62505506 o discurso secreto tom rob smith

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    O DISCURSO SECRETO

    TOM ROB SMITH

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    UNIO SOVITICA

    MOSCOVO

    3 de Junho de 1949

    Durante a Grande Guerra Patritica, tinha demolido a ponte de Kalach em defesa de

    Estalinegrado, armadilhado fbricas com dinamite, reduzindo-as a escombros e ateado fogo a

    refinarias indefensveis, enadrezando os contornos do horizonte com colunas de leo ardente,

    com pressa de destruir tudo o !ue pudesse ser re!uisitado pelos invasores da "ehrmacht# $o

    passo !ue os seus compatriotas choravam vendo as suas cidades natais desmoronarem-se % sua

    volta, ele sobrevivera % devasta&'o com um sorriso de gozo nos lbios# ( inimigo podiacon!uistar um territrio devastado, uma terra !ueimada e um c)u repleto de fumo# *mprovisando

    ami+de com !uais!uer materiais !ue estivessem % m'o lan&a-granadas, garrafas de vidro,

    transvasando gasleo de camies militares abandonados e capotados ganhara a reputa&'o de ser

    um homem de Estado no !ual se podia confiar# .unca perdera a calma, nunca cometera um erro,

    mesmo !uando operava em condi&es etremas/ noites g)lidas de *nverno, com gua pela cintura

    em rios de guas rpidas, a sua posi&'o a ser atacada por fogo inimigo# Para um homem com a

    sua eperi0ncia e temperamento, a tarefa de hoe devia ser rotineira# .'o havia urg0ncia,

    nenhuma bala a assobiar-lhe por cima da cabe&a# E, por)m, as suas m'os, reconhecidas como asmais firmes do of2cio, tremiam# Gotas de suor rolaram-lhe para os olhos, obrigando-o a enug-

    los com a ponta da camisa# 3entia-se agoniado, como se fosse de novo um novi&o, pois esta era a

    primeira vez !ue o !uin!uagenrioheri de guerra, 4e5abs Duva5in, fazia eplodir uma igrea#

    Era preciso colocar mais uma carga de eplosivos, mesmo % sua frente, no local onde

    anteriormente se erguia o altar# ( trono do bispo, os bancos, os santos, os menalia tudo fora

    levado# $t) a folha de ouro tinha sido raspada das paredes# $ igrea estava vazia com ecep&'o

    da dinamite enterrada nas funda&es e atada aos pilares# $pesar de profanado, pilhado e

    sa!ueado, continuava a ser um espa&o amplo e impressionante# $ abboda central, encastoadacom uma coroa de vitrais coloridos, era t'o alta e t'o repleta de luz, !ue parecia fazer parte do

    c)u# De cabe&a ar!ueada para trs, boca aberta, 4e5abs admirou o cimo da abboda, cin!uenta

    metros acima dele# 6aios de luz penetravam nas anelas altas, iluminando as pinturas a fresco,

    !ue em breve deveriam ser detonadas, reduzidas %s suas partes constituintes/ um milh'o de gr'os

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    de tinta# $ luz espalhou-se pelo pavimento liso de pedra, n'o muito longe de onde estava

    sentado, como se tentasse alcan&-lo, a palma de uma m'o dourada estendida#

    8urmurou/

    9 .'o h deus#

    :ornou a repeti-lo, desta vez mais alto, as palavras a ecoarem no interior da c+pula/ No h deus!

    Era um dia de ;er'o< era evidente !ue havia luz# .'o era um sinal de coisa nenhuma#

    .'o era algo divino# $ luz n'o tinha !ual!uer significado# Estava a pensar demais, esse era o

    problema# Ele nem se!uer acreditava em Deus# :entou recordar-se de um dos muitos slogans

    anti-religiosos do Estado/

    A Religio faz parte de uma poca em que cada um era para si

    E Deus era para cada um.

    Ele n'o estava a destruir uma igrea/ estava a criar um futuro melhor# $!uele edif2cio

    n'o era sagrado ou aben&oado# Devia v0-lo como nada mais do !ue pedra, vidro e madeira

    dimenses/ cem metros de comprido e sessenta de largo# 3em produzir nada, sem servir nenhuma

    fun&'o !uantificvel, a igrea n'o passava de uma estrutura arcaica erigida por razes arcaicas por

    uma sociedade !ue n'o eistia#

    4e5abs recostou-se, correndo com a m'o ao longo do ch'o de pedra fria, polido pelos p)s

    de muitas centenas de milhares de fi)is !ue ali tinham ouvido as missas durante muitas centenasde anos# *mpressionado pela magnitude do !ue estava prestes a fazer, come&ou a engasgar-se

    como se tivesse deveras !ual!uer coisa presa na garganta# $ impress'o passou# Estava cansado e

    trabalhara em demasia, nada mais# .ormalmente, num proecto de demoli&'o da!uela escala,

    seria assistido por uma e!uipa, o trabalho seria repartido# .a!uele caso, decidira !ue os seus

    homens podiam desempenhar um papel secundrio# .'o havia necessidade de dividir a!uela

    responsabilidade, os colegas n'o precisavam de ser envolvidos desnecessariamente# .em todos

    eram detentores de um pensamento claro como ele# .em todos se tinham epurgado de

    sentimentos religiosos# .'o !ueria homens com uma motiva&'o conflitual a trabalhar a seu lado#:rabalhara cinco dias a fio, do sol nascer ao sol-p=r, posicionando todos os eplosivos de

    forma estrat)gica para garantir !ue a estrutura se desmoronava para dentro, e as c+pulas ca2am

    ordenadamente no topo umas das outras# >onge de ser uma demoli&'o catica, havia ordem e

    precis'o no seu of2cio, e ele sentia orgulho desta sua habilidade especial# $!uele edif2cio

    representava um desafio +nico# .'o se tratava de uma !uest'o moral, mas de um teste

    ?

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    intelectual# @om uma torre do sino e cinco c+pulas douradas, cua maior de todas era sustentada

    por um tabernculo de oitenta metros de altura, a demoli&'o controlada e bem-sucedida da!uele

    dia constituiria um desfecho ade!uado % sua carreira# Depois da!uele trabalho, fora-lhe

    prometida uma reforma antecipada# Aalara-se at) de receber a (rdem de >enine, como forma de

    pagamento por um trabalho !ue mais ningu)m !ueria fazer#$banou a cabe&a# .'o devia estar ali# .'o devia estar a fazer a!uilo# Devia ter fingido

    !ue estava doente# Devia ter obrigado outra pessoa a colocar a +ltima carga de eplosivos#

    $!uilo n'o era trabalho para um heri# Por)m, os perigos de se es!uivar ao trabalho eram muito

    maiores, muito mais reais do !ue !uais!uer ideias supersticiosas de !ue a!uele trabalho pudesse

    estar amaldi&oado# :inha uma fam2lia a proteger a mulher, a filha e amava-a muito#

    #

    >azar encontrava-se entre a multid'o, afastado do per2metro da *grea de 3ancta 3ophia a

    uma distBncia de seguran&a de cem metros, e a sua solenidade contrastava com o entusiasmo e a

    tagarelice da!ueles % sua volta# @oncluiu !ue era o tipo de multid'o !ue teria assistido a uma

    eecu&'o p+blica, n'o por uma !uest'o de princ2pio, mas apenas pelo espectculo, apenas para

    estar entretida com !ual!uer coisa# Cavia uma atmosfera festiva, as conversas efervesciam de

    epectativa# $s crian&as balou&avam-se nos ombros dos pais, esperando impacientemente !ue

    acontecesse alguma coisa# $ igrea n'o lhes bastava/ tinha de desmoronar para seu

    entretenimento#.a frente da barricada, sobre um pdio constru2do a propsito para proporcionar

    eleva&'o, uma e!uipa de filmagens estava atarefada a montar trip)s e cBmaras, discutindo !uais

    os melhores Bngulos para captar a demoli&'o# Prestavam especial aten&'o a acautelar !ue

    apanhavam todas as cinco abbadas e havia uma s)ria especula&'o sobre se estas se iriam

    despeda&ar no ar !uando colidissem umas nas outras, ou s !uanto embatessem no solo#

    Dependeria, arrazoaram, da per2cia dos especialistas !ue estavam a colocar a dinamite no interior#

    >azar !uestionou-se se poderia haver tamb)m tristeza entre a multid'o# (lhou para a

    es!uerda e para a direita, procurando almas com um pensamento id0ntico ao seu o casal aofundo, ambos em sil0ncio, rostos eauridos de cor< a anci' l atrs, de m'o no bolso# Escondia

    !ual!uer coisa no seu interior, um crucifio talvez# >azar !ueria dividir a!uela multid'o, separar

    os !ue sofriam dos !ue se compraziam# ueria ficar ao lado da!ueles !ue davam valor ao !ue

    estava prestes a ser perdido/ uma igrea de trezentos anos# aptizada e desenhada % semelhan&a

    da @atedral de 3ancta 3ophia em Gor5F, sobrevivera a guerras civis e a guerras mundiais# (s

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    recentes estragos causados por bombardeamentos eram uma raz'o para preserv-la, n'o para

    destrui-la# >azar lera, com desprezo, o artigo publicado norada, !ue alegava insta"ilidade da

    estrutura# n'o passava de um preteto, uma m'o cheia de falsa lgica para tornar a!uele feito

    aceitvel# ( Estado ordenara a destrui&'o da igrea e o !ue era pior, muito pior, a ordem tinha

    sido dada com o acordo da *grea (rtodoa# $mbas as partes envolvidas na!uele crime alegavam!ue a!uela se tratava de uma decis'o pragmtica, n'o ideolgica# :inham enumerado uma s)rie

    de factores concorrentes para a decis'o/ estragos causados pelos raides da >uftHaffe< o interior

    precisava de renova&es compleas, !ue n'o se podia pagar< al)m do mais, a terra no cora&'o da

    cidade era necessria para um proecto de constru&'o de vital importBncia# :oda a gente no poder

    estava de acordo com a resolu&'o# $!uela igrea, !ue n'o era com certeza uma das mais belas de

    8oscovo, devia ser deitada abaio#

    Por detrs do vergonhoso acordo ocultava-se a cobardia# $s autoridades eclesisticas,

    depois de terem aliado todas as congrega&es a Estaline durante a guerra, eram agora uminstrumento de Estado, um departamento do Kremlin# $!uela demoli&'o era uma mostra de

    subuga&'o# Aaziam-na ir pelos ares pura e simplesmente para provar a sua humildade/ um acto

    srdido de automutila&'o para afirmar !ue a religi'o era inofensiva, dcil, domesticada# 4 n'o

    precisava de ser perseguida# >azar compreendeu a pol2tica do sacrif2cio/ n'o seria melhor perder

    s uma igrea do !ue perd0-las todasI

    Em ovem testemunhara seminrios serem transformados em casernas de operrios,

    igreas convertidas em centros de eibi&'o anti-religi'o#

    (s 2cones eram usados como lenha, os padres postos na pris'o, torturados e eecutados#@ont2nua persegui&'o ou subservi0ncia irreflectida/ fora essa a escolha#

    #

    4e5abs ouvia o barulho da multid'o reunida l fora, o alarido en!uanto esperavam !ue o

    espectculo come&asse# Era tarde# 4 devia ter terminado# Por)m, nos +ltimos cinco minutos

    permanecera imvel, de olhos postos na +ltima carga, sem fazer nada# $trs dele, ouviu o ranger

    da porta# >an&ou um olhar por cima do ombro# Era o seu colega e amigo, parado na soleira daporta, como se temesse entrar# @hamou, a sua voz repercutiu-se no interior/

    $e%a"s! & que que se passa'

    4e5abs respondeu/

    Nada. Estou quase pronto.

    ( amigo hesitou antes de acrescentar um comentrio, adocicando a voz/

    J

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    (amos "e"er uns copos logo ) noite* n+s os dois* para cele"rar a tua reforma'

    Amanh acordas com uma terr,el dor de ca"e-a* mas ) noite te sentes muito melhor.

