o artigo 68 adct/cf-88: identidade e reconhecimento; ação afirmativa ou direito étnico?

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    Partindo dessa perspectiva, o termocomunidades de quilombos utilizado no art.68 do ADTC da Constituio de 1988, que a priori pode remeter aos redutos de escravos fugidos,pautado no binmio fuga-resistncia, propagado pelo prprio movimento negro com oQuilombismo, tm carter restritivo. No intuito de ampliar esse carter tem-se o

    redimencionamento do conceito de quilombo para sua efetiva aplicabilidade legal. Deu-se entoa ressemantizao do conceito de quilombo, termo este que vai ao debate das aes afirmativas edos direitos tnicos, esclarecendo pontos enquanto ainda conduzem outros tantos a equvocosno tocante prpria regulamentao do artigo em movimentos de oposio e composio dosprotagonistas da questo: grupos, lderes comunitrios, polticos, proprietrios de terra, Estado,Ministrios, e rgos fundirios.

    1. Constituio da Repblica Federativa do Brasil, 1988: Direitos Sociais. A novidade maior a introduo da noo de direitos coletivos, embora no mesmo

    captulo dos individuais. Esta diferenciao, se bem interpretada e desenvolvida, rompe umatradio de ver o direito exclusivamente atravs do indivduo e gera o das coletividades,autnomo, prprio e diferente. A compreenso desta nova categoria levar reviso de cdigos,legislaes, procedimentos jurdicos e institucionais (COELHO, 1989: 27).

    A noo de direitos coletivos, portanto, vem tona na Carta Magna promulgada em1988[1], contexto no qual se insere a questo das comunidades remanescentes de quilombos,

    discusso esta travada na Subcomisso de negros, populaes indgenas, pessoas deficientes eminorias, presidida pelo constituinte Ivo Lech, cujo relator fora Alcenir Guerra.

    Os direitos supra individuais ou sociais foram, portanto, incorporados aos tradicionaisdireitos de natureza individual, e desse modo tem-se o alargamento dos direitos de cidadania(STUCCHI, 2005). Direitos coletivos tomam o cenrio; o Artigo 68 do Ato das DisposiesConstitucionais Transitrias:Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejamocupando suas terras, reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhesttulos respectivos.

    O Movimento Negro mostrou-se atuante durante os trabalhos da Assemblia NacionalConstituinte de 1987, influenciando tanto os parlamentares quanto a opinio pblica. Assuntostomados no palco constituinte, alm do racismo e discriminao, foram o racismo disfaradonas noes de beleza sempre brancas, a esterilizao seletiva de mulheres negras, bem como a violncia policial contra afro brasileiros. A temtica da ao afirmativa floresce, tal como osistema de cotas raciais, noes de reparao histrica, melhoria no acesso educao e demaisservios pblicos, noo do multiculturalismo, e ainda a questo do reconhecimento decomunidades remanescentes de quilombos: reconhecimento cultural, tnico e fundirio (esteltimo que leva poltica). Assim, o reconhecimento de comunidades como remanescente de

    quilombo cria atores sociais, sujeitos de direitos, de direitos culturais, sociais, coletivos efundirios; categoria jurdica esta que transforma indivduos em atores polticos, possuidores de

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    uma srie de direitos que extrapolam o prprio artigo 68.

    2. Atuao do Movimento Negro

    A estratgia politizada do Movimento Negro agira no sentido de denncia discriminao racial, contando com intelectuais negros e parlamentares, que expuseram edesacreditaram a ideologia da democracia racial. Desse modo, articula-se na participao daelaborao da nova Constituio, pela importante presena durante os trabalhos da ANC,marcada pela diversidade de interesses que se fizeram presentes na arena constitucional, estaque mostrara traos da prpria democracia racial, o que impede a compreenso dasdesigualdades de origem racial. Todavia, pelo outro lado na constituinte tem-se uma segundaconcepo, que v no mito da democracia racial a causa para a persistncia do racismo no Brasil, visvel na forma subalterna como a populao negra foi integrada e nas pssimas condies de vida dessa populao. O combate ao racismo, atravs da explicitao das hierarquias raciaisembutidas nas estruturas sociais, objetivo do movimento negro.

    O Movimento Negro, j desde 1985, organizara encontros com o objetivo de refletiracerca da participao do negro no processo constituinte. Pode-se destacar o Primeiro EncontroEstadual O Negro e a Constituinte, realizado em julho de 1985 na Assemblia Legis lativa deMinas Gerais. Essas reflexes prolongaram-se por todo o ano de 1986, culminando comarealizao, em Braslia, da Conveno Nacional de mesmo nome que o Encontro, da qual seoriginou um documento sintetizando os Encontros Regionais ocorridos em vrias unidades da

    Federao, este que pautaram a importncia e reivindicao de que a Assemblia NacionalConstituinte deveria proporcionar um espao para atuao do movimento negro com objetivo deque a prxima Constituio Federal pudesse refletir as discusses at ento realizadas pelogrupo.

    3. Histrico na Assemblia Nacional Constituinte, 1987.O processo social de afirmao tnica, referido aos chamados quilombolas, no se

    desencadeia necessariamente a partir da Constituio de 1988 uma vez que ela prpria resultante de intensas mobilizaes, acirrados conflitos e lutas sociais que impuseram asdenominadas terras de preto, mocambos, lugar de preto e outras designaes que consolidaramde certo modo diferentes modalidades de territorializao das comunidades remanescentes dequilombos. Neste sentido a Constituio consiste mais no resultado de um processo de conquistasde direitos e sob este prisma que se pode assegurar que a Constituio de 1988 estabelece umaclivagem na histria dos movimentos sociais, sobretudo daqueles baseados em fatores tnicos(ALMEIDA, 2006: 33).

