o conceito de paz: um percurso de kant à atualidade

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BAZZANO, Ariana. O Conceito de Paz: Um Percurso de Kant à Atualidade. Monografia do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica. Universidade Estadual de Londrina. 2007.

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  • Universidade Estadual de Londrina

    ARIANA BAZZANO DE OLIVEIRA

    O Conceito de Paz: Um Percurso de Kant Atualidade

    LONDRINA 2007

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    ARIANA BAZZANO DE OLIVEIRA

    O Conceito de Paz: Um Percurso de Kant Atualidade

    Monografia apresentada ao Curso de Especializao em Filosofia Poltica e

    Jurdica da Universidade Estadual de Londrina, como requisito final obteno do ttulo de Especialista em Filosofia Poltica e Jurdica, sob orientao do Prof. Dr. Elve Miguel Cenci.

    LONDRINA 2007

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    ARIANA BAZZANO DE OLIVEIRA

    O Conceito de Paz: Um Percurso de Kant Atualidade

    Monografia apresentada ao Curso de Especializao em Filosofia Poltica e

    Jurdica da Universidade Estadual de Londrina, como requisito final obteno do ttulo de Especialista em Filosofia Poltica e Jurdica, sob orientao do Prof. Dr. Elve Miguel Cenci.

    COMISSO EXAMINADORA

    _____________________________

    Prof. Dr. Elve Miguel Cenci

    _____________________________

    Prof. Dra. Maria Jos de Rezende

    ____________________________

    Prof. Francisco Sales Alves

    Londrina, _____ de ________ de 2007.

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    AGRADECIMENTOS

    minha Famlia, fonte de apoio incondicional a tudo o que eu fao; Ao meu Orientador, Prof. Elve Miguel Cenci, por me conduzir neste

    desafio; Ao GETEPOL Grupo de Estudos em Teoria Poltica a colaborao

    de vocs foi essencial para a finalizao deste trabalho. Obrigada a todos vocs, lvaro, Andr, Brbara, Danival, Dbora, Flvia, Marcia, Patrcia, Rafael e Willian;

    Raquel Kritsch, coordenadora do GETEPOL, que mesmo com um oceano nos separando, soube manter o esprito de equipe e a unio do GETEPOL.

    Ao Clodoaldo, pelo carinho e compreenso; Ao Cantinho, pela fora. Mari, conviver com uma pessoa que proporciona tanta paz no lar,

    tambm foi uns dos segredos para o bom andamento deste trabalho; Daniela Pacfico, ao Pedro Andrade e Juliana Moraes, amigos da

    graduao que permanecem em minha vida pessoal e profissional.

  • 5

    S de Sacanagem Elisa Lucinda

    Meu corao est aos pulos! Quantas vezes minha esperana ser posta prova?

    Tudo isso que est a no ar, malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro, do meu, do nosso dinheiro que reservamos duramente para educar os meninos mais pobres

    que ns, para cuidar gratuitamente da sade deles e dos seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu no posso mais.

    Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiana vai ser posta prova? Quantas vezes minha esperana vai esperar no cais?

    certo que tempos difceis existem para aperfeioar o aprendiz, mas no certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

    Meu corao est no escuro, a luz simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha me, minha av e os justos que os precederam: "No roubars", "Devolva o

    lpis do coleguinha", "Esse apontador no seu, minha filha". Ao invs disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido que escutar.

    At habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lgica ainda insiste: esse o tipo de benefcio que s ao culpado

    interessar. Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel f do meu povo sofrido, ento agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar.

    S de sacanagem! Diro: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo mundo rouba" e vou dizer: "No importa, ser esse o meu carnaval, vou confiar mais e

    outra vez. Eu, meu irmo, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso fregus.

    Com o tempo a gente consegue ser livre, tico e o escambau." Diro: " intil, todo o mundo aqui corrupto, desde o primeiro homem que

    veio de Portugal". Eu direi: No admito, minha esperana imortal. Eu repito, ouviram? Imortal!

    Sei que no d para mudar o comeo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!

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    OLIVEIRA, Ariana Bazzano de. O Conceito de Paz: Um Percurso de Kant Atualidade. Monografia do Curso de Especializao em Filosofia Poltica e Jurdica. Universidade Estadual de Londrina. 2007.

    RESUMO

    Nos dois ltimos sculos, principalmente no sculo XX, ocorreu uma mudana na compreenso da paz nas mais diversas disciplinas, tais como, na Filosofia, na Cincia Poltica e nas Relaes Internacionais. Pode-se dizer que at o sculo XX, predominava uma concepo restrita e negativa de paz, para o qual, a paz era ausncia de guerra. Aps a Segunda Guerra Mundial, surgiu uma nova rea de estudos, chamada Estudos de Paz e dentro desse contexto, Galtung postula um novo conceito de paz, que pode ser dividido em duas categorias: a paz negativa e a paz positiva.

    A partir da dcada de 90, a paz passa por um novo alargamento, pois a paz no poderia mais, ser ausncia de guerra ou ausncia de violncia, ela teria que possuir uma dimenso prpria, dessa forma, passa-se a falar da necessidade de se construir uma cultura de paz. A pesquisa consiste numa reviso bibliogrfica, dentro da produo acadmica, da qual espera-se demonstrar a trajetria do conceito de paz, a partir do sculo XVIII, tendo o autor Immanuel Kant como referncia, at o sculo XX, com a proposta de cultura de paz da UNESCO.

    Palavras-chave: paz; cultura de paz; Kant; Johan Galtung; UNESCO.

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    The Concept of Peace: The Passage of Kant to the Present time

    ABSTRACT

    In the two last centuries, mainly in century XX, a change in the understanding of the peace in most diverse occurred disciplines, such as, in the Philosophy, Science Politics and the International Relations. It can be said that until century XX, predominated the restricted conception and negative of peace, for which, the peace was war absence. After the Second World War, appeared a new area of studies, call Peace Studies and inside of this context, Galtung claims a new concept of peace, that can be divided in two categories: the negative peace and the positive peace.

    From the decade of 90, the peace passes for a new widening, therefore the peace could not more, to be war absence or violence absence, it would have that to possess a proper dimension, of this form, it is transferred to say it of the necessity of if constructing the culture of peace. The research consists of a bibliographical revision, inside of the academic production, of which expects to demonstrate the trajectory of the peace concept, from century XVIII, having Immanuel author Kant as reference, until century XX, with the proposal of culture of peace of UNESCO.

    Key-words: peace; culture of peace; Kant; Johan Galtung; UNESCO.

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    SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................................. 9

    1 TEORIA KANTIANA DA PAZ............................................................................ 14

    2 SCULO XX: O NASCIMENTO DA CINCIA DA PAZ ................................ 25

    3 O FINAL DA GUERRA FRIA E A CULTURA DE PAZ.................................. 33

    CONSIDERAES FINAIS....................................................................................... 42

    REFERNCIAS ........................................................................................................... 45

    ANEXOS ....................................................................................................................... 48

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    INTRODUO

    A paz sem dvida uma das grandes preocupaes deste novo milnio, questo de interesse da opinio pblica em geral, de polticos, religiosos, instituies internacionais e nacionais, etc. Esta preocupao generalizada da sociedade fez e faz surgir estudos, na sua maioria interdisciplinares, relacionados com os temas paz, violncia e conflitos. Esta interdisciplinaridade permitiu a ampliao de conceitos, objetivos, propostas metodolgicas e epistemolgicas novas, alm de compartilhar com outras cincias e disciplinas a inquietude das sociedades humanas.

    Dados estes parmetros, esta pesquisa ir apresentar uma reviso bibliogrfica, dentro da produo acadmica, da qual se espera demonstrar a trajetria do conceito de paz. Especialmente, de como, no discurso filosfico, este conceito sofreu uma ampliao, passando da compreenso da paz como ausncia de guerra, para depois, da paz como ausncia de violncia, para, por fim, atualmente, ser compreendida como a realizao de uma cultura de paz.

    No contexto do Iluminismo, a partir do sculo XVII, h uma vontade por parte dos autores de buscar uma justificativa racional para a paz. Segundo Guimares, o incio deste movimento est na obra do holands Hugo Grotius (1583-1645), O direito da guerra e da paz, publicada em 1625, que influenciado pelo humanismo cristo, prope um direito comum a todos os povos, que seria vlido para a guerra e na guerra, de forma que ela s possa ser desenvolvida de acordo com normas explcitas. Para Guimares, a contribuio de Grotius abriu o caminho para a doutrina da mediao e da arbitragem nas questes de guerra e paz, pois introduziu o elemento do debate e da discusso em relao a essas questes (GUIMARES, 2002, p.136).

    Para Thomas Hobbes (1588-1679), o Estado teria sido criado para garantir a paz e a segurana entre os homens. No seu livro Leviat, ele afirma que os

    homens naturalmente viviam num estado de guerra. Mas como no tinham segurana nenhuma sobre a preservao da sua prpria vida, racionalmente decidiram renunciar ao seu direito a todas as coisas (inclusive o de resolver os seus conflitos por conta prpria) para instituir um poder que pudesse garantir a paz e a segurana.

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    Guimares afirma que Espinosa (1632-1677), no seu livro Tratado Poltico, tambm compartilha com Hobbes da compreenso do Estado como condio de paz, alm de afirmar que a paz consiste na concrdia e prevenia para no se denominar com este nome um estado de inrcia ou a ausncia de movimento de armas (idem, p.137).

    John Locke (1632-1704), no Segundo tratado sobre o governo civil, contrape o estado natural de guerra ao direito de natural que ordena a paz, para o autor, foi para evitar a guerra que os homens se reuniram em sociedade, "pois onde h uma autoridade, um poder sobre a terra, onde se pode obter reparao atravs de recurso, est excluda a continuidade do estado de guerra e a controvrsia decidida por aquele poder" (apud GUIMARES, 2002, p.137).

    Vrios autores, entre os sculos XVII e XVIII, fundamentavam-se nesta concepo da paz garantida pelo Estado e elaboraram reflexes com a temtica da paz perptua, pois objetivavam superar as guerras e os conflitos que eram parte da vida das naes na Europa naquela poca.

    No entanto, inicia-se o estudo, no sculo XVIII, tendo o autor Immanuel Kant como referncia, pois, foi um dos primeiros autores a tratar da questo da paz, de forma a garanti-la perpetuamente, em contextos polticos e jurdicos. Com Kant, a paz deixa de ser tratada de forma religiosa, para receber um tratamento jurdico-poltico. E tambm, a partir da proposta kantiana de paz que comea a ser utilizada a idia da construo para definir a obra da paz. At ento, paz e guerra eram consideradas realidades inalterveis na filosofia, no direito e na moral. A paz como uma idia ligada construo social o ponto em comum dos autores apresentados nesta pesquisa.

