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1 VICTOR K. FAGUNDES A LEGÍTIMA DEFESA E O USO DE ARMA DE FOGO Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB Orientador: Prof. Dr. JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR BRASÍLIA 2004

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1

VICTOR K. FAGUNDES

A LEGÍTIMA DEFESA

E

O USO DE ARMA DE FOGO

Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB

Orientador: Prof. Dr. JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR

BRASÍLIA

2004

2

“A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e pusilânimes.”

NELSON HUNGRIA

3

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR, pela infinita condescendência no trato comigo. Também aos meus queridos Prof. ROBERTO KRAUSPENHAR e Prof. JONAS FERNANDES LEMOS PINHEIRO.

4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1

1. A LEGÍTIMA DEFESA

1.1 Considerações gerais ........................................................................................ 5

1.2 Requisitos objetivos ......................................................................................... 5

1.2.1 Agressão atual ou iminente e injusta .................................................. 5

1.2.2 Preservação de um direito, próprio ou de outrem .............................. 7

1.2.3 Emprego moderado dos meios necessários à defesa .......................... 8

2. A ARMA DE FOGO

2.1 Considerações gerais ...................................................................................... 11

2.2 Limitações legais ............................................................................................. 12

2.2.1 O registro de arma de fogo ................................................................ 12

2.2.2 A autorização para portar arma de fogo ........................................... 15

2.2.3 A constitucionalidade da Lei nº 10.826/03 ......................................... 18

3. O USO DE ARMA DE FOGO NA LEGÍTIMA DEFESA

3.1 Considerações gerais ....................................................................................... 26

3.2 Apanhado jurisprudencial .............................................................................. 26

4. CONCLUSÃO ............................................................................................................... 35

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 37

5

RESUMO

Um dos pressupostos objetivos para a existência da legítima defesa é, como

prevê a lei, o emprego moderado dos meios necessários à defesa. Todavia, o grau de

complexidade e de gravidade das agressões que o cidadão de bem sofre na atualidade tem-se

mostrado cada vez maior, tendendo a um ponto insuportável dentro de uma sociedade

organizada.

É razoável que o cidadão de bem, na ausência de proteção estatal, defenda-

se com seus punhos de um bandido desarmado que pretenda lhe furtar a carteira; também é

igualmente razoável que este mesmo cidadão, na ausência de proteção estatal, use uma arma

de fogo contra um bandido armado que pretenda lhe tirar a vida para subtrair seus bens. No

último caso, se o acesso do bonus pater familiae ao único meio necessário e suficiente para o

exercício de seu direito de legítima defesa - outra arma de fogo - for proibido, ele estará

condenado à perda irremediável de dois dos mais sagrados direitos constitucionalmente

assegurados: o direito à vida e o direito à propriedade.

As armas de fogo sofreram nos últimos anos uma incansável e ferrenha

campanha, por parte do governo e de entidades paraestatais, pela sua extinção dos lares

brasileiros, com a suposta justificativa de que os índices atuais de violência urbana fossem

decorrentes da posse de armas de fogo por parte da população civil.

Mas, esquecem os pacifistas que, se o Estado não pode garantir que

bandidos não tenham acesso a armas, também não pode proibir que o cidadão de bem as

tenha, sob pena de diminuir deste direitos constitucionalmente assegurados.

Este é o objetivo do presente estudo: provar que qualquer restrição imposta

ao cidadão de bem ao acesso às armas de fogo é incompatível com a previsão legal do direito

à legítima defesa.

6

INTRODUÇÃO

Os direitos e garantias individuais, pilares que são do Estado democrático de

direito, estão presentes em todas as constituições dos países civilizados e politicamente

organizados, o que inclui a nossa Pátria-Mãe.

Nossa Constituição Federal, em seu Título II, Capítulo I, trata

especificamente “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, elencando, principalmente

no caput e nos vários incisos do Art. 5°, as garantias constitucionais do direito individual,

entre elas o direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.

Para assegurar as garantias previstas em lei, o Estado dispõe do poder de

coerção, que lhe faculta inclusive o uso da força para proteção de bens ou interesses jurídicos

arbitrariamente atacados ou ameaçados. Todavia, previu a lei a hipótese do indivíduo, na

ausência estatal, defender-se legitimamente. “Chamando a si o poder de proteção aos direitos

individuais, o Estado teve de abrir uma exceção, permitindo que o indivíduo o substituísse

quando a debelação de injusto ataque aos direitos assegurados exigisse reação in continenti.”1

Esta exceção é o que conhecemos hoje como legítima defesa.

O legislador infra-constitucional regulamentou a legítima defesa, ou defesa

privada, quando da promulgação do Código Penal Brasileiro, que traz o instituto da legítima

defesa como uma das exclusões de ilicitude previstas no seu Art. 23, e definindo o “estado de

legítima defesa” no seu Art. 25, verbis:

“ Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1949, vol. I, p. 445.

7

Assim, a lei tira de determinadas situações e sob determinadas condições

seu caráter criminoso. O crime, sob o aspecto formal, é o fato típico e antijurídico2; ao

encontrar-se em situação de legítima defesa, ou seja, ao satisfazer os requisitos legais do

estado de legítima defesa, o agente não deixa de praticar fato típico, mas o pratica livre de seu

aspecto antijurídico. Não pratica crime, portanto.

A legítima defesa é uma causa objetiva de exclusão de ilicitude, e como tal

só pode existir objetivamente3. Seus pressupostos objetivos devem, dessarte, ser satisfeitos em

sua totalidade, ou não há que se falar em tal excludente. São eles: a) a agressão atual ou

iminente e injusta; b) a preservação de um direito, próprio ou de outrem; e c) o emprego

moderado dos meios necessários à defesa.

Mas o que são meios necessários à legítima defesa?

Que meio seria necessário para o cidadão de bem defender-se das agressões

sofridas na atualidade, por malfeitores armados e com cada vez maior poder de fogo?

É de razoável entendimento que, se o amigo do alheio intentar subtrair uma

carteira aproveitando-se da distração do dono, a este será lícito repelir o intento criminoso,

seja com um empurrão ou com um golpe de punho. Não será lícito ao ofendido, v.g., sacar

uma arma de fogo do bolso e disparar contra o punguista, pois, apesar de um meio próprio de

defesa, não era o único, e havendo mais de um meio necessário e suficiente, mister se faz a

escolha pelo menos lesivo4.

Também será lícito repelir com disparos de arma de fogo uma agressão

sofrida com o mesmo engenho, ou reagir com uma faca a uma agressão por arma de fogo. A

moderação no uso de meios necessários serve, então, como limite ao desforço do agredido, ou

seja, o que exceder ao uso moderado, será penalizado pelo “excesso punível”, previsto no

parágrafo único do art. 23 do Código Penal Brasileiro.

2 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 149. 3 MARTINS, José Salgado. Direito Penal: introdução e parte geral. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 191. 4 HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 463.

8

Mas o que limitaria a agressão dos facínoras aos cidadãos de bem? O que

limitaria os meios utilizados para agredir direitos alheios? Com segurança podemos afirmar:

nada. Os malfeitores têm livre acesso a quaisquer tipos de munição e armamento, bem como

ao que de melhor existe no mercado tecnológico de comunicações, tudo isso bem pago pelos

lucros do tráfico ilícito de entorpecentes, contrabando e outros crimes afins, enquanto o

cidadão de bem, desejando defender seus direitos constitucionais, vê-se obrigado a implorar

ao Estado a dádiva de conceder uma licença para, dentro de limites que desafiam o mínimo de

inteligência, defender seus direitos constitucionais.

