o arranjo vocal de canÇÃo popular brasileira:

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ROGÉRIO CARVALHO O ARRANJO VOCAL DE CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA: VILLA-LOBOS, OS CARIOCAS E MARCOS LEITE Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração: Com- posição. Orientação: Prof. Dr. MARCOS VINÍCIO CUNHA NOGUEIRA Rio de Janeiro 2009

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Os arranjos vocais de canção popular brasileira têm ocupado cada vez mais espaço no repertó-rio dos nossos coros e grupos vocais. Entretanto, ainda não existe um mercado editorial que distribua e comercialize essas partituras de forma regular e profissional. As pesquisas acadê-micas sobre este tema ainda são muito escassas e o ensino do arranjo vocal de canção popular brasileira ainda é feito fora do meio acadêmico. A presente pesquisa tem como objetivo prin-cipal realizar um estudo do arranjo vocal, abordando sua história, definindo seus conceitos e terminologias, exemplificado suas práticas e analisando a elaboração de arranjos. Discutimos o conceito de arranjo sobre a perceptiva da música popular, analisamos o papel do arranjador neste gênero, e por fim, estudamos os principais conceitos envolvidos na produção dos arran-jos. Tomamos como referência dois arranjos vocais, o primeiro, escrito por Villa-Lobos, reve-la uma importante mudança estética no gênero. Com o segundo arranjo, do grupo vocal Os Cariocas, vemos como seu idiomatismo definiu um estilo e influenciou as gerações posterio-res. Dedicamos a parte final do estudo ao arranjador Marcos Leite, pedra fundamental do ar-ranjo vocal brasileiro, com uma análise minuciosa de um dos seus arranjos mais famosos. Esperamos que esta pesquisa possa contribuir, mesmo que de forma bastante sucinta, para minimizar um pouco a escassez de estudos nesta área.

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  • ROGRIO CARVALHO

    O ARRANJO VOCAL DE CANO POPULAR BRASILEIRA:

    VILLA-LOBOS, OS CARIOCAS E MARCOS LEITE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Msica da Escola de Msica da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

    parte dos requisitos para obteno do ttulo de

    Mestre em Msica, rea de concentrao: Com-

    posio.

    Orientao: Prof. Dr. MARCOS VINCIO CUNHA NOGUEIRA

    Rio de Janeiro

    2009

  • ii

    Esta obra dedicada minha amada filha

    Melissa. Parafraseando Beto Guedes, O meu pequeno grande amor.

  • iii

    Agradecimentos

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Marcos Nogueira, por sua competncia acadmica e

    profissional, pelas inmeras horas dedicadas leitura e discusso dos textos, pelas criteriosas

    observaes e, sobretudo, por sua extrema gentileza e generosidade.

    Ao programa de ps-graduao da Escola de Msica da UFRJ, na pessoa do Prof. Dr.

    Marcelo Verzone, pelo suporte logstico durante os congressos.

    Profa. Dra. Maria Jos Chevitarese, por ter aceitado o convite para participar como

    membro da banca em meu Exame de Qualificao.

    Aos Profs. Drs. Jos Alberto Salgado e Carlos Alberto Figueiredo, pela participao

    como membros da minha banca de defesa.

    CAPES pelo suporte financeiro imprescindvel para a realizao desta obra.

    Aos professores do PPGM da Escola de Msica da UFRJ que muito auxiliaram no

    levantamento e, felizmente, no esclarecimento de muitas questes.

    Aos meus colegas da turma de composio, Tiago Sas, Andr Machado e Bernardo

    Pellon, pelas calorosas discusses.

    Escola de Msica da UFRJ, que durante muitos anos foi a minha segunda casa.

    Aos meus queridos pais, Amaro e Levi, pelo total apoio e o carinho de sempre.

  • iv

    RESUMO

    Os arranjos vocais de cano popular brasileira tm ocupado cada vez mais espao no repert-

    rio dos nossos coros e grupos vocais. Entretanto, ainda no existe um mercado editorial que

    distribua e comercialize essas partituras de forma regular e profissional. As pesquisas acad-

    micas sobre este tema ainda so muito escassas e o ensino do arranjo vocal de cano popular

    brasileira ainda feito fora do meio acadmico. A presente pesquisa tem como objetivo prin-

    cipal realizar um estudo do arranjo vocal, abordando sua histria, definindo seus conceitos e

    terminologias, exemplificado suas prticas e analisando a elaborao de arranjos. Discutimos

    o conceito de arranjo sobre a perceptiva da msica popular, analisamos o papel do arranjador

    neste gnero, e por fim, estudamos os principais conceitos envolvidos na produo dos arran-

    jos. Tomamos como referncia dois arranjos vocais, o primeiro, escrito por Villa-Lobos, reve-

    la uma importante mudana esttica no gnero. Com o segundo arranjo, do grupo vocal Os

    Cariocas, vemos como seu idiomatismo definiu um estilo e influenciou as geraes posterio-

    res. Dedicamos a parte final do estudo ao arranjador Marcos Leite, pedra fundamental do ar-

    ranjo vocal brasileiro, com uma anlise minuciosa de um dos seus arranjos mais famosos.

    Esperamos que esta pesquisa possa contribuir, mesmo que de forma bastante sucinta, para

    minimizar um pouco a escassez de estudos nesta rea.

    Palavras chave: Arranjo Arranjo Vocal Arranjador Cano Popular Brasileira

  • v

    ABSTRACT

    The vocal arrangements of Brazilian popular song have occupied more space in the repertoire

    of our choirs and vocal groups. However, there is not still a market that distribute and market

    these scores on a regular and professional. The academic research on this subject are still

    scarce and the teaching of vocal arrangement of Brazilian popular song is still done outside of

    academia. This research aims at providing a study of the vocal arrangement, covering its his-

    tory, its defining concepts and terminology, exemplified their practices and analyzing the de-

    velopment of arrangements. We discussed the concept of the perceptual arrangement of popu-

    lar music, we analyzed the role of the arranger in this genre, and finally, we study the main

    concepts involved in the production of the arrangements. We referred two vocal arrangements,

    the first, written by Villa-Lobos, reveals a major shift in aesthetic genre. With the second ar-

    rangement, the vocal group Os Cariocas, as we see his idiomatic style defined and influenced

    later generations. We devote the final part of the study arranger Marcos Leite, the cornerstone

    of the Brazilian vocal arrangement, with a detailed analysis of one of his most famous ar-

    rangements. We hope that this research can contribute, even though quite briefly, to minimize

    rather the lack of studies in this area.

    Keywords: Arrangement - Vocal Arrangement - Arranger - Brazilian Popular Song

  • vi

    SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS......................................................................................8

    LISTA DE QUADROS...................................................................................11

    INTRODUO .............................................................................................12

    CAPTULO 1 O arranjo: conceitos, prticas e terminologia.......................17

    1.1 - O conceito de arranjo....................................................................18

    1.2 - Da composio ao arranjo vocal o papel do arranjador e do arranjador vocal na cano popular brasileira..............................20

    1.2.1 - O arranjador vocal de cano popular brasileira.........................24

    1.3 - A textura no arranjo vocal..............................................................27

    1.3.1 - Texturas aplicadas a melodia principal......................................28

    1.3.2 - Texturas aplicadas ao acompanhamento.....................................32

    CAPTULO 2 Villa-Lobos e Os Cariocas....................................................40

    2.1. - Villa-Lobos e o surgimento de uma nova esttica no arranjo coral

    brasileiro.......................................................................................41

    2.1.1 - O canto orfenico, definio, origens e caractersticas..............41

    2.1.2 - Villa-lobos e o canto orfenico..................................................44

    2.1.3 - O arranjo coral de luar do serto................................................46

    2.1.4 - Os demais arranjos de Villa-Lobos............................................55

    2.2 - O idiomatismo de Os Cariocas.....................................................58

    2.2.1 - A Rdio Nacional e seus grupos vocais.....................................58

    2.2.2 - Os Cariocas................................................................................59

    2.2.3 - A discografia de Os Cariocas.....................................................63

    2.2.4 - O arranjo vocal de O ltimo Beijo............................................63

    CAPTULO 3 consolidao de um esttica.............................................89

    3.1 - Cozzela e Kerr...............................................................................89

    3.2 - A tradio carioca dos grupos vocais............................................91

    3.3 - Marcos Leite..................................................................................92

    3.3.1 - Grupo vocal Garganta Profunda................................................94

    3.3.2 - Discografia do Garganta Profunda.............................................95

    3.4 - O arranjo vocal de Lata D'gua.....................................................95

    3.4.1 - O autor da cano.......................................................................95

    3.4.2 - O autor da letra...........................................................................96

    3.4.3 - A primeira gravao....................................................................97

  • vii

    3.4.4 - Sobre o arranjo............................................................................98

    3.4.5 - Aspectos gerais sobre a forma do arranjo...................................99

    3.4.6 - Meio/extenses...........................................................................100

    3.4.7 - Gravao de referncia...............................................................102

    3.4.8 - Harmonia....................................................................................103

    3.4.9 Textura.......................................................................................104 3.4.10 - Melodia e ritmo........................................................................114

    3.4.11 - Comparaes e concluses.......................................................116

    CONCLUSO.................................................................................................119

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................121

    REFERNCIAS FONOGRFICAS................................................................124

    REFERNCIAS COMPLEMENTARES.........................................................125

    ANEXO - Partituras dos arranjos analisados....................................................126

    Luar do Serto..........................................................................................127

    O ltimo Beijo.........................................................................................130

    Lata D'gua...............................................................................................142

  • viii

    Lista de Figuras

    Fig. 1 Lua, lua, lua, lua, arranjo vocal de Marcos Leite

    Fig. 2 Arranjo vocal de Andr Protsio para a cano Vera Cruz

    Fig. 3 Arranjo de Zeca Rodrigues para Garota de Ipanema

    Fig. 4 Dois trechos do arranjo de Cozzella

    Fig. 5 Background meldico

    Fig. 6 Contracanto em formato pergunta e reposta

    Fig. 7 BG harmnico encontrado no arranjo vocal de Lua, lua, lua, lua

    Fig. 8 BG harmnico presente no arranjo vocal de Rogrio Carvalho para a modinha Casi-nha pequenina

    Fig. 9 BG rtmico simples

    Fig. 10 - BG rtmico no estilo Vocal Band

    Fig. 11 Primeira parte da introduo

    Fig. 12 Segunda parte da introduo

    Fig. 13 Introduo de Azulo, arranjo de Vieira Brando

    Fig. 14 Refro

    Fig. 15 Casinha Pequenina, arranjo de Lorenzo Fernndez

    Fig. 16 Primeira frase

    Fig. 17 Segunda frase

    Fig. 18 Cidade Maravilhosa, arranjo de Vieira Brando

    Fig. 19 Terceira frase de B

    Fig. 20 Codeta

    Fig. 21 - Background rtmico encontrado na Cano do Marinheiro

    Fig. 22 - Background rtmico encontrado na Cano do Pescador Brasileiro

  • ix

    Fig. 23 Duas Chaves, arranjo de Anjos do Inferno

    Fig. 24 Primeira parte da introduo

    Fig. 25 Segunda parte da introduo

    Fig. 26 Terceira parte da introduo

    Fig. 27 Solo

    Fig. 28 Segunda frase da seo A

    Fig. 29 Terceira frase

    Fig. 30 Primeira textura da quarta frase

    Fig. 31 Segunda textura da quarta frase

    Fig. 32 Terceira textura da quarta frase

    Fig. 33 Primeira textura da quinta frase

    Fig. 34 Segunda textura da quinta frase

    Fig. 35 Sexta frase

    Fig. 36 Sexta frase (continuao)