    Durante o sculo XIX, esta pesquisa no localizou autores que deram contribuies significativas, no sentido, de se compreender a paz como algo que no estivesse relacionado somente com a ausncia de guerra. Historicamente, isto at explicvel, pois a Europa vivia no perodo conhecido como a paz centenria (1815 1914). Segundo Castro, este perodo de paz relativa, desde a queda de Napoleo at a Primeira Guerra Mundial, foi decorrente de dois fatores: 1) existncia de um consenso diplomtico que favoreceu um equilbrio de poder entre as grandes naes, o

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    chamado concerto europeu; 2) a existncia do interesse pela paz que era subjacente atuao da comunidade financeira internacional (CASTRO, 2001, p.05).

    Em virtude desses fatos, pode-se afirmar que nos dois ltimos sculos, principalmente no sculo XX, ocorreu uma mudana na compreenso da paz nas mais diversas disciplinas, tais como, na Filosofia, na Cincia Poltica e nas Relaes Internacionais. Pode-se dizer que at o sculo XX, predominava uma concepo restrita e negativa de paz, para a qual, a paz era ausncia de guerra. A partir do sculo XX, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial, surgiu uma nova rea de estudos, chamada Estudos de Paz ou conhecida tambm, pelo seu nome ingls Peace Research, que propiciou o desenvolvimento e uma ampliao da compreenso do que paz e violncia.

    Esta nova disciplina procura entender as razes dos conflitos e quais so os passos necessrios para a sua superao. Assim, dentro desse contexto, Galtung postula um novo conceito de paz, que pode ser dividido em duas categorias: a paz negativa, que a ausncia de violncia direta e a paz positiva, que a ausncia de violncia estrutural. Essa amplitude do conceito de paz tem relao direta com a amplitude do conceito de violncia: alm da violncia direta ou pessoal, existe a violncia estrutural, resultante da desigualdade de poder e da injustia social e tambm, a violncia cultural que se traduz no sistema de normas e comportamentos que legitimam socialmente as duas anteriores.

    No mesmo perodo, em 1945, funda-se a Organizaes das Naes Unidas (ONU) e a sua agncia especializada em educao, a Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura (UNESCO), ambas com a tarefa de preservar as futuras geraes do flagelo da guerra1, pois j que as guerras nascem nas mentes dos homens, na mente dos homens que devem ser erguidas as defesas da paz2, assim, ao acreditar que a paz uma realidade a ser construda, ela tambm necessita da cincia, da educao e da cultura.

    Outra contribuio relevante sobre o conceito de violncia, que conseqentemente se refletiu sobre o conceito de paz, foi dada pela filsofa Hannah

    1 Constituio das Organizaes das Naes Unidas, 1945.

    2 Constituio da UNESCO, 1945.

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    Arendt. Em seu trabalho Sobre a violncia, escrito no contexto de maio de 1968, a autora faz a distino entre poder e violncia. Para a filsofa, "poder e violncia so opostos; onde um deles domina totalmente, o outro est ausente. A violncia aparece onde o poder est em risco, mas se a permitem seguir seus prprios caminhos, resulta no desaparecimento do poder" (ARENDT, 2004, p.132).

    Segundo Arendt, poder corresponde capacidade humana no apenas de agir, mas para agir de comum acordo (idem, p.123), pertence a um grupo e permanece somente na medida em que o grupo se mantm unido, desaparecendo quando este desaparece. A violncia, para Arendt, distingue-se por seu carter instrumental, meios, implementos, instrumentos, ferramentas, so alguns dos substantivos usados pela autora. Assim, com o propsito de multiplicar o vigor3 natural, a violncia aproxima-se fenomenologicamente de vigor (idem, 124).

    De forma breve, pode-se afirmar que para esta autora, a emergncia da violncia est ligada:

    a) deteriorao da ao entendida no seu sentido coletivo, pblico e poltico. Para esta autora, substituiu-se a ao pela fabricao: nesta ltima, a violncia faz parte do seu processo, naquela, a igualdade, o dilogo e a argumentao;

    b) ao no acesso palavra. Como a ao, o discurso que faz do ser humano um ser poltico e torna relevante e significativa a ao. A partir disto, Hannah Arendt ir definir a violncia, exatamente, como o agir sem argumentar e o imprio do silncio: somente a pura violncia muda. Quando a palavra no possvel, a violncia se afirma e a condio humana negada.

    c) ao encolhimento do espao pblico, espao do dilogo e da igualdade (GUIMARES, 2004, p.12).

    De acordo com Guimares, no pensamento arendtiano, a possibilidade da paz funda-se na habilidade humana, no apenas para agir, mas para agir em concerto, constituindo-se em uma das mais decisivas experincias humanas. O autor afirma que Hannah Arendt chama a isto de poder, entendendo-o no como prerrogativa do Estado ou dos grupos dominantes, mas como condio da prpria humanidade. Portanto, para Guimares, a educao para a paz apresenta-se como espao de empoderamento, isto ,

    3 Hannah Arendt define vigor ou fortaleza como uma entidade individual; uma propriedade inerente a

    um objeto ou uma pessoa e pertence ao seu carter, o qual pode-se provar em relao a outras coisas ou pessoas, mas essencialmente independente delas (ARENDT, 2004, p.123).

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    o fortalecimento da capacidade de poder que todos possuem como caminho de superao da violncia (cf. GUIMARES, 2007).

    Com as breves consideraes acima, registram-se as relevantes contribuies do pensamento da filsofa Hannah Arendt, entretanto, em virtude do recorte da pesquisa, no ser possvel um estudo mais detalhado de sua teoria.

    A partir da dcada de 90, a concepo de paz passa por um novo alargamento, pois a paz no poderia mais, ser ausncia de guerra ou ausncia de violncia, ela teria que possuir uma dimenso prpria, dessa forma passa-se a falar da necessidade de se construir uma cultura de paz. Segundo Federico Mayor, ex-diretor geral da UNESCO, cultura de paz so aes, maneiras de vida, comportamentos, hbitos e atitudes que favorecem a paz. E estas aes, efetuadas tanto pelo Estado, quanto pela sociedade civil, podem ser divididas em oito campos de ao: a educao para a paz; o desenvolvimento econmico e social sustentvel; os direitos humanos; a igualdade entre os gneros; a participao democrtica; a compreenso, a tolerncia e a solidariedade; a comunicao participativa e a livre circulao de informao e conhecimento; a paz e a segurana internacional.

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    1 TEORIA KANTIANA DA PAZ

    De acordo com Bobbio (2000, p.511), o homem comeou a refletir sobre a paz partindo do estado de guerra, pois a guerra colocava em perigo o maior bem do homem, a sua prpria vida. Dessa maneira, os pensadores da paz apresentaram suas primeiras reflexes sobre o tema influenciados pelos horrores das guerras.

    A guerra, de certa maneira, permitiu que as reflexes sobre a paz, comeassem a sair do mbito estritamente religioso. As conseqncias das guerras eram tamanhas, que no se podia mais esperar a ps-morte, para se viver em paz. Os homens necessitavam aprender a viver em paz, sem a ajuda da interveno divina.

    A historiografia tem sido predominantemente um relato de guerras e isto no foi diferente com a histria da filosofia, de acordo com Bobbio (2000), sempre existiu uma filosofia da guerra, enquanto bem mais recente a filosofia da paz, da qual o primeiro grande exemplo Kant (p.512). Bobbio afirma que a filosofia da paz surge quando a filosofia da guerra esgota todas as suas possibilidades e ao mesmo tempo mostra a sua impotncia em relao ao aumento quantitativo e qualitativo das guerras.

    Parafraseando uma das afirmaes mais clebres de Marx, poderamos dizer que uma filosofia da paz nasce quando comeamos a nos dar conta de que no se trata mais de interpretar a guerra, mas de mud-la, ou, em outras palavras, no se trata mais de encontrar sempre novas e mais engenhosas justificativas para a guerra, mas de elimin-la para sempre (BOBBIO, 2000, p.524-525).

    A filosofia da guerra tem por princpio que as relaes entre os homens e os povos so, na sua essncia, relaes de violncia, hostilidade e animosidade. Entre os autores desta corrente destaca-se Maquiavel, Hobbes e Carl Schmitt. Em Maquiavel, esse princpio aparece na fundamentao da autoridade poltica: necessrio quele que estabelece um Estado e lhe confere uma constituio pressupor que todos os homens so maus (apud CASTILLO, 2001, p.06). Hobbes afirmava que todos os homens so naturalmente inimigos, dessa forma, o estado natural dos homens, era a guerra de todos contra todos. Mais contemporaneamente, na dcada de 30, Carl Schmitt afirma que a poltica no tem outro papel alm de identificar o inimigo, de conferir sua unidade e sua identidade a um povo, qualificando-o como seu

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    inimigo e, portanto, suas razes de praticar a guerra (CASTILLO, 2001, p.06-07). Assim, para Schmitt, o outro, o estrangeiro o inimigo, pois o outro aquele com o

    qual no se pode entrar em acordo.

    Segundo Castillo, as teses de uma filosofia da guerra podem ser agrupadas em vrios tipos de argumentao. Primeiramente, tem-se o argumento de ordem antropolgica, que afirma que a guerra e a violncia fazem parte da natureza humana. Depois, tem-se o argumento de ordem poltica, a guerra a poltica por outros meios afirmou Clausewitz e por fim, a tese que afirma que a guerra criadora de valor, de ordem ou de justia, tudo isso, baseado nas leis da vida ou nas leis da histria (idem, p.07).

    J a filosofia da paz acredita que a guerra no o estado habitual das relaes humanas e que possvel estabelecer a paz, como uma situao habitual das relaes entre os povos. Pode-se afirmar que a filosofia da paz nasceu no sculo XVIII, com o Projeto para tornar a paz perptua na Europa, de Charles Fren Castel, mais conhecido como abade de Saint-Pierre (1658 - 1743). O livro foi escrito em 1713 e nele o autor defendia o princpio de uma aliana perptua entre os Estados soberanos que, obrigados por um tratado internacional, deveriam submeter todas as suas contendas ao juzo de todos os outros Estados reunidos em assemblia permanente4. Destaca-se desta proposta, a preocupao com a vinculao dos Estados s exigncias da paz na esfera internacional. O consenso e a formao de alianas internacionais so descritos pelo abade de Saint-Pierre como meios necessrios para se alcanar a paz entre os Estados europeus.

