos no cho! Lazar no se voltou. Leo empurrou-lhe a cabea para baixo. Olhos no cho! Lazar tornou a erguer a cabea. Desta feita, Leo desferiu-lhe um murro. Lentamente, de lbio aberto, Lazar tornou a erguer a cabea, gotejando sangue, olhando para ele, repulsa mesclada com desafio. Leo respondeu, como se os olhos de Lazar lhe fizessem uma pergunta: Eu sou um bom homem. Segurando o seu mentor pelos cabelos, Leo no se deteve, murro aps murro, continuando mecanicamente como um soldado de corda, repetindo a mesma aco uma e outra vez, at lhe doerem os ns dos dedos, at os seus braos ficarem doridos, e a face de Lazar se tornar mole. Quando finalmente parou e o soltou, Lazar caiu por terra, uma poa de sangue a formar-se em torno da sua boca, com a forma de um balo de fala. Nikolai passou um brao pelo ombro de Leo, observando Lazar a ser carregado para fora, ao mesmo tempo que deixava um rasto de sangue do altar at porta. Nikolai acendeu um cigarro. Leo, o Estado precisa de pessoas como ns. Meio entorpecido, Leo limpou o sangue das calas, comentando: Antes de irmos, gostaria de um momento para revistar a igreja. Nikolai aceitou a proposta sem protestar. Um perfeccionista, excelente. Mas despacha-te. Esta noite vamos beber. H dois meses que no bebes nada! Tens vivido como um monge!

17

Nikolai riu-se da sua prpria piada, dando palmadinhas nas costas de Leo, antes de se encaminhar para a sada. A ss, Leo dirigiu-se para o altar que fora desviado, de olhos fixos no buraco. Presa entre o flanco da arca e a parede de terra encontrava-se uma nica folha de papel. Inclinou-se, apanhando-a. Era uma pgina de msica. Correu os olhos pelas notas. Decidindo que era melhor no saber o que se perdera, ergueu a folha acima da chama de uma vela prxima, observando o papel a enegrecer.

18

Sete anos depois

19

MOSCOVO 12 de Maro de 1956

Suren Moskvin era gerente de uma pequena tipografia acadmica e tornara-se conhecido por produzir manuais escolares da mais reles qualidade, usando tinta que se esborratava e um papel finssimo, tudo seguro por uma lombada de cola que comeava a deixar cair as pginas poucas horas depois de se abrir o livro. No por ser preguioso ou incompetente, pelo contrrio: comeava a trabalhar logo cedo pela manh e terminava a tardas horas da noite. A razo por que os livros eram to miserveis encontrava-se nas matrias-primas que o Estado lhe fornecia. Embora o contedo das publicaes acadmicas fosse cuidadosamente controlado, no era considerado um expediente prioritrio. Fechado num sistema de quotas, Suren era forado a produzir um grande nmero de livros a partir da pior categoria de papel, num perodo de tempo o mais curto possvel. A equao nunca mudara e ele estava sua merc, extremamente Contavam-se piadas: com dedos constrangido por a sua reputao ter descido to baixo.

manchados de tinta, estudantes e professores gracejavam que os livros de Moskvin ficavam sempre com a pessoa. Ridicularizado, nos ltimos tempos sentia dificuldades em levantar-se da cama. No se alimentava como deve de ser. Bebia durante todo o dia, as garrafas escondidas nas gavetas, por detrs das prateleiras dos livros. Com cinquenta e cinco anos, descobrira algo novo sobre si: no tinha estmago para a humilhao pblica. Estava a inspeccionar as mquinas impressoras lintipo, cismando nas suas falhas, quando reparou num jovem parado porta. Suren dirigiu-se-lhe na defensiva: Sim? O que foi? No normal estar a parado sem se fazer anunciar. O homem avanou, num traje tipicamente estudantil, um casaco comprido e um leno preto barato. Segurava um livro, estendido. Suren arrancou-lho das mos, preparando-se para mais reclamaes. Deitou uma olhadela capa: O Estado e a Revoluo de Lenine. Tinha sido impresso um novo volume ainda na semana passada, distribudo h coisa de um dia ou dois atrs, e aquele homem, ao que parecia, era o primeiro a detectar qualquer coisa mal. Um erro numa obra fundamental era um assunto grave: durante o governo de Estaline, um erro era quanto bastava para garantir a priso. O estudante inclinou-se para diante e abriu o livro, folheando-o para as primeiras pginas. No frontispcio havia uma fotografia a preto e branco. O estudante comentou: O texto por baixo diz que uma fotografia de Lenine mascomo pode ver

20

Na fotografia encontrava-se um homem que no se parecia nada a Lenine, um homem de p, encostado a uma parede, uma parede completamente branca. Os cabelos estavam revoltos. Os olhos desvairados. Suren fechou o livro bruscamente, voltando-se para o estudante: Julgas que poderia ter imprimido mil cpias deste livro com a fotografia errada? Por quem te tomas! Qual o teu nome? Porque que ests a fazer isto? Os meus problemas devemse aos limites dos meus materiais, no a desleixo! Ao recuar, o livro embateu-lhe no peito, fazendo com que leno que trazia enrolado ao pescoo se soltasse, revelando a ponta de uma tatuagem. A viso fez Suren deter-se. Uma tatuagem era incongruente com a, de resto, tpica aparncia de um estudante. Ningum, com excepo dos vory, criminosos profissionais, marcaria a pele daquela forma. Passada a impetuosa indignao de Suren, o homem aproveitou-se da sua hesitao e apressou-se a sair. Com pouco entusiasmo, Suren seguiu-o, ainda de livro na mo, observando a misteriosa figura desaparecer na noite. Apreensivo, fechou a porta e trancou-a chave. Algo o perturbava: aquela fotografia. Tirou os culos, abriu o livro e perscrutou o rosto um pouco mais de perto: aqueles olhos aterrorizados. Como um navio fantasma emergindo lentamente de um denso mar de nevoeiro, a identidade daquele homem surgiu perante si. Conhecia aquele homem. O seu rosto era-lhe familiar. O seu cabelo e olhos estavam naquele estado selvagem porque fora preso e arrastado para fora da cama. Suren reconheceu a fotografia porque fora ele quem a tirara. Ele no fora sempre tipgrafo. Antes disso, estivera ao servio do MGB. Vinte anos de servio leal, a sua carreira na polcia secreta prolongara-se por mais tempo do que a de muitos dos seus superiores. Realizando uma variedade de tarefas banais limpar celas, fotografar os prisioneiros a sua baixa patente fora uma vantagem, e ele fora suficientemente sagaz para no mostrar pretenses de maior responsabilidade, para nunca dar nas vistas, escapando s purgas cclicas dos escales mais elevados. Haviam-lhe sido exigidas coisas difceis e ele cumprira as suas obrigaes com perseverana. Naquela poca, ele era um homem a temer. Ningum se atreveria a fazer piadas acerca de si. Por razes de sade, fora obrigado a reformar-se. Embora recebesse uma boa remunerao e vivesse confortavelmente, achara a ociosidade intolervel. Deitado na cama, sem que houvesse qualquer propsito no seu dia, a mente perdia-se em digresses, arrastada para o passado, recordando-se de rostos como aquele que agora se encontrava cravado naquele livro. A soluo era manter-se ocupado com encontros e compromissos. Precisava de uma ocupao. No queria entregar-se a reminiscncias.