    Fig. 37 Primeira frase do intermezzo

    Fig. 38 Segunda frase do intermezzo

    Fig. 39 Terceira frase do intermezzo

    Fig. 40 Quarta frase do intermezzo

    Fig. 41 Quinta frase do intermezzo

    Fig. 42 Sexta frase do intermezzo

    Fig. 43 Stima frase do intermezzo

    Fig. 44 Oitava frase do intermezzo

    Fig. 45 Nona frase do intermezzo

    Fig. 46 ltima frase do intermezzo

  • x

    Fig. 47 Primeira frase da seo A

    Fig. 48 Segunda textura da seo A

    Fig. 49 Capa do songbook O Melhor de Garganta Profunda

    Fig. 50 CD Deep Rio do Garganta Profunda

    Fig. 51 Primeira parte da introduo, contraponto no estilo pergunta e resposta

    Fig. 52 Unssono e BG meldico em soli

    Fig. 53 BG meldico em soli

    Fig. 54 BG rtmico em soli

    Fig. 55 BG harmnico

    Fig. 56 BG rtmico em soli

    Fig. 57 Soli livremente

    Fig. 58 Unssono, com exceo

    Fig. 59 BG meldico e soli

    Fig. 60 BG harmnico

    Fig. 61 Soli

    Fig. 62 BG harmnico

    Fig. 63 BG meldico

    Fig. 64 BG harmnico

    Fig. 65 BG rtmico

    Fig. 66 - Soli

  • xi

    Lista de Quadros

    Quadro 1 Proposta de Mrio de Andrade

    Quadro 2 Proposta de Andrade adaptada msica popular

    Quadro 3 Proposta de Delalande

    Quadro 4 Proposta de Delalande adaptada msica popular

    Quadro 5 Esquema proposto com a insero do arranjador vocal

    Quadro 6 Outro esquema possvel

    Quadro 7 Quadro de combinaes texturais

    Quadro 8 Forma do arranjo de Luar do Serto

    Quadro 9 Quadro das texturas encontradas no arranjo coral de Luar do Serto

    Quadro 10 Quadro da textura do arranjo de Santos Dumont

    Quadro 11 Quadro da textura de Cano do Marinheiro

    Quadro 12 Quadro da textura

    Quadro 13 Tabela da forma

    Quadro 14 Forma do arranjo vocalizados

    Quadro 15 Forma do arranjo original

    Quadro 16 Extenses das vozes no arranjo

    Quadro 17 Quadro da textura

  • 12

    INTRODUO

    A partir da dcada de 70 os arranjos vocais de cano popular brasileira comearam a

    invadiram o repertrio coral brasileiro de forma definitiva. Com exceo dos coros

    exclusivamente dedicados ao repertrio erudito, atualmente difcil encontrar um coro que

    no cante pelo menos um arranjo de msica popular brasileira, isso, quando o repertrio no

    em sua totalidade formado por arranjos do gnero. O panorama do canto coral sofreu

    mudanas a partir de Villa-Lobos, houve um aumento significativo no nmero de arranjos

    interpretados em apresentaes. Apesar de hoje existir uma prtica intensa de criao e

    interpretao de arranjos vocais de cano popular brasileira, e essa atividade ter comeado

    h quase 40 anos, as primeiras tentativas de sistematizar o estudo do arranjo no Brasil so

    bastante recentes e, com poucas excees, o arranjo ainda , de forma geral, um assunto

    estudado fora do ambiente acadmico.

    O crescente interesse dos coros por esse repertrio gerou uma grande produo de

    arranjos. Entretanto, a falta de estudos aprofundados sobre a escrita do arranjo vocal, aliada

    ausncia de um mercado editorial profissional que distribua e comercialize de forma regular

    essas partituras, gerou muitos problemas para os cantores e regentes. A professora e maestrina

    Maria Jos Chevitarese critica a baixa qualidade dos arranjos que chegam s suas mos,

  • 13

    atravs de seus coralistas e da Internet. Segundo a maestrina, os arranjos no funcionam,

    simplesmente por serem mal escritos1.

    Foram questes como esta que contriburam para o surgimento dessa investigao. O

    arranjo vocal de cano popular brasileira merece um estudo aprofundado, que gere a

    sistematizao do seu contedo, no intuito de se criar mtodos de ensino e aprendizagem

    coerentes sobre o assunto. O Brasil teve e tem importantes arranjadores vocais como Villa-

    Lobos, Ismael Netto, Severino Filho, Damiano Cozzella, Samuel Kerr, Marcos Leite e

    outros. Contudo, poucos estudos de cunho analtico estrutural, ou mesmo pedaggicos, foram

    dedicados aos trabalhos desses msicos. Analisar esses arranjos de suma relevncia para o

    aprendizado da escrita de arranjo vocal de cano popular brasileira.

    O foco dessa pesquisa so os arranjos vocais criados sobre canes populares

    brasileiras, de cunho urbano e autoral, que se tornaram conhecidas atravs do mercado

    fonogrfico. Desta forma, no sero considerados aqui os arranjos gerados a partir das

    canes folclricas, tendncia comum no movimento erudito nacionalista. Um dos principais

    objetivos dessa investigao resgatar e valorizar, expondo de forma simples e objetiva, as

    idias musicais de alguns desses grandes arranjadores, no intuito de servir como fonte de

    informao para outros estudos e para o entendimento da produo atual de arranjos vocais.

    Andr Protsio, arranjador atuante e pesquisador dedicado ao estudo do arranjo vocal de

    MPB, aponta esse conhecimento como essencial ao profissional que deseja trabalhar com

    canto coral. Segundo o msico: Para o regente de coro, saber escrever um arranjo ou no

    mnimo saber analis-lo para interpret-lo de maneira correta, tornou-se uma ferramenta

    bsica de trabalho (Protsio, 2006: 02). Eduardo Fernandes, arranjador e regente paulista,

    realizou em 2003 uma pesquisa com regentes da cidade de So Paulo e concluiu que 91% dos

    entrevistados escreve arranjos para os seus grupos. Segundo Fernandes essa produo vem da

    necessidade dos regentes de terem peas adequadas aos seus coros, seja pela formao, nvel

    tcnico, exigncia do repertrio, ou mesmo pelo simples desejo dos seus cantores em cantar

    determinada msica ou gnero. Sendo assim, estudar, analisar e discutir os arranjos vocais

    totalmente relevante para a formao do msico profissional que pretende trabalhar frente

    de corais ou grupos vocais.

    Segundo nos relata Protsio (2006), notria em eventos como oficinas, encontros e

    fruns sobre canto coral, a busca dos regentes e cantores por novos e bons arranjos de cano

    1Frum Rio a Cappella 2002, debate sobre repertrio coral.

  • 14

    popular. O autor vem reforar o que foi antes comentado pela maestrina Maria Jos

    Chevitarese:

    Se h falta de repertrio, falta tambm quem escreva arranjos de boa

    qualidade para diferentes formaes (para 3, 4 ou 5 vozes, coros femininos,

    masculinos, etc.), organizados em diferentes graus de dificuldade e que este

    repertrio esteja sendo constantemente renovado. (Protsio, 2006: 2)

    Durante o nosso curso de graduao em regncia, realizado entre os anos 2001 e 2006,

    na Escola de Msica da UFRJ, tivemos a oportunidade de trabalhar com diferentes coros e

    grupos vocais. Percebemos ento, assim como os regentes paulistas relataram na pesquisa de

    Fernandes (2003), a grande necessidade de produzir arranjos que atendessem aos diferentes

    nveis e formaes desses grupos. A primeira questo que surgiu foi: Quais so as

    caractersticas principais do arranjo vocal de cano popular brasileira? Nesta pesquisa

    pretendemos investigar de forma aprofundada esta questo, buscando sempre que possvel um

    dilogo com a bibliografia especfica sobre o assunto arranjo. Analisaremos arranjos vocais

    que consideramos significativos para a compreenso dessas caractersticas, acreditando que

    desta maneira poderemos contribuir para encontrar a resposta para elucidar esta e outras

    questes.

    Em busca de organizar o estudo sobre o assunto arranjo vocal de cano popular,

    estabelecemos trs momentos de discusso nesse trabalho, que esto relacionados com os

    captulos da dissertao. No primeiro captulo discutiremos o conceito de arranjo, o papel do

    arranjador na linha de produo da msica popular brasileira, e a terminologia essencial para

    a compreenso das anlises dos arranjos, como: textura, homofonia, soli, background,

    contracanto, dentre outros. Usaremos como base para a abordagem desses temas, vrias

    referncias tericas que nos auxiliam na discusso desses conceitos, incluindo os dicionrios

    Grove (1988), (1994), (2000), Harvard (1999), Oxford (1994), Larousse (1999), Aurlio

    (1986); livros sobre arranjo dos autores Guest (1996), Almada (2000), Ades (1966); estudos

    sobre textura de Berry (1987) e Lucas (1995); e tambm dissertaes de mestrado defendidas

    por Leme (2000) e Protsio (2006).

    No segundo captulo h uma breve perspectiva histrica do arranjo vocal no Brasil.

    Discutiremos a esttica do arranjo vocal dentro de um perodo histrico que vai do incio dos

    anos 30 at o final da dcada de 70. Mais do que relatar os fatos, iremos analisar dois arranjos

    significativos para compreenso da esttica do arranjo vocal de cano popular brasileira. O

  • 15

    captulo tem incio com um breve histrico sobre Villa-Lobos e o canto orfenico, e em

    seguida ser apresentada a anlise do arranjo vocal escrito pelo compositor para a toada Luar

    do Serto. Para tornar mais claros os argumentos defendidos nessa anlise, confrontaremos

    este arranjo com trechos extrados de arranjos vocais escritos pelos compositores Lorenzo

    Fernndez e Vieira Brando. A escolha desses compositores se deu pelo simples fato de

    ambos terem sido contemporneos de Villa-Lobos, e com ele trabalhado no projeto nacional

    do canto orfenico. Discutiremos ao longo desta anlise o papel da textura na inaugurao de

    uma nova esttica no arranjo coral brasileiro. Concluda a anlise, apresentaremos alguns

    quadros nos quais estaro resumidas as texturas de outros trs arranjos vocais do compositor,

    com o objetivo de evidenciar o estilo de Villa-Lobos como arranjador vocal.