    A Subcomisso das Minorias fora a que mais recebera inferncias pblicas, dentre asquais relevante destacar o lobby do Movimento Negro[2] , que encaminhou uma Proposta de

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    Norma que garantisse direitos s comunidades negras rurais posteriormente consideradascomoremanescentes de quilombo ; esta que fora passada deputada Benedita da Silva, emmaio de 1987.

    Fora considerado no Substitutivo da Subcomisso em questo, ainda em maio de 1987,

    em seu Artigo 7:O Estado garantir o ttulo de propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes dos Quilombos ; tal como consta no Anexo Ata da16 Reunio da Subcomisso dos Negros, Populaes Indgenas, Pessoas Deficientes e Minorias,realizada em 25 de maio de 1987, lida pelo presidente da Subcomisso, o Constituinte Ivo Lech(Anais da Subcomisso 7C).

    Em 20 de agosto de 1987, o Deputado Carlos Alberto Ca, PDT/RJ, apresentara emendapopular para que fosse inserido no Ttulo X do ADCT o texto:Fica declarada a propriedadedefinitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes de quilombos,

    devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem comodocumentos referentes histria dos quilombos no Brasil. Vale ressaltar que o presente textotransitara pela Comisso de Sistematizao sem alteraes, o que representa uma exceoquando se compara ao trmite da maioria das propostas.

    Em 22 de junho de 1988, fora votado em primeiro turno o art. 24 do ADCT:Aosremanescentes das comunidades dos quilombos, que estejam ocupando as suas terras, reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos. Ficam tombados os stios detentores de reminiscncias histricas, bem como todos osdocumentos dos antigos quilombos . (Dirio da Assemblia Nacional Constituinte, 1988).

    Com a promulgao da Constituio em 1988, fora o art. 68 do ADCT que passara a ter aseguinte escrita:Aos remane scentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupandosuas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulosrespectivos.

    Os direitos dos remanescentes de quilombos so referentes a uma categoria peculiar:categoria jurdica criada pelo prprio artigo 68. A questo da tutela dos interesses coletivos ponto chave nas inovaes da Carta Magna[3] , assim grupos de remanescentes quilombolasemergem no contexto da redemocratizao, como fora anteriormente referido, e com a criaode novos direitos e novos sujeitos pelo Art.68 o que se v o direcionamento para reflexesacerca da configurao fundiria, critrios de acesso e legitimao da propriedade.

    Merece destaque o fato do Artigo 68 estar contido no Ato das DisposiesConstitucionais Transitrias: o Artigo 68 prescreve um direito coletivo especifico. Emborareconhecido o significante lobby dos Movimentos Negros na Subcomisso das Minorias, odireito dos quilombolas fora parar no corpo transitrio da Constituio. Os 70 artigos do ADCTso considerados por parte da literatura como o depsito de questes para as quais no haviaacordo, nem havia mais tempo ou disposio de negociar. Desse modo, essas questes

    controversas seriam deixadas no corpo transitrio da Carta Magna, a espera de novos debates,possveis modificaes e incluses no corpo permanente da CF. A noo de que formuladores da

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    lei no previam os efeitos criadores da mesma majoritria na literatura especfica ao tema, visto que no momento da discusso o pensamento se voltava ao passado, e no ao futuro; eassim o objeto da lei no antecede o seu projeto, o direito cria seu prprio sujeito, e o artigo emquesto acaba por criar, portanto, categoria poltica e sociolgica (ARRUTI, 2003). E o Artigo

    68 se tornara, aps um cochilo da elite no momento de sua elaborao, em um dos maioresinstrumentos da luta fundiria dos anos 90 (ALMEIDA, 2004).

    Vale considerar a peculiaridade que orientara os trabalhos constituintes no primeiroturno das votaes em Plenrio, onde houvera predomnio do consenso, dado o papel doslideres partidrios e aps mudanas no Regimento Interno engendradas pelo Centro estasque foram no sentido da inverso do quorum e conseqente necessidade de maioria paraaprovao, e aumentaram a possibilidade de buraco negro. Tendo em vista ainda que ostrabalhos j extrapolavam o tempo definido inicialmente e adentravam o ano de 1988, uma dasestratgias utilizadas pelos parlamentares para acelerar o andamento, evitando discussesexcessivas que atrasariam ainda mais, fora a adoo da Emenda de Fuso, estas que foramparar, principalmente, no ADCT.