21

Fechou o livro e enfiou-o no bolso. O que se passava naquele dia? No podia ser mera coincidncia. Apesar da sua falha em produzir um livro ou um jornal de mnima qualidade, foralhe inesperadamente pedido para publicar um importante documento de Estado. No lhe fora comunicada a natureza do documento. Contudo, o prestgio de tal tarefa requeria recursos de elevada qualidade: bom papel e tinta. Finalmente era-lhe dada a oportunidade de produzir qualquer coisa de que se pudesse orgulhar. Viriam entregar o documento naquela noite. E algum invejoso estava a tentar denegri-lo, logo agora que a sua sorte estava prestes a mudar. Saiu da fbrica e encaminhou-se apressadamente para o escritrio, alisando cuidadosamente o fino cabelo para o lado. Envergava o seu melhor fato: possua apenas dois, um para o dia-a-dia, e outro para ocasies especiais. Aquela era uma ocasio especial. No precisara de ajuda para se levantar da cama nesse dia. Acordou antes da mulher. Barbeou-se, trauteando uma melodia. Tomou um pequeno-almoo completo, o primeiro em semanas. Quando chegou de manh fbrica, tirou a garrafa de vodca da gaveta e despejou-a na pia, antes de passar o dia a limpar, a esfregar o cho e a tirar o p, removendo as manchas de gordura das mquinas lintipo. Os seus filhos, ambos estudantes universitrios, tinham vindo visit-lo, impressionados com a transformao. Suren lembrou-os de que era uma questo de princpio manter o local de trabalho impecvel. O local de trabalho era onde uma pessoa revia a sua identidade e o sentido de si. Despediram-se dele com um beijo, desejando-lhe boa sorte com a enigmtica nova encomenda. Por fim, depois de muitos anos de secretismo e dos recentes anos de fracasso, estavam finalmente orgulhosos dele. Consultou o relgio. Eram sete da noite. Estariam ali a qualquer minuto. Tinha de se esquecer do estranho e da fotografia, no era importante. No podia deixar que isso o distrasse. Subitamente, desejou no ter deitado a vodca fora. Uma bebida t-lo-ia acalmado. Por outro prisma, poderiam t-la cheirado no seu hlito. Era melhor no ter nada, era melhor estar nervoso: mostrava que levava o seu trabalho a srio. Suren pegou na garrafa de Kvass. Uma cerveja de po de centeio sem lcool: teria de servir. Na sua pressa, e com a trmula coordenao de movimentos provocada pela abstinncia de lcool, derrubou uma caixa de moldes de letras de ao. Esta tombou da secretria, e o seu contedo espalhou-se pelo cho de pedra. Tlim, Tlim O corpo retesou-se-lhe. Suren j no se encontrava no seu escritrio: achava-se agora num estreito corredor de tijolos, com uma srie de portas de ao num dos lados. Recordou-se

22

daquele lugar: a Priso Oriol, onde fora guarda aquando da ecloso da Grande Guerra Patritica. Ele e os seus colegas, forados a bater em retirada com a rpida aproximao do exrcito alemo, tinham recebido ordens para liquidar a populao de reclusos, sem deixar nenhum recruta solidrio para os invasores Nazis. Enquanto os edifcios eram bombardeados por Stukas e Panzers a uma distncia muito prxima, eles enfrentavam o quebra-cabeas logstico de eliminar vinte celas apinhadas de centenas de criminosos polticos numa questo de minutos. No havia tempo para balas ou cordas. A ideia de usarem granadas fora sua: duas atiradas para o interior de cada cela. Atravessou o corredor direito porta, puxou a pequena grade de ao e atirou-as l para dentro tlim, tlim o som da granada a embater no cho de cimento. Depois, precipitou-se a fechar a grade, para que no pudessem ser atiradas para fora, e correu at ao fundo do corredor, para se afastar da exploso, ao mesmo tempo que imaginava os homens a tentar atabalhoadamente alcanar as granadas, os seus dedos imundos escorregadios, tentando atir-las pela pequena janela gradeada. Suren tapou os ouvidos com fora, como se tal pudesse deter aquela memria. Mas o barulho persistia, cada vez mais alto, granadas a embater no cho de cimento, cela aps cela, aps cela. Tlim, Tlim, Tlim, Tlim Gritou: Parem! Quando afastou as mos dos ouvidos, apercebeu-se de que estava algum a bater porta.

23

13 de Maro

O pescoo da vtima tinha sido devassado por uma srie de cortes fundos, irregulares. No havia ferimentos acima ou abaixo do que restava do pescoo do homem, dando a impresso contraditria de frenesi e controlo. Considerando a ferocidade do ataque, apenas uma pequena quantidade se sangue se espalhara esquerda e direita das incises, formando uma poa com a forma de asas esvoaantes de anjos. O assassino parecia ter derrubado a vtima ao cho, imobilizando-o nessa posio, continuando a cort-lo, muito depois de Suren Moskvin de cinquenta e cinco anos, gerente de uma pequena tipografia acadmica ter morrido. O seu corpo fora encontrado nesse dia, de manh cedo, quando os seus filhos, Vsevolod e Akvsenti, entraram no estabelecimento, preocupados por o pai no ter regressado a casa. Perturbados, tinham contactado a milcia, que se deparara com um escritrio virado do avesso: as gavetas arrancadas da secretria, papis espalhados pelo cho, armrios de arquivo abertos. Concluram que se tratara de um assalto desorganizado. S ao final da tarde, cerca de sete horas depois da descoberta, a milcia contactou enfim o departamento de homicdios, chefiado pelo exagente do MGB, Leo Stepanovich Demidov. Leo estava habituado quele tipo de atrasos. Criara o departamento de homicdios trs anos antes, usando da influncia que ganhara ao resolver os crimes de mais de quarenta e quatro crianas. Desde a sua criao que a relao do departamento com a milcia comum era A cooperao era errtica. A prpria existncia daquele departamento era problemtica.

considerada por muitos oficiais da milcia e do KGB como uma insinuao de um grau de criticismo inaceitvel, tanto do seu trabalho como do do Estado. Em rigor, estavam certos. A motivao de Leo para criar aquele departamento partira de uma reaco contra o seu trabalho enquanto agente. Prendera muitos civis durante a sua anterior carreira, prises essas que fizera com base em simples listas de nomes dactilografadas, que lhe eram entregues pelos seus superiores. O departamento de homicdios, pelo contrrio, procurava uma verdade baseada em evidncias, no uma verdade politizada. O dever de Leo era apresentar os factos de cada caso aos seus superiores. O que eles faziam com essa verdade, era com eles. No fundo, alimentava a esperana de um dia conseguir equilibrar os registos das prises, de o nmero de culpados ultrapassar o de inocentes. Mesmo calculando por baixo, tinha um longo caminho a percorrer.