    As teses do abade de Saint-Pierre passam por pacifistas, na medida em que no visam simplesmente a estabelecer as regras e a limitar a guerra, mas tambm a buscar os meios de elimin-la, submetendo-a a um julgamento arbitral e atribuindo fora ao direito com a utilizao em comum dos princpios da deciso poltica (CASTILLO, 2001, p.25).

    O abade de Saint-Pierre inova ao fazer da paz um objetivo poltico, que estaria acima do interesse privado dos governantes, porm ele acreditava que a

    4 BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUIM, 2000, p. 875.

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    moral, especialmente, a moral religiosa crist faria com que os homens abandonassem a guerra por uma paz fraternal.

    O primeiro autor que se afasta das valoraes de cunho religioso, no terreno da filosofia poltica e para a qual, a reflexo poltico-filosfica sobre a paz encontra uma importante e decisiva contribuio com os escritos de Immanuel Kant.

    Este foi o primeiro grande filsofo da paz, que publicou, em 1795, em forma de tratado internacional, um opsculo intitulado Projeto para a paz perptua. Uma entre outras justificativas para conferir-lhe tal ttulo, o fato de que Kant busca conferir paz um fundamento jurdico, pois no se trata de bondade ou filantropia, mas de direito. Alm do que, Kant foi pioneiro na vinculao de uma organizao internacional com o pacifismo pela razo.

    Kant teria realizado a cristalizao definitiva das diferentes idias de organizao internacional at ento expressas por lhes ordenar, pela primeira vez, no que Ledermann chama de um todo lgico, isto , um sistema filosfico (...) Ao ligar o problema da paz ao da organizao internacional, Kant teria fundado o que Ledermann chama de um pacifismo do realizvel com fundamento jurdico em oposio ao que chama de pacifismo potico, ou ainda buclico com fundamento religioso (NOUR, 2004, p. 112).

    Como foi visto acima, a reflexo kantiana de paz parte de um enfoque original e diverso das contribuies anteriores sobre o tema, o que marca uma nova etapa na teoria da paz. Pois, uma ordem pacfica global deve estar assentada numa ordem jurdica global, como Kant descreve no segundo artigo definitivo de Projeto para a paz perptua (CASTANHEIRA, 2005, p.02).

    Segundo Rohden, ao se analisar a Histria, por uma perspectiva emprica, ela entendida at o sculo XIX como a histria de guerras. Porm, ao se analisar por uma perspectiva transcendental, isto , a priori kantiana, a Histria passa a ser entendida como a histria da liberdade, a partir da qual a paz se torna uma tarefa e um dever, de cuja conscincia mais do que nunca depende o nosso futuro (ROHDEN, 1997, p.14). Rohden afirma que do ponto de vista terico a filosofia poltica kantiana sobre o tema da paz, apresenta-se

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    como um processo de instaurao progressiva do direito e, de um ponto de vista prtico, como uma tarefa comprometida com cada instituio do Estado. Por isso a instituio de uma paz universal e duradoura no apenas o objetivo ltimo do Direito das gentes, mas o fim terminal de toda a Doutrina do direito, concernente relao racional do homem com todo outro (idem, p.11).

    O princpio do qual partia Kant era o de que existiria uma tendncia da histria humana de tornar realidade uma sociedade jurdica cada vez mais vasta, pois ele acreditava que o direito constitua um conjunto de condies capazes de tornar possvel a coexistncia pacfica das liberdades exteriores: um fim que poderia ser alcanado por uma confederao de Estados livres quando cada Estado tivesse adotado uma forma republicana, na qual o poder de decidir a guerra ou a paz no coubesse ao monarca, mas ao povo. Kant supera as idias do abade de Saint-Pierre ao associar a paz a uma organizao internacional, pois Kant acreditava nas instituies e no, nos homens.

    Rohden afirma que para melhor compreender a concepo de paz de Kant, tambm necessrio que se detenha no adjetivo perptua, pois este um elemento imprescindvel do conceito kantiano de paz. De acordo com o autor, uma paz que no seja perptua, um armistcio, que mesmo sem uma hostilidade declarada, pode-se identificar um estado de guerra5, como afirma Kant, no seu primeiro artigo preliminar da Paz Perptua (idem, p.13). Segundo Guimares, Kant distingue o armistcio (adiamento das hostilidades) de paz (fim de todas as hostilidades) e afirma que para o autor, do mesmo modo como os homens livres se associam para instaurar a paz, os Estados deveriam se confederar para instituir a paz perptua. Formariam, assim, uma federao de paz distinta do pacto de paz, uma vez que este simplesmente procura pr fim a uma guerra, enquanto aquela intenta acabar com todas as guerras para sempre (cf. GUIMARES, 1999).

    Para ser algo mais que um armistcio, a paz deve ser uma nova etapa do mundo, que consiste segundo Kant, a sair do estado de natureza entre os Estados (anarquia internacional), que a situao de conflito permanente. Este raciocnio de Kant contribui para desqualificar a guerra, pois a ela no pode representar um direito, j que se ope inteiramente ao direito de surgir relaes de direito entre os povos. Assim,

    5 A Guerra Fria, ocorrida no sculo XX, bom exemplo do que Kant aponta como um armistcio.

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    de tal forma que a liberdade dos soberanos permanecer uma liberdade sem lei uma independncia prpria do estado de natureza; as naes permanecero em situao anrquica, reino do poder sem lei, onde a injustia se perpetua, mantendo o mundo num estado infrajurdico. Nesse sentido, a guerra corresponde era pr-jurdico da humanidade, a uma espcie de estado primitivo da vida internacional (CASTILLO, 2001, p.33).

    Alm do que uma paz perptua, a preservaria das maquinaes e manobras polticas que a subordinariam aos interesses do poder e para Kant, a paz tem quer estar acima dos interesses do poder, pois no pode ser um objetivo circunstancial ou provisrio, a paz um fim supremo (idem, p.32).

    Segundo Nour, a concepo de guerra e paz de Kant tem um carter estrutural, pois se vinculam estrutura jurdica institucional. Para Kant, violncia estrutural significa que, num estado no-jurdico, pessoas e povos isolados no esto seguros nem contra a violncia dos outros, nem para fazer o que lhes parece justo e bom (NOUR, 2003, p.11).

    Kant considerava que o estado de natureza entre os homens era de guerra e no de paz, dessa forma, no estado de natureza, embora nem sempre ocorra hostilidades, existe uma ameaa constante de que elas ocorram. Por isso, a paz necessita ser instaurada, pois s se pode ter segurana num estado jurdico, pois neste, pode-se tratar como inimigo apenas aquele que lesa de fato, enquanto que, no estado de natureza, o outro pode lesar a outrem, pois a simples existncia do outro, implica num perigo a sua sobrevivncia. Assim, segundo Nour, o estado de natureza, portanto, um estado de ausncia de direito (ibidem).

    A paz deve portanto ser assegurada por estruturas jurdicas institucionais, ou seja, o estado de paz deve ser fundado por meio do direito pblico, o que significa sair do estado de natureza e entrar num estado civil, no qual legalmente definido o que de cada um (ibidem).

    De acordo com Guimares, Kant enfatiza a noo de aliana e de pacto, pois acreditava que a paz no era uma situao natural dos homens. O autor aponta que o texto Projeto para a paz perptua, de Kant, contm o subttulo de um projeto filosfico e foi escrito em forma de um tratado, com artigos preliminares, artigos definitivos, clusulas secretas e apndice. Para Guimares, este estilo de escrever

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    de Kant a expresso do pensamento moderno que acreditava que a paz nasce de um pacto, portanto, fruto de uma deciso racional. E como a omisso de hostilidades no a garantia de paz, era preciso descrever detalhadamente em consistiria o estado da paz internacional (cf. GUIMARES, 1999).

    Rohden afirma que para Kant, a paz s seria instaurada quando se instalasse uma ordem jurdica, fundada sobre os princpios de liberdade, dependncia de uma legislao comum e igualdade entre os cidados. Estes so os princpios de uma constituio republicana ou de um Estado democrtico (ROHDEN, 1997, p.13). Assim, se um Estado no cumpre um destes princpios, as hostilidades entre as pessoas que vivem neste Estado, podem deflagrar um conflito.

    Estado de paz o estado civil fundado na idia a priori de um contrato social originrio, mensurvel a qualquer momento em seu estgio de aproximao a ela. Esse estado s se institui progressivamente na medida do reconhecimento dos direitos de cada indivduo em uma sociedade organizada autonomamente. Isto , a paz instaura-se e torna duradoura num estado de direito democrtico. A instituio da paz emerge da pacificao interna em um Estado. Mas devido necessria interdependncia dos homens e Estados dentro de uma esfera limitada da Terra, ela s se perfaz mediante um direito internacional e um direito cosmopolita. A paz coextensiva idia de uma humanidade civilizada (ibidem).

    Para Kant, portanto, preciso um esforo consciente e racional dos governantes e governados, para controlar e extinguir as causas das guerras. Esse esforo se daria principalmente, num aperfeioamento das instituies humanas, como o direito, pois seriam elas as garantidoras e mantedoras da paz.

    Entretanto, de acordo com Guzmn, para os homens se aproximarem do ideal moral de uma convivncia em paz, no suficiente apenas o estabelecimento de constituies republicanas dentro dos Estados e o estabelecimento de um direito internacional entre os Estados. Para o autor, de acordo com Kant, necessrio uma democracia e um direito cosmopolita fundamentados na idia regulativa da paz perptua. Diz Kant:

    Ora, como se chegou to longe com o incremento em geral da comunidade (mais estreita ou mais ampla) entre os povos da Terra que a violao dos direitos em um s lugar da Terra sentida em todos os outros: assim, a idia de um direito cosmopolita no nenhuma espcie de representao fantstica e excntrica do direito, porm um necessrio complemento de um cdigo no escrito, tanto do direito pblico como do direito das gentes para o direito

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    pblico da humanidade em geral e, por conseguinte, um complemento para a paz perptua, de cuja contnua aproximao s possvel lisonjear-se sob esta condio (KANT, 2004, p.54).

    Segundo Messari e Nogueira, a origem da relao entre democracia e paz est na obra Projeto para a Paz Perptua, de Kant, pois nesse texto, que ele formula o conceito de confederao pacfica, para se referir ao conjunto de Estados que compartilham uma forma republicana de governo (2005, p.64). Para os autores, os princpios que regem as repblicas, de acordo com Kant, incluem: a proteo dos direitos individuais, o estado de direito, a legitimidade do governo com base na representao e no consenso, a transparncia e a publicidade nas decises do Estado (ibidem).