Também, ou mais, absurdo é o processo obrigatório àqueles que desejam

adquirir e portar uma arma de fogo. Em linhas gerais, nesta via crucis o cidadão é obrigado a

requerer “nada consta” nas justiças federal, militar, eleitoral e estadual, bem como submeter-

se a exames psicotécnicos pagos e a uma prova de conhecimento da legislação e normas de

segurança, além de uma prova prática de uso do armamento que se pretende portar. Aprovado

em todas essas condicionantes, ainda terá o candidato que pagar a módica quantia de R$

1.000,00 (mil reais)5 de “taxa” para emissão do documento de porte de arma, valor que

observa-se ser superior ao preço de mercado de mais da metade das armas de fogo em

circulação.

O próprio Estado, através da revogada lei n.º 9.437, de 20 de fevereiro de

1997, do decreto n.º 2.222, de 08 de maio de 1997, da Medida Provisória n.º 2.045 e do novo

“Estatuto do Desarmamento” – lei n.º 10.826 de 22 de dezembro de 2003 – limitou o acesso

do cidadão cumpridor das leis às armas de fogo, limitando, conseqüente e irresponsavelmente,

o direito do cidadão à legítima defesa. Se este vier a sofrer uma agressão com uso de uma

arma de fogo, estará proibido pelo Estado de utilizar o único meio necessário e suficiente para

repulsa à agressão: outra arma de fogo.

A situação é claramente contra quem decide cumprir a lei, como ilustra o

caso de duas grandes capitais: São Paulo e Rio de Janeiro. Nesta, bandidos abrem fogo com

armas automáticas contra a sede do governo constituído, em represália às ações policiais nos

morros cariocas; naquela, criminosos matam um e ferem à bala outro segurança pessoal do

5 LEI N.º 10.826, de 22.12. 2003, art. 11, inciso IV e item III do anexo.

9

filho do Presidente da República. Se não há segurança para um governador ou um filho do

próprio Presidente da República, o que dizer do cidadão comum?

Ao Estado caberia, em última análise, a defesa dos direitos dos seus

concidadãos, mas ao contrário, além de não fornecer a segurança, que é seu dever, nega ao

cidadão de bem o direito à defesa privada, ao restringir o uso de meios necessários para

repulsa às agressões sofridas.

10

1. A LEGÍTIMA DEFESA

1.1 Considerações gerais

A legítima defesa, instituto infalivelmente presente nos ordenamentos

jurídicos dos países civilizados, já existia na mais remota antigüidade, desde a antiga Grécia

das “polis”, até o Egito do século II, evoluindo no direito romano até chegar a nós.6

Com efeito, já na legislação medieval existia a previsão de extinção de

punibilidade, para casos de revide de agressões sofridas7.

No nosso ordenamento jurídico, tratou o legislador infra-constitucional de

definir objetivamente a defesa privada, tratando do chamado “estado de legítima defesa”.

Como já visto, imprescindível se faz a satisfação de todos os requisitos objetivos contidos na

lei para que se reconheça a existência do estatuto. A análise desses requisitos faremos a

seguir.

1.2 Requisitos objetivos

Como aludido no momento introdutório do presente estudo, não há que se

falar em legítima defesa fora da sua objetividade legal. Assim, passaremos à análise dos seus

requisitos objetivos.

1.2.1 Agressão atual ou iminente e injusta

Segundo HUNGRIA, “entende-se por agressão toda atividade tendente a

uma ofensa, seja ou não violenta. Pode ser considerada na sua fase militantemente ofensiva

(agressão atual) ou na sua fase de imediata predisposição objetiva (agressão iminente): em

6 LINHARES, Marcelo Jardim. Legítima defesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 14-49. 7 ALMADA, Celio de Melo. Legítima defesa: legislação, doutrina, jurisprudência, processo. São Paulo:

Bushatsky, 1975.

11

qualquer destas hipóteses, está-se na órbita de legitimidade da reação”8. A agressão é “uma

ação que põe em perigo ou efetivamente lesa um interesse juridicamente protegido”9.

Observe-se que não há, absolutamente, uma conditio si ne qua quanto à

violência da agressão, podendo a legítima defesa ser reconhecida e empregada sem ressalvas

para impedir, v.g., um furto simples.10

Assim, a repulsa contida no caput do art. 25 do CPB deve ser uma reação

oposta a uma agressão ou ameaça de agressão sofrida.

A injustiça da agressão deve ser verificada quando esta representar uma

conduta proibida ou desautorizada pelo direito, não sendo necessariamente criminosa. “É

injusta a agressão desde que seja ameaçado, sem causa legal, um bem ou interesse

juridicamente tutelado”11.

A necessidade da defesa também deve ser medida pela simples existência de

agressão atual ou iminente, isto é, “desde que se apresente o perigo, a defesa é necessária”12.

No direito canônico, a legítima defesa baseava-se no princípio necessitas

facit licitum quod non est licitum lege – a necessidade torna lícito o que por lei é ilícito.

Todavia, estabelecia, a princípio, a obrigação da fuga, quando possível.13

O nosso ordenamento jurídico, ao deixar de exigir a impossibilidade de fuga

como um dos requisitos objetivos ao estado de legítima defesa, prestigia sobremaneira o

espírito de luta pelo direito, refugando a “vexatória ou infamante renúncia à defesa de um

direito”.14

8 ob. cit., vol. I, p. 453. 9 ALMADA, ob. cit., p. 58. 10 HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 456. 11 Idem, p. 458. 12 Idem, p. 455. 13 ALMADA, ob. cit. p. 38. 14 HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 459.

12

Aqui cabe menção à brilhante admoestação de Antonio José da COSTA E

SILVA, em seus comentários ao Código Penal Brasileiro: “A fuga não pode ser imposta ao

agredido ou ameaçado, embora sem perigo e sem humilhação. Só mal-entendida moral cristã

(charitas christiana) pode pretender que por essa forma se avilte o direito perante a injustiça.

Pode o prudente aconselhar ao fraco que se dobre covardemente à injustiça; mas ao Estado

não fica bem exigir dos cidadãos que assim procedam, pois seria arvorar a poltroneria em

dever jurídico”.15

1.2.2 Preservação de um direito, próprio ou de outrem

A legítima defesa, por definição legal, visa a preservação de direito, próprio

ou alheio. Não tratou o ordenamento jurídico brasileiro de discriminar qual ou quais bens ou

direitos seriam passíveis de ser defendidos privadamente, o que leva ao entendimento que

todo e qualquer bem ou interesse juridicamente assegurado pode ser posto sob o pálio protetor

da defesa privada.

Assim, vida, integridade corpórea, honra, pudor, liberdade pessoal,

tranqüilidade domiciliar, patrimônio, segredo epistolar, pátrio poder, etc., podem ser tutelados

através da legítima defesa.16

Quanto à extensão do instituto na tutela de direito de terceiro, escreve

HUNGRIA, com clareza peculiar:

“O direito a defender tanto pode ser do próprio defensor, quanto de terceiro.

Como o “estado de necessidade”, a legítima defesa foi socializada. A defesa privada é uma

colaboração prestada à defesa pública e, como tal, não podia deixar de ser ampliada à tutela

de direito de terceiros. O socorro ao próximo, antes de ser preconizado pela moral jurídica, é

um mandamento evangélico. Afirmava justamente CARRARA17 que “legitimando a defesa

própria e não a de outrem, santificar-se-ia o egoísmo e se proscreveria a caridade”.”18

15 Apud HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 451. 16 Idem, p. 460. 17 Apud HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 461. 18 ob. cit., vol. I, p. 461.

13

1.2.3 Emprego moderado dos meios necessários à defesa

A totalidade dos autores pesquisados neste estudo detém sua atenção,

quando da apreciação deste requisito objetivo, na moderação no uso dos meios necessários

para o exercício da legítima defesa, silenciando quanto aos meios necessários.