24

As liberdades garantidas ao departamento de homicdios resultavam de o seu trabalho estar sujeito ao mais elevado nvel de secretismo. Reportavam directamente a a altos cargos no ministrio do Interior, operando como uma subdepartamento clandestino do Ministrio Central de Investigaes Criminais. A esmagadora maioria da populao ainda precisava de acreditar na evoluo da sociedade. A diminuio dos ndices de criminalidade era uma doutrina dessa crena. Portanto, os factos contraditrios eram filtrados da conscincia nacional. Nenhum cidado podia contactar o departamento de homicdios porque nenhum cidado sabia que aquele existia. Por esta razo, Leo no podia emitir requisies de informao nem pedir s testemunhas que se apresentassem, uma vez que tais aces equivaleriam a propagandear a existncia do crime. A liberdade que lhe fora garantida era bastante peculiar e Leo, que fizera tudo ao seu alcance para pr a sua carreira na polcia secreta para trs das costas, encontrava-se agora a dirigir um tipo de polcia secreta muito diferente. Apreensivo com a explicao preliminar que fora encontrada para a morte de Moskvin, Leo estudou a cena do crime e os seus olhos fixaram-se na cadeira. Esta encontrava-se despercebidamente arrumada diante da secretria, com o assento ligeiramente inclinado. Aproximou-se, agachando-se, e passou com o dedo por uma fina linha fracturada numa das pernas de madeira. Ao testar timidamente o seu peso, empurrando-a na parte traseira, a perna cedeu imediatamente. A cadeira estava partida. Se algum se tivesse sentado nela, teria cado. Contudo, estava arrumada diante da secretria como se estivesse em perfeito estado de conservao. Voltou a concentrar as suas atenes no corpo, pegando nas mos da vtima. No havia cortes, nem arranhes: nenhum sinal de que o homem se tentara defender. Leo ajoelhou-se, aproximando-se do pescoo da vtima. Quase no restava pele, com excepo da nuca, a zona que tocava no cho, protegida de repetidos cortes. Leo pegou numa faca, forando-a por debaixo do pescoo da vtima e quando retirou a lmina, esta trazia um pequeno pedao de pele que no tinha sido cortado. Estava escoriado. Retirou a faca e, preparava-se para se levantar, quando divisou o bolso do fato do morto. Enfiou a mo l dentro, retirando um livro delgado: O Estado e a Revoluo de Lenine. encadernao: Ainda antes de o abrir, descobriu que havia algo de invulgar na tinha sido colada uma pgina. Ao folhear para a pgina em questo, viu a

fotografia de um homem desgrenhado. Embora Leo no tivesse ideia de quem era o homem, reconheceu de imediato o tipo de fotografia: o pano de fundo muito branco, a expresso desorientada do suspeito. Era a fotografia de um homem que fora detido. Desnorteado com aquela anomalia cuidadosamente preparada, ergueu-se. Nesterov entrou na sala, deitando um olhar ao livro: Timur

25

Alguma coisa importante? No sei ao certo. Timur era o colega e amigo mais chegado de Leo. A amizade que se desenvolvera entre eles era do tipo discreto. No bebiam juntos, no gracejavam um com o outro nem falavam muito, excepto sobre trabalho: uma parceria acompanhada de longos silncios. A um observador exterior poderia parecer que nem sequer eram amigos e para um cnico tal atitute denunciava a existncia de um ressentimento nas suas relaes. Leo era quase dez anos mais novo do que Timur, e era agora seu superior, apesar de ter sido, em tempos, seu subordinado. Tratava-o sempre, com formalidade, por General Nesterov. Objectivamente, Leo fora quem mais beneficiara do seu sucesso conjunto. Havia quem inisuasse que ele era um individuo oportunista, um individualista a quem s interessava a carreira. Timur, porm, no mostrava inveja. A questo do posto era meramente incidental. Sentia-se orgulhoso do seu trabalho e o sustento da famlia estava assegurado. Quando se mudara para Moscovo conseguira enfim, depois de langorosas listas de espera, que lhe fosse designado um apartamento moderno, com gua quente corrente, canalizao decente e corrente elctrica durante as vinte e quatro horas do dia. Independentemente do que a sua relao parecesse aos olhos dos outros: ambos confiavam as suas vidas ao outro. Timur apontou em direco ao piso da fbrica principal onde se erguia uma torre de mquinas lintipo, gigantescos insectos metlicos: Os filhos chegaram. Tr-los c. Com o corpo do pai deles estendido no cho? Sim. Os rapazes tinham sido autorizados a sair do local, enviados para casa pela milcia antes que Leo pudesse question-los na cena do crime. Pediria desculpa por terem de ver o corpo do pai novamente, mas no tinha inteno de confiar nas informaes em segunda mo que lhe tinham sido passadas pela milcia. Alm do mais, estava curioso para observar as suas reaces. Convocados, Vsevolod e Akvsenti ambos dos seus vinte e poucos anos apareceram porta, lado a lado. Leo apresentou-se: Sou o Oficial Leo Demidov. Compreendo que isto deva ser muito difcil. Nenhum deles olhou para o corpo do pai, mantendo os olhos fixos em Leo. O mais velho, Vsevolod, falou: J respondemos s perguntas da milcia.

26

As minhas perguntas no demoram muito. Esta sala est tal e qual a encontraram esta manh? Sim, est tudo na mesma. Vsevold era o nico que falava. Akvsenti permanecia em silncio, erguendo os olhos ocasionalmente. Leo prosseguiu: Esta cadeira estava mesa? Pode ter sido derrubada, na luta talvez? Na luta? Entre o seu pai e o assassino? Fez-se silncio. Leo prosseguiu: A cadeira est partida. Se se sentasse nela, ter-se-ia partido. No estranho que se tenha uma cadeira partida diante de uma secretria? No nos podemos sentar nela. Ambos os filhos se voltaram para a cadeira. Vsevold respondeu: Trouxe-nos de volta para falar sobre a cadeira? A cadeira importante. Acredito que o seu pai a usou para se enforcar. Aquela sugesto devia ter sido absurda. Os filhos deviam ter ficado indignados. Porm, permaneceram em silncio. Pressentir que a sua especulao era acertada, Leo reafirmou a sua teoria: Julgo que o vosso pai se enforcou: talvez o tenha feito numa viga do tecto da fbrica. Subiu cadeira e depois pontapeou-a de debaixo dos ps. Vocs encontraram o corpo esta manh. Arrastaram-no at aqui, tornaram a colocar a cadeira no stio, mas no repararam que estava partida. Seguidamente, um de vocs, ou os dois, cortaram-lhe o pescoo na tentativa de encobrir as marcas das queimaduras da corda. O escritrio foi encenado como se tivesse sido assaltado. Os jovens eram promissores estudantes, e o suicdio do pai poderia ter acabado com as suas carreiras e destrudo os seus projectos. Seriam infamados pelo estigma. Suicdio, tentativa de suicdio, depresso ou mesmo exprimir o desejo de se acabar com a vida todas essas coisas eram consideradas ofensas ao Estado. O suicdio, tal como o homicdio, no tinha lugar na evoluo de uma sociedade mais elevada. Os filhos estavam evidentemente a tentar decidir se era ou no possvel negar a alegao. Leo suavizou o tom de voz: Uma autpsia ir revelar que tem a coluna partida. Tenho de investigar este suicdio to rigorosamente como faria no caso de um homicdio. A razo para este suicdio preocupame, no o vosso compreensvel desejo de o encobrirem. O filho mais novo, Aksventi, respondeu, falando pela primeira vez:

27

Cortei-lhe a garganta. O jovem prosseguiu: Estava a desc-lo da corda. E ento compreendi o que ele fizera s nossas vidas. Fazem alguma ideia por que se suicidou? Bebia muito. Estava deprimido por causa do trabalho. Estavam a dizer a verdade, porm esta estava incompleta, quer por ignorncia ou manipulao deliberada. Leo insistiu no assunto: Um homem de cinquenta e cinco anos no se suicida porque os leitores tm tinta nos dedos. O vosso pai sobreviveu a problemas muito maiores do que esse. O filho mais velho enfureceu-se: Passei anos a estudar para ser mdico. Tudo para nada: no haver hospital que me contrate. Leo acompanhou-os sada do escritrio, e encaminhou-os para o piso da fbrica, longe da vista do corpo do pai: No ficaram alarmados com o facto de o vosso pai no ter regressado a casa at de manh. J estavam espera que trabalhasse at tarde ou teriam ficado preocupados ontem noite. Se assim , porque que no h pginas prontas a imprimir? H aqui quatro mquinas lintipo. Ora, eu no estou a ver aqui pginas nenhumas. No h nada que indique que tenha estado a trabalhar. Aproximaram-se das imensas mquinas. Na fronte havia um aparelho idntico a uma mquina de escrever, um teclado. Leo dirigiu-se aos filhos: Neste momento esto a precisar de amigos. No posso deixar passar o suicdio do vosso pai. Mas posso solicitar aos meus superiores que evitem que as suas aces afectem as vossas carreiras. Os tempos mudaram: os erros do vosso pai no tm de se reflectir nas vossas vidas. Mas primeiro tm de fazer por merecer a minha ajuda. Contem-me o que se passou. No que que o vosso pai estava a trabalhar? O rapaz mais novo encolheu os ombros: Estava a trabalhar num documento de Estado qualquer. No o lemos. Destrumos todas as pginas que ele preparara. No tinha terminado. Pensmos que talvez estivesse deprimido porque ia imprimir mais um jornal de m qualidade. Queimmos a cpia de papel. Derretemos a composio do texto. No sobrou nada. Esta a verdade. Recusando-se a desistir, Leo apontou para a mquina: Em que mquina estava ele a trabalhar? Nesta aqui.

28

Mostra-me como funciona. Mas como lhe dissemos: destrumos tudo. Por favor. Aksventi lanou um olhar ao irmo, procurando evidentemente a sua permisso. O irmo anuiu: O texto introduzido aqui no teclado. medida que se vo introduzindo as letras, a mquina vai deixando cair as respectivas matrizes na parte de trs, onde ficam alinhadas, pela ordem em que foram caindo. Cada linha formada por matrizes individuais, e os espaos so dados por placas de chumbo sem gravaes. Uma vez terminada a linha, carrega-se nesta alavanca que eleva a linha at seco de fundio onde moldado um s bloco de chumbo e estanho. Essas linhas so colocadas nesta caixa, at se ter uma pgina inteira de texto. A pgina de ao ento coberta de tinta e o papel rola por cima: o texto impresso. Mas, como lhe dissemos, derretemos as pginas todas. No sobrou nada. Leo circundou a mquina. Os seus olhos seguiram o processo mecnico, uma coleco de matrizes de letras para compor uma linha. Perguntou: Quando introduzo o texto no teclado, as matrizes de letras so reunidas nesta caixa? Sim. verdade que no h linhas completas de texto. Essas foram destrudas. Mas vejo aqui uma linha parcial, uma linha que no foi acabada. Leo estava a apontar para uma fileira incompleta de matrizes de letras. O vosso pai estava a meio de uma linha. Os filhos espreitaram para a mquina. Leo tinha razo. Quero imprimir estas palavras. O filho mais velho comeou a bater na barra de espaos, observando: Se acrescentarmos material branco ao final da linha, teremos o comprimento completo, pronto para fundir um bloco. As matrizes individuais de espaos foram acrescentadas linha incompleta at a caixa estar cheia. Um pisto injectou chumbo derretido no molde, saindo uma linha composta: as ltimas palavras de Suren Moskvin assentadas antes de tirar a prpria vida. O bloco-linha estava virado de lado, as letras estavam inclinadas de uma forma que no se viam. Leo perguntou: Est quente? No.

29

Leo pegou na linha composta, colocando-a na caixa. Cobriu a superfcie com tinta e colocou uma nica folha de papel branco sobre esta, pressionando. Cuidadosamente, voltou a pgina.

30

No mesmo dia

Sentado mesa da cozinha, Leo olhava fixamente para a folha de papel. Trs palavras era tudo o que restava do documento que levara Suren Moskvin a tirar a prpria vida: Sob tortura, Eikhe Leo tinha lido as palavras vezes sem conta, incapaz de desviar delas os olhos. Mesmo descontextualizadas, o seu efeito era hipntico. Quebrando o seu feitio, afastou a folha de papel para o lado e pegou na pasta, pousando-a na horizontal sobre a mesa. No seu interior, encontravam-se dois dossis secretos. Para poder ter acesso a eles, precisara de autorizao. No tinha sido difcil obt-la no caso do primeiro, sobre Suren Moskvin. Contudo, o segundo levantara algumas questes. O segundo dossi que requisitara era sobre Robert Eikhe. Ao abrir o primeiro conjunto de documentos, sentiu o peso do passado daquele homem, o nmero de pginas acumuladas sobre ele. Moskvin tinha sido oficial da Segurana Estatal tal como Leo , um Chekist, e estivera ao servio durante muito mais tempo do que ele, mantendo o seu emprego, ao passo que centenas de oficiais tinham sido abatidos. Junto com o dossi havia uma lista: as denncias que Moskvin fizera ao longo da sua carreira: Nestor Iurovsky. Vizinho. Executado Rozalia Reisner. Amiga. 10 anos Iakov Blok. Comerciante. 5 anos Karl Uritsky. Colega. Guarda. 10 anos Dezanove anos de servio, duas pginas de denncias e quase cem nomes porm, s tinha dado o nome de um familiar uma nica vez. Iona Radek. Prima. Executada Leo reconheceu uma tcnica: as datas das denncias eram aleatrias, muitas calhavam no mesmo ms, e depois nada durante vrios meses. O espaamento catico era deliberado, ocultava um cuidadoso calculismo. Denunciar a prima tinha sido quase de certeza uma deciso

31

estratgica. Moskvin tinha de garantir que no parecia que a sua lealdade para com o Estado acabava na famlia. Para conferir credibilidade sua lista, a prima tinha sido sacrificada: defendera-se assim da acusao que ele apenas nomeara pessoas que no o interessavam pessoalmente. Aquele homem era um sobrevivente consumado, e o seu suicdio parecia uma improbabilidade. Ao verificar as datas e locais onde Moskvin trabalhara, Leo recostou-se na cadeira, surpreendido. Tinham sido colegas: ambos se encontravam no Lubyanka, sete anos antes. Os seus caminhos nunca se haviam cruzado, pelo menos no que se recordasse. Leo era investigador, fazia prises, seguia suspeitos. Moskvin era guarda, transportava prisioneiros, supervisionava a sua deteno. Leo fizera todos os possveis para evitar as celas de interrogao na cave, como se acreditasse que as tbuas do soalho o protegiam das actividades realizadas por baixo, dia aps dia. Se o suicdio de Moskvin era uma expresso de culpa, o que desencadeara tais sentimentos extremos depois de tanto tempo? Leo fechou a pasta, voltando a sua ateno para o segundo arquivo. O dossi de Robert Eikhe era mais grosso, mais pesado, no frontispcio lia-se CONFIDENCIAL, as pginas estavam atadas como que para manter algo pernicioso recluso no interior. Leo desenrolou nervosamente o cordel. O nome parecia-lhe familiar. Folheando as pginas, reparou que Eikhe fora um membro do partido desde 1905 antes da revoluo , na altura em que ser um membro do Partido Comunista implicava o exlio ou a execuo. A sua ficha era impecvel: um ex-candidato ao Comit Central do Politburo. No obstante, tinha sido preso no dia 29 de Abril de 1938. Manifestamente, aquele homem no era um traidor. E, no entanto, Eikhe confessara: o protocolo estava no dossi, pgina e pginas detalhando as suas actividades anti-soviticas. Leo esboara demasiadas confisses pr-preparadas para no reconhecer que aquilo era o trabalho de um agente, pontuado de frases feitas sinais do estilo interno, uma minuta onde qualquer pessoa podia ser forada a assinar o seu nome. Folheando para diante, encontrou uma declarao de inocncia escrita por Eikhe enquanto estivera detido. Ao contrrio da confisso, a prosa era humana, desesperada, um amontoado de louvores compassivos ao Partido, proclamando o amor pelo Estado e apontando com tmida modstia a injustia da sua priso. Leo leu-a, quase sem conseguir respirar: Por no ser capaz de suportar as torturas a que fui submetido por Ushakov e Nikolayev especialmente pelo anterior, que se aproveitou de as minhas costelas partidas no estarem ainda bem curadas, inflingindo-me uma dor terrvel fui forado a acusar-me a mim prprio e outros.