    No segundo tpico do captulo, enfocaremos o trabalho desenvolvido pelo arranjador

    Ismael Netto frente do grupo vocal Os Cariocas. Levantaremos o momento histrico

    conhecido como a Era do Rdio, enfatizando a atuao do grupo na Rdio Nacional. Aps

    isso, apresentaremos a anlise do arranjo vocal escrito por Ismael, para Os Cariocas, da

    cano de sua autoria em parceria com Nestor de Holanda, ltimo Beijo. Confrontaremos

    alguns aspectos desse arranjo com trechos de arranjos vocais de grupos da mesma poca,

    como: Anjos do inferno, Quatro ases e um coringa e Namorados da lua, com o objetivo de

    destacar aspectos particulares que reflitam um idiomatismo prprio caracterstico do grupo

    Os Cariocas. Aplicaremos o mtodo de anlise textural utilizado pelos autores Ostrander e

    Wilson no livro Contemporary Choral Arranging (1986), que adaptamos para esta pesquisa,

    com o intuito de destacar os procedimentos texturais adotados por cada um dos arranjadores.

    O terceiro captulo em grande parte dedicado a Marcos Leite. Iniciaremos este

    captulo discorreremos sucintamente sobre o trabalho dos arranjadores Damiano Cozella e

    Samuel Kerr, levantando suas principais contribuies. Seguiremos comentando a tradio

    carioca dos grupos vocais, destacando alguns conjuntos importantes. Em seguida, ser

    apresentada uma breve biografia sobre o arranjador, e abordaremos de forma sucinta sobre o

    seu grupo vocal mais importante, o Garganta Profunda. Finalmente, analisaremos o arranjo

    vocal de Marcos Leite para o samba Lata D'gua, um dos seus arranjos mais conhecidos e

    executados. Esta anlise tem o intuito de identificar os procedimentos composicionais e as

    principais tcnicas de escrita adotadas pelo arranjador, e que serviram de base para a criao

    do arranjo. Buscaremos ainda traar comparaes entre o arranjo vocal de Marcos Leite e a

    gravao original da msica, com objetivo de discutir a influncia e a importncia da

  • 16

    gravao no processo de criao do arranjo. Nesta anlise, ao contrrio das anteriores,

    usaremos um mtodo analtico exposto pelo autor David Cope no seu livro New directions in

    music (2001), adaptado para essa investigao. A escolha desse mtodo se justifica pelo fato

    dessa terceira anlise ser um estudo mais global da partitura e incluir ainda dois textos

    sonoros. Os aspectos texturais ainda sero tratados com destaque, todavia outras discusses

    sero apresentadas neste captulo, como por exemplo: extenses, re-harmonizao, melodia e

    ritmo.

  • 17

    Captulo 1

    O ARRANJO:

    CONCEITOS, PRTICAS E TERMINOLOGIA

    Iniciaremos com uma discusso sobre o conceito de arranjo. Sobretudo a busca de

    uma delimitao coerente para o termo arranjo como prtica cotidiana na msica popular

    brasileira. Para isso, consideraremos verbetes de vrios dicionrios como Grove (1988),

    (1994), (2000), Harvard (1999), Oxford (1994), Larousse (1999), Aurlio (1986) e de outras

    referncias bibliogrficas relevantes.

    O segundo tpico deste captulo analisa a questo prtica do arranjo na MPB.

    Investiga de forma geral, como se relacionam os processos de composio, arranjo e

    interpretao neste gnero. Com esse fim, utilizaremos sistemas fornecidos por autores como

    Delalande (1991), Andrade (1995) e Teixeira (2007). O principal foco da discusso neste

    tpico o papel do arranjador e do arranjador vocal na msica popular brasileira.

    O captulo encerra-se com um estudo das principais texturas encontradas nos arranjos

    vocais de cano popular brasileira. Salientaremos aqui a questo da esttica tipicamente

    homofnica e instrumental, presente nesses arranjos. Para tanto, utilizaremos referenciais

    tericos sobre arranjo como Ostrander e Wilson (1986), Ades (1966), Guest (1996), Almada

    (2000) e sobre textura como Berry (1987) e Lucas (1995). O principal objetivo desta seo

    destacar e agrupar as tcnicas mais utilizadas, gerando um breve conjunto de texturas

    referenciais para composio nesse gnero.

  • 18

    1.1 O CONCEITO DE ARRANJO

    Para melhor desenvolvimento dessa pesquisa, fez-se necessrio, logo de incio, uma

    delimitao apropriada para o termo arranjo, visto que esta palavra pode ser interpretada de

    diversas formas, provocando assim certa indefinio conceitual. Segundo as definies reco-

    lhidas do Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa (1986), da Grande Enciclopdia

    Larousse Cultural (1998) e do Dicionrio Larousse Cultural da Lngua Portuguesa (1999), o

    termo arranjo est associado ordenao, organizao, boa disposio, arrumao,

    alinho etc. Entretanto, no que tange ao arranjo musical essas mesmas obras de referncia

    so unnimes em defini-lo como a adaptao de uma pea, criada para uma determinada for-

    mao, para outra diferente da original. No Dicionrio Musical Brasileiro (1989), Mrio de

    Andrade concorda com essas definies quando conceitua arranjo da seguinte forma: ... es-

    critura de uma msica para destinao instrumental ou vocal diversa da que foi escrita (An-

    drade, 1989: 25).

    Essas definies trazem consigo vrias limitaes, pois pensar o arranjo dessa forma ,

    simplesmente, entend-lo apenas como uma adaptao ou transcrio de uma obra com o

    propsito de torn-la acessvel outra categoria de executantes. Assim sendo, a palavra ar-

    ranjo certamente se confundir com outros termos como reduo (quando, por exemplo,

    faz-se a reduo de uma pera de Rossini para piano e vozes) ou orquestrao (no caso, por

    exemplo, da pea para piano Quadros de uma Exposio, composta por Mussorgsky e pos-

    teriormente transcrita para orquestra, por Ravel).

    No Dictionary Oxford of Music (1994) o conceito de arranjo definido da seguinte

    forma:

    Adaptao de uma pea para um meio musical diferente daquele para que ti-

    nha sido originalmente composto. Por vezes transcrio significa reescrever

    a obra para o mesmo meio, mas num estilo de execuo simplificado. Por

    vezes usa-se o termo arranjo para um tratamento livre do material e o ter-mo transcrio para um tratamento mais fiel. No Jazz arranjo tende a sig-nificar orquestrao. (Kennedy, 1994: 41)

    Como podemos observar, este verbete se inicia tratando o termo arranjo como sin-

    nimo de transcrio. Ele refora o que j foi dito at aqui pelos outros verbetes, acrescen-

    tando outros usos como o de adaptao facilitada da obra para executantes de outros nveis.

    Entretanto, esse verbete ainda nos traz novas perspectivas para a compreenso do conceito de

    arranjo, quando explana sobre a possibilidade de o arranjo possuir um tratamento mais livre

  • 19

    do material original enquanto que a transcrio tem um carter mais fiel de manipulao da

    obra original.

    Na edio de 2000 do The New Grove Dictionary of Music and Musicians, o termo ar-

    ranjo definido de forma geral como a reelaborao de uma composio, normalmente para

    um meio diferente do original. O Grove completa fazendo uma observao importante: o ar-

    ranjo seria uma elaborao de uma idia original, mas normalmente com algum nvel de re-

    composio envolvido.

    O The Harvard Concise Dictionary of Music and Musicians (1999) define o arranjo na

    msica popular como sendo uma verso especfica da composio. Tratando tambm do ar-

    ranjo na msica popular, o The New Grove Dicitonary of Jazz (1988) define arranjo como

    sendo uma reelaborao ou recomposio de uma obra musical ou parte dela, resultando uma

    nova verso da pea. O Grove of Jazz conclui que a prtica do arranjo na msica popular co-

    bre uma ampla gama de possibilidades, que vo desde criar um simples acompanhamento de

    uma melodia cantada at a mais inventiva re-composio da idia original.

    Samuel Adler, no seu The Study of Orchestration (1989), define arranjo da seguinte

    forma:

    O arranjo envolve em maior grau um processo composicional, pois o materi-

    al pr-existente pode vir a ser apenas uma melodia, ou mesmo parte de uma,

    para qual o arranjador tem que criar uma harmonia, contraponto, e muitas

    vezes at o ritmo, antes mesmo de pensar na orquestrao. (Adler, 1989:

    512)

    A definio de Adler para o arranjo destaca o aspecto composicional do processo cria-

    tivo do msico que trabalha com uma obra pr-existente. O autor prossegue dizendo que a

    palavra arranjo deve ser empregada para caracterizar o processo recomposicional de uma pea

    original. Beatriz Paes Leme, na sua dissertao de mestrado intitulada Guerra Peixe e as 14

    canes do Guia Prtico de Villa Lobos Reflexes acerca da prtica da transcrio (2000)

    concorda com Adler e completa:

    Fazer um arranjo pode envolver tarefas como concepo da forma, harmoni-

    zao, composio de partes auxiliares introdues, intermezzos, coda criao de contracantos, etc, alm, claro da instrumentao e da feitura de

    uma partitura, se isso se faz necessrio. O arranjador, portanto, absorve

    grande parte do trabalho que, no contexto erudito, costuma ser atribuio do

    compositor e desse ponto de vista no exagerado dizer que ele, muitas vezes, complementa o trabalho de composio. (Leme, 1999: 23)

  • 20

    Paulo Arago, discutindo a prtica do arranjo na msica popular na sua dissertao de

    mestrado intitulada Pixinguinha e a gnese do arranjo musical brasileiro (2001), expe al-

    guns aspectos importantes dessa questo. Segundo ele, o reconhecimento de uma instncia

    de representao do original muito complicado, simplesmente porque, na prtica, ao con-

    trrio da msica erudita, no h a partitura e muito menos uma definio exata acerca dos

    elementos que constituem o original de uma obra. Arago completa afirmando que a ausn-

    cia desse documento original tornou o arranjo uma prtica fundamental para a veiculao das

    composies. Desta forma temos uma compreenso da prtica do arranjo como uma forma

    de estruturao de uma obra popular (Arago, 2001: 17).

    Podemos concluir ento que o arranjo criado a partir de um material pr-existente,

    ou seja: a composio original (Boyd, 2000). O arranjador possui liberdade no tratamento do

    material original, trabalhando-o do ponto vista recomposicional (Schuller, 1988). Esse pro-

    cesso composicional (Adler, 1989) tende a gerar uma nova verso especfica, derivada da

    obra original. Resumindo de forma simples e objetiva tudo que discutimos at aqui sobre o

    conceito de arranjo, o regente e arranjador Samuel Kerr vem concluir a nossa discusso com a

    seguinte frase: Quando voc faz um arranjo, voc compe! (Kerr apud Souza, 2003: 158).

    1.2 DA COMPOSIO AO ARRANJO VOCAL - O PAPEL DO ARRANJADOR E DO

    ARRANJADOR VOCAL NA CANO POPULAR BRASILEIRA

    Ao iniciarmos uma discusso sobre a funo do arranjo na msica popular brasileira,

    algumas questes surgem sobre a relao existente entre composio e arranjo, como por

    exemplo: Qual o limite entre uma composio original e a nova obra derivada com

    interveno de um arranjador? Segundo a Lei dos Direitos Autorais: So obras intelectuais as

    adaptaes, tradues e outras transformaes de obras originrias, desde que, previamente

    autorizadas e no lhes causando dano, se apresentarem como criao intelectual nova (LDA,

    artigo sexto). O artigo oitavo desta mesma lei ressalva: titular de direitos de autor quem

    adapta, traduz, arranja ou orquestra obra cada no domnio pblico; todavia no pode, quem

    assim age, opor-se a outra adaptao, arranjo, orquestrao ou traduo, salvo se for cpia da

    sua (LDA, artigo oitavo).