Com efeito, a vasta gama de exemplos encontrada na doutrina pesquisada

sugere vários meios eficazes para a defesa privada, v. g., os punhos, facas e armas de fogo,

mas parte infalivelmente da premissa de que o agredido tinha tais meios à sua disposição,

quando sofrida a agressão ou ameaça de agressão.

É lícito, sem dúvida, que o cidadão tenha à sua disposição um par de punhos

prontos para repelir uma afronta aos seus direitos. Também será lícito ao cidadão ter uma

arma branca ao seu dispor, para defesa própria. Mas o que dizer de uma arma de fogo? Até o

mais pusilânime dos pacifistas é capaz de reconhecer que, em determinadas situações

lamentavelmente corriqueiras em nosso país, não há outro meio de defesa que não uma arma

de fogo.

Então, como poderá o cidadão exercer seu legítimo direito à defesa de seus

bens juridicamente tutelados se lhe for proibido o acesso aos meios necessários para tanto? A

resposta é óbvia: de modo algum. Se não há meios para exercer o direito, não há o direito.

Assim, toda a discussão sobre comércio, propriedade e porte de armas de

fogo que se travou até hoje esbarra exatamente neste ponto. Não há como restringir o acesso

do cidadão de bem às armas de fogo sem que haja restrição no seu direito à legítima defesa.

Não há na legislação brasileira a exigência de uma proporcionalidade entre a

agressão sofrida e a repulsa a esta, sendo exigido apenas que haja moderação no emprego dos

meios defensivos. No uso moderado de meios necessários à defesa está inclusa a obrigação do

agente de, havendo mais de um meio capaz de cessar a agressão ou ameaça de agressão

sofrida, escolher pelo uso do menos lesivo.

14

Nas palavras de Damásio E. de JESUS, “o sujeito que repele a agressão

deve optar pelo meio produtor de menor dano. Se não resta nenhuma alternativa, será

necessário o meio empregado”.19

Dessa forma, é necessária a consideração das circunstâncias em que se

encontrava o defensor para poder questionar se houve ou não necessidade e comedimento no

uso do meio de defesa. Também quanto à escolha deste meio, no caso de haver mais de um ou

mais de um modo de sua utilização.

Duras são as críticas de Eduardo SLERCA20 sobre a razoabilidade do pátrio

instituto da legítima defesa.

Aquele autor considera extremado o entendimento de que até o menor dos

direitos agredidos ou ameaçados de agressão é passível de ser defendido legitimamente com

os meios necessários que, na ausência de outros, podem ser desproporcionais aos meios

agressores.

De fato, a lei pátria só exige que os meios necessários sejam usados com

moderação, e o uso moderado de um meio de grande potencial ofensivo pode causar danos no

agressor muito superiores ao que sofreu ou poderia sofrer o agredido.

Mas a moderação deve ser aferida pelo possível comedimento do emprego

do meio defensivo, não se limitando à proporcionalidade entre o mal causado pela reação e o

que foi ou poderia ter sido causado pela agressão. Senão, estaríamos a reconhecer que bens de

pouca relevância não são tuteláveis pela defesa privada. 21

À luz do direito comparado, muitos países trazem em seus diplomas penais

a exigência da proporcionalidade. Tal requisito existe no Código Penal Italiano, no Código

Penal Francês e no Código Penal Boliviano. Há a previsão de uso “racional” de meios

19 ob. cit., p. 386. 20 SLERCA, Eduardo. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen

Júris, 2002. 21 HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 463.

15

defensivos nos Códigos Penais Peruano, Costarriquenho, Argentino, Chileno, Mexicano e

outros, além do Código de Defesa Social Cubano.22

Como já abordado previamente neste estudo, enquanto entender-se que

todos os bens juridicamente tutelados são passíveis de serem defendidos através da legítima

defesa, assiste razão ao entendimento ora adotado pelo nosso código.

22 SLERCA, ob. cit., p. 109.

16

2. A ARMA DE FOGO

2.1 Considerações gerais

A pólvora começou a ser usada para fins militares na Europa durante o

século XIV, mas as armas de fogo portáteis só tiveram seu debut no século XVI, iniciando

uma escalada tecnológica ininterrupta, até os nossos dias.23

No Brasil, as armas de fogo existem desde o momento do seu

descobrimento, pois foram trazidas já nas primeiras expedições européias, e tiveram particular

relevância em vários eventos históricos de nossa formação geopolítica.

Aliás, não existe nação no mundo moderno que nunca tenha feito uso de

armas de fogo, seja para defesa de território, seja para a manutenção da paz interna, mas certo

é que as armas de fogo estão presentes em absolutamente todo o mundo politicamente

organizado.24

Cabe aqui uma definição de arma de fogo. Entende-se por arma de fogo o

artefato capaz de arremessar à distância projéteis, utilizando-se da energia proveniente da

queima da pólvora ou outro combustível análogo. Entende-se por armas de mão aquelas cujas

dimensões permitem seu porte dissimulado, v. g., uma pistola ou um revólver.

Com o advento das armas de destruição em massa e dos mísseis de longo

alcance, as armas de mão deixaram de ter um papel relevante na eventualidade de uma guerra,

assumindo um lugar coadjuvante no “teatro de operações”.

Todavia, o avanço das sociedades politicamente organizadas abriu um outro

horizonte para o emprego das armas portáteis: os mecanismos de coerção do Estado. As

polícias, as guardas e as forças regulares no exercício de suas atividades no âmbito nacional

garantiram, então, a permanência das armas de mão em nosso meio.

23 BYAM, Michele. Arms and armor. New York: Alfred A. Knopf, 1988. p. 39. 24 TEIXEIRA, João Luís Vieira. Armas de fogo – são elas culpadas? São Paulo: LTr, 2002. p. 18.

17

Lamentavelmente, não só o aparelho Estatal armou-se para a persecução de

seus objetivos. Também os de má índole viram nas armas de fogo portáteis um excepcional

instrumento para a prática de delitos, mormente aqueles praticados com violência ou grave

ameaça.

Em conseqüência disso, tratou o Estado de regulamentar a propriedade e o

uso de armas de fogo pelos seus cidadãos, através do direito positivo, consubstanciado no

Brasil na legislação que analisaremos a seguir.

2.2 Limitações legais

2.2.1 O registro de arma de fogo

O capítulo II da lei nº 10.826/03 trata especificamente do registro de arma

de fogo, registro esse obrigatório para a efetivação da compra e venda da mesma. Vale

destacar alguns artigos:

Lei 10.826/03 – Estatuto das armas

Art. 3o É obrigatório o registro de arma de fogo no órgão competente.

Parágrafo único. As armas de fogo de uso restrito serão registradas no Comando do Exército, na forma do regulamento desta Lei.

Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:

I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal;

II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;

III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.

[...]

Art. 5º O Certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, desde que seja ele o titular ou o responsável legal do estabelecimento

18

ou empresa.

§ 1o O certificado de registro de arma de fogo será expedido pela Polícia Federal e será precedido de autorização do Sinarm.

À guisa de exemplo, convém detalhar a seguir o procedimento para registro

de arma de fogo no Distrito Federal.

Supondo que um cidadão de bem decida comprar hoje uma arma de fogo em

uma loja, a ele será inicialmente exigido: Declaração de “efetiva necessidade”; “Nada consta”

da Justiça do Distrito Federal; “Nada consta” da Justiça Federal; “Nada consta” da Justiça

Militar; “Nada consta” da Justiça Eleitoral; Comprovação de comportamento social

produtivo; Comprovação de residência fixa; Comprovação de capacidade técnica e de aptidão

psicológica; Cópia autenticada da cédula de identidade; Cópia autenticada do C.P.F; Cópia

autenticada do comprovante de endereço; Pagamento de R$ 300,00 (trezentos reais).

