nova arma contra a tuberculose

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JUNHO 1999 PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO Encarte especial Genoma Humano: Biologia, a ciência do século 21 Nova arma contra a tuberculose Pesquisadores desenvolvem uma vacina gênica para prevenção e cura da doença Pág. 16

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Notícias FAPESP - Ed. 43

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Page 1: Nova arma contra a tuberculose

JUNHO 1999

PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Encarte especial

Genoma Humano: Biologia, a ciência do século 21

Nova arma contra a tuberculose Pesquisadores desenvolvem uma vacina gênica para prevenção e cura da doença

Pág. 16

Page 2: Nova arma contra a tuberculose

Pesquisa FAPESP é uma publicação mensal da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Conselho Superior Prof. Dr. Carlos Henrique de Brito Cruz

(Presidente)

Dr. Mohamed Kheder Zeyn (Vice-Presidente)

Prof. Dr. Adilson Avansi de Abreu

Prof. Dr. Alain Florent Stempfer Prof. Dr. Antônio Manoel dos Santos Silva

Prof. Dr. Celso de Barros Gomes Dr. Fernando Vasco Leça do Nascimento

Prof. Dr. Flávio Fava de Moraes Prof. Dr. José Jobson de A. Arruda

Prof. Dr. Maurício Prates de Campos Filho

Prof. Dr. Paulo Eduardo de Abreu Machado Prof. Dr. Ruy Laurenti

Conselho Técnico-Administrativo Prof. Dr. Francisco Romeu Landi

(Diretor Presidente)

Prof. Dr. Joaquim J. de Camargo Engler (Diretor Administrativo)

Prof. Dr. José Fernando Perez

(Diretor Científico)

Equipe Responsável Coordenador

Prof. Dr. Francisco Romeu Landi Editora responsável

Mariluce Moura (MTB 790) Editora executiva

Maria da Graça Mascarenhas Editor assistente Fernando Cunha Editor de Arte Moisés Dorado

Capa Hélio de Almeida

Colaboradores: Carlos Fioravanti, Marcos de Oliveira, Margareth Lemos, Mário Leite Fernandes,

Mauro Bellesa, Mônica Teixeira,

Rodrigo Arco e Flexa, Thereza O. L. de Almeida, Washington Castilhos e Wilson Marini

Encarte especial: Genoma Humano 1 Planejamento gráfico: Hélio de Almeida

Produção gráfica: Tânia Maria dos Santos Fotolitos e Impressão: GraphBox Caran

Tiragem: 22.000 exemplares

FAPESP- Rua Pio XI, n2 1500,

CEP: 05468·901 -Alto da Lapa São Paulo- SP-Tel: (011) 838·4000

Fax (011) 838·4117

Este informativo está disponível na home-page da FAPESP: http://www.fapesp.br

E. mail: [email protected]

CARTAS

Direto de Miami Estamos aqui em Miami e atuamos di­

retamente junto às universidades brasileiras (USP, Unicamp, Unesp, etc.), através dos nossos escritórios de São Paulo, no sentido de apoiar as pesquisas em nível de suprimento de materiais.

Na semana passada, quando em visita ao Brasil, tive a oportunidade de conhecer are­vista Notícias FAPESP, a qual muito me im­pressionou pela qualidade das matérias.

Gostaria de parabenizá-los e aproveito o ensejo para perguntar como posso ter aces­so às futuras publicações.

New Route Inc Ranulpho Masiero

Apreciação do estudante Sou estudante de Engenharia Elétrica da

EESC - USP São Carlos, e atualmente estou cursando o terceiro ano.

Sempre que posso, procuro ler a revista Notícias FAPESP, pois a considero uma das mais importantes na sua área, em razão da beleza e seriedade de suas reportagens. Não posso deixar, então, de reiterar o meu elogio à FAPESP e à sua equipe de colaboradores, que estão sempre zelando pelo progresso e crescimento de nosso país.

Leonardo V M. Teixeira

Apreciação da vereadora Com meus cordiais cumprimentos, é o

presente para acusar o recebimento do exem­plar n° 42 da publicação Notícias FAPESP.

Versando sobre temas de excepcional in­teresse, a revista, de esmerada feitura gráfi~a, é a bela mensagem dessa respeitável Fundação.

Numa quadra em que o imprescindível trabalho de pesquisa está circunscrito prati­camente a um pugilo de homens realmente voltados para a cultura, a Notícias FAPESP, como se depreende pela leitura dos artigos, abrange todos os setores da atividade.

Maria Helena Vereadora, Câmara Municipal de São Paulo

Opinião do pesquisador Parabéns pela primorosa edição do No­

tícias FAPESP. A apresentação da revista de­monstra que é possível disseminar, com arte, informações úteis à comunidade científica.

Carlos Rodolfo S. Stopa, Chefe da Di visão de Física Aplicada

do Instituto de Estudos Avançados, do Centro Tecnológico da A era náutica

Reportagem sobre fungos Inicialmente, gostaria de agradecer pela

2

oportunidade de divulgar o trabalho de pes­quisa referente ao projeto temático Estudo de fungos em ambientes terrestre e aquático: uma contribuição para a avaliação e conser­vação da biodiversidade, com a reportagem publicada na edição n° 41 no Notícias FA­PESP.

Parabenizo o sr. Mauro Bellesa pela qua­lidade e precisão do artigo e o fotógrafo Eduar­do César pelas fotografias. Chamo a atenção que houve urna pequena confusão com a legen­da da fotografia do Rio Jacaré-Guaçu.

A publicação desse artigo teve ótimos desdobramentos. A pesquisa foi divulgada no si te da coluna de Ciência e Tecnologia do jor­nal O Estado de S. Paulo e incentivou uma reportagem do Repórter-Eco sobre pesquisas científicas que estariam sendo realizadas, com ênfase no sistema da Represa do Guara­piranga. Além disso, recebi da Coordenado­ria de Informações Técnicas, Documentação e Pesquisa Ambiental da Secretaria do Meio Ambiente uma carta com os cumprimentos pelo artigo publicado.

Os leitores do Notícias FAPESP têm a feliz oportunidade de atualizarem os conhe­cimentos sobre os trabalhos que estão sendo realizados nas várias linhas de pesquisa. Pes­soas bem informadas podem ser incentivadas a ampliar o intercâmbio de informações téc­nico-científicas e acadêmicas com a comuni­dade científica, resultando em novas inicia­tivas de investigação, como projetas temáti­cos, práticas políticas e desenvolvimento tec­nológico.

Dra. Iracema Helena Schoenlein-Crusius Bióloga, do Instituto de Botânica de São Paulo

Tomei conhecimento da reportagem Ambiente - Funções múltiplas , ao receber a publicação mensal Notícias FAPESP N° 41, de abril de 1999. Ao lê-lo, observei que uma das fotografias publicadas consta como sendo o Rio do Monjolinho. Esclare­ço que a foto publicada refere-se ao Rio Jacaré-Guaçu, onde também foi coletado material para o projeto Estudo de fungos em ambientes terrestre e aquático: uma con­tribuição para a avaliação e conservação da biodiversidade.

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Mirna Januária Leal Godinho Professora da Universidade

Federal de São Carlos

do Rio Monjolinho, como publicado no Notícias FAPESP n' 41

Page 3: Nova arma contra a tuberculose

Editorial .... ............ ...... .......... Pág. 4

Opinião ...................... .. ...... ... Pág. 5

Notas .... ...................... .... ... ... Pág. 7

Aids ......... ............ ....... .. .. .... Pág. 15

L' 1vro ..... .............................. Pág. 28

Otto Gottlieb, o brasileiro

indicado para o Prêmio

Nobel de Química.

Pág. 10

Um novo edital do FAP-Livros, programa

da FAPESP que financia a aquisição de livros

para bibliotecas de universidades e

institutos de pesquisa Pág. 12

O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron vai ganhar um Centro de Biologia Molecular Estrutural, que vai abrir novas perspectivas de estudo, como o das estruturas protéicas

Pág. 13

ÍNDICE

3

Nova vacina contra a _...,~

tuberculose, de origem gênica,

desenvolvida em Ribeirão Preto, tem

ação preventiva e terapêutica

Pág. 16

Empresa formada por pesquisadores vai produzir hormônio do crescimento no Brasil

Pág.20

Pesquisadores da Unicamp, em parceria com

a Companhia Siderúrgica de Tubarão, desenvolvem simulador para testar em

laboratório novas tecnologias para a indústria siderúrgica

Página 22

Escola viva: um projeto de melhoria do ensino leva uma escola do Jardim da Saúde para

PESP

junto da comunidade e alunos reconstroem a história do bairro paulistano Página 24

Page 4: Nova arma contra a tuberculose

EDITORIAL

Pesquisa e valorização da vida humana O anúncio de um avanço científico que pode,

contribuir decisivamente para sanar um grave pro­blema de saúde de milhões de pessoas em todo o mundo é, sem sombra de dúvida, razão de uma ale­gria especial para quem se dedica a divulgar cami­nhos, às vezes descaminhos, e sobretudo resulta­dos de pesquisas científicas. Mesmo num mundo que se acostumou a receber quase que diariamente notícias de novas drogas, novos tratamentos e abor­dagens para doenças as mais diversas, que afetam o bem-estar e põem sob risco a vida do ser huma­no, essa alegria persiste. E é antes de tudo com esse sentimento que publicamos nesta edição do Notí­cias FAPESP a matéria sobre o desenvolvimento de uma nova vacina que promete prevenir e tratar a tuberculose. Uma vacina de DNA ou gênica, res­salte-se, considerada de terceira geração, constru­ída a partir de conhecimento e tecnologia os mais avançados hoje disponíveis.

É verdade que os pesquisadores responsáveis pela vacina precisam ainda percorrer a parte final, e quase nunca fácil , do caminho até o êxito indis­cutível de seu empreendimento. An-

competentes e talentosos, rendam tanto. Queremos destacar também uma outra repor­

tagem desta edição, sobre um projeto ligado ao Pro­grama de Ensino Público, em que os pesquisado­res decidiram usar como alavanca para o cresci­mento intelectual e cultural de um grupo de estu­dantes adolescentes o resgate da memória de sua comunidade. E do Jardim da Saúde, um bairro tí­pico de classe média nesta complexa megalópole que é São Paulo, esses adolescentes puderam arran­car uma bela história da formação do agrupamen­to urbano no qual se enraízam - que aliás, no co­meço, lá pelas décadas de 20 e 30, pouco tinha de urbano. Chácaras, áreas de pastagens e matas cons­tituíam a paisagem dominante do Jardim da Saú­de. Os frutos que os estudantes colheram do mer­gulho nessa experiência educativa, para além de uma nova maneira de estudar Português, História, Geografia, Ciências e outras disciplinas, foram , certamente, um sentido de agregação social, de so­lidariedade humana, de cidadania. Porque, como bem observou o coordenador do projeto, a memó-

ria e sua recriação pedagógica são pon­tes de se poder afirmar que a vacina, de fato, funciona , precisa ainda ser comprovada por testes clínicos em humanos a eficácia já atestada em animais de laboratório. No entanto, o que se depreende da leitura de nossa reportagem de capa é que a pesquisa, iniciada há quase I O anos - e agora objeto de artigo já aceito pela respei-

" Vacina gênica contra tuberculose

tos de partida para a valorização da própria vida humana. Em suma, os es­tudantes de algum modo ampliaram nesse trabalho suas bases para o cres­cimento individual. Embora nem sem­pre se atente a isso, o investimento na pesquisa científica também traz resul­tados dessa natureza.

confirma de modo exemplar que investir em pesquisa sempre

vale a pena" Por fim, queremos dar um des­taque particular ao encarte especial desta edição, com entrevistas exclu­

sivas com três dos mais famosos especialistas norte-americanos em genômica - Leroy Hood, Craig Venter e Phil Green - e um dos poucos pesquisadores brasileiros com larga experiência em bioinformática, João Carlos Setúbal. As en­trevistas foram feitas para uma série de docu­mentários que a TV Cultura prepara sobre o pro­jeto pioneiro da genômica no Brasil - o seqüen­ciamento completo da bactériaXyllelafastidio­sa -, que irá ao ar na segunda semana de agos­to. Gentilmente, a TV Cultura liberou para a FAPESP o texto integral das entrevistas com os especialistas estrangeiros (que ainda renderão um segundo encarte em agosto), e é com prazer que publicamos esse material, inédito, reflexões muito ricas, nem sempre convergentes, dos es­pecialistas que definem hoje porque a Biologia, e especialmente a Biologia Molecular, despon­ta como a ciência do século 21.

tada revista Nature - , está no rumo certo.

Para a FAPESP, por outro lado, noticiar a va­cina é oferecer à opinião pública uma confirmação exemplar de que o investimento em ciência e tec­nologia vale a pena, porque, cumulativamente, ele traz sempre profundas repercussões sociais. Assim, se esta Fundação investiu R$600 mil no projeto temático que permitiu a realização da parte mais substancial do trabalho de construção da nova va­cina, neste momento podemos afirmar que é sim­plesmente incalculável o retorno que tal investi­mento poderá trazer. E aqui usamos a palavra re­torno em muitos sentidos, a começar pelo mais fun­damental deles, que é o da proteção à vida huma­na, até o do incremento à credibilidade científica do país, e o retomo econômico. Projetas como esse é que nos levam a concluir que, possivelmente em nenhum campo mais do que em ciência e tecnolo­gia, os recursos dos contribuintes, quando aplica­dos criteriosamente e dirigidos para pesquisadores

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Page 5: Nova arma contra a tuberculose

OPINIÃO

A defasagem entre a ciência e a tecnologia nacionais A avaliação da produção científica e

tecnológica nacional e do seu impacto vem ganhando crescente importância, não só no âmbito das agências de fomento, que neces­sitam quantificar os efeitos de sua atuação no sistema nacional de ciência e tecnologia e redirecioná-la em determinadas circuns­tâncias, como também entre o público e a mídia, que almejam conhecer quão bem apli­cados têm sido os recursos públicos. Neste ensaio apresentamos uma estimativa de in­dicadores dessa produção e do seu impacto.

Produção Científica Nacional Estima-se( I) que aproximadamente 70%

dos artigos científicos nacionais são "enter­rados" em anais de congressos e revistas não indexadas em bases de dados eletrônicas. É razoável supor que uma parcela desses arti­gos atinge padrões de qualidade e originali­dade similares aos publicados em revistas in­dexadas, mas ainda não dispomos de meios para avaliá-los sistematicamente. Tal avalia­ção poderá ser efetuada por meio de sua futu­ra indexação na base de dados Scielo, recen­temente criada pela FAPESP e pela Biblio­teca de Referência em Medicina para a Amé­rica Latina e Caribe (Bireme).

A produção científica indexada pelo Institute ofScientific Information (IS I), de qualquer pesquisador, instituição ou até de um país, pode ser avaliada através de um banco de dados recentemente adquirido pela FAPESP e disponibi lizado às instituições paulistas de ensino e pesquisa. Essa base, de­nominada Web-ofScience, contém aproxi ­madamente 5. 000 periódicos de todas as áre­as do conhecimento e permite a busca ele-

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Edgar Outra Zanotto

trônica por autor, instituição de origem, ano da publicação, citação, palavras-chave, esta­do, país, etc. Portanto, é possível levantar a produção científica nacional e internacional de todos os pesquisadores de ciências exalas. Dessa forma, construímos a Figura I.

O crescimento da participação nacional nas ciências ex atas é claramente demonstra­do pela Figura I. Em 1998, autores vincula­dos a instituições brasileiras contribuíram com 1,07% da produção científica mundial indexada pelo ISI. Em relação à produção científica norte-americana, esse percentual é de 2,9%. Nota-se que crescimento da pro­dução científica brasileira tem sido supe­rior ao do PIB.

Produção Tecnológica Brasileira Dados da UNESCO indicam que entre

65 e 75% dos investimentos de pesquisa na Europa, EU A e Japão são efetuados por em­presas, enquanto no Brasil assume-se que apenas 30% desses investimentos têm ori­gem empresarial; entretanto, estimativas mais realistas indicam que esse percentual é significativamente menor que 30%!

I 0% delas geram inovação. Portanto, cons­truímos a Figura 2 para representar a evolu­ção da participação brasileira no total de patentes concedidas nos EUA entre 1980 e 1998. Neste caso, a fonte de informação foi a "home-page" da USPTO- United States Patent & Trademark Office.

Brasil Mundo %Brasil Supondo que cada patente

depositada seja uma aposta do pesquisador ou empresa no po­tencial de inovação (geração de produto comercializável) do seu invento, uma forma indireta de se

Artigos em revistas indexadas pelo /SI 47.184 7.756.888 0,61

Patentes registradas nos EUA 751 2.198.190 0,04

Tabela I. Participação brasileira no número de artigos em revistas indexadas pelo ISI e no número de patentes registradas nos EUA entre 1980 e 1993. (Fonte: Brito Cruz 1'1)

avaliar a geração de tecnologia num paí~ é contabilizar os pedidos de patentes deposi­tados e concedidos. A título de informação, estima-se que apenas 10% das patentes de­positadas nos EUA são concedidas e que

85 ANO

95

A Figura 2 mostra que o número de pa­tentes concedidas nos EUA a autores brasi­leiros atualmente atinge cerca de 0,055% do total de patentes concedidas naquele país a autores de qualquer nacionalidade, e não tem crescido nesta década. Deve-se enfatizar que esse percentual é similar ao de inventores ir­landeses e mexicanos, mas é significativa­mente inferior ao de autores de países em es­tágio de desenvolvimento científico compa­rável ao do Brasil , tais como África do Sul, Israel e Coréia.

Adicionalmente, em detalhado relató­rio, Brito Cruz IZJ calcula a relação entre a participação de artigos de pesquisadores de um país no total de artigos publicados em revistas indexadas pelo ISI e a participação de patentes concedidas a autores desse país no total das patentes registradas nos EUA. No caso dos países desenvolvidos, a relação entre os percentuais de participação varia entre 0,5 e 3,0. Já ano caso do Brasil, a rela­ção é aproximadamente 20.

Figura 1. Percentual de artigos publicados em periódicos indexados pelo ISI por autores vinculados a instituições nacionais, nos últimos 20 anos. (Fonte: webofscience.fapesp.br). A curva foi colocada para guiar os olhos.

A Tabela I mostra o percentual da parti­cipação brasileira no total de artigos em re-

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Page 6: Nova arma contra a tuberculose

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Figura 2. Percentual de patentes concedidas a autores brasi leiros em relação a patentes concedidas a autores de todas as nacionalidades nos EUA (Fonte: www.uspto.gov).

ÁREA "FATO R DE IMPACTO " ARTIGOS BRASILEIROS COLAB. EXTERIOR NUNCA CITADOS

Física 4,0 8,020%

Química 4,5 7,018%

Engenharia 3,0 7,035%

Média de todas as ciências: (1981-90)

Brasil/mundo 4,4/7,1 44 / 49 %

Tabela 11. Fator de impacto dos artigos publicados somente por autores vinculados a instituições nacionais e daqueles publicados em colaboração internacional, em periódicos indexados pelo ISI (número de citações entre 1981 e 1993 dividido pelo número de artigos publicados entre 1981 e Hl90).

vistas indexadas pelo !SI e no total de paten­tes registradas nos EUA entre 1980 e I 993 , evidenciando que, naquele período, o primei­ro foi 15 vezes superior ao segundo.

Brito Cruz ainda observa que "o ator institucional por excelência em um sistema nacional de inovação é a empresa e seus cen­tros de pesquisa" e demonstra a existência de uma correlação entre o número de paten­tes registradas nos EUA por autores de um determinado país e o investimento pela in­dústria desse país.

Uma análise para a área específica de vidros demonstrou situação tão crítica quan­to a global. Seria interessante fazer levanta­mentos análogos para outras áreas de tecno­logia. Entretanto, podem-se prever situações similares à descrita acima, que representa a média de todas as áreas.

não tem apresentado sinais de crescimen­to relativo nos últimos anos. Portanto, urge implantar a prática de pesquisa nas empre­sas nacionais.

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10

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Impacto da Ciência Nacional Os fatores de impacto (FI) apresentados

na Tabela 11 foram obtidos do excelente tra­balho de DeMeis e Leta(J) Dentre inúmeros levantamentos, DeMeis e Leta computaram, para várias áreas do conhecimento, o número de citações dos trabalhos científicas assina­dos por autores vinculados a instituições bra­sileiras, acumuladas entre 1981 e 1993 ( 13 anos), e o dividiram pelo número de publi­cações de autores brasileiros no período 1981- I 990 (I O anos). Alem disso, DeMeis e Leta contabilizaram o percentual dos arti­gos nacionais indexados nunca citados, nesses 13 anos ( 44% ), e demonstraram que esse percentual ésimilarao dos artigos mun­diais jamais citados ( 49% ). Tal coincidên­cia de índices poderia levar à conclusão de que a qualidade média das publicações na­cionais é semelhante à qualidade média dos trabalhos internacionais.

Evitando discorrer sobre a polêmica questão de saber se a qualidade de um de­terminado trabalho ou periódico científico pode realmente ser avaliada pelo número de citações ou fatores de impacto (acreditamos que estes sejam indicadores relativos acei­táveis, pelo menos para comparações no in­terior de uma mesma área do conhecimen­to), apresentaremos a seguir uma análise sobre o impacto da produção científica na­cional, usando dados de De Me is e Leta, além de evidências adicionais.

Significativo é o fato de que as publi­cações de autores radicados no Brasil em co­autoria com pesquisadores estrangeiros (ge­ralmente de países desenvolvidos) têm apro­ximadamente o dobro do impacto dos arti­gos publicados somente pelos primeiros. Por exemplo, a Tabela II mostra que o fator de impacto médio (FI) das Engenharias nacio­nais salta de 3 para 7 e o da Física salta de 4 para 8, quando há participação de co-auto­res de instituições estrangeiras.

Outra forma de se avaliar o impacto da

Em outras palavras, há óbvia defasa­gem entre o grau de desenvolvimento cien­tífico e o grau de desenvolvimento tecno­lógico no Brasil! É inegável que a geração de tecnologia no Brasil é insatisfatória e Figura 3. Percentual de artigos aceitos para publicação na revista Science em t 994 [1 ).

6 fSP

Page 7: Nova arma contra a tuberculose

produção científica nacional seria através do percentual de aceitação de artigos submeti­dos a periódicos de rigorosa política edito­rial, tal como a Science, cujos editores são instruídos para aceitar somente novidades, com alto potencial de impacto. A Figura 3 mostra que o percentual de aceitação de ar­tigos submetidos por cientistas de 12 países do terceiro mundo, incluindo o Brasil , é de apenas 2%, enquanto varia entre I 0% e 20% para os países industrializados. Mesmo des­contando-se eventual preconceito contra os países subdesenvolvidos, nossa situação é claramente inferior à dos países do primei­ro mundo.

A análise acima efetuada indica que o impacto da pesquisa científica genuinamen­te nacional ainda é substancialmente menor que o impacto das publicações de autores dos países mais desenvolvidos.

Conclusões A produção científica nacional tem

crescido acima da média internacional , ten­do atingido aproximadamente I, I% do to­tal mundial em 1998. Em relação à produ­ção científica norte-americana, a brasileira representa 3%. Seu impacto ainda é menor que o impacto médio das ciências exatas de todas as nações e não foi possível avaliar sua tendência nos últimos anos.

A geração de tecnologia brasileira ain­da apresenta nível insatisfatório (apenas 0,055% dos depósitos de patentes nos EUA são de autoria de brasileiros) e não cresceu nesta década. Por outro lado, a experiência internacional revela que o desenvolvimen­to tecnológico é função dos investimentos empresariais em pesquisa. Urge, portanto, implantar e consolidar a prática de pesqui­sa nas empresas nacionais. Ciente dessa ca­rência, a FAPESP tem incentivado a intera­ção entre universidades e empresas, através dos Programas PITE, PIPE e CEPID.

Agradecemos aos professores Luiz Nunes Oliveira, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Rogério Meneghini e Jorge Hounie pelas valiosas críticas e sugestões.

Referências l.W.W.Gibbs- Lost Science in the

Third World, Scientific American, August ( 1995) 92-99.

2.C.H. de Brito Cruz- O Sistema de C&T como parte do Sistema Nacional de Inovação- Conselho de Ciência e Tecnolo­gia, CCT- UNICAMP, Junho (1999).

3.L.DeMeis e J. Leta- "O Perfil da Ci­ência Brasileira", Tab. 12, 13 e 17, Ed. UFRJ (1996).

- Webofscience.fapesp.com - WWW.uspto.gov.us/search patents

Professor titular do Departamento de Engenharia de Materiais da UFSCar, membro titular da Academia Brasileira de Ciências, coordenador adjunto da Direto­ria Científica da FAPESP.

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Ciência do próximo século em debate No encerramento da Conferência Mun­

dial Sobre Ciência para o Século 21: um novo compromisso, realizada em Budapes­tede26dejunhoa I 0 dejulho,com a partici­pação de delegações de quase 150 países, os organizadores divulgaram duas longas rela­ções de diretrizes e de princípios para imple­mentar o que foi chamado um novo contra­to social entre ciência e sociedade. Os do­cumentos, incluídos no boletim da revista científica britânica Nature, divulgados em 2 de julho, trazem sugestões específicas para que os países participantes da conferência, entre outras providências, aumentem seu apoio às instituições de graduação e de pós­graduação, enfatizem a capacitação de jor­nalistas científicos e criem mecanismos par­ticipativos adequados ao debate sobre polí­ticas científicas.

Duas propostas mereceram destaque. A primeira foi de que a ética e a responsa­bilidade social devem ser parte da forma­ção de todos os cientistas e a segunda prega o lançamento de campanhas de conscienti­zação sobre as contribuições das mulheres para a ciência e tecnologia, recomendando a instalação de uma rede internacional de mulheres cientistas. Estas duas idéias estão entre uma série de recomendações para for­talecer a posição das mulheres na ciência, e foram incluídas depois de um lobby vi­goroso dos grupos femininos. As diretrizes estabelecidas também estimulam esforços para garantir a participação de deficientes em ciência e tecnologia e sua presença em fóruns e grupos formuladores de política ci­entífica.