    Messari e Nogueira afirmam que para Kant, a origem das guerras estava, principalmente, nas formas de governo imperfeitas. Nos Estados despticos, os monarcas no precisavam prestar contas aos seus sditos a respeito das decises de poltica externa e interna. As ambies territoriais dos monarcas quase sempre se confundiam com os interesses pessoais e feudais e segundo os autores, no se considerava as conseqncias dessas investidas militares sobre o bem-estar do prprio Estado e da populao em geral, sobre a qual, recaam os custos da guerra (ibidem). Kant afirma que num Estado no-republicano a guerra a coisa mais irrefletida do mundo, porque o soberano no membro, porm proprietrio do Estado, e a guerra no o faz perder o mnimo de seus repastos, caadas, castelos de recreio, festas de corte etc.. (2004, p.42).

    Os autores apontam que para Kant, nas repblicas o poder seria baseado na representao de interesses coletivos, o que tornaria mais difcil qualquer deciso de se fazer a guerra.

    Se, de fato, o governo fosse exercido em nome da cidadania, ou da maioria dela, uma iniciativa que colocasse em risco as vidas e o patrimnio desses cidados deveria ser objeto de ampla discusso e de uma justificativa racional e legtima. Conseqentemente, a poltica externa de regimes republicanos tenderia a ser muito mais prudente e resguardada por ser mais comprometida com os interesses da sociedade em geral (Messari; Nogueira, 2005, p. 64-65).

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    Messari e Nogueira ainda ressaltam que, para Kant, as repblicas seriam mais pacficas, em virtude de suas instituies e observncia do estado de direito. Kant no acreditava que os indivduos tornar-se-iam mais pacficos por meio de algum processo educativo, cultural ou espiritual. Kant afirmava que at uma nao de demnios seria pacfica se bem-ordenada pelos princpios republicanos. Alm do que, o respeito a um regime jurdico constitucional, segundo os autores, estimula a crena na eficcia do direito internacional como mecanismo de resoluo de conflitos.

    Nesse sentido, sociedades democrticas buscariam resolver suas diferenas mtuas pacificamente por meio do direito internacional, porque reconheceriam umas nas outras o mesmo compromisso com regras e instituies que reduzem a possibilidade de uma agresso armada. Alm disso, a semelhana das instituies polticas favoreceria o intercmbio econmico, poltico e cultural, criando laos de familiaridade e eventualmente, de amizade que limitariam as fontes de conflito (idem, p.65).

    Portanto, de acordo com Messari e Nogueira, a viso kantiana da paz, principalmente, nas Relaes Internacionais, significava criar uma estrutura

    supranacional a Confederao e fortalecer o Direito Internacional como mecanismo capaz de solucionar as controvrsias de forma pacfica (idem, p.71).

    Para Habermas, a condio cosmopolita deve se distinguir da condio jurdica do interior de cada Estado, pois sob uma condio cosmopolita, os Estados no se submeteriam a um poder superior, tal como fazem os cidados em particular em relao s leis coativas, mas cada qual mantm sua independncia. A confederao de Estados livres renunciaria, de uma vez por todas, ao instrumento da guerra para a relao dos Estados entre si, e deve manter intacta a soberania de seus membros. Em lugar de uma repblica mundial surge uma aliana de Estados que refuta a guerra (HABERMAS, 2002, p.197).

    Para Kant, o Estado uma sociedade autnoma de seres humanos e a sua base funda-se na idia racional de um contrato originrio fonte de todo o direito. O autor define o direito paz e este necessita de trs condies: 1) o direito de estar em paz quando na vizinhana h guerra, ou seja, o direito neutralidade; 2) o direito durabilidade da paz contrada, isto , o direito garantia; 3) o direito vinculao recproca (confederao) entre diversos Estados para defender-se comunitariamente contra eventuais ataques externos (ROHDEN, 1997, p.234). Esta segurana contra a

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    guerra assenta-se num estado legal, pois fora dessa legalidade, cada vizinho ou povo inimigo um do outro e a sua simples presena, torna-se uma ameaa. Diz Kant: no estado de paz estou seguro pelo meu direito; no estado natural somente por minha violncia (apud ROHDEN, 1997, p.234).

    Guimares ressalta a importncia de Kant ter conferido paz perptua o estatuto de projeto filosfico, pois ao definir a paz como um projeto, Kant redefiniu a prpria idia de paz. Ao fazer diversas distines ao longo do texto - entre armistcio e paz, entre omisso de hostilidades e garantia de paz, entre tratado de paz e liga de paz Kant mostra a sua recusa com o conceito de paz, em vigor na sua poca, compreendida apenas como uma obscura rede de astcias, derivada do jogo do poder e vazia de contedo. Kant acredita que a paz uma tarefa que, solucionada pouco a pouco, aproxima-se continuamente de seu fim (porque os tempos em que iguais progressos acontecem tornar-se-o Oxal cada vez mais curtos) (apud GUIMARES, 1999).

    Alm disso, para Guimares, quando Kant define a paz como um projeto filosfico, ele a torna um tema filosfico relevante, pois retira o tema da paz do domnio religioso, do imaginrio utpico e do sentimento comum, dota-o de racionalidade e incorpora-o na filosofia crtica (ibidem). E como projeto filosfico, segundo Guimares, a paz assume uma perspectiva transcendental consolidando sua essncia no sujeito racional e livre.

    No segundo artigo definitivo, Kant afirma que a razo, do alto de seu trono de supremo poder legislativo moral, simplesmente condena a guerra como via do direito e faz, em contrapartida, um dever imediato do estado de paz (KANT, 2004, p.48). E no apndice que Kant trata da discordncia entre a moral e a poltica, o autor confere paz perptua no apenas o estatuto de um bem fsico, mas tambm um estado proveniente do reconhecimento do dever (idem, p.75-76). Desta forma, Guimares afirma que a partir destes fundamentos filosficos que comea a ser utilizado o smbolo da construo para definir a obra da paz.

    At ento, paz e guerra eram considerados realidades inalterveis na filosofia, direito e moral. O mximo que se podia fazer era erguer as bandeiras brancas, quando os vveres, as munies ou a resistncia se esgotavam, e a derrota apresentava-se como iminente. A bandeira da paz era, neste contexto, ao mesmo tempo, afirmao da paz e da guerra, da paz na guerra, mas no da paz contra a guerra. O Iluminismo comeou a duvidar da inevitabilidade da guerra e pesquisar as bases de uma ordem de paz baseada na razo. A paz

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    passou a fazer parte do projeto da modernidade de vencer a barbrie (cf. GUIMARES, 1999).

    De acordo com Habermas, Kant inovou a teoria do direito ao argumentar que um direito cosmopolita poderia garantir paz perptua aos povos, porm, Habermas ressalta que Kant determinava a paz, somente por vias negativas, no deve haver guerra, deve-se dar fim ao funesto guerrear afirmava Kant.

    Habermas afirma que Kant busca uma paz desse tipo com referncia aos males6 ocasionados pelas guerras que os prncipes da Europa travavam na poca, com o auxlio dos exrcitos mercenrios. Esse panorama o da guerra restrita que, no mbito do direito das gentes, fora institucionalizado no sistema das potncias internacionais, como instrumento legtimo para a soluo de conflitos. O encerramento de uma guerra como essa define a situao de paz.

    E assim como determinado tratado de paz pe fim aos males de uma guerra particular, dessa mesma forma uma aliana pela paz deve encerrar todas as guerras para todo o sempre e suprimir como tais todos os males ocasionados pela guerra. esse o significado da paz perptua. A paz, dessa maneira, circunscrita da mesma maneira que a prpria guerra (HABERMAS, 2002, p.195).

    Para Habermas, Kant pode se contentar com o conceito negativo de paz. Contudo, para o autor, hoje esse conceito insuficiente, no s por causa do descomedimento na conduo da guerra, mas, sobretudo porque o surgimento das guerras tem razes sociais. A complexidade das causas das guerras exige uma concepo de paz que seja compreendida de um processo que decorre sem violncia, mas que no objetiva simplesmente a preservao do poder, e sim o cumprimento de pressupostos reais para o convvio livre de tenses entre grupos e povos. As regulamentaes implementadas no podem ferir a existncia e a honra dos envolvidos, nem podem restringir demais os interesses vitais e as noes de justia, ao ponto de que as partes conflitantes voltem a recorrer guerra, caso se esgotem as possibilidades de ao. Dessa maneira, as polticas que se orientam segundo um conceito de paz mais amplo, podero recorrer a todos os meios antes do uso do poder militar (idem, p.216).

    6 Exemplos de males: pilhagens, empobrecimento do pas por causa do custo da guerra, subjugao, perda

    da liberdade, brutalizao dos costumes, espionagem, atirador de elite, assassinos profissionais, etc.

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    Kant foi um marco para a filosofia poltica e disciplinas afins, por ser o primeiro autor a sistematizar na forma de um tratado jurdico-poltico, as condies para se garantir a paz perptua entre as naes. As idias kantianas de paz ficaram estacionadas at o sculo XX, pois eram consideradas como ideais utpicas e inalcanveis. Porm, com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, e suas posteriores conseqncias, demonstraram que a paz no podia preservar-se somente por meio de um sistema de equilbrio de foras. Assim, neste perodo, as teses kantianas sobre a paz ganham respeitabilidade, porque tanto a Liga das Naes, como as Organizaes das Naes Unidas (ONU), se fundamentaram filosfica e juridicamente sobre a idia de que a guerra s pode ser evitada ou limitada, a partir da criao de um organismo internacional que tivesse como objetivo, garantir a paz entre os povos.

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    2 SCULO XX: O NASCIMENTO DA CINCIA DA PAZ

    Em virtude dos acontecimentos do sculo XX, tais como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma mudana significativa na maneira de se compreender o que paz. Pode-se afirmar que nunca o tema paz foi to discutido e estudado como comeou a s-lo a partir do sculo XX. Isto no significa que nos sculos anteriores no se estudasse a paz: o ponto que no sculo XX houve um empenho maior das cincias em refletir profundamente a respeito da temtica da paz e dos seus correspondentes, violncia e guerra. Estes estudos consistiram, sobretudo, numa maneira de se contrapor s conquistas das cincias que foram rotineiramente adotadas pelas Foras Armadas do mundo inteiro, o que tornou a guerra mais letal e mais destrutiva do que nunca. Assim, compreender o que a paz e como consolid-la se tornou uma questo mais urgente no sculo XX, do que nos sculos anteriores.

    Aps a Primeira Guerra Mundial, surgem s primeiras pesquisas sobre a paz, que nascem da necessidade de encontrar um equivalente moral e cientifico guerra, com o objetivo de por fim a ela. Desenvolve-se a Pedagogia da paz, disciplina que estuda os comportamentos agressivos e violentos dos seres humanos. O desafio dessa nova especialidade era identificar e/ou elaborar uma forma de socializao e educao diferentes, que tornassem as pessoas mais livres, responsveis e criativas.