    4e5abs sorriu % tentativa de consolo do amigo/ a culpa n'o seria pior do !ue uma ressacaazar ali estava de p), os ouvidos a retinir, de olhos fios na nuvem de p, % espera !ue

    esta assentasse# L medida !ue a nuvem se rarefez, revelou um buraco na parede do dobro da

    altura de um homem e igualmente largo# Era como se um gigante tivesse acidentalmente enfiado

    a ponta da sua bota na igrea, retirando depois o p) em constrangimento, poupando o resto do

    M

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    edif2cio# >azar levantou os olhos para as abbadas douradas# :oda a gente % sua volta seguiu o

    eemplo, uma s !uest'o na mente de todos eles/ iriam as torres cairI

    Pelo canto do olho, >azar conseguia ver a e!uipa de filmagens numa azfama para ligar

    as cBmaras, a limpar o p das lentes, abandonando os trip)s, num desespero desenfreado para

    capturar as imagens# 3e perdessem o colapso, fosse !ual fosse a desculpa, as suas vidas estariamem risco# $pesar do perigo, nenhum deles fugiu< ficaram parados no mesmo s2tio, % procura do

    mais pe!ueno movimento/ um pendor, um aban'o, uma trepida&'o# Por um instante, parecia !ue

    at) os feridos tinham feito sil0ncio na epectativa#

    $s cinco abbadas n'o ca2ram, distantes do insignificante caos do mundo em baio#

    En!uanto a igrea permaneceu de p), muita gente na multid'o sangrava, estava ferida, chorava#

    :'o certo como o c)u acima se encobrir, >azar sentiu uma mudan&a de humor# Emergiram

    d+vidas# :eria algum poder sobrenatural intervindo para impedir a!uele crimeI (s espectadores

    come&aram a afastar-se, alguns lentamente, outros untaram-se-lhes, mais e mais, afastando-secom passo apressado# .ingu)m !ueria continuar a assistir# >azar debateu-se para conter uma

    gargalhada# $ multid'o ca2ra, ao passo !ue a igrea sobrevivera ;oltou-se para o casal, na

    esperan&a de partilhar com eles a!uele momento#

    ( homem !ue se encontrava atrs de >azar estava t'o primo !ue !uase se tocavam#

    >azar n'o o ouvira aproimar-se# Ele sorria, mas os seus olhos eram frios# .'o usava uniforme

    nem mostrou o seu cart'o de identidade# @ontudo, n'o havia d+vida de !ue era da 3eguran&a do

    Estado, um oficial da pol2cia % paisana, um agente do 8G uma dedu&'o !ue podia ser feita

    n'o a partir do !ue estava presente na sua apar0ncia, mas do !ue estava ausente# L sua direita ees!uerda encontravam-se pessoas feridas# :odavia, a!uele homem n'o tinha interesse neles#

    Aora plantado na multid'o para vigiar a reac&'o das pessoas# E >azar falhara/ estivera triste

    !uando devia ter estado contente, e contente !uando devia ter estado triste#

    ( homem falou por entre um sorriso fino, sem nunca desviar os seus olhos morti&os de

    >azar/

    0m pequeno res* um acidente* resole/se facilmente. Deia ficar1 talez ainda

    aconte-a hoe* a demoli-o. 2uer ficar* no quer' 2uer er a igrea cair' (ai ser um

    espectculo tremendo. 3im.

    Nma resposta cautelosa e tamb)m a verdade, ele !ueria de facto ficar, mas n'o, ele n'o

    !ueria ver a igrea cair e certamente n'o diria !ue sim# ( homem prosseguiu/

    O

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    Neste local ir situar/se uma das maiores piscinas co"ertas do mundo. ara que as

    nossas crian-as cres-am saudeis. 4 "om as nossas crian-as serem saudeis. 2ual o seu

    nome'

    $ mais comum das perguntas e, por)m, a mais aterradora/

    & meu nome 5azar. 2ual a sua ocupa-o'

    $!uele dilogo deiara de estar sob o disfarce de uma conversa casual e passara a ser um

    interrogatrio aberto# 3ubuga&'o ou persegui&'o, ser pragmtico ou reger-se por princ2pios/

    >azar tinha de escolher# E ele tinha de facto uma escolha, ao contrrio de muitos dos seus

    confrades, !ue eram instantaneamente reconhec2veis# Ele n'o tinha de admitir !ue era um padre#

    ;ladimir >vov, antigo Procurador-Geral do 3agrado 32nodo, defendera !ue os padres n'o tinham

    de se diferenciar dos outros pela suas vestes e !ue podiam despir as suas sotainas, cortar o cabelo

    e transfigurarem-se em comuns mortais# >azar concordava# De barba aparada e trivial apar0ncia,ele podia mentir %!uele agente# Podia negar a sua voca&'o e esperar !ue a mentira o protegesse#

    :rabalhava numa fbrica de sapatos ou fazia mesas 9 tudo menos a verdade# ( agente esperava

    de rosto apreensivo pela suspeita#

    >azar teve de escolher#

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    No mesmo d!

    .as primeiras semanas, $nisFa n'o se preocupara muito com o assunto# 8aim tinha

    apenas vinte e !uatro anos# Graduara-se no 3eminrio $cad)mico :eolgico de 8oscovo,

    encerrado desde 1Q1 e recentemente reaberto como parte do esfor&o para a reabilita&'o das

    institui&es religiosas# Ela era seis anos mais velha do !ue ele, casada, inating2vel, uma

    perspectiva tentadora para um ovem !ue ela ulgava ter pouca, ou mesmo nenhuma eperi0ncia

    seual# *ntrospectivo e t2mido, 8aim n'o se dava com ningu)m fora da igrea e tinha poucos

    amigos ou fam2lia, ou pelo menos nenhum deles vivia na cidade# .'o era de surpreender, pois,

    !ue tivesse desenvolvido !ual!uer tipo de sentimento a partir de um arrebatamento# Ela toleraraos seus olhares demorados, sentindo-se talvez at) lisoneada por eles# Por)m, de forma alguma o

    havia encoraado# Ele compreendera mal o seu sil0ncio, considerando-o como uma permiss'o

    para continuar a corte-la# Era por essa raz'o !ue ele agora lhe segurava na m'o e dizia/

    Dei6a/o. (em ier comigo.

    Estava convencida de !ue ele amais teria coragem de tomar uma atitude com base no

    !ue poderia ser apenas um devaneio v'o e pueril/ os dois fugirem untos# Por)m, enganara-se#

    Etraordinariamente, ele escolhera a!uele lugar para atravessar a fronteira da fantasia

    privada para uma proposta aberta/ encontravam-se de p) no interior da igrea do marido, com aspinturas a fresco dos disc2pulos, demnios, profetas e anos ulgando os seus movimentos il2citos

    das alcovas sombrias# 8aim arriscava tudo para o !ue estudara, enfrentando a desgra&a certa e

    o e2lio da comunidade religiosa, sem esperan&a de reden&'o# ( seu pedido s)rio e sincero era

    t'o errado e absurdo !ue ela n'o p=de se n'o reagir da pior forma poss2vel# 3oltou uma risada

    curta, surpreendida#

    $ntes !ue ele tivesse tempo de responder, a pesada porta de carvalho fechou-se com um

    ba!ue# $nisFa voltou-se, assombrada, dando de caras com o marido >azar !ue se

    aproimava deles com passo apressado, numa urg0ncia tal !ue s podia supor !ue ele interpretaraa!uela cena como uma prova da sua infidelidade# $fastou-se de 8aim, num movimento brusco

    !ue apenas aumentava a impress'o de culpa# L medida !ue ele se aproimava, por)m,

    compreendeu !ue >azar, o homem com !uem estava casada h dez anos, parecia preocupado com

    !ual!uer outra coisa# >an&ava olhares para a porta atrs dele# (fegante, como se tivesse vindo a

    Q

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    correr, pegou nas suas m'os, m'os essas !ue apenas poucos segundos antes tinham sido

    seguradas por 8aim/

    7ui identificado na multido. 0m agente questionou/me.

    >azar falou depressa, as palavras sa2ram-lhe atabalhoadamente, e a sua importBncia

    relegou para segundo plano a proposta de 8aim# Ela perguntou/ 7oste seguido'

    @onfirmou com um gesto de cabe&a/

    Refugiei/me no apartamento de Natasha Niurina.

    & que aconteceu'

    Ele ficou l fora. 7ui o"rigado a sair pelas traseiras.

    8ro prender Natasha e question/la'

    >azar levou as m'os ao rosto/

    Entrei em p9nico. No sa"ia para onde mais ir. No deeria ter ido para casa dela.$nisFa agarrou-o pelos ombros/

    3e a :nica forma de nos encontrarem prendendo Natasha* temos algum tempo.

    >azar abanou a cabe&a/

    $ lhe disse o meu nome.

    Ela compreendeu/ n'o podia mentir# .'o comprometeria os seus princ2pios, nem por ela

    nem por ningu)m# (s princ2pios eram mais importantes do !ue as suas vidas# $ verdade ) !ue

    n'o devia ter ido assistir % demoli&'o/ avisara-o de !ue era um risco desnecessrio# $ multid'o

    iria inevitavelmente ser vigiada e ele seria um espectador fcil de identificar# Ele ignorara-a,como era seu costume, parecendo sempre !ue ouvia os seus conselhos, mas sem nunca lhes

    prestar devida aten&'o# .'o lhe tinha ela pedido !ue n'o alienasse as autoridades eclesisticasI

    $ posi&'o deles era t'o forte !ue se podiam dar ao luo de fazer inimigos tanto no Estado como

    na *greaI 8as ele n'o tinha interesse nas pol2ticas da alian&a/ !ueria t'o-somente dizer a sua

    opini'o, ainda !ue esta o deiasse isolado, por criticar abertamente a nova rela&'o entre bispos e

    pol2ticos# :eimoso, obstinado, eigia !ue ela apoiasse a sua posi&'o, sem !ue a sua opini'o

    contasse# Ela admirava-o, era um homem 2ntegro# 8as ele n'o a admirava a ela# Era muito mais

    nova do !ue ele e tinha apenas vinte anos !uando se casaram# Ele tinha trinta e cinco# Por vezeschegara a !uestionar-se se ele se teria casado com ela por!ue por ser um Padre ranco, um padre

    casado, !ue fizera um voto monstico, essa era em si uma declara&'o reformista# ( conceito era-

    lhe apelativo, ade!uava-se ao seu es!uema filosfico liberal# Ela estivera sempre preparada para

    o momento em !ue o Estado se iria atravessar nas suas vidas# Por)m, agora !ue esse momento

    1R

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    chegara, sentia-se defraudada# Estava a pagar pelas opinies dele, opinies essas para as !uais

    nunca contribuira e !ue nunca tivera permiss'o para influenciar#

    >azar colocou uma m'o no ombro de 8aim#

    & melhor regressares ao 3eminrio e denunciar/nos. 0ma ez que amos ser

    presos* a den:ncia seriria apenas para te distanciares de n+s. ;a6im* tu ainda s um oem.Ningum ir pensar mal de ti por partires.

    ;inda de >azar, a!uela oferta de fuga era uma proposta armada# >azar considerava esse

    tipo de comportamento pragmtico abaio de si, ade!uado para os outros, homens e mulheres

    mais fracos# $ sua superioridade moral era sufocante# >onge de oferecer uma sa2da a 8aim,

    estava a encurral-lo# $nisFa atalhou, tentando manter um tom de voz amigvel/

    ;a6im* tens de partir.

    Ele reagiu, rispidamente/

    2uero ficar.8elindrado pela anterior risada, mostrava-se infle2vel e indignado# Aalando num duplo

    sentido invis2vel para o marido, disse-lhe/

    or faor ;a6im* esquece tudo o que aconteceu* no irs ganhar nada em ficar.