No preâmbulo da Agenda para a Ciên­cia - Estrutura para a Ação, elaborado ao final do encontro - que foi patrocinado pela Organização para Educação, Ciência e Cul­tura das Nações Unidas (UNESCO) e Con­selho Internacional para a Ciência (ICSU)­os participantes declaram que uma das me­tas mais nobres é avançar nos objetivos de paz internacional e bem-estar da humanida­de, enfatizando os efeitos desfavoráveis que muitas vezes acompanham as ciências na­turais e a necessidade de entender seu impac­to sobre a sociedade. Além dos objetivos apresentados na introdução, os 96 pontos do documento foram divididos em três partes: ciência e conhecimento, conhecimento para o progresso; ciência para a paz e para o de­senvolvimento; e ciência na sociedade e ci­ência para a sociedade. Em cada item, foram valorizadas questões como o papel da pes­quisa fundamental , as necessidades huma­nas básicas relativas ao ambiente, educação, tecnologia e política, e questões éticas vin­culadas à participação, exigências sociais e dignidade humana.

Outro documento, a Declaração Sobre Ciência e o Uso do Conhecimento Cientíji-

7

co, foi organizado a partir dos mesmos te­mas. Entretanto, inclui todos os campos da ciência em seus princípios: todas as cultu­ras podem contribuircom conhecimento ci­entífico de valor universal. De acordo com a Declaração, redigida em 46 pontos, as ci­ências devem estar a serviço da humanida­de, contribuindo para oferecer uma profun­da compreensão da natureza e da socieda­de, assim como a melhor qualidade de vida e um meio ambiente sustentável e saudável para as futuras gerações. O documento re­conhece que o futuro depende intrinseca­mente da manutenção dos sistemas de apoio a todas as formas de vida e convoca as na­ções e chama a atenção de cientistas de todo o mundo sobre a urgência em utilizar e va­lorizar conhecimentos adquiridos em todas as áreas, de maneira responsável, para aten­der às necessidades humanas.

Antes de Budapeste, a última confe­rência havia sido realizada em 1979, em Viena, Áustria. Mas apesar do longo inter­valo de tempo decorrido, mesmo os mais céticos admitiram que valeu a pena espe­rar pelo encontro deste ano, na Hungria. Aqueles que esperavam o início de uma nova era na relação entre ciência e socie­dade voltaram para casa decepcionados, segundo a revista; os que temiam uma dis­cussão inútil, entretanto, foram positiva­mente surpreendidos pelo conteúdo de alto nível dos debates. Agora, a tarefa é trans­formar as diretrizes estabelecidas nos do­cumentos em políticas eficazes.

Para os representantes de países em de­senvolvimento, de acordo com o boletim da Nature, a conferência foi uma rara oportu­nidade de acesso direto aos formuladores de políticas científicas e às agências de finan­ciamento de países desenvolvidos, além de uma melhorcompreensãodadiplomacia in­ternacional. Entretanto, não foram concre­tizados muitos acordos de seu interesse, como a criação de um fundo global para a ciência. Um dos membros da delegação das Filipinas, por exemplo, afirmou que o novo compromisso proposto na conferência de­veria ser acompanhado pela criação de um mecanismo de financiamento, a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1992, e em Montreal, em 1987.

Outras delegações de países em desen­volvimento consideraram inadequada apre­paração para a conferência. Eles expressa­ram sua preocupação com a falta de encon­tros oficiais preparatórios, semelhantes aos realizados nasconferênciasdas Nações Uni­das. Estes encontros permitem a formação de alianças para apresentar reivindicações comuns e o planejamento prévio de uma es­tratégia paraatingirseus objetivos em assun­tos como um sistema mais equitativo sobre os direitos da propriedade intelectual.

Page 8: Nova arma contra a tuberculose

NOrAS NOrAS NOrAS NCY'.AS NOrAS NOrM NOTAS JTAS NOrAS NOrAS NOTAS NOTAS NO~AS NO~AS

Seqüências geradas pelo Projeto Câncer estão no Genbank Cerca de 200 seqüências

obtidas pelos pesquisadores que estão desenvolvendo o Projeto Genoma Humano do Câncer fo­ram submetidas, na segunda se­mana de julho, ao Genbank, o banco de dados internacional onde estão depositadas todas as seqüências de qualidade aceitá­vel geradas pelos vários projetos genoma em curso no mundo. Já no dia 7, podia-se conferir via Internet as identificações de al­gumas das seqüências geradas pelo projeto brasileiro (por exemplo, de AI795778 até Al795783), o que por si só con­figurava um momento marcante para as equipes envolvidas, se-

gundo Sandro de Souza, coorde­nador de bioinformática do Ge­noma Humano do Câncer.

A partir desse momento, a coordenação de bioinformática do projeto promovido conjunta­mente pela FAPESP e pelo Ins­tituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, e iniciado em março deste ano, vai submeter de forma rotineira, a cada semana, seqüên­cias ao Genbank. Não serão mui­tas, de início, mas dentro de al­guns meses o volume semanal submetido deverá ser de alguns milhares porque, na pior das hi­póteses, serão geradas, por dia, de mil a 1.500 seqüências gené­ticas, diz Sandro de Souza.

Tratam-se de seqüências ob­tidas, por ora, de material retirado de cânceres de cabeça e pescoço, có lon e estômago. Mais adiante tumores de outros tipos devem ser também examinados. Para subme­tê-las ao Genbank, a coordenação de bioinformática do projeto deve apresentar arquivos que conte­nham, além das próprias seqüên­cias, uma série de informações que o banco requisita, como o tecido de que elas são originárias e a quali­dade das seqüências.

"Temos seguido uma ten­dência internacional de tentar melhorar a qualidade média das seqüências de EST (o tipo de se­qüência gerado pelo projeto) no

Criatividade e desenvolvimento Respeitemos as diferenças.

Mais ainda: incentivemos as vi­sões opostas, pois é por meio da cooperação entre indivíduos com modos de pensar comple­mentares que se atingem está­gios elevados de criatividade e de eficiência nas atividades ci­entíficas e tecnológicas, de acordo com as pesquisas reali­zadas pelo sociólogo do traba­lho Domenico De Mas i, profes­sor da Universidade de Roma La Sapienza, na Itália. Todos os grupos criativos que ele estu­dou, a exemplo do Instituto Pas­teur de Paris, o Círculo Filosó­fico de Viena, o Instituto de Pes­quisa Social de Frankfurt, a Es­cola de Biologia de Cambridge ou o Projeto Manhattan em Los Alamos, conciliam aspectos díspares, mantendo-se produti­vos e inovadores. "A criativida­de é a síntese das habilidades entre as pessoas fantasiosas e as criativas", afirmou De Masi durante a palestra O Trabalho Criativo nos Centros de Ciência e Tecnologia , proferida no dia 27 de maio no Instituto de Pes­quisas Tecnológicas, como par­te das comemorações docente­nário do I PT, comemorado no final do mês de junho.

"Os grupos criativos são an­tiburocráticos e morrem quan­do chega a burocracia", disse. Se os criativos são movidos pela curiosidade, que leva ao conhe-

cimento, os burocratas se apói­am em atitudes de defesa, que conduz à fuga de situações que vão além da rotina. Com humor, definiu os burocratas como "se­res prudentes, que se apóiam uns aos outros, e sádicos, pois adoram matar as idéias dos ou­tros".

Segundo ele, a sociedade pós-industrial , na qual as infor­mações, os símbolos e a estéti­ca se sobrepõem aos bens mate­riais da sociedade industrial, exige, sim, controle, mas, acima de tudo, motivação. Obviamen­te, não desaparecerão os bens industriais, mas a produção ci­entífica é que reinará, com mo­delos próprios de organização. Por exemplo, não há mais sepa­ração entre o trabalho e a vida. "Caem as divisões entre estudo,

trabalho e tempo livre e as sepa­rações de espaço e diferenças entre homens e mulheres", ob­servou. Nesta etapa da civiliza­ção humana, quem inventa é quem tem o poder. "A invenção é a base da força política e eco­nômica", disse . De outro modo, é o conhecimento que determi­na a hierarquia mundial: os paí­ses mais fortes monopolizam a invenção, os países emergentes ficam com a produção e aos subdesenvolvidos cabe tão-so­mente o consumo. De Masi acredita que os países atrelados à produção e ao consumo de­vem se esforçar para passar imediatamente para a fase de desenvolvimento de tecnologia e de estética, na qual a princi­pal inovação é, justamente, a criatividade em grupo.

s PESP

Genbank", diz Sandro de Souza. Assim, continua ele, "se uma se­qüência com 300 pares de base contém uma região com 50 bases de alta qualidade, nós a subme­temos. Se concluímos que todos os 300 são de baixa qualidade, não os submetemos". O score de qualidade para cada base da se­qüência é definido por um pro­grama chamado Phred. Simplis­ticamente, o score revela a chan­ce de que determinada base seja correta. Se o erro estimado for de I em mil bases, por exemplo, tem-se um resultado de alta qua­lidade. Na medida em que au­menta essa proporção de erro, cai a qualidade da seqüência.

Biblioteca virtual O Programa Prossiga do

Conselho Nacional de Desenvol­vimento Científico e Tecnológi­co (CNPq) e a Faculdade de Saú­de Pública da Universidade de São Paulo inauguraram no dia 7 de junho a Biblioteca Virtual de Saúde Reprodutiva (http://www. prossiga. br/fsp .usp/sauderepro­dutiva). O novo site é dirigido principalmente a pesquisadores e especialistas da área, mas deverá ser de grande interesse, também, para orgamzações sociais e pes­soas interessadas nessa temática. A I i são encontradas informações sobre sexualidade, aborto, Aids, planejamento familiar, contra­cepção, direitos reprodutivos, etc.

O mecanismo de busca da bi­blioteca virtual integra todas as in­fonnações por ela veiculadas. Es­sas informações foram divididas por categorias e, em seguida, agru­padasem informações brasileiras, estrangeiras e intemacionais; en­tidades, incluindobibliotecaseser­viçosde informação, órgãos de po­lítica e fomento, ONGs, progra­mas de pós-graduação, etc; even­tos; pessoas- especialistas e pes­quisadores - e documentos.

A Biblioteca Virtual de Saú­ide Reprodutiva integra o proje­to Bibliotecas Virtuais Temáticas do Prossiga, que tem o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) e Fun­dação de Apoio à Pesquisa do Estado de Goiás (FUNAPE).

Page 9: Nova arma contra a tuberculose

NOTAS NOTAS NOTAS NOTAS NOTAS NOTA~ NOTAS

Equiparação salarial Em audiência com o gover­

nador Mário Covas, em 5 de ju­lho,adireçãoAssociaçãodosPes­quisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) apresentou uma antiga reivindicação no sen­tido de restabelecera isonomia sa­larial entre pesquisadores cientí­ficos da universidade e dos insti­tutos de pesquisa ligados a secre­tarias de estado, criada pela lei complementar 727, de 1993.

Além da equiparação, foi também discutida a situação dos recursos destinados aos 18 insti­tutos estaduais e a criação da car­reira de apoio à pesquisa - que, se­gundo aAPqC, viria a sanar o pro­blema da evasão de profissionais dos institutos para as universida­des devido à defasagem salarial, evitando o fenômeno ocorrido antes da criação da carreira de pes­quisador científico, em 1978.

Periódicos O Conselho Superior da FA­

PESP, baseado em parecer do seu Conselho Técnico-Administrati­vo (CTA), decidiu autorizara uti­lização de recursos da reserva téc­nica de bolsas e auxílios para o pagamento de assinaturas de peri­ódicos de interesse para o projeto

financiadopelaFundação. Os títu­los assinados deverão ser coloca­dos à disposição da comunidade acadêmica na biblioteca da unida­de a que está ligado o pesquisador. Osrecursossópoderãoserutiliza­dos dentro do período de vigência do auxílio ou da bolsa.