    A antropologia, com os estudos da estadunidense Margaret Mead (1901-1978), contribuiu para a percepo da guerra e da violncia como construes culturais. A psicologia desafiou o ponto de vista simplista de que a guerra o resultado inevitvel da natureza humana ao trazer novos elementos para sua compreenso, especialmente pela contribuio de William James (1842-1910), considerado o primeiro psiclogo para a paz por ter proposto encontrar uma moral que substitusse a da guerra. Tambm Sigmund Freud (1856-1939), em sua famosa carta a Albert Einstein, contrape o instinto de destruio (Tnatos) ao instinto de vida (Eros), mediado seja pelas relaes humanas "tudo o que favorece o estreitamento dos vnculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra" (apud GUIMARES, 2002, p. 20) seja pela cultura "tudo o que estimula o crescimento da civilizao trabalha simultaneamente contra a guerra" (ibidem).

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    Na filosofia, pode-se lembrar do alemo Max Scheler (1874-1928), que escreveu A idia da paz e os pacifismos; do francs Maurice Blondel (1861-1949), que publicou A luta pela civilizao e filosofia da paz; do tambm alemo Karl Jaspers (1883-1969), que escreveu Verdade, liberdade e paz, alm de A bomba atmica e o futuro do homem; do espanhol Jos Ortega y Gasset (1883-1955), com sua reflexo Quanto ao pacifismo..., publicada s vsperas da Segunda Guerra Mundial; ou ainda do ingls Bertrand Russel (1872-1970), que em inmeros textos justificou racionalmente seu intenso engajamento pacifista.

    Nestes primeiros anos de desenvolvimento da pesquisa sobre a paz, ela ficou sujeita a explicar os conceitos de violncia, de guerra, de conflitos, alm de estudar as formas de armamentos, contabilizar o nmero de mortos em guerras etc. Segundo Martnez e Muoz, um balano a ser feito pelas quatro dcadas de desenvolvimento da pesquisa sobre a paz o avano substancial nas cincias humanas, pois promoveu uma renovao dos estudos em campos como a cincia poltica, a sociologia, a filosofia, as relaes internacionais, etc., fomentando uma cooperao internacional entre os investigadores das cincias humanas e de tambm de outras cincias, tais como a Fsica (MARTNEZ; MUOZ, 2000, p.21).

    Depois de 1945, constituiu-se uma cincia para estudar a paz, a guerra e os conflitos denominada polemologia (estudo dos conflitos) por alguns, irenologia (estudos de paz) por outros, ou, ainda, sob a designao de estudos de paz (peace studies e peace research) , o que gerou a criao de uma srie de centros de pesquisa em nvel universitrio e o avano de estudos sobre a temtica, sob a perspectiva plural de diversas cincias.

    Os estudos de paz surgem como uma contraposio terica ao conservadorismo realista e behaviorista das Relaes Internacionais, corrente predominante desde a dcada de 30. Estas novas pesquisas sobre a paz tambm promoveram uma anlise crtica dos estudos anteriores sobre a temtica, acusando os seus antecessores de formalistas e conservadores, visto que se concentravam no estudo da gesto dos conflitos internacionais, sem buscar as causas das estruturas produtoras de conflitualidade.

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    J os Estudos de paz assumem-se como um corpo terico que possui conscincia de que as razes reais da violncia se encontram na pobreza, na desigualdade scio-econmica e na cultura dos povos. Por isso, pode-se afirmar que essa escola possui quatro caractersticas bsicas: 1) a superao do paradigma estatocntrico e a sua substituio por uma viso antropocntrica, no qual a pessoa e a humanidade passam a ser as referncias bsicas; 2) a orientao normativa, isto , a recusa do positivismo e da pretensa neutralidade das cincias sociais em favor de uma ambio transformadora, guiada pela paz como um valor a atingir; 3) a transdisciplinaridade, como mtodo de tratamento das mltiplas dimenses da questo da paz; e 4) a orientao para a ao: do estudo prxis da paz (PUREZA, 1998).

    Segundo Gzman, os Estudos de paz abordam temas como a agresso e a violncia direta, ou seja, estuda-se desde os conflitos humanos interpessoais at os blicos. E como parte dos estudos da guerra se relaciona com os estudos humanitrios, que atende s pessoas e s coletividades humanas em situao de catstrofes, este tambm um dos temas dos estudos de paz. Alm disso, trata-se tambm da violncia estrutural com reflexos sobre as necessidades bsicas, o desenvolvimento, a pobreza e a justia social; e da violncia cultural que inclui as legitimaes discursivas e em geral, simblicas das violncia estrutural e direta (GZMAN, 2001, p.61).

    Pode-se situar o incio dessa escola em 1959, com a fundao do International Peace Research Institute de Oslo, pr Johan Galtung, socilogo noruegus. Galtung uma das figuras lderes e pioneira nos estudos de paz, inspirou-se na tica pacifista de Gandhi e ficou mundialmente conhecido pela anlise do que chama de violncia estrutural na poltica global, alm de ter criado uns dos conceitos mais famosos de paz atualmente, o qual dividido em duas categorias: a paz negativa e paz positiva. De forma resumida, pode-se dizer que paz negativa a ausncia de guerra e a paz positiva a ausncia de violncia. Para o autor:

    (...) Existe a violncia que fere e agride, e mesmo mata, o corpo humano [1]; a violncia que tira vagarosamente a vida atravs da m-nutrio e da doena [2]; a violncia que fere e agride, e mata, o esprito humano atravs da represso [3]; e a violncia que tira o significado da vida do ser humano atravs de sua alienao [4]. A estas, pode ser acrescentado uma quinta: a violncia contra a natureza, destruindo a capacidade da natureza de se reproduzir, ofendendo as necessidades da natureza [5] (apud SILVA, 2003, p.40).

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    De acordo com a citao acima de Galtung, percebe-se que para o autor existem cinco grandes manifestaes da violncia: (1) a violncia direta; (2) a privao de necessidades bsicas; (3) a privao de liberdade; (4) a alienao - sendo as manifestaes (2), (3) e (4), aquilo que Galtung chama de violncia estrutural (5) violncia contra o meio ambiente. Em virtude destas cinco manifestaes de violncias, para Galtung, existem cinco especializaes correspondentes nos estudos de paz: 1) paz com a sobrevivncia/segurana; 2) paz com o bem-estar e a justia econmica; 3) paz com a liberdade e a justia poltica; 4) paz com a cultura/significado; 5) paz com a natureza/balano ecolgico. Galtung afirma:

    todas [especializaes] so partes dos estudos da paz, que enfatizam diferentes caminhos nos quais seres humanos e natureza podem ser agredidos e como este sofrimento pode ser aliviado. A meta dos estudos de paz desenvolver interesses e competncias em todas as direes independentemente de tendncias ideolgicas (ibidem).

    Para Galtung, a guerra um tipo de violncia, mas no o nico. Para ele, ocorre violncia quando uma pessoa no realiza tudo aquilo que potencialmente poderia realizar. Nas suas palavras: a violncia est presente quando os seres humanos so persuadidos de tal modo que suas realizaes efetivas, somticas e mentais, ficam abaixo de suas realizaes potencias (apud CIIIP/UPAZ, 2002, p. 24).

    Segundo Pureza, essa amplitude do conceito de paz tem relao direta com a amplitude conferida pelos estudiosos de paz violncia, pois alm da violncia pessoal ou direta, existe a violncia estrutural, resultante da desigualdade de poder e da injustia social. Galtung afirma que a violncia estrutural

    est edificada dentro da estrutura e se manifesta como um poder desigual e, conseqentemente, como oportunidades de vida distintas. Os recursos so distribudos de forma desigual, como ocorre quando a distribuio de renda muito distorcida, ou quando a alfabetizao/educao distribuda de forma desigual, ou quando os servios mdicos existentes em determinadas zonas so apenas para certos grupos, etc. Acima de tudo, quando o poder de deciso acerca da distribuio dos recursos est distribudo de forma desigual (apud JARES, 2002, p.124).

    Galtung ressalta que a violncia no uma caracterstica biolgica humana. O autor explica que os seres humanos possuem um potencial para a violncia,

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    assim como possuem um potencial para a amizade, por exemplo, contudo so as circunstncias que condicionam a realizao desse potencial. Ele afirma que a violncia no como a alimentao ou o sexo, comuns em todo o planeta, j as grandes variaes da violncia, podem ser explicadas, segundo o autor, em funo da cultura e da estrutura:

    violncia cultural e estrutural causam violncia direta, e comeam como instrumentos de atores violentos que se rebelam contra as estruturas e esgrimem a cultura para legitimar o seu uso da violncia. Obviamente, a paz tambm deve ser construda a partir da cultura e da estrutura, e no s na mente humana7 (cf. GALTUNG, 2004).

    Segundo Griffiths, o enfoque de Galtung alm de ser mais amplo, tambm se preocupa com os efeitos da violncia estrutural sobre as vtimas. Por isso, Galtung diferencia em quatro tipos de violncia que ocorrem na poltica global. O primeiro tipo a violncia direta, que se refere imposio deliberada de dor, como na guerra, na tortura ou na agresso fsica. O segundo tipo est relacionada misria ou privao de nossas necessidades materiais bsicas, como alimentao e moradia. O terceiro se refere represso, isto , a perda da liberdade humana de escolher suas crenas e express-las. E por fim, o quarto tipo que est associado alienao, pois atenta contra a identidade e s necessidades no-materiais de ter uma comunidade e relaes com os outros indivduos. Dessa forma, o segundo, o terceiro e o quarto tipo est associado violncia estrutural. Para Galtung, a violncia estrutural no somente observada quando h um agressor e uma vtima, ela pode estar integrada numa ordem social ou numa estrutura poltica e econmica (2004, p.193).

    E alm da violncia direta e da violncia estrutural, tambm existe, segundo Galtung, a violncia cultural que se traduz no sistema de normas e comportamentos que legitimam socialmente as duas violncias anteriores. Para Galtung, a violncia cultural formada por todos os discursos, smbolos, metforas, representaes, hinos patriticos ou religiosos, que legitimam tanto a violncia

    estrutural, como a violncia direta. Pureza afirma: A primeira um facto, a segunda um processo e a ltima uma invarincia, uma permanncia.

    7 Traduo livre

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    De forma didtica, pode-se representar a anlise de Galtung sobre a violncia, por meio do tringulo abaixo:

    Fonte: GALTUNG, 2004.