32

Leo sabia o que se seguiria. No dia 4 de Fevereiro de 1940, Eikhe tinha sido fuzilado. # Raisa estava de p, a observar o marido. Absorto nos dossis confidenciais, no tinha notado a sua presena. Aquela viso de Leo plido, tenso, de ombros corcovados sobre os documentos secretos, o destino de outras pessoas nas suas mos podia ter sido retirada do infeliz passado de ambos. Sentia-se tentada a reagir como reagira tantas outras vezes antes, afastando-se, evitando-o e ignorando-o. O afluxo de ms memrias atingiu-a como uma espcie de nusea. Lutou contra essa sensao. Leo j no era esse homem. Ela j no estava presa nesse casamento. Avanou alguns passos e estendeu a mo, pousando-a no ombro do marido, elegendo-o o homem que ela aprendera a amar. Leo retraiu-se ao seu toque. No tinha dado notcia da entrada da mulher. Apanhado de surpresa, sentiu-se exposto. Ergueu-se abruptamente, ao mesmo tempo que a cadeira produzia um estrpito atrs dele. Olhando-a nos olhos, sentiu o seu nervosismo. No queria que ela se voltasse a sentir assim. Devia ter-lhe explicado o que estava a fazer. Cara de novo nos velhos hbitos: silncio e segredos. Rodeou-a com os braos. De cabea encostada ao seu ombro, sabia que ela espreitava os arquivos pousados em cima da mesa. Explicou: Um homem matou-se, um eis agente da MGB. Algum que conhecias? No de que me recorde. Tens de investigar? O suicdio tratado como Ela interrompeu-o: Quero dizer tens de ser tu a faz-lo? Raisa queria que ele entregasse o caso a outra pessoa, que no tivesse nada a ver com o MGB, nem mesmo indirectamente. Ele recuou. O caso no vai demorar muito. Ela assentiu com um gesto de cabea, antes de mudar de assunto: As meninas esto na cama. Vais ler-lhes? Ou ests ocupado? No, no estou ocupado.

33

Leo tornou a guardar os dossis na pasta. Quando passou junto da mulher, inclinou-se para beij-la, um beijo que ela bloqueou gentilmente com um dedo, olhando-o nos olhos. No disse nada, antes de desviar o dedo e de o beijar um beijo que subentendia que ele lhe fizera a mais inquebrvel e sagrada das promessas. Quando entrou no seu quarto, guardou os dossis num lugar seguro, um velho hbito. Depois, porm, mudou de ideias e resolveu deix-los em cima da mesa-de-cabeceira, no caso de Raisa os querer ler. Regressou apressadamente ao corredor, encaminhando-se para o quarto das filhas, ao mesmo tempo que tentava suavizar a tenso do seu rosto. De sorriso largo, abriu a porta. Leo e Raisa tinham adoptado duas meninas pequenas. Zoya tinha agora catorze anos e Elena, sete. Aproximou-se da cama de Elena, esticando-se junto a esta para retirar um livro do armrio, uma histria infantil de Yury Strugatsky. Abriu o livro e comeou a ler em voz alta. Quase imediatamente Zoya interrompeu-o: J ouvimos essa antes. Esperou um momento, antes de acrescentar: Detestamo-la da primeira vez. A histria era sobre um menino que queria ser mineiro. O pai do garoto, tambm mineiro, tinha morrido num acidente e a me temia muito que o seu filho enveredasse por uma profisso to perigosa. desdenhosamente: O filho acaba por escavar mais carvo do que algum jamais escavara, torna-se um heri nacional e dedica o seu prmio memria do pai. Leo fechou o livro. Tens razo. No muito bom. Mas Zoya, embora possas dizer o que quiseres dentro desta casa, tem mais cuidado l fora. Exprimir opinies crticas, mesmo sobre assuntos banais, como uma histria infantil, perigoso. Vais prender-me? Zoya nunca aceitara Leo enquanto seu guardio. Nunca o perdoara pela morte dos seus pais. E nem to pouco Leo se referia a si prprio como pai delas. Zoya tratava-o por Leo Demidov, dirigindo-se a ele com formalidade, pondo tanta distncia entre eles quanto lhe era possvel. Aproveitava todas as oportunidades para lhe recordar que estava a viver com ele por razes prticas, a us-lo como um meio para atingir um fim: proporcionar conforto material irm, libert-la do orfanato. Ainda assim, assegurava-se de que nada a impressionava, nem o apartamento, nem os seus passeios, sadas ou refeies. To severa quanto bonita, no havia a Zoya tinha razo. Leo j a tinha lido antes. Zoya resumiu,

34

menor suavidade na sua aparncia. A infelicidade perptua parecia ser de importncia vital para ela. Leo pouco podia fazer para encoraj-la a pr tudo para trs das costas. Esperava que a determinada altura as suas relaes melhorassem lentamente. E ainda estava espera. Esperaria, se fosse preciso, o resto da vida. No, Zoya, eu j no fao isso. E nunca mais o farei. Leo inclinou-se para o cho, apanhando um dos jornais de Detskaya Literatura, uma publicao nacional para crianas. Antes que pudesse comear, Zoya atalhou: Porque que no inventa uma histria? Gostaramos muito, no Elena? Elena chegara a Moscovo ainda muito pequena, com quatro anos, e a idade facilitara a adaptar-se s mudanas na sua vida. Ao contrrio da irm mais velha, fizera amigos e era muito aplicada muito na escola. Muito dada a elogios, procurava a aprovao dos professores, tentando agradar a todos, incluindo os seus novos pais adoptivos. Elena ficou ansiosa. Compreendeu pelo tom de voz da irm que esta esperava que concordasse. Constrangida por ter de tomar partidos, apenas assentiu com a cabea. Sentindo perigo, Leo replicou: H muitas histrias que ainda no lemos, tenho a certeza que vamos encontrar uma de que gostemos. Zoya, porm, no cedia: So todas iguais. Conte-nos uma coisa nova. Invente qualquer coisa. Duvido que fosse capaz de inventar alguma coisa boa. Nem sequer vai tentar? O meu pai costumava inventar muitas histrias. Histrias de uma quinta longnqua, uma quinta no Inverno, com o solo coberto por uma camada de neve. O rio ali prximo estava congelado. Podia comear assim. Era uma vez duas meninas pequenas, irms Zoya, peo-te. As irms viviam com a me e o pai e eram muito felizes. At que um dia, um homem de uniforme veio prend-los e. Leo interrompeu: Zoya? Pela Elena, peo-te. Zoya lanou um olhar irm e calou-se. Elena estava a chorar. Leo levantou-se. Esto as duas muito cansadas. Vou arranjar livros melhores amanh. Prometo. Leo apagou a luz e fechou a porta. No corredor, reconfortou-se, dizendo para consigo que as coisas iriam melhorar, um dia. Zoya apenas precisava de um pouco mais de tempo.