JTAS NOTAS NOTAS NO~AS NOTAS NCrAS NOTAS

Livros do Biota Mais dois livros da coleção

de sete que vai apresentar a sín-

~~~tode0xis~~~~e~~~ f) 1 [\DI~ EJlt)JD~\Dt breabiodiversidade DJV J SÃOp-.o. BRASifL paulista, neste final oofSIAIJO:!-""'...-,.,.,., de século, foram lan- - _,.....-.. çados recentemente pelos coordenadores do Programa Biota FAPESP: o volume 3, relativo aos invertebra­dos marinhos, e o volu­me 5, referente aos in­vertebrados terrestres. Com isso, já são quatro os volumes publicados, porque em março já havi­am sido lançados os volu-mes 2, sobre fungos ma­croscópicos e plantas, e o 6, sobre vertebrados. O Progra­ma Biota está experimentando o

crescimento esperado e, a essa altura, !I projetos ligados a ele já estão aprovados pela FAPESP.

Quase 20 projetos no Genoma Funcional Nada menos que 19 projetos

estão aprovados na linha de pes­quisa do Genoma Funcional da Xyle/lafastidiosa, que desde o fi­nal do ano passado integra o Pro­grama Genoma FAPESP Já estão em desenvolvimento dez deles, que foram apresentados atenden­do ao primeiro edital de encami­nhamento de propostas à Funda­ção. Os outros nove, enviados por ocasião do segundo edital, com prazo de apresentação de propos­tas até I I de maio, foram aprova­dos recentemente e deverão ser iniciados em breve. Todos os pro­jetos nessa linha investigam, a partir das abundantes informa­ções genéticas geradas com o se­qüenciamento da Xyle/la, bacté­ria causadora da Clorose Yariega­da dos Citros (CVC) ou praga do amarelinho, aspectos da patoge­nicidade do microorganismo para, a partir disso, propor cami­nhos de controle e combate dessa doença dos citros, que afeta gra­vemente a citricultura paulista.

Os 19projetosaprovadossão os seguintes: Epidemiologia e Manejo da Clorose Variegada dos Citros, coordenado por Armando Bergamin Filho, da Esalq; Otimi­zação de Sistemas de Regenera­ção ln Vitro e Estabelecimento de um Protocolo de Transformação Genética para Citros SP, coorde-

nado por Beatriz Madalena Janu­zzi Mendes, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP; !dentificaçãoeAnáliseMolecular de Genes PatogênicosEnvolvidos na lnteração Citros-Xyle/lafasti­diosa, coordenado por Cláudia de Mattos Bellato, do Centro de Ener­gia Nuclear na Agricultura da USP; Aspectos Fisiológicos da Laranja Doce 'Pêra' (Citrus si­nensisL. Osb)AfetadaporCVCe sua Associação com a Patogeni­cidade daXyle/la fastidiosa , coor­denado por Eduardo Caruso Ma­chado, do lnstitutoAgronômicode Campinas; Investigando o Papel de um Endo-polygalacturonase na PatogenicidadedaXyle/lafastidi­osa, coordenado por Elza Maria Frias Ma1tins, do Instituto Bioló­gico, em associação com Ricardo Harakawa, do Departamento de Patologia Vegetal da Universida­de da Flórida; Avaliação de Mar­cadores Moleculares para a Ca­racterização de Cepas da Xyle/la fastidiosa Associadas a CVC e a Requeima do Cafeeiro, coordena­do por Gilson Paulo Manfio, da Fundação Tropical de Pesquisas e Tecnologia André Tosei! o; O Pa­pel de Genes Associados a Goma Xantana na Patogenicidade e Vi­rulência da Xyle/la fastidiosa e Estratégias Potenciais para Con­trole Biológico da CVC em Citros,

9

coordenado por João Lúcio de Azevedo, da Esalq; Desenvolvi­mentodeMétodos Experimentais para Testes de Patogenicidade e Adesão de Mutantes de Xyle/la fastidiosa, coordenado por João Roberto Spotti Lopes, da Esalq; Proteoma deXylella fastidiosa: I. Análise Diferencial para Estudo de Patogenicidade; !!-Construção de Base de Dados 2D-PAGE, co­ordenado por Jos@ Camilo Nove­li o, do InstitutodeBiologiada Uni­camp; Identificação e Caracteri­zação de Genes deXylella fastidi­osa Expressos em Plantas deCí­tros Infectadas e Regulados por Sensores de Quorum, coordenado por Márcio Rodrigues Lambais da Esalq; Genes Expressos da Xyle­/la fastidiosa em Condições de Crescimento Lento e Rápido, co­ordenado por Marcos Antônio Machado,doiAC;AnáliseFunci­onal do Operam Gum da Xyle/la fastidiosa e sua Relação com a C VC, coordenado por Paulo Arru­da, da Unicamp; Identificação e Análise Funcional de Genes com Resposta ao Stress Oxidativo na Xyle/lafastidiosa, coordenado por Regina Lúcia Batista da Costa de Oliveira, do úcleo Integrado de Biotecnologia da Universidade de Mogi das Cruzes; Xyle/lafastidi­osa - Papel de Exoenzimas (pro­teases, celulases, liases do pecta-

to) e da Adesão {naplantaenoin­seto vetar) naPatogenicidade, co­ordenado por Sérgio Florentino Pascholatti, da Esalq; Relações Genéticas e Patológicas entre CepasdaXylellafastidiosa, coor­denado por Sílvio Aparecido Lo­pes, do Centro de Ciências Exalas, Naturais e Tecnológicas da Uni­versidade de Ribeirão Preto; A ná­lise do Genoma Funcional daXy­lella através da Identificação de Proteínas Putalivas e de Com­postos de Baixo Peso Molecular Associados coma Virulência, co­ordenado por Siu Mui Tsai, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP; Estabeleci­mento de Condições para Divisão de Genes Potencialmente Envol­vidos na Patogênese da Xylella fastidiosa, coordenado por Suely Lopes Gomes, do Instituto de Química da USP; Desenvolvi­mento de um Sistema Experimen­taldeTestesdePatogenicidadeda Xylella fastidiosa de CVC em Laranja Doce, coordenado por Wenbin Li, do Fundo Paulista de Defesa da Citricultura, (Fundeci­trus), eAm.plified-Open Reading Frames (AMORF) Combinado a Hibridizaçào para Identificação de Genes Relacionados com a Pa­togenicidade daXylella fastidio­sa, coordenado porYoko Bomu­ra Rosato, da Unicamp.

Page 10: Nova arma contra a tuberculose

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

PRÊMIO

O reorganizador da natureza O químico Otto Gottlieb, que criou uma nova forma de classificar as plantas, é indicado para o Nobel

"No próximo milênio, os países que ti­verem mais florestas e culturas preservadas serão beneficiados tanto na pesquisa cientí­fica quanto na alimentação." O ensinamen­to, do escritor e indigenista Orlando Vi lias Boas, está afixado na parede da sala do apar­tamento do cientista Otto Richard Gottlieb, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, e demonstra a visão ampla da Ciência e da na­tureza cultivada pores te químico. Tão ampla que ele está sendo indicado ao Prêmio Nobel de Química deste ano por seus estudos pio­neiros propondo uma nova classificação das plantas a partir de suas características quími­cas. A indicação foi feita pelo químico Roald Hoffmann, que recebeu o Prêmio Nobel em 1981, mas os estudos e descobertas de Got­tlieb transcendem os limites dessa Ciência. Nascido na a tua I República Tcheca em 1920 e naturalizado brasi­leiro, trabalhando aluai­mente na Fundação Oswal­do Cruz (Fiocruz) desde que se aposentou na Uni­versidade de São Paulo (USP) em 1990, Gottlieb criou uma nova forma de or­ganizar e entender os vege­tais, a base da vida na Terra.

Integrando a química à biologia, à ecologia e à geo­grafia, Gottl ieb desenvolveu uma nova disciplina ou área de estudo no campo da quí­mica de produtos naturais: a sistemática bioquímica das plantas, também chamada de quimiossistemática ou taxo-

gicas", diz Gottlieb. "O que temos feito é correlacionar essas características externas com características moleculares." Portanto, não se trata de substituir um método por ou­tro. A classificação de Lineu, relativamente simples, ampla e prática, continua indispen­sável. Mas o enfoquequímico resolve alguns impasses e permite entender algumas pecu­liaridades da natureza. Ao contrário da pri­meira, essa é uma abordagem dinâmica, que parte da verificação de que as plantas, até mesmo dentro de uma mesma espécie, pro­duzem diferentes substâncias de acordo com os estágios de sua vida ou das condições ambientais em que encontram.

É o caso da Ocotea pretiosa, uma ár­vore da família das lauráceas conhecida

nomia química, que consiste O cientista Oito Gottlieb: pioneirismo e visão abrangente

na identificação de grupos de substâncias químicas presentes nas plantas. Quantificando as substâncias químicas das es­pécies, foi possível acrescentar informações valiosíssimas à habitual classificação dos ve­getais, fundamentada sobretudo nos seus as­pectos externos, como folhas e flores.

"Se o naturalista sueco Carl von Lineu criou um método, ainda utilizado, para orga­nizar as plantas a partir desses aspectos ex­ternos, Otto Gottlieb mostrou como identifi­car as plantas por dentro, diferenciando suas micromoléculas", diz a pesquisadora Maria Cláudia Marx Young, do Instituto de Botâni­ca de São Paulo, que teve o cientista como seu orientador no mestrado e doutorado.

"As plantas sempre foram classificadas de acordo com suas características morfoló-

como canela-sassafrás ou sassafrás, encon­trada em vastas áreas do Brasil. De acordo com a região, sua composição química pode variar. No clima frio do Vale do ltajaí, em Santa Catarina, produz safrol , um óleo es­sencial de valor comercial. Já no ambiente tropical do Rio de Janeiro, a principal subs­tância produzida é a nitrofeniletano, que confere a esse espécie o cheiro de canela. A presença de uma ou de outra substância es­clarece as diferenças fisiológicas e as rea­ções ao ambiente de uma mesma espécie, como fez o químico mais de uma vez, va­lendo-se do seu próprio método.

Otto Gottlieb graduou-se em 1945 em Química Industrial pela Universidade do Brasil e doutorou-se pela Universidade Fe-

lO

dera I Rural do Rio de Janeiro. Passou dez anos na indústria de óleos essenciais que perten­cia a seu pai antes de retomar a carreira aca­dêmica, já com 35 anos, no então Instituto de QuímicaAgrícola, extinto alguns anos de­pois. Foi a partir do final dos anos 60, na USP, que estudou profundamente a química das lauráceas, a que pertencem o sassafrás e o louro, e das miristicáceas, representada pela noz-moscada. Enriqueceu a classificação botânica tradicional e identificou centenas de substâncias denominadas lignóides, uma característica marcante das plantas arbóre­as. E, dentro desse grupo, descobriu as neo­lignanas, que, segundo ele, são sintetizadas pelos vegetais em condições diferentes das lignanas, já conhecidas.

A identificação dessas substâncias possibilitou no­vas pesquisas que levaram ao desenvolvimento de fárma­cos como o etoposídeo e o teniposídeo, sintetizados pela indústria farmacêutica e empregados como antitumo­rais. As neolignanas, desco­briu-se mais tarde, possuem também propriedades antiin­flamatórias. Outros cientis­tas também comprovaram seus efeitos na alteração da diurese do agente transmis­sor da doença de Chagas. Gottlieb lançou o modelo que levaria a essas descober­tas num congresso internaci­onal realizado em Hambur­go, na Alemanha, em 1976, e foi muito bem recebido pela comunidade científica, ven-cendo o ceticismo sobre a

possibilidade de unir a química à biologia na classificação dos vegetais.

A evolução Com a sistemática bioquímica, que o

tornou internacionalmente conhecido, Got­tlieb foi ainda mais além. Medindo nos gru­pos vegetais a presença de conjuntos especí­ficos de substâncias químicas, genericamente conhecidos como metabólitos secundários, ele criou uma nova abordagem para entender a evolução e a regulação das plantas, isto é, es­tabeleceu um paralelismo entre a evolução quí­mica e a morfológica. Os seus estudos suge­rem, por exemplo, que pinheiros e plantas flo­ríferas têm sua origem em samambaias primi­tivas e avançadas, respectivamente.

Page 11: Nova arma contra a tuberculose

"Gottlieb criou um método científico para quantificar as substâncias químicas e prever a evolução das plantas superiores", conta outra de suas discípulas, a professora Vanderlan da Silva Bolzani, que coordena o Núcleo de Bio­ensaio, Biossíntese e Ecofisiologia de Produ­tos Naturais do Instituto de Química da Uni­versidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraq uara, e um dos proj e tos temáticos do programa Biota-FA­PESP. "Com esse en­foque, comecei a ter uma visão mais pro­funda da natureza e dos significados das molé­culas no estudo da evo­lução."

A química, sob seus cuidados, levou a uma visão ampla da Ciência. "Estudar as plantas tem nos permi­tido entender as regras que sustentam o fun­cionamento da vida, da natureza", diz o cien­tista. Investigar a ori­gem da vida por meio i

rede são os ecótonos, também chamados de áreas de tensão ecológica (ver mapa), regiões de transição entre os ecossistemas, que se­param, por exemplo, a Amazônia do cerra­do e da caatinga. Os ecótonos são bastante semelhantes entre si e têm características comuns a todos os ecossistemas, ainda que geograficamente distantes. "Podemos en­contrar em ecótonos do norte do Brasil um

do estudo das plantas pode parecer, à primei­ra vista, curioso. Mas é exatamente esta corre­lação que forma as ba­ses da pesquisa do ci­entista sobre evolução, sistemática e ecologia molecular de plantas.

Como alguns ~ AreadasFoonaçOOs?iooeirascomlnfluências ~ Fluvialoolacustre

grupos específicos de animais, a exemplo dos pássaros, anfibios

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D RetúqioECO!ó'JiCo

e répteis, os vegetais têm mecanismos quími­cos de defesa. Liberando toxinas, conseguem defender -se de agressões externas. "As plan­tas são um paradigma de como funcionam ou­tros grupos de seres vivos", ensina Gottlieb. Essa abordagem tem sido usada nos estudos sobre a biodiversidade dos ecossistemas bra­sileiros, como a FlorestaAmazônica e a Mata Atlântica. Medindo a semelhança da compo­sição florística de diferentes ecossistemas, Gottlieb observa como as plantas interagem.

"A natureza toda é uma só, e as plantas não estão separadas umas das outras", diz o químico. De acordo com as mais recentes pesquisas mundiais, que ele acompanha aten­tamente, existem canais subterrâneos que unem as plantas em diversas posições. Esse modelo tem uma implicação imediata: quan­do se abate uma determinada área, não está se prejudicando apenas a região depredada. "Como tudo está conectado por meio de uma rede, o efeito da depredação de uma região pode ser sentido a larga distância", diz Got­tlieb, cada vez mais buscando nos dados ex­perimentais as explicações mais profundas dos ambientes naturais brasileiros.

Segundo ele, o que faz a conexão dessa

tipo de vegetação semelhante a outro tipo de vegetação típica do Sul do país, como -as araucárias", explica. Para ele, o estudo des­sas regiões de fronteira é de extrema impor­tância. "Observamos que os ecótonos man­têm o ecossistema. Se essas áreas são inva­didas, quem vai sofrer são os ecossistemas que os cercam. Iniciar atividades de agricul­tura e pecuária nessas regiões de turbulên­cia é extremamente lastimável", alerta Got­tlieb. Ao contrário, conhecendo o desenvol­vimento químico desses ecossistemas, tor­na-se possível intervir sobre os espaços sem que percam sua estrutura e identidade.

Formador Exigente e rigoroso, capaz de trabalhar

15 horas por dia no laboratório, sempre dis­posto a atender os alunos, Gottlieb criou uma geração de especialistas em química de pro­dutos naturais no país. Formou equipes na Universidade de Brasília, Universidade F e­dera! de Minas Gerais, Universidade Fede­ral do Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e Universidade de São Paulo. No total, formou 118 mestres e doutores, hoje grandes nomes dacomunida-

11

de científica brasileira e internacional. Sua obra inclui 630 trabalhos e cinco livros pu­blicados, entre eles o Micromolecular Evo­lution, Systematics and Ecology: An Essay into a Nove/ Botanical Discipline, além de 580 conferências em 26 países. Recebeu di­versos prêmios, como o de Química da Aca­demia de Ciências do Terceiro Mundo e o Per­gamon, concedido pela Phytochemistry, prin­

cipal revista da área. "É o maior nome

em química de produ­tos naturais da Améri­ca Latina", diz Vander­lan. Ela conta que, num Congresso em San Diego, nos Esta­dos Unidos, em julho de 1993, durante seu pós-doutoramento, foi muito bem recebida por eminentes cientis­tas ao dizer que havia sido aluna do profes­sor Gottlieb. Ele foi também um dos funda­dores do Laboratório de Produtos Naturais da USP, criado em 1967 com apoio da FAPESP e que, três anos mais tarde, passa­ria a fazer parte do Ins­tituto da Química da Universidade, onde o pesquisador trabalhou como professor titular até 1990. Na Fiocruz, para onde se transferiu em seguida, desenvol­ve pesquisas como

bolsista do Conselho Nacional de Desen­volvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

"Gottlieb deu um grande impulso à fito­química da Fiocruz", atesta o vice-presidente de pesquisa da instituição, Renato Cordeiro. "Os resultados de suas pesquisas são extraor­dinários", acrescenta. Para o químico Peter Seidl, da Universidade Federal do Rio de Ja­neiro (UFRJ), um dos articuladores da indi­cação do nome do pesquisador ao Nobel, Got­tlieb é um exemplo a ser seguido. "Ele é uma prova de que podemos fazer pesquisa no Bra­sil, apesar dos recursos limitados, sem preci­sar ir para um país desenvolvido", diz Sei di.

A indicação de Gottlieb ao prêmio conta comoapoiodasAcademiasBrasileiradeCiên­cias e do Terceiro Mundo. Ele, no entanto, pre­fere não falar no assunto. Suas preocupações estão voltadas para problemas como a devas­tação das florestas e a deterioração ambiental. Gottlieb considera que a compreensão dos me­canismos da natureza será essencial para o fu­turo da vida no Planeta Terra no próximo mi­lênio, e este trabalho é, em sua opinião, o mais importante desafio para os cientistas. "Apre­servação do ambiente é um assunto de impor­tância mundial a toda prova", afirma.

Page 12: Nova arma contra a tuberculose

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

BIBLIOTECAS

Evolução no FAP-Livros Concessão de auxílios para aquisição de livros tem nova sistemática

O Programa FAP-Livros, que financia a aquisição de livros científicos e tecnoló­gicos para bibliotecas de universidades e ins­titutos de pesquisa, está aperfeiçoando sua sistemática. Como no Infra-Estrutura e na Reserva Técnica, o objetivo continua sendo o de sanar as deficiências do sistema de pes­quisa paulista, mas, agora, segundo o crité­rio de associar as concessões de auxílio à aquisição de livros a projetos financiados pela FAPESP. Depois da fase inicial, em que se buscou encontrar soluções emergenciais para problemas acumulados durante muitos anos, a ênfase do programa está no reforço do apoio concedido por meio de maior co­bertura de custos indiretos dos projetos.

Em sua quarta chamada, que receberá solicitações até o dia 3 de setembro próxi­mo, o FAP-Livros passa a beneficiar biblio­tecas específicas, contribuindo para que elas disponham de acervos mais completos de li­vros, que possam propiciar o bom desenvol­vimento dos projetos de pesquisa financia­dos pela Fundação e sua ampla utilização pela comunidade científica. Assim, o pro­grama passa a funcionar segundo uma dire­triz que sempre norteou as ações da FA­PESP: não se encarregar diretamente do custeio de despesas permanentes. Para essa cobertura, foi criada a reserva técnica.

"De acordo com a nova sistemática, as bibliotecas atendidas devem ser reconhecidas como unidades do sistema de bibliotecas de uma determinada instituição de pesquisa, e o responsável pelas solicitações, um pesquisa­dorcom título de doutor ou qualificação equi­valente, vinculado a um dos departamentos dessa instituição", explica Joaquim José de Camargo Engler, diretor administrativo da Fundação. "Esse pesquisador deverá ter rece­bido da FAPESP auxílios de qualquer nature­za nos últimos cinco anos ou ter sido respon­sável, como orientador, por bolsas concedidas

pela Fundação nesse período. Seu aval para a compra será uma declaração de que cada livro solicitado é relevante para uma linha de pes­quisa em que esteja o projeto sob sua respon­sabilidade", destaca. Como nas fases anterio­res, só poderão ser solicitados livros direta­mente relevantes para as atividades de pesqui­sa, o que exclui periódicos, que já constam do orçamento das instituições, obras de referência e livros de interesse principalmente didático.

Essa orientação reflete a fi losofia há muito tempo aplicada às outras modalidades de concessão e pode ser colocada em práti­ca graças aos esforços da FAPESP para a in­clusão do inciso XXI no artigo 24 da lei n° 8666, de 21 de junho de 1993. Esta altera­ção na lei tornou o FAP-Livros muito mais ágil porque permitiu a aquisição direta, sem licitação, de bens destinados exclusivamen­te à pesquisa científica e tecnológica, com recursos de agências financiadoras federais ou outras instituições de fomento creden­ciadas pelo CNPq para esse fim.

"Agora voltamos à normalidade", afirma José Fernando Perez, diretorcientífico da Fun­dação. "Superadas as dificuldades do passado, podemos trabalhar de fonna mais dinâmica e coerente. Se antes tivemos a vantagem da lici­tação, agora podemos recorrer a um mecanis­momaisaperfeiçoado,queevitaosatrasospro­vocados por uma compra única", explica. De fato, a aquisição de um grande pacote de livros através de licitação pode ser um processo d.e­morado, em que as edições podem esgotar-se no período decorrido entre sua solicitação e a compra. Além disso, no momento da entrega dos livros, o vencedor da licitação nem sem­pre pode garantir o fornecimento de todos os títulos apresentados no edital.

Até 1992, as solicitações para compra de livros eram feitas diretamente pelos pesquisa­dores e eram aprovadas como auxílios à pes­quisa. Com a definição das bases do progra-

ma, a Fundação lançou a segunda fase do FAP­Livroserecebeu,entre 1992e 1993,solicitações de90.055 títulos e atendeu, naqueleano,51.222. O investimentofoide US$3, 1 milhões. Na Fase III, em 1995 - segundo ano de avaliação de projetos- , a FAPESP recebeu solicitações de 150.766 obras e aprovou a compra de exata­mente 114.441 livros, no valor de R$ 7,2 mi­lhões, o que corresponde, em valores atuais, a US$ 4, I milhões. Nesta edição, os títulos fo­ram destinados à UNICAMP (30%), USP (24%), UNESP(24%), instituições federais de ensino e pesquisa instalados no Estado de São Paulo (I 0% ), entidades particulares de ensino e pesquisa(6,3%)e institutos de pesquisa vin­culados ao governo do Estado (5,7%) (veja gráfico). As compras aprovadas foram de li­vros nacionais ( 17,7%) e estrangeiros (82,3% ).

As solicitações de auxílio para a quarta chamada devem ser encaminhadas segundo modelo disponível nos endereços eletrônicos http://www.fapesp.br e http://saturno.fapesp .br, acompanhado de quatro documentos: for­mulário de inscrição, cadastro e súmula curri­cular do pesquisador responsável; relação das linhas de pesquisa em que estão situados os projetos apoiados pela FAPESP no período de 1994 a 1999; lista de livros solicitados (iden­tificados pelos nomes dos autores, título com­pleto, editora, ano da edição e ISBN), com a indicação de seus preços cotados e de um a três pesquisadores que avalizem o pedido; e uma lista, por ordem alfabética, dos pesquisadores vinculados à instituição, unidades ou departa­mentos a que serve a biblioteca beneficiária. Os pesquisadores não podem aparecer em lis­tas de diferentes solicitações, provenientes ou não da mesma instituição.

Como em todas as linhas de fomento da FAPESP, as solicitações passarão pela avali­ação por pares. O Programa tem uma dotação fixa, portanto a avaliação será competitiva e a distribuição dos recursos levará em conta a

INVESTIMENTOS NO FAP-LIVROS AS AQUISIÇÕES DO PROGRAMA coerência entre os livros pedidos e as linhas de pesquisa desenvolvida s, além do peso da par­ticipação dos pes­quisadores em rela­ção ao total de auxí­lios e bolsas conce­didos no período de 1994a 1999.AFun­dação espera poder concluir o processo de avaliação até o fi­nal deste ano.

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CIÊNCIA

LABORATÓRIO

Teste superado LNLS recebe elogios em sua primeira avaliação e ganha um Centro de Biologia Molecular

Duas boas notícias chegaram ao La­boratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), de Campinas. Uma de las é a de que o Laboratório passou , com elogios, pela sua primeira avaliação científica e tecnológica , realizada em fevereiro , de­pois de um ano e meio de funcionamento. A outra é a conclusão dos estudos e libe­ração das verbas para a construção do seu novo Centro de Biologia Molecular Estru­tural. O Centro, que vai abrir novas pers­pectivas de estudo para os pesquisadores de biologia que usam a luz síncrotron, será construído com recursos do LNLS e da FAPESP, que contribuirá com R$ 830 mil.

A inspeção foi realizada por uma comis­são mista de sete cientistas, sendo quatro de fora do Brasil. O relatório final do grupo foi muito positivo com relação às contribuições que o Laboratório, atendendo pesquisadores brasileiros e estrangeiros, fez nos seus pri­meiros meses de funcionamento. Esse tipo de inspeção faz parte do contrato de gestão entre a Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron, que administra o LNLS, e o Conselho Nacional do Desenvolvimen­to Científico e Tecnológico (CNPq) do Mi­nistério da Ciência e Tecnologia, órgão pro­vedor do laboratório.

Quanto ao novo centro de biologia, a contribuição da FAPESP destina-se à sua in-

fra-estrutura, como supot1e elétrico e hidrá­ulico, ar-condicionado e câmaras frias . Sua importância é inegáve l. "O novo laborató­rio vai proporcionar, por exemplo, maior capacidade de elucidação de estruturas pro­téicas, que podem ser úteis tanto para a compreensão de processos biológicos como para a fabricação de medicamentos", afirmou Rogério Meneghini , diretor asso­ciado da área de biologia do LNLS.

Limpeza A comissão científi ca encarregada da

avaliação do LNLS teve como presidente Yolker Saile, do Instituto Mikrostrukturtech­nik, de Karlsruhe, na Alemanha, e tinha apre­sença do professor Yves Petroff, diretor-ge­ral do Laboratório Europeu de Radiação Sín­crotron, localizado em Grenoble, na França, um dos órgãos mais importantes do mundo na área. Os membros do comitê fizeram entre­vistas com di retores, funcionários - técni­cos, administradores e pesquisadores - e usuários, além de anali sar documentos finan­ceiros, técnicos e científicos.

A organização e o programa científico do L LS foram considerados excelentes e o Laboratório recebeu até um elogio pouco comum, o de ser impecavelmente limpo, es­pecialmente quando comparado a compa­nhias privadas japonesas que operam com la-

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boratórios de luz síncrotron. O relatório res­saltou também o suporte financeiro do gover­no federa l, através do CNPq, e as oportuni­dades permitidas pela FAPESP, como a com­pra do mais potente microscópio eletrônico da América do Sul , para o recém-inaugurado Laboratório de Microscopia Eletrônica.

A comissão assinalou que a área de bio­logia tem participação de 25% nos trabalhos realizados no LN LS - 326 projetos, até o fi­nal de 1998 - e continua a crescer. Por isso, a construção do novo Laboratório de Biolo­gia Molecular também foi citado como um complemento para a capacitação do LN LS no campo da biologia. Nesse campo, destaca-se, atua lmente, a estação experimental de Cris­talografia de Proteínas, uma das nove existen­tes no laboratório. Essas estações se situam em tangências do grande anel com circunfe­rência de 93 metros, por onde corre, no vá­cuo de um tubo metálico, um feixe de elétrons a uma velocidade próxima à da luz.

Altíssima intensidade Essas partículas são produzidas por um

acelerador linear que produz I ,3 7 Ge V (gi­gaeletronvolts), o que equivale a I O milhões de vezes a energia de uma tomada caseira de li O volts. Quando esse feixe de partículas sofre a ação, em sua rota, do campo magnéti­co de uma estação, ocorre uma perda de ener-

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gia dos elétrons. Essa perda escapa em dire­ção à estação e se transforma na fonte da luz de altíssima intensidade chamada síncrotron, que agrupa desde radiações ultravioletas até infravermelhas e raios X. As estações expe­rimentais captam e filtram essa energia com

rio Plasmodiumfalciparum, agente infec­cioso da malária.

Também está em estudo, sob a coor­denação de Jorg Kobarg, uma proteína do vírus da hepatite B, doença que afeta 7% da população brasileira. Chamada de HX,

da pela equipe do professor Raghuvir Arni, do Departamento de Biofísica da Univer­sidade Estadual Paulista, (UNESP), de São José do Rio Preto, essa proteína poderá fornecer a chave para acelerar ou desace­lerar o amadurecimento, evitando grandes ·

r-;;c..;;~._.'ât'?nf--------r·ll perdas que ocorrem naco-1!11 l theita e na armazenagem.

g "Depois do conhecimento ~ completo dessa proteína,

:~~~;~~==~~ " será possível modificá-la geneticamente ou acionar um inibidor, colocando as frutas numa câmara com um tipo de gás, ainda não definido, capaz de impedir que essa proteína exerça suas funções.

Rogério Meneghini (esq.) e lgor Polikarpov, na Estação de Cristalografia de Proteínas

Uma área onde a de­mandadessetipo de pesqui­sa deve crescer é a do se­qüenciamento de genomas, trabalho hoje realizado em todo o mundo, inclusive em São Paulo, em diversos pro­jetas apoiados pela FA­PESP. Em entre 30% e 60% dos casos de novas descri­ções de seqüências de DNA, não são conhecidas