    Galtung explica que a violncia direta, fsica e/ou verbal visvel porque ela se manifesta atravs do comportamento humano. Porm, a ao humana possui as suas bases, que para o autor so duas: a cultura de violncia (patriarcado, racismo, xenofobia, etc.) e a estrutura violenta, que permite a represso, a explorao e a alienao dos povos (cf. GALTUNG, 2004).

    De acordo com Guzmn, um dos aspectos mais relevantes para a Filosofia, quando se trata da violncia cultural a questo da responsabilidade moral, pois quando em smbolos ou em hinos se demoniza ou exalta a maldade do outro, do inimigo, parece que as pessoas tm menos responsabilidade moral, caso cometam atrocidades com eles, adverte o autor (GUZMN, 2001, p.101).

    No seu livro Peace by peaceful means, de 1996, Galtung sintetiza de forma quase matemtica essa amplitude do seu conceito de paz: Paz= paz direta + paz estrutural + paz cultural. E afirma:

    A paz positiva direta consistiria na bondade fsica e verbal, boa para o corpo, a mente e o esprito do prprio e do outro; seria orientada para todas as necessidades bsicas, a sobrevivncia, o bem-estar, a liberdade e a identidade (...) A paz positiva estrutural substituiria a represso pela liberdade, e a explorao pela equidade, reforando-as com dilogo em vez de imposio, integrao em vez de segmentao, solidariedade em vez de fragmentao e participao em vez de marginalizao (...) A paz positiva cultural substituiria a legitimao da violncia pela legitimao da paz na religio, no direito e na ideologia; na linguagem; na arte e na cincia; nas escolas, universidades e media; construindo uma cultura de paz positiva (apud PUREZA, 2001, p.13).

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    Logo, a paz positiva seria a ausncia de violncia estrutural. E esta s poderia ser instaurada por meio de uma mudana social que, por sua vez, implica em ajuda mtua, educao e interdependncia dos povos. Alm disso, a paz positiva deve avanar lado a lado com a promoo da justia social e com o desenvolvimento poltico e econmico dos pases subdesenvolvidos. Izzo afirma que

    Segundo Vicen Fisas, a paz positiva no constitui somente uma forma de preveno contra a guerra, mas a construo de uma sociedade melhor, condizente com a [...] satisfao das necessidades bsicas humanas sobrevivncia, bem-estar, identidade e liberdade, autonomia, dilogo, solidariedade, integrao e eqidade [...], que fazem da paz um construto humano (IZZO, 2007, p. 09).

    E o que Galtung chama de paz cultural tm tambm um sinnimo que ficou mundialmente famoso, a cultura de paz. Ela seria a alternativa para violncia cultural, pois tentaria legitimar a paz direta e a paz estrutural.

    Para Galtung, a paz negativa simplesmente a inexistncia da guerra e da violncia fsica, o que no necessariamente se traduz em cooperao entre povos e naes. Alis, a predisposio para a guerra, a rivalidade entre as naes e a falta de cooperao podem continuar a existir na paz negativa. Conseqentemente, a paz negativa omissa em relao aos problemas mundiais. Pois visa, quase exclusivamente, soluo dos problemas locais. Por outro lado, a paz positiva pressupe, alm do abandono definitivo da idia de guerras e de rivalidade, a idia de cooperao entre povos e naes com vistas integrao da sociedade humana. Portanto, a paz positiva conseqncia de aes contra a violncia e a guerra, por meio da proteo dos direitos humanos, do combate s injustias socioeconmicas, do desarmamento e da desmilitarizao. A violncia estrutural, segundo Galtung, deriva dos conflitos resultantes das disparidades e tenses socioeconmicas.

    Por esse motivo, a violncia estrutural implica em oportunidades de vida distintas que supem um acesso diferenciado aos benefcios do desenvolvimento, uma distribuio desigual de recursos e um poder varivel de influncia nas instncias que decidem a distribuio dos recursos. Desta maneira, a no realizao dessas dimenses supe que os indivduos se encontram impossibilitados de obter nveis

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    minimamente satisfatrios de qualidade de vida e, por este motivo, essa problemtica faz parte da discusso que envolve paz e violncia.

    Muito j se discutiu para saber se convinha ou no utilizar o mesmo conceito de violncia para designar simultaneamente aes violentas e situaes de injustia. A inteno de destruir da ao violenta altamente perceptvel, mas mais difcil de detectar nas situaes de injustia. Todavia, no h dvida de que as vtimas dessas situaes sofrem uma violncia que atenta contra a sua dignidade e liberdade, e que pode fazer cair sobre elas uma real ameaa de morte. Pois parte-se do pressuposto de que a violncia tudo aquilo que impede a auto-realizao humana (satisfao das necessidades bsicas, materiais e no-materiais). Dessa maneira, a opresso, a explorao e a alienao passam a ser aes violentas. Assim,

    alm da violncia clssica da guerra e do homicdio, faz-se necessrio acrescentar a pobreza e as privaes no campo das necessidades materiais, a represso e a privao dos direitos humanos, a alienao e a negao das necessidades superiores; estabelecendo uma correspondncia entre violncia estrutural e injustia social e ampliando o conceito de violncia para algo evitvel que obstaculiza a relao humana (GUIMARES, 2002, p.80-81).

    Contudo, apesar da identificao dos diferentes tipos de violncia feita por Galtung, ter representado um avano significativo nos estudos de paz, uma das crticas feitas ao autor afirmam que os seus conceitos de paz encontram-se muito ligados a uma viso negativa de paz, a sua definio de paz sempre parte do que a violncia. De fato, definir a paz positiva como a ausncia de tipos de violncia que no sejam a guerra, ou outros tipos de violncia direta, implica a possibilidade de confundir o que necessariamente deve ser diferenciado (CIIIP/UPAZ, 2002, p.25).

    At mesmo o prprio Galtung afirmou anos mais tarde que:

    evidente que tenho plena conscincia das mudanas ocorridas nestes conceitos desde a sua elaborao e acredito no surgimento de novas formulaes com base nas aqui apresentadas. (...) Neste momento, identifico a paz positiva principalmente com a justia social, (...) mas penso que deveramos estar abertos incluso de outras propostas, uma vez que a definio de violncia ampla o bastante para apontar em outras direes (apud CIIP/UPAZ, 2002, p.26).

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    3 O FINAL DA GUERRA FRIA E A CULTURA DE PAZ

    A discusso sobre as causas da guerra ganhou fora aps a Segunda Guerra Mundial, em virtude do grande nmero de mortos, das sociedades inteiras que ficaram em runas, do holocausto e dos efeitos de uma bomba nuclear. A fora militar e econmica de certos Estados, foi identificada como uma das causas da guerra e os pases vitoriosos uniram-se para estabelecer um sistema que pudesse controlar novas manifestaes de agresso, assim, formou-se a Organizao das Naes Unidas (ONU), como uma organizao multilateral que tem por objetivo prevenir novas guerras e conflitos violentos. A Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (UNESCO), fundada no mesmo perodo, nasce com a responsabilidade de promover uma educao que crie um ambiente propcio paz e este compromisso est na sua Constituio de 1945, j que as guerras nascem na mente dos homens, na mente dos homens que devem ser erguidas as bases da paz. Esta afirmao destaca que a guerra uma construo humana e este ser o eixo central para o desenvolvimento de uma cultura de paz nas dcadas seguintes.

    Segundo Herz e Hoffman, o fim do conflito entre os dois blocos polticos-ideolgicos, os Estados Unidos e a Unio Sovitica, representou um maior desenvolvimento do processo de globalizao, o que significou, uma maior ligao e interdependncia entre as sociedades. De acordo com as autoras, isto permitiu que o modelo ocidental de organizao e governana das sociedades ocidentais baseados na economia de mercado, na democracia e nos direitos humanos, de certa forma, se universalizassem (HERZ; HOFFMANN, 2004, p.112).

    Com o fim da Guerra Fria, direitos humanos, desenvolvimento e democracia constituram-se como idias polticas hegemnicas na esfera das relaes internacionais (DONNELY, 1998, p.167). Nesse contexto, o discurso internacional sobre a cultura da paz torna-se mais intenso e para os analistas internacionais, a dcada de 90 considerada como um perodo promissor para os debates dos grandes temas sociais.

    Segundo Alves, a Carta das Naes Unidas no desvincula a paz do contexto socioeconmico e as grandes conferncias da dcada de 1990 abordaram os

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    mltiplos fatores dos respectivos temas em suas interconexes, inserindo o local no nacional e este no internacional, com ateno para as condies fsicas e humanas do espao em que se concretizam (ALVES, 2001, p. 34).

    Para a UNESCO, a simples assinatura de acordos e tratados insuficiente para estabelecer a paz, pois os fatores que permitem e favorecem a ecloso das guerras tm permanecido inalterados. Ou seja, para esta organizao quando a cultura, em seus diversos aspectos econmicos, polticos, sociais, emocionais, morais, etc., mantm seus valores de violncia e dominao, a paz se torna apenas o intervalo entre guerras.

    Diz a Constituio da UNESCO (1945):

    (...) uma paz fundada exclusivamente sobre acordos polticos e econmicos, celebrados entre governos, no conseguir assegurar a adeso unnime, duradoura e sincera de todos os povos e, por conseguinte, para que a paz subsista dever assentar na solidariedade intelectual e moral da humanidade. (...) a paz no somente a ausncia de conflitos, ela requer tambm um processo positivo, dinmico e participativo em que se promova o dilogo e se solucionem os conflitos num esprito de entendimento e cooperao mtuos.

    O programa da UNESCO parte da premissa de que a maior garantia de uma paz firme e duradoura que esta se converta em cultura dos povos. Isto , que a cultura de paz substitua nas mentes, nos comportamentos e nas instituies a hegemonia da cultura de guerra. Segundo Francisco Lacayo Parajn8 (1999, p.23), a cultura a personalidade histrica de um povo ou de uma sociedade. Assim, a cultura no expressa somente nas belas artes, no artesanato, na linguagem e nos campos do patrimnio cultural, mas tambm inclui os valores, os modelos de comportamento, as instituies, as normas, as formas de convivncia social, poltica e econmica, etc. Dessa maneira, a cultura compreendida, nos documentos oficiais da UNESCO, de forma viva, dinmica e aberta.