  • 21

    Mrio de Andrade no seu livro Introduo Esttica Musical (1995) entende a msica

    como o encadeamento de quatro instncias. Segundo o autor seriam elas: (1) criador, (2) obra

    de arte, (3) intrprete, (4) ouvinte. Observemos a tabela abaixo:

    Instncias

    primeira segunda terceira quarta

    criador obra de arte

    (texto escrito)

    intrprete

    (texto sonoro)

    ouvinte

    Quadro 1 Proposta de Mrio de Andrade

    Devemos ressalvar que Andrade est se referindo realidade musical erudita2,

    ambiente no qual foi desenvolvido o trabalho do autor. Todavia, na msica popular3 esta

    relao se d de forma diferente. Segundo Neil Teixeira na sua dissertao de mestrado

    intitulada Os Cariocas - repertrio do perodo entre 1946 e 1956: enquanto, em geral, no

    meio erudito a obra de arte j sai pronta para o intrprete, no meio popular a presena de uma

    quinta instncia necessria para algumas obras, a do arranjador (Teixeira, 2007: 139).

    inegvel que uma obra como o Prlude l'aprs-midi d'un Faune de Debussy, se interpretada

    por orquestras distintas, ou mesmo se executada pelo mesmo grupo conduzido por regentes

    diferentes, apresentar resultados mpares. Podemos citar como exemplo a interpretao da

    Sagrao da Primavera de Stravinsky pela Filarmnica de Berlim, sob a direo do maestro

    Herbert Von Karajan. Nota-se em alguns trechos da obra a presena de uma pulsao rpida,

    intensa e enrgica, como no movimento presto Jeu du rapt. Ao compararmos com a execuo

    de Pierre Boulez frente da Orquestra da Rdio Nacional Francesa, notvel a diferena de

    andamento e carter, pois o mesmo trecho aparece aqui mais lento e menos enrgico. De

    qualquer forma, nenhuma das duas interpretaes compromete o reconhecimento da obra em

    questo pelo ouvinte. Flvio Barbeitas, em um artigo escrito para o peridico Permusi,

    intitulado Reflexes sobre a transcrio musical: as suas relaes com a interpretao na

    msica e na poesia, define a relao entre obra e autor na msica popular da seguinte forma:

    A contribuio do autor cessa com o nascimento da obra. Permanecem, porm, a

    2 O termo msica erudita ser encarado aqui tal como o de msica escrita, ou seja, definitivamente aquela

    concebida no ato da escrita. Diferentemente de outras prticas escriturais, que empregam alguns recursos de

    notao apenas para transmisso e registro. 3 A expresso msica popular ser utilizada neste trabalho para se referir as canes populares autorais, que se

    tornaram conhecidas atravs do lanamento no mercado fonogrfico. Obtendo ou no exito comercial.

  • 22

    flexibilidade e a multiplicidade desta, em razo da infinidade das leituras e interpretaes que

    ser sempre capaz de despertar (Barbeitas, 2000: 93).

    Segundo nos relata Teixeira (2007), quando a dupla de compositores Haroldo Barbosa

    e Geraldo Jacques criaram a msica Tim tim por tim tim, sucesso na interpretao de Os

    Cariocas, o fizeram de forma sucinta, pensando da seguinte maneira: a msica comea aqui,

    termina ali, os acordes so esses, a letra assim, e em ritmo de samba. Geralmente assim

    que acontece na msica popular, o autor escreve a letra, cria a melodia, escolhe um gnero e,

    s vezes, organiza a harmonia do acompanhamento. Esta , em essncia, a sua obra de arte, e

    ser sua independentemente de adaptaes que sejam feitas posteriormente.

    Ao ouvirmos o arranjo vocal que Ismael Netto produziu do samba Tim tim por tim tim

    para Os Cariocas, percebemos a presena de uma introduo, segundo Teixeira, obviamente

    anterior primeira nota dada pela dupla de autores: um corte profundo na obra. O incio

    foi modificado (Teixeira, 2007: 140). Quando ouvimos uma interpretao qualquer do

    movimento intitulado Vnus da sute orquestral Os Planetas de Gustav Holst,

    independentemente da orquestra que esteja executando a obra, vamos ouvir a entrada em

    piano do naipe de trompas, para em seguida ouvir o contraponto que se estabelece entre este

    naipe e as flautas. No entanto, ao ouvirmos de Barbosa e Jacques a cano Adeus Amrica na

    interpretao da cantora Leny Andrade, ouviremos a introduo composta pelo seu trio, o B3,

    e no a introduo presente no arranjo criado por Ismael Netto para Os Cariocas. Isso vem

    demonstrar que na msica popular brasileira diferentes interpretaes da mesma cano

    inspiram novos arranjos.

    Ao ouvirmos uma nova interpretao de uma obra erudita j conhecida, no teremos

    grandes surpresas com relao a aspectos como, textura, harmonia e forma. As surpresas sero

    de outra espcie, como interpretao, solistas etc. Em vez disso na msica popular a

    expectativa que se nutre praticamente inversa. Aspira-se, a cada interpretao, a uma

    releitura, uma verso nova, ou seja, a um novo arranjo. Se analisarmos a sugesto proposta

    anteriormente por Mrio de Andrade, buscando adapt-la realidade da msica popular

    brasileira, teramos que acrescentar, de acordo com Teixeira (2007), mais uma instncia, a do

    arranjador. Contudo, nesse momento surgem outras questes, dentre as quais destacamos a

    seguinte: Em que momento da cadeia de produo seria inserido o arranjador?

    Excetuando-se os casos onde o prprio compositor seja o responsvel pelo arranjo, e o

    tenha criado concomitantemente a obra (aproximando-se assim, da prtica erudita), a posio

  • 23

    mais plausvel para a insero do arranjador dentro da proposta andradeana seria entre a obra

    e o intrprete, ficando as instncias dispostas da seguinte maneira:

    Instncias

    primeira Segunda terceira quarta quinta sexta

    criador obra de arte

    (texto sonoro)

    arranjador obra de arte

    (texto escrito)

    intrprete

    (texto sonoro)

    ouvinte

    Quadro 2 Proposta de Andrade adaptada msica popular

    Dessa forma, percebemos que o papel do arranjador na msica popular est bastante

    voltado para a performance. Este msico , junto aos intrpretes, co-responsvel pela criao

    de uma nova identidade para a obra. Como vimos, o arranjo essencial para a vinculao das

    canes populares no mercado fonogrfico.

    Vejamos agora um esquema proposto por Franois Delalande (1991). A tabela abaixo

    ilustrar a proposta do autor:

    Instncias

    compositor partitura

    (texto escrito)

    Intrprete performance

    (texto sonoro)

    ouvinte

    Quadro 3 Proposta de Delalande

    Como podemos observar o esquema proposto por Delalande se assemelha muito ao de

    Andrade, e perfeitamente aplicvel ao meio de produo da msica erudita. Se adaptarmos

    este esquema ao processo de produo da msica popular brasileira, como fizemos em

    Andrade, devemos lembrar que, no caso da msica popular, o compositor em geral apresenta

    uma gravao (um texto sonoro) de sua criao, quando no a apresenta em performance

    pessoal. J o arranjador geralmente escreve o arranjo, ou seja, a partitura s opcional se o

    arranjo for exclusivamente mecnico (eletrnico) ou se o prprio arranjador o executar em

    gravao. Neste caso ele se transforma num intrprete, mais do que qualquer outra coisa.

    Contudo, mais usual, mas no regra, que o arranjador produza uma partitura (mais ou

  • 24

    menos completa) como resultado do seu trabalho, ou seja, um texto escrito. Os executantes

    produzem a partir disso um segundo texto sonoro, que pode ou no ser gravado. Vejamos

    agora a tabela:

    Instncias

    compositor

    primeiro

    texto sonoro

    arranjador

    primeiro

    texto escrito

    intrprete

    segundo

    texto sonoro

    ouvinte

    Fig. 4 Proposta de Delalande adaptada msica popular

    1.2.1 O Arranjador vocal de cano popular brasileira

    Na msica coral o arranjo fundamental para a execuo das canes populares pelos

    coros ou grupos vocais. Ricardo Szpilman chama a ateno, em sua dissertao de mestrado

    intitulada Repertrio para Corais Iniciantes (2005), para a distino entre dois tipos de

    arranjos vocais baseados em canes populares brasileiras. O primeiro, segundo ele, apresenta

    aspectos muito prximos a um material original, que na maioria das vezes uma gravao

    que se tornou famosa. o caso, por exemplo, do arranjo vocal de Marcos Leite para o samba

    Lata Dgua da dupla Luis Antonio e Jota Junior. Leite escreveu este arranjo inspirado em

    uma gravao feita pela cantora Marlene, em 1951 (Carvalho, 2007). O segundo tipo busca

    fugir do modelo original, apenas respeitando, o mximo possvel, a melodia principal, muito

    embora possa at vir a modific-la em alguns aspectos. Um bom exemplo desse tipo de

    arranjo vocal o de Algum Cantando, arranjada tambm por Marcos Leite. Neste arranjo,

    Leite transforma a cano intimista de Caetano Veloso em um quase madrigal renascentista

    ingls, com o uso intenso do contraponto. Segundo Szpilman, os arranjos vocais de msica

    popular brasileira tendem descaracterizao, quando fogem demais da proposta original da

    cano concebida pelo compositor. O prprio Marcos Leite reconheceu isso, ao abandonar

    essa esttica utilizada em Algum Cantando em seus arranjos posteriores.

    Ao inserir o arranjador vocal no esquema de produo da msica popular brasileira,

    vamos considerar o primeiro tipo de arranjo citado por Szpilman (2005). De acordo com o

    que nos relata Andr Protsio na sua dissertao de mestrado intitulada Arranjo vocal de

    msica popular brasileira para coro a capella (2006):

  • 25

    [...] o I e II Curso de Grupos Vocais promovido pelo Rio a Cappella (Janeiro

    de 2002 e junho de 2004) reuniu 6 arranjadores que produziram para o

    evento doze arranjos vocais inditos (dois para cada arranjador). Tive

    [Protsio] a honra de ser um dos arranjadores convidados entre outros

    talentosos colegas: Maurcio Maestro, Zeca Rodrigues, Fernando Ariani,

    Eduardo Lakschevitz e Deco Fiori. Alm da preparao e execuo pblica

    deste arranjos, o curso contava com palestras dos arranjadores intituladas: o

    arranjador e sua obra. Foi interessante notar que todos os arranjadores

    citavam na palestra ou no ensaios, uma gravao de referncia. (Protsio,

    2006: 38)

    O arranjo original, presente na gravao de referncia, muitas vezes est marcado por

    idias musicais relevantes, que podem influenciar de forma significativa o processo de

    recriao da obra pelo arranjador vocal. Seguindo a cadeia, o coro ou grupo vocal interpreta a

    partitura vocal, resultando ou no em uma gravao deste arranjo. Independentemente do

    meio, seja ele gravao ou performance ao vivo, chamaremos esta instncia de terceiro texto

    sonoro, e na recepo deste que o ouvinte fecha o ciclo. Ficam dispostas as instncias da

    seguinte maneira:

    Instncias

    autor

    primeiro

    texto sonoro

    arranjador

    primeiro

    texto escrito

    intrprete

    segundo

    texto sonoro

    arranjador

    vocal

    segundo

    texto escrito

    coro ou

    grupo vocal

    terceiro

    texto sonoro

    ouvinte

    Quadro 5 Esquema proposto com a insero do arranjador vocal

    Gostaramos de enfatizar que esta uma das possibilidades que se apresentam.