    8aim abanou a cabe&a/

    $ tomei a minha deciso.

    $nisFa notou o sorriso de >azar# .'o havia d+vida de !ue o marido gostava de 8aim#

    :omara-o sob a sua protec&'o, cego % pai'o do seu protegido por ela, alerta apenas %s

    defici0ncias do seu conhecimento das escrituras e da filosofia# Parecia estar satisfeito com adecis'o de 8aim em ficar, acreditando !ue tinha alguma coisa a ver com ele# $nisFa

    aproimou-se mais de >azar/

    No podemos dei6ar que ele arrisque a sua ida.

    No podemos o"rig/lo a partir.

    5azar* esta luta no dele.

    E n'o era tamb)m a sua#

    Ele fazar eclamou/

    =asta! No temos tempo! 2ueres que ele estea seguro. Eu tam"m. ;as se

    ;a6im quer ficar* fica.

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    #

    >azar encaminhou-se apressadamente para o altar de pedra, despoando-o

    precipitadamente# :odas as pessoas ligadas %!uela igrea corriam perigo# .'o podia fazer muito

    pela sua mulher ou 8aim/ tinham uma liga&'o muito prima a ele# $ sua congrega&'o,

    por)m, as pessoas !ue se confidenciavam a ele, !ue compartilhavam os seus medos, era essencial

    !ue os seus nomes se mantivessem em segredo#

    @om o altar despido, >azar agarrou num dos lados/

    Empurra!

    .'o muito sbio, mas obediente, 8aim empurrou o altar, retesando-se com o peso# $

    spera base de pedra resvalou ruidosamente pelo ch'o, deslizando devagar para o lado e

    revelando um buraco, um esconderio criado cerca de vinte anos antes, durante os ata!ues mais

    intensos % igrea# $s laes de pedra tinham sido retiradas, epondo a terra !ue foracuidadosamente escavada e aprumada com suportes de madeira para a impedir de aluir, criando

    um espa&o de um metro de profundidade e dois de largo# @ontinha uma arca de metal# >azar

    debru&ou-se para a cova e 8aim fez o mesmo, segurando na outra ponta da arca e levantando-a,

    colocando-a depois no ch'o, pronta para ser aberta#

    $nisFa levantou a tampa# 8aim agachou-se a seu lado, incapaz de suprimir o espanto

    da sua voz/

    ;:sica'

    $ arca estava repleta de partituras escritas % m'o# >azar eplicou/ & compositor costumaa ir aqui ) missa* era um oem* no muito mais elho do que

    tu* estudaa no >onserat+rio de ;oscoo. rocurou/nos uma noite* aterrorizado porque estaa

    prestes a ser preso. ?emendo que o seu tra"alho fosse destru,do* confiou/nos as suas

    composi-@es. rande parte do seu tra"alho fora condenado como anti/soitico.

    orqu

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    No sei ler m:sica. E a minha mulher tam"m no. ;as* ;a6im* no ests a

    compreender a questo. A minha promessa de auda no dependia dos mritos do seu tra"alho.

    Esto a arriscar as ossas idas' 3e no tier alorB

    >azar corrigiu-o/

    Estamos a proteger estes papisC estamos a proteger o seu direito a so"reier.$nisFa achou a seguran&a do marido easperante# ( ovem compositor em !uest'o

    tinha-a procurado a ela, n'o a ele# Ela falara depois com >azar e convencera-o a aceitar a m+sica#

    .o recontar da histria, suavizara as suas d+vidas e ansiedades, reduzindo-a a uma simples

    apoiante passiva# Perguntou-se se ele estaria se!uer consciente dos austes !ue fizera % histria,

    enaltecendo automaticamente a importBncia do seu papel, recentrando a histria em torno de si

    prprio#

    >azar tomou a inteira colec&'o de folhas de m+sica soltas, cerca de duzentas pginas no

    total# Entre as partituras encontravam-se alguns documentos relativos ao negcio da igrea evrios 2cones originais !ue tinham sido escondidos e substitu2dos por r)plicas# Dividiu

    apressadamente o conte+do da arca em tr0s pilhas, verificando com a mima acuidade !ue lhe

    foi poss2vel !ue as partituras se mantinham untas# ( plano era transport-las dali para fora

    clandestinamente, mais ou menos em partes iguais# Divididas em tr0s, havia uma probabilidade

    razovel de !ue a m+sica sobrevivesse# $ maior dificuldade era arranar tr0s esconderios

    distintos, tr0s pessoas !ue estivessem dispostas a sacrificar as suas vidas em prol de notas escritas

    numa pgina, sem nunca terem conhecido o compositor ou ouvido a sua m+sica# >azar conhecia

    muitos na sua par!uia !ue poderiam audar# 8uitos deles estariam provavelmente sob algumtipo de suspeita# Para a!uela tarefa precisavam da auda de um 3oviete perfeito, de algu)m cuo

    apartamento nunca fosse ser revistado# :al pessoa, a eistir, nunca os audaria# $nisFa atirou

    sugestes/

    ;artemian 3rtso.

    7ala demais.

    Artiom Na%hae.

    Ele concordaria* learia os papis e depois entraria em p9nico* perderia a coragem e

    queim/los/ia. Niura Dmitriea.

    Ela aceitaria* mas depois iria odiar/nos por lho termos pedido. No iria conseguir

    dormir* nem comer.

    .o final, dois nomes/ foi tudo em !ue conseguiram concordar# >azar decidiu guardar

    parte da m+sica escondida na igrea, unto com os 2cones maiores, tornando a deposit-los na arca

    1?

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    e empurrando o altar para o seu lugar# @omo >azar tinha maiores probabilidades de ser seguido,

    cabia a $nisFa e 8aim transportar parte da m+sica at) %s duas moradas# 3airiam em separado#

    $nisFa estava pronta/

    Eu ou primeiro.

    8aim abanou a cabe&a/ No. Eu irei primeiro.

    Ela adivinhou a raz'o por !ue se oferecera/ se 8aim conseguisse escapar, haveria

    hiptese de ela tamb)m o conseguir#

    $briram a porta principal, levantando a grossa travessa de madeira# $nisFa sentiu

    8aim hesitar, indubitavelmente temeroso, come&ava a interiorizar os perigos !ue enfrentava#

    >azar apertou-lhe a m'o# 8aim deitou-lhe um olhar por cima do ombro do marido# uando

    >azar terminou, 8aim aproimou-se dela#

    =oa sorte* ;a6im.$bra&ou-o e viu-o entrar na noite#

    >azar fechou a porta, trancando-a atrs dele, reiterando o plano/

    Esperamos dez minutos.

    3ozinha com o marido, sentou-se num banco primo da dianteira da igrea# Ele untou-

    se-lhe# Para sua surpresa, em vez de rezar, ele segurou-lhe na m'o#

    #

    Dez minutos depois, aproimaram-se da porta# >azar ergueu a travessa de madeira# (s

    pap)is encontravam-se num saco, !ue ela levava a tiracolo# $nisFa saiu para a rua# 4 se haviam

    despedido# Ela voltou-se, observando em sil0ncio >azar fechar a porta atrs de si# (uviu a

    travessa de madeira assentar no lugar# Depois come&ou a caminhar em direc&'o % rua, vigiando

    os rostos %s anelas, os movimentos nas trevas# Nma m'o segurou-lhe o pulso# $ssombrada, deu

    meia volta#

    Era 8aim#

    ;a6im'ue faria ele aliI (nde estava a m+sica !ue transportava consigoI Das traseiras da igrea

    uma voz, severa e impaciente, chamou/

    5eo'

    $nisFa avistou um homem envergando um uniforme escuro/ um agente 8G# Cavia

    mais homens atrs dele, apinhados como baratas# $s suas !uestes dissiparam-se, concentrando-

    1

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    se no nome !ue ouvira chamar/ 5eo# @om o pu'o de uma simples palavra o novelo de mentiras

    deslindou-se# Era por isso !ue ele n'o tinha amigos ou fam2lia na cidade, era por isso !ue ele

    estava t'o calado nas li&es com >azar/ ele nada sabia acerca de escrituras ou filosofia# Aora por

    isso !ue !uisera sair da igrea primeiro, n'o para proteg0-la mas para alertar a vigilBncia, para

    reunir a sua e!uipa, para preparar a pris'o deles# Ele era um >he%ist, um oficial da pol2ciasecreta# Enganara-a a ela e ao marido# *nfiltrara-se nas suas vidas com o propsito de reunir

    tanta informa&'o !uanto poss2vel, n'o apenas sobre eles, mas tamb)m sobre as pessoas !ue com

    eles simpatizavam, desferindo um golpe contra os restantes n+cleos de resist0ncia no interior da

    *grea# :entar seduzi-la fora um obectivo ditado pelos seus superioresI :0-la-iam identificado

    como um alvo fraco, fcil de enganar, instruindo depois a!uele belo oficial a criar uma persona

    ;a6im para manipul-laI

    Aalou com voz branda, intimista, como se nada houvesse mudado entre ambos/

    Anisa* dei/te mais do que uma oportunidade. (em comigo. 7iz alguns acordos. Elesno esto interessados em ti. Esto atrs de 5azar.

    ( timbre da sua voz, carinhoso e preocupado, era aterrador# $ oferta !ue lhe fizera

    anteriormente, para fugir com ele, n'o fora uma fantasia ing)nua# .'o fora romBntico# Aora o

    calculismo frio de um agente# Prosseguiu/

    3egue o conselho que me deste e denuncia 5azar. osso mentir por ti. osso

    proteger/te. 4 a ele que eles querem. No ais ganhar nada com manter/te fiel. e-o/te* por

    faor.

    #

    >eo estava a ficar sem tempo# Ela tinha de compreender !ue ele era a sua +nica hiptese

    de sobreviv0ncia, independentemente do !ue pensasse dele# .'o ganharia nada em agarrar-se aos

    seus princ2pios# ( seu oficial superior, .i5olai orisov, encaminhou-se para eles# @om !uarenta

    anos, possu2a o corpo de um halterofilista envelhecido, ainda forte, muito embora desleiado com

    o ecesso de bebida/

    Ela est a cooperar'>eo estendeu a m'o, os seus olhos suplicando !ue lhe entregasse o saco#

    or faor'

    Em resposta, ela gritou t'o alto !uanto conseguiu/

    5azar!

    1J

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    .i5olai avan&ou um passo, esbofeteando-a com as costas da m'o# Gritou aos seus

    homens/

    (o!

    (s machados come&aram a cravar-se na porta da igrea#

    >eo viu dio no rosto de $nisFa# .i5olai arrancou-lhe o saco com um pu'o# Ele tentou sal/la* ca"ra mal agradecida.

    Ela inclinou-se para diante, sussurrando ao ouvido de >eo/

    Acreditou deeras que eu poderia am/lo' No foi'

    (s oficiais seguraram-lhe nos bra&os# En!uanto a levavam, ela sorriu-lhe, um sorriso

    maldoso/

    Nunca ningum o ir amar. Ningum.

    >eo voltou-lhe costas, aguardando com desespero !ue a levassem# .i5olai pousou-lhe

    uma m'o consoladora no ombro/9 De qualquer maneira* teria sido muito complicado e6plicar como que ela no era

    uma traidora. >omplicado para si. 4 muito melhor assim. ;elhor para si. mais mulheres*

    5eo. sempre mais.