    Quanto ao Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, so partes constitucionaisque tem por objetivo regulamentar o perodo de transio dos regimes jurdicos da constituioanterior nova Carta (EDITORIAL JURDICO, 2006). Ou seja, valeriam apenas no perodotransitrio entre a CF-67 e a efetivao da Carta de 1988. So, portanto, mecanismos deregulamentao, pois, salvo determinao expressa em contrrio na nova constituio, ao ela setornar eficaz, anula a eficcia da carta anterior, e, como tal ab-rogao tem por conseqncia a

    mudana brusca do regime constitucional, faz-se necessrio que a realidade daquele perodoseja regulamentada para que se adapte nova realidade constitucionalmente imposta. Tem-seainda que os ADCT so elaborados com a noo de que iro durar pouco tempo transitoriedade. Sua finalidade , portanto, a de preparar o terreno para a eficcia plena da partedogmtica da constituio:

    O alcance de normas constitucionais transitrias h de ser demarcado pela medida daestrita necessidade do perodo de transio, que visem a reger, de tal modo a que, to cedo quantopossvel, possa ter aplicao disciplina constitucional permanente da matria, ou seja, a partedogmtica da constituio (Relatrio do Ministro Seplveda Pertence, em 04 de dezembro de1991).

    A vigncia e a eficcia de uma nova Constituio implicam a supresso da existncia, aperda da validade e a cessao de eficcia da anterior Constituio por ela revogada, operando-se,em tal situao, uma hiptese de revogao global ou sistmica do ordenamento constitucionalprecedente, no cabendo, por isso mesmo, indagar-se, por imprprio, da compatibilidade ou no,para efeito de recepo, de quaisquer preceitos constantes da Carta Poltica anterior, ainda quematerialmente no-conflitantes com a ordem constitucional ordinria superveniente. (...) dada aimpossibilidade de convvio entre duas ordens constitucionais originrias cada qualrepresentando uma idia prpria de Direito e refletindo uma particular concepo poltico

    ideolgica exceto se a nova Constituio, mediante processo de recepo material conferir vigncia parcial e eficcia temporal limitada a determinados preceitos constitucionais inscritos na

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    Lei Fundamental revogada, semelhana dos artigos contidos no ADCT/88. (Relatrio doMinistro Celso de Mello, em 24 de junho de 2004).

    O Artigo 68 ADCT/CF-88 pode ainda ser tomado enquanto intrinsecamente transitriono sentido que uma vez que todas as comunidades sejam reconhecidas o artigo perderia seuobjeto. Essa noo enquadra-se no contexto da Constituinte de 1988, centenrio de Zumbi,efervescncia da nova democracia, onde quilombos surgem enquanto um patrimnio histricoque demanda o tombamento, ao contrrio do quilombo como a situao vivida por milhares de brasileiros e enquanto instrumento de luta poltica, por direitos e melhores condies de vida.

    4. Identidade e Ressemantizao do Conceito de Quilombo

    Quando se trata de grupos remanescentes de quilombos, o marcador no a cor ou araa, o que se tem toma a conotao de grupos tnicos, que so fluidos, que no se restringem, eno se limitam por um preceito constitucional genrico. E so grupos tnicos que devem, paraacionar o artigo, possuir Associao, como pessoa jurdica, para que represente uma demanda,geralmente no muito clara, e principalmente no unnime. Ou seja, os grupos, alm de tnicos,devem ser polticos, orientados e ativos essa necessidade relaciona-se com a questo fundiriaimplcita no preceito. No tocante s terras de quilombo, bem como s terras indgenas, ascategorias jurdicas interessadas podem ser facilmente definidas, todavia, sociologicamente,essas pessoas no podem ser limitadas por bases meramente geogrficas, regras de

    descendncia, cor ou traos fenotpicos e por isso o carimbo dos preceitos constitucionais,embora no sentido da incluso, acabam por gerar conflitos.

    Toma-se o conceito de grupo tnico, que se associa idia de identidade quilombola,sintetizada pela noo de auto-atribuio. Vai-se a critrios organizativos que apontam stendncias de identificao, reconhecimento e incluso, fazendo disso instrumento poltico parareivindicaes. Assume-se a teorizao de Barth (1967), enquanto foca aspectos generativos eprocessuais de grupos tnicos, passa a tom-los no mais como concretos, e sim como modos deorganizao pautados na consignao e auto-atribuio dos indivduos a determinadas

    categorias de etnicidade; esta que abrange ainda a interao com o modo de relao que o grupomantm com o meio, e a noo de territorialidade vem tona, convergindo para territriodeterminados etnicamente, contendo modo particular de uso de recursos, com a idia de usocomum.

    Seguindo esta orientao terica no sentido da substituio da concepo esttica daidentidade tnica por uma noo dinmica, pautada na interao de grupos sociais por meio deprocessos de excluso e de incluso que estabelecem limites entre os referidos grupos, se temcaracterstica de organizar a interao entre as unidades sociais (SAHLINS, 2007). Os critriosde pertena na interao social, em relao com a questo da identidade coletiva e, porconseguinte, as questes especficas da etnicidade, voltam-se problemtica da fixao desmbolos identitrios que estruturam a crena em uma origem comum (CUNHA, 1986). Nesse

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    sentido, Poutignat e Striff-Fenart (1997) argumentam que o diferencial da identidade tnicafrente s outras formas de identidade coletiva a orientao ao passado, no qual se representa amemria coletiva, uma histria mstica, com significaes que do, por sua vez, sentido organizao e interaes sociais.

    Atribuir identidade quilombola a determinado grupo e dar-lhe direitos fundirioslevanta a questo do redimensionamento do prprio conceito de quilombo. No momento emque o Estado reconhece um grupo como remanescente de quilombo fixa uma identidade no spoltica, administrativa e legal, mas tambm uma identidade social, permitindo assim direito auma identificao tnica, que veculo de obteno de direitos diferenciados. Desse modo, oartigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias da Constituio Federal de 1988instituiu um novo sujeito social, um novo sujeito poltico etnicamente diferenciado a partir dosdireitos institudos por meio do artigo citado.