Cabe ressaltar que no art. 17, inciso I, do Decreto n.º 3.665/00 está a

limitação legal às armas de fogo comercializadas, podendo o cidadão de bem, se satisfeitas as

exigências “preliminares”, ter acesso, no máximo, a revólveres no calibre .38 SPL e pistolas

no calibre .380 ACP, verbis:

Art. 17. São de uso permitido:

I - armas de fogo curtas, de repetição ou semi-automáticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo, os calibres .22 LR, .25 Auto, .32 Auto, .32 S&W, .38 SPL e .380 Auto;

Não é crível que alguém em sã consciência acredite que um marginal

submeter-se-ia a todo esse processo, apenas para ter seu registro e sua compra negados por

não satisfazer as exigências preliminares. Se aprovado, poderia apenas adquirir uma arma

com poder de fogo limitadíssimo. Os calibres “permitidos” para os cidadãos brasileiros

aprovados nas “preliminares” descritas acima são utilizados, nos Estados Unidos, no ensino

do tiro a crianças na pré-adolescência. Tal é a força desses calibres que uma criança de dez

anos é capaz de, sem esforço, controlar seus disparos.

19

Não há questionamento sobre um controle no comércio de armas de fogo,

mas tal controle não pode impor uma barreira intransponível ao cidadão de bem. Controle

rígido do comércio de armas de fogo permitidas já existe, e é efetivamente feito. O que não

existe é o controle do comércio de armas de fogo proibidas, e estas não são, absolutamente,

vendidas nas lojas especializadas.

Mister se faz, ainda, que uma análise crítica seja apresentada quanto à

limitação de calibres das armas permitidas ao cidadão comum, seguidor da lei. A limitação

tem como fiel a energia de um projétil padrão na saída do cano da arma de fogo, disparado

com carga convencional, não podendo exceder os limites pré-fixados. Ocorre, no entanto, que

as armas de fogo foram dessa forma limitadas, mas não foi a munição comercializada. Há no

mercado formal munições que, se disparadas por armas permitidas, excedem em muito o

limite legal. Ou seja, não existe, na prática, limite algum.

Se, ad argumentandum, um criminoso em potencial decide matar outrem;

iria o revólver calibre .38 SPL matar mais ou menos do que um revólver calibre .357

Magnum? É óbvio que ambos teriam a mesma letalidade, dependendo apenas da acuidade

nos disparos.

Nesse ponto reside um outro aspecto controverso que o presente estudo

pretende abordar. Como pode o Estado estabelecer um máximo no uso de meios necessários e

suficientes para defesa privada? Se alguém estiver na iminência de ter sua casa invadida por

facínoras armados com revólveres, quais serão os meios necessários para a sua defesa?

Diriam os mais incautos: um revólver do maior calibre permitido - .38 SPL. É razoável a

lógica. Mas e no caso de um, apenas um, dos facínoras estar portando um fuzil, v. g., no

calibre 5.56 NATO? Quais seriam os meios necessários para o exercício da legítima defesa

desse cidadão de bem, prestes a ver sua casa expugnada e sua família mortalmente ameaçada?

Essa cena, vale lembrar ao mais distraído, é cada vez mais comum nos telejornais,

particularmente em alguns estados da federação.

É de lançar dúvida sobre o mínimo de inteligência da população ver

políticos discutindo a proibição da venda de armas de fogo no país. Acabamos de estudar: as

armas de verdade já nos são proibidas – a nós, cidadãos de bem. Fuzis de assalto como os que

20

pululam os morros cariocas e favelas paulistas não são vendidos em lojas, nem registrados

pela polícia. No entanto, são ubíquos nos círculos criminosos.

2.2.2 A autorização para portar arma de fogo

A autorização para portar arma de fogo, também conhecida como “porte de

arma”, pode ser visto como um mito coberto com a névoa da má-vontade política e

responsabilizado injustamente como coadjuvante nos crimes praticados com armas de fogo.

Prevê o “Estatuto das armas”, lei nº 10.826/03, verbis:

Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:

I – os integrantes das Forças Armadas;

II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal;

III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei;

IV – os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 250.000 (duzentos e cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (Vide Mpv nº 157, de 23.12.2003)

V – os agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência e os agentes do Departamento de Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República;

VI – os integrantes dos órgãos policiais referidos no art. 51, IV, e no art. 52, XIII, da Constituição Federal;

VII – os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de presos e as guardas portuárias;

VIII – as empresas de segurança privada e de transporte de valores constituídas, nos termos desta Lei;

IX – para os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental.

[...]

Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.

21

§ 1o A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:

I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;

II – atender às exigências previstas no art. 4o desta Lei;

III – apresentar documentação de propriedade de arma de fogo, bem como o seu devido registro no órgão competente.

§ 2o A autorização de porte de arma de fogo, prevista neste artigo, perderá automaticamente sua eficácia caso o portador dela seja detido ou abordado em estado de embriaguez ou sob efeito de substâncias químicas ou alucinógenas.

Salta aos olhos que, a exemplo do registro de arma de fogo permitida, existe

uma gama inimaginável de requisitos e de procedimentos a serem cumpridos, sendo que nem

a satisfação da totalidade deles garantirá ao candidato a cidadão em condições de defender

seus direitos constitucionais a concessão do “porte de arma”. O entendimento majoritário é

este: enquanto a propriedade de arma de fogo permitida é um direito, a autorização para portar

arma de fogo é uma concessão do Estado.

A documentação probatória exigida para o pedido de “porte de arma”

abrange toda a documentação já exigida para o registro da arma de fogo, acrescida da

comprovação de “efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de

ameaça à sua integridade física”.

Ora, é bem sabido que nos dias de hoje a violência urbana não se concentra

mais em áreas determinadas, já tendo chegado inclusive ao interior dos lares honestos. Não há

segurança. Seria, dessarte, razoável exigir que cidadão de bem comprove a existência de uma

ameaça à sua integridade física? Seria razoável exigir do cidadão honesto a comprovação do

óbvio ululante?

Se o cidadão de bem porventura tentar obter hoje a concessão do “porte de

arma”, para defender seus direitos constitucionais e os de sua família, no Distrito Federal, ele

deverá procurar a Superintendência Regional da Polícia Federal. Cabe inserir, a título

ilustrativo, a experiência pessoal da aquisição do “porte de arma”. Aqui peço venia para expô-

la.

22

O desprazer de percorrer toda a via crucis em busca da autorização estatal

para uso de meios necessários à legítima defesa dos direitos constitucionais, foi adicionado à

injúria ao ser negado o pedido na primeira tentativa, quando dita tão-somente a verdade. Por

verdade, entenda-se a justificativa da necessidade como sendo: ter acesso aos meios

necessários à legítima defesa dos direitos.

Em uma segunda tentativa, houve questionamento sobre a motivação para o

pedido de porte, ao que prontamente foi justificado como o transporte de valores, em cártulas

e em espécie, entre várias unidades da federação. A surpresa foi a informação de que,

naquelas condições, poderia ser obtida a concessão, satisfeitos os requisitos legais.

Mas o calvário apenas começara ali. Os documentos de “nada consta”

devem ser pedidos nos mais diversos órgãos e locais de Brasília, e enquanto um demora uma

semana para “ficar pronto”, outro é prontamente emitido, porém com a validade de quinze

dias. Após este primeiro obstáculo, é necessária uma demorada estada na fila do cartório para

que o cidadão de bem seja certificado oficialmente de que ele é, de fato, ele. Continuando o

doloroso percurso, o candidato é submetido ao “teste psicotécnico e psicológico” em uma

clínica credenciada. Ali, são feitos desenhos de qualquer natureza em seis pequenos

quadrados, responde-se a um questionário enorme com perguntas do gênero “você já teve

vontade de matar alguém?”, “você já xingou alguém na rua?” e “você tem ódio de alguma

raça?”, e posteriormente gira-se freneticamente manivelas com ambas as mãos de modo a

fazer uma caneta percorrer um circuito no papel. A esta altura, resta ao candidato aguardar a

“prova prática”. Na Academia de Polícia Federal, em Brasília, um alvo é colocado a 5

(cinco!) metros do atirador e este tem que obter 5 (cinco) acertos em 20 (vinte) disparos com a

arma que deseja portar para “transportar valores”. Talvez seja válido o questionamento

estatístico com a finalidade de estabelecer se um cego passaria nesta prova, atirando a esmo

em uma determinada direção. Estando aprovado, cego ou não, só resta ao cidadão a parte mais

fácil: recolher em uma guia comprada na banca de jornais a módica quantia de R$ 1.000,00

(mil reais).