o comprimento de onda apropriado ao mate­rial a ser analisado.

Na estação de cristalografia, o objetivo é descobrir e descrever a posição dos átomos que compõem uma molécula de proteína, sempre em forma de estruturas tridimensio­nais. Fundamentais para o funcionamento metabólico de qualquer organismo vivo, as proteínas fazem parte das células e cumprem papéis como catalisar reações químicas e re­conhecer e neutralizar antígenos, formas es­tranhas ao corpo. As proteínas, quando des­vendadas, fornecem importantes informa­ções para a elaboração de produtos farmacêu­ticos. "Conhecendo a estrutura da proteína, podemos compreender como ela age e como interage com outras moléculas", explica Igor Polikarpov, coordenador da Linha de Crista­lografia de Proteínas. "Hoje, o interesse maior desse tipo de estudo está nas proteínas envolvidas em processos patológicos", com­plementa Meneghini.

Enrijamento dos dedos Os estudos realizados na estação já le­

varam às descrições das estruturas de dez proteínas, desde setembro de 1997. Duas foram extraídas de dois tipos de veneno, o do escorpião Tityus serrulatus e o da cobra Bothrops pirajai. Essas proteínas são res­ponsáveis pelos danos causados por esses venenos ao corpo humano. "Conhecendo­se a estrutura da proteína, é possível com­bater os venenos mais facilmente", afirma Polikarpov. Há mais estudos em andamen­to, entre os quais um sobre uma proteína envolvida no funcionamento do protozoá-

ela confere o caráter infeccioso do vírus. Se ela for anulada, a virulência da doença será menor e, conhecendo sua estrutura, será possível desenhar uma outra molécula - um fármaco, por exemplo - que impe­dirá sua ação. Entre os outros trabalhos da estação de Cristalografia, também está a descoberta de como age uma proteína de um auto-anticorpo, agente de uma doen­ça hereditária que provoca a aglutinação dos glóbulos vermelhos do sangue, levan­do ao enrijamento dos dedos e outras ex­tremidades do corpo.

Outra aplicação em estudo na estação de Cristalografia é o delineamento da pro­teína álcool-desidrogenase, responsável pelo amadurecimento das frutas. Estuda-

as funções bioquímica e bi­ológica das proteínas envolvidas.

A importância da cristalografia e da luz síncrotron no estudo de proteínas é de­monstrada pelo fato de 12 empresas farma­cêuticas de grande porte se terem unido para formar a Associação de Cristalogra­fia Macromolecular Industrial. Elas usam, em conjunto, duas estações de luz síncro­tron nos Estados Unidos. Entre essas em­presas estão Glaxo Wellcome, Merck, Bristoi-Myers, Squibb e Procter & Gam­ble. A demanda pela utilização da luz sín­crotron é tão grande que cerca de US$ I bilhão está sendo investido, hoje, em no­vos aceleradores, nos Estados Unidos e no Japão. O LNLS brasileiro custou, até aqui , US$ 70 milhões.

Cristais de proteína Quando o problema é determinar a estrutura da

molécula de uma proteína, ganha-se precisão com a técnica da cristalografia e rapidez com o uso da luz síncrotron, na qual o cristal da proteína é exposto à difração de raios X. Nesse processo, as ondas dos raios X interagem com os átomos da molécula e se espalham, formando imagens difragmentadas. Ana­lisando em computadores o padrão de distribuição dos raios e os espaços resultantes, obtêm-se infor­mações capazes de compor, em três dimensões, a estrutura do átomo da proteína.

Para esse tipo de estudo, porém, é essencial que a proteína seja cristalizada. "Ao natural, em so­lução, é impossível analisar corretamente a estru­tura da proteína", diz lgor Polikarpov. Isso porque a

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cristalização leva a um arranjo estrutural altamente regular. Não à toa, uma das fases mais complexas do processo é a da preparação das amostras. O LNLS tem instalações especiais para isso, que também existirão no futuro Centro de Biologia MolecularEs­trutural.

O primeiro passo é clonar o gene que contém a proteína que se deseja estudar. A proteína é então co­locada numa bactéria específica, que entra em repro­dução acelerada. Com isso, conseguem-se grandes quantidades da proteína, seja ela de origem vegetal ou animal. A proteína é purificada e submetida a um processo físico de agregação. Um aumento da con­centração, obtida por agentes químicos, finalmente leva à cristalização.

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CIÊNCIA

AIOS

Falta de apoio Mulheres soropositivas não recebem

orientação sobre como alimentar seus bebês

Uma pesquisa orientada por IsíliaApare­cida Silva, professora associada do Departa­mento Matemo Infantil e Psiquiátrico da Es­cola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), revela como vem sendo encami­nhado o problema da alimentação de recém­nascidos, filhos de mulheres portadoras do vírus da Aids, na cidade de São Paulo.

Nessa situação, a amamentação toma-se problemática porque o leite humano é carrea­dor do vírus. Há dez anos, antes de se desco­brir essa possibilidade, as campanhas de incen­tivo à amamentação ressaltavam apenas seus aspectos favoráveis e não abordavam a ques­tão daAids. Mas, na verdade, se a transmissão do vírus não ocorreu na gravidez, com a inges­tão do leite da mãe portadora há um risco adi­cional de contágio de 14%.

"Nós queríamos saber, em um primeiro momento, se essas mulheres tiveram algum tipo de orientação, no sentido de que não po­deriam amamentar", diz Isília. Segundo a pes­quisadora, a partir disso se poderia verificar que suporte as mulheres tiveram da sociedade para resolver a situação.

Esse primeiro estudo resultou de um pro­jeto de iniciação científica apoiado pela FA­PESP, orientado por Isília e conduzido por ElianaFranco da Silva, alunado último ano do curso de graduação. Essa pesquisa deverá dar origem a outras que permitam um maior apro­fundamento e compreensão do problema.

Para a realização do estudo, participaram 53 mulheres, que acompanhavam seus filhos,

lsíl ia Aparecida Silva: falta suporte da sociedade

os quais são tratados no ambulatório do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, das quais 7 são viúvas, tendo os maridos faleci­dos por causa da Aids, 34 são solteiras com companheiros ou casadas-são, portanto, mais de 50% que têm relacionamentos estáveis-, 9 são solteiras e 3 divorciadas. Entre aquelas com relacionamento estável, não foi investigada a situação dos companheiros, mas, segundo Isí­lia, pode-se inferir que são soropositivos. Ou­tros dados mostram que, da amostra estudada, 19 mulheres têm um único fi lho e ficaram sa­bendo da contaminação ou durante a gestação ou após o parto. Outras 18 têm 2 filhos e as de­mais têm de 3 a 5 filhos. Cerca de 50% não possuem fonte de renda, visto que 17 são do­nas de casa e 19 estão desempregadas.

Cuidados com os alimentos Por meio dos dados coletados, observou­

se que, ao sair da maternidade e serem enca­minhadas,junto com seus filhos, para algum centro de diagnóstico e tratamento de Aids, essas mulheres não receberam qualquer auxí­lio no sentido de suprir a alimentação da cri­ança ou mesmo orientação sobre o preparo ade­quado de mamadeiras, como higienização dos utensílios e diluição do leite em pó. As própri­as mães devem, então, encontrar alternativas para suprir as necessidades alimentares drrs crianças. A grande maioria consegue leite com­prando-o, mesmo tendo uma base salarial bas­tante baixa, de 1 a 6 salários mínimos; ou em postos de saúde e ONGs, como Igrejas, gru-

pos de solidariedade e outros. Há, também, o aproveitamen­

to de leite ganho nas escolas, atra­vés de programas como o Leve Lei­te, da Prefeitura de São Paulo (no caso de mães que possuem outros filhos já em idade escolar). Nesse caso, trata-se de produto inadequa­do para alimentar a criança recém­nascida e, além disso, às vezes, o leite é diluído mais do que seria in­dicado, para que possa "render" e alimentar os outros filhos. Assim, segundo dados da pesquisa, se for considerado o gasto médio semanal de quatro a sete latas e seu corres­pondente em litros de leite, o custo da alimentação do lactente é de no mínimo um terço do salário míni­mo, levando em conta o menor cus­to da lata de leite no mercado (R$

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2,50) e o menor gasto médio semanal de quatro latas de leite, referidas pelas mulheres.

Há um número significativo de mulheres - 16- que engravidaram mesmo sabendo da sua condição de portadoras do virus daAids. Esse aspecto, abordado em um estudo orien­tado por Eliane Chaves Correa, professora da Faculdade de Enfermagem, mostra que engra­vidar significa, para essas mães, uma espécie de prolongamento da vida. Além disso, en­quanto não há uma manifestação claradaAids, sua realidade toma-se muito distante, como se a doença e o risco não estivessem presentes.

Pasteurização do leite Isília pretende rever esse quadro em um

novo projeto de pesquisa, assim como inves­tigaras possibilidades de pasteurização do leite de mães contaminadas. O processo, bastante simples, inativa o vírus do HIV e deve ser fei­to nos bancos de leite humano, sob rigoroso controle de qualidade. Não há, no entanto, uma rede pública desses bancos suficiente para cobertura da população e, mesmo nos serviços existentes na capital, esses não dispõem de um sistema capaz de transportar o leite do domi­cílio para o banco de leite.

Segundo lsília, o grande problema social que pôde ser observado a partir das informa­ções obtidas no Estudo Exploratório da Situ­ação da Amamentação Frente à Problemáti­ca do HIV é a inexistência de programas dire­cionados especificamente para atender às ne­cessidades da mulher soropositiva e da crian­ça impossibilitada de receber o leite matemo.

Salienta-se ainda que, na proposta des­se estudo exploratório, é possível identificar indicadores de fragilidade no sistema de aten­dimento à mulher e à criança, em sua situa­ção de soropositividade, que resvala os aspec­tos de educação em saúde nos níveis de as­sistência pré-natal, durante o período de in­ternação na maternidade, no acompanhamen­to puerperal e de puericultura, somados a uma falha no acompanhamento das mulheres so­ropositivas na sua prática de sexual idade e no planejamento familiar.

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CIÊNCIA

TUBERCULOSE

Prevenindo e tratando Pesquisadores de Ribeirão Preto desenvolvem a primeira vacina gênica contra a doença

Desde que o alemão Robert Koch anun­ciou adescobertado bacilo da tuberculose, em 1SS2, a prevenção e o tratamento da doença desafiam cientistas em todo o mundo. E pela dimensão que essa doença infecto-contagio­sa alcança na atualidade, torna-se particular­mente importante o desenvolvimento de uma nova vacina contra a tuberculose por uma equipe de pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, coorde­nada pelo professor Célio Lopes Silva.

Num projeto temático com financiamen­to da FAPESP em torno de R$ 600 mil, e de­pois de vários anos de estudos e experimen­tação meticulosa, os pesquisadores desenvol­veram uma vacina de DNA, considerada de terceira geração, que poderá ser aplicada no controle da tuberculose, caso seja comprova­da em humanos a mesma eficiência já atesta­da em animais.

Segundo Célio Silva, o trabalho come­çou em 1990, quando ele foi para Londres fazer seu pós-doutoramento. Naquela época, já se sabia que a BCG (Baci lo Calmette-Gu­érin), uma vacina viva baseada no Mycobac­terium bovis atenuada para uso humano em 1921 (vacina de primeira geração), não con­feria proteção satisfatória contra a tuberculo­se. Os antígenos purificados da BCG (vaci­nas de segunda geração) também não indu­ziam a proteção tanto desejada.

"Uma série de dificuldades impedia os estudos para desenvolver uma nova vacina", relata o pesquisador. Partindo-se do princípio de que o Mycobacterium tuberculosis, o agen­te causador da tuberculose, se esconde dentro das células humanas e não é atingido pela ação dos anticorpos, seria necessário estimular os linfócitos T CDS, capazes de destruir especi­ficamente as células infectadas pelos bacilos. Esses linfócitos são estimulados somente quando os antígenos são produzidos dentro de células, como acontece nas infecções virais.

Vacina gênica "Esse princípio foi o ponto de partida

para iniciar o projeto", afirma Célio Silva. Foi tomado um pedaço de D A (o código gené­tico contendo a mensagem para a célula fa­zer o antígeno) e inserido num retrovírus fa­bricado em laboratório pelas técnicas de en­genharia genética. As células (macrófagos) infectadas com esse retrovírus recombinan­te sintetizaram os antígenos, estimularam os linfócitos T CD4 e T CDS e induziram prote­ção contra infecção por M. tuberculosis. "O delineamento experimental para fazer a va-

Célio Lopes Silva: entre um lerço e metade da população munida~ está infectada com o bacilo da tuberculose

cina estava estabelecido", declara o pesqui­sador. De volta para Ribeirão Preto, Célio Silva não mediu esforços para arranjar um sistema mais prático e seguro para fabricar os antígenos dentro das células, uma vez que o processo de infecção com retrovírus era mais um fato r de risco para a saúde da população. Por sorte os primeiros experimentos com vacinas gênicas estavam se iniciando em di­versas partes do mundo.

A vacina de DNA, ou vacina gênica, que está revolucionando o campo, é baseada num pedaço do código genético do agente causa­dor da doença. "Aplicado por meio de inje­ção intramuscular, esse DNA cria condições para a produção da proteína antigênica pe­las próprias células do indivíduo vacinado", segundo Célio Lopes Silva e colaboradores em trabalhos publicados em várias revistas internacionais.

"As vacinas de organismos vivos e ate­nuados, embora funcionem muito bem para cer­tas doenças, oferecem certa margem de risco de que a pessoa acabe contaminada pela doença

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que se pretende prevenir", afim1am os autores. "Com a vacina de DNA isso não acontece." Dessa forma, a vacina gênica é hoje a maior esperança para o combate a doenças infeccio­sas para as quais ainda não se tem prevenção segura, como herpes, Aids, malária, hepatite, esquistossomose, dengue e tuberculose.

Primeiros resultados Os primeiros resultados positivos da

vacina gênica brasileira contra tuberculose foram apresentados em 1994, em Genebra, numa reunião da Organização Mundial da Saúde (OMS) específica sobre tuberculose, e, desde então, os experimentos foram ampli­ados. De acordo com os dados da época, ca­mundongos foram vacinados durante três me­ses com quatro doses de 50 microgramas de DNA por via intramuscular. Após duas sema­nas, foram infectados com o agente etiológi­co da doença, oMycobacterium tuberculosis.

O grupo que não estava vacinado regis­trou a presença de cerca de 1.200.000 bacté­rias por grama de tecido, enquanto o vacina-

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do oscilou de zero a I 00 ou 1.000 bactérias - um número considerado excelente.

Depois de 1994, os pesquisadores pas­saram a testar DNAs que codificassem antí­genos diferentes, com o propósito de verifi­cara melhor para a vacina. Já foram testados 12 antígenos desde então, suficientes para a equipe se dar por satisfeita. Trata-se de um trabalho extremamente delicado e que leva de seis a oito meses para cada antígeno.

Do ponto de vista científico, a revelação dos brasileiros no encon­tro de 1994 representou um enorme êxito. "Com a apresentação dos resul­tados positivos, vários grupos de biotecnologia avançada se animaram a prosseguir as pesquisas na mesma direção", afir­ma Célio Silva. Nos Es­tados Unidos, diversos laboratórios estão envol­vidos em projeto seme­lhante, com um orça­mentoestimadoem US$ 800 milhões.

O próximo passo seria experimentar a va­cina em outros modelos animais, como cobaias, coelhos e macacos. De­pois desses experimen­tos, a vacina poderia ser testada em humanos em três fases distintas. Na fase I (utilizando mais ou menos 50 indiví­duos) seria verificada a toxicidade; na fase 2 (em torno de 300 indiví-duos) seriam observa­

dos os efeitos imunológicos; e na fase 3 (com cerca de pelo menos 150.000 pessoas) seria verificada a eficiência da vacina numa deter­minada população, acompanhada por pelo menos 12 anos. Ao todo, esse processo pode­ria levar até 20 anos e os custos para a reali­zação de todos os testes seriam elevados.

Mudança de alvo Apesar dos bons resultados obtidos pelo

grupo coordenado por Célio Silva, as dificul­dades acima apresentadas fizeram com que o grupo mudasse o seu alvo para o combate à tu­berculose. "Em vez de usar a vacina de DNA como preventiva da infecção, direcionamos os trabalhos visando ao uso dessa mesma vacina no combate direto à infecção já estabelecida, como se fosse um agente terapêutico ou uma droga antimicobacteriana" diz o pesquisador.

Reforçou essa posição o fato de entre um terço e metade da população mundial já estar infectada com o bacilo da tuberculose. Em torno de 5% a I O% desses indivíduos desen­volvem a doença. Nessas condições, o uso de uma vacina não como preventiva da infecção

mas que tenha atividade terapêutica contra indivíduos infectados seria a solução.

Os resultados obtidos pelo grupo mos­traram que a administração da vacina gênica em animais previamente infectados com M. tuberculosis virulenta previne o desenvolvi­mento da doença e elimina a infecção. Além disso, quando a vacina é administrada em estados mais avançados da doença, ou mes­mo quando ela está disseminada por todo o organismo do animal, ela também tem a pro­priedade de curá-los. Essa cura se dá pela ati­vação apropriada do sistema imunitário.

Um dos problemas mais sérios relacio­nados com o controle da tuberculose é o apa­recimento de bacilos que apresentam resistên­cia a vários dos medicamentos utilizados no tratamento, como a isoniazida, pirazinamida, estreptomicina e rifampicina, entre outros. Já foram isolados bacilos que são resistentes não só contra um desses medicamentos como também contra combinações de dois, três e mesmo contra todos ao mesmo tempo. Esses pacientes, denominados multi droga resisten­tes, contam com poucas alternativas de trata­mento e às vezes com nenhuma. O desenvol­vimento do projeto mostrou que animais in­fectados com bacilos resistentes a essas drogas também são curados pela administra­ção da vacina gênica.

Outro problema associado ao alto índi­ce de indivíduos infectados se correlaciona com o alto grau de adaptação dos bacilos ao homem. A infecção normalmente se estabe­lece após inalação dos bacilos e sua entrada nas células de defesa do nosso organismo. Dentro dos macrófagos, que são células com alto potencial microbicida, os bacilos têm a habilidade de desativar os sistemas de defe­sa dessas células e conseguem sobreviver e se multiplicar no seu interior. O sistema de defesa imunitário do homem toma conheci­mento da presença dos bacilos e estabeléce uma resposta contra eles, caracterizada por uma reação inflamatória crônica denomina­da granuloma e que tem a finalidade de cir­cunscrever e delimitar a infecção.

Nessas condições, os bacilos podem so­breviver por anos em estado de latência ou dormência e o indivíduo infectado pode não manifestar a doença. A doença se manifesta quando há um desequilíbrio dessa relação

mútua e freqüentemente está associada com estados de depressão da resposta imunológi­ca. Os casos mais comuns de imunossupres­são associados com a tuberculose são os in­divíduos com Aids, estressados, que tomam drogas imunossupressoras, alcoólatras e des­nutridos, entre outros.

Experimentos No desenvolvimento do projeto também

foi olhado com muita atenção esse problema do estado de latência ou dormência das mi­cobactérias que podem sofrer uma reativação e manifestar a doença em estados de imunos­supressão. Foi desenvolvido um modelo ex­perimental em camundongos que mimetiza exatamente as condições observadas no de­senvolvimento da doença humana em imuno­deprimidos. Nos grupos de animais contro­les - aqueles que foram infectados, tratados com drogas antibacterianas para estabelecer um estado de latência, a quem foi administra­do corticosteróide para causar imunossupres­são e que não foram vacinados - observou­se a reativação da infecção e o estabelecimen­to da doença. Nos grupos experimentais que

Koch e a tuberculose A infecção pelo bacilo da tuberculose se dá pela

inalação de pequenas gotículas oriundas do espirro de pessoas contaminadas. Essas gotículas contendo bacilos vão para os pulmões e aí, dependendo do estado de resistência imunitária dos indivíduos, podem estabelecer a doença. O pulmão é, em geral, o órgão mais comprometido pela infecção da tuberculose.

A tuberculose é conhecida desde o Egito anti­go, séculos antes de Koch ter descoberto o bacilo que hoje leva o seu nome e que lhe proporcionou o Prê­mio Nobel de Medicina em 1905.

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Apesar de a tuberculose ser muito antiga, o conhecimento sobre os mecanismos relaciona­dos com o desenvolvimento da doença é pouco entendido. Não se sabe ao certo como se esta­belecem as relações quando os bacilos penetram e se multiplicam dentro das células dos indivídu­os. Além disso, muitos estudos ainda são neces­sários para melhorar os testes de diagnóstico, descobrir novas drogas antibacterianas e desen­volver uma vacina mais eficiente para impedir a transmissão da doença.

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foram vacinados com a vacina de DNA não foram observadas reativações e desenvolvi­mento da doença, principalmente quando foram administradas três doses da vacina. "Se a vacina em humanos funcionar da mesma maneira como foi demonstrado para os ani­mais ela pode até erradicar a tuberculose em nosso meio", afirma o pesquisador.

Teste em humanos O tratamento da tuberculose feito com

drogas antimicobacterianas é de longa duração -demora pelo menos seis meses. O uso con­tínuo dessas drogas, que normalmente são tó­xicas para os pacientes, leva a uma alta taxa de abandono de tratamento e tem reflexos impor­tantes no controle da doença e aparecimento de bacilos resistentes. O uso concomitante da vacina de DNA com drogas antibacterianas permitiu uma redução significativa do perío­do de tratamento dos animais infectados com M. tuberculosis. Isso poderá trazer ganhos sig­nificativos, tanto no bem-estar social dos do­entes e infectados quanto nos aspectos econô­micos envolvidos no controle da tuberculose.

é para menos. A tuberculose é um dos mais graves problemas de saúde pública do plane­ta, especialmente nos países pobres. O baci­lo é responsável pela morte de cerca de 3 mi­lhões de pessoas por ano. Por isso ela é clas­sificada como "reemergente".

No Brasil, cerca de 90 mi l novos casos são notificados a cada ano, juntamente com 5 mil mortes. Os principais focos, como no Rio de Janeiro e São Paulo, estão associados a hábitos e condições de vida, promiscuida­de e consumo de drogas. O aparecimento da infecção pelo HIV tomou a tuberculose uma doença ainda mais dramática, devido à asso­ciação com a Aids.

Pelo menos nas pesquisas com os ca­mundongos, a vacina gênica foi utilizada no tratamento da doença, conceito diferente em relação às vacinas convencionais, que são uti­lizadas somente como prevenção à instalação da doença. "A vacina de DNA cura a infec­ção, cura a doença estabelecida e impede que ocorra a reativação da doença, sem perder a sua característica profilática", afirma Célio Silva. "Se der certo no homem, será uma arma poderosa contra a tuberculose."

Para a ciência, cuja escala de tempo prevê resultados a médio e longo prazo, vale a pena investir, diante dos beneficias que podem advir. Não é algo que se possa esperar para antes do ano 200 I, segundo Célio Silva. "Mas nesse período não have­rá droga ou vacina que sairá em hipótese alguma", afirma. "Os beneficias práticos e estratégicos resultantes do desenvolvimen­to dessa vacina com atividade terapêutica contra a tuberculose são inúmeros", afirma

Vantagens da vacina gênica O que a vacina de DNA permite, segundo o cientista Célia Silva:

•Previne o estabelecimento da infecção e da doença

•Elimina a infecção causada pelo bacilo da tu­berculose

•Cura casos crônicos e doença disseminada

•Resolve casos de tuberculose causada por bactérias altamente resistentes aos medica­mentos usados no combate à doença

•Impede a reativação da doença quando os ani­maissãosubmetidosaumaimunodepressão pelo tratamento com drogas imunossupressoras

•Permite que o período de tratamento efetivo contra a tuberculose seja encurtado de oito para dois meses pela administração concomi­tante de medicamentos e aplicação da vacina

o cientista. "Ela é segura, eficaz, pode ser dada numa única dose, estimula amplamen­te a resposta imunológica, tem efeito pro­tetor duradouro e pode contribuir signifi­cativamente para a diminuição da incidên­cia da tuberculose", acrescenta.

O custo de produção em larga escala é baixo e são estáveis à temperatura ambiente. Todos esses fatores "facilitam o transporte, a distribuição e o estabelecimento de amplos programas de imunizações em regiões de di­fiei! acesso e absolutamente desejáveis no âmbito da realidade brasileira".

O próximo passo, agora, e essa é a gran­de novidade da equipe de Ribeirão Preto, será testar a atividade terapêutica da vacina em um grupo de pacientes que manifestam a doença e cujas bactérias são resistentes a todas as drogas existentes no mercado. Esse grupo será chamado de "resistente a multidrogas". Ao mesmo tempo, outro grupo "normal" (que responde às drogas) será estimulado pelava­cina, simultaneamente à administração de drogas, com a finalidade de verificar se o tem­po de tratamento é encurtado. Ambos os tes­tes serão desenvolvidos com o apoio da Uni­versidade Federal de São Paulo (Unifesp) e controlados por equipes treinadas no Depar­tamento de Moléstias Infecciosas.

O processo de obtenção da vacina Os dados científicos obtidos até o mo­

mento são tão animadores que a revista Na­ture acaba de aceitar a publicação de traba­lho do grupo sobre a terapia gênica contra a tuberculose, o que deverá ocorrer proxima­mente, provavelmente causando repercussão nos meios científicos em todo o mundo. Não

Para a produção da vacina, um pedaço da molécula de DNA do bacilo é retirado· e inserido em plasmídeos especiais que permi­tem a sua multiplicação em larga escala em bactérias Escherichia coli. No DNA fica o código genético que codifica um antígeno o qual tem a potencialidade de induzir uma res-

PROCESSO DE OBTENÇÃO DA VACINA DE DNA

CLO.NA.GHM

MICOBAcrEitlANOS

HSN5, HSP70, ESA T f, MPT7o, ML36,MT38

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VACINA DE DNA

ISOLAMENtO I>OS PL.UMIDEOS

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CIUISCDOIIlO DAS DACTtiUAS

posta imune "adequada, protetora e duradou­ra", segundoCélio Silva. Quandoaplicadaem animais, a vacina de DNA induz a produção da proteína antigênica dentro de células do sistema imunológico, como os macrófagos e as células dendríticas. Essas células são co­nhecidas como células apresentadoras de an-

ESTIMULAÇÃO DA RESPOSTA IMUNE PELA VACINA

VACINA DE DNA

INJEÇÃO INTRA MUSCULAR

d:LULA APRESENTADORA

DEANTÍGENO

PROCESSAMENTO E APRESENTAÇÃO

ANTIGtNICA

Page 19: Nova arma contra a tuberculose

tígenos e estão diretamente relacionadas com a estimulação da produção de anticorpos e ati­vação de linfócitosT. Os linfócitos T são fun­damentais para o controle da tuberculose.

Diversos segmentos de DNA já foram testados e alguns deles oferecem proteção de I 00% em animais infectados, sendo que em vacinas recombinantes, da segunda geração, o índice de proteção alcançado foi de I O a 15%. As análises imunológicas mostraram que, dentre todas as células estimuladas pela vacina de DNA, os linfócitos I CDS exercem papel preponderante no controle da infecção.

Os trabalhos do grupo de Ribeirão Pre­to mostraramqueos linfócitos I CDS estimu­lados pela vacina gênica são preferencialmen­te do tipo citotóxicos, isto é, têm tanto a ca­pacidade de destruir as células que albergam o bacilo da tuberculose em seu interior como secretam grânulos enzimáticos que ajudam na sua eliminação. Além disso, tanto os linfóci­tos T CDS como os T CD4 secretam, em altas concentrações, os estimuladores do sistema imunológico (interleucinas ), como a IL-2, IL-12 e interferongama.As interleucinas ajudam a manter ativados os sistemas microbicidas dos macrófagos, que também são usados para matar as mico bactérias.

A imunidade adquirida persiste por lon­go período de tempo, devido tanto à constante produção do antígeno dentro da célula hospe­deira como à capacidade destes estimularem linfócitos de memória imunológica, sendo desnecessárias as revacinações.