    Tal disposio do Estado em institucionalizar a categoriaevidencia a tentativa dereconhecimento formal de uma transformao social considerada como incompleta. A institucionalizao incide sobre resduos e sobrevivncias, revelando as distores sociais de umprocesso de abolio da escravatura limitado, parcial (ALMEIDA, 1997: 125). Com isso,portanto, vem tona a necessidade de redimensionar o conceito de quilombo, quedeixa de serconsiderado unicamente como categoria histrica ou definio jurdica formal para setransformar, nas mos de centenas de comunidades rurais e urbanas em instrumentos de lutapelo reconhecimento dedireitos territoriais (TRECCANI, 2006: 14), de modo que possaabranger a variedade de situaes de ocupao de terras por grupos remanescentes, para alm

    da noo de fuga e de resistncia.Este novo sujeito criado no contexto de lutas sociais que fazem da lei o seu

    instrumento, tendo-se ainda uma converso simblica quanto ao conceito de quilombo, ou seja,o quilombo metamorfoseado e ganha funes polticas, como instrumento de luta pela terra.Cria-se, como o Artigo 68, a categoria remanescente de quilombo, e institui este como sujeitode direitos fundirios e direitos culturais (ARRUTI, 2003). E na medida em que a condio deremanescente de quilombo abarca elementos de identidade e sentimento de pertena a umgrupo e s terras determinadas, entram no debate sobre o conceito de quilombo consideraes

    acerca da etnicidade e da territorialidade[4] .O conceito de quilombo fora fortemente disseminado na dcada de 1970, reapropriado

    pelo Movimento Negro como smbolo da Resistncia Negra, fsica e cultural, estruturado no sna forma de grupos fugidos durante a escravido, mas tambm na forma ampla de quaisquergrupos tolerados pela ordem dominante do perodo (NASCIMENTO, 1981). O quilombismoconcretiza-se ento na dcada de 1980, e o ano do centenrio da abolio, 1988, coincide com oano da promulgao da carta constitucional. O conceito , portanto, cercado por inmerasreferncias, e a aplicao do Artigo 68 gerara demandas quanto definio do termo.

    Em 1740, o Conselho Ultramarino definiu quilombo comotoda habitao de negrosfugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que no tenham ranchos levantados e

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    nem se achem piles nele (SCHIMITT, TURATTI & CARVALHO, 2002:02). Nesse ponto, valeressaltar brevemente a crtica de Alfredo Wagner de Almeida (1999), que aponta como basesdessa definio noes de fuga, isolamento geogrfico, com moradia habitual, o rancho, e autoconsumo e reproduo, simbolizados pelo pilo, bem como uma quantidade mnima. Assim, a

    existncia do quilombo pressupe independncia, indica que a produo autnoma e livre dainfluncia do senhor da terra, engendrando ainda relaes com o comrcio local[5]. A caracterizao do Conselho Ultramarino influenciara gerao de estudiosos do assunto atmeados da dcada de 1970 (RAMOS, 1953; CARNEIRO, 1957), perodo no qual a literaturaquilombola aparece marcada com atribuies a um tempo histrico passado, cristalizado na vigncia do regime escravocrata brasileiro e caracterizado como negao deste sistema, comoresistncia e isolamento somente. So, portanto, trabalhos que no abarcam a diversidade derelaes engendradas entre escravos e sociedade livre, tampouco consideram as distintas formasde ocupao e uso da terra.

    A Fundao Cultural Palmares toma quilombos comostios historicamente ocupados por negros que tenham resduos arqueolgicos de sua presena, inclusive as reas ocupadasainda hoje por seus descendentes, com contedos etnogrficos e culturais.

    Carlos Magno Guimares (1995) constata que quilombosconfiguram (e esto no centrode) uma realidade conflituosa da qual participam diferentes seno todas categorias sociais.Para esse autor, a questo identificar o modo pelo qual se d a participao de cada categoriasocial, o posicionamento poltico, no contexto do conflito que atinge a sociedade como um todo.Toma o quilombo comomodalidade de existncia do campesinato na sociedade escravistacolonial, ressaltando a necessidade de perceber esse campesinato em sua dimenso econmicae poltica, enquantoagente coletivo no jogo das contradies que do tnica dinmica social ;quilombo tomado como expresso de luta de classes, como fenmeno, e principalmente comoprojeto poltico (GUIMARES, 1995: 75/79).

    Em suma, o conceito de quilombo fora submetido a inmeras reapropriaessimblicas, at que ganhara, com a definio da Associao Brasileira de Antropologia, em 1994,uma interpretao que se tornou dominante, voltada a ressemantizao do prprio conceito, apartir da nova significao que lhe era dada pela literatura especfica e por entidades civis;

    tomou ento remanescentes de quilombo comogrupos que desenvolveram prticas deresistncia na manuteno e reproduo de seus modos de vida caractersticos numdeterminado lugar , e a identidade comouma referncia histrica comum, construda a partir de vivncias e valores partilhados . Remanescentes de quilombos formam ento grupostnicos,tipo organizacional que confere pertencimento atravs de normas e meios empregadospara indicar afiliao ou excluso , onde o tanto o uso comum caracteriza a territoriedadequanto a sazonalidade das atividades agrcolas, extrativistas e outras, e a ocupao do espaotem por base os laos de parentesco e vizinhana, assentados em relaes de solidaried ade ereciprocidade (ARRUTI, 2003: 23). Vale ainda destacar que a formao destes territrios

    mediada por uma pluralidade de formas de acesso e usufruto, construdo coletivamente emoldado por uma memria e por prticas culturais peculiares a cada situao. A noo de

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    remanescente , portanto, dispositivo constitucional e d sentido de existncia coletiva, sendocategoria temporal, visto que situacional, contingencial (ALMEIDA & PEREIRA: 231).