Pretenderiam os adeptos do desarmamento convencer a sociedade de que os

crimes praticados com armas de fogo têm total relação com os portes de arma emitidos? Ou

seja, passariam todos os malfeitores que usam armas pelo mesmo procedimento legal e

23

burocrático que o cidadão seguidor da lei de modo a obter autorização para portar no máximo

um revólver .38 SPL ou uma pistola .380 ACP? Não. Esta é a resposta.

Cabe aqui destacar o maior absurdo do processo todo: quando a motivação

do pedido de autorização para portar arma de fogo é a defesa dos seus direitos e dos direitos

dos seus familiares, não é possível atendê-lo; quando a motivação é o transporte de valores de

um estado para outro, é possível. O cidadão fiel à lei, bem como a sua família, estão à mercê

da bondade do bandido armado.

2.2.3 A constitucionalidade da Lei nº 10.826/03

Sancionada em 2003, a lei em estudo veio como resposta a uma crescente

onda de crimes violentos praticados com o emprego de armas de fogo, definindo novos tipos

penais e agravando sobremaneira os já existentes na revogada lei 9.347/97. Esta lei já havia

retirado o porte ilegal de arma do rol das contravenções penais (art. 19 da LCP), elencando-o

nos crimes previstos no seu art. 10.

Já o novo e festejado “estatuto das armas” ampliou não só a gama de

núcleos do tipo contidos nos artigos que definem os crimes, muitos sob o mesmo nomen juris,

como também as penas previstas.

Nota-se claramente que o legislador procurou abranger, com tal número de

núcleos do tipo, todas as ações possíveis de serem praticadas por delinqüentes que viessem a

fazer uso de arma de fogo, e agravou sobremaneira as penas para os crimes previstos, talvez

pretendendo, com isso, coibir pretensões criminosas.

Apenas esqueceu o legislador que, se qualquer das condutas descritas por

ele na lei específica vier a ser praticada como meio para execução de outro crime, o crime-

meio será absorvido pelo crime-fim, e, do ponto de vista penal, de absolutamente nada terá

valido a tipificação criminal e o endurecimento das penas previstas para tais condutas.

Mas esse é apenas um dos pontos controversos do estatuto, que desde a sua

gênese fomentou as mais acaloradas discussões no meio legislativo, sendo alvo atualmente de

24

pelo menos três ações diretas de inconstitucionalidade, movidas por diferentes partidos

políticos e em trâmite no Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 61, § 1°, inciso II, “e”, dá ao

Presidente da República, privativamente, a iniciativa de leis que disponham sobre criação,

estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública. Ainda o art. 2º

da Magna Carta preceitua o princípio da separação dos poderes. Ora, a lei nº 10.826/03

expressamente revogou a lei de criação do SINARM (Sistema Nacional de Armas), lei nº

9.437/97, e ainda acrescentou novas atribuições ao já extenso rol de responsabilidades

daquele órgão; ocorre que o SINARM é um órgão da administração pública, subordinado ao

Ministério da Justiça, e, por isso, sua criação, estruturação e atribuições só podem se dar por

iniciativa do Presidente da República, o que não ocorreu, absolutamente, com o estatuto do

desarmamento.

Ressaltem-se aqui as palavras do Min. Celso de Mello, no seu voto de

relator da ação direta de inconstitucionalidade nº 1.391-2 SP, verbis: “O desrespeito à

prerrogativa de iniciar o processo de positivação do Direito, gerado pela usurpação do poder

sujeito à cláusula de reserva, traduz vício jurídico de gravidade inquestionável, cuja

ocorrência reflete típica hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo

irremissível, a própria integridade do ato legislativo eventualmente editado”.

Dessa forma, ao legislar sobre as atribuições do SINARM, o poder

legislativo usurpou atribuição privativa do Presidente da República, viciando indelevelmente

o resultado de sua iniciativa com a eiva da inconstitucionalidade (vício formal de iniciativa).

Ainda sobre o tema, a correta lição de Celso Ribeiro BASTOS e Ives

Gandra MARTINS, verbis: “À evidência, quem cria um órgão, um Ministério, deve

estabelecer sua estrutura, assim como suas atribuições ...”25. Ao dar-se validade ao estatuto do

desarmamento, da forma como foi sancionado, estar-se-ia legitimando a interferência de um

poder sobre outro, o que seria, ainda, uma afronta ao disposto no art. 2º da CF.

25 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:

Saraiva, 2002, vol. 4, tomo I, p. 470.

25

Um outro aspecto a ser destacado, é o fato do estatuto do desarmamento ter,

no seu art. 5º, § 2º, e art. 10, desautorizado os estados-membros da federação a procederem ao

registro e concederem autorização para porte de armas de fogo em seus limites territoriais.

Tais atividades são, ictu occuli, exercício regular e legítimo do poder de polícia dos estados

em matéria de segurança pública, que só é limitado pelo § 1º do art. 144 da CF. O poder de

polícia dos estados em matéria de segurança pública é exercido de acordo com o art. 25, § 1º,

da CF e art. 78 do Código Tributário Nacional, e deve abranger, dessarte, a emissão de

autorizações para portar armas de fogo e seu respectivo registro. Assim, o registro de armas

de fogo e as emissões de autorização para portar arma de fogo são da competência residual

dos estados e qualquer limite à essa competência seria um inconcebível limite ao próprio

poder de polícia dos estados. Vale destacar o art. 78 do Código Tributário Nacional, verbis:

“Art. 78 - Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”

Dessa forma, a “federalização” do registro e da autorização para portar arma

de fogo é uma patente limitação ao poder de polícia dos estados e, como tal, divorciada do

mandamento constitucional.

Outro aspecto digno de destaque é a proibição do arbitramento de fiança nos

crimes previstos nos arts. 14 e 15 e da concessão de liberdade provisória nos crimes previstos

nos arts. 16, 17 e 18.

O inciso LXVI do art. 5º da Lex Magna soa: “Ninguém será levado à prisão

ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança;”.

A liberdade provisória deve ser concedida sempre que não estiverem

presentes os requisitos que autorizam a prisão preventiva, o que vale dizer que a regra é a

26

defesa do réu em liberdade, sem ônus econômico, não permanecendo preso aquele contra qual

não se deve decretar a prisão preventiva.26

As hipóteses autorizadoras da prisão preventiva estão elencadas no art. 312

do Código de Processo Penal, e são: A garantia da ordem pública, a garantia da ordem

econômica, a conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal,

quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria.

Dessa forma, quando não houver a presença de nenhum desses requisitos,

mister se faz a concessão de liberdade provisória, como manda o preceito constitucional. Os

tipos penais elencados nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 do estatuto do desarmamento não

configuram, à primeira vista, crimes dotados de tamanha gravidade, nem seus autores

indivíduos que representem verdadeiro perigo à convivência social; assim, de absolutamente

nada terá valido a proibição do arbitramento de fiança se, como vimos, a liberdade provisória

for, via de regra, concedida. Ressalte-se que em nenhum dos tipos penais citados há uso de

violência ou grave ameaça à pessoa.