A vacina de DNA, segundo Célio Sil­va, é um método considerado "mais eficaz e seguro" do que o de vacinas convencio­nais, que inoculam vírus ou bactérias ate­nuadas na pessoa para obrigar o sistema imunológico a produzir anticorpos ou imu­nidade celular. Com a vacina de DNA não existe o risco de que a pessoa termine con­taminada, ao contrário da vacina de orga­nismos vivos como o BCG - e essa é ape­nas uma de suas vantagens. "As vacinas de DNA representam uma metodologia que se aproxima da infecção natural, alcançando altos níveis de proteção desejada", segun-

do relata Célio Silva em seu trabalho. A vacina gênica é uma alternativa rela­

tivamente recente na ciência médica. Somen­te em 1992 é que foi demonstrado pela primei­ra vez que um gene associado a um plasmí­deo poderia ser empregado como vacina, de acordo com a I iteratura médica. Logo após foi mostrado que a injeção intramusculardo gene que codifica uma nucleoproteína do vírus in­fluenza poderia ser utilizada para imuniza­ção de camundongos contra essa virose.

O fato causou enorme repercussão nos meios científicos e tecnológicos, segundo Célio Silva. "Desde então foram desenvolvi­das vacinas gênicas contra uma série de agen­tes patogênicos. E algumas dessas novas va­cinas, principalmente aquelas contra Aids e influenza, apresentaram excelente resposta em primatas, e já se encontram em fase de testes pré-clínicos em humanos", segundo ele.

A equipe de pesquisa da terapia gêni­ca contra tuberculose é composta por Cé­lio Lopes Silva, do Departamento de Para­sitologia, Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto­USP (coordenador); Lúcia Helena Faccio­li, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto - USP; Sylvia Cardoso Leão, da Universidade Federal de São Pau­lo- Unifesp; Douglas B. Lowrie, do Natio­nal Institute for Medicial Research, Lon­dres; e José Maciel Rodrigues Junior, da Fa­culdade de Farmácia- Universidade Fede­ral de Minas Gerais.

Perfil: O professorCélio Lopes Silva, 46 anos, é farmacêutico, graduado pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) em 1976. Fez mes­trado e doutorado na área de Bioquímica do Instituto de Química da USP, livre-docência em Microbiologia Mé­dica na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto- USP e pós-doutoramento em Imunologia e Biologia Moleéu­lar no Nationallnstitute for Medical Research, na Ingla­terra, entre 1989 e 1990. É professor titular em Imunolo­gia e foi chefe do Departamento de Parasitologia, Micro­biologia e Imunologia da Faculdade de Medicina de Ri­beirão Preto da USP entre 1995 e 1998.

DEDNA MANEIRAS PELAS QUAIS O SISTEMA IMUNOLÓGICO ATIVADO PELA VACINA

DE DNA ATUA SOBRE MICOBACTÉRIAS

'STIMULAÇÃODE 'IESPOSTA IMIJNE

ESPECÍFICA

LlNFÓCIT05 T CDS

LINFÓCITOS T CD4

LINFÓCITOS B

ATIVAÇÃO DA

RESPOSIA

~

LINFOC!TO T CDS CITOTOXICO

r===='.> I IFN-r

IFN-y

A!tVAÇÃO

ATIVAÇÃO

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Laboratório poderá servi r a experimentos semelhantes

Laboratório especial Em ciência, o investimento feito em

função de uma ,Pesquisa pode servir para muitas outras. E o caso do Laboratório de Vacinas Gênicas, construído com recursos da FAPESP no Departamento de Parasito­logia, Microbiologia e Imunologia da Fa­culdade de Medicina de Ribeirão Preto.

O laboratório permite a manipulação com segurança de microrganismos que cau­sem doenças sérias e potencialmente letais por exposição ou inalação. Foi edificado para a pesquisa da vacina contra a tubercu­lose, mas poderá servir para outros experi­mentos equivalentes.

Esse investimento foi necessário, pois não havia em Ribeirão Preto laboratório com o grau de segurança necessário para uma pes­quisa como essa. Conceitualmente, o Labo­ratório de Vacinas Gênicas, cujo nível de bios­segurança é 3 (NB3), é considerado adequa­do para trabalhos com organismos genetica­mente manipulados (OGM) resultantes de agentes altamente infecciosos classe 3, como é o caso do Mycobacterium tuberculosis.

Graças a esse recurso, todos os trabalhos com o bacilo da tuberculose são realizados em cabines de segurança biológica classe III. Elas permitem manipulação de culturas de célu­las infectadas e de material clínico contami­nado, cultura de microrganismos, operações de animais, cultivo de tecidos ou fluidos in­fectados de animais e necrópsia.

De acordo com Célio Silva, o pessoal de laboratório tem treinamento específico no manejo desses agentes patogênicos e poten­cialmente letais e é freqüentemente super­visionado por especialistas com vasta expe­riência com esses agentes .

Page 20: Nova arma contra a tuberculose

TECNOLOGIA

BIOQUÍMICA

Fórmula para crescer Empresa formada por pesquisadores vai produzir hormônio do crescimento no Brasil

Ponha-se no lugar de membro de uma família com uma criança com deficiência de hormônio do crescimento (GH). Ela vai pre­cisar de doses diárias do produto por anos a fio. Cada dose do medicamento, todo importado, custa entre R$ 50 e R$ 80. Se a criança está sob tratamento no Hospital das Clínicas da Univer­sidade de São Paulo (USP), o governo do Es­tado banca a despesa. Mas, se não estiver? E o que isso significa para os cofres públicos? Além dis­so, o hormônio não é usado só em distúrbios de cres­cimento e com ameaça de nanismo. Ele é recomen­dado para pacientes de Aids, por exemplo, ou para a recuperação de queima­dos, por estimular a recu­peração dos tecidos. Cal­culou a despesa?

Existe agora, porém, a possibilidade de que es­ses custos sejam reduzi ­dos, com o início da produ­ção do hormônio, por meio da engenharia genética, no próprio Brasil. Se tudo der certo, uma nova empresa, a Hormogen Biotecnolo­gia, começará a fabricar, no primeiro semestre do próximo ano, o medica­mento em escala pi loto. "Vamos produzir com cus­tos mais baixos que os pra­ticados pelas multinacio­nais", afirma o pesquisa­dor Paolo Bartolini, chefe do Departamento de Bio­engenharia do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), coor­denadordo projeto de pro­dução e comercialização do medicamento.

Para isso, o IPEN e a Hormogen, cujos princi­pais acionistas são os pró­prios pesquisadores envol­vidos na investigação, já assinaram um convênio. O projeto, por sua vez, cha­mado Otimização dos Rendimentos de Ex­pressão Bacteriana, Fermentação e Purifica­ção do Hormônio de Crescimento Humano Recombinante, Visando Viabilizar sua Pro­dução e Comercialização, foi incluído no

Programa de Inovação Tecnológica em Pe­quena Empresa (PIPE), apoiado pe la FA­PESP. Saíram das verbas da Fundação cerca de R$ 250 mi l para tomá-lo possível.

Pico na puberdade O hormônio do crescimento (a sigla, GH

ou hGH, vem das in iciais do nome em inglês, Human Growth Honnone) já foi, inclusive,

muito mais caro. Até a década de 1970, a úni­ca maneira de consegui-lo era extraí-lo da glân­dula hipófise de cadáveres de seres humanos. Só a partir de 1979 começou a ser produzido, nos Estados Unidos, por meio da modificação

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do patrimônio genético de bactérias. Atual­mente, todo o hormônio usado no Brasil é im­portado. As principais marcas, com os fabri ­cantes entre parênteses, são Genotropin (Phar­macia Upjohn), Humatrope(Eli Lilly), Nordi­tropin (Novo Nordisk) e Saizen (Serono ).

O hormônio é secretado pela glândula hipófise durante toda a vida, mas tem seu pico de produção na fase da puberdade.

"Depois,a produção vai caindo gradativamente", explica a médica endocri­no logista Berenice Bilha­rinho de Mendonça, I ivre­docente da especialidade na USP. A principal fun­ção desse hormônio é a de estimu lar a divisão das células, permitindo, as­sim, o aumento dos teci­dos . Não se sabe exata­mente quantas pessoas têm deficiência na produ­ção do hormônio no Bra­sil. Mas, se for seguido o padrão internacional , de uma pessoa em cada gru­po de entre lO mil e IS mil nascidos , teremos algo em torno de 15 mil paci­entes.

O número de usuá­rios em potencial , porém, não pára por aí. Nem sem­pre a deficiência na produ­ção do hormônio tem cau­sa genética. Ela pode ser conseqüência de outros fatores , como tumores na região da hipófise, um traumatismo craniano ou efeitos da radioterapia. Além disso, sua aplicação terapêutica não é útil ape­nas em crianças em risco de nanismo. Ela é recomenda­da em vários casos, como transplantes de rins e situ­ações graves de debilita­ção, como pacientes de Aids, tratamentos pós-ci­rúrgicos e queimaduras graves.

Nos últimos anos, ainda, aplicações do hormônio vêm sendo usadas em pessoas ido­sas, nas quais agiria como uma espécie de elixir da juventude. Esse tipo de tratamen­to, porém, não tem comprovação científica.

Page 21: Nova arma contra a tuberculose

HORMÔNIO DE CRESCIMENTO HUMANO RECOMBINANTE

a) t> Sitiosde clivagem triplica

b) 11 Número teórico de peptideo

c) _. Sitio de clivagem do peptideo Phe-Pro

d) -+ Sitio de clivagem que produz duas cadeias

e) Metionina oxidada

e Asparagina desamidada

Seqüência (b) sinalizadora Seqüência que codif~ o

bacteriana hormônio de crescimento

iniciadora Metionina 'O Modificação

Hormônio do crescimento secretado no espaço periplásmico /

dag;n~~~ / ~ ~

o- / ... _./.__

hGH 'sem

hGH liberado mediante choque osmótico

metionina ~ NH,

COOH

Proteína com seqüência idêntica à do hormônio de crescimento natural

cliva o peptideo sinalizador

O hormônio de crescimento humano recombinante (rec-hGH) foi obtido modificando o patrimônio genético da E. coli, com a introdução de um plasmideo que contém a seqüência codificadora da molécula do hormônio natural, juntamente com aquela

do peptideo sinalizador. Uma protease bacteriana especifica cliva esse peptideo, permitindo sua secreção no espaço periplásmico bacteriano onde a molécula adquire a correta estrutura tridimensional (Fig.2). Essa localização, externa ao citoplasma, permite

a extração do hormônio mediante 'choque osmótico' (incubação em meio hipertônico seguida de incubação em meio hipotônico), sem ruptura da célula (Fig 3). após a extração e várias etapas cromatográficas, o produto é obtido com alta pureza

"O hormônio acelera a recuperação das células perdidas, favorecendo a construção dos tecidos e a síntese protéica", informa a professora Berenice. O hormônio é injeta­do no corpo do paciente. No caso de crian­ças com problemas de nanismo, a dose bá­sica é de um décimo de uma unidade inter­nacional por quilo de peso. Assim, uma cri­ança com20 quilos vai precisar de duas uni­dades internacionais de GH por dia.

A citoplasma

Figura2

B

Processo complicado Não se chega, porém, ao estágio de

produção do hormônio por engenharia ge­nética de um momento para o outro. Bar­tolini , por exemplo, trabalha com a produ­ção e caracterização de hormônios há mais de 20 anos. Ele aprendeu a técnica de clo­nar o gene do GH em 1988, quando fazia estudos de pós-doutorado na Itália . De volta ao Brasil , continuou suas pesquisas. Há cerca de cinco anos, a equipe do IPEN sentiu que já dominava completamente as técnicas para a obtenção do hormônio. Só isso já é um passo a ser comemorado. O grupo detém o que Bartolini classifica de "um know-how importantíssimo", que pode, no futuro, ser aplicado na obtenção de outros medicamentos.

O processo para a obtenção do hormô­nio do crescimento não é simples. Começa com a introdução e o controle do gene hu­mano numa bactéria modificada. A mais usada é a Escherichia coli. Durante a fase de fermentação, a bactéria reproduz-se ra­pidamente e passa a produzir o G H. A mul­tiplicação é tão rápida que uma bactéria pode dar origem a bilhões no tempo de ape­nas dez horas. Passa-se, então, a um proces­so de centrifugação das bactérias, com o qual se obtém um extrato cru de proteínas.

Começa uma longa etapa de purifica-

bactéria em meio hipertônico

Figura 3 ção, com o objetivo de obter o hormônio e separar os contaminantes. A etapa tem mui­tos estágios, como cromatografias e preci­pitações. "Só no fim conseguimos separar a proteína que nos interessa", diz Bartoli; ni. Com a proximidade do início da produ­ção em escala piloto, ainda, as preocupa­ções dos pesquisadores estão em outros campos, incluindo o aspecto econômico do processo. "Para colocar o produto no mer­cado em condições de competitividade, é preciso otimizaros rendimentos da pesqui­sa, tanto na obtenção de vetares de expres­são mais eficientes como no processo de fermentação em bioreator, aumentando a quantidade e a produtividade por bactéria", afirma Bartolini.

Potencial de negócios Para começar a produzir o hormônio,

ainda em escala piloto, os pesquisadores aguardam agora a chegada de equipamen­tos importados, o que deve ocorrer no pra­zo de seis meses. Se não houver imprevis­tos, calcula o administrador da Hormogen, Antônio Eduardo de Freitas Nicodemo, a produção começa no primeiro semestre do ano 2000. Com a planta piloto em funcio­namento, os pesquisadores saem em busca de parceiros para dar início à produção in­dustrial. "Já estamos estudando as melho-

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bactéria em meio hipotônico

res parcerias e continuamos abertos a pro­postas", afirma Nicodemo.

Por enquanto, a Hormogen, que foi or­ganizada especificamente para a produção do GH e tem como principais cotistas os pesquisadores do IPEN, com 70% do capi­tal , passa por uma fase de adequação ao espaço que vai ocupar. Trata-se de um sa­lão com cerca de 50 metros quadrados, si­tuado no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec) da USP, na Cidade Universitária. O Cietec, organização des­tinada a apoiar empresas emergentes na área tecnológica, fornece a infra-estrutura. Quanto às possibilidades de desenvolvi­mento, não são pequenas. "Temos um mer­cado potencial para o hGH biossintético superior a 300 mil doses por ano e ele está em expansão contínua", sublinha o admi­nistrador Nicodemo.

Perfil: O professor Paolo Bartolini, de 54 anos, é chefe do De­partamento de Bioengenharia do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Nascido na Itália, for­mou-se em Química pela Universidade de Pávia. Dou­torou-se em Biologia Molecular pela antiga Escola Pau­lista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo. Tem dois pós-doutorados, um de Bioquímica de Proteínas, nos Estados Unidos, e outro de Engenharia Genética, na Itália.

Page 22: Nova arma contra a tuberculose

TECNOLOGIA

SIDERURGIA

Modelo de aço Unicamp desenvolve simulador que vai testar em laboratório novas tecnologias para a indústria siderúrgica

Qual é a tendência da indústria siderúrgi­ca no fim do século 20? Apresentar produtos de melhor qual idade por um custo menor, res­ponde um especialista no assunto, Rezende Gomes dos Santos, professor titular da área de Engenharia de Materiais da F acuidade de En­genharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ). Usar processos que consomem menos energia e provocam o mí­nimo de poluição ambiental, acrescenta. Ele e um grupo de pesquisadores da U nicamp estão

feitos em pequena escala, no interior do labo­ratório, sem prejudicara produção nonnal das usmas.

O simulador, projetado e construído por pesquisadores e técnicos do Departamento de Engenharia de Materiais da Unicamp, é o pri­meiro resultado do projeto de inovação tecno­lógica Estudo do Processo de Lingotamento Contínuo de Placas Finas, realizado em par­ceria pela Unicampe pela Companhia Siderúr­gica de Tubarão (CST), do Espírito Santo, a

maior exportadora mundial de placas de aço. O projeto se de­senvolve no âmbito do Progra­ma de Inovação Tecnológica em Parceria (PlTE).Para tor­ná-lo possível , houve um fi­nanciamento conjunto, da FA­PESP, que entrou com R$ 200 mil, e da CST, que contribuiu comR$80mil.OprofessorSan­tos é o coordenador do projeto.

Chumbo e estanho "A idéia partiu da CST, que

queria um equipamento capaz de simular os fenômenos ocor­ridos durante o processo de lin­gotamento contínuo de placas", lembra o professor Santos. Os estudos começaram em julho de 1997. Por ser um trabalho pio­neiro no Brasil, com pouca lite­ratura de referência, a fase ini­cial, de planejamento do simu­lador, foi a mais difícil. Muitas experiências foram feitas, com placas de liga de chumbo e es­tanho, atéqueo processo de lin­gotamento chegasse no nível ótimo no simulador. Agora, ele já está trabalhando nonnalmen­te, com aço. Rezende Gomes dos Santos: sintonizado com o que se faz no mundo

"Nesta primeira bateria de testes, vamos trabalhar com aço carbono-man­ganês, facilmente analisável", infonna o enge­nheirometalurgista Júlio Cezar Bellon, do gru­po de engenharia de desenvolvimento de pro­dutos da CST, participante do projeto. "O ob­jetivo é treinar a equipe do laboratório, in­clusive em aspectos de segurança, domínio do procedimento experimental e ajuste dos parâ­metros de controle de processo", acrescenta.

desenvolvendo pesquisas que vão nessa dire­ção. Desde maio, está em funcionamento na sua faculdade o primeiro simulador de lingo­tamento contínuo de placas de aço produzido no Brasil.

Esse equipamento de laboratório vai per­mitir que as siderúrgicas realizem, em menos tempo e por um custo bem menor, experiênci­as destinadas a descobrir novos e melhores processos para fabricar placas de aço, finas e convencionais, por meio do lingotamentocon­tínuo. Vai pennitirtambém uma melhor capa­citação dos envolvidos no setor da siderurgia. A partir de agora, testes e ensaios poderão ser

Para Bellon, a indústria ganhou, com o si­mulador, um equipamento versátil, capaz de obter resultados que serão aplicados na linha de produção, melhorando o desempenho, di­minuindocustoseaumentandoaqualidade. "O

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equipamento pem1ite uma análise detalhada dos efeitos dos parâmetros de processo e da composição química, relativa à qualidade in­tema e superficial dos produtos obtidos", diz o engenheiro.

Mudança global Nesse caso, o Brasil não está sozinho.

Vários centros de pesquisa realizam estudos desse tipo em várias partes do mundo, especi­almente no que se refere à tecnologia das pla­cas finas de aço. Santos lembra que a indústria siderúrgica vem passando por uma série de transfonnações tecnológicas, em todo o mun­do,justamente com o objetivo de oferecer pro­dutos melhores por custos mais baixos.

Uma das tendências principais é justa­mente o desenvolvimento de processos desti­nados a obter produtos de aço fundido nas for­mas e dimensões mais próximas do possível das destinadas à comercialização. Esses pro­dutos são conhecidos, no linguajar técnico, pela expressão inglesa Near-net-shaping-cas­ting. Para a usina, fabricar produtos nessas con­dições significa racionalizar processos e inte­grar etapas, ou seja, gastar menos energia e reduzir o custo final.

No processo convencional, as máquinas de lingotamento contínuo, as mais usadas hoje pelas siderúrgicas, produzem primeiro as pla­cas numa detenninada espessura. Só então as placas são laminadas, em etapas sucessivas, até chegarem às dimensões com as quais serão entregues aos clientes. O tamanho com que a placa sai da máquina tem grandes variações. A largura pode ir de 0,85 metro a 2,30 metros. A espessura, de 15 a 30 centímetros. A partir dessas espessuras, a placa é submetida a um processo de laminação para que atinja a espes­sura desejada.

Não é preciso dizer que o processo de la­minação, por melhor que seja feito, gasta enormes quantidades de energia. "Essa ener­gia representa uma parcela significativa do custo de produção total, razão mais do que su­ficiente para que as siderúrgicas estejam in­teressadas no desenvolvimento de processos destinados a obter peças com menor espes­sura", comenta Santos.

Mais finas Recentemente, houve um grande avanço,

com o aparecimento de máquinas de lingota­mento contínuo que produzem diretamente placas finas, com entre 4 e 8 centímetros de espessura. Essas placas podem ser laminadas em seqüência, em laminadoras de tiras a quen­te, de tamanho reduzido. Para alguns especia-

Page 23: Nova arma contra a tuberculose

I istas, a nova tecnologia tem uma enom1e van­tagem, a possibilidadedeacoplar lingotamento contínuo e laminação numa única unidade. Isso economizaria tempo e gasto de energia e au­mentaria a produtividade.

Santos é mais cauteloso. Para ele, é pre­ciso fazer um bom estudo de viabi lidade antes de dar esse passo, pois ele não oferece vanta­gens em todos os casos. Há a questão do tipo e quantidade de produtos fornecidos pela usina. E há também o problema do efeito do tipo de processo sobre a microestrutura e, portanto, da qualidade final da placa.

Tudo isso acontece num momento de enormes transformações na indústria siderúr­gica. As mudanças começaram na década de 1970, quando a crise do petróleo forçou as usi­nas a melhorar drasticamente o aspecto térmi­co de suas operações industriais. As reformas deram origem a novos desenvolvimentos tec­nológicos e aumentaram a apl icação do lingo­tamento contínuo na produção de aço.

A competitividade aumentou, com a am­pliaçãodaofertadeprodutossiderúrgicos. Sur-

Os números da CST

A Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) é a maior fornecedora de placas de aço do mer­cado mundial, com cerca de 19% do mercado in­ternacional. Em 1998, comercializou 3,5 milhões de toneladas do produto. Seu fatu ramento anual é de cerca de US$1 bilhão. Responde por 15% da produção nacional de aço bruto e é a sexta colo­cada no ranking dos maiores exportadores brasi­leiros. Tem porto próprio, em Praia Mole, e é ser­vida por duas ferrovias.

A empresa foi formada em 1976, como com­panhia mista com controle do Estado, e privatiza­da em 1992. A sede fica em Serra, no Espírito Santo, perto de Vitória. Sua especialização é a produção de placas de aço por meio de lingota­mento contínuo. As placas são relaminadas em produtos planos, com diversas aplicações.

giram as miniusinas, que trabalham principal­mente à base de sucata, cujo custo de instala­ção é de um quarto de uma usina convencio­nal. Essas usinas, que funcionam, principal­mente nos Estados Unidos, Itália e India, mos­traram os problemas das instalações gigantes­cas que vinham dominando o setor.

Mais investimentos Os últimos anos foram caracterizados

pela maior preocupação com os aspectos am­bientais e pelo aparecimento de aços de baixo peso, mas grande resistência. O setor está cada vez mais preocupado com a tecnologia e hou­ve um aumento sensível dos investimentos em pesqutsa.

Énessequadroqueentra o projeto da Uni­camp. Além do professor Santos, participam os professores Paulo Roberto Me i, vice-coor­denador, e Geraldo Nunes Telles, ambos do Departamento de Engenharia de Materiais, além de dois alunos de doutorado, três de mes­trado e um engenheiro. O projeto deve estar terminado no segundo semestre deste ano.

O simulador tem, entre seus elementos, um molde retangular, com parede móvel. O aço é fundido em um forno de fusão por indução e vazado para o molde, a temperaturas superio­res a 1.550 graus Celsius. Nesse momento, é aplicada a defom1ação, a redução da espessura com o núcleo ainda líquido, com o objetivo de melhorara qualidade do matetial. Paralelamen­te, modelos numéricos são desenvolvidos num computador, para estudos posteriores.

Perfil: O professor Rezende Gomes dos Santos tem 51 anos e é professor titular na área de Engenharia de Mate­riais da Faculdade de Engenharia Mecânica da Uni­versidade Estadual de Campinas (Unicamp) . Forma­do em Engenharia Mecânica pela própria Unicamp, fez mestrado e doutorado em Solidificação de Metais na mesma universidade. Tem pós-doutorado em Si­mulação Numérica de Processos de Solidificação de Materiais pela Escola Politécnica Federal de Lausan­ne, na Suíça.

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PEQUENAS EMPRESAS

Um balanço do PIPE

Programa da FAPESP já liberou R$ 7,2 milhões para

inovação em pequena empresa

Mais 31 pequenas empresas do Esta­do de São Paulo inscreveram-se no quinto edital ou quinta rodada de inscrições do Programa de Inovação Tecnológica em Pequena Empresa (PIPE), encerrada no dia 30 de junho. Do total de empresas ins­critas, 23 são da área de Engenharia , em suas diversas especialidades: I O projetas são de empresas de Engenharia Elétrica, 5, de Engenharia de Materiais, 3, de Enge­nharia Química, 2, de Engenharia Mecâ­nica , I , de Engenharia Civi l, I , de Flores­tal e I , de Engenharia de Transporte. Ou­tras áreas contempladas foram Ciências da Computação (duas empresas) , Medicina (duas empresas), Física, Geociências , Educação e Ciências e Tecnologia de Al i­mentos , com uma empresa cada. Os pro­jetas inscritos serão analisados e os se le­ciona'dos passarão, em seguida, para a Fase I do programa, isto é, de avaliação da via­bilidade técnica da pesquisa.

Até o momento, somando os inscritos nos quatro editais anteriores, 78 empresas já foram se lecionadas para a Fase I , de um total de 22 1 pequenas empresas inscritas . Os recursos liberados pela FAPESP para os estudos nesta Fase somam aproximada­mente R$ 3, I milhões. Para a Fase 2, de efetivo desenvolvimento da pesqu isa, já foram aprovados 26 projetas (22 do pri­meiro edita l e 4 do segundo), totalizando cerca de R$ 4, I milhões.

PIPE- PEQUENAS EMPRESAS PARTICIPANTES DA FASE 1 Edital Inscritos Selecionados ValorUS$

para a Fase1 tR$tbolsas 1º 80 31 1.292.653,40

2º 66 23 940.156,71

3º 31 12 478.583,70

4º 44 12 442.787,85

Total 221 78 3.154.181 ,26

PIPE- PEQUENAS EMPRESAS PARTICIPANTES DA FASE 2 Edital Selecionados Valor

para a Fase2

2º Total

22

4

26

3.474.846,01

827.864,00

4.102.910,00

Page 24: Nova arma contra a tuberculose

ENSINO PÚBLICO

EDUCAÇÃO

Laboratório vivo Projeto leva adolescentes a resgatar a memória de bairro de São Paulo

Davi Lopes, 76 anos, morador no lugar desde que tinha 5 anos, lembra do tempo em que até onças e jaguatiricas chegavam perto de sua casa. "Tínhamos 12 cachorros perdi­gueiros para nos proteger", recorda. Ele mo­rava, então, com a família em uma pequena chácara. Aliás, as chácaras, áreas de pastagens e matas formavam a maior parte da paisagem do Jardim da Saúde, até a década de 30. Foi somente a partir dos meados daquela década que surgiram os primeiros loteamentos. Al­cina Rodrigues Gomes Menezes, 85 anos , veio morar ali em 1940. "Na frente da minha casa, onde antes se via um bosque com árvo­res frutíferas, hoje se destaca uma praça." As lembranças de dona Alcina e de seu Davi po­deriam estar perdidas, e com elas boa parte da história do lugar, se não fosse por um pro-

jeto inovador para o ensino público estadual de São Paulo.

Durante dois anos, de abril de 1997 a abril de 1999, alunos e professores da Escola Estadual Raul Fonseca saíram às ruas e tra­balharam nas salas de aula para resgatar a memória de seu bairro, o Jardim da Saúde, na capital de São Paulo, hoje com aproximada­mente 146 mil habitantes. Para contar a sua história, os estudantes usaram cadernetas, gravadores, filmadoras, máquinas fotográfi­cas e produziram textos, jornais, exposições, uma fita de vídeo e um CD-ROM. A opinião geral é a de que o esforço valeu a pena. "Não somos mais os mesmos depois desse traba­lho", diz a professora de história Maria do Socorro Figueiredo, uma das participantes do projeto.

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Nem poderia ser de outra forma. O pro­jeto, no começo visto com desconfiança por alunos, pais e mesmo por alguns professores, teve enorme impacto numa escola cujo cur­so noturno registrava enorme índice de eva­são logo que os alunos conseguiam as cartei­rinhas para viajar de ônibus com desconto e cuja sala de computadores, com cinco apare­lhos, vivia fechada porque poucos professo­res sabiam manejá-los e os alunos estavam proibidos de chegar perto dos equipamentos. Boa parte dessa atitude mudou. "Muitos alu­nos acham que estudar é só ficar sentado numa sala de aula, mas essa imagem mudou", diz a aluna Ana Clara da Conceição, de 15 anos.

Os pesquisadores que participaram do projeto também estão satisfeitos. "A memó­ria e sua recriação pedagógica são pontos de

Page 25: Nova arma contra a tuberculose

Estadual Raul Fonseca, por meio de entrevistas, fotografias e objetos antigos

partida para a valorização da própria vida humana", afirma o professor Luiz Roberto Alves, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do projeto. "Transformada num valor cultural , a memória permite que a es­cola pense e entenda seu contexto", acrescen­ta. O projeto, chamado A Escola: Centro de Memória e Produção de Conhecimento/Cul­tura, foi realizado com o apoio da FAPESP, dentro de seu Programa de Pesquisas Aplica­das sobre a Melhoria do Ensino Público no Estado de São Paulo.

Bagres e traíras Os mal-entendidos surgidos no começo

foram logo superados. "Algumas mães che­garam a me perguntar se seus filhos não iri­am mais aprender história", lembra a profes­sora Maria do Socorro. Não durou muito, porém, para que as ligações fossem feitas e as coisas se estabelecessem. "Os moradores mais antigos lembravam sempre o início do bairro, quando boa parte da área estava cober­ta de mata virgem", diz a professora. Seu Davi, por exemplo, lembra que ele e outros

meninos costumavam pescar em lagoas da região. "Trazíamos traíras, bagres e lamba­ris", recorda.