    O conceito fora ressemantizado na medida em que recuperava e reinterpretava estudosantropolgicos realizados desde o final da dcada de 1970. Passa ento do Modelo Palmares,

    vinculado idia de resistncia, contra aculturao, reproduo do mundo africano, luta declasses, autonomia e isolamento, s situaes concretas e documentadas, fazendo uso demanuscritos e de fontes orais. A ressemantizao do termo caminha no sentido da afirmao desua contemporaneidade, na linha da existncia de uma identidade coletiva, com refernciahistrica comum e valores compartilhados. As propostas ento vo a um novo reconhecimentode significado de Quilombo, evitando dar-lhe significao que reproduza represso ou que lheidealize, tal como fizera o Movimento Negro. Toma ento situaes sociais especficas, comfinalidades de garantia das terras e afirmao de identidade prpria. Ressemantizar o quilombo, portanto, abandonar sentidos que lhe so dados por meio da legislao colonial, deixar osimbolismo que o cerca, que lhe dado tanto pela literatura acadmica quanto por movimentosnegros; deslocar o conceito de sua significao simblica original, que apresenta uma mesclacom confronto com emergncia de identidade. A caracterizao do quilombo como expresso danegao do sistema escravocrata, como lcus da resistncia e isolamento deve dar ento lugar snovas definies, tendo em vista que as clssicas oposies no abarcam todas as dimenses dasociedade escravista.

    Um dos campos de referncia representado por Alfredo Wagner Almeida (1999), emsua anlise sobre terras de uso comum que marcam a territoriedade, esta submetida a variaes

    locais com denominaes especficas, conforme a auto-representao e auto-nominao de cadagrupo, enfatizando a condio de coletividade, baseada no compartilhamento do territrio e daidentidade. Tomando o conceito de grupo tnico, substituindo raa por etnicidade, a definiode remanescente de quilombo deixa de ser calcada em critrios subjetivos, tais comodescendncia ou cor da pele, e contextuais, estes que refletem racismo e excluso. Essa noo degrupo tnico associa-se idia de afirmao de identidade quilombola, sintetizada pela noo deauto atribuio. Nesse sentido abandona-se o naturalismo que vem com a noo de raa, e deixade lado o forte historicismo; o que se v uma mudana nos valores socialmente atribudos, etomando o termo etnia vai-se a critrios organizativos, que apontam s tendncias deidentificao, reconhecimento e incluso (ARRUTI, 2003: 29/30). Portanto, passa-se do racialao tnico, e passa-se da excluso incluso e solidariedade; fazendo disso instrumento polticopara reivindicaes[6] ; ou seja, a etnicidade passa a apresentar, juntamente com sua funoterica, uma funo poltica, na mesma medida que a noo de remanescente d existnciapoltica. Desse modo, no s o conceito de quilombo passa por ressemantizao, como tambmo conceito de etnicidade, que se volta a uma propriedade subjetiva dos indivduos, a um tipo desentimento. Vale lembrar que os grupos devem aqui ser tomados no plural, comoremanescentes, tendo em vista que so vrios grupos tnicos, cada qual possuidor desingularidades que os distingue.

    So ainda levados em conta os princpios da auto identificao por parte dos grupos,

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    regulamentados nos artigos 1 e 2 da Conveno n 169, sobre povos indgenas e tribais empases independentes, aprovado pela Organizao Internacional do Trabalho em 1989[7].Quanto auto atribuio, v-se que o ato cabe ao grupo, fato este que mostra que no hclassificador da sociedade que possa se impor. Vale ainda ressaltar que os direitos de minorias,

    em especial minorias tnicas, tm particularidade de aplicao, tendo em vista que nesses casoso principio democrtico da maioria no pode prevalecer, pois no cabe maioria determinarquais direitos assistem minoria (ALMEIDA & PEREIRA). A auto atribuio exclui quaisquermecanismos majoritrios e sociais.

    As categorias de auto-definio manifestam a identidade coletiva, esta que se reflita nadesignao de terras correspondentes determinadas comunidades. Nesse contexto, aimportncia da tradio oral cresce:

    O trabalho da memria e o filtro por ela prpria escolhido a histria da ocupao dasterras para desembocar na discusso sobre identidade. Nesta discusso, o territrio assumedimenses sociopolticas e quase cosmolgicas importantes na construo da identidade distintivado grupo a memria mundo (...) inscrita no solo do lugar (PIETRAFESA DE GODOI, 1999:17).