    >eo tinha conclu2do a sua primeira pris'o#

    $nisFa estava e!uivocada# Ele era amado/ pelo Estado# .'o !ueria o amor de um

    traidor/ esse n'o era se!uer amor# Engano, trai&'o/ esses eram instrumentos de um oficial# Ele

    tinha um direito leg2timo a eles# ( seu pa2s dependia da trai&'o# $ntes de se tornar agente do

    8G, fora soldado e eperienciara a necessidade de viol0ncia na derrota do Aascismo# 8esmo amais terr2vel das coisas podia ser desculpada pelo bem maior !ue estas serviam#

    Entrou na igrea# Em lugar de tentar escapar, >azar aoelhara-se diante do altar, rezando,

    aguardando o seu destino# $o ver >eo, o seu ar de desafio altivo dissipou-se# .a!uele momento

    de compreens'o pareceu envelhecer vrios anos/

    ;a6im'

    Pela primeira vez desde !ue se conheciam, procurou respostas no seu protegido/

    & meu nome 5eo 3tepanoich Demido.

    >azar permaneceu em sil0ncio durante vrios segundos# Por fim, disse/ 7oi/me recomendado pelo atriarca'

    & atriarca Frasi%o um "om cidado.

    >azar abanou a cabe&a, recusando-se a acreditar na!uelas palavras# ( Patriarca era um

    informador# ( seu protegido era um espi'o !ue lhe fora enviado pela mais proeminente figura

    religiosa do pa2s# Aora sacrificado ao Estado, do mesmo modo !ue a *grea de 3ancta 3ophia fora

    1M

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    sacrificada# Era um idiota, aconselhando outros para !ue tivessem cuidado, pregando cautela

    !uando mesmo a seu lado, tirando notas, se encontrava um oficial do 8G#

    .i5olai avan&ou/

    9 &nde esto os restantes papis'

    >eo gesticulou para o altar/ or "ai6o.

    :r0s agentes desviaram-no para o lado, descobrindo a arca# .i5olai indagou/

    Ele deu/te mais alguns nomes'

    >eo respondeu/

    ;artemian 3rtso. Artiom Na%hae. Niura Dmitriea. ;oisei 3emash%o.

    ;islumbrou o rosto de >azar/ o cho!ue transformava-se em repulsa# >eo aproimou-se

    dele/

    ;antenha os olhos no cho!>azar n'o se voltou# >eo empurrou-lhe a cabe&a para baio#

    &lhos no cho!

    >azar tornou a erguer a cabe&a# Desta feita, >eo desferiu-lhe um murro# >entamente, de

    lbio aberto, >azar tornou a erguer a cabe&a, goteando sangue, olhando para ele, repulsa

    mesclada com desafio# >eo respondeu, como se os olhos de >azar lhe fizessem uma pergunta/

    Eu sou um "om homem.

    3egurando o seu mentor pelos cabelos, >eo n'o se deteve, murro aps murro,

    continuando mecanicamente como um soldado de corda, repetindo a mesma ac&'o uma e outravez, at) lhe doerem os ns dos dedos, at) os seus bra&os ficarem doridos, e a face de >azar se

    tornar mole# uando finalmente parou e o soltou, >azar caiu por terra, uma po&a de sangue a

    formar-se em torno da sua boca, com a forma de um bal'o de fala#

    .i5olai passou um bra&o pelo ombro de >eo, observando >azar a ser carregado para fora,

    ao mesmo tempo !ue deiava um rasto de sangue do altar at) % porta# .i5olai acendeu um

    cigarro#

    5eo* o Estado precisa de pessoas como n+s.

    8eio entorpecido, >eo limpou o sangue das cal&as, comentando/ Antes de irmos* gostaria de um momento para reistar a igrea.

    .i5olai aceitou a proposta sem protestar#

    0m perfeccionista* e6celente. ;as despacha/te. Esta noite amos "e"er. dois

    meses que no "e"es nada! ?ens iido como um monge!

    1O

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    .i5olai riu-se da sua prpria piada, dando palmadinhas nas costas de >eo, antes de se

    encaminhar para a sa2da# $ ss, >eo dirigiu-se para o altar !ue fora desviado, de olhos fios no

    buraco# Presa entre o flanco da arca e a parede de terra encontrava-se uma +nica folha de papel#

    *nclinou-se, apanhando-a# Era uma pgina de m+sica# @orreu os olhos pelas notas# Decidindo

    !ue era melhor n'o saber o !ue se perdera, ergueu a folha acima da chama de uma vela prima,observando o papel a enegrecer#

    1

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    Se"e !nos de#os

    1Q

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    MOSCOVO

    1$ de M!%&o de 19'(

    3uren 8os5vin era gerente de uma pe!uena tipografia acad)mica e tornara-se conhecido

    por produzir manuais escolares da mais reles !ualidade, usando tinta !ue se esborratava e um

    papel fin2ssimo, tudo seguro por uma lombada de cola !ue come&ava a deiar cair as pginas

    poucas horas depois de se abrir o livro# .'o por ser pregui&oso ou incompetente, pelo contrrio/

    come&ava a trabalhar logo cedo pela manh' e terminava a tardas horas da noite# $ raz'o por !ue

    os livros eram t'o miserveis encontrava-se nas mat)rias-primas !ue o Estado lhe fornecia#

    Embora o conte+do das publica&es acad)micas fosse cuidadosamente controlado, n'o era

    considerado um epediente prioritrio# Aechado num sistema de !uotas, 3uren era for&ado aproduzir um grande n+mero de livros a partir da pior categoria de papel, num per2odo de tempo o

    mais curto poss2vel# $ e!ua&'o nunca mudara e ele estava % sua merc0, etremamente

    constrangido por a sua reputa&'o ter descido t'o baio# @ontavam-se piadas/ com dedos

    manchados de tinta, estudantes e professores graceavam !ue os livros de 8os5vin ficavam

    sempre com a pessoa# 6idicularizado, nos +ltimos tempos sentia dificuldades em levantar-se da

    cama# .'o se alimentava como deve de ser# ebia durante todo o dia, as garrafas escondidas nas

    gavetas, por detrs das prateleiras dos livros# @om cin!uenta e cinco anos, descobrira algo novo

    sobre si/ n'o tinha est=mago para a humilha&'o p+blica#Estava a inspeccionar as m!uinas impressoras lintipo, cismando nas suas falhas,

    !uando reparou num ovem parado % porta# 3uren dirigiu-se-lhe na defensiva/

    3im' & que foi' No normal estar a, parado sem se fazer anunciar.

    ( homem avan&ou, num trae tipicamente estudantil, um casaco comprido e um len&o

    preto barato# 3egurava um livro, estendido# 3uren arrancou-lho das m'os, preparando-se para

    mais reclama&es# Deitou uma olhadela % capa/ & Estado e a Reolu-ode >enine# :inha sido

    impresso um novo volume ainda na semana passada, distribu2do h coisa de um dia ou dois atrs,

    e a!uele homem, ao !ue parecia, era o primeiro a detectar !ual!uer coisa mal# Nm erro numaobra fundamental era um assunto grave/ durante o governo de Estaline, um erro era !uanto

    bastava para garantir a pris'o# ( estudante inclinou-se para diante e abriu o livro, folheando-o

    para as primeiras pginas# .o frontisp2cio havia uma fotografia a preto e branco# ( estudante

    comentou/

    & te6to por "ai6o diz que uma fotografia de 5enine masBcomo pode erB

    7R

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    .a fotografia encontrava-se um homem !ue n'o se parecia nada a >enine, um homem de

    p), encostado a uma parede, uma parede completamente branca# (s cabelos estavam revoltos#

    (s olhos desvairados#

    3uren fechou o livro bruscamente, voltando-se para o estudante/

    $ulgas que poderia ter imprimido mil c+pias deste liro com a fotografia errada' orquem te tomas! 2ual o teu nome' orque que ests a fazer isto' &s meus pro"lemas deem/

    se aos limites dos meus materiais* no a deslei6o!

    $o recuar, o livro embateu-lhe no peito, fazendo com !ue len&o !ue trazia enrolado ao

    pesco&o se soltasse, revelando a ponta de uma tatuagem# $ vis'o fez 3uren deter-se# Nma

    tatuagem era incongruente com a, de resto, t2pica apar0ncia de um estudante# .ingu)m, com

    ecep&'o dos or, criminosos profissionais, marcaria a pele da!uela forma#

    Passada a impetuosa indigna&'o de 3uren, o homem aproveitou-se da sua hesita&'o e

    apressou-se a sair# @om pouco entusiasmo, 3uren seguiu-o, ainda de livro na m'o, observando amisteriosa figura desaparecer na noite#

    $preensivo, fechou a porta e trancou-a % chave# $lgo o perturbava/ a!uela fotografia#

    :irou os culos, abriu o livro e perscrutou o rosto um pouco mais de perto/ a!ueles olhos

    aterrorizados# @omo um navio fantasma emergindo lentamente de um denso mar de nevoeiro, a

    identidade da!uele homem surgiu perante si# @onhecia a!uele homem# ( seu rosto era-lhe

    familiar# ( seu cabelo e olhos estavam na!uele estado selvagem por!ue fora preso e arrastado

    para fora da cama# 3uren reconheceu a fotografia por!ue fora ele !uem a tirara#

    Ele n'o fora sempre tipgrafo# $ntes disso, estivera ao servi&o do 8G# ;inte anos deservi&o leal, a sua carreira na pol2cia secreta prolongara-se por mais tempo do !ue a de muitos

    dos seus superiores# 6ealizando uma variedade de tarefas banais limpar celas, fotografar os

    prisioneiros a sua baia patente fora uma vantagem, e ele fora suficientemente sagaz para n'o

    mostrar pretenses de maior responsabilidade, para nunca dar nas vistas, escapando %s purgas

    c2clicas dos escales mais elevados# Caviam-lhe sido eigidas coisas dif2ceis e ele cumprira as

    suas obriga&es com perseveran&a# .a!uela )poca, ele era um homem a temer# .ingu)m se

    atreveria a fazer piadas acerca de si# Por razes de sa+de, fora obrigado a reformar-se# Embora

    recebesse uma boa remunera&'o e vivesse confortavelmente, achara a ociosidade intolervel#Deitado na cama, sem !ue houvesse !ual!uer propsito no seu dia, a mente perdia-se em

    digresses, arrastada para o passado, recordando-se de rostos como a!uele !ue agora se

    encontrava cravado na!uele livro# $ solu&'o era manter-se ocupado com encontros e

    compromissos# Precisava de uma ocupa&'o# .'o !ueria entregar-se a reminisc0ncias#

    71

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    Aechou o livro e enfiou-o no bolso# ( !ue se passava na!uele diaI .'o podia ser mera

    coincid0ncia# $pesar da sua falha em produzir um livro ou um ornal de m2nima !ualidade, fora-

    lhe inesperadamente pedido para publicar um importante documento de Estado# .'o lhe fora

    comunicada a natureza do documento# @ontudo, o prest2gio de tal tarefa re!ueria recursos de

    elevada !ualidade/ bom papel e tinta# Ainalmente era-lhe dada a oportunidade de produzir!ual!uer coisa de !ue se pudesse orgulhar# ;iriam entregar o documento na!uela noite# E

    algu)m inveoso estava a tentar denegri-lo, logo agora !ue a sua sorte estava prestes a mudar#

    3aiu da fbrica e encaminhou-se apressadamente para o escritrio, alisando

    cuidadosamente o fino cabelo para o lado# Envergava o seu melhor fato/ possu2a apenas dois, um

    para o dia-a-dia, e outro para ocasies especiais# $!uela era uma ocasi'o especial# .'o precisara

    de auda para se levantar da cama nesse dia# $cordou antes da mulher# arbeou-se, trauteando

    uma melodia# :omou um pe!ueno-almo&o completo, o primeiro em semanas# uando chegou

    de manh' % fbrica, tirou a garrafa de vodca da gaveta e despeou-a na pia, antes de passar o dia alimpar, a esfregar o ch'o e a tirar o p, removendo as manchas de gordura das m!uinas lintipo#

    (s seus filhos, ambos estudantes universitrios, tinham vindo visit-lo, impressionados com a

    transforma&'o# 3uren lembrou-os de !ue era uma !uest'o de princ2pio manter o local de trabalho

    impecvel# ( local de trabalho era onde uma pessoa revia a sua identidade e o sentido de si#