"Procuramos fazer com que os alunos localizassem as referências dos moradores antigos no tempo e no espaço", informa a professora Maria do Socorro. Por exemplo, um morador antigo disse, certa vez, que "o doutor Getúlio" tinha passado por um lu­gar. Não demorou muito para que os alunos reconhecessem no personagem o presiden­te Getúlio Vargas, personagem de seus li­vros de história. Não foram só os alunos e os pais os influenciados. "Os avós se senti­ram importantes, pois a escola foi até eles", diz Maria do Socorro.

Os depoimentos e dados sobre a região vêm desde a primeira metade do século 20, quando o bairro começou a ser povoado por pessoas vindas de várias partes do Brasil e imigrantes portugueses, italianos e, poste­riormente, japoneses. O nome do bairro vem do fato de ele estar numa região relati­vamente alta o que a tornaria , pelo menos em teoria , mais saudável do que outras par­tes da cidade de São Paulo.

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Ovo e farinha Na pesquisa, os alunos levantaram fatos

pouco conhecidos, como o dia-a-dia das pes­soas que trabalhavam no bairro, em chácaras para a produção de verduras, que eram leva­das em carroças para o Mercado Municipal, na Cantareira. Era uma vida dura, na qual as pessoas trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol. Mas o respeito ao descanso dos domingos e dias santos era sagrado. Às vezes, o pão, vin­do de uma padaria no largo do Cambuci, não chegava ao bairro a tempo do café da manhã. Era substituído por uma massa de farinha de trigo, leite e ovos, frita como panqueca.

Mais coisas foram surgindo. Os alunos descobriram, por exemplo, a nascente de um córrego, a Biquinha, que servia para manifes­tações de devoção religiosa. Restos de ima­gens ainda podem ser vistos ao seu redor. Outro exemplo é um moinho de vento, usado para puxar água de um poço que servia a casa de uma família rica.

O fato é pouco conhecido, mas o Jardim da Saúde tem obras importantes, como a Ca­pela do Cristo Operário, na rua Vergueiro,

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com pinturas e vitrais de Alfredo Yolpi e jar­dins projetados por Roberto Burle Marx. A capela serviu de palco para a criação de wna fábrica de móveis com autogestão dos traba­lhadores. O projeto não deu certo e hoje mes­mo as obras de Yolpi estão ameaçadas pela deterioração. "A história e o significado dessa capela foram destacados pelo projeto e deve­riam ser conhecidos por toda a comunidade de São Paulo, devido à sua importância cultural e mesmo política", diz o professor Alves.

Novo currículo O material que ia sendo recolhido pelos

alunos foi trabalhado por eles e pelos profes­sores das disciplinas de Português, História, Educação Artística (Teatro e Artes Plásticas), Geografia, Ciências e Matemática, de uma forma integrada. Esse material constou de fotografias antigas, cedidas pelos morado­res, e atuais, produzidas pelos alunos; obje­tos; fatos históricos, casos, lendas, etc., ou­vidos dos moradores e também pesquisados em bibliotecas e arquivos públicos. Os temas abordados iam da origem e evolução do bair­ro ao trabalho da mulher, passando pelas tra­dições e religiosidade. As informações fo­ram sistematizadas em quatro blocos, cor­respondendo às áreas de conhecimento do currículo escolar: linguístico-literário, plás­tico-visual, histórico-documental e científi­co-tecnológico, este último relacionado com Matemática e Ciências.

"Trabalhar o tema memória dentro da educação é oferecer ao professor e ao aluno inúmeras possibilidades de estudos e pesqui­sas, é reconsiderar o ambiente em que se está inserido, dispensando-lhe wn olhar mais ín­timo e um tratamento mais carinhosos. Daí a estabelecer ligação com as várias ciências existentes no currículo escolar e no mundo", escreveu a professora de Língua Portuguesa, lvânia Leite Barros deAlmeida, na revista que trata do projeto e de seus resultados. E ela exemplifica: a análise de um fotografia anti­ga de um caçador, com sua espingarda em um

ambiente campestre, oferece inúmeras pos­sibilidades de estudos, que vão do homem e o meio há quarenta anos, passando pelo rele­vo e vegetação há quarenta anos e atualmen­te, até a origem desse homem, sua profissão e nível de instrução.

No caso de Ciências, por exemplo, o ponto de partida para a integração da disci­plina no projeto foi a discussão do tema "qua­lidade de vida" no bairro. Isto porque, segun­do a professoraAlessandra Bartalini, o Jar­dim da Saúde "formou-se por famílias que procuravam, nas imensas e tranqüilas áreas verdes, a cura dos problemas respiratórios apresentados por suas crianças". Só que esse local sossegado e saudável foi sendo substi­tuído pelos prédios, avenidas e trânsito. Fa­zer o paralelo entre o passado e o presente ou entre situações diferentes encontradas hoje no bairro - bolsões com ruas arborizadas e ca­sas suntuosas contrastando com outros cpm favelas e córregos poluídos - foi o caminho encontrado pela professora para integrar sua disciplina ao projeto.

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Resultados Com o material recolhido pelos alunos,

foram produzidos doisjomais; um caderno de pesquisas, de 154 páginas; exposição de fo­tografias com textos explicativos, o chama­do Museu de Rua; um vídeo de 24 minutos, baseado nas histórias das vidas de morado­res do bairro; e um CD-ROM com imagens, depoimentos e dados sobre a região.

O uso de veículos diferentes não surgiu por acaso. "Isso abriu a possibilidade de fa­zer uma reflexão sobre as relações entre a mídia e a juventude", diz o professor Alves. Os computadores tiveram papel importante nesse trabalho. "Reabrimos a sala de infomlá­tica e preparamos os professores para o uso desse recurso", informa Henry Alexandre Machado, aluno de biblioteconomia da USP e responsável pela preparação do CD-ROM.

Uma das experiências mais gratifi­cantes para os organizadores do projeto foi pôr os alunos em contato com a Internet. Eles usaram o acesso para preparar traba­lhos sobre a Bienal de Arte de São Paulo. Mas também tiveram chance de explorar a rede de acordo com seus próprios inte­resses. Entre os lugares mais procurados estiveram os sites do jogador de futebol Ronaldinho e de conjuntos musicais. "É fácil mexer com computadores", consta­tou, por exemplo, o aluno Andersen Gon­çalves Ferreira, de 17 anos.

O projeto foi mais além. Em diversas representações, os alunos dramatizaram as vidas dos primeiros moradores do bairro e mostraram, em trajes típicos, as diversas ori­gens dos habitantes do Jardim da Saúde. Uma "festa do talento" deu oportunidade para que alguns deles mostrassem suas habilidades. Quando se levantou o problema da gravidez na adolescência, um grupo de médicos foi à escola debater a questão com os estudantes. "Muitos alunos se sentiram motivados por­que as avaliações também levavam em conta conhecimentos que, antes, não eram valori-

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zados", diz a professora Maria do Socorro. Uma prova do sucesso da experiência

é o fato de a escola, mesmo depois da apre­sentação dos trabalhos finai s, estar interes­sada em continuar o projeto. Seus resultados, por outro lado, podem servir para novas ex­periências. Para o professor Alves, o traba­lho do Jardim da Saúde foi um piloto que poderá ser aproveitado por outras escolas da rede pública, transformando o trabalho com a memória numa atividade regular. "Até ago­ra, vem existindo uma fa lta de comunicação entre a escola e seu entorno", diz o profes­sor da USP. "O trabalho nos mostrou como

a memória comunitária é fundamental para a compreensão do processo de adaptação das pessoas à metrópole e para a criação das raízes da vida social."

Perfil: Luiz Roberto Alves é professor da Escola de Comuni­cações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Tem doutorado em Teoria Literária pela Faculda­de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Estudou as relações entre a literatura e a cultura na Itália e em Israel. Sua experiência como professor de português em escolas públicas auxiliou o projeto. É au­tor de Culturas do 7i'abalho: Comunicação para Cidadania, publicado este ano pela Editora Alpharrabio.

Volpi Um dos maiores nomes da pintura brasileira, Al­

fredo Volpi nasceu em Lucca, na Itália mas veio residir em São Paulo antes de completar 1 anodeidade.Amaior parte de sua vida viveu nobairrodoCambuci.Aos 18anos realizou sua primeira obra artís­tica, mas foi somente a partir de 1951 que passou a dedicar -se exclusivamente à pintura-an­tes disso, trabalharacomoenca­nador, entalhador e carpinteiro. No ano seguinte, recebeu o Prê­mio Aquisição na Bienal deVe­neza e no Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janei­ro.

As obras do pintor na Ca­pela Cristo Operário datam aproximadamente de 1955, quando ela surgiu. Ali, na Rua Vergueiro, existia um antigo ar­mazém de secos e molhados, transformado em capela pelo frade João Batista Pereira dos Santos. Ele mandou erguer uma torre e convidou artis­tas para criar as imagens e realizar as pinturas internas do templo. Um deles foiVolpi, que pintou os painéis Cris-

to Operário, A Sagrada Faml7ia e SantoAntônioPregan- • do aos Peixes, além de produzir quatro vrtrais, mostran­do os evangelistas. A capela abriga ainda esculturas e painéis de outros artistas plásticos, todos necessitando

restauração. O projeto paisagístico dos jardins da ca­pela foi ferto por Burle Marx. O projeto paisagístico origi­nal foi completamente alterado ao longo do tempo.

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"A memória é a história viva e revivida." Felipe Augusto Santos Oliveira, íf série A

"Aqui estou eu olhando para você, Aí está você, querendo me ensinar.

Não sei de nada, você sabe de tudo. Venha! Me ensine!

Estou querendo aprender! Faço-me mil perguntas, todas sem respostas ... Fale mais um pouco,

estou gostando de te escutar. Conte outra história,

diga o que era aqui, o que aconteceu. Estou querendo resgatar a memória do meu bairro. Aí está você, a me contar muitas e muitas histórias. Como você se chama?

Acho que já sei: Projeto da Memória."

"Este projeto ajudou na descoberta de nossos antepassados. A

compreendermos a evolução do bairro. Através dele soubemos como viviam

nossos avós e pais, de suas dificuldades e problemas contemporâneos.

Algumas casas, praças, igrejas ainda permanecem firmes entre nós.

Entrevistas e fotografias antigas contaram a nós, alunos, o começo do bairro.

Sabemos hoje que o lugar mudou muito, mas que houve, nos bastidores, mulheres

e homens com garra para viver e transformar, sonhar e realizar:

nossos bisavós, avós, tios e vizinhos. Parabéns, Jardim da Saúde!

Parabéns a sua gente!" Joyce Cristina Rodrigues Maschi, íf série A

"Num lugar vazio construiu-se uma casa singela para gente honesta. No silêncio intenso, um simples barulhinho parecia grande ruído. Ao ouvirem uma moita se mexer, eles não faziam a pergunta que hoje é costumeira: será um ladrão? Acordava-se bem cedinho e ouvia-se o sininho da charrete do leiteiro, que trazia o leite fresquinho. Depois chegavam os pãezinhos bem quentinhos. Naquela época não havia clubes e

sim cachoeiras e muitos peixinhos. Sinceramente, eu preferia

um sem modernização, a este, que é só destruição."

Joana B. da Costa, 6' série

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LIVRO

Uma contribuição essencial para o debate do positivismo O velho, mas sempre atual, polêmico e

mal conhecido positivismo continua sendo objeto de debates. E constitui mérito de Leli­ta Oliveira Benoit, com sua Sociologia Comteana (FAPESP/Discurso Editorial, São Pau­lo, 1999), contribuir decisivamente para o conhecimento des­ta filosofia. Com cla­reza e elegância, ela revela uma leitura em profundidade, atenta aos detalhes e às gran-des linhas de condução de um pensamento de­safiador para o intérpre-te, dada sua complexida­de. É que no sistema comteano entrecruzam-se de modo inextrincável te-mas cruciais da cultura mo­dema, como a ciência, a po­lítica, a filosofia, a moral, e a religião.

Paciente e sóbria, rigorosamente fiel aos textos, Lelita Benoit entusiasma o leitor com seu aparato crítico e erudição. Suas fontes bibliográficas oferecem informações indis­pensáveis à compreensão dos textos comtea­nos, sejam elas referentes às circunstâncias da produção do texto ou exaustivas indicações das filiações filosóficas e históricas do autor. Mas esse verdadeiro trabalho de formiga está longe de ser seu maior mérito - que é o de construir um brilhante desenvolvimento da interpretação marcuseana de Comte, como aponta Isabel Loureiro no prefácio.

Na primeira parte ("Da Economia Políti­caàHistória"),LelitaBenoitanalisaoconjunto de textos do jovem Comte,já orientados para a fundação de uma ciência social modema. Trabalhando em parte com textos de difícil acesso, com problemas de estabelecimento da verdadeira autoria, mas rastreando tudo o que diz respeito aos anos 1817-1819, ela renova as interpretações mais ou menos consagradas pela exegese acadêmica, ao mostrar que as teses sobre a existência de um período pré­positivista devem ser, no mínimo, revistas. Em sua interpretação, jamais houve adesão com­pleta de Com te ao pensamento econômico nem uma fase pré-positivista. Já em 1817, Comte "propõe que se reflita mais seriamente sobre a organização da modema sociedade européia, de modo a superar o estado de anarquia instau­rado após a Revolução Francesa, e começa fa­zendo um apelo ao consenso político", dirigi­do aos homens influentes da Europa. E aqui já estão sendo colocados alguns dos termos-cha­ve que irão mapear sua trajetória: sociedade modema, Revolução, organização, consenso, todos de cunho acentuadamente político que revelam a lacuna essencial do pensamento

econômico: a crise atual, por ser de "natureza política e moral" (p. 39), exigiria um instru­mento intelectual novo que somente se cons-

tituirá com o surgimento da soci­ologia como ciência. Atenuando a tese da adesão à economia po lí­tica, Lelita dá o primeiro passo para propor a tese da profunda unidade e continuidade de todo o pensamento comteano.

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Perseguindo o ideal de uma ciência do social mais ampla que a economia políti­ca, restrita ao cálculo do in­teresse privado, Comte vai encontrar na história o h o ri­zonte que contemplaria também os interesses cole­tivos. É assim que Lelita inicia a parte II de seu li­vro ("Sob o Paradigma da História") com uma

reconstituição da teoria comteana do tempo social e histórico que seca­racterizaria, conforme a observação da marcha da civilização, pela estrita continuidade, rítrno lento, linearidade e aversão natural pelas rup­turas abruptas e revolucionárias. O tempo so­cial é o tempo da transição gradativa. O tempo histórico impõe, portanto, a resignação como virtude política primeira.

Com essas premissas, Lelita realiza, no capítulo VI de seu livro, apaixonada compa­ração entre Condorcet e Comte, que conside­rava aquele filósofo como "seu verdadeiro pai espiritual". Faz uma leitura cerrada dos textos de Condorcet, cujo Esboço de um quadro his­tórico dos progressos do espírito humano se concentra em "três pontos ali considerados os mais importantes: a destruição da desigualda­de entre as nações; os progressos da igualdade de um mesmo povo; o aperfeiçoamento do homem real"( p. 177 ). E mostra como "é con­tra essa filosofia da história de Condorcet, que privjlegiaem absoluto a igualdade e a liberda­de, que se revoltará Com te" ( p. 165), em nome de uma suposta tendência natural dos homens à boa ordem, à obediência e à resignação.

A seguir, concentra-se na sociologia pro­priamente dita, cujo texto inaugural seria o famoso Opúsculo Fundamental de 1822. A expressão imediata da ciência sociológica é a famosa lei dos três estados. Segundo Com te,

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO

o espírito humano, começando pelo estado teológico inicial e transitando pelo estado metafisico intermediário, chega ao estado positivo ou científico a tua I e definitivo.A or­dem toma-se categoria teórico-prática funda­mental do pensamento comteano, fundado em parte na objetividade do pensamento científi­co e, em parte, pela necessidade de pôr freio à revolução. Do ponto de vista subjetivo, ordem é submissão, obediência, disciplina, que têm de aparecer como tendências naturais, neces­sárias e universais. Dentro dessa perspectiva, Lelita desenvolve a parte III de seu livro, "Sob o Paradigma da Biologia", realizando uma exegese inédita em língua portuguesa de tex­tos rarissimamente trabalhados e, no entanto, indispensáveis para a compreensão do positi­vismo. Ela afirma que "nas "lições" de socio­logia, as categorias histórico-sociológicas se enraízam profundamente nas categorias bio­lógicas, encontrando nestas últimas sua pró­pria gênese" (p. 331 ). Mas o que interessa a Comte é o que a biologia pode fornecer, na verdade, para uma teoria da natureza humana (pouco importando que o estudo de qualquer natureza seja por definição "metafisico" e não positivo). Partindo do esfacelamento da uni­dade metafisica da alma e do eu, elaborado pelas mais recentes conquistas da modema biologia, Comte propõe a fremologia como ponto de partida para o estudo do homem. Como os homens não foram feitos para pen­sar, mas p~a sentir e ter emoções, é necessá­rio sempre um guia que possa conduzi-los nos duros caminhos da vida. E como "na maior parte dos homens existe uma disposição natu­ral à obediência"( p. 356 ), trata-se de organi­zar essa tendência natural. Esta será a função social da religião, objeto de estudo da última partedoliv o, "SoboParadigmadaReligião", em que Lelita trabalha especialmente o con­ceito de pacto social positivista, ou seja, aque­le estabelecido não mais "entre indivíduos, mas entre classes sociais: o proletariado e os "ri­cos ati vos". Mas o que caracteriza sobretudo o pacto positivista é que exclui explicitamen­te o ponto de vista da vontade geral (p. 379). Há superiores e inferiores: eis o fato social por excelência, inelutável, indestrutível, eterno!

Investigação rigorosa, mas apaixonada e instigante, o trabalho de Lelita Benoit traz o debate sobre o positivismo a um nível de qualidade raras vezes alcançado.

José Carlos Bruni

GOVERNP DO ESTADO DESAOPAULO

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en ma uman~

ESPECIAL BIOLOGIA, A CIÊNCIA DO SÉCULO 21

Cientistas prevêem que as novas tecnologias tornarão cada vez maiores suas possibilidades

de compreender e modificar os processos da vida

Já é quase um lugar comum: o século 20 foi o século da Física,

mas a ciência que vai mu­dar a face do mundo no século 21 é a Biologia. No catálogo de novidades anunciadas para o próxi­mo milênio, a Biologia -mais precisamente, a Bio­logia Molecular - oferece as promessas mais apreciadas pelo público, que vão do sempre almejado controle do câncer, até a possibilidade de duplicar o animal de estimação, com o objetivo de poupar o dono da dor de sua morte. A fonte primordial de tantas renovadas esperanças é um conjunto de tecno­logias e ferramentas que deu aos cientistas a capacidade de estudar, fora da célula, a muito complexa maquinaria bioquímica que rege as interações entre moléculas - no­tadamente, as que envolvem os ácidos nucléicos e as pro­teínas- e de pretender intervir para modificá-la. Ao tor­nar-se arauto do terceiro milênio, esta nova Biologia transformou-se a si própria. O Programa Genoma-FA­PESP descende da recentíssima tradição engendrada a partir da década de 50, com a descoberta de Crick e Watson, a estrutura molecular do DNA, e que ganhou impulso definitivo com a estratégica decisão dos gover­nos norte-americano e britânico, especialmente, de finan­ciar o seqüenciamento completo do material genético da espécie humana.

Os entrevistados dos encartes de junho e julho do No­tícias FAPESP são cientistas que vivem essa metamorfo­se. Esta condição fez deles personagens da série de docu­mentários que a TV Cultura prepara sobre o projeto pioneiro da genômica no Brasil- o seqüenciamento com-

NOTÍCIAS FAPESP

pleto da bactéria Xyllela fastidiosa-, e que irá ao ar para 16 estados na segunda semana de agosto. As questões que a equipe da jornalista Mônica Teixeira- autora de todos os textos que se .seguem- levou a pesquisadores brasileiros e norte-americanos visavam conhecer suas opiniões sobre o momento privilegiado em que se desenrolam suas carrei­ras, seu fazer científico. Que Biologia é esta, que não seria possível sem computadores? O seqüenciamento de um ge­noma dará mesmo a chave para fechar todos os compar­timentos por onde passa a dor humana? Restará alguma atividade de pesquisa em Biologia que prescinda das in­formações obtidas através do seqüenciamento de genes? Quais os limites da ciência? Neste mês, contam o que pensam o imunologista Leroy Hood, do grupo de cientis­tas americanos que montaram a logística e puseram de pé o projeto Genoma Humano; Craig Venter, biologista mo­lecular, fundador de empresas de genômica, o homem que quer ser o primeiro a decifrá-lo completamente; Phillip Green e João Carlos Setúbal, cientistas da computação -os novos parceiros dos biólogos-, sobre quem recai a di­fícil e delicada tarefa de colocar a informática a serviço dos mistérios da vida. Todos eles são, a um só tempo, realiza­dores e testemunhas de um marco anunciado da história da ciência. No mês que vem, tem mais.

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GENOMA HUMANO I

A Biologia tornou-se inform.ação

Acarreira de Leroy Hood marca-se pelo interesse em desenvolver novas

ferramentas para apressar o passo da Biotecnologia. Desde os anos 60, participou do desenvolvimento de máquinas para automatizar muitas das tarefas ligadas à área - inclusive os seqüenciadores de DNA e de proteínas atualmente em uso nos laboratórios. Como conta na entrevista, Leroy nunca teve nenhuma restrição a trabalhar com a indústria - e tornou-se, ele mesmo, um fundador de empresas do ramo, como a Applied Biosystems (comprada pela Perkin-Eimer) ou a Amgen. Em 1992, mudou-se do Caltech para a Universidade de Washington, em Seattle, onde criou o Departamento de Biotecnologia Molecular, e também onde organiza, agora, a criação de um novo instituto de pesquisa, para o qual prevê um orçamento de US$ 100 milhões. Leroy gosta de escalar montanhas, nasceu em Montana, e tem dois filhos. Em março, quando o vice presidente dos Estados Unidos, AI Gore, anunciou uma verba adicional de US$ 81 milhões para apressar o seqüenciamento do genoma humano, o centro ao qual Leroy está ligado não recebeu suplementação.

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Leroy Hood

• Em 1991, o senhor disse que seria fundamental a ampliação da capaci­dade de seqüenciamento para o sucesso do projeto Genoma Humano. O se­nhor está satisfoito com o que foi atin­gido até agora?

- Bem, nós chegamos ao previsto. As máquinas mais recentes, que es­tão sendo testadas agora, 1 já têm ca­pacidade três a quatro vezes maior do que as máquinas que os labora-tórios estão usando neste momento.

As novas máquinas podem ler centenas de milhares, meio milhão de pares de bases em um ano ... Esta é uma das razões pela qual o projeto Genoma Humano muda toda uma série de paradigmas da Biologia, e já começa a mudar também os paradigmas com os quais a Medicina trabalhou até aqui. Essas mudanças têm a ver com a idéia de que, agora, Biologia tornou-se informação. E a informação está em nossos cromossomas. O desafio, da­qui para a frente, para a Biologia e para a Medicina, será entender não como funciona um gene, ou uma proteí­na, mas como um sistema de genes ou de proteínas fun­ciona. Agora, pela primeira vez, e em parte por causa do projeto Genoma Humano, nós temos o que eu chamo de "ferramentas globais" - com as quais se pode olhar não para um só gene de cada vez, mas para mil genes, dez mil genes ou cem mil genes de uma só vez. Isto transforma como pensamos a Biologia. O que é interes­sante nos seres humanos está codificado em sistemas bio­lógicos, não em genes isolados. E se você aplica esta idéia de olhar os sistemas ao estudo das doenças, isto também vai mudar o que pensamos das doenças. É o projeto Ge­noma quem gera estas mudanças.

• Entre as descobertas realizadas desde que o projeto come­çou a ser engendrado, qual a que o excitou mais, qual delas o senhor achou mais interessante?

- Se for preciso escolher. .. Como penso que o projeto Genoma é um projeto gerador de informação, informa-

' Refere-se aos seqüenciadores automáticos com tubos capilares, lançados em 98 (phamarcia) e 99 (Perkin Elmer). Há seis destas novas máquinas já em uso no projeto brasileiro Genoma Humano do Câncer.

NOTÍCIAS FAPESP

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ção que a Biologia vai usar para fazer novas perguntas, então as duas descobertas mais excitantes foram técnicas -a invenção do seqüenciador automático de DNA, que nos permitirá terminar o genoma humano vários anos antes do que nós imaginávamos inicialmente; e os chips de DNA2

, através dos quais pequenos fragmentos de DNA em chips podem ser usados para olhar a informa­ção expressa numa célula tumoral, ou numa célula nor­mal. Nós desenvolvemos essa tecnologia e ela está dispo­nível para câncer, por exemplo. São tecnologias que permitem analisar o DNA muito rapidamente, uma das ferramentas globais de que falei. Outra dessas ferramentas vai per-

GENOMA H UMANO I

tindo na pesquisa fundamental, há ainda algumas áreas em que o dinheiro da indústria é benvindo para tornar as coisas mais fáceis.

• Qual sua posição frente ao problema das patentes?

-Sou contra patentear ESTs- aquela situação em que você seqüencia uma pequena parte de um fragmento de gene, e patenteia isto-, eu penso que isso é um terrível en­gano, espero que não se torne a prática. Deve-se permitir patentes de seqüências de genes completos, desde que se

conheça ao menos uma de suas funções biológicas, de tal maneira

mitir a rápida tipagem de geno­mas. Já estamos trabalhando com empresas para desenvolver uma nova tecnologia, baseada no uso de fibras óticas, para analisar mar­cadores genéticos milhares de ve­zes mais depressa do que fazemos hoje. Dessa maneira, podemos olhar grandes populações e corre­lacionar variações genéticas com a fisiologia, com as doenças preva-

''O que é interessante nos seres humanos

está codificado

que, se outro pesquisador desco­brir uma função completamente diversa do mesmo gene, isto possa também ser patenteado. Hoje não é assim. Quem tem a patente de um gene tem direito sobre tudo o que for descoberto ligado àquele gene. A legislação de patentes vem dos séculos 18 e 19 - o que havia a ser patenteado eram máquinas.

em sistemas biológicos, nao em genes

isolados''

lentes, por exemplo. No projeto genoma, trata-se de descobrir todos os elementos que es­tão presentes no genoma humano. Não fazemos muitas perguntas neste projeto, simplesmente porque não que­remos fazê-las. Quando nós tivermos essa enciclopédia com toda a informação, o resto da Biologia vai trabalhar por centenas e centenas de anos até descobrir cada deta­lhe contido neste "livro da vida". Não será o fim da Bio­logia, ao contrário; isto vai enriquecê-la enormemente.

• Esta nova ciência vai criar ou jd criou um novo cientista?

Houve uma arrogância por parte da academia, de que trabalhar com a indústria comprometia o cientista. Nunca me senti assim, e trabalhei com a indústria de biotecnolgia desde o fim dos anos 70. Agora as pessoas estão se apercebendo da utilidade de trabalhar com a in­dústria que, ao tornar disponíveis seus recursos e suas tecnologias, implementa o trabalho científico. É preci­so tomar muito cuidado para que a obrigação do cien­tista de publicar seja garantida. Mas a interação entre indústria e academia vai se tornar mais e mais comum, e em escala cada vez maior. Apesar das enormes somas de dinheiro que o governo norte americano está inves-

2 dna arrays. A tecnologia mais conhecida resulta da associação entre a Affimetrix e Hewlett Packard - GeneChip ™.

NOTÍCIAS FAPESP

Não se pode olhar a Biologia como uma máquina. Compreen­

der que a Biologia é informação permite pensar com mais precisão sobre a questão das patentes.

• Qual sua opinião sobre a estratégia anunciada por Craig Venter para seqüenciar o genoma humano? Qual o impac­to dele sobre o projeto financiado por fondos federais?

- Embora as. pessoas estejam se perguntando sobre como este shot gurfl poderá funcionar, a proposta dele foi excelen­te, porque fez os laboratórios pensarem como as coisas po­deriam ser feitas mais eficientemetne. Tudo o que nos em­purre para a frente é bom. Quase certamente, a decisão de apressar o projeto genoma nunca teria sido tomada se Craig não tivesse anunciado que iria terminar em três anos. Competição é bom, para os dois lados. Se o projeto de Craig Venter e da Celera funcionar como eles dizem que vai funcionar, com os dados sendo publicados a cada qua­tro meses, então o projeto federal vai se beneficiar muito. Este primeiro esboço da seqüência do genoma humano que o National Imtitute of Health propôs é complementar ao que aCelera se propõe a fazer. É muito boa competição.