    Optamos por este esquema por considerarmos que representa uma prtica bastante recorrente

    entre os arranjadores vocais da atualidade. As interpolaes entre as instncias podem

    acontecer de diversas formas, e outros esquemas podem ser pensados. Na msica popular

    brasileira podemos encontrar situaes em que o compositor acumula mais de uma funo,

    como era o caso de Dorival Caymmi, que era compositor e intrprete de sua prpria obra. Ou

    de Tom Jobim, que muitas vezes acumulava as funes de compositor, arranjador e intrprete

    de suas canes. Nestes casos, os esquemas podem mudar sensivelmente, pois concentram

    mais de uma instncia em um nico sujeito. Tomemos como exemplo o CD Serenade do

    msico mineiro Toninho Horta. Neste registro gravado ao vivo na Coria, Toninho canta suas

    canes acompanhado apenas por seu violo. Aqui, o msico compositor, arranjador e

    intrprete, ao mesmo tempo. Mantendo coerncia com o que foi apresentado antes,

  • 26

    consideramos o resultado desta interpretao do violonista como segundo texto sonoro, tendo

    em vista que as msicas j haviam sido gravadas anteriormente pelo prprio Toninho Horta

    em outros discos, e que estas verses acsticas se estabelecem como arranjos das gravaes

    anteriores. Vejamos abaixo como se organiza este esquema com a entrada do arranjador vocal:

    Instncias

    compositor,

    arranjador e

    intrprete

    segundo

    texto sonoro

    arranjador

    vocal

    segundo

    texto escrito

    coro ou gru-

    po vocal terceiro texto

    sonoro

    ouvinte

    Quadro 6 Outro esquema possvel

    Marcos Leite cita tambm a possibilidade de o arranjador vocal aproveitar idias

    provindas de gravaes diferentes da mesma msica (Leite apud Carvalho, 2007). Zeca

    Rodrigues, arranjador vocal atuante no cenrio carioca, concorda com Leite, e comenta que

    ouvir vrias verses (gravaes) da mesma msica antes de fazer o arranjo um hbito4.

    Protsio (2006) partilha da opinio de Leite e Rodrigues, e cita como exemplo o arranjo coral

    de Damiano Cozzella para a Sute dos Pescadores de Dorival Caymmi. Segundo o autor, na

    poca em que Cozzella escreveu este arranjo existiam trs gravaes da obra. Protsio afirma

    ter encontrado idias musicais provindas destas gravaes, durante a anlise da partitura coral

    de Cozzella.

    Podemos concluir com base no que foi apresentado, que o papel do arranjador na

    msica popular brasileira de suma importncia, considerando que esse msico o

    responsvel pela criao da verso final, ou seja, do arranjo com o qual a cano se tornar

    pblica atravs do mercado fonogrfico. por sobre esse arranjo que o arranjador vocal ir

    retrabalhar a cano, ao compor um novo arranjo derivado do primeiro, porm, inserido em

    um novo meio.

    Tendo compreendido como se d a prtica do arranjador na MPB, seguiremos

    discutindo outros tantos conceitos essenciais compreenso das anlises dos arranjos vocais,

    conceitos estes ligados diretamente a elaborao das peas. Iremos discutir esses conceitos

    enfatizando sua importncia no contexto da pesquisa e justificaremos a delimitao funcional

    que estamos dando a estes termos. Salientaremos a questo da esttica tipicamente

    4 Comunicao pessoal, fevereiro de 2008.

  • 27

    homofnica e instrumental aplicada ao arranjo vocal de MPB, identificada em arranjos como

    Luar do Serto, ltimo Beijo e Lata dgua.

    1.3 A TEXTURA NO ARRANJO VOCAL

    Iniciaremos este ltimo tpico do capitulo precisando o conceito de textura. Segundo

    o Dicionrio Grove de Msica (1994), textura o termo usado para se referir ao aspecto

    vertical de uma estrutura musical, geralmente em relao maneira como partes ou vozes

    isoladas so combinadas. Wallace Berry no seu livro Structural Functions in Music (1987)

    complementa a definio encontrada no Grove. Segundo o autor:

    Textura concebida como aquele elemento da estrutura musical,

    determinado pela voz ou nmero de vozes e demais componentes que

    projetam os materiais musicais no meio sonoro e (quando h dois ou mais

    componentes), pelas inter-relaes e interaes entre eles. (Berry, 1987:

    191)

    A definio apresentada por Berry ir nortear o conceito de textura utilizado ao longo

    dessa dissertao. Como veremos em breve nas anlises propostas, a textura homofnica

    uma das principais caractersticas do arranjo vocal de MPB. Marcos Lucas na sua dissertao

    de mestrado intitulada Textura na Msica do Sculo XX (1995) define homofonia da

    seguinte maneira:

    O termo homofonia denota a condio textural onde as diversas vozes ou partes mantm entre si uma relao de extrema interdependncia. Porm,

    sua conotao mais habitual a de uma textura na qual uma voz principal se

    destaca (melodia) acompanhada por um grupo de dois ou mais sons (dades,

    trades etc.) subordinados, e que mantm entre si relativa interdependncia.

    Este acompanhamento pode ou no interagir com a melodia principal, e, da

    mesma forma o grau de coeso entre seus componentes pode variar, sendo

    este fator certamente um trao caracterstico na distino de diferentes

    gneros e estilos. (Lucas, 1995: 59)

    O autor cita na textura homofnica a presena de dois extratos: a voz principal, que a

    partir de agora chamaremos de melodia principal, e o acompanhamento. Destacando ainda a

  • 28

    relao de interdependncia entre as partes, ao comentar o carter de subordinao, onde a

    melodia se destaca do acompanhamento, fator caracterstico dessa textura. Sendo assim

    estudaremos as tcnicas de arranjo divididas em duas categorias: as tcnicas aplicveis a

    melodia principal, e as aplicadas ao acompanhamento.

    1.3.1 Texturas aplicadas melodia principal

    A melodia principal pode aparecer no arranjo vocal de trs formas: solo, unssono, ou

    harmonizada em bloco. O solo acontece quando apenas uma voz (ou naipe) canta a melodia

    principal. Um bom exemplo dessa textura pode ser observado no incio do arranjo vocal de

    Marcos Leite para cano Lua, lua, lua, lua de Caetano Veloso. Neste exemplo o naipe de

    sopranos canta a melodia principal em solo, enquanto as outras vozes fazem o

    acompanhamento.

    Fig.1 Lua, lua, lua, lua, arranjo vocal de Marcos Leite

    J o unssono acontece quando duas ou mais vozes cantam a melodia principal. O

    unssono tem uso bastante recorrente quando se quer enfatizar um determinado trecho do

    texto, ou quando se deseja obter contrastes texturais com trechos da melodia harmonizados

    em bloco. Zeca Rodrigues, discorrendo sobre o uso do unssono no arranjo vocal, vem

    reforar o que foi comentado:

  • 29

    Ele [o unssono], alm de ser super importante em termos de unificao e

    maturidade no som de um grupo vocal, tambm pode ser usado para

    contrastar com as partes abertas do arranjo ou mesmo estar presente onde no haja necessidade de harmonia. Uma das utilizaes mais comuns nos

    anacruses das melodias. Nada melhor para um arranjo capella do que

    comear em unssono. (Rodrigues, 2008: 19)

    Vejamos um trecho do arranjo de Andr Protsio para a cano Vera Cruz de Milton

    Nascimento e Mrcio Borges. Neste exemplo o arranjador demonstra que est de acordo com

    as idias de Rodrigues, quando inicia seu arranjo com todas as vozes cantando a melodia

    principal em unssono.

    Fig. 2 Arranjo vocal de Andr Protsio para a cano Vera Cruz

    A ltima tcnica possvel de ser empregada na melodia principal a harmonizao em

    bloco, que de agora em diante, chamaremos de soli, termo de origem italiana que significa o

    plural de solo, ou seja, solos. Acontece quando duas ou mais vozes solam com a melodia

    principal, entretanto, diferentemente do unssono, mantendo relaes intervalares

    diferenciadas. Esta uma tcnica de escrita muito comum nos arranjos vocais da cano

    popular brasileira. Segundo Ian Guest (1996), no seu manual de arranjo, os termos soli ou

    bloco podem ser empregados quando duas ou mais vozes executam melodias diferentes em

    ritmo igual. Carlos Almada tambm aborda essa tcnica no seu livro sobre arranjo (2000).

    Segundo este autor:

  • 30

    A tcnica de Soli (tambm conhecida por escrita em bloco) , sem dvida, a mais bem documentada de todo o estudo do arranjo. Apesar de, ao menos

    em tese, poder ser aplicada a naipes de quaisquer classes de instrumentos,

    muito mais apropriada aos sopros. [...] O arranjo para vozes humanas

    tambm utiliza freqentemente o Soli como um excelente meio expressivo,

    como podemos constatar nos trabalhos de grupos como os americanos The

    Swingle Singers L.A Voices e The Manhattan Transfers. (Almada, 2000:

    133)

    Sobre o soli na msica popular, Almada considera que:

    [...] a total transformao naquilo que hoje conhecemos por soli s

    aconteceria mesmo nas orquestras de jazz norte-americanas, nas quais a

    escrita coral para sopros j consagrada na msica do Romantismo (sculo XIX) e ensinada nas classes de composio foi adaptada, desta vez ao ritmo sincopado, harmonia e melodia peculiares do estilo. Foi a partir da

    que surgiu a, digamos assim, regulamentao desta tcnica. (Almada, 2000: 133)

    Existem muitas maneiras de se harmonizar uma melodia em soli5. Um estudo

    aprofundado desta tcnica no ser possvel neste trabalho, pois desviaria o foco principal

    desta etapa da pesquisa, que o de investigar as principais tcnicas de arranjo presentes no

    arranjo vocal da cano popular brasileira. Contundo, podemos destacar dois tipos mais

    comuns de soli na escrita dos arranjadores vocais brasileiros. O primeiro tipo seria o soli com

    predomnio do movimento direto entre as vozes. Protsio (2006) comenta que essa textura

    destaca a melodia e d leveza ao arranjo. O autor completa relatando que esse tipo de soli

    encontrado com mais frequncia nos arranjos vocais mais modernos. Discordamos do autor,

    pois como ser observado nas anlises que viro essa textura j encontrada nos arranjos

    vocais de Os Cariocas, mostrando-se at mesmo uma caracterstica do idioma do grupo. Ao

    aprofundarmos a questo, observamos que de Cozzella para c os arranjadores vocais

    provinham de dois ambientes diferentes. O primeiro grupo, de formao erudita, como

    Samuel Kerr e Yara Campos, devido ao intenso contato com a tradio coral erudita, de

    textura tipicamente polifnica, desenvolveram uma escrita que privilegia a independncia das

    vozes, caracterizado pelo movimento contrrio e oblquo entre as vozes. O prprio Kerr

    admite isso:

    5 Para um estudo mais aprofundado da tcnica de soli, recomendo as seguintes publicaes:

    ALMADA, Carlos. Arranjo. Campinas: Ed. Unicamp, 2000.