    Despediram-se dele com um beio, deseando-lhe boa sorte com a enigmtica nova encomenda#

    Por fim, depois de muitos anos de secretismo e dos recentes anos de fracasso, estavam finalmente

    orgulhosos dele#

    @onsultou o relgio# Eram sete da noite# Estariam ali a !ual!uer minuto# :inha de sees!uecer do estranho e da fotografia, n'o era importante# .'o podia deiar !ue isso o distra2sse#

    3ubitamente, deseou n'o ter deitado a vodca fora# Nma bebida t0-lo-ia acalmado# Por outro

    prisma, poderiam t0-la cheirado no seu hlito# Era melhor n'o ter nada, era melhor estar nervoso/

    mostrava !ue levava o seu trabalho a s)rio# 3uren pegou na garrafa de Kvass# Nma cervea de

    p'o de centeio sem lcool/ teria de servir#

    .a sua pressa, e com a tr)mula coordena&'o de movimentos provocada pela abstin0ncia

    de lcool, derrubou uma caia de moldes de letras de a&o# Esta tombou da secretria, e o seu

    conte+do espalhou-se pelo ch'o de pedra#

    ?lim* ?lim

    ( corpo retesou-se-lhe# 3uren n'o se encontrava no seu escritrio/ achava-se agora

    num estreito corredor de tiolos, com uma s)rie de portas de a&o num dos lados# 6ecordou-se

    77

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    da!uele lugar/ a Pris'o (riol, onde fora guarda a!uando da eclos'o da Grande Guerra Patritica#

    Ele e os seus colegas, for&ados a bater em retirada com a rpida aproima&'o do e)rcito alem'o,

    tinham recebido ordens para li!uidar a popula&'o de reclusos, sem deiar nenhum recruta

    solidrio para os invasores .azis# En!uanto os edif2cios eram bombardeados por 3tu5as e

    Panzers a uma distBncia muito prima, eles enfrentavam o !uebra-cabe&as log2stico de eliminarvinte celas apinhadas de centenas de criminosos pol2ticos numa !uest'o de minutos# .'o havia

    tempo para balas ou cordas# $ ideia de usarem granadas fora sua/ duas atiradas para o interior de

    cada cela# $travessou o corredor direito % porta, puou a pe!uena grade de a&o e atirou-as l para

    dentro tlim* tlim o som da granada a embater no ch'o de cimento# Depois, precipitou-se a

    fechar a grade, para !ue n'o pudessem ser atiradas para fora, e correu at) ao fundo do corredor,

    para se afastar da eplos'o, ao mesmo tempo !ue imaginava os homens a tentar

    atabalhoadamente alcan&ar as granadas, os seus dedos imundos escorregadios, tentando atir-las

    pela pe!uena anela gradeada#3uren tapou os ouvidos com for&a, como se tal pudesse deter a!uela memria# 8as o

    barulho persistia, cada vez mais alto, granadas a embater no ch'o de cimento, cela aps cela, aps

    cela#

    ?lim* ?lim* ?lim* ?lim

    Gritou/

    arem!uando afastou as m'os dos ouvidos, apercebeu-se de !ue estava algu)m a bater % porta#

    7?

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    13 de M!%&o

    ( pesco&o da v2tima tinha sido devassado por uma s)rie de cortes fundos, irregulares#

    .'o havia ferimentos acima ou abaio do !ue restava do pesco&o do homem, dando a impress'o

    contraditria de frenesi e controlo# @onsiderando a ferocidade do ata!ue, apenas uma pe!uena

    !uantidade se sangue se espalhara % es!uerda e % direita das incises, formando uma po&a com a

    forma de asas esvoa&antes de anos# ( assassino parecia ter derrubado a v2tima ao ch'o,

    imobilizando-o nessa posi&'o, continuando a cort-lo, muito depois de 3uren 8os5vin de

    cin!uenta e cinco anos, gerente de uma pe!uena tipografia acad)mica ter morrido#( seu corpo fora encontrado nesse dia, de manh' cedo, !uando os seus filhos, ;sevolod e

    $5vsenti, entraram no estabelecimento, preocupados por o pai n'o ter regressado a casa#

    Perturbados, tinham contactado a mil2cia, !ue se deparara com um escritrio virado do avesso/ as

    gavetas arrancadas da secretria, pap)is espalhados pelo ch'o, armrios de ar!uivo abertos#

    @onclu2ram !ue se tratara de um assalto desorganizado# 3 ao final da tarde, cerca de sete horas

    depois da descoberta, a mil2cia contactou enfim o departamento de homic2dios, chefiado pelo e-

    agente do 8G, >eo 3tepanovich Demidov#

    >eo estava habituado %!uele tipo de atrasos# @riara o departamento de homic2dios tr0sanos antes, usando da influ0ncia !ue ganhara ao resolver os crimes de mais de !uarenta e !uatro

    crian&as# Desde a sua cria&'o !ue a rela&'o do departamento com a mil2cia comum era

    problemtica# $ coopera&'o era errtica# $ prpria eist0ncia da!uele departamento era

    considerada por muitos oficiais da mil2cia e do KG como uma insinua&'o de um grau de

    criticismo inaceitvel, tanto do seu trabalho como do do Estado# Em rigor, estavam certos# $

    motiva&'o de >eo para criar a!uele departamento partira de uma reac&'o contra o seu trabalho

    en!uanto agente# Prendera muitos civis durante a sua anterior carreira, prises essas !ue fizera

    com base em simples listas de nomes dactilografadas, !ue lhe eram entregues pelos seussuperiores# ( departamento de homic2dios, pelo contrrio, procurava uma verdade baseada em

    evid0ncias, n'o uma verdade politizada# ( dever de >eo era apresentar os factos de cada caso aos

    seus superiores# ( !ue eles faziam com essa verdade, era com eles# .o fundo, alimentava a

    esperan&a de um dia conseguir e!uilibrar os registos das prises, de o n+mero de culpados

    ultrapassar o de inocentes# 8esmo calculando por baio, tinha um longo caminho a percorrer#

    7

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    $s liberdades garantidas ao departamento de homic2dios resultavam de o seu trabalho

    estar sueito ao mais elevado n2vel de secretismo# 6eportavam directamente a a altos cargos no

    minist)rio do *nterior, operando como uma subdepartamento clandestino do 8inist)rio @entral de

    *nvestiga&es @riminais# $ esmagadora maioria da popula&'o ainda precisava de acreditar na

    evolu&'o da sociedade# $ diminui&'o dos 2ndices de criminalidade era uma doutrina dessacren&a# Portanto, os factos contraditrios eram filtrados da consci0ncia nacional# .enhum

    cidad'o podia contactar o departamento de homic2dios por!ue nenhum cidad'o sabia !ue a!uele

    eistia# Por esta raz'o, >eo n'o podia emitir re!uisi&es de informa&'o nem pedir %s testemunhas

    !ue se apresentassem, uma vez !ue tais ac&es e!uivaleriam a propagandear a eist0ncia do

    crime# $ liberdade !ue lhe fora garantida era bastante peculiar e >eo, !ue fizera tudo ao seu

    alcance para p=r a sua carreira na pol2cia secreta para trs das costas, encontrava-se agora a dirigir

    um tipo de pol2cia secreta muito diferente#

    $preensivo com a eplica&'o preliminar !ue fora encontrada para a morte de 8os5vin,>eo estudou a cena do crime e os seus olhos fiaram-se na cadeira# Esta encontrava-se

    despercebidamente arrumada diante da secretria, com o assento ligeiramente inclinado#

    $proimou-se, agachando-se, e passou com o dedo por uma fina linha fracturada numa das

    pernas de madeira# $o testar timidamente o seu peso, empurrando-a na parte traseira, a perna

    cedeu imediatamente# $ cadeira estava partida# 3e algu)m se tivesse sentado nela, teria ca2do#

    @ontudo, estava arrumada diante da secretria como se estivesse em perfeito estado de

    conserva&'o#

    ;oltou a concentrar as suas aten&es no corpo, pegando nas m'os da v2tima# .'o haviacortes, nem arranhes/ nenhum sinal de !ue o homem se tentara defender# >eo aoelhou-se,

    aproimando-se do pesco&o da v2tima# uase n'o restava pele, com ecep&'o da nuca, a zona

    !ue tocava no ch'o, protegida de repetidos cortes# >eo pegou numa faca, for&ando-a por debaio

    do pesco&o da v2tima e !uando retirou a lBmina, esta trazia um pe!ueno peda&o de pele !ue n'o

    tinha sido cortado# Estava escoriado# 6etirou a faca e, preparava-se para se levantar, !uando

    divisou o bolso do fato do morto# Enfiou a m'o l dentro, retirando um livro delgado/ & Estado e

    a Reolu-o de >enine# $inda antes de o abrir, descobriu !ue havia algo de invulgar na

    encaderna&'o/ tinha sido colada uma pgina# $o folhear para a pgina em !uest'o, viu afotografia de um homem desgrenhado# Embora >eo n'o tivesse ideia de !uem era o homem,

    reconheceu de imediato o tipo de fotografia/ o pano de fundo muito branco, a epress'o

    desorientada do suspeito# Era a fotografia de um homem !ue fora detido#

    Desnorteado com a!uela anomalia cuidadosamente preparada, ergueu-se# :imur

    .esterov entrou na sala, deitando um olhar ao livro/

    7J

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    Alguma coisa importante'

    No sei ao certo.

    :imur era o colega e amigo mais chegado de >eo# $ amizade !ue se desenvolvera entre

    eles era do tipo discreto# .'o bebiam untos, n'o graceavam um com o outro nem falavam

    muito, ecepto sobre trabalho/ uma parceria acompanhada de longos sil0ncios# $ um observadoreterior poderia parecer !ue nem se!uer eram amigos e para um c2nico tal atitute denunciava a

    eist0ncia de um ressentimento nas suas rela&es# >eo era !uase dez anos mais novo do !ue

    :imur, e era agora seu superior, apesar de ter sido, em tempos, seu subordinado# :ratava-o

    sempre, com formalidade, por General .esterov# (bectivamente, >eo fora !uem mais

    beneficiara do seu sucesso conunto# Cavia !uem inisuasse !ue ele era um individuo oportunista,

    um individualista a !uem s interessava a carreira# :imur, por)m, n'o mostrava invea# $

    !uest'o do posto era meramente incidental# 3entia-se orgulhoso do seu trabalho e o sustento da

    fam2lia estava assegurado# uando se mudara para 8oscovo conseguira enfim, depois delangorosas listas de espera, !ue lhe fosse designado um apartamento moderno, com gua !uente

    corrente, canaliza&'o decente e corrente el)ctrica durante as vinte e !uatro horas do dia#

    *ndependentemente do !ue a sua rela&'o parecesse aos olhos dos outros/ ambos confiavam as

    suas vidas ao outro#

    :imur apontou em direc&'o ao piso da fbrica principal onde se erguia uma torre de

    m!uinas lintipo, gigantescos insectos metlicos/

    9 &s filhos chegaram.

    ?r/los c. >om o corpo do pai deles estendido no cho'

    3im.

    (s rapazes tinham sido autorizados a sair do local, enviados para casa pela mil2cia antes

    !ue >eo pudesse !uestion-los na cena do crime# Pediria desculpa por terem de ver o corpo do

    pai novamente, mas n'o tinha inten&'o de confiar nas informa&es em segunda m'o !ue lhe

    tinham sido passadas pela mil2cia# $l)m do mais, estava curioso para observar as suas reac&es#

    @onvocados, ;sevolod e $5vsenti ambos dos seus vinte e poucos anos apareceram %

    porta, lado a lado# >eo apresentou-se/9 3ou o &ficial5eo Demido. >ompreendo que isto dea ser muito dif,cil.

    .enhum deles olhou para o corpo do pai, mantendo os olhos fios em >eo# ( mais

    velho, ;sevolod, falou/

    $ respondemos )s perguntas da mil,cia.