    A partir dessa definio de cultura, pode-se compreender melhor o que cultura de violncia e cultura de paz. Uma cultura de violncia constituda por valores que permeiam as relaes sociais e impelem os indivduos a (re)agirem por meio da fora, da imposio, da opresso e da desigualdade. O Estado, nesta

    8 Ex-diretor do escritrio regional da UNESCO em cincia e tecnologia para a Amrica Latina e o Caribe

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    perspectiva, tambm contribuiu para a consolidao da cultura de guerra, ao adot-la como forma primordial de resoluo de conflitos. O Estado mantm uma relao intrnseca com a violncia e esta, em suas mltiplas formas de manifestao, permaneceu arraigada como maneira habitual, institucionalizada e moralmente valorizada de solues de conflitos tanto internos quela sociedade quanto externos a ela (cf. PINHEIRO, p.106).

    Por sua vez, a cultura de paz uma proposta para que as relaes humanas sejam permeadas pelo dilogo, pela tolerncia, pela conscincia da diversidade dos seres humanos e de suas culturas. Segundo Federico Mayor, ex-diretor geral da UNESCO,

    A cultura de paz a paz em ao; o respeito aos direitos humanos no dia-a-dia; um poder gerado por um tringulo interativo de paz, desenvolvimento e democracia. Enquanto cultura de vida, trata-se de tornar diferentes indivduos capazes de viverem juntos, de criarem um novo sentido de compartilhar, ouvir e zelar uns pelos outros, e de assumir responsabilidade por sua participao numa sociedade democrtica que luta contra a pobreza e a excluso; ao mesmo tempo em que garante igualdade poltica, eqidade social e diversidade cultural.

    Com base na definio acima, observa-se que o conceito de cultura de paz reconhece que a paz possui, alm de razes sociais, econmicas e polticas, uma base cultural. A cultura, tal como a UNESCO compreende, diz respeito s expresses produzidas e criadas pela humanidade e, portanto, como uma realidade ligada ao ato de aprender, transmitir, educar.

    Segundo David Adams9, para a UNESCO, a cultura de paz est intrinsecamente relacionada preveno e resoluo no-violenta dos conflitos, pois uma cultura baseada na tolerncia e na solidariedade. Alm do mais, uma cultura que respeita os direitos individuais e se empenha em prevenir os conflitos resolvendo-os em suas fontes, j que estas tambm englobam as novas ameaas no-militares para a paz e para a segurana, tais como a excluso, a pobreza extrema e a degradao ambiental. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do dilogo, da negociao e da mediao, de forma a tornar a guerra e a violncia inviveis.

    9 Consultor responsvel pelo desenho do Programa de Cultura de Paz da UNESCO em 1992, membro

    snior da equipe gestora do programa de 1993 a 1997 e Diretor do Ano Internacional pela Cultura de Paz de 1998 at 2001.

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    De acordo com Izzo, no Programa de Cultura de Paz da UNESCO,

    a noo de conflito no negligenciada, mas abordada como uma possibilidade de amadurecimento, desde que solucionado de forma pacfica, criativa. Do mesmo modo, em Kant, os artigos que contm as condies para a paz perptua incentivam o respeito aos direitos dos Estados, a diminuio das predisposies guerra (supresso gradual dos exrcitos permanentes), a hospitalidade universal, condizem com os pressupostos da UNESCO, indicando a influncia kantiana na conformao da mesma (IZZO, 2007, p.09).

    Em reunies preparatrias para uma conferncia da UNESCO, que a frase e definio de cultura de paz foi trazida por um acadmico jesuta peruano, Padre Felipe MacGregor. Ele chefiara a equipe que em 1986 publicara no Peru um livro sobre os conceitos de paz, guerra e de conflitos.

    O termo Cultura de Paz foi mundialmente apresentado em julho de 1989, alguns meses antes da queda do muro de Berlim, durante o Congresso Internacional para a Paz na Mente dos Homens, em Yamassoukro (Costa do Marfim). Segundo Rayo, na declarao desse Congresso tenta-se superar as diferentes concepes de paz (paz como ausncia de guerra, paz como equilbrio de poder, paz negativa e paz positiva, etc.) ao considerar que a paz :

    a) essencialmente o respeito vida;

    b) o bem mais precioso da humanidade;

    c) mais do que o fim dos conflitos armados;

    d) um comportamento;

    e) uma adeso profunda do ser humano aos princpios de liberdade, justia, igualdade e solidariedade entre todos os seres;

    f) tambm uma associao harmoniosa entre a humanidade e a natureza (RAYO, 2004, p.32).

    Alm disso, nesse mesmo congresso foi apresentada a Declarao de Sevilha sobre a Violncia, de 1986, que afirmava que a violncia no tem nenhum fundamento biolgico, sendo portanto, um produto da cultura. A UNESCO adotou essa declarao como o fundamento para a cultura de paz.

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    A Declarao de Sevilha demonstrava cientificamente que a guerra se funda em fatores culturais ao invs de biolgicos. No foi por acaso que esse tema foi colocado pela antroploga Margaret Mead, que afirmava que o individuo fundamental na aplicao da violncia, contudo, ela acreditava que as tendncias negativas e agressivas dos seres humanos podem mudar ou se transformar atravs da educao, pois o ser humano cresce e se expressa dentro de um contexto cultural dado. Assim, dentro dessa perspectiva, a guerra seria uma possvel conseqncia da conduta humana, mas no inevitvel. Esse encontro de especialistas em Sevilha foi composto tanto, por cientistas sociais, quanto por cientistas da rea de biolgicas, tais como, a etologia, neurofisiologia, comportamento animal e gentica. Todos concordaram que dentro da biologia no se conhece qualquer fato que impea a abolio da guerra.

    Afirma a Declarao de Sevilha10:

    (...) a) cientificamente incorreto dizer que herdamos de nossos ancestrais

    animais uma de fazer guerra (...) ; b) cientificamente incorreto dizer que a guerra ou o comportamento

    violento est programado nos genes humanos (...); c) cientificamente incorreto dizer que a seleo natural da evoluo,

    selecionou a agresso e o comportamento violento (...); d) cientificamente incorreto dizer que temos um crebro violento (...); e) cientificamente incorreto dizer que a guerra se faz por instinto ou

    qualquer outro fator singular (...)

    Como concluso, proclamamos que a biologia no condena a humanidade guerra, ao contrrio, que a humanidade pode liberar-se de uma viso pessimista herdada da biologia, e uma vez recuperada sua confiana, empreender neste Ano Internacional da Paz e nos anos que viro, as transformaes necessrias de nossas sociedades. Embora esta aplicao dependa, principalmente, da responsabilidade coletiva, deve basear-se tambm na conscincia de indivduos, cujo otimismo ou pessimismo so fatores essenciais. Assim como as guerras comeam na mente dos homens, a paz tambm encontra sua origem em nossa mente. A mesma espcie que inventou a guerra, tambm, capaz de inventar a paz. responsabilidade de cada um de ns.

    Ao analisar a Declarao de Sevilha, tem-se o suporte cientfico para refutar o determinismo biolgico e compreender a violncia como um exerccio de poder. Consequentemente, a violncia pode ser prevenida combatendo-se as suas causas econmicas, sociais e culturais.

    10 ntegra da Declarao Anexo 1.

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    Em fevereiro de 1994, durante o primeiro Frum Internacional sobre a Cultura de Paz, realizado em San Salvador (El Salvador), Federico Mayor lanou o debate internacional sobre o estabelecimento de um direito paz, esboado na Declarao de Viena (1993), declarao na qual se passou a afirmar que os direitos humanos, a democracia e o desenvolvimento so interdependentes e reforam-se mutuamente. Em 1995, os Estados-Membros da UNESCO decidiram que a Organizao deveria dedicar-se integralmente na promoo da cultura de paz. Alm disso, em 20 de novembro de 1997 a Assemblia Geral das Naes Unidas proclamou o ano 2000 o Ano Internacional da Cultura de Paz, sob a coordenao geral da UNESCO. A Organizao das Naes Unidas definiu cultura de paz na Declarao e Programa de Ao sobre uma Cultura de Paz11, em 13 de setembro de 1999, da seguinte maneira:

    Uma Cultura de Paz um conjunto de valores, atitudes, tradies, comportamentos e estilos de vida baseados: No respeito vida, no fim da violncia e na promoo e prtica da no-violncia por meio da educao, do dilogo e da cooperao; No pleno respeito aos princpios de soberania, integridade territorial e independncia poltica dos Estados e de no ingerncia nos assuntos que so, essencialmente, de jurisdio interna dos Estados, em conformidade com a Carta das Naes Unidas e o direito internacional; No pleno respeito e na promoo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; No compromisso com a soluo pacfica dos conflitos; Nos esforos para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e proteo do meio-ambiente para as geraes presente e futuras; No respeito e promoo do direito ao desenvolvimento; No respeito e fomento igualdade de direitos e oportunidades de mulheres e homens; No respeito e fomento ao direito de todas as pessoas liberdade de expresso, opinio e informao; Na adeso aos princpios de liberdade, justia, democracia, tolerncia, solidariedade, cooperao, pluralismo, diversidade cultural, dilogo e entendimento em todos os nveis da sociedade e entre as naes; e animados por uma atmosfera nacional e internacional que favorea a paz.

    Nesta mesma Declarao tambm foram definidos os oito campos de ao em que o Estado e a sociedade civil devem atuar para garantir a promoo da cultura de paz. So eles: a educao para a paz; o desenvolvimento econmico e social sustentvel; os direitos humanos; a igualdade entre os gneros; a participao democrtica; a compreenso, a tolerncia e a solidariedade; a comunicao participativa e a livre circulao de informao e conhecimento; a paz e a segurana internacional.

    11 ntegra da Declarao Anexo 2.

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    O ano 2000 foi proclamado pela ONU o Ano Internacional da Cultura de Paz e a primeira dcada do sculo XXI, a dcada internacional para uma Cultura de paz e da No-Violncia para as crianas do mundo. Essa proclamao, segundo a UNESCO, foi uma forma de marcar a transio do milnio tentando evidenciar que a inteno dos homens, neste novo tempo, seja a busca de uma convivncia pacfica. Na esfera das relaes internacionais, foi a primeira vez que os Estados nacionais, de diferentes regies do mundo, se reuniram para discutir conjuntamente a questo da formulao de uma cultura de paz. Tambm se destaca a atuao de movimentos sociais mundiais e ONGs de mbito internacional que passaram a ocupar um lugar de destaque, na dcada de 90, junto aos espaos de dilogo internacional. Em 1992, o Secretrio Geral da ONU, na sua Agenda para a paz, afirmou: A paz, no sentido mais amplo, no pode ser assegurada pelo sistema das Naes Unidas ou s pelos prprios governos, (...) as organizaes no-governamentais devem estar prontas para contribuir (apud PTRIS, 1999, p.300). Alm disso, o papel dos meios de comunicao, da famlia, da escola, enfim, de todos os indivduos e instituies se comprometerem com a promoo da cultura de paz.