    GUEST, Ian. Arranjo: volumes 1,2 e 3. Rio de Janeiro. Ed. Lumiar, 1996.

  • 31

    Quando eu era regente a Santa Casa, um dia resolvi que precisava escolher

    uma msica popular e experimentar fazer um arranjo, pois eu tinha muito

    escrpulo, achava que no sabia nada de msica popular, e que transcreveria para coro o espirito a msica popular. Eu acho isso at hoje:

    acho que fico fazendo Palestrina, Lassus, sei l... (Kerr apud Souza, 2003: 158)

    J o outro grupo, de arranjadores de formao popular, como Marcos Leite e Vicente

    Ribeiro, possuem preferncia pela movimentao direta entre as vozes, por essa, estar mais

    prxima da realizao textural de arranjos instrumentais de cano popular. Sandra de Souza,

    na sua dissertao de mestrado intitulada O arranjo coral de msica popular brasileira e sua

    utilizao como elemento de educao musical (2003) concorda conosco. Segundo a autora:

    No caso de Kerr e Campos, suas opes por determinados procedimentos de

    escrita, como a preferncia pelo contraponto, por exemplo, se justifica pela

    experincia musical de ambos, ligada ao canto coral de tradio polifnica.

    Por outro lado, a homofonia e o uso da harmonia em bloco se fazem

    presentes nos procedimentos escolhidos pelos arranjadores que tiveram sua

    formao musical ligada a musica popular. (Souza, 2003: 67)

    Vejamos um trecho da cano Garota de Ipanema de Tom e Vincius, arranjada por

    Zeca Rodrigues. Aqui as vozes se movimentam paralelamente melodia principal, que se

    encontra no naipe de sopranos.

    Fig. 3 Arranjo de Zeca Rodrigues para Garota de Ipanema

    O segundo tipo de soli, como j deve ter ficado subentendido durante a discusso

    anterior, aquele que emprega predominantemente movimentos indiretos, ou seja, contrrios

  • 32

    e oblquos. Observemos dois trechos do arranjo de Cozzella para o samba de Ary Barroso Pr

    Machucar meu Corao. Este um bom exemplo de arranjador, assim como Kerr e Yara, que

    tambm foi influenciado pela msica coral erudita.

    Fig. 4 Dois trechos do arranjo de Cozzella

    1.3.2 Texturas aplicadas ao acompanhamento

    Passemos agora a discusso das tcnicas aplicadas ao acompanhamento. Almada

    (2000) usa o termo background ou BG para se referir ao extrato da textura que acompanha a

    melodia principal. O autor define background da seguinte forma:

    O termo background (em ingls, segundo plano) muito empregado no jargo musical para designar, a grosso modo, tudo aquilo que, numa

    determinada pea, ocorre entre o Solista (o foco principal, ou primeiro

    plano) e a base rtmica (que seria ento o terceiro plano). Poderamos

    tambm chamar de acompanhamento, embora este termo seja por demais

    abrangente, podendo designar, como sabemos, at o que fazem os prprios

    instrumentos de base. (Almada, 2000: 281)

    Ian Guest (1996) no adota o termo background. Para o autor o que no melodia

    principal, na textura, contracanto. Guest define contracanto da seguinte maneira:

    Contracanto ou contraponto uma melodia que soa bem (combina) com um canto dado

    (Guest, 1996: 95). Nas anlises preferimos adotar a terminologia utilizada por Almada, no

    que se referir ao acompanhamento. Essa escolha se justifica por estarmos trabalhando com

    uma textura predominantemente homofnica, e nesse caso o conceito de background nos

  • 33

    parece mais coerente, j que o termo contracanto empregado por Guest suscitaria texturas

    polifnicas.

    De acordo com Almada, existem trs tipos de backgrounds: meldico, harmnico, e

    rtmico. Essa definio do autor vai ao encontro de Guest, quando este comenta que so trs

    os tipos de contracantos. Para o autor, existem os contracantos ativos, passivos, e percussivos.

    Almada comenta que o background meldico pode ser definido como aquele em que a

    melodia principal acompanhada por outra que lhe subordinada nos aspectos intervalar,

    rtmico e motvico. Guest denomina essa textura de contracanto ativo. Segundo o autor:

    O contracanto normalmente livre, com idias rtmicas independentes do

    canto, podendo se movimentar quando o canto est parado ou passivo, ou

    reforar os ataques do canto ou, ainda, reforar ataques rtmicos onde o

    canto no o faz. H contracantos que, na memria popular, se tornam parte

    inseparvel na melodia principal. (Guest, 1996: 110)

    Como vimos, Guest e Almada discorrem sobre as mesmas estruturas, entretanto,

    fazem uso de terminologias diferentes. J Protsio (2006) usa uma terminologia prxima a de

    Guest, o autor define contracanto livre da seguinte forma:

    [...] um contracanto que caminha junto com a melodia mas no briga com ela. Normalmente escrito num ritmo contrastante, ou seja, se a

    melodia tem um ritmo muito ativo, o contracanto tem notas longas, e vice-

    versa. prefervel usar notas guias e tenses neste tipo de contracanto.

    (Protsio, 2006: 27)

    Vejamos agora um exemplo de background meldico, encontrado no arranjo vocal de

    Vera Cruz escrito por Andr Protsio. Neste trecho os tenores cantam a melodia principal,

    enquanto as sopranos executam o BG meldico.

    Fig. 5 Background meldico

  • 34

    Protsio ainda discorrendo sobre o contracanto completa: O contracanto uma

    ferramenta poderosa nos arranjos vocais. Com ela podemos dar uma nova cara msica. a

    partir desta tcnica que o arranjador comea a criar melodias que podem definir a forma geral

    do arranjo (Protsio, 2006: 27). O autor aborda vrios tipos de contracantos e ressalta que os

    principais seriam o contracanto livre e o contracanto em forma de pergunta e resposta.

    Protsio define este ltimo da seguinte forma:

    [] como o prprio nome diz, responde a melodia principal. Este contracanto repousa onde a melodia principal est mais ativa e vice-versa.

    Pode imitar a melodia ou invert-la mas o mais importante que o

    contracanto se estabelea, que seja to regular quanto melodia principal.

    (Protsio, 2006b: 27)

    Vejamos agora um exemplo de contracanto em formato pergunta e resposta, presente

    na introduo do arranjo vocal de Andr Protsio para a cano de Lenine Que baque esse?

    Neste trecho do arranjo as vozes femininas em unssono cantam uma figurao, sendo

    respondidas pelas vozes masculinas tambm em unssono. Esta tcnica tambm muito til

    em finais de frase, onde a melodia principal repousa e o acompanhamento executa o

    contracanto auxiliando na manuteno do fluxo da musical.

    Fig. 6 Contracanto em formato pergunta e resposta

    Seguiremos agora comentando o background harmnico. Este normalmente

    constitudo por acordes sustentados por notas longas, se presta muito bem para acompanhar

    naipes ou vozes solistas e usado, grosso modo, em andamentos lentos e moderados. Protsio

    (2006) chama esta tcnica de cama harmnica. O autor na sua apostila de arranjo vocal

  • 35

    discorre sobre essa textura. Segundo ele: Se o interesse acompanhar uma melodia, o mais

    importante dar uma boa estrutura harmnica, sendo o mais discreto possvel. [...] esta a

    textura que talvez melhor represente o movimento oblquo entre as vozes. (Protsio, 2006b:

    25). Almada concorda com Protsio e refora o que j expomos: No regra, mas de uma

    forma geral, trata-se quase sempre de um acompanhamento essencialmente harmnico, em

    notas longas, espaamento aberto, prprio para andamentos medianos e lentos (Almada,

    2000: 289).

    Segundo Almada, nem sempre o background harmnico precisa estar abaixo do

    solista: dependendo da tessitura deste ltimo, o acompanhamento pode envolv-lo ou mesmo

    posicionar-se numa regio mais aguda. O autor completa: Dificilmente os BG's harmnicos

    so escritos em soli [...]. Tem mais a ver com a linguagem linhas que, embora formem os

    acordes quando combinadas, possuam certa independncia meldica em relao s outras

    (Almada, 2000: 289). O autor refora o argumento: Embora temos visto que BG's meldicos

    podem tambm aparecer em soli, caracteriza-se como BG harmnico todo aquele constitudo

    pelo que se costuma chamar de acordes de sustentao (no jargo musical, esse tipo de BG

    conhecido por cama) (Ibid: 289). Para Guest (1996) essa tcnica chama-se contracanto

    passivo harmonizado em bloco. Segundo o autor:

    Ouvimos falar freqentemente de uma cortina harmnica por trs da melodia principal. Mas conduzir por si s no basta. A boa cortina

    harmnica um contracanto passivo harmonizado em bloco. Primeiro, cria-

    se um contracanto melodioso; depois, esse contracanto deve ser elaborado

    em bloco. O fato de o contracanto ser passivo ou de pouca mobilidade no

    diminui sua fora meldica. Sua elaborao em bloco resulta em cortina harmnica forte e vigorosa, por ser encabeada por uma melodia previamente criada. (Guest, 1996: 119)

    Como vimos Guest pensa diferentemente de Almada quando desconsidera um

    acompanhamento essencialmente harmnico, construdo com linhas independentes. Para o

    autor o BG harmnico deve basear-se em um contracanto passivo, ou seja, de pouca

    movimentao rtmica, harmonizado em soli. Acreditamos que ambas as possibilidades so

    empregveis, todavia, na atualidade, encontramos com maior freqncia o BG harmnico nos

    moldes citados por Guest. Vejamos abaixo dois exemplos. O primeiro um BG harmnico no

    formato citado por Almada. O segundo, um BG harmnico como descrito por Guest.

  • 36

    Fig. 7 - BG harmnico encontrado no arranjo vocal de Lua, Lua, Lua, Lua

    Fig. 8 BG harmnico presente no arranjo de Rogrio Carvalho para Casinha Pequenina

    Vamos comentar agora o background rtmico, uma textura muito usual no arranjo

    vocal de cano popular brasileira, tendo em vista a sua excelente aplicao devido riqueza

    rtmica da nossa msica popular. Almada (2000) considera: aquele usado quando se deseja

    dar melodia principal um acompanhamento mais movimentado, percussivo, quase sempre

    enfatizando ritmicamente o estilo musical e o carter da passagem (Almada, 2000: 291).