35

# Zoya estava deitada na cama, ouvindo o rumor da irm a dormir: as suas lentas e suaves golfadas de ar. Quando viviam na quinta com os pais, os quatro dormiam num pequeno quarto com paredes de barro grossas, aquecidas pelo fogo a lenha. Zoya dormia ao lado de Elena, debaixo dos cobertores speros, cozidos mo. apartamento, com Leo no quarto ao lado. Zoya nunca caa no sono facilmente. Ficava deitada na cama durante horas, remoendo pensamentos at a exausto se apoderar dela. Era a nica pessoa que se agarrava verdade: a nica pessoa que se recusava a esquecer. Deslizou para fora da cama. parte da respirao da irm mais nova, o apartamento estava em silncio. Foi a rastejar at porta, com os olhos j habituados escurido. Seguiu pelo corredor, mantendo a mo na parede para se orientar. Na cozinha, a iluminao da rua derramava-se pela janela. Movendo-se com ligeireza, como um ladro, abriu uma gaveta e segurou no cabo, sentindo o peso da faca. O rumor da sua pequena irm a dormir representava segurana: significava que os pais estavam perto. No pertencia ali, naquele

36

No mesmo dia

Com a faca encostada perna, Zoya encaminhou-se para o quarto de Leo.

Abriu

lentamente a porta at haver suficiente espao para se esgueirar para o interior. Caminhou em silncio sobre o soalho de madeira. As cortinas estavam fechadas, o quarto mergulhado na escurido, mas ela conhecia o espao, sabia onde pisar para chegar a Leo, que dormia ao fundo. Parada mesmo por cima dele, Zoya ergueu a faca ao alto. Embora no o pudesse ver, delineou com a imaginao os contornos do seu corpo. No tencionava apunhal-lo no estmago: os cobertores poderiam absorver a lmina. Mergulharia a lmina no seu pescoo, enterrando-a o mais que pudesse, antes que ele tivesse hiptese de a dominar. De faca na vertical, dirigiu-a para baixo, com controlo perfeito. Atravs da lmina conseguia sentir-lhe o brao, o ombro subiu em direco ao pescoo, afundando a ponta da faca aos poucos, at esta lhe tocar directamente na sua pele. Agora que estava em posio, s precisava de segurar no cabo com ambas as mos e empurr-lo para baixo. Zoya fazia este ritual em intervalos irregulares, por vezes uma vez por semana, outras passava um ms sem o fazer. A primeira vez tinha sido trs anos antes, pouco depois de ela e a irm se terem mudado do orfanato para aquele apartamento. Nessa ocasio, tivera mesmo a inteno de o matar. Nesse mesmo dia, ele tinha-as levado ao jardim zoolgico. Nem ela nem Elena tinham ido alguma vez a um jardim zoolgico e visto de perto animais exticos, criaturas que ela nunca vira antes: esquecera-se dela prpria. Durante pouco mais do que cinco ou dez minutos, desfrutara da visita. Sorrira. Ele nunca a vira sorrir, sabia-o, mas isso no lhe importava. Vendo-o com Raisa, um casal feliz, imitando uma famlia, fingindo, mentindo, compreendeu que estavam a tentar roubar o lugar dos seus pais. E ela permitira-o. No caminho de regresso a casa, no elctrico, sentira uma culpa to intensa que vomitara. Leo e Raisa culparam os doces e o movimento do elctrico. Nessa noite, febril, ficara deitada na cama, a chorar, a coar as pernas at fazer sangue. Como podia ter trado a memria dos pais to facilmente? Leo acreditava que podia ganhar o seu amor com roupas novas, comidas raras, passeios e chocolates: era ridculo. Jurara que aquilo nunca mais voltaria a acontecer. E s havia uma maneira de o garantir: fora buscar a faca e resolvera mat-lo. Ficara ali de p, tal como agora, pronta para matar.

37

Todavia, a mesma memria que a levara ao quarto, a memria dos seus pais, fora a razo por que no o matara. No teriam querido o sangue daquele homem nas suas mos. Teriam querido que tomasse conta da irm. Obediente, chorando em silncio, permitira que Leo vivesse. De vez em quando voltava, esgueirando-se para dentro do quarto, armada com uma faca, no porque mudara de ideias, no por vingana, no para o matar, mas como um memorial aos seus pais, uma forma de dizer que no os havia esquecido. O telefone tocou, estridente, inesperado. Alarmada, Zoya deu um salto para trs, e a faca escorregou-lhe das mos, caindo com estrpito no cho. Ajoelhou-se, aos apalpes escurido, tentando encontr-la. Leo e Raisa remexiam-se, a cama rangeu com os seus movimentos. Estariam a estender a mo para acender a luz. Zoya procurava com frenesi nas tbuas do soalho, guiando-se apenas pelo tacto. Quando o telefone tocou pela segunda vez, no teve outra hiptese que no deixar a faca para trs. Contornou a cama apressadamente, correndo em direco porta, e esgueirou-se pela nesga da porta no mesmo instante em que a luz se acendeu. # Leo sentou-se na cama, com os pensamentos vagarosos da sonolncia, sonhos confundidos com a realidade tinha visto um movimento, uma figura, ou talvez no. O telefone estava a tocar. S tocava quando se tratava de trabalho. Verificou o relgio: era quase meianoite. Lanou um olhar a Raisa. Estava acordada, espera que ele atendesse o telefone. Murmurou um pedido de desculpas e levantou-se. A porta estava aberta. No fechavam sempre a porta antes de ir dormir? Talvez no, no era importante, e encaminhou-se para o corredor. Leo levantou o auscultador. A voz no outro lado era urgente, alta: Leo? Nikolai. Nikolai: o nome no lhe dizia nada. No respondeu. Interpretando correctamente o silncio de Leo, o homem prosseguiu: Nikolai, o teu ex-patro! O teu amigo! Leo, no te recordas de mim? Fui eu quem te deu a tua primeira misso! O padre, lembras-te Leo? Leo lembrava-se. H muito que no tinha notcias de Nikolai. Aquele homem no tinha qualquer relevncia na sua vida presente e por isso ressentiu o seu telefonema. Nikolai, tarde. Tarde? O que que te aconteceu? S comevamos a trabalhar a estas horas. Agora j no. No, agora j no.

38

A voz de Nikolai fez-se fraca, antes de acrescentar: Preciso de lhe falar. As suas palavras eram indistintas. Estava bbado. Nikolai, porque que no vais dormir e logo falamos amanh? Tem de ser esta noite. A voz quebrava. Estava prestes a chorar. O que que se passa? Vem encontrar-te comigo, peo-te. Leo queria dizer que no. Onde? Nos teus escritrios. Estarei l dentro de trinta minutos. Leo desligou. A sua irritao estava mesclada de uma ponta de desassossego. Nikolai no o teria voltado a procurar sem uma boca causa. Quando regressou ao quarto, Raisa estava levantada. Leo esboou uma explicao, dando de ombros. Era um ex-colega. Quer encontrar-se comigo. Diz que tem de ser esta noite. Um colega de que altura? Daquela poca? Sim. E telefona-te assim, sem mais nem menos? Estava bbado. Vou falar com ele. Leo? Ela deixou a frase a meio. Leo assentiu. Tambm no me agrada. Pegou nas roupas, enfiando-as rapidamente, quase pronto para sair. Enquanto apertava os atacadores, vislumbrou qualquer coisa debaixo da cama, algo a chamejar. aproximou-se, agachando-se. Raisa perguntou: O que foi? Era uma grande faca de cozinha. Prximo do stio onde se encontrava havia um entalhe no cho. Leo? Devia mostrar-lha. No nada. Quando Raisa se debruou para ver o que era, ele ergueu-se, escondendo a faca atrs das costas, e apagou a luz. Curioso,

39

Chegado ao corredor, estendeu a lmina na palma da mo. Lanou um olhar ao quarto das filhas. Aproximou-se da porta e abriu-a devagar. O quarto estava s escuras. As duas raparigas estavam deitadas, a dormir. Quando ia a retirar-se, fechando silenciosamente a porta, sorriu ao ouvir a respirao lenta e quase sumida de Elena. E depois estacou, ouvindo com mais ateno. No conseguia ouvir nenhum rumor, vindo do lado do quarto onde se encontrava Zoya. Estava a suster a respirao.