Assim, pretender o legislador ordinário subjugar preceitos constitucionais é

um lamentável equívoco, talvez a esta altura reparável tão somente pela excelsa corte do

Supremo Tribunal Federal.

Há que se destacar, também, o fato do estatuto do desarmamento tratar de

diversos temas minuciosamente, quando deveria, como norma geral federal que é, estabelecer

somente os princípios e diretrizes norteadores de sua complementação.27 O que disso passar, o

que vale dizer, as minúcias e detalhes, devem ser tratados através dos decretos

regulamentares.

Ainda sobre o tema, é indispensável o destaque do voto do Min. Carlos

Velloso, proferido na ação direta de inconstitucionalidade nº 927-3 MS, verbis:

“Ora, se a lei, em sentido material, é norma geral, como seria a de lei de normas gerais referida na Constituição? Penso que essas normas gerais devem apresentar

26 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 405.

27 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: RT, 1998.

27

generalidade maior do que apresentam, de regra, as leis. Penso que a norma geral, tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria moldura do quadro a ser pintado pelos estados e municípios no âmbito de suas competências.”

Com efeito, a metáfora utilizada é das mais felizes, pois as leis de base ou

de princípios, como deveria ser o estatuto do desarmamento, deveriam fornecer apenas a

moldura do quadro, ao passo que o decreto regulamentar forneceria a pintura, ou as regras

daqueles princípios. Sobre a sutil e fundamental diferença entre regras e princípios, destaca-se

a lição de Robert ALEXY, verbis:

“O ponto decisivo para distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que se realize algo na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Caracterizam-se, conseqüentemente, por poderem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida ordenada de seu cumprimento não só depende das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas. [...] Já as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem somente ser cumpridas ou não cumpridas. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que nela se ordena, nem mais, nem menos. As regras contêm, assim, determinações no campo das possibilidades fáticas e jurídicas.”28

Mas, inegavelmente, a maior das incongruências com a norma

constitucional revela-se ao analisarmos o estatuto do desarmamento sob o prisma do princípio

da proporcionalidade.

Tal princípio, também chamado na doutrina de princípio da razoabilidade,

encontra seu lugar no contexto normativo onde estão introduzidos os direitos fundamentais e

os mecanismos de proteção desses direitos. É uma espécie de garantia de que toda intervenção

estatal nessa seara se dê por necessidade, de forma e medida justa, tendo em vista a melhor

adequação e otimização dos vários direitos fundamentais concorrentes. 29

Assim, o princípio da proporcionalidade pode ser entendido como a

exigência de adequação da medida restritiva ao fim da lei; a ponderação entre a carga de

restrição e o resultado obtido.

28 ALEXY, Robert. Derecho y razón práctica. 2. ed. México, D.F.: Distribuciones Fontamara, 1998, p. 12. 29 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das

leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 95.

28

De fato, uma carga excessiva de restrição pode significar a total aniquilação

do direito restringido e de outros direitos a esse relacionados, comprometendo inclusive a

própria noção de Estado de Direito. Dessa forma, toda e qualquer limitação indevida do

legislador aos direitos assegurados aos indivíduos na Constituição deve ser inviabilizada pelo

princípio da proporcionalidade, pois não está ao livre critério daquele estabelecer restrições

que lhe pareçam cabíveis, mesmo quando autorizado a impor limites aos direitos

fundamentais. Se dessa maneira fosse, “as garantias formuladas em defesa desses direitos

seriam todas ilusórias e despidas de qualquer sentido”.30

O estatuto das armas trouxe, talvez pelo ímpeto do legislador em responder

aos anseios e ao clamor da população, junto com as inovações já abordadas, um grande

número de conflitos entre normas e princípios, mormente constitucionais, que quase com

certeza serão apreciados pelos tribunais à luz do princípio da proporcionalidade. A análise de

alguns desses conflitos faremos a seguir.

O inciso X do art. 2º do estatuto do desarmamento dá ao SINARM a

responsabilidade de “cadastrar a identificação do cano da arma, as características das

impressões de raiamento e de microestriamento de projétil disparado, conforme marcação e

testes obrigatoriamente realizados pelo fabricante”.

Tal procedimento é feito por um único sistema de fabricação canadense

conhecido como IBIS (Integrated Ballistics Identification System – Sistema Integrado de

Identificação Balística), que só é fabricado por uma indústria – a Forensic Tecnology Inc.

(FTI) e custa a módica quantia de US$ 1.300.000,00 (um milhão e trezentos mil dólares

americanos), além de só ser operado por peritos com uma boa experiência em exames micro-

comparativos, pois as imagens das microestrias capturadas devem ser minuciosamente

escolhidas e tratadas antes de estarem aptas a compor o banco de dados. Além disso, o

equipamento em questão requer assistência permanente e altamente qualificada.31

Ainda o § 1º e § 2º do art. 23 do estatuto do desarmamento prevêem a

obrigatoriedade de um sistema de identificação de munições através de códigos de barra nas

30 Idem, p. 96. 31 Dados do parecer do perito criminalístico Domingos Tochetto sobre o estatuto das armas. Porto Alegre,

2003.

29

embalagens de munições e de identificação física do lote e do adquirente da munição no

culote dos projéteis. Bem se vê, a esta altura, que o legislador ordinário não guarda nenhum

parentesco com o conhecimento de armas e munições, pois ao se referir ao culote dos

projéteis, estava na realidade querendo se referir ao culote dos cartuchos, estes sim passíveis

de identificação através da pantografia.

Tal processo é feito na etapa inicial da produção de cartuchos, e demanda a

fabricação de uma peça de estamparia diferente para cada tipo de cartucho a ser identificado,

assim como para cada identificação diferente. O prejuízo que a implementação desse processo

traria a uma indústria de munições do porte da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) é

de aproximadamente US$ 3.700.000,00 (três milhões e setecentos mil dólares americanos)

por ano.32

Ora, o inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal traz expressamente

proclamada a cláusula do devido processo legal, que sem dúvida esclarece definitivamente as

questões citadas. As palavras do Min. Celso de Mello, relator da ação direta de

inconstitucionalidade nº 1.158-8 AM, não poderiam de melhor forma elucidar o tema, verbis:

“Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do poder público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável.

A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.

Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.”.

Não é necessária grande abstração mental para concluir que uma exigência

que importe em um prejuízo de no mínimo US$ 5.000.000,00 (cinco milhões de dólares

americanos), como para a Companhia Brasileira de Cartuchos, que fabrica armas e munições,

32 Dados do parecer da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) sobre o estatuto das armas. Porto Alegre,

2003.

30

é desproporcional e irrazoável, ainda mais quando a motivação para tal ônus é política, e não

fática. Não há nem uma pesquisa científica sequer capaz de dar um mínimo de respaldo à

iniciativa do governo de limitar o acesso do cidadão de bem às armas de fogo. Todos os

argumentos utilizados pelos políticos para a concepção e aprovação da lei em comento são

completamente despidos de embasamento científico ou prático, tendo tão somente e

lamentavelmente motivação demagógica e eleitoreira, o que, aliás, é a regra nos corredores

legislativos. Tais argumentos só encontram espeque nos estudos de baixíssima qualidade e

nenhuma acuidade científica realizados, em sua maioria, por estagiários de Organizações

Não-Governamentais. Em todos os casos, os relatórios divulgados por tais instituições têm

uma agenda específica – em geral relacionada aos direitos humanos – e o sincero e firme

propósito da autopromoção.

Concluindo, mister se faz o reconhecimento, por parte do STF, da

inconstitucionalidade da lei nº 10.826/03, por vício formal de iniciativa, por limitar o poder de

polícia dos estados membros da federação, e por ferir frontalmente o princípio da

proporcionalidade.