    Protsio aborda esta tcnica de forma aprofundada na sua apostila de arranjo vocal, na qual

    denomina essa textura de Estruturas Rtmicas. Segundo o autor:

  • 37

    Muitos grupos vocais americanos trabalham como vocal band, imitando instrumentos e quase que transcrevendo os arranjos instrumentais para o

    vocal. Em determinadas msicas, esse tipo de textura, um solo

    acompanhado por instrumentos, mantm a leveza e o swingue e faz com que a msica vocal fique mais prxima da msica popular original. claro

    que alguns arranjadores brasileiros, aproveitando da riqueza rtmica da nossa

    MPB, j escreveram vrios arranjos com esta textura e hoje temos bom

    repertrio de sambas, maxixes, frevos, afoxs etc. (Protsio, 2006b: 24)

    J Guest denomina esta textura de fundo percussivo. Segundo o autor: ... uma

    especie de ostinato (=obstinado, do italiano) rtmico ou frase rtmica que se repete

    obstinadamente, enriquecendo a pulsao natural da melodia (Guest, 1996: 122). Ele

    completa: Para obter peso e o ataque necessrios ao som percussivo, os instrumentos (vozes)

    trabalham em unssono ou em bloco (Ibid, 1996: 122). Vejamos agora um exemplo extrado

    do arranjo vocal de Marcos Leite para a cano Asa Branca de Luiz Gonzaga e Humberto

    Teixeira. Neste trecho as vozes masculinas executam uma clula rtmica caracterstica do

    gnero Baio, enquanto as vozes femininas cantam a melodia principal em unssono.

    Fig. 9 BG rtmico simples

    Aqui fica ilustrado um uso simples da tcnica de BG rtmico, nos moldes descritos por

    Guest. Observemos outro exemplo desta textura, desta vez no estilo vocal band, descrito

    anteriormente por Protsio (2006). O arranjo de Zeca Rodrigues para a cano Vamos Fugir

    de Gilberto Gil. Neste arranjo o aspecto instrumental bastante valorizado. O naipe de baixos

    canta uma linha meldica, inspirado no groove caracterstico do contrabaixo eltrico no

    gnero reggae, enquanto as vozes femininas articulam uma clula rtmica que simula a

    levada de uma guitarra neste mesmo gnero africano. A melodia principal encontra-se com

  • 38

    os tenores. Segundo o prprio Rodrigues (2008) neste tipo de acompanhamento de inteno

    instrumental, o canto tradicional se torna menos importante, e d lugar a um trabalho de

    pesquisa de timbres e imitao de instrumentos tpicos de cada gnero.

    Fig. 10 BG rtmico no estilo Vocal Band.

    Os autores Rodrigues e Protsio concordam que para se escrever arranjos vocais

    utilizando-se desta tcnica, fazem-se necessrias pesquisas que levantem dados caractersticos

    sobre cada gnero musical que se deseje arranjar e seus contedos de linguagem. Segundo

    Rodrigues: No se pode escrever um arranjo de um samba sem se conhecer samba, e como

    atuam esses instrumentos dentro dessa msica (Rodrigues, 2008: 11). Protsio (2006)

    enfatiza a importncia de ouvir o arranjo instrumental e dissec-lo a ponto de se entender a

    funo rtmica de cada instrumento dentro do arranjo. O autor acrescenta e finaliza a

    discusso sobre essa textura:

    Existem vrias maneiras de fazer uma estrutura rtmica (BG rtmico). Uma

    delas, e talvez a mais usada, separar esta base vocale duas funes rtmicas diferentes: o naipe dos baixos fica com um funo similar ao baixo

    instrumental e as outras vozes (S, C e T) fazem uma outra sesso rtmica.

    [...] Uma boa dica definir a linha do baixo, analisar a melodia e preencher

    a harmonia com um soli a trs ou duas vozes nos naipes que esto fazendo o

    acompanhamento. (Protsio, 2006b: 37)

    Com intuito de resumir e ilustrar as texturas mais encontradas no arranjo vocal de

    cano popular brasileira, apresentamos a tabela abaixo com as principais combinaes entre

    melodia principal e background. Devemos acrescentar que qualquer um dos unssonos

  • 39

    tambm pode ser um solo, tendo em vista, claro, o devido cuidado em equilibrar os naipes

    na hora da escrita, com o uso de dinmicas diferenciadas de acordo com o grau de

    importncia e funo de cada naipe ou extrato da textura.

    Melodia principal BG (background)

    Unssono unssono (meldico ou rtmico)

    Soli unssono (meldico ou rtmico)

    Unssono soli (meldico, harmnico ou rtmico)

    Soli soli (meldico, harmnico ou rtmico)

    Quadro 7 Quadro de combinaes texturais

    Tendo em vista a reviso terminolgica empreendida, bem como a apresentao dos

    conceitos tais como sero entendidos no presente estudo, podemos passar apreciao do

    processo de constituio de uma esttica do arranjo de cano popular brasileira, a partir do

    que sero enfocados e analisados alguns dos arranjos vocais que julgamos mais

    representativos para essa pesquisa. Algumas tcnicas especficas de escrita para vozes que

    no foram enfocadas neste captulo sero discutidas e conceitualizadas quando das anlises

    dos trechos em questo. Optamos por no inclu-las aqui por julgarmos pouco recorrentes,

    sendo consideradas caractersticas singulares de cada arranjador, mais do que um aspecto

    comum do arranjo de cano popular brasileira, como acontece com as outras tcnicas acima

    abordadas.

    Neste captulo definimos o conceito de arranjo a ser adotado no presente trabalho.

    Examinamos como se d a prtica do arranjador na msica popular brasileira e estudamos a

    textura como ferramenta analtica e composicional na escrita dos arranjos vocais de cano

    popular brasileira. A partir desses conhecimentos e ferramentas, poderemos dar incio ao

    estudo que se segue.

  • 40

    Captulo 2

    VILLA-LOBOS E OS CARIOCAS

    Este captulo pretende destacar dois momentos que julgamos de suma importncia na

    trajetria do arranjo vocal de cano popular no Brasil, so eles.

    incio, nos anos 1930, com o compositor Villa-Lobos e os primeiros arranjos corais de

    cano popular brasileira.

    Dcada de 50, a Era do Rdio, a Rdio Nacional e os seus grupos vocais, com

    destaque para o trabalho do arranjador Ismael Netto junto ao conjunto Os Cariocas.

    O principal objetivo aqui ser o de investigar as principais contribuies estticas que

    o arranjo vocal de cano popular recebeu nesses dois momentos. Para tanto, sero analisados

    arranjos de Villa-Lobos e de Os Cariocas. Aplicaremos a esse repertrio o mtodo de anlise

    textural apresentado pelos autores Ostrander e Wilson, no livro Contemporary Choral

    Arranging (1986), que adaptamos para esta pesquisa, no intuito de destacar os procedimentos

    texturais adotados por cada um dos arranjadores.

  • 41

    2.1 VILLA-LOBOS E O SURGIMENTO DE UMA NOVA ESTTICA NO ARRANJO

    CORAL BRASILEIRO

    2.1.1 O canto orfenico, definio, origens e caractersticas

    O canto orfenico teve sua origem na Frana em meados do sculo XIX, como uma

    modalidade especfica de canto coletivo que se diferenciava do canto coral tradicional da

    poca. Segundo nos relata Alessandra Lisboa, em sua dissertao de mestrado Villa-Lobos e

    o canto orfenico: msica, nacionalismo e ideal civilizador (2005), o canto coral francs

    privilegiava um repertrio que exigia dos cantores um alto nvel tcnico e, como isso, estaria

    direcionado formao de msicos profissionais, ao exigir conhecimento apurado de tcnica

    vocal e teoria musical. J o canto orfenico surge com o objetivo de reunir pessoas com pouca

    ou nenhuma formao musical, em grupos de nmero varivel e sem classificao de vozes.

    De acordo com Lisboa, a principal caracterstica do canto orfenico, ao contrrio do canto

    coral ensinado nos conservatrios franceses, seria:

    [...] sua funo seria de alfabetizao musical, tarefa a ser realizada nas

    escolas regulares, ao contrrio do ensino musical profissional, realizado em

    conservatrios. Uma vez implantado na escola regular, seria possibilitada

    uma popularizao da prtica e do conhecimento musical, que passariam a

    atingir diversos setores sociais. (Lisboa, 2005: 58)

    Em 1833, o orientador do ensino de canto nas escolas parisienses, Bouquillon-

    Wilhem, utilizou pela primeira vez o termo orfeo (orphen) ao se referir a grupos de

    alunos das escolas regulares que se reuniam para cantar em audies e apresentaes

    pblicas. Na mitologia grega, o termo refere-se ao deus msico Orfeu e est associado

    origem mtica da msica e sua capacidade de gerar comoo naqueles que a ouvem.

    Segundo Lisboa (2005) essa associao mitolgica foi utilizada pelo canto orfenico com o

    intuito de despertar os aspectos integrativo e afetivo dos alunos, ao conquistar sua dedicao e

    paixo pela msica. Por outro lado, Orfeu tambm era simbolizado pelo canto acompanhado

    pela lira. Essa associao mitolgica tem referncia na relao msica poesia, sendo

    utilizada pelo canto orfenico para a transmisso de valores morais e padres de

    comportamento atravs das letras das canes. Renato Gilioli (2003) na sua dissertao de

  • 42

    mestrado intitulada Civilizando pela msica: a pedagogia do canto orfenico na escola

    paulista da Primeira Repblica (1910-1920) (2003) argumenta:

    O canto orfenico, dessa forma, teria sido usado com a funo de elevar o

    nvel moral e artstico da populao, ou civilizargrande contingentes da massa popular, o que seria permitido por estar inserido no sistema pblico de

    educao. (Gilioli, 2003: 55)

    De acordo com o autor, o canto orfenico tentou implantar padres de comportamento

    aos seus praticantes e, atravs destes, procurou divulgar mensagens aos espectadores,

    acabando por se tornar uma espcie de instrumento de divulgao e propagao de ideais

    sociais e polticos, de acordo com o contexto ideolgico que a Frana ento vivia. Percebemos

    desta forma, agregadas ao canto orfenico, os ideais de integrao social e unidade coletiva,

    que seriam alcanados por meio da comoo propiciada pela msica juntamente com a

    transmisso de valores morais contidos nos textos das canes. Segundo Lisboa (2005) a

    funo desses aspectos propiciou ao canto orfenico assumir um carter cvico e patritico,

    em consonncia com as diretrizes ideolgicas nacionalistas que subjaziam ao papel do Estado

    na educao pblica. Sobre nacionalismo a autora considera que:

    O termo nacionalismoconsiste em uma ideologia e em um princpio poltico que surgiu em fins do sculo XVIII, com a Revoluo Francesa, e

    que fundamentou a coeso dos Estados Modernos surgidos desde ento.

    Trouxe a idia de nao como Estado soberano que agregaria seus membros em um territrio delimitado coerentemente, unidos pela histria,

    cultura, composio tnica e lngua comuns. (Lisboa, 2005: 59)

    A revoluo francesa foi marcada pela luta da classe burguesa, at aquele momento

    excluda das decises polticas, contra a tradicional monarquia, regida pela diviso

    hierrquica de poderes e definida por aspectos de hereditariedade e pela manuteno de

    privilgios aos possuidores de titulao nobre. A burguesia implementou as bases para a

    transformao da Frana em uma nao soberana, liberal, moderna, progressista, republicana

    e democrtica. Acabando por se tornar um modela de Estado nacional e moderno, a ser

    seguindo por outros pases.