40

14 de Maro

Leo conduzia muito depressa e acabou por derrapar numa curva, os pneus escorregaram no gelo enegrecido. Aliviou o p do acelerador e levou o carro de novo para o centro da estrada. Num estado de agitao, as costas hmidas de suor, sentiu-se aliviado ao chegar aos escritrios do departamento de homicdios. Encostou, repousando a cabea no volante. No interior frio, sem aquecimento, a sua respirao formou uma neblina fina. Era uma da manh. As ruas estavam desertas, forradas por uma camada de neve desigual. Comeou a tremer de frio; tinha-se esquecido de pegar numas luvas ou num chapu, quando sara precipitadamente do apartamento, na pressa de sair, de fugir do porqu que a porta do quarto estava aberta, do porqu que a sua filha fingia dormir, e do porqu que havia uma faca debaixo da sua cama. Haveria certamente explicaes, mundanas e simples explicaes. Talvez tivesse deixado a porta aberta. Talvez a sua mulher tivesse ido ao quarto de banho, esquecendo-se de fechar a porta quando regressara. Quanto a Zoya fingir estar a dormir: tinha ouvido mal. Na verdade, por que que ela precisava de estar a dormir? Fazia sentido que estivesse acordada, tinha acordado com o telefone, e estava deitada na cama a tentar cair no sono novamente, enfastiada com razo. Quanto facano sabia, simplesmente no conseguia pensar, porm, deveria haver uma razo inocente, mesmo que no fizesse a mais pequena ideia de qual seria. Desceu do carro, fechou a porta, e encaminhou-se para os escritrios. O seu departamento de homicdios, localizado no distrito de Zamoskvareche, a sul do rio, uma zona com uma elevada concentrao de fbricas, tinha sido instalado num espao situado por cima de uma grande padaria. Havia um qu de caricato na localizao e, silmultaneamente, a mensagem de que o trabalho deles deveria permanecer invisvel. Os escritrios estavam identificados como Fbrica de Botes 14, levando Leo a pensar, de tempos a tempos, o que se passaria nas outras treze fbricas de botes. Depois de entrar no decrpito vestbulo, cujo pavimento se encontrava entrecruzado de pegadas de farinha, Leo subiu as escadas, passando os acontecimentos daquela noite em revista na sua mente. Tinha conseguido justificar duas das trs ocorrncias, mas a terceira a faca resistia a quaisquer tentativas de desagravo. O assunto teria de esperar at manh seguinte, quando tivesse oportunidade de falar com Raisa. Agora o telefonema inesperado de Nikolai preocupava-o mais. Leo tinha de se concentrar na razo por que um homem com o qual no

41

falava h seis anos lhe ligava a meio da noite, bbado, suplicando que se encontrassem. No havia nada entre eles, nenhuma ligao ou amizade, nada com excepo daquele ano 1949 o seu primeiro ano como agente do MGB. Nikolai esperava-o no topo das escadas, esparramado entrada como um vagabundo. Assim que viu Leo, levantou-se. O seu casaco de Inverno era de bom corte, talvez at feito no estrangeiro, mas encontrava-se em muito mau estado por desmazelo. A barriga saa-lhe para fora da camisa desabotoada. Ganhara peso, perdera cabelo. Tinha um ar envelhecido e cansado, o rosto oprimido de preocupao, arrepanhado em torno dos olhos. Tresandava a fumo, suor e lcool o que, combinado com o habitual cheiro a forno e a massa cozida que impreganava o ar do edifcio, formava uma mescla irrespirvel. Leo ofereceu-lhe a mo. Nikolai desviou-a para o lado, abraando-o, agarrando-se a ele como se tivesse acabado de ser salvo da vertente de uma montanha. No havia nada de piedoso naquele abrao: isto de um homem que construra a sua reputao sendo impiedoso. Ocorreu-lhe de repente o entalhe no cho de madeira. Por que se esquecera daquele detalhe? No era importante, fora por isso. Inmeras coisas podiam t-lo causado. Podia estar ali h j algum tempo, no era algo em que ele fosse necessariamente reparar, um arranho causado pelo arrastar da moblia. Contudo, bem no fundo de si, sabia que a faca e o entalhe estavam ligados. Nikolai tinha comeado a falar, num discurso incoerente, desarticulado. Leo quase no lhe prestava ateno, acenando com a cabea medida que abria o departamento, conduzindo o convidado pelo seu escritrio. Sentados diante um do outro, Leo juntou as mos, apoiando os cotovelos na mesa, e ficou a observar Nikolai a falar sem ouvir quase nada, ora prestando ateno ora no, apanhando aqui e ali alguns fragmentos do discurso: qualquer coisa sobre umas fotografias que lhe tinham sido enviadas. Fosse o que fosse que Nikolai estava a dizer, a mente de Leo no tinha espao para isso. Crescia dentro dele uma singular e terrvel tomada de conscincia, que apartava todos os outros pensamentos. A faca tinha cado, a ponta da faca cravara-se no cho antes de ricochetear para debaixo da cama; tinha cado porque quem quer que a tivesse segurado na mo, tinha entrado em pnico, alarmado por um barulho sbito, um telefonema inesperado. A pessoa tinha fugido do quarto, deixando a porta aberta, pois ia com demasiada pressa para ter tempo de fech-la. Era ela

42

Mesmo agora, que todas as peas estavam encaixadas, era com relutncia que articulava a nica concluso lgica: a pessoa que estava a segurar na faca era Zoya. Levantou-se, foi janela e abriu-a. O ar frio bateu-lhe no rosto. No soube ao certo quanto tempo permaneceu naquela posio, a fitar o cu nocturno, ouvindo, porm, uma voz atrs dele que lhe recordou que no estava sozinho. Voltou-se; preparava-se para pedir desculpa quando engoliu as palavras. Nikolai, um homem que lhe ensinara que a crueldade era necessria e boa, estava lavado em lgrimas: Leo? Nem sequer estava a escutar. Ainda de lgrimas no rosto, Nikolai soltou uma risada, um som que transportou Leo de volta para as obrigatrios festejos aps terem feito uma priso. Nessa noite, porm, o riso de Nikolai era diferente. Era quebradio. A insolncia e a confiana tinham desaparecido: Queres esquecer? No queres, Leo? No te condeno. Dava tudo para poder esquecer. Que belo sonho seria esse Peo desculpa, Nikolai; a minha cabea est noutro stio, uma questo familiar. Seguiste o meu conselho Uma famlia, isso bom. As famlias so importantes. As famlias so tudo. Um homem no nada sem o amor da sua famlia. Podemos falar amanh? Quando estivermos menos cansados? Nikolai assentiu com um gesto de cabea e ergueu-se. Junto porta estacou, de olhos postos no cho: Estouenvergonhado. No te preocupes. Todos ns bebemos demais de vez em quando. Falamos amanh. Nikolai fitou-o. Leo julgou que ele fosse soltar nova risada, mas desta vez deu meia volta, dirigindo-se para as escadas. Leo sntiu-se aliviado por se encontrar finalmente a ss e ser capaz de se concentrar. No podia continuar a fingir. Ele era uma recordao sempre presente da terrvel perda de Zoya. Nunca falara sobre o que se passara naquele dia, quando os seus pais tinham sido mortos a tiro. Tentara ignorar o passado. A faca era um grito de socorro. Tinha de agir para salvar a sua famlia. Ele era capaz de resolver a situao. Falar com Zoya: essa era a soluo. Tinha de falar com ela imediatamente.