    A relao territrio e parentesco ainda relevante, na medida em que o acesso terrapode ser garantido pela hereditariedade. Desse modo, parentesco e territrio constituemidentidade, tendo em vista que os indivduos, pelo sentimento de pertena a grupos, serelacionam a lugares dentro de um territrio maior. Territrio , portanto, constituidor deidentidade, de forma estrutural parentesco e de forma fluida considerando a flexibilidadedos grupos e que identidades no so fixas (BARTH, 1976), so identificaes em curso(SANTOS, 2000). Situaes histricas peculiares acabam por realar determinados traosculturais, o caso da identidade quilombola, que engendrada pelo Artigo 68, constituda apartir da possibilidade de direito terra e instrumento de luta. como fora anteriormentecitado, a criao de novos sujeitos jurdicos, polticos e sociais.

    A Associao Brasileira de Antropologia (ABA, 1994), em reposta convocao doMinistrio Pblico Federal, conferiu maior dinamicidade ao fenmeno em questo com novadefinio do conceito.

    Quilombo tem novos significados na literatura especializada, tambm para grupos,indivduos e organizaes. Ainda que tenha contedo histrico, vem sendo ressemantizado paradesignar a situao presente dos segmentos negros em regies e contextos do Brasil. Quilombono se refere a resduos ou resqucios arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica. Tambm no se trata de grupos isolados ou de populao estritamente homognea.Nem sempre foram constitudos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados. Sobretudoconsistem em grupos que desenvolveram prticas cotidianas de resistncia na manuteno e nareproduo de modos de vida caractersticos, e na consolidao de territrio prprio. A identidadedesses grupos no se define por tamanho nem nmero de membros, mas por experincia vivida e verses compartilhadas de sua trajetria comum e da continuidade como grupo. Constituemgrupos tnicos conceituados pela antropologia como tipo organizacional que confere

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    pertencimento por normas e meios de afiliao ou excluso(ODwyer, 1995: 01).

    E como conceito jurdico de quilombo, segundo a definio da 6 Cmara deCoordenao e Reviso da Procuradoria Geral da Repblica, Ministrio Publico Federal, queatua no tocante questo:

    Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos tnicos raciais,segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria prpria, dotados de relaes territoriaisespecficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opressohistrica sofrida, conceito construdo com base em conhecimento cientfico antropolgico esociolgico, e fruto de ampla discusso tcnica, reconhecido pelo Decreto n 4.887/03 em seu art.2.

    5. AplicabilidadeHouvera intenso debate acerca da aplicabilidade do artigo em questo na dcada de

    1990, cujo cenrio fora marcado por duas correntes: uma voltada auto aplicabilidade dodispositivo constitucional, tendo que sua publicao seria suficiente para garantir emisso dosttulos de propriedade prescritos; outra que se voltava regulamentao do artigo por meio delegislao especfica que determinasse os meios da aplicabilidade, com relao s definiesquanto procedimentos administrativos e prazos. A segunda corrente remetia-se LegislaoFederal para que regulamentasse beneficirios e critrios de legitimao, bem como a definio

    conceitual. Todavia, no houvera resposta da Legislao Federal, o Art. 68 permanecera no ADCT sem quaisquer emendas (STUCCHI, 2005).

    O artigo 68 auto-aplicvel, na medida em que est apto a produzir todos os efeitospara o qual foi criado, e pode ser inserido no mbito das atividades do Estado que remetem valorizao de smbolos e da cultura negra, no sentido de garantir consensos. Todavia, o Art. 68remete, implicitamente e na prtica, alm da questo cultural, identidade e direitos fundirios.

    O Art. 68 do ADCT , na aplicao, combinado ao Art. 215 e Art. 216, do corpopermanente da CF/88, a Seo da Cultura[8] . A Carta Magna adotara, portanto, medidas de

    reparao histrica e cultural dirigidas populao negra. Todavia, controvrsias circundam oartigo 68 aqui em questo, no tocante ao conceito de quilombo e categoria remanescente, bemcomo h dissenso quanto aplicabilidade do mesmo, quanto ao reconhecimento pela autoatribuio, que dispensaria a produo de laudos periciais comprobatrios, exceto se houverinteresses conflitantes e estes apresentem contestao explcita (ARRUTI, 2003).

    O direito garantido pelo art.68 insere-se ainda no art.5, pargrafo 2, relativo aosdireitos e garantias fundamentais, por ser o direito propriedade indispensvel pessoahumana e necessrio para assegurar existncia digna, livre e igual. Todavia vale lembrar que odireito propriedade garantido pelo art.68 direito de segunda gerao, tm fulcro naigualdade, direito coletivo.

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    6. Polticas Pblicas, Aes AfirmativasDentre as iniciativas, tanto polticas pblicas quanto aes afirmativas, referentes s

    comunidades remanescente de quilombo, cabe aqui brevemente a meno a algumas delas, asaber: Poltica Nacional de Assistncia Tcnica e Extenso Rural,

    PNATER, vinculada ao Ministrio de Desenvolvimento Agrrio, MDA,implementada pela Secretaria de Agricultura Familiar, SFA, 2004 Um dospilares da poltica em questo o respeito plu ralidade e s diversidadessociais, econmicas, tnicas, culturais e ambientais do pas, o que implica anecessidade de incluir enfoques de gnero, de gerao, de raa e de etnia nasorientaes de projetos e programas (BRASIL, 2004 ).