  • 43

    De acordo com que nos relata Lisboa (2005), nesse modelo de nao, o indivduo

    passa a ser valorado e a sua participao desejada nas decises sobre que caminhos devem

    ser seguidos pelo pas, podendo participar da elaborao das leis por meio de seus

    representantes. O Estado ficaria encarregado da formao desse cidado, que passaria a

    possuir direitos e deveres6. Seria tambm de responsabilidade do Estado, como instituio

    suprema, a promoo de aes para impor e manter a ordem nacional, em consonncia com

    os ideais de nao institudos pela ideologia nacionalista. Eric Hobsbawan no seu livro A era

    das revolues (1981), concorda que esse modelo de Estado advindo da Revoluo Francesa

    tornou-se um padro a ser difundido pelo mundo. Segundo o autor:

    A Frana forneceu o vocabulrio e os temas da poltica liberal e radical-

    democrtica para a maior parte do mundo. A Frana deu o primeiro grande

    exemplo, o conceito e o vocabulrio do nacionalismo (...). A ideologia do

    mundo moderno atingiu as antigas civilizaes que tinham at ento

    resistido s idias europias inicialmente atravs da influncia francesa. Esta

    foi a obra da Revoluo Francesa. (Hobsbawm, 1981: 71-72)

    A educao pblica, como dever e responsabilidade do Estado, representou segundo

    Lisboa (2005) a ferramenta mxima pela qual seria promovida a formao republicana do

    cidado. Segundo a autora, nesse contexto que passou a predominar um novo modelo de

    educao, muito influenciado pelas idias de pedagogos como Jean Jacques Rousseau e

    Johann Heinrich Pestalozzi, ambos considerados precursores do movimento conhecido como

    Escola Nova. Esse movimento propunha um mtodo pedaggico no qual respeita-se o

    desenvolvimento psicolgico infantil, compreendendo a existncia de diferenas individuais,

    adequando o processo educacional s etapas de desenvolvimento naturais da criana e

    valorizando os interesses e experincias prprias cada uma. De acordo com Lisboa, esse

    modelo de escola nova trouxe consigo a idia da importncia fundamental da educao como

    elemento formativo do cidado e, por conseqente, da sociedade como um todo, elemento

    este que deveria ser de total responsabilidade do Estado. A autora completa: Alm disso, o

    modelo educacional proposto trouxe a incluso da msica, que era vista como elemento

    influente na formao do carter do cidado, nos currculos das escolas pblicas, por meio da

    presena de canes no repertrio escolar (Lisboa, 2005: 60).

    6 Podemos destacar aqui a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, promulgada em 1789.

  • 44

    O canto orfenico surgiu cercado por um universo mtico e simblico, inserido em

    um novo modelo de educao repleto de ideais nacionalistas, originados pela Revoluo

    Francesa, caracterizando-se pelos aspectos cvico e patritico que adquiriu. A fuso desses

    aspectos trouxe consigo tambm o sentido de civilizar as massas populares, ao inserir a

    transmisso de valores morais e culturais, cultivando o apreo por um repertrio especfico,

    em detrimento de outros. Segundo Lisboa: Com essas diretrizes, o movimento tomou

    grandes dimenses e estabeleceu at uma imprensa orfenica especializada na Frana, alm

    de difundir-se para outros pases tais como Alemanha, Espanha, Inglaterra, pases do Leste

    Europeu, Estados Unidos e Brasil (Lisboa, 2005: 61). Gilioli (2003) ressalta:

    [...] de acordo com os postulados do orfeonismo, parte-se do envolvimento

    integrativo-afetivo dos cantantes com a msica [...], passa-se pela idia de

    civilizao dos costumes e harmonizao social e chega-se, finalmente, ao culto da Nao e de seu representante, o Estado, salientado o carter

    apolneo dos orfees. (Gilioli, 2003: 55)

    O canto orfenico foi utilizado na Frana com o objetivo de civilizar o povo, ao impor

    padres de escuta e de conduta. Essa breve exposio, em linhas gerais, da origem, definio

    e caractersticas do canto orfenico tornou-se necessria e importante na medida em que,

    alm de permitir maior compreenso da gnese do prprio movimento, auxiliar no

    entendimento a respeito do seu desenvolvimento no Brasil.

    2.1.2 VILLA-LOBOS E O CANTO ORFENICO

    Ao contrrio do que muitos acreditam o canto orfenico no Brasil no se inicia com

    Villa-Lobos (Lisboa, 2005). Segundo Gilioli (2003), a partir de meados do sculo XIX j se

    pode constatar a presena da msica nos currculos escolares. Entretanto, o autor ressalva que

    at o incio do sculo XX a prtica da msica nas escolas pblicas tinha carter recreativo,

    ocupando os intervalos entre as demais disciplinas, e estava longe de se constituir como uma

    disciplina autnoma. Lisboa concorda com Gilioli e acrescenta que:

    Foi durante as dcadas de 1910 e 1920 que puderam ser notadas no Brasil as

    primeiras manifestaes de um ensino caracterizado como canto orfenico

  • 45

    que, de acordo com as diretrizes com as quais se desenvolveu e se

    caracterizou desde o seu surgimento na Europa, foi utilizado com o objetivo

    de atuar na escola pblica com a funo de pedagogizao e de

    popularizao do saber musical, por meio da alfabetizao musical da

    populao inserida no sistema pblico de educao. (Lisboa, 2005: 68)

    Essas primeiras atividades orfenicas se manifestaram de incio, no estado de So

    Paulo. Na dcada de 1910, o regente paulista Fabiano Lozano criaria no municpio de

    Piracicaba o que viria a ser o primeiro orfeo brasileiro. O Orfeo Piracicabano conquistou

    na dcada seguinte a admirao do pblico e de pessoas ilustres como Mrio de Andrade, que

    a ele dedicou entusiasmado artigo de jornal. No incio dos anos 1930, o maestro Lozano

    apresentou Diretoria Geral de Ensino do Estado de So Paulo o seu projeto de ensino de

    canto orfenico, a ser aplicado nas escolas do estado. Aps a revoluo de 1930, Getlio

    Vargas ascende ao poder e apia a implantao do canto orfenico nas escolas de diversos

    estados, dentre eles So Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco.

    A fuso da poltica Vargas com o projeto de nacionalizao das elites intelectuais

    introduziu, em 1931, a obrigatoriedade do ensino de msica em todos os nveis escolares.

    Sandra Souza, na sua dissertao de mestrado intitulada O arranjo coral de msica popular

    brasileira e sua utilizao como elemento de educao musical, comenta este fato:

    Extrapolando as funes estticas e pedaggicas, a incluso da msica na reforma de ensino

    se tornou possvel pelo reconhecimento por parte dos poderes oficiais de sua importncia na

    formao de uma conscincia nacional por meio da educao (Souza, 2003: 14). Todavia,

    a autora argumenta:

    Em suma, a relao msica nacionalista Estado bastante complexa, no sendo possvel resumi-la a uma mera posio e/ou imposio ideolgica do

    Estado em relao arte, sendo muito mais a combinao de diversos outros

    fatores sociolgicos que tornaram possvel a congruncia de idias entre arte

    no caso a msica e poltica. (Ibid., p.15)

    Com o advento da obrigatoriedade do ensino da msica na rede escolar, surgem

    inmeros projetos, propostas e modelos para este fim. Entre eles, o projeto pedaggico de

    Heitor Villa-Lobos. Nele, o compositor defendia a instituio de um programa de educao

    musical que agregasse todos os nveis escolares e abrangesse todo o territrio nacional. Villa-

    Lobos j havia tornado pblico, em solenidade organizada pela Universidade do Brasil, atual

    UFRJ, o seu projeto cultural e educacional. Em abril de 1931, Villa-Lobos nomeado Diretor

  • 46

    de Educao Musical do Distrito Federal. Estava fundada a instituio que iria ditar as regras

    e os procedimentos para implantao do canto orfenico em todo o pas, a SEMA

    (Superintendncia de Educao Musical e Artstica da Prefeitura do Distrito Federal). O

    ensino do canto orfenico permaneceu nas escolas at os anos 1960, quando ento foi

    substitudo pela Educao Musical. Segundo Souza, a LDBEN N. 5692, promulgada em

    1971, extinguiu a disciplina do sistema educacional brasileiro.

    2.1.3 O ARRANJO CORAL DE LUAR DO SERTO

    Com a implantao do canto orfenico em nvel nacional, Villa-lobos se viu na

    responsabilidade de criar e organizar o material didtico a ser utilizado no projeto. Da

    surgiram os Cadernos de Canto Orfenico - volumes 1 e 2, o Guia Prtico que, segundo

    Souza, teve seis volumes planejados, dos quais apenas o primeiro foi editado, e algumas

    partituras que foram publicadas de forma avulsa. Examinamos esse material em busca de

    arranjos corais baseados na msica popular urbana, foco principal dessa pesquisa.

    Encontramos no Caderno de Canto Orfenico Volume 2 trs arranjos de canes de sucesso,

    todas lanadas no mercado fonogrfico da poca. So elas: Santos Dumont, de Eduardo das

    Neves; Cano do Pescador Brasileiro, de Bastos Tigre e Eduardo das Neves; e Cano do

    Marinheiro, de Benidito Xavier de Macedo e Antnio M. Esprito Santo. Esta ltima veio

    mais tarde a se tornar o Hino da Marinha, tambm conhecido como Cisne Branco, emprego

    que tem at hoje. Alm dos arranjos citados, encontramos no acervo do Museu Villa-Lobos

    um arranjo para coro misto a cappella da toada Luar do Serto, que no chegou a ser editado.

    Beatriz Leme, na sua dissertao de mestrado intitulada Guerra-Peixe e as 14 canes do

    Guia Prtico de Villa-Lobos Reflexes acerca da prtica da transcrio (2000), comenta

    que este um dos primeiros arranjos corais de msica popular brasileira de que se tem

    registro, e foi escrito por Villa-Lobos no incio dos anos 30. Luar do Serto, com msica de

    Joo Pernambuco e letra de Catulo da Paixo Cearense, foi lanada em 1914, na interpretao

    de Almirante. Alcanou enorme sucesso na poca, tornando-se, a partir de 1939, o prefixo

    musical da Rdio Nacional, sendo bastante conhecida at hoje. Segundo Severiano e Mello:

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    [...] um dos maiores sucessos de nossa msica popular em todos os

    tempos. Fcil de cantar, est na memria de cada brasileiro, at dos que no

    se interessam por msica. Como a maioria das canes que fazem apologia

    da vida campestre, encanta principalmente pela ingenuidade dos versos e

    simplicidade da melodia. (Severiano e Mello, 1997: 39)

    Por essas razes, escolhemos este arranjo como objeto da nossa anlise. Tivemos

    acesso, no Museu Villa-Lobos, a trs verses dessa partitura, todas mimeografadas. Em uma

    delas en