' Método em que se monta uma sequencia depois de "picar" o DNA em pedaços de cerca de 700 pares de bases. Para o caso de um genoma da complexidade e do tamanho do humano, poderá haver obstáculos de ordem técnica, relacionados com a falta de ferramentas computacionais eficazes para a montagem precisa e correta das leituras obtidas.

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Page 32: Nova arma contra a tuberculose

GENOMA H UMANO I

• Em que linhas de pesquisa seu laboratório trabalha no momento?

-Além de termos nos comprometido a seqüenciar gran­de parte do cromossoma 14 do genoma humano, estamos também seqüenciando o genoma do rato. O interesse de seqüenciar e comparar genomas diferentes é que as regiões dos cromossomas que tem informação são conservadas. Quando você compara o rato com o homem, as regiões al­tamente conservadas em ambos indicam que há informa­ção nelas. A análise comparativa aponta quais são as partes realmente interessantes do cromos-somo em ambas as espécies. Já se

mente cuidadosos por causa de todas as implicações éti­cas. Absolutamente não estamos fazendo isso agora. No futuro, acho que os cientistas trabalharão nisso, inicial­mente para lidar com genes defeituosos, que vão curar famílias inteiras de determinadas doenças. Chegará um momento em que poderemos usar o mesmo procedi­mento para acentuar traços como inteligência, atração, estabilidade emocional e coisas como essas.

• O senhor acredita que o conhecimento pormenorizado do material genético nos dard todas as respostas a respeito da

condição humana?

sabe que as regiões que tem as in­formações mais importantes nos cro­mossomas mudam menos do que todas as outras regiões. A razão para isto é que elas não podem mudar porque se elas mudassem muito perderiam a habilidade de codificar aquela informação. De 70% a 80% dos genomas não estão envolvidos com estas funções mais importan­tes, e essas regiões podem mudar

''No princípio, havia muito ceticismo

em torno do projeto Genoma Humano.

- O projeto genoma nos dará a tabela periódica da vida, todos os genes definidos, as regiões regula­tórias, mutações, polimorfismos, e o que eles causam. O que o proje­to genoma não vai nos contar é como estes 100 mil genes traba­lham juntos para formar organis­mos humanos. Este será um passo gigantesco - partir da informação

Biologia sempre tinha sido sma/1 science ''

rapidamente, o que não afeta o or-ganismo. Mas as partes que realmente codificam, uns 100 mil genes no caso dos seres humanos, se as compararmos entre as duas espécies, encontraremos tipicamente 70% delas similares entre si, enquanto se compararmos quais­quer duas regiões não relacionadas a genes encontraremos apenas 30% ou 40% de similaridade, ou ainda menos.

Uma área em que temos interesse especial é o estudo de stem cells4

• Queremos entender como estas células "avós" atuam para diferenciar-se nas células Te células B do sistema imune, usando chips de DNA para estu­dá-las precocemente e descobrir quais são as moléculas importantes e o que elas fazem. Também estamos inte­ressados em saber como fabricar stem cells. Elas podem vir a ser muito úteis: pode-se transplantá-las para pessoas que foram irradiadas porque têm câncer, e também se pode usá-las em alguém que tem um defeito genético. Se você colocar um gene "bom" em suas stem cells, e de­volver a célula para a pessoa, o defeito genético estará reparado. Há todo um novo tipo de engenharia genéti­ca, no qual vai se modificar o ovo fertilizado - uma germline engineering. Se você realiza essas modificações, elas se tornarão parte permanente do genoma humano. Isto é alguma coisa sobre a qual devemos ser extrema-

• stem ce/Is, as células mais primordiais de uma linhagem, as que dão origem a outras, mais diferenciadas.

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do genoma para a informação do sistema do organismo humano.

Entender os problemas realmente mais difíceis, como consciência, rememoração, funções cerebrais mais funda­mentais, isto pode levar ainda centenas de anos. De fato , há uma tendência a glamurizar e dizer que o genoma vai conter todas as resposstas. O genoma é o melhor dos co­meços para o entendimento da complexidade humana.

• Do ponto de vista de sua carreira científica, o que signi­fica para o senhor viver neste momento de transformação?

-O que há de mais interessante na minha carreira é que eu ajudei essa revolução a acontecer. Participei criando instrumentos para que isso pudesse acontecer, e também informando as pessoas, ajudando a persuadir o Congres­so. No princípio, havia muito ceticismo em torno do pro­jeto Genoma Humano. Biologia, até ali, não era big science. Biologia sempre tinha sido small science. As pessoas não suportam mudanças, porque mudanças ameaçam. Por essa razão tão simples é que o projeto enfrentou tanta re­sistência e ceticismo no começo. Agora, estou interessado em dar impulso a idéias que tenham a ver com sistemas biológicos, porque esta é a fronteira para o século 21.

• Na sua opinião, como deve ser conduzida a discussão so­bre os problemas éticos levantados pelo projeto genoma?

- A sociedade é que deve decidir sobre eles, não os cien-

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tistas individualmente. As questões devem ser resolvidas racionalmente, e terão a ver com privacidade genética, com o fato de que nós poderemos saber se alguém vai ou não manifestar determinada doença hereditária. Uma questão é que quase certamente genes determinam certos aspectos do comportamento; neste caso, quais os limites para o li­vre arbítrio e para as responsabilidades individuais? Qual a natureza da nossa responsabilidade? Há tantas questões fascinantes e, para cada uma delas, temos que pensar qual a melhor maneira de lidarmos com elas. Há quem diga que o melhor a fazer para lidar com esses problemas é parar a ciência. Mas, se fizermos assim, tal-vez não nos tornemos capazes de

G E NOMA H UMANO I

nas estrelas, e agora percebemos que nosso destino está em nossos genes. Isto é especialmente verdadeiro se pensar­mos da seguinte maneira: há algumas características que são quase inteiramente genéticas. Mas há uma caracterís­tica que não funciona assim. Se você toma dois gêmeos idênticos, e tira as impressões digitais dos indicadores de­les, vai ver que são inteiramente diferentes- e eles têm pre­cisamente os mesmos genes. Isto significa que, neste caso particular, o ambiente é o maior determinante desse pa­drão. Então, para cada uma das características, você terá que perguntar: ela é genética? Ou ela é principalmente ambien-

tal, ou está entre ambas? A triste verdade é que não temos as ferra­

livrar de 3% a 4 % de nossa popu­lação da cadeia, porque há prisio­neiros com defeitos que nós pode­remos descobrir como reverter. A humanidade tem a responsabilida­de fundamental de fazer isso. Ao fazê-lo, vamos levantar todos esses novos desafios éticos, legais, sociais. Temos que ter maturidade para li­dar com eles. A chave é dar para nossas crianças uma educação

''Temos que educar as cnanças para

que elas percebam que a ciência

mentas para decidir em que exten­são cada traço é determinado gene­ticamente, ou pelo meio ambiente. No caso de uma coisa como a feli­cidade, acredito que o fator am­biental é muito preponderante.

é o caminho para • O senhor parece otimista em rela­ção ao futuro ...

a I i berdade ''

apropriada, para que elas possam pensar analiticamente e ter suficiente conhecimento para não se assustarem com a ciência. A ciência é alguma coisa que não se entende bem, muito do que é feito é visto como mau. Nós temos que educar as crianças para que elas per­cebam que a ciência é o caminho para a liberdade. É o ca­minho para que as pessoas possam ser o que elas são, e es­caparem de viver aprisionadas pelos seus genes, com doenças mentais, ou com diabete, ou com outras doenças. Nós usamos, aqui, bastante tempo com o programa de educação de ciência dos alunos do ensino médio. Ensina­mos os estudantes a seqüenciar DNA. Ao mesmo tempo, propomos "cenários". Um grupo de quatro estudantes age como se fosse uma família com doença de Huntington. Damos a eles diagnósticos hipotéticos, caso eles tenham ou não o gene defeituoso. Ensinamos como pensar eticamen­te sobre o assunto. Assim, quando eles terminam de se­qüenciar, entendem os desafios da Biologia e as oportuni­dades que a Biologia dá. Os jovens gostam bastante.

• O senhor acredita que o conhecimento de .fronteira em bio­logia molecular vai ser capaz de responder a questões como o que é a felicidade, ou explicar porque razão Brahms com­pôs tão bem, coisas assim?

-A resposta, provavelmente, é não, mas deixe eu respon­der usando um raciocínio de James Watson. Ele disse que nós nos acostumamos a pensar que nosso destino estava

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- Sou otimista, e é preciso ser muito determinado para ser e per­

manecer otimista. Fui criado numa pequena cidade do es­tado de Montana, numa escola de apenas 140 alunos. En­tão, o que podia faltar de instrumentos e sofisticação, sobrava em atenção, se você fosse um bom aluno. Ao mes­mo tempo, eu era olhado com atenção pelos professores, e tratado como um igual. Isto traz muita autoconfiança. En­tão, quando ":ocê sai para o mundo, mesmo que não tenha todas as ferramentas, sente-se capaz de fazer qualquer coi­sa que você queira. Há muitas pessoas que não conseguem fazer o que desejam só porque não acreditam que vão con­seguir chegar onde querem. Penso que fui afortunado de viver no exato momento da história em que uma pessoa com os meus talentos é útil. Meu talento é principalmen­te reunir pessoas, gente muita diferente entre si. No novo instituto que estamos criando, metade das pessoas vão ser matemáticos, e físicos e cientistas da computação e quími­cos - não biólogos. Nós precisamos de todas essas ferra­mentas juntas, e um dos desafios vai ser quebrar a barreira das linguagens diferentes com que cada um desses cientis­tas olha o mundo. É como falar com o público leigo: há cientistas que estão tão presos no jargão de suas especiali­dades que não sabem falar em linguagem simples para os não cientistas. Isto também é verdade entre biólogos e ma­temáticos. Não podemos sequer usar as mesmas palavras, porque palavras iguais podem significar coisas diferentes para um matemático e para um biólogo. Superar essa bar­reira vai ser excitante.

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GENOMA HUMANO I

A protnessa de seqüenciar o genotna até o ano 2000

E ntre os cientistas do mundo da genômica, Craig Venter é dos mais

famosos - pela importância de suas contribuições técnicas, e pelo fato de ter anunciado, em maio de 98, a criação de uma nova empresa que, por US$ 200 milhões, e em três anos, realizaria o seqüenciamento completo do genoma humano. A Celera, situada em Rockville, Maryland, resultou de sua associação com a Perkin Elmer, uma das duas principais fabricantes de seqüenciadores automáticos; e o anúncio de seu objetivo quase paralisou o projeto Genoma Humano, que havia custado, até ali, quase US$ 1 bilhão, e prometia a seqüência completa apenas para 2005. Mas os participantes do projeto financiado com verbas públicas reorganizaram-se; e o resultado da formação da nova companhia foi um encurtamento geral de prazos. Agora, ambos os times - o público e o de Craig - pretendem alcançar suas metas dentro de aproximadamente um ano. Na entrevista, realizada em março último, o doutor Venter compara seu trabalho ao do grupo que seqüenciou o genoma da C. elegans. Suas observações, e sua personalidade, poderão ser melhor apreciadas quando cotejadas às palavras de Robert Waterston, um dos coordenadores do grupo, que serão publicadas no encarte de agosto.

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Craig Venter

• Muita gente com quem conversei so­bre o senhor, nos Estados Unidos e no Brasil, expressam ceticismo e dúvida sobre o anúncio de seu projeto de se­qüenciar o genoma humano dentro de 18 meses. Eles têm razão?

- Para entender a questão, é ne­cessário que se compreenda a tec­nologia, e mesmo cientistas da área não entendem os novos passos da tecnologia. Quando Hamilton Smith e eu decidimos seqüenciar o

primeiro genoma da história, em 94, e pedimos ao NIH para financiar o projeto, houve esse mesmo ceti­cismo.Os assessores que analisaram a proposta disseram que seria impossível, que nunca poderia ser feito, que não se conseguiria montar, que os dados não seriam acurados - enfim, que ia ser terrível. No entanto, em 1995, nós publicamos o primeiro genoma na história, e foi a seqüência mais acurada e precisa jamais publicada. Todas as proteínas foram re-seqüenciadas pela indústria farmacêutica, e é notável a precisão que obtivemos. O método que desenvolvemos ali é o método que vamos usar para fazer o genoma humano. A TIGR seqüenciou até agora 1 O genomas completos, incluindo os mais re­levantes para a saúde mundial: tuberculose, cólera, ma­lária, sífilis, doença de Lyme, tudo isso foi realizado com o método que desenvolvemos para o Haemophilus influ­enzae, aquele mesmo que diziam que não ia funcionar, que era impossível. Há dúzias de genomas completa­mente seqüenciados agora, o que as pessoas imagina­vam que não seria feito nem nas próximas décadas; tudo por causa da tecnologia que eles disseram que não ia funcionar.

O genoma da C. elegans acaba de ser publicado\ e não se pode dizer que seja muito completo, ou muito preciso. Custou dez anos, centenas de milhões de dóla­res, e envolveu centenas e centenas e centenas de cien-

' A sequência completa do genoma da Caenorhabditis elegans (com cerca de I 00 "gaps"), a primeira de um animal, foi publicada em dezembro de

98 pela revista Science (colocar referência?). Os dois principais pesquisadores envolvidos no trabalho são John Sulston, do Sanger Center, Inglaterra; e Robert Waterston, da Washington University, que gentilmente nos recebeu

para uma entrevista, cuja integra sera publicada no próximo Encarte.

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tistas. Pois nós vamos agora fazer a Drosophila em al­guma coisa entre três e seis meses, e o seu genoma é maior do que o da C. elegans. Vamos fazer com mais precisão e mais completo. Há três mudanças que nos permitem cumprir esta meta. A primeira é o novo se­qüenciador2. Por exemplo: a Tigr está seqüenciando o primeiro cromossoma de planta, o cromossoma 2 da Arabidopsis thaliana. Duas semanas atrás, decidimos ajudar com os novos seqüenciadores da Celera. Pois nas duas semanas, fizemos 25% do que a TIGR havia feito antes, e com a mesma precisão de qualquer outro geno­ma já sequenciado pela TIGR. Agora nós vamos para a Droso-

GENOMA HUMANO I

ganismo. Por exemplo: quando começamos o genoma do Plasmodium folciparum, todos os pesquisadores em malária disseram que seria impossível de fazer por cau­sa da percentagem muito alta de adeninas e timinas e que não se conseguiria sequer clonar o material. Como você sabe, publicamos no ano passado o primeiro cro­mossoma de malária da história. De fato, saiu mais fá­cil do que muitos outros genomas de bactérias. Não posso dizer que não há mais nada impossível, porque pode haver ainda alguns problemas. Mas o genoma humano é muito mais simples do que o da malária

como código genético, então, nós não estamos mesmo preocu­

phila e o homem. A outra peça­chave disso são os computadores. A Celera já tem o maior centro computacional de Maryland. Quer dizer: temos mais "potên­cia de computadores" do que todo o NIH. Vamos gerar na Ce­lera uma quantidade de dados a cada 30 dias que corresponderá a tudo o que foi seqüenciado até hoje e é de domínio público.

'' Se não houver pados. Haverá áreas muito difí­ceis, que são difíceis para qual­quer um dos métodos utilizados. O método tradicional em uso, que gasta muito dinheiro, não torna essas regiões mais fáceis. A C.elegans provou isto, foi feito no método tradicional, e há mi­lhares de buracos. Então, isto não tem a ver com o método pro-

a patente de genes, novas drogas não poderão ser

desenvolvidas. E isto é funda menta I mente

imoral''

Grosso modo, há 2 bilhões de le-tras de código genético no GeneBank; nós temos que gerar 30 bilhões para o homem apenas nos próximos dezoito meses. Por isso, precisamos dessa massa em computadores. Cinco anos atrás, não havia sequer computadores capazes de fazer isso. O terceiro compo­nente são os novos algorítmos que nós desenvolvemos. Por que a TIGR foi capaz de fazer o primeiro genoma? Por causa dos algorítmos de montagem dos dados no computador. Nós temos os maiores especialistas do mundo na arte da montagem. Agora eles expandiram 100 vezes os programas da TIGR para o genoma hu­mano na Celera. O fato é que nós temos todos os com­ponentes necessários para fazer a proposta funcionar, e todos os testes feitos até agora mostram que o resulta­do vai ser muito acurado, muito completo. Mas como isto nunca foi feito antes, presume-se então que não pode ser feito. Ok.. Vamos mostrar que pode ser feito, nós já temos essa experiência e estamos extremamente confiantes de que o faremos até mesmo antes do que havíamos previsto.

• O senhor acha que a precisão é fUndamental?

- Bem, o código genético varia de organismo para or-

2 os mesmos referidos por Leroy Hood.

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priamente, é verdade que eles não tinham um bom mapa, mas

o problema tem a ver com a falta de uma técnica me­lhor para seqüenciar essas regiões. Há regiões assim em qualquer genoma, todo mundo está usando o método de Sanger, se você não chega a uma região, tanto faz se você tem máquinas grandes ou pequenas, isto não muda. Daí porque, quando anunciamos o projeto, nós dissemos que haveria pequenos buracos - tentávamos ser bastante ·honestos a respeito disto. Na C. elegans, eles tentaram fingir que não havia buracos, e na verda­de há milhares ...

• O senhor tem dito que seu projeto é complementar ao pro­jeto de financiamento público. Como assim?

- É que como todo o genoma vai estar sendo seqüen­ciado ao mesmo tempo, qualquer dado gerado em ou­tro centro poderá ser útil para nós. Nós não precisamos desses dados, não estamos confiando neles. Pensamos, aliás, que é um enorme desperdício de fundos públicos. Existem literalmente bilhões de dólares sendo gastos en­tre os Estados Unidos e a Inglaterra nos próximos anos, apenas para duplicar o que a Celera está fazendo e vai dar ao mundo de graça. Eu pretendo utilizar só a parte boa dos dados, há dados que não são efetivamente bons; pretendemos utilizar a parte boa para fazer nosso proje­to ir ainda mais rápido. Assim, quanto mais eles fize­rem, é como se fosse uma onda e um bote, eles nos em-

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GENOMA H UMANO I

purram, mas não podem nos alcançar, apenas nos em­purram mais depressa.

• O seu movimento para a formação da Celera fiz o gover­no dos EUA gastar ainda mais ...

- Isso não foi o ideal, eles de fato aumentaram o di­nheiro, mas às custas do programa de pesquisa em cân­cer. O orçamento de ciência na Grã-Bretanha de fato está sofrendo por causa do dinheiro gasto para duplicar a seqüência que nós vamos gerar e oferecer aos bancos públicos de dados. Penso que é mais uma questão do ego de al-

ver casos, como o da insulina, em que se veja com cla­reza uma droga capaz de tornar-se um medicamento de alto impacto. A Celera vai pedir menos patentes do que o NIH. Patentes não são uma peça-chave no plano de negócios da Celera. Poderíamos não paten­tear nada; mas há a responsabilidade social de patente­ar novos genes muito relevantes, que podem resul­tar em tratamento de câncer ou de outras doenças. Se não houver a patente, a droga não poderá ser desen­volvida e isto, do meu ponto de vista, é fundamental­mente imoral.

• O Brasil tem, neste momento, di­gumas das agências financiadoras e do Wellcome Trust, eles que­rem investir seu dinheiro em al­guma coisa que seja visível em vez de realmente financiar mais ciência.

• Como vai a discussão sobre pa­tentes?

''Quero destacar que ainda não

entendemos como 300 genes trabalham

em uma única célula''

versos projetas genoma em curso. Que lugar pode caber a um país subdesenvolvido no contexto da ge­nômica?

Penso ser crucial que eles te­nham um programa de genô­mica, porque assim estarão na melhor posição para usar as se­qüencias geradas pela Celera e por outros, porque obter as se-

-Meu entendimento é de que haverá patentes sobre alguns ge-nes importantes, e para alguns genes é extremamente importante que a patente exista. Deixe-me lembrar o exemplo da insulina. Os diabéticos tiveram um proble­ma no passado, porque a insulina foi isolada do pân­creas dos porcos. Depois, eles passaram a dar insulina de pâncreas de pombo, e eles desenvolveram anticor­pos. A resistência ficou maior e as pessoas morriam muito cedo se tinham anticorpos para insulina, porque não havia outro tratamento. Então, quando pesquisa­dores conseguiram clonar o gene da insulina humana, eles tiveram a patente e puderam fazer uma célula pro­duzir a insulina humana. Isso salvou milhares de vidas em todo o mundo. É um caso que mostra que, se não houvesse a patente, não haveria a droga. Dá-se o mes­mo com outras drogas, como as que beneficiam os do­entes dos rins que estão em diálise e submetidos a qui­mioterapia. São drogas dirigidas, que vieram dos genes; se os genes não estivessem protegidos por paten­te, não haveria a droga. Quer dizer: se não há patentes, todos sofreremos porque não haverá drogas para tratar nossas doenças. Por outro lado, há aqueles que querem patentear tudo. Eles querem depositar dezenas, cente­nas de patentes onde não têm a menor pista de uma droga, e isso está errado. Assim, se você ler o nosso anúncio cuidadosamente, de 80 mil genes humanos (e nós teremos todos eles em nosso banco de dados), di­zemos que talvez patenteemos de 100 a 3.000, se hou-

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qüencias é apenas o primeiro pas­so. Há quem pense que isto é o

fim das coisas, o que os leva a gastar um monte de di­nheiro do governo no que é apenas o começo para o en­tendimento da biologia humana e das doenças hu­manas. Por isso, o que de mais importante um país pode fazer é desenvolver sólidos programas científicos para tentar entender o câncer, para tentar entender as doenças que afetam sua população.

Nós apoi;mos com firmeza a expansão de proje­tas assim.

• A midia fala sobre genômica e biologia molecular como uma espécie de caminho para a imortalidade. O que o se­nhor pensa sobre isto?

-Tenho certeza de que muitos cientistas vêem assim, por razões diversas. Sabemos muito pouco sobre a biolo­gia humana e sobre o genoma humano, e estou absolu­tamente certo que as seqüências que vou gerar nos pró­ximos 18 meses ainda estarão em estudo no final do século que vem. Novas descobertas serão feitas sobre a biologia humana. Em suma, penso que estamos bem no começo do caminho até a imortalidade, e não sabemos bem se isto será produtivo para o mundo. Se você puder melhorar a qualidade de vida em uma vida de duração normal, isso já será um objetivo muito valioso. Não es­tou certo se prolongar ou dobrar a duração da vida é a melhor coisa para este planeta.

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• O senhor acredita que a genômica poderá responder à pergunta: por que Brahms compunha tão bem? Ou decifrar o sofrimento humano?

-Vou fazer uma analogia. Nós estamos tentando carac­terizar o genoma mínimo de uma pequena bactéria que a equipe da doutora Fraser seqüenciou, o Mycoplasma genitalium. Há somente 300 genes que são essenciais para a vida, de acordo com o que pensamos no momen­to; deles, 100 são completamente novos para a ciência, não sabemos o que eles fazem. O que quero destacar é que ainda não entendemos como 300 genes trabalham em uma

GE N O M A H U M ANO I

Estamos eliminando genes entre os 300 de seu geno­ma para ver os que não são essenciais à vida, e enten­der qual é esse conjunto mínimo. Note-se que cres­cemos o organismo no laboratório, o que é muito diferente do que é necessário no ambiente. O próximo passo será tentar sintetizar o cromossoma com apenas esses genes mínimos. Decidimos parar aí, e começa­mos uma discussão ética com um grupo de líderes re­ligiosos, cientistas e gente comum na Universidade da Pensilvânia, para ver se é apropriado ir em frente e sin­tetizar a vida.

única célula; se não entendemos ainda isto, como vamos entender 80 mil genes trabalhando juntos, em dez trilhões de diferentes célu­las e em diferentes combinações, que é o que nos forma? Isto está muito além da compreensão cien­tífica para os próximos séculos. Nós vamos precisar de muita ino­vação tecnológica para chegar até lá. Obviamente, há uma base ge-

''O código genético nos dá potenciais

para a vida.

Por isso a TIGR parou, nós não continuaremos os experi­mentos enquanto a discussão esti­ver em curso. Vamos publicar um artigo para descrever o trabalho num futuro próximo; depois da discussão pública, decidiremos o que fazer. Não há determinismo

que diga que serei um bom cientista''

• O senhor acha que merece ganhar um Prêmio Nobel?

nética para a personalidade, e há bases genéticas para a memória e para o pensar, mas ain­da não temos como medí-los. Por que pais famosos nem sempre têm filhos famosos? A realidade da vida nos afe­ta a todos. Nós nunca poderemos predizer se alguém virá a ser um notório cientista, ou um bom compositor; isso está baseado também no ambiente onde vivemos ou crescemos e trabalhamos e todas as oportunidades que temos. Tome-se o caso dos gêmeos idênticos, com o mesmo código genético: algumas vezes, eles crescem com personalidades muito diferentes, vidas muito dife­rentes. Isso depende de quanto você enfatizar o que têm de diferenças entre si, e o que têm em comum. Se você vê gêmeos vestidos iguais, tende a ver o que têm em co­mum; mas se eles crescem separadamente, vão construir vidas diversas entre si. O que o código genético nos dá são potenciais para a vida; não há determinismo genéti­co que diga que você vai ser boa jornalista e eu, um bom cientista. No período de evolução, esses trabalhos sequer existiam, de forma que não há maneira de haver um componente genético para sua determinação. Poderá de­terminar uma certa quantidade de inteligência e uma ha­bilidade para lidar com o ambiente, no máximo.

• O entendimento da evolução também está fortemente re­lacionado à genômica, não?

- Você tem razão. Veja o exemplo do M. genitalium.

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Tenho mais sobre o que pensar no momento. Estou saindo da

TIGR para formar a Celera e seqüenciar o genoma hu­mano. Decidi que prefiro passar à história como o se­qüenciador do genoma humano do que ganhar o Prêmio Nobel. Validação pública é sempre bom; se acontecer, muito bem, mas não é meu objetivo na vida.

• O senhor pensa que poderia ficar rico se a genômica não existisse? •

- Sou freqüentemente retratado como um milionário ocasional. Ficar rico não era meu objetivo. Não criei a TIGR ou a Celera com esse objetivo. Mas fica claro, com o caso da recusa do governo em financiar o H . in­jluenzae, que é preciso ter recursos próprios. Esta é a primeira razão para se montar uma companhia de bio­tecnologia. Por ter parte de uma companhia, ganhei al­guns milhões de dólares. Agora, de novo, o governo diz que é impossível seqüenciar o genoma humano segun­do minha proposta; e, felizmente, a Perkin Elmer está investindo centenas de milhões de dólares nisso, e tan­to eu quanto a TIGR somos sócios da Celera. Você não precisa sofrer para ser cientista. O fato de trabalharmos às vezes 18 horas por dia mostra que somos dedicados ao que fazemos. Não há incompatibilidade entre a de­dicação e ter dinheiro que me permita sair velejando e descansar minhas células cerebrais. É uma questão de motivação.

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GEN OM A H UMANO I

Os com.putadores estão revolucionando a Biologia

Phil Green, matemático, 48 anos, trabalha em Seattle, na Universidade

de Washington, como Leroy Hood; e é o nome mais importante entre os pesquisadores de bioinformática - a nova especialidade inerente à transformação da Biologia numa ciência que lida com grandes quantidades de dados, produzidos em massa por seqüenciadores automáticos de grande capacidade. Doutor Green e seus colaboradores criaram a maior parte das ferramentas em uso nos programas genoma. Das soluções que conseguirem encontrar, daqui para a frente, para tornar automáticas mais e mais tarefas típicas do seqüenciamento de moléculas de DNA, depende a rapidez com que os resultados serão alcançados e sua precisão. A profundidade da nova ligação entre as ciências da computação e a Biologia, e a forma pela qual ela se dá, são o assunto da conversa com o professor norte-americano.

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Phil Green

• Um dos desafios da biologia mole­cular contemporânea é ligar duas lin­guagens - a da biologia e a das ciên­cias da computação. O senhor pensa que este é realmente um dos proble­mas importantes da área?