31

3. O USO DE ARMA DE FOGO NA LEGÍTIMA DEFESA

3.1 Considerações gerais

Como visto nos capítulos anteriores, as armas de fogo por vezes se tornam

imprescindíveis para o exercício da legítima defesa, mas só podem dar sua contribuição na

manutenção do direito se estiverem à disposição de quem quer que venha a ter bens

juridicamente tutelados agredidos ou ameaçados de agressão.

Entende-se que o direito à legítima defesa seja um direito disponível, apesar

da sua negação poder acarretar a perda de direitos indisponíveis, v. g., a vida, mas ao Estado

não cabe negar seu exercício a quem o quer fazê-lo. Seria, como já dito, hastear a bandeira da

covardia.

Assim, o coro dos pacifistas poltrões não pode encontrar no Estado uma

caixa de ressonância a lhes amplificar a voz. Ceder às pressões políticas desarmamentistas é

negar ao cidadão direitos basilares. Já preconizava CÍCERO, que a legítima defesa est lex non

scripta, sed nata lex.33

Ver-se-á no item seguinte deste capítulo quantas situações podem surgir nas

quais a falta de uma arma de fogo pode ter conseqüências indesejáveis.

3.2 Apanhado jurisprudencial

Nas linhas seguintes, será comentada a jurisprudência do TJDF, por

intermédio da seleção de algumas ementas que se julga sejam ilustrativas do reconhecimento

da legítima defesa, utilizando-se o critério cronológico da produção das decisões, a partir da

mais recente.

33 Apud MARTINS, ob. cit., p. 190.

32

Foram analisados todos os julgados do TJDF envolvendo a discriminante

desde o ano de 1986, com destaque àqueles nos quais o direito à legítima defesa foi exercido

com armas de fogo.

Provavelmente o exemplo que mais se adapta ao presente estudo está na

decisão seguinte, onde o cidadão de bem só não teve seus direitos violados por estar portando

uma arma de fogo. Não é crível que alguém, diante desse exemplo, insista na tese

desarmamentista, abandonando os homens de bem e suas famílias, propriedades e

circunstâncias à própria sorte. Sem sombra de dúvidas o destino do protagonista dos fatos que

esta decisão envolve seria nefasto, não fosse a salutar iniciativa de portar uma arma de fogo.

- Direito penal. Homicídio. Legítima defesa própria. Absolvição sumária. Sentença mantida. Deve ser sumariamente absolvido, nos termos do artigo 411 do código de processo penal, o réu que age acobertado pela excludente de antijuridicidade da legítima defesa. Encontra-se amparado pela legítima defesa própria aquele que repele com tiros de arma de fogo o assaltante, também portador de arma de fogo, que o aborda quando se encontrava no interior de seu automóvel, estacionado, aguardando o retorno de outras pessoas. Remessa oficial desprovida. Maioria.34

A seguinte decisão envolve a possibilidade de legítima defesa de terceiros,

já abordada neste estudo no item 1.2.2, e altamente louvável, pois, como já dito por

CARRARA35, “legitimando a defesa própria e não a de outrem, santificar-se-ia o egoísmo e

se proscreveria a caridade”.

- Remessa de ofício - homicídio doloso qualificado - excludente de ilicitude - absolvição - legítima defesa de terceiro - perigo de vida iminente - disparo de arma de fogo - agressão contra um amigo - recurso improvido - unânime. Utilizando-se o recorrido dos meios necessários e moderados, como certifica o conjunto probatório produzido nos autos, a fim de repelir perigo de vida iminente e agindo em legítima defesa de terceiro, correta se mostra a aplicação da excludente de ilicitude, ensejando a absolvição do acusado.36

Outro exemplo clássico da doutrina pátria é o do indivíduo que frustra o

animus do fur nocturnus, desfechando contra este disparos de arma de fogo. Todavia, qual

34 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 179334. Relator: Angelo Canducci Passareli. Data do julgamento:

20/03/2003. DJU de 08/10/2003, p. 117. 35 Apud HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 461. 36 TJDF. 1ª Turma Criminal. Acórdão nº 168622. Relator: Lecir Manoel Da Luz. Data do julgamento:

13/11/2002. DJU de 12/03/2003, p. 94.

33

seria a conseqüência para os lares honestos, se todas as armas legalmente possuídas fossem

confiscadas? Não é necessária, novamente, grande abstração mental para imaginar facínoras

refestelando-se diante e no interior de residências sabidamente desarmadas pelo governo

constituído. A seguir, o decisum:

- Penal - processual penal: remessa de ofício - homicídio - tentativa - invasão de domicílio - suspeita de meliante - legítima defesa putativa - absolvição sumária - improvimento. Age em legítima defesa putativa aquele que efetua disparos de arma de fogo contra desconhecido que pula o muro e adentra o lote de sua residência, em alta madrugada, supondo ser um ladrão.37

A seguir está a ementa de uma decisão envolvendo fatos que, a prosperar o

estatuto do desarmamento, serão tratados de maneira diversa. O réu do processo disparou uma

arma de fogo em via pública; tal conduta, segundo o novo estatuto das armas, configura,

potencialmente, dois tipos penais distintos, a saber, porte ilegal de arma de fogo (de uso

permitido ou restrito) e disparo de arma de fogo. Mas qual dessas condutas estaria abrigada

pelo instituto da legítima defesa, se os fatos se dessem sob a vigência da nova lei? Vale

lembrar que o simples disparo de arma de fogo, pela nova legislação, pode levar o autor a

cumprir uma pena de dois a quatro anos de reclusão, acrescida de multa. Ressalte-se que o

homicídio culposo, art. 121, § 3º, prevê pena de um a três anos de detenção. Teria um disparo

mais valor que uma vida?

- Apelação criminal. Disparo de arma de fogo em via pública. Legítima defesa. Absolvição. - provado que o réu, depois de defender terceira pessoa viu-se atacado pelos que a agrediam e se valeu do único meio ao seu dispor para fazer cessar essa agressão injusta - um só disparo com pistola municiada com doze cartuchos, na direção do solo - dá-se provimento ao seu recurso para absolvê-lo com fulcro no artigo 23, inciso ii, do código penal.38

A decisão abaixo se enquadra ipsis literis na definição legal de legítima

defesa, eis que o autor defendeu direito próprio com o meio necessário – uma arma de fogo.

- Penal - homicídio simples - absolvição sumária - legítima defesa própria - recurso necessário - manutenção da sentença. Evidenciando-se agressão iminente e injusta

37 TJDF. 1ª Turma Criminal. Acórdão nº 161593. Relator: P. A. Rosa de farias. Data do julgamento:

29/08/2002. DJU de 23/10/2002, p. 72.

38 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 156180. Relator: Getulio Pinheiro. Data do julgamento: 22/05/2002. DJU de 07/08/2002, p. 97.

34

a direito próprio, praticada pela vítima e repelida moderadamente pelo agente com utilização de uma arma de fogo, configurada está a legítima defesa própria, motivo pelo qual merece ser mantida a sentença monocrática, que sumariamente absolveu o acusado. Recurso improvido. Unânime.39

Novamente, outro caso de legítima defesa de terceiro, que estava

violentamente sendo obrigado a fazer uso de entorpecentes.

- Remessa de ofício. Homicídio tentado. Absolvição sumária. - ao atingir a suposta vítima com disparo de arma de fogo, estava o réu no exercício da legítima defesa de terceira pessoa, pois aquela, além de a agredir fisicamente, tentava obrigá-la a consumir substância entorpecente.40

Quando um crime é praticado como meio à prática de outro, ocorre o

chamado concurso formal, descrito no art. 70 do Código Penal, onde o crime-meio é

absorvido pelo crime-fim. Esse foi o entendimento adotado pelo julgador do processo cuja

ementa é apresentada abaixo, mas não foi o do ilustre membro do ministério público, que

denunciou o autor dos disparos como tendo praticado o crime previsto no art. 10 da revogada

lei 9.437/97, a saber, porte ilegal de arma. O aumento significativo de tipos penais e de

núcleos do tipo na nova lei nº 10.826/03 tende a agravar ainda mais esse desentendimento.