    7M

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    As minhas perguntas no demoram muito. Esta sala est tal e qual a encontraram

    esta manh'

    3im* est tudo na mesma.

    ;sevold era o +nico !ue falava# $5vsenti permanecia em sil0ncio, erguendo os olhos

    ocasionalmente# >eo prosseguiu/ Esta cadeira estaa ) mesa' ode ter sido derru"ada* na luta talez'

    Na luta'

    Entre o seu pai e o assassino'

    Aez-se sil0ncio# >eo prosseguiu/

    A cadeira est partida. 3e se sentasse nela* ter/se/ia partido. No estranho que se

    tenha uma cadeira partida diante de uma secretria' No nos podemos sentar nela.

    $mbos os filhos se voltaram para a cadeira# ;sevold respondeu/

    ?rou6e/nos de olta para falar so"re a cadeira' A cadeira importante. Acredito que o seu pai a usou para se enforcar.

    $!uela sugest'o devia ter sido absurda# (s filhos deviam ter ficado indignados# Por)m,

    permaneceram em sil0ncio# Pressentir !ue a sua especula&'o era acertada, >eo reafirmou a sua

    teoria/

    $ulgo que o osso pai se enforcou1 talez o tenha feito numa iga do tecto da f"rica.

    3u"iu ) cadeira e depois pontapeou/a de de"ai6o dos ps. (oc

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    >ortei/lhe a garganta.

    ( ovem prosseguiu/

    Estaa a desceo insistiu no assunto/

    0m homem de cinquenta e cinco anos no se suicida porque os leitores teo acompanhou-os % sa2da do escritrio, e encaminhou-os para o piso da fbrica, longeda vista do corpo do pai/

    No ficaram alarmados com o facto de o osso pai no ter regressado a casa at de

    manh. $ estaam ) espera que tra"alhasse at tarde ou teriam ficado preocupados ontem )

    noite. 3e assim * porque que no h pginas prontas a imprimir' aqui quatro mquinas

    lin+tipo. &ra* eu no estou a er aqui pginas nenhumas. No h nada que indique que tenha

    estado a tra"alhar.

    $proimaram-se das imensas m!uinas# .a fronte havia um aparelho id0ntico a uma

    m!uina de escrever, um teclado# >eo dirigiu-se aos filhos/ Neste momento esto a precisar de amigos. No posso dei6ar passar o suic,dio do

    osso pai. ;as posso solicitar aos meus superiores que eitem que as suas ac-@es afectem as

    ossas carreiras. &s tempos mudaram1 os erros do osso pai no t

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    ;ostra/me como funciona.

    ;as como lhe dissemos1 destru,mos tudo.

    or faor.

    $5sventi lan&ou um olhar ao irm'o, procurando evidentemente a sua permiss'o# ( irm'o

    anuiu/ & te6to introduzido aqui no teclado. G medida que se o introduzindo as letras* a

    mquina ai dei6ando cair as respectias matrizes na parte de trs , onde ficam alinhadas* pela

    ordem em que foram caindo. >ada linha formada por matrizes indiiduais* e os espa-os so

    dados por placas de chum"o sem graa-@es. 0ma ez terminada a linha, carrega/se nesta

    alaanca que elea a linha at ) sec-o de fundi-o onde moldado um s+ "loco de chum"o e

    estanho. Essas linhas so colocadas nesta cai6a* at se ter uma pgina inteira de te6to. A

    pgina de a-o ento co"erta de tinta e o papel rola por cima1 o te6to impresso. ;as* como

    lhe dissemos* derretemos as pginas todas. No so"rou nada.>eo circundou a m!uina# (s seus olhos seguiram o processo mecBnico, uma colec&'o

    de matrizes de letras para compor uma linha# Perguntou/

    2uando introduzo o te6to no teclado* as matrizes de letras so reunidas nesta cai6a'

    3im.

    4 erdade que no h linhas completas de te6to. Essas foram destru,das. ;as eo

    aqui uma linha parcial* uma linha que no foi aca"ada.

    >eo estava a apontar para uma fileira incompleta de matrizes de letras#

    & osso pai estaa a meio de uma linha.(s filhos espreitaram para a m!uina# >eo tinha raz'o#

    2uero imprimir estas palaras.

    ( filho mais velho come&ou a bater na barra de espa&os, observando/

    3e acrescentarmos material "ranco ao final da linha* teremos o comprimento

    completo* pronto para fundir um "loco.

    $s matrizes individuais de espa&os foram acrescentadas % linha incompleta at) a caia

    estar cheia# Nm pist'o inectou chumbo derretido no molde, saindo uma linha composta/ as

    +ltimas palavras de 3uren 8os5vin assentadas antes de tirar a prpria vida#( bloco-linha estava virado de lado, as letras estavam inclinadas de uma forma !ue n'o

    se viam# >eo perguntou/

    Est quente'

    No.

    7Q

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    >eo pegou na linha composta, colocando-a na caia# @obriu a superf2cie com tinta e

    colocou uma +nica folha de papel branco sobre esta, pressionando#

    @uidadosamente, voltou a pgina#

    ?R

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    No mesmo d!

    3entado % mesa da cozinha, >eo olhava fiamente para a folha de papel# :r0s palavrasera tudo o !ue restava do documento !ue levara 3uren 8os5vin a tirar a prpria vida/

    3o" tortura* Ei%he

    >eo tinha lido as palavras vezes sem conta, incapaz de desviar delas os olhos# 8esmo

    descontetualizadas, o seu efeito era hipntico# uebrando o seu feiti&o, afastou a folha de papel

    para o lado e pegou na pasta, pousando-a na horizontal sobre a mesa# .o seu interior,

    encontravam-se dois dossi0s secretos# Para poder ter acesso a eles, precisara de autoriza&'o# .'otinha sido dif2cil obt0-la no caso do primeiro, sobre 3uren 8os5vin# @ontudo, o segundo

    levantara algumas !uestes# ( segundo dossi0 !ue re!uisitara era sobre 6obert Ei5he#

    $o abrir o primeiro conunto de documentos, sentiu o peso do passado da!uele homem, o

    n+mero de pginas acumuladas sobre ele# 8os5vin tinha sido oficial da 3eguran&a Estatal tal

    como >eo , um >he%ist*e estivera ao servi&o durante muito mais tempo do !ue ele, mantendo o

    seu emprego, ao passo !ue centenas de oficiais tinham sido abatidos# 4unto com o dossi0 havia

    uma lista/ as den+ncias !ue 8os5vin fizera ao longo da sua carreira/

    Nestor 8uros%. (izinho. E6ecutado

    Rozalia Reisner. Amiga. HI anos

    8a%o =lo%. >omerciante. J anos

    Farl 0rits%. >olega. uarda. HI anos

    Dezanove anos de servi&o, duas pginas de den+ncias e !uase cem nomes por)m, s

    tinha dado o nome de um familiar uma +nica vez#

    8ona Rade%. rima. E6ecutada

    >eo reconheceu uma t)cnica/ as datas das den+ncias eram aleatrias, muitas calhavam no

    mesmo m0s, e depois nada durante vrios meses# ( espa&amento catico era deliberado, ocultava

    um cuidadoso calculismo# Denunciar a prima tinha sido !uase de certeza uma decis'o

    ?1

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    estrat)gica# 8os5vin tinha de garantir !ue n'o parecia !ue a sua lealdade para com o Estado

    acabava na fam2lia# Para conferir credibilidade % sua lista, a prima tinha sido sacrificada/

    defendera-se assim da acusa&'o !ue ele apenas nomeara pessoas !ue n'o o interessavam

    pessoalmente# $!uele homem era um sobrevivente consumado, e o seu suic2dio parecia uma

    improbabilidade#$o verificar as datas e locais onde 8os5vin trabalhara, >eo recostou-se na cadeira,

    surpreendido# :inham sido colegas/ ambos se encontravam no >ubFan5a, sete anos antes# (s

    seus caminhos nunca se haviam cruzado, pelo menos n'o !ue se recordasse# >eo era

    investigador, fazia prises, seguia suspeitos# 8os5vin era guarda, transportava prisioneiros,

    supervisionava a sua deten&'o# >eo fizera todos os poss2veis para evitar as celas de interroga&'o

    na cave, como se acreditasse !ue as tbuas do soalho o protegiam das actividades realizadas por

    baio, dia aps dia# 3e o suic2dio de 8os5vin era uma epress'o de culpa, o !ue desencadeara

    tais sentimentos etremos depois de tanto tempoI >eo fechou a pasta, voltando a sua aten&'o parao segundo ar!uivo#

    ( dossi0 de 6obert Ei5he era mais grosso, mais pesado, no frontisp2cio lia-se

    @(.A*DE.@*$>, as pginas estavam atadas como !ue para manter algo pernicioso recluso no

    interior# >eo desenrolou nervosamente o cordel# ( nome parecia-lhe familiar# Aolheando as

    pginas, reparou !ue Ei5he fora um membro do partido desde 1QRJ antes da revolu&'o , na

    altura em !ue ser um membro do Partido @omunista implicava o e2lio ou a eecu&'o# $ sua

    ficha era impecvel/ um e-candidato ao @omit) @entral do Politburo# .'o obstante, tinha sido

    preso no dia 7Q de $bril de 1Q?# 8anifestamente, a!uele homem n'o era um traidor# E, noentanto, Ei5he confessara/ o protocolo estava no dossi0, pgina e pginas detalhando as suas

    actividades anti-sovi)ticas# >eo esbo&ara demasiadas confisses pr)-preparadas para n'o

    reconhecer !ue a!uilo era o trabalho de um agente, pontuado de frases feitas sinais do estilo

    interno, uma minuta onde !ual!uer pessoa podia ser for&ada a assinar o seu nome# Aolheando

    para diante, encontrou uma declara&'o de inoc0ncia escrita por Ei5he en!uanto estivera detido#

    $o contrrio da confiss'o, a prosa era humana, desesperada, um amontoado de louvores

    compassivos ao Partido, proclamando o amor pelo Estado e apontando com t2mida mod)stia a

    inusti&a da sua pris'o# >eo leu-a, !uase sem conseguir respirar/

    or no ser capaz de suportar as torturas a que fui su"metido por 0sha%o e Ni%olae

    # especialmente pelo anterior* que se aproeitou de as minhas costelas partidas no estarem

    ainda "em curadas* inflingindo/me uma dor terr,el # fui for-ado a acusar/me a mim pr+prio e

    outros.

    ?7

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    >eo sabia o !ue se seguiria#

    .o dia de Aevereiro de 1QR, Ei5he tinha sido fuzilado#

    #

    6aisa estava de p), a observar o marido# $bsorto nos dossi0s confidenciais, n'o tinha

    notado a sua presen&a# $!uela vis'o de >eo plido, tenso, de ombros corcovados sobre os

    documentos secretos, o destino de outras pessoas nas suas m'os podia ter sido retirada do

    infeliz passado de ambos# 3entia-se tentada a reagir como reagira tantas outras vezes antes,

    afastando-se, evitando-o e ignorando-o# ( afluo de ms memrias atingiu-a como uma esp)cie

    de nusea# >utou contra essa sensa&'o# >eo n'o era esse homem# Ela n'o estava presanesse casamento# $van&ou alguns passos e estendeu a m'o, pousando-a no ombro do marido,

    elegendo-o o homem !ue ela aprendera a amar#

    >eo retraiu-se ao seu to!ue# .'o tinha dado not2cia da entrada da mulher# $panhado de

    surpresa, sentiu-se eposto# Ergueu-se abruptamente, ao mesmo tempo !ue a cadeira produzia

    um estr)pito atrs dele# (lhando-a nos olhos, sentiu o seu nervosismo# .'o !ueria !ue ela se

    voltasse a sentir assim# Devia ter-lhe eplicado o !ue estava a fazer# @a2ra de novo nos velhos

    hbitos/ sil0ncio e segredos# 6odeou-a com os bra&os# De cabe&a encostada ao seu ombro, sabia

    !ue ela espreitava os ar!uivos pousados em cima da mesa# Eplicou/ 0m homem matou/se* um eis agente da ;=.