43

No mesmo dia

Nikolai saiu para a rua, as botas a afundarem-se na fina neve. Ao sentir o frio no estmago descoberto, enfiou a camisa para dentro das calas mal conseguia focar os olhos, o corpo balanava como se estivesse no convs de um barco. Por que ligara a Leo? Que esperava ele que o seu antigo protegido fizesse? Talvez tivesse vindo apenas pelo companheirismo, no aquele companheirismo de um companheiro de copos; viera pela companhia de um homem que partilhava a sua vergonha, um homem que no podia julgar sem fazer o mesmo julgamento a si prprio. Estou envergonhado. Estas eram as palavras que Leo deveria ter compreendido melhor do que ningum. A vergonha mtua devia t-los unido, t-los tornado irmos. Leo devia t~e-lo abaado e dito: Eu tambm. Teria ele esquecido a histria de ambos to facilmente? No; possuam meramente diferentes formas de lidar com ela. Leo embarcara numa carreira nova e nobre, esfregando as mos sujas de sangue numa bacia de respeitabilidade clida e cheia de sabo. A tcnica de Nikolai era beber at perder os sentidos, no pelo divertimento mas como um ataque sua memria. Algum no permitia que esquecesse, e enviava-lhe fotografias de homens e mulheres tiradas contra uma parede branca, cortadas de forma a ver-se-lhe apenas os rostos. A princpio no reconhecera os sujeitos, no obstante tivesse reconhecido imediatamente tratarem-se de fotografias de detidos, do tipo que era requerido por qualquer burocracia prisional. Tinham chegado em sequncia, uma vez por semana, depois uma vez por dia, num envelope deixado em sua casa. Ao observ-las, comeara a recordar-se de nomes, de conversas memrias fracturadas, uma colagem rudimentar com a priso de um cidado entretecida na interrogao de um outro e a execuo de outro ainda. medida que as fotografias acumulavam, segurando-as num monte entre as mos, comeara a questionar-se se de facto teria prendido assim tantos. Na verdade, ele sabia, tinha prendido muitos mais. Nikolai queria confessar, pedir perdo. Mas no lhe enviavam exigncias, no reivindicavam pedidos de desculpa, no lhe davam quaisquer instrues sobre a forma de se

44

poder mostrar arrependido. O primeiro envelope vinha marcado com o seu nome. A sua mulher trouxera-lho e ele abrira-o casualmente sua frente. Quando ela lhe perguntou o que continha, ele mentiu, escondendo as fotografias. A partir desse dia, vira-se obrigado a abri-los em segredo. Mesmo depois de vinte anos de casamento, a sua mulher nada sabia acerca do seu trabalho. Sabia que tinha sido oficial da Segurana Estatal. Mas pouco mais sabia. Talvez a sua ignorncia fosse intencional. No se importava se era intencional ou no, agradava-lhe a sua ignorncia: dependia dela. Quando a olhava nos olhos via um amor incondicional. Se ela soubesse, se ela visse os rostos das pessoas que ele prendera, se ela visse os seus rostos depois de dois dias de interrogatrio, haveria medo nos seus olhos. O mesmo se aplicava s filhas. Riam-se e brincavam com ele. Amavam-no e ele amava-as. Era um bom pai, atencioso e paciente, nunca levantava a voz, nunca bebia em casa: uma casa onde ele permanecera um bom homem. Algum queria roubar-lhe isso. Nos ltimos dias, os envelopes j no vinham marcados com o seu nome. Qualquer um podia abri-los: a mulher, as filhas. Nikolai comeara a temer sair de casa, no fosse chegar alguma coisa na sua ausncia. Fizera a famlia prometer que lhe entregariam qualquer encomenda ou carta, estivesse ou no marcada com um nome. Na vspera, tinha ido ao quarto das filhas e encontrara uma carta sem destinatrio sobre a mesa-de-cabeceira. Perdera as estribeiras, escumando de raiva pela primeira vez, perguntando furiosamente se as raparigas o haviam aberto. Elas choraram, confusas com a sbita transformao, garantindo-lhe que s o tinham posto em cima da mesa-de-cabeceira para no se perder. Vira-lhes o medo nos olhos: partira-lhe o corao. Nessa altura, decidira-se a procurar a ajuda de Leo. O Estado tinha de apanhar aqueles criminosos que o perseguiam insensatamente. Dedicara muitos anos da sua vida a servir o pas. Era um patriota. Ganhara o direito de viver em paz. Leo podia ajud-lo: tinha uma equipa de investigao s suas ordens. Seria do seu interesse mtuo apanhar aqueles contra-revolucionrios. Seria tal qual nos velhos tempos. S que Leo no o quisera ouvir. Os operrios do turno da madrugada estavam a chegar padaria. Estacaram, observando Nikolai parado na entrada do prdio. Rosnou-lhes: Que foi? Os outros no pronunciaram palavra, permanecendo agrupados a alguns metros de distncia, sem se cruzarem com ele. Julgam-me? Os seus rostos estavam plidos, homens e mulheres espera de cozer o po da cidade. Tinha de ir para casa, para o nico lugar, o nico lugar do mundo onde era amado e onde o passado nada significava.

45

Como vivia ali perto, comeou a cambalear pelas ruas desertas, esperando que no tivesse chegado mais um pacote de fotografias na sua ausncia. Deteve-se: a sua respirao era superficial e pesada, como a de um velho co doente. Havia mais qualquer coisa, outro rumor. Deu meia volta, olhando atrs de si. Passadas: estava certo, o bater, o bater de solas duras no pavimento de pedra. Estava a ser seguido. Esgueirou-se para as sombras, procurando contornos, aguando os olhos. Vinham atrs dele, os inimigos, espiando-o: perseguiam-no como ele em tempos os perseguira. Corria agora, para casa, to depressa quanto podia. Tropeou antes de recuperar o equilbrio, o sobretudo badanava-lhe pela altura dos tornozelos. Mudou de direco, voltando-se com uma precipitao calculada. Havia de apanh-los naquele jogo. Conhecia aqueles truques. Eram os seus truques. Estavam a usar os seus prprios mtodos contra ele. De olhos fixos nas esquinas sombrias, nos lgubres enclaves, nos esconderijos que ensinara os recrutas do MGB a entrepassar, chamou: Sei que ests a. A sua voz ressoou no aparente vazio da rua. Vazio para um leigo, mas ele era um especialista naquele assunto. A sua atitude de desafio foi breve e logo se dissipou: Tenho filhas, duas meninas. Elas amam-me! No merecem isto. Se me magoar estar a mago-las a elas. As suas filhas tinham nascido por volta da altura em que era oficial do MGB. Depois de prender pais, mes, filhos e filhas, regressava todas as noites a casa e dava um beijo de boas noites sua prpria famlia. Ento e os outros? H milhes de outros, se nos matarem a todos, no restar ningum. Estvamos todos envolvidos! As pessoas comearam a vir assomar-se s janelas,