    Segundo Federico Mayor

    A paz, o desenvolvimento e a democracia formam um tringulo interativo, cujos vrtices se reforam mutuamente. Sem democracia, no h desenvolvimento duradouro. A pobreza e a monopolizao econmica enfraquecem a legitimidade democrtica e dificultam a soluo pacfica dos problemas. A guerra a via mais efetiva para empobrecer a qualquer sociedade e deix-la indefesa diante das ambies ditatoriais. E a educao o eixo dinmico deste tringulo (apud CANDINA, 2000, p. 22-23).

    A UNESCO ressalta que o fato de existir um projeto de cultura de paz no significa que se deva homogeneizar a sociedade. Uma cultura de paz no far desaparecer os conflitos e as diferenas naturais que existem em todas as sociedades, porm, a cultura de paz poder ajudar a identificar os interesses comuns fundamentais, isto , criar um consenso que pode impedir a desintegrao da sociedade e permitir que se construa um futuro justo e eqitativo para todos, alm de contribuir para que os conflitos sejam solucionados de forma no-violenta.

    Este consenso pressupe que as diferentes partes em conflito, cada um a partir de seus princpios e em coerncia com eles, reconheam a necessidade de um

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    projeto nacional acordado, em alguns temas econmicos, sociais e polticos fundamentais. A cultura de paz no nega as diferenas, mas as considera enriquecedoras.

    A cultura de paz tambm, a promoo de certos valores que se consideram fundamentais para uma convivncia pacfica entre os seres humanos. Sabe-se que a promoo de certos valores num nvel macro ou internacional um tema polmico, como por exemplo, o debate sobre os direitos humanos como um conceito imposto pelo Ocidente. A promoo da cultura de paz corre o mesmo risco de ser uma imposio de valores que possivelmente no representem ou no existam em todas as culturas ou em todas as sociedades. Na discusso sobre os direitos humanos, as maiores partes das crticas vem de pases menos industrializados, principalmente dos pases muulmanos, que assinalam a falta de respeito s prticas culturais e tradicionais em sociedades no-ocidentais (DANIELSEN, 2005, p.20).

    Contudo, interessante notar que a resistncia promoo da cultura de paz, tanto a nvel institucional da ONU, como na implementao das recomendaes feitas aos Estados-membros, partem dos pases mais industrializados, como os Estados Unidos e a Unio Europia. Nos debates informais sobre a resoluo da cultura de paz na Assemblia Geral da ONU, de 1999, a Unio Europia insistiu que se removesse da resoluo a referncia a uma cultura de guerra, pois segundo eles, isto no existia. Alm disso, o embaixador dos Estados Unidos na ONU afirmou durante os mesmos debates que o seu pas era contra a resoluo, porque se fosse adotada, seria mais difcil de fazer a guerra. No entanto, com a presso de vrios lderes de pases menos industrializados, a resoluo foi adotada com consenso no ltimo dia pela Assemblia Geral naquele ano (idem, p.21).

    compreensvel a resistncia dos pases desenvolvidos em se promover a cultura de paz, pois ela implica em se mudar de maneira contundente as estruturas, os sistemas e as culturas deles. Muitas sociedades no-ocidentais vm-se como vtimas da cultura violenta existente no Ocidente, alm disso, muitos argumentam em favor da cultura de paz, j que os valores principais que sustentam a cultura de paz vo ao encontro com seus prprios valores de coletividade e solidariedade. Alm disso, as divises na discusso no ocorrem somente entre pases e nacionalidades, vrias divises se definem por classes scio-econmicas, religies, gnero, comportamento

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    sexual, entre outros. Contudo, apesar do apoio dos pases em desenvolvimento promoo de uma cultura de paz, esses Estados tambm no tm dado contribuies significativas de forma a garantir e a colocar em prticas as recomendaes feitas pela ONU.

    No entanto, como os atores dominantes no sistema internacional so os Estados mais poderosos, mais armados e mais ricos, no surpreendente que estes pases no priorizem em suas relaes internacionais uma cultura de paz que tenha como objetivo reduzir e delegar seus poderes, diminuir o seu armamento e distribuir as suas riquezas.

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    CONSIDERAES FINAIS

    Neste novo milnio, os desafios a se enfrentar so muitos. Porm, depois de todos os conflitos vividos no sculo XX e da real possibilidade de extino da vida no planeta Terra, a humanidade se fez uma pergunta: O que Paz?

    A histria j comprovou como, por exemplo, na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais - que a simples assinatura de acordos e tratados insuficiente para estabelecer a paz, pois os fatores que permitem e favorecem a ecloso das guerras tm permanecido inalterados. Ou seja, quando a cultura, em seus diversos aspectos econmicos, polticos, sociais, emocionais, morais, etc. mantm seus

    valores de violncia, dominao e conflito, a paz se torna apenas o intervalo entre guerras.

    No final deste milnio, a humanidade passou a discutir e a perceber que a paz no est ligada ausncia de conflitos: eles so fatores constitutivos da vida social. Nenhuma relao, seja entre os indivduos, comunidades, partidos polticos ou naes, permanece a mesma, dia aps dia. Novas situaes esto sempre surgindo e destas, tenses e problemas que necessitam de uma resoluo. E justamente nas resolues destas situaes que se demonstra em que paradigma se vive: se no paradigma da fora e da intolerncia, na cultura de violncia; ou se no paradigma do dilogo e da compreenso, a cultura de paz.

    Com base nisto, um nmero cada vez maior de pessoas passam a entender que paz no ausncia de conflito ou uma condio de passividade. A paz um tipo de mentalidade, uma forma de agir cotidianamente. Assim, a paz um tipo de mentalidade pelo qual, os pases, as comunidades, os partidos e os indivduos buscam resolver suas diferenas por meio de acordos, negociaes e concesses, e no com ameaas, imposies e violncia.

    De acordo com Gert Danielsen, coordenador no Brasil do Relatrio Mundial sobre a Cultura de Paz de 2005, muitos governos no tm feito o suficiente para promover a cultura de paz, como se comprometeram no ano de 1999. Contudo, a sociedade civil que tem contribudo de maneira extensa ao Relatrio. Para ele,

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    importante mostrar que a sociedade civil segue sendo um fator chave na promoo da cultura de paz, tanto no Brasil quanto em outros pases do mundo.

    Segundo o Relatrio Mundial da Cultura de Paz12, de 2005, o movimento mundial por uma cultura de paz est em constante avano. Esta a concluso da maioria de organizaes de todo o mundo que avaliaram os avanos e os obstculos para uma promoo da cultura de paz durante os primeiros cinco anos da Dcada Internacional de uma Cultura de Paz e No Violncia para as Crianas do Mundo. Este relatrio consta de mais de 3.000 pginas de informao, entregue por 700 organizaes de mais de 100 pases, inclui as informaes recolhidas e apresentadas pelas organizaes, que analisaram as atividades realizadas para promover uma cultura de paz e no violncia, bem como o progresso feito durante a primeira metade da Dcada Internacional.

    O progresso especialmente notvel se tivermos em conta que s decorreram cinco anos desde que a resoluo A/53/243 da Assemblia Geral da ONU fez um primeiro apelo constituio de um movimento mundial por uma cultura de paz. E tanto mais surpreendente quanto, tal como feito saber de todo o mundo, os meios de comunicao no difundiram informao acerca da cultura de paz atravs dos noticirios e as Naes Unidas e a agncia que lidera a Dcada, a UNESCO, lhe prestaram muito pouca ateno. No Brasil, onde quinze milhes de pessoas assinaram o Manifesto 2000, reconhecido o mrito do Ano Internacional da Cultura de Paz por ter lanado o movimento no ano 200013.

    A importncia do Estado se comprometer com a promoo da cultura de paz repousa no fato de que sem essa institucionalizao as aes que visam a essa promoo podem correr o risco de permanecer no voluntarismo. Como escreve Habermas:

    O que ns necessitamos de um pouco mais de prticas solidrias; sem isso, o prprio agir inteligente permanece sem consistncia e sem conseqncias. No entanto, tais prticas necessitam de instituies racionais, de regras e formas de comunicao, que no sobrecarreguem moralmente os cidados e sim elevem em pequenas doses a virtude de se orientar pelo bem comum (apud GUIMARES, 2004, p.118).

    12 RELATRIO MUNDIAL DE CULTURA DE PAZ - Relatrio da sociedade civil a meio da Dcada de

    Cultura de Paz - de acordo com o convite do pargrafo operativo 10 da Resoluo da Assemblia Geral A/59/143. ntegra do Relatrio em 13

    Idem, p.09.

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    Um ponto interessante dessa pesquisa observar que mesmo o conceito de paz passando por vrias acepes durante a histria, as trs referncias tericas deste trabalho Immanuel Kant, Johan Galtung e a UNESCO possuem um ponto em comum: a instituio da paz um processo contnuo da humanidade e justamente por ser um processo, a paz permanecer sempre um projeto inacabado de uma humanidade civilizada, cuja segurana depender da institucionalizao do direito mediante o engajamento de todos os homens (ROHDEN, 1997, p.14).

    Outro fato que chama a ateno nessa pesquisa o fato das convenes internacionais elaboradas pela ONU ainda no reconhecerem a paz como um dos direitos humanos. Pois sendo um direito dos povos, a paz se torna uma questo de mbito interno de cada Estado, o que de certa forma, preserva o direito guerra e o interesse das indstrias blicas e de armamentos, que so uma das maiores do mundo, tanto em movimentao financeira quanto em influncia poltica.

    Contudo, apesar da paz no ser reconhecida pelas esferas internacionais como um direito humano, cada vez mais ela reconhecida como um valor universal, dessa maneira, da mesma forma como a liberdade e a igualdade foram reconhecidas como um direito humano, a paz tambm necessita dessa positivao, para se haver aes mais efetivas no mbito internacional para a garantia e a preservao da paz.

    Portanto, este trabalho entende que para construir uma cultura de paz necessrio promover as transformaes necessrias e indispensveis para que a paz seja o princpio regente das relaes humanas e sociais. E essas transformaes vo desde a dimenso dos valores, das atitudes, dos estilos de vida at as estruturas polticas, econmicas, jurdicas e as relaes polticas internacionais. Enfim, promover a cultura de paz significa e pressupe trabalhar de forma integrada a favor das grandes mudanas desejadas por uma imensa parte da humanidade: justia social, igualdade entre os sexos, eliminao do racismo, tolerncia religiosa, respeito s minorias, educao universal, equilbrio ecolgico e liberdade poltica. A cultura de paz poderia se transformar no elo que interliga e abrange todos esses ideais num nico processo de transformao, como esta pesquisa procurou demonstrar e sustentar.

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