    Programa Brasil Quilombola, vinculado ao Ministrio deDesenvolvimento Agrrio, MDA, implementado pela Secretaria Especial paraPolticas de Promoo da Igualdade Racial, SEPPIR, 2005 - O Programaestabelece uma metodologia pautada em um conjunto de aes quepossibilitem o desenvolvimento sustentvel dos quilombolas em consonnciacom suas especialidades histricas e contemporneas, garantindo direitos titulao e a permanncia na terra (Brasil, 2005) e tem como propostaessencial o enfrentamento das diferenas para que se valorizem as diversidades

    dos povos negros no tocante s dimenses do ecossistema, do gnero, daregulamentao fundiria, da sade, da educao, dentre outros.

    Programa Pr Lar de Moradia Quilombola, Companhia deDesenvolvimento Habitacional e Urbano, CDHU O Pr-Lar MoradiasQuilombolas prev como soluo de atendimento habitacional a substituio demoradia atual por unidade habitacional nova dotada de infra-estrutura bsica:rede de gua e esgotamento sanitrio.

    Programa Nacional de Alimentao Escolar, PNAE, Fundo

    Nacional de Desenvolvimento da Educao, FNDE - O objetivo atender asnecessidades nutricionais dos alunos durante a permanncia na escola. O valorrepassado pela Unio atualmente, por dia letivo, de 22 centavos por aluno decreche pblica, estudante do ensino fundamental ou pr-escola. Para escolasindgenas ou quilombolas o valor repassado de 44 centavos por dia letivo poraluno.

    A Fundao Cultural Palmares responsvel por promover polticas pblicas voltadas populao negra,no sentido da preservao de valores culturais, sociais e econmicos e, ainda,pela promoo e apoio de pesquisas e estudos relativos histria e cultura dos povos negros epela incluso dos afro-brasileiros no processo de desenvolvimento [9] .

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    Merece destaque ainda o recm Decreto Federal no. 6.872, de 04 de junho de 2009, esteque aprovou o Plano Nacional de Polticas de Promoo da Igualdade Racial, PLANAPIR, einstituiu o Comit de Articulao e Monitoramento, voltado a grupos negros, ciganos, indgenas,comunidades de terreiros e comunidades quilombolas. Os eixos fundamentais so os seguintes:

    Trabalho e Desenvolvimento Econmico, Educao, Sade, Direitos Humanos, SeguranaPblica, Desenvolvimento Social e Segurana Alimentar e Infra-estrutura, no tocante aos gruposcitados. Tomando especificamente o item referente s comunidades remanescentes dequilombos, o Plano Nacional visa: I - promover o desenvolvimento econmico sustentvel dascomunidades remanescentes de quilombos, inserido-as no potencial produtivo nacional; II -promover o efetivo controle social das polticas pblicas voltadas s comunidadesremanescentes de quilombos; III - promover a titulao das terras das comunidadesremanescentes de quilombos, em todo o Pas; IV - promover a proteo das terras dascomunidades remanescentes de quilombos; V - promover a preservao do patrimnio

    ambiental e do patrimnio cultural, material e imaterial, das comunidades remanescentes dequilombos; VI - promover a identificao e levantamento socioeconmico de todas ascomunidades remanescentes de quilombos do Brasil; VII - ampliar os sistemas de assistnciatcnica para fomentar e potencializar as atividades produtivas das comunidades remanescentesde quilombos, visando o apoio produo diversificada, seu beneficiamento e comercializao; VIII - estimular estudos e pesquisas voltados s manifestaes culturais de comunidadesremanescentes de quilombos; IX - estimular a troca de experincias culturais entrecomunidades remanescentes de quilombos do Brasil e os pases africanos; e X - incentivar aesde gesto sustentvel das terras remanescentes de quilombos e a consolidao de banco dedados das comunidades tradicionais[10] .

    Todavia, vale destacar que as ofertas de propostas e polticas no garantem a seguridadedos direitos de comunidades remanescentes de quilombos, em termos de desenvolvimentosustentvel, mnimas garantias de sobrevivncia ou fundirios, na medida em que, para aefetivao destas e outras aes deve haver o ttulo de reconhecimento; sabido que esteprocesso longo, demorado e complexo.

    A questo quilombola, portanto, no pode ser tomada somente como ao afirmativa; seisso ocorrer e tem ocorrido o prprio preceito constitucional, que remete a direitos, tem sualegitimidade prejudicada. Nesse caso, as aes se concentram em prestaes de servios bsicos,deixando em um plano secundrio a questo do reconhecimento enquanto comunidade quedemanda titulao das terras como propriedade coletiva, o que abarca uma srie de outrosconflitos, tais como demarcaes, expropriaes e desapropriaes, bem como o pagamento deindenizaes.

    Sob o ponto de vista da nfase nas polticas sociais, as comunidades quilombolasestariam se tornando beneficirias de programas, projetos e plano s governamentais e passandoa ser classificadas como pblico alvo (conforme o folder Quilombolas, do MDA), englobadaspor classificaes mais abrangentes, que designam os respectivos programas e projetos, quaissejam: pobres, populao carente, excludos, populao de baixa renda, populao

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    vulnervel e desassistidos. (...) Os quilombolas no podem ser reduzidos mecanicamente categoria pobres e tratados com os automatismos de linguagem que os classificam comocarentes, de baixa renda ou na linha de indigncia. Insistir nisso significa umadespolitizao absoluta. Afinal, as comunidades remanescentes de quilombos no so o reinadoda necessidade nem tampouco um conjunto de miserveis, j que os quilombolas se

    constituram enquanto sujeitos, dominando essa necessidade e instituindo umreinado deautonomia e liberdade (ALMEIDA, 2005: 9/11).