- Sim. Vou exemplificar com o meu caso. Fui treinado como mate­mático, mas desde a escola secundá­ria me interesso por genética- um dos aspectos mais matemáticos da Biologia. O que está acontecendo

agora na Biologia é que ela está se tornando um discipli­na mais quantitativa, como a Química e a Física. Esta tendência já se delineava há algum tempo, mas acelerou­se bastante nos últimos dez anos, quando seqüenciar o DNA tornou-se mais e mais importante. Muito mais in­formação biológica tem sido gerada, e de muitos tipos. Um novo problema emergiu: como analisar os dados, qual o método quantitativo adequado para fazê-lo. Se olharmos para o futuro desde esse ponto de vista, nós es­tamos no começo do caminho que vai tornar a Biologia, de fato, uma ciência quantitativa. Nos projetas genoma, tentamos identificar diferentes componentes molecula­res presentes nas células - as proteínas em particular. Quando dispúsermos dessa lista de componentes, então o desafio - aliás, muito maior do que o desafio de se­qüenciar o DNA- será entender como esses componen­tes interagem entre si para fazer um organismo. Para isso, será preciso usar não só as idéias da ciência da com­putação, mas modelamento matemático, modelamento estatístico, e desenvolver métodos inteiramente novos para entender como funciona a interação entre as molé­culas. Até agora, muitos biólogos chegavam à Biologia porque queriam ser cientistas, mas sentiam-se um tanto desconfortáveis com os métodos quantitativos. A Biolo­gia foi o campo ideal para alguém que não queria traba­lhar com números ou computadores, mas agora, tudo mudou. É um dado cultural.

• Mas o senhor também não é um matemático no sentido clássico ...

- É verdade. Há uma transição a ser feita também para os matemáticos. Nós tendemos a idealizar os problemas

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GENOMA HUMANO I

e sua formulação. Mas quando mos. Penso que, de fato, os orga­você começa a falar de dados reais, de organismos reais na natureza, moléculas reais, há toda uma série de complicações para as quais você realmente não foi treinado como matemático. É muito mais difícil do que eu pensava, para al­guém que vem da matemática ou das ciências da computação, de­senvolver uma compreensão de como os dados são coletados no

''A biologia foi nismos obedecem às leis da física e da química. Quando entender­mos o que eles são nos termos dessas leis, chegaremos a enten­der, então, os sistemas complexos de moléculas. Como eles se orga­nizam, quais seus componentes, que interações se dão - sempre haverá algum mistério nisto. Tal­vez a complexidade seja grande demais para ser entendida. Orga-

o campo ideal para alguém que

não queria trabalhar com números.

Agora, tudo mudou''

laboratório, para aprender como pensar os problemas biológicos que de fato importam, e dar espaço às imperfeições do mundo real. Não é fá­cil. Como se vê, há pontes culturais que devem ser atra­vessadas de ambos os lados.

• A especificidade e a abstração da linguagem da matemá­tica e das ciências da computação não trazem riscos, quando aplicadas à Biologia?

-É difícil levar em conta todas as complexidades. Nós, da matemática e das ciências da computação, costuma­mos simplificar os problemas, tentando extrair aqueles que parecem ser os elementos-chaves, e com eles cons­truir algorítmos e procedimentos para calcular. Quando se trata de organismos biólogicos, lidamos com sistemas extremamente complexos. Mesmo os biólogos têm que super-simplificar, têm que escolher um aspecto particu­lar do organismo e pensar sobre ele numa forma simpli­ficada, por causa da extrema complexidade. São bilhões de partículas interagindo entre si - a simplificação é ne­cessária. O risco que o ponto de vista da matemática traz é a tentação de olhar para o organismo, para algum as­pecto da seqüência, e tentar pensar sobre isso de uma maneira particular, que esteja relacionada com um pro­blema matemático particular que já se conheça. Isto é muito perigoso porque não estamos estudando objetos; na Biologia, são realmente siste-

nismos vivos são sistemas com­plexos de moléculas, interagindo entre si, e que têm a possibilidade de fazer coisas surpreendentes, coisas ma­ravilhosas. É preciso ser capaz de compreender os orga­nismos nestes termos.

• Mas esses não são uma abordagem e um ponto de vista re­ducionistas?

- Esta é uma critica pertinente, e minha resposta é sim. Quando se trata de tentar entender qualquer sistema complexo, não é apenas uma questão de identificar o que são as partes. Há questões de mais alto nível, quan­do se deseja detalhar a operação do sistema. Certamen­te, interagimos com o meio ambiente. O ambiente é fei­to de moléculas, ele próprio um sistema complexo, nós somos um componente do complexo meio ambiente. Mas, ainda assim, continuamos a obedecer às leis da fí­sica e da química. Há um reducionismo extremo que pode ser criti.cado -a visão de que, para entender a na­tureza, basta saber quais são suas partes. Para entender qualquer aspecto da natureza, é necessário entender quais as interações que ocorrem- interações governadas pelas leis da química e da física. O problema principal é o entendimento dos sistemas complexos. Nós podemos determinar quais são os componentes moleculares de um sistema, mas é muito mais difícil entender como es-

ses componentes interagem com mas complexos, que têm muitos aspectos que nós não suspeitamos; é preciso, portanto, manter-se de mente aberta para eles.

'' Sempre haverá algum mistério

o sistema de moléculas. Apesar das dificuldades, acredito que sere­mos capazes de fazê-lo no futuro.

• Como o senhor se sente como o criador das ferramentas mais larga­mente usadas nos projetos genoma?

• O senhor pensa que, a partir des­ses esforços, vai ser possível respon­der à questão: o que é a vida?

-Sim, acho que, em determina­do momento, vamos ser capazes de entender o que são os organis-

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em como os sistemas biológicos se organizam.

A complexidade é grande demais''

Um pouco ambivalente. Quando comecei a me debruçar sobre esses assuntos, cinco ou seis anos atrás, eu realmente pensava

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que seria simples. Ingenuidade te aleatórias. Então, ao olhar a se­minha. Também não via esse as­sunto como alguma coisa em que eu quisesse trabalhar a longo pra­zo, porque os problemas me pare­ciam técnicos: há pouca ou ne­nhuma biologia envolvida no desenvolvimento de novas ferra­mentas, por exemplo. Meu pro­pósito ao escolher esse campo era o de gerar conhecimento biológi­co novo; estou muito mais inte-

'' Nos projetas genoma tentamos identificar

diferentes componentes moleculares presentes

nas células - as proteínas em particular''

qüência genômica de dois orga­nismos diferentes, e tentar enten­der em que são similares e porque são diferentes, deve-se levar em conta essas diferenças aleatórias. Daí a necessidade da teoria das probabilidades. Então, o que tem sido feito é desenvolver mode­los probabilísticos que prevejam como deve ser cada tipo particular de seqüência. Um exemplo: a par-

ressado no problema da interpre-tação das seqüências. Quer dizer: uma vez que tenhamos uma seqüência, tentar identificar nela detalhes biológi­cos importantes. Assim, ficar centrado no que tem rela­ção com a montagem e com a determinação das bases me afasta, na verdade, desse meu interesse. Nosso soft­ware tem sido bem sucedido; há muitos grupos que de­pendem de nós para aperfeiçoá-los. Só vamos considerá­lo inteiramente bom quando estivermos num estágio em que não tenhamos mais que melhorá-lo em nada, por­que ele vai lidar com todos os problemas automatica­mente. Então, gosto de ver nossos softwares em uso, mas é um pouco frustrante que isso me tire do caminho onde estão os problemas mais interessantes.

• De que se trata, interpretar seqüências?

-Interpretar seqüências envolve problemas de mais lon­go prazo, e mais interessantes. É importante identificar genes, saber dizer onde começam, onde terminam, e identificar os diferentes sinais que estão associados com eles. Há muita gente trabalhando nisto. Mas, presumivel­mente, há outro tipo de informação na seqüência, além dos genes. Esta é uma área interessante- identificar esses outros detalhes biológicos na seqüência - e pouco pro­gresso tem sido feito nela. Para enfrentar a questão, é preciso buscar idéias da teoria das probabilidades e da estatística. É preciso desenvol-

te do gene que codifica a proteína tem certas tendências estatísticas que advêm simples­mente do fato de codificar a proteína. Além disso, há fa­tos estatísticos bastante interessantes, que são apenas par­cialmente entendidos. Não sei se não estou ficando muito técnico ... O código genético que converte triplas de DNA em aminoácidos é degenerado- há vários co­dons diferentes para um dado aminoácido. O caso é que eles não são usados com igual freqüência em um dado organismo. Qualquer que seja o organismo que você es­tuda, se você toma um aminoácido particular que é codi­ficado por mais de um codon, e conta quão freqüente­mente cada um desses codons é usado, você encontrará que eles não são usados com a mesma freqüência. À5 ve­zes, há um grande viés nisso. É útil tentar criar modelos estatísticos para classificar determinada seqüência codifi­cadora com o propósito de identificar genes e seqüên­cias. Quando você conhece esses vieses, "viés de uso de codons sinônimos", é assim, que são chamados, então você pode elaporar um modelo estatístico e levá-lo em conta. É realmente muito interessante descobrir, do pon­to de vista biológico, porque esses vieses ocorrem. Até agora, isto é entendido apenas parcialmente. Parece que alguns desses codons, em organismos primitivos, são tra­duzidos mais eficientemente que outros. Como a seqüên­cia protéica é construída a partir do RNA mensageiro, alguns dos codons se reorganizam mais rapidamente

e codificam seu aminoácido com ver modelos probabilísticos para tentar entender as seqüências. Ba­sicamente, a razão pela qual a teoria das probabilidades é neces­sária é que a seqüência de um genoma é produto de bilhões de anos de evolução, e a evolução tem um grande componente aleatório. Muitas das mudanças nas seqüên­cias que ocorreram ao longo do tempo não têm nenhuma implica­ção funcional, elas são basicamen-

''É preciso desenvolver

modelos probabilísticos para tentar entender

mais rapidez e precisão. Parece, então, ter havido alguma seleção durante a evolução para favorecer certos codons. Mas há outros as­pectos que não entendemos. Quando se começa a fazer análise estatística de seqüências genômi­cas, é excitante notar que você co­meça a notar padrões, aspectos não-aleatórios da seqüência. En­tão, a questão é: o que isto signifi-

as seqüências'' ca do ponto de vista biológico? Há

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muitas observações já feitas que não compreendemos. Novos expe­rimentos devem ser tentados para esclarecer o assunto.

• O senhor publicou um paper em que afirma seu ceticismo em relaçao à estratégia proposto pela Celera e por Craig Venter para sequenciar o genoma humano. O senhor poderia nos folar disso?

'' Presumivelmente, há outro tipo de informação na

seqüência, além dos genes. Outros

detalhes biológicos''

relação ao cronograma do projeto Genoma Humano ...

- Também acho um desafio. O que me preocupa é que os prazos pressionam as pessoas a baixar o padrão de qualidade das seqüên­cias. Acho que haverá pressão para que se gere menor quantida­de de dados, um número menor de reads em cada região, para per­mitir que se avance mais rapida-

-A questão central são as repeti-ções, as seqüências repetidas do genoma humano. Na es­tratégia em uso atualmente, os grupos tomam clones de 150 mil pares de bases, quebram esses clones em peda­ços, seqüenciam, e depois montam. Pois mesmo nessa escala, com clones desse tamanho, os grupos encontram problemas com as seqüências repetidas. Na maior parte das vezes, os programas de montagem conseguem lidar com os repeats; mas há casos realmente difíceis, especial­mente quando você tem repetições relativamente longas, que ocorrem em vários lugares com seqüências quase idênticas. Isso quando você vê o problema em pequena escala, na escala desses clones de 150 mil pares de bases. Quando você aumenta a escala, o problema simples­mente cresce de magnitude. Quanto maior o pedaço de DNA, maior a probabilidade de você ter repetições nele. Portanto, eu sou cético: não é factível realizar a monta­gem na escala do genoma humano inteiro. Por outro lado, acho que aCelera na verdade não vai fazer a mon­tagem de todo o genoma a partir dos seus próprios da­dos. Eles não precisam fazer isto, porque o projeto pú­blico está gerando dados que não são finalizados imediatamente, o que quer dizer que os dados parciais ficam disponíveis. O que aCelera fará, acho, é combinar os dados que eles vão obter com o shot-gun com os da­dos do projeto público. Isto vai permitir que aCelera lo­calize as seqüências dentro do genoma e tornará o pro­blema de montagem muito mais

mente. Se isto acontecer, não ha­verá dados suficientes para obter a seqüência toda corretamente. Talvez se conseguirmos automatizar a fase de finalização, possamos ajudar. Mas, com menos dados, é provável que haja regiões em que a seqüência não será precisa, pois a pressão vai desestimular as pessoas a bus­car em mais dados. Então, o que me preocupa é que o produto, a seqüência final que vai emergir daqui a cinco anos, ou daqui a dois, no projeto da Celera, poderá con­ter muitos erros. Haverá regiões montadas de maneira errada; haverá outras regiões em que a montagem estará certa, mas com trechos errados na seqüência, o que pode comprometer o trabalho dos biólogos. Não é realista pensar que vamos obter seqüências perfeitas. O objetivo com o qual concordamos no Genoma Humano é de ad­mitir um erro a cada 10 mil pares de bases. Quando os biólogos ouvem esse número, eles sentem que é excessi­vo. Para mim, não soa excessivo, porque o comprimen­to de uma região codificadora dentro de um gene é talvez mil ou mil e quinhentos pares de bases, o que ga­rante que ap~nas uma minoria dos genes contenha erros em sua seqüência. Queremos que pelo menos as regiões codificadoras tenham alto grau de precisão, porque have­rá um grande número de estudos biológicos das proteínas criadas por elas, e será necessário também comparar as se­qüências codificadoras de proteínas entre diversos orga­msmos, para analisar aspectos relacionados à evolução.

Então, a precisão é necessária, qua­fácil. Ainda assim, é um grande desafio. Apesar de estarmos sem­pre tentando aperfeiçoar os soft­wares, mesmo assim, há regiões que são extremamente difíceis, há muitas seqüências repetidas e elas são muito similares umas às ou­tras. Não haverá como realizar a finalização de forma completa­mente automática.

'' O que me preocupa é que os prazos

pressionam as pessoas a baixar o padrão

de qualidade

se sempre. Se viermos a admitir um erro a cada mil pares de bases, isto significa que praticamente todo gene terá pelo menos um erro. Uma parcela importante de­les vai resultar em conclusões erra­das a respeito do aminoácido co­dificado, o que é muito sério. Assim, um erro em 1 O mil bases é razoável. Seria possível aumentar a precisão, mas, então, o custo se tor-

das seqüências'' • Mas o senhor não está cético em naria talvez alto demais.

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O risco da confiança . , . excesstva nas lllaqutnas

No Programa Genoma Fapesp, quem fala em bioinformática, fala

nos dois "Joões", jovens livre-docentes do Instituto de Computação da Unicamp, e fundadores do laboratório que é um talismã da rede

• A ligação das metodologias em uso no seqüenciamento de genomas com a informática é muito grande. Gostaria que o senhor precisasse que contribui­ção as ciências da computação apor­tam à Biologia.

de seqüenciamento ONSA (do inglês, Organization João Carlos Setúbal

- Vou tentar sistematizar. A pri­meira coisa é o volume de dados. O volume de dados que está sendo gera­do mundo afora pelos laboratórios de biologia molecular é inimagi-

for Nucleotide Sequencing and Analysis). João Carlos Setúbal é um dos dois "Joões"; e deve ao outro, João Meidanis, o encontro com a biologia computacional. Ex-paulistano (deixou a cidade em que nasceu há mais de 1 O anos), João Carlos, 42 anos, também é um ex-engenheiro mecânico que, ao escolher se doutorar nas ciências da computação, achou um caminho que o levou de volta ao interesse, presente desde a adolescência, pelo estudo dos organismos. Doutor Setúbal entregou-se com prazer a essa discussão sobre o impacto de sua especialidade no fazer científico contemporâneo; e usou, ao expor suas idéias, a precisão que é uma sua marca registrada. Sua reflexão complementa e enriquece os pontos de vista de Phil Green, expostos na entrevista anterior. Casado com "a linda Teca"- as aspas são do marido-, João é pai de Caio, Claudia e Tomás.

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navelmente grande. Também é ini­maginável tratar esses dados sem o auxílio dos computa­dores. Nos tempos heróicos da biologia molecular, o número de seqüências era tão pequeno que Russell Doo­litde podia pedir ao filho para ajudá-lo a datilografar as seqüências para ordená-las na parede. Hoje, isso é im­possível. A quantidade de seqüências geradas no mundo é tão grande, que só com computadores você é capaz de lidar com ela. A segunda coisa é a capacidade de análise desse volume. Os computadores desempenham o papel fundamental de realizar tarefas de forma automática sobre esse grande volume de dados. De novo, podemos fazer uma analogia com a época pioneira: desde os pri­mórdios, foi necessário pegar pedaços do DNA e juntá­los para formár seqüências maiores. Isto era feito no olho: as pessoas escreviam as seqüências e começavam a tentar ajustar umas com as outras e montavam- era um proces­so manual, que foi completamente automatizado. Quase completamente: ainda é necessária a supervisão humana; você tem que ver se a montagem está boa. Mas, em grande medida, o processo foi automatizado. No projeto da Xylella, por exemplo: quem poderia ser capaz de olhar todos esses dois milhões de bases e confirmar se elas estariam corretamente montadas? A grande virtude do computador, desde que os programas sejam bons, é a capacidade de tomar conta muito bem, e velozmente, da parte mecânica, repetitiva. Aliás, isso acontece com qual­quer máquina. O computador filtra, permite que a gente se concentre naquilo em que somos necessários.

• De que maneira a informática mudou o jeito pelo qual os biólogos aproximam-se de seu objeto de estudo?

Não sou a pessoa mais indicada para dar essa respos-

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ta, porque eu nunca tive uma prática de biologia que eu possa comparar com a prática atual. Mas posso gene­ralizar a partir de experiências de outras áreas. O mais óbvio a falar, nesse caso, é que a pessoa passa a confiar mais nos resultados da máquina que na sua própria intui­ção, em sua própria experiência. Há um exemplo disto acontecendo agora na Xylella: surgiu a necessidade de fazermos uma certificação das montagens feitas pelos laboratórios. Quem faz a montagem é um programa, que às vezes não chega a uma conclusão, mas, sim, mostra uma ambigüidade. Para darmos conta do volume de trabalho, essa certificação pre-cisou ser automatizada. Estabe-

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aos biólogos formular perguntas antes jamais imagina­das, e essas perguntas e suas respostas estão sendo uma das principais alavancas do atual progresso da biologia molecular. O exemplo mais simples é o seguinte: um biólogo seqüencia um novo gene, mas não tem idéia de sua função. Aí, ele compara (por meio de um programa de computador) a seqüência do gene com as seqüências de outros genes armazenadas num banco de seqüências (isto é, armazenadas em computadores). Supondo que haja uma seqüência muito parecida depositada no ban­co, e que essa seqüência corresponda a um gene bem

estudado, o pesquisador terá, em questão de segundos, uma pista

lecemos alguns critérios, e foi pos­sível criar um programa que automatizou a verificação desses critérios. Claro, o programa obe­dece a certas regras: o cosmídeo não pode apresentar posições não confirmadas em dupla fita, não pode ter discrepâncias de alta qua­lidade e assim por diante. O pro­grama simplesmente verifica isso e devolve para você uma lista, que diz: este cosmídeo não está pron-

''A tendência de descrever o genoma e os mecanismos de geração

de proteínas como programas de computador

tem que ser brecada''

muito boa para a função do gene que ele seqüenciou. Antes dessa revolução ocorrer, o pesquisador poderia passar anos para conse­guir essa pista. Esse exemplo é útil também para mostrar um dos principais desafios da biologia mo­lecular atual: o de formular per­guntas "certas". Com tantos dados acumulados, não tenho dúvidas de

to, porque tem tais pos1çoes com problemas. O que acontece normalmente é que a vasta maioria das po­sições problemáticas é resolvida através de novas expe­riências. Mas, algumas vezes, os responsáveis pelos labo­ratórios nos procuram e dizem: "olha aqui, apesar de o seu programa estar dizendo que há um problema, na ver­dade não há nenhum problema". Aí, olhamos juntos o cromatograma, vemos que de fato não há problema, e tudo se resolve. Só que, outras vezes, as coisas não são tão simples assim, nem tão objetivas ...

• Quer dizer: as ferramentas deixam pouco espaço para a subjetividade do pesquisador. ..

Exatamente. E isso representa uma perda. Diferentes pessoas, olhando o mesmo cromatograma, podem che­gar a conclusões diferentes ... Quando eu vejo uma dúvi­da desse tipo, gostaria de ter o traquejo de conhecer os cromatogramas e falar para o pesquisador: "você tem ra­zão, isso de fato comprova que o que o programa diz que é um problema não é de fato um problema". Mas eu não tenho esse traquejo. Imagino que biólogos também não tenham esse traquejo, porque está todo mundo confian­do demais nessas ferramentas automatizadas, o que é inevitável: em qualquer domínio da informática, sempre vai haver essa dualidade. Por outro lado, é fundamental dizer também o seguinte: a informática está permitindo

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que existem muitas coisas a serem descobertas, desde que as pergun­

tas certas sejam feitas. E a informática fornece as ferra­mentas para que essas perguntas possam ser respondidas.

• O senhor acha que a linguagem da informdtica impôs-se à Biologia, que ela conforma a Biologia às regras, modelos, métodos da computaçao?

- É que antes das abstrações da informática, vêm as abstrações que estão na cabeça dos biólogos. A informáti­ca só concretiza os modelos e as abstrações que os próprios biólogos julgam apropriados. Então, a pergunta deveria ser formulada primeiro em termos desses modelos dos biólogos. Por exemplo: a pesquisa atual em cima dos pro­jetas genoma centra-se muito no conceito de gene. Naturalmente, vem a pergunta: o que é um gene? Se você pegar um livro-texto qualquer, vai ver: um gene é um pedaço de DNA que é constituído de uma parte central que codifica uma proteína; também tem um promotor, que permite o reconhecimento por parte da enzima que vai fazer a cópia daquele pedaço etc e tal. Mas quanto mais se conhece o DNA e o genoma, percebe-se que esse conceito talvez seja ultrapassado. O conceito de conjuntos de genes está ficando cada vez mais importante ... Então, o conceito de gene é um exemplo de modelo abstrato que os biólogos têm e que condiciona a forma pela qual eles fazem a pesquisa. A informática traduz as abstrações, os conceitos. Existem programas que acham genes. É claro

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que esses programas embutem as regrinhas que os biólo­gos acham importantes para localizar genes. Se o conceito de gene mudar, é obvio que o programa também vai ter que mudar. Acho que sua pergunta pode ser vista da seguinte forma: será que, após a colocação dos modelos e das abstrações dos biólogos, de sua concretização através da informática, será que a própria informática não intro­duz algumas coisas que são próprias dela, e que acabam direcionando de alguma forma os resultados? Minha resposta é: sem sombra de dúvida. Mas, é difícil para eu diferenciar até onde vai o modelo dos biólogos, as abstra­ções deles, e onde começam a aparecer coisas que são ine­rentes à informática. Posso dizer que, para nós da infor­mática, é muito fácil tratar o DNA como uma cadeia de caracteres. As cadeias de caracteres são objeto da infor­mática. O risco é fazer abstrações sempre num determi­nado sentido. Existe uma tendência muito forte a encarar o DNA como uma seqüência de letras.

• E isto não induz a equívocos?

-O equívoco principal é se esquecer que o DNA é uma molécula de dupla fita. Me lembro de ter estado em con­ferências e ouvido os biólogos dizerem: "vocês, não-bió­logos, ficam procurando padrões no DNA; de repente, descobrem que a molécula apresenta um padrão de de­terminado jeito, super interessante, e anunciam aquilo como uma grande descoberta, e quando você vai ver, o padrão que parecia tão interessante é mera conseqüência do fato de o DNA ter duas fitas enroladas em hélice, cada vez que ele dá uma volta, vai aparecer tal coisa". Quer dizer, não tinha nada de revolucionário, era óbvio que tinha de ser assim, visto que o DNA é uma molécu­la tridimensional enrolada. O fato de o DNA ser um código discreto de quatro letras casa-se maravilho­samente bem com os modelos, as idéias e os conceitos fundamentais da ciência da computação. A tendência, então, é descrever o genoma e os mecanismos de geração de proteínas como se fossem programas de computador, e esta é uma tendência que tem que ser brecada.

Existe uma distância bárbara entre uma coisa e outra. É uma comparação útil num primeiro instante, para o pes­soal de computação entender a biologia, como funciona a replicação, esses conceitos. Mas essa metáfora tem um lim­ite muito claro. A falta da consciência desse limite pode levar a trabalhos que acabam indo para o lado errado, porque estão entendendo o DNA de um jeito que ele não deve ser entendido. O lado mais errado para onde se pode ir é pensar que um organismo é determinado pelo seu DNA, da mesma forma que um computador é determina­do pelos seus programas ou um disco é determinado pelas músicas que estão nele gravadas.

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• Pelo foto de simplificar demais?

- Exatamente.

• Há uma concepção dominante entre pesquisadores que vou resumir na fase: ''o destino de cada um é seu DNA ·: O senhor

concorda com isto?

-A ciência deveria ser uma maneira de adquirir con­hecimento que, a certa altura, vai nos mostrar a vida como ela é - vida aí no sentido biólogico. Então, eu não sei, você não sabe, ninguém sabe hoje o quanto de nosso patrimônio genético determina aquilo que somos. Existem correntes ideológicas - algumas acham que somos vastamente determinados pelo nosso patrimônio genético; outras, acham que não ...

• O senhor acha que é ideólogico?

-Acho que tem muito de ideologia, neste momento. A pesquisa nesta área vai contribuir para lançar um pouco mais de luz sobre isso e, por conseguinte, tornar um pouco menos ideólogico esse debate.

• O ponto de vista hegemônico entre os cientistas envolvidos nessas áreas de pesquisaé o ponto de vista de que somos "vas­tamente" determinados pelos genes ...

-É verdade. Mas aí vem a ciência. Sabemos que a ciên­cia é uma atividade humana determinada pelos valores de uma época, pela ideologia de uma época e assim por diante. Mas h~ um valor intrínseco na ciência: de alguma forma, com o passar dos anos, quando existe uma ver­dade natural, ela acaba emergindo, de um jeito ou de outro. A verdade pode ficar escondida durante um certo tempo, por causa da ideologia, por causa dos valores da época etc; mas tudo indica que a ciência, da forma que vem sendo exercida desde o século 17, acaba sendo imune a esse tipo de coisa. Pode levar um certo tempo mas a ciência acaba vencendo, por assim dizer. Assim, se houver uma verdade biológica de que nós somos deter­minados largamente pelo nosso patrimônio genético, então não vai haver como escapar disto. Ou o contrário: se, apesar de o establishment científico atual ser domina­do por pessoas que acham que somos determinados pelo nosso patrimônio genético, a verdade for oposta a isso, num primeiro momento, talvez as conclusões levem a confirmar a ideologia do establishment cientifico; mas, mais cedo ou mais tarde, isso vai acabar caindo por terra. Se não cair, há algo de profundamente errado com a ciên­cia, certo? E o consenso geral é que, por mais defeitos que a ciência tenha, ela acaba descobrindo as verdades.

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