    Algum que conhecias'

    No de que me recorde.

    ?ens de inestigar'

    & suic,dio tratado comoB

    Ela interrompeu-o/

    2uero dizerB tens de ser tu a faz

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    >eo tornou a guardar os dossi0s na pasta# uando passou unto da mulher, inclinou-se

    para bei-la, um beio !ue ela blo!ueou gentilmente com um dedo, olhando-o nos olhos# .'o

    disse nada, antes de desviar o dedo e de o beiar um beio !ue subentendia !ue ele lhe fizera a

    mais in!uebrvel e sagrada das promessas#

    uando entrou no seu !uarto, guardou os dossi0s num lugar seguro, um velho hbito#Depois, por)m, mudou de ideias e resolveu dei-los em cima da mesa-de-cabeceira, no caso de

    6aisa os !uerer ler# 6egressou apressadamente ao corredor, encaminhando-se para o !uarto das

    filhas, ao mesmo tempo !ue tentava suavizar a tens'o do seu rosto# De sorriso largo, abriu a

    porta#

    >eo e 6aisa tinham adoptado duas meninas pe!uenas# SoFa tinha agora catorze anos e

    Elena, sete# $proimou-se da cama de Elena, esticando-se unto a esta para retirar um livro do

    armrio, uma histria infantil de TurF 3trugats5F# $briu o livro e come&ou a ler em voz alta#

    uase imediatamente SoFa interrompeu-o/ $ ouimos essa antes.

    Esperou um momento, antes de acrescentar/

    Detestamo/la da primeira ez.

    $ histria era sobre um menino !ue !ueria ser mineiro# ( pai do garoto, tamb)m

    mineiro, tinha morrido num acidente e a m'e temia muito !ue o seu filho enveredasse por uma

    profiss'o t'o perigosa# SoFa tinha raz'o# >eo a tinha lido antes# SoFa resumiu,

    desdenhosamente/

    & filho aca"a por escaar mais caro do que algum amais escaara* torna/se umher+i nacional e dedica o seu prmio ) mem+ria do pai.

    >eo fechou o livro#

    ?ens razo. No muito "om. ;as Koa* em"ora possas dizer o que quiseres dentro

    desta casa* tem mais cuidado l fora. E6primir opini@es cr,ticas* mesmo so"re assuntos "anais*

    como uma hist+ria infantil* perigoso.

    (ais prender/me'

    SoFa nunca aceitara >eo en!uanto seu guardi'o# .unca o perdoara pela morte dos seus

    pais# E nem t'o pouco >eo se referia a si prprio como pai delas# SoFa tratava-o por >eoDemidov, dirigindo-se a ele com formalidade, pondo tanta distBncia entre eles !uanto lhe era

    poss2vel# $proveitava todas as oportunidades para lhe recordar !ue estava a viver com ele por

    razes prticas, a us-lo como um meio para atingir um fim/ proporcionar conforto material %

    irm', libert-la do orfanato# $inda assim, assegurava-se de !ue nada a impressionava, nem o

    apartamento, nem os seus passeios, sa2das ou refei&es# :'o severa !uanto bonita, n'o havia a

    ?

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    menor suavidade na sua apar0ncia# $ infelicidade perp)tua parecia ser de importBncia vital para

    ela# >eo pouco podia fazer para encora-la a p=r tudo para trs das costas# Esperava !ue a

    determinada altura as suas rela&es melhorassem lentamente# E ainda estava % espera# Esperaria,

    se fosse preciso, o resto da vida#

    No* Koa* eu no fa-o isso. E nunca mais o farei.>eo inclinou-se para o ch'o, apanhando um dos ornais de Dets%aa 5iteratura, uma

    publica&'o nacional para crian&as# $ntes !ue pudesse come&ar, SoFa atalhou/

    orque que no inenta uma hist+ria' ostar,amos muito* no Elena'

    Elena chegara a 8oscovo ainda muito pe!uena, com !uatro anos, e a idade facilitara a

    adaptar-se %s mudan&as na sua vida# $o contrrio da irm' mais velha, fizera amigos e era muito

    aplicada muito na escola# 8uito dada a elogios, procurava a aprova&'o dos professores, tentando

    agradar a todos, incluindo os seus novos pais adoptivos#

    Elena ficou ansiosa# @ompreendeu pelo tom de voz da irm' !ue esta esperava !ueconcordasse# @onstrangida por ter de tomar partidos, apenas assentiu com a cabe&a# 3entindo

    perigo, >eo replicou/

    muitas hist+rias que ainda no lemos* tenho a certeza que amos encontrar uma

    de que gostemos.

    SoFa, por)m, n'o cedia/

    3o todas iguais. >onte/nos uma coisa noa. 8nente qualquer coisa.

    Duido que fosse capaz de inentar alguma coisa "oa.

    Nem sequer ai tentar' & meu pai costumaa inentar muitas hist+rias. ist+rias deuma quinta long,nqua* uma quinta no 8nerno* com o solo co"erto por uma camada de nee. &

    rio ali pr+6imo estaa congelado. odia come-ar assim. Era uma ez duas meninas pequenas*

    irmsB

    Koa* pe-o/te.

    As irms iiam com a me e o pai e eram muito felizes. At que um dia* um homem

    de uniforme eio prendeo interrompeu/

    Koa' ela Elena* pe-o/te.SoFa lan&ou um olhar % irm' e calou-se# Elena estava a chorar# >eo levantou-se#

    Esto as duas muito cansadas. (ou arranar liros melhores amanh. rometo.

    >eo apagou a luz e fechou a porta# .o corredor, reconfortou-se, dizendo para consigo

    !ue as coisas iriam melhorar, um dia# SoFa apenas precisava de um pouco mais de tempo#

    ?J

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    #

    SoFa estava deitada na cama, ouvindo o rumor da irm' a dormir/ as suas lentas e suaves

    golfadas de ar# uando viviam na !uinta com os pais, os !uatro dormiam num pe!ueno !uarto

    com paredes de barro grossas, a!uecidas pelo fog'o a lenha# SoFa dormia ao lado de Elena,

    debaio dos cobertores speros, cozidos % m'o# ( rumor da sua pe!uena irm' a dormir

    representava seguran&a/ significava !ue os pais estavam perto# .'o pertencia ali, na!uele

    apartamento, com >eo no !uarto ao lado#

    SoFa nunca ca2a no sono facilmente# Aicava deitada na cama durante horas, remoendo

    pensamentos at) a eaust'o se apoderar dela# Era a +nica pessoa !ue se agarrava % verdade/ a

    +nica pessoa !ue se recusava a es!uecer# Deslizou para fora da cama# L parte da respira&'o da

    irm' mais nova, o apartamento estava em sil0ncio# Aoi a rastear at) % porta, com os olhos

    habituados % escurid'o# 3eguiu pelo corredor, mantendo a m'o na parede para se orientar# .acozinha, a ilumina&'o da rua derramava-se pela anela# 8ovendo-se com ligeireza, como um

    ladr'o, abriu uma gaveta e segurou no cabo, sentindo o peso da faca#

    ?M

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    No mesmo d!

    @om a faca encostada % perna, SoFa encaminhou-se para o !uarto de >eo# $briu

    lentamente a porta at) haver suficiente espa&o para se esgueirar para o interior# @aminhou em

    sil0ncio sobre o soalho de madeira# $s cortinas estavam fechadas, o !uarto mergulhado na

    escurid'o, mas ela conhecia o espa&o, sabia onde pisar para chegar a >eo, !ue dormia ao fundo#

    Parada mesmo por cima dele, SoFa ergueu a faca ao alto# Embora n'o o pudesse ver,

    delineou com a imagina&'o os contornos do seu corpo# .'o tencionava apunhal-lo no est=mago/

    os cobertores poderiam absorver a lBmina# 8ergulharia a lBmina no seu pesco&o, enterrando-a o

    mais !ue pudesse, antes !ue ele tivesse hiptese de a dominar# De faca na vertical, dirigiu-a parabaio, com controlo perfeito# $trav)s da lBmina conseguia sentir-lhe o bra&o, o ombro subiu

    em direc&'o ao pesco&o, afundando a ponta da faca aos poucos, at) esta lhe tocar directamente na

    sua pele# $gora !ue estava em posi&'o, s precisava de segurar no cabo com ambas as m'os e

    empurr-lo para baio#

    SoFa fazia este ritual em intervalos irregulares, por vezes uma vez por semana, outras

    passava um m0s sem o fazer# $ primeira vez tinha sido tr0s anos antes, pouco depois de ela e a

    irm' se terem mudado do orfanato para a!uele apartamento# .essa ocasi'o, tivera mesmo a

    inten&'o de o matar# .esse mesmo dia, ele tinha-as levado ao ardim zoolgico# .em ela nemElena tinham ido alguma vez a um ardim zoolgico e visto de perto animais eticos, criaturas

    !ue ela nunca vira antes/ es!uecera-se dela prpria# Durante pouco mais do !ue cinco ou dez

    minutos, desfrutara da visita# 3orrira# Ele nunca a vira sorrir, sabia-o, mas isso n'o lhe

    importava# ;endo-o com 6aisa, um casal feliz, imitando uma fam2lia, fingindo, mentindo,

    compreendeu !ue estavam a tentar roubar o lugar dos seus pais# E ela permitira-o# .o caminho

    de regresso a casa, no el)ctrico, sentira uma culpa t'o intensa !ue vomitara# >eo e 6aisa

    culparam os doces e o movimento do el)ctrico# .essa noite, febril, ficara deitada na cama, a

    chorar, a co&ar as pernas at) fazer sangue# @omo podia ter tra2do a memria dos pais t'ofacilmenteI >eo acreditava !ue podia ganhar o seu amor com roupas novas, comidas raras,

    passeios e chocolates/ era rid2culo# 4urara !ue a!uilo nunca mais voltaria a acontecer# E s havia

    uma maneira de o garantir/ fora buscar a faca e resolvera mat-lo# Aicara ali de p), tal como

    agora, pronta para matar#

    ?O

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    :odavia, a mesma memria !ue a levara ao !uarto, a memria dos seus pais, fora a raz'o

    por !ue n'o o matara# .'o teriam !uerido o sangue da!uele homem nas suas m'os# :eriam

    !uerido !ue tomasse conta da irm'# (bediente, chorando em sil0ncio, permitira !ue >eo vivesse#

    De vez em !uando voltava, esgueirando-se para dentro do !uarto, armada com uma faca, n'o

    por!ue mudara de ideias, n'o por vingan&a, n'o para o matar, mas como um memorial aos seuspais, uma forma de dizer !ue n'o os havia es!uecido#

    ( telefone tocou, estridente, inesperado# $larmada, SoFa deu um salto para trs, e a faca

    escorregou-lhe das m'os, caindo com estr)pito no ch'o# $oelhou-se, aos apalpes % escurid'o,

    tentando encontr-la# >eo e 6aisa remeiam-se, a cama rangeu com os seus movimentos#

    Estariam a estender a m'o para acender a luz# SoFa procurava com frenesi nas tbuas do soalho,

    guiando-se apenas pelo tacto# uando o telefone tocou pela segunda vez, n'o teve outra hiptese

    !ue n'o deiar a faca para trs# @ontornou a cama apressadamente, correndo em direc&'o % porta,

    e esgueirou-se pela nesga da porta no mesmo instante em !ue a luz se acendeu#

    #

    >eo sentou-se na cama, com os pensamentos vagarosos da sonol0ncia, sonhos

    confundidos com a realidade tinha visto um movimento, uma figura, ou talvez n'o# ( telefone

    estava a tocar# 3 tocava !uando se tratava de trabalho# ;erificou o relgio/ era !uase meia-

    noite# >an&ou um olhar a 6aisa# Estava acordada, % espera !ue ele atendesse o telefone#

    8urmurou um pedido de desculpas e levantou-se# $ porta estava aberta# .'o fechavam semprea porta antes de ir dormirI :alvez n'o, n'o era importante, e encaminhou-se para o corredor#

    >eo levantou o auscultador# $ voz no outro lado era urgente, alta/

    5eo' 4 Ni%olai.