    7. Consideraes finaisO Art. 68 encontra-se no corpo permanente da Carta Constitucional, v-se que o que

    deveria ser transitrio se tornara permanente, e o preceito constitucional, h 20 anos no ADCT, aplicado efetivamente, e muda realidades. O transitrio tornou-se duradouro, contrariandoinclusive a legitimidade da parte da Constituio que o abriga. Portanto, o reconhecimento jurdico de comunidades como remanescentes de quilombos e portadoras de direitos implica emtransformaes e negociaes em diversos mbitos, alterando relaes internas e significados,mudando tanto a auto-percepo das comunidades quanto a percepo de grupos noremanescentes frente queles. A identificao e o reconhecimento oficial so, portanto, parte deum amplo processo de produo, de limites e fronteiras, produo de memrias, e de nova redede relaes, produo de novos sujeitos polticos, produo de reviso histrica e sociolgica eainda ampliao de prpria hermenutica jurdica, na medida em que os fatos sobre os quais o Artigo prescreve encontram-se em realidades complexas e conflituosas, no ponto de contato

    entre os direitos tnicos e aes afirmativas. O que se tem so os altos custos polticos doreconhecimento do direito prescrito pelo Artigo 68, uma vez que um direito fundirio, frenteaos custos menores de proporem-se aes afirmativas, confundindo assim o prprio artigo eseus beneficirios, no contexto da realizao de uma igualdade de minorias tnicas, que se d apartir da aplicao das diferenas, saindo do universalismo para fazer-se ouvir nomulticulturalismo.

    NOTAS*Graduanda do 8 perodo em Cincias Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas, Universidade de So Paulo. FFLCH/USP. Email: [email protected] [1] Vale destacar a forma descentralizada pela qual se dera o processo constituinte brasileiro na ANC 1987, iniciando-se de baixo para cima: as propostas tinham entrada e incio nasSubcomisses Temticas, destas passava-se anteprojeto s Comisses, posteriormente seguindo Comisso de Sistematizao e por ltimo chegavam ao Plenrio.

    [2] 1988 fora o ano de comemorao do centenrio da abolio do regime escravocrata, fatoeste que, segundo autores do tema, teria influenciado decises parlamentares em prol daspropostas do Movimento Negro, tendo em vista que qualquer negao seria acusada depreconceito. Somam-se ao fato as noes de reparao histrica, escravido inacabada e dvidascom afro descendentes.

    [3] Cabe ressaltar que os direitos indgenas: estes que so mais evidentes nas atribuies eaes do Ministrio Pblico do que direitos de remanescentes de quilombo, sendo ambos

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    direitos coletivos. Embora no seja estes direitos o foco do trabalho, pode-se destacar o lobby que grupos indgenas empenharam na Subcomisso das Minorias, sendo ainda que indgenastm Estatuto especfico e prprio, embora obsoleto, ainda da dcada de 1970. A defesa dedireitos e deveres das populaes indgenas ainda determinada pela Constituio, no Art. 129, V, sendo assim parte das atribuies fundamentais do Ministrio Pblico. Ou seja, emborandios e remanescentes de quilombos possuam os mesmos direitos coletivos quanto a terra,

    havendo distino quanto titulao somente, os grupos indgenas esto explicitamente citadosno corpo permanente da CF/88 Artigo 231, pargrafo 4 - e sua defesa claramente cabe aoMinistrio Pblico, enquanto os direitos de quilombolas parte do ADCT, o corpo transitrio daConstituio.

    [4] Schmitt, Turatti e Carvalho (2002) consideram que estes dois conceitos, identidade tnica eterritorialidade, so fundamentais e esto sempre inter-relacionados no caso das comunidadesnegras rurais, tendo em vista que, citando Gusmo, a presena e o interesse de brancos enegros sobre um mesmo espao fsico e social revela (...) aspectos encobertos das relaessociais.

    [5] H exemplos que contrariam os elementos ressaltados pela definio do ConselhoUltramarino, como o caso do Quilombo de Frechal, no Maranho, localizado a poucos metrosda casa grande, ou casos onde o quilombo se formara no interior da prpria senzala,representado por formas de produo autnoma, sobretudo em pocas de decadncia de cicloseconmicos (ALMEIDA, 1999). Em paralelo formao do aparato de perseguio aos fugitivosdesenvolveu-se uma rede de relaes entre estes e os comerciantes, que visavam manutenodos quilombos tendo em vista que lucravam com as trocas agrcolas por produtos que no eramproduzidos pelos escravos (TURATTI, 2006).

    [6] o uso da noo de etnicidade , portanto, inseparvel da de etnognese. (ARRUTI,2003:30).

    [7] Disponvel em http://www.institutoamp.com.br/oit169.htm,acesso em 23/06/2009.

    [8] Os artigos 215 e 216 da Constituio Federal garantem a proteo s manifestaes dasculturas populares, indgenas e afro-brasileiras, e definem como patrimnio cultural brasileiroos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadoresde referncias identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. No campo infraconstitucional, o Decreto n 4.887, de 2003, que regulamenta oprocesso administrativo de delimitao e titulao das terras ocupadas pelos remanescentes dascomunidades de quilombos.

    [9] Disponvel em http://www.palmares.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=2185,acesso em 23/06/2009.

    [10] Disponvel em http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/231843/decreto-6872-09, acessoem 22/06/2009.

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