    .i5olai/ o nome n'o lhe dizia nada# .'o respondeu# *nterpretando correctamente o

    sil0ncio de >eo, o homem prosseguiu/

    9Ni%olai* o teu e6/patro! & teu amigo! 5eo* no te recordas de mim' 7ui eu quem te

    deu a tua primeira misso! & padre* lem"ras/te 5eo'

    >eo lembrava-se# C muito !ue n'o tinha not2cias de .i5olai# $!uele homem n'o tinha!ual!uer relevBncia na sua vida presente e por isso ressentiu o seu telefonema#

    Ni%olai* tarde.

    ?arde' & que que te aconteceu' 3+ come-amos a tra"alhar a estas horas.

    Agora no.

    No* agora no.

    ?

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    $ voz de .i5olai fez-se fraca, antes de acrescentar/

    reciso de lhe falar.

    $s suas palavras eram indistintas# Estava b0bado#

    Ni%olai* porque que no ais dormir e logo falamos amanh'

    ?em de ser esta noite.$ voz !uebrava# Estava prestes a chorar#

    & que que se passa'

    (em encontrar/te comigo* pe-o/te.

    >eo !ueria dizer !ue n'o#

    &nde'

    Nos teus escrit+rios.

    Estarei l dentro de trinta minutos.

    >eo desligou# $ sua irrita&'o estava mesclada de uma ponta de desassossego# .i5olain'o o teria voltado a procurar sem uma boca causa# uando regressou ao !uarto, 6aisa estava

    levantada# >eo esbo&ou uma eplica&'o, dando de ombros#

    9Era um e6/colega. 2uer encontrar/se comigo. Diz que tem de ser esta noite.

    0m colega de que altura' Daquela poca'

    3im.

    E telefona/te assim* sem mais nem menos'

    Estaa "

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    @hegado ao corredor, estendeu a lBmina na palma da m'o# >an&ou um olhar ao !uarto

    das filhas# $proimou-se da porta e abriu-a devagar# ( !uarto estava %s escuras# $s duas

    raparigas estavam deitadas, a dormir# uando ia a retirar-se, fechando silenciosamente a porta,

    sorriu ao ouvir a respira&'o lenta e !uase sumida de Elena# E depois estacou, ouvindo com mais

    aten&'o# .'o conseguia ouvir nenhum rumor, vindo do lado do !uarto onde se encontrava SoFa#Estava a suster a respira&'o#

    R

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    14 de M!%&o

    >eo conduzia muito depressa e acabou por derrapar numa curva, os pneus escorregaram

    no gelo enegrecido# $liviou o p) do acelerador e levou o carro de novo para o centro da estrada#

    .um estado de agita&'o, as costas h+midas de suor, sentiu-se aliviado ao chegar aos escritrios

    do departamento de homic2dios# Encostou, repousando a cabe&a no volante# .o interior frio, sem

    a!uecimento, a sua respira&'o formou uma neblina fina# Era uma da manh'# $s ruas estavam

    desertas, forradas por uma camada de neve desigual# @ome&ou a tremer de frio< tinha-se

    es!uecido de pegar numas luvas ou num chap)u, !uando sa2ra precipitadamente do apartamento,

    na pressa de sair, de fugir do por!u0 !ue a porta do !uarto estava aberta, do por!u0 !ue a sua filhafingia dormir, e do por!u0 !ue havia uma faca debaio da sua cama#

    Caveria certamente eplica&es, mundanas e simples eplica&es# :alvez tivesse

    deiado a porta aberta# :alvez a sua mulher tivesse ido ao !uarto de banho, es!uecendo-se de

    fechar a porta !uando regressara# uanto a SoFa fingir estar a dormir/ tinha ouvido mal# .a

    verdade, por !ue ) !ue ela precisava de estar a dormirI Aazia sentido !ue estivesse acordada,

    tinha acordado com o telefone, e estava deitada na cama a tentar cair no sono novamente,

    enfastiada com raz'o# uanto % facaUn'o sabia, simplesmente n'o conseguia pensar, por)m,

    deveria haver uma raz'o inocente, mesmo !ue n'o fizesse a mais pe!uena ideia de !ual seria#Desceu do carro, fechou a porta, e encaminhou-se para os escritrios# ( seu

    departamento de homic2dios, localizado no distrito de Samos5vareche, a sul do rio, uma zona

    com uma elevada concentra&'o de fbricas, tinha sido instalado num espa&o situado por cima de

    uma grande padaria# Cavia um !u0 de caricato na localiza&'o e, silmultaneamente, a mensagem

    de !ue o trabalho deles deveria permanecer invis2vel# (s escritrios estavam identificados como

    7"rica de =ot@es HL, levando >eo a pensar, de tempos a tempos, o !ue se passaria nas outras

    treze fbricas de botes#

    Depois de entrar no decr)pito vest2bulo, cuo pavimento se encontrava entrecruzado depegadas de farinha, >eo subiu as escadas, passando os acontecimentos da!uela noite em revista

    na sua mente# :inha conseguido ustificar duas das tr0s ocorr0ncias, mas a terceira a faca

    resistia a !uais!uer tentativas de desagravo# ( assunto teria de esperar at) % manh' seguinte,

    !uando tivesse oportunidade de falar com 6aisa# $gora o telefonema inesperado de .i5olai

    preocupava-o mais# >eo tinha de se concentrar na raz'o por !ue um homem com o !ual n'o

    1

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    falava h seis anos lhe ligava a meio da noite, b0bado, suplicando !ue se encontrassem# .'o

    havia nada entre eles, nenhuma liga&'o ou amizade, nada com ecep&'o da!uele ano 1QQ o

    seu primeiro ano como agente do 8G#

    .i5olai esperava-o no topo das escadas, esparramado % entrada como um vagabundo#

    $ssim !ue viu >eo, levantou-se# ( seu casaco de *nverno era de bom corte, talvez at) feito noestrangeiro, mas encontrava-se em muito mau estado por desmazelo# $ barriga sa2a-lhe para fora

    da camisa desabotoada# Ganhara peso, perdera cabelo# :inha um ar envelhecido e cansado, o

    rosto oprimido de preocupa&'o, arrepanhado em torno dos olhos# :resandava a fumo, suor e

    lcool o !ue, combinado com o habitual cheiro a forno e a massa cozida !ue impreganava o ar do

    edif2cio, formava uma mescla irrespirvel# >eo ofereceu-lhe a m'o# .i5olai desviou-a para o

    lado, abra&ando-o, agarrando-se a ele como se tivesse acabado de ser salvo da vertente de uma

    montanha# .'o havia nada de piedoso na!uele abra&o/ isto de um homem !ue constru2ra a sua

    reputa&'o sendo impiedoso#(correu-lhe de repente o entalhe no ch'o de madeira# Por !ue se es!uecera da!uele

    detalheI .'o era importante, fora por isso# *n+meras coisas podiam t0-lo causado# Podia estar

    ali h algum tempo, n'o era algo em !ue ele fosse necessariamente reparar, um arranh'o

    causado pelo arrastar da mob2lia# @ontudo, bem no fundo de si, sabia !ue a faca e o entalhe

    estavam ligados#

    .i5olai tinha come&ado a falar, num discurso incoerente, desarticulado# >eo !uase n'o

    lhe prestava aten&'o, acenando com a cabe&a % medida !ue abria o departamento, conduzindo o

    convidado pelo seu escritrio# 3entados diante um do outro, >eo untou as m'os, apoiando oscotovelos na mesa, e ficou a observar .i5olai a falar sem ouvir !uase nada, ora prestando aten&'o

    ora n'o, apanhando a!ui e ali alguns fragmentos do discurso/ !ual!uer coisa sobre umas

    fotografias !ue lhe tinham sido enviadas# Aosse o !ue fosse !ue .i5olai estava a dizer, a mente

    de >eo n'o tinha espa&o para isso# @rescia dentro dele uma singular e terr2vel tomada de

    consci0ncia, !ue apartava todos os outros pensamentos# $ faca tinha ca2do, a ponta da faca

    cravara-se no ch'o antes de ricochetear para debaio da cama< tinha ca2do por!ue !uem !uer !ue

    a tivesse segurado na m'o, tinha entrado em pBnico, alarmado por um barulho s+bito, um

    telefonema inesperado# $ pessoa tinha fugido do !uarto, deiando a porta aberta, pois ia comdemasiada pressa para ter tempo de fech-la#

    Era ela

    7

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    8esmo agora, !ue todas as pe&as estavam encaiadas, era com relutBncia !ue articulava a

    +nica conclus'o lgica/ a pessoa !ue estava a segurar na faca era SoFa#

    >evantou-se, foi % anela e abriu-a# ( ar frio bateu-lhe no rosto# .'o soube ao certo

    !uanto tempo permaneceu na!uela posi&'o, a fitar o c)u nocturno, ouvindo, por)m, uma voz atrs

    dele !ue lhe recordou !ue n'o estava sozinho# ;oltou-se< preparava-se para pedir desculpa!uando engoliu as palavras# .i5olai, um homem !ue lhe ensinara !ue a crueldade era necessria

    e boa, estava lavado em lgrimas/

    5eo' Nem sequer estaa a escutar.

    $inda de lgrimas no rosto, .i5olai soltou uma risada, um som !ue transportou >eo de

    volta para as obrigatrios festeos aps terem feito uma pris'o# .essa noite, por)m, o riso de

    .i5olai era diferente# Era !uebradi&o# $ insol0ncia e a confian&a tinham desaparecido/

    2ueres esquecer' No queres* 5eo' No te condeno. Daa tudo para poder

    esquecer. 2ue "elo sonho seria esseB e-o desculpa* Ni%olaiC a minha ca"e-a est noutro s,tio* uma questo familiar.

    3eguiste o meu conselhoB 0ma fam,lia* isso "om. As fam,lias so importantes. As

    fam,lias so tudo. 0m homem no nada sem o amor da sua fam,lia.

    odemos falar amanh' 2uando estiermos menos cansados'

    .i5olai assentiu com um gesto de cabe&a e ergueu-se# 4unto % porta estacou, de olhos

    postos no ch'o/

    EstouBenergonhado.

    No te preocupes. ?odos n+s "e"emos demais de ez em quando. 7alamos amanh..i5olai fitou-o# >eo ulgou !ue ele fosse soltar nova risada, mas desta vez deu meia

    volta, dirigindo-se para as escadas#

    >eo sntiu-se aliviado por se encontrar finalmente a ss e ser capaz de se concentrar# .'o

    podia continuar a fingir# Ele era uma recorda&'o sempre presente da terr2vel perda de SoFa#

    .unca falara sobre o !ue se passara na!uele dia, !uando os seus pais tinham sido mortos a tiro#

    :entara ignorar o passado# $ faca era um grito de socorro# :inha de agir para salvar a sua

    fam2lia# Ele era capaz de resolver a situa&'o# Aalar com SoFa/ essa era a solu&'o# :inha de falar

    com ela imediatamente#

    ?

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    No mesmo d!

    .i5olai saiu para a rua, as botas a afundarem-se na fina neve# $o sentir o frio no

    est=mago descoberto, enfiou a camisa para dentro das cal&as mal conseguia focar os olhos, o

    corpo balan&ava como se estivesse no conv)s de um barco# Por !ue ligara a >eoI ue esperava

    ele !ue o seu antigo protegido fizesseI :alvez tivesse vindo apenas pelo companheirismo, n'o

    a!uele companheirismo de um companheiro de copos< vie