Ainda mais sendo boa parte dos tipos penais previstos no estatuto crimes de mera conduta.

Vejamos:

- Penal: porte de arma de fogo - homicídio - legítima defesa real e própria - consunção ou absorção - descaracterização do crime do art. 10, da lei 9.437/97 - atipicidade de conduta - ação penal trancada - ordem concedida. Foi o paciente objeto de um roubo em seu estabelecimento comercial localizado na ceilândia, ocasião em que o assaltante ameaçou-o e a seus empregados com uma arma de fogo, mas o mesmo, logo após o evento, saiu em perseguição ao meliante e logrou encurralá-lo em um beco, ocasião em que o bandido desferiu vários tiros em sua direção, sem, contudo, acertá-lo, o que o levou a revidar os tiros, sendo o meliante alvejado mortalmente. Comprovada às escâncaras a legítima defesa real própria, o órgão do mp opinou pelo arquivamento do inquérito policial, o que foi determinado pelo mm. Juiz do tribunal do júri de Ceilândia, mas denunciou o paciente pelo crime do art. 10, da lei 9.437/97, que entendeu restar em forma residual da ação por ele desenvolvida. Os fatos narrados na inicial não configuram crime, devendo a ação penal ser trancada pela via do remédio heróico, pois o paciente agiu estreitamente dentro de seu legítimo direito ao reagir também a tiros a uma

39 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 147164. Relator: Otávio Augusto. Data do julgamento:

31/10/2001. DJU de 16/01/2002, p. 108. 40 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 146165. Relator: Getulio Pinheiro. Data do julgamento:

11/10/2001. DJU de 21/11/2001, p. 176.

35

agressão injusta e atual praticada pelo meliante, que após assaltar seu estabelecimento comercial desferiu-lhe uma saraivada de tiros. A ação do paciente enquadra-se com extremo conforto nos parâmetros da legítima defesa, e nesse estado de excludente de ilicitude a utilização feita pelo paciente de uma arma não registrada, e sem o indispensável porte expedido pela autoridade competente, foi o único meio capaz de fazer cessar aquela injusta e atual agressão desferida pelo meliante, de sorte que estando o crime de porte de arma de fogo absorvido pelo de homicídio, aquele meio que a princípio seria ilícito foi considerado pela lei como o único indispensável a afastar aquela agressão injusta e atual, o que caracteriza a legitimação pela lei do ato praticado pelo paciente Quem age em legítima defesa não pratica crime algum, pois a ação meio desenvolvida neste estado pelo agente, a de portar uma arma de fogo, está excluída de qualquer ilicitude, pois sendo o fato descrito no art. 10, da lei 9.437/97 o único e exclusivo meio necessário para repelir aquela injusta e atual agressão movida pelo assaltante, tal ação é considerada como lícita, e assim excluída pela norma incriminadora daquele meio utilizado. Não há de ser pelo fato do agente ter-se utilizado de uma arma de fogo não registrada que a sua reação à ação desenvolvida pelo meliante de lhe desferir tiros será considerada ilegítima e portanto passível de punição, pois esse foi o único meio que o agente teve para fazer cessar a agressão injusta e atual desferida pelo assaltante, que veio a falecer em razão dessa reação legítima. A ação desenvolvida pelo paciente está em conformidade com a lei, e nesta situação indevida é a ação penal que lhe move o zeloso órgão ministerial, sendo atípica a conduta descrita na denúncia. Ordem concedida para trancar a ação penal.41

A lei n° 10.826/03, no § 4º do art. 6º, brindou os residentes em áreas rurais

com a possibilidade de obtenção de autorização para portar arma de fogo, desde que

comprovem depender do emprego da mesma para prover sua “subsistência alimentar

familiar”. A dúvida que surge é essa: E quanto à subsistência frente à escalada de violência no

campo? Vive-se um tempo em que a propriedade privada tornou-se uma piada, pois o Estado

absolutamente nada faz para coibir a corja de vagabundos rurais e urbanos que se

autoproclamam “trabalhadores sem alguma coisa” em suas sucessivas ações criminosas. Em

um recente episódio, no município de Formosa – GO, um legítimo proprietário rural foi morto

a tiros por um desses facínoras; seu revólver havia sido entregue à polícia durante a última

campanha de desarmamento.

- Remessa ex officio. Vítima surpreendida de madrugada na propriedade do réu e por ele morta ao sacar de uma arma. Legítima defesa. Absolvição sumária mantida. - age sob o pálio da legítima defesa quem, depois de sofrer sucessivos furtos em

41 TJDF. 1ª Turma Criminal. Acórdão nº 145094. Relator: P. A. Rosa de farias. Data do julgamento:

27/09/2001. DJU de 21/11/2001, p. 174.

36

sua propriedade rural, nela surpreende indivíduos estranhos durante a madrugada e atira contra um deles, ao vê-lo sacar de um revólver.42

Na ementa abaixo é visto um exemplo de uma história que diariamente se

repete na sociedade, e que foi a mola mestra deste estudo: Os malfeitores estão, às escâncaras,

utilizando-se de armas de fogo para vilipendiar direitos dos cidadãos honestos que, por

obediência ao mandamento jurídico, têm cada vez mais aberto mão do direito de defender-se

digna e legitimamente. O protagonista dos fatos descritos na ementa louvavelmente não o fez.

Ao contrário, bem defendeu seus direitos. A incansável propaganda estatal recomendaria a

este cidadão exatamente o oposto: “Não reaja sob hipótese alguma”. Este é o conselho que

lemos na cartilha distribuída pela polícia militar aos moradores de Brasília, para o caso de

serem assaltados.

- Penal - homicídio simples - absolvição sumária - legítima defesa própria - recurso necessário - manutenção da sentença. - evidenciando-se agressão iminente e injusta a direito próprio, praticada pela vítima com utilização de uma arma de fogo e repelida moderadamente, configurada está a legítima defesa própria, motivo pelo qual merece ser mantida a sentença monocrática, que sumariamente absolveu o acusado. - recurso improvido. Unânime.43

Novamente vemos o que foi abordado no item 1.2.3 deste estudo, onde

tratou-se da possibilidade de haver apenas um meio necessário e suficiente para a repulsa à

agressão. Se houvesse alternativa, deveria haver a opção pelo meio produtor de menor dano

ao agressor. Não havendo, será necessário o meio empregado.44

- Penal. Júri. Legítima defesa. Arma de fogo. Único meio disponível. Uso moderado. Único disparo. Agressão injusta e atual do patrimônio e da vida. Repelidas pela vítima. Absolvição sumária. Quando a vítima tem confirmada a sua versão por meio de prova técnica, de que o óbito deu-se em razão de um único disparo de arma de fogo, e extrai-se dos autos que agiu com o único meio disponível, de forma moderada e utilizando-se dos meios necessários para repelir atual e injusta agressão, encontrando-se a conduta nos limites da legítima defesa, impõe-se a absolvição sumária.45

42 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 135824. Relator: Getúlio Pinheiro. Data do julgamento: 01/03/2001. DJU de 18/04/2001, p. 48.

43 TJDF. 1ª Turma Criminal. Acórdão nº 130611. Relator: Otávio Augusto. Data do julgamento: 28/09/2000. DJU de 25/10/2000, p. 43.

44 JESUS, ob. cit., p. 386. 45 TJDF. 1ª Turma Criminal. Acórdão nº 112983. Relator: Ana Maria Duarte Amarante. Data do

julgamento: 29/10/1998. DJU de 26/05/1999, p. 84.

37

Outra presença certa e lamentável nos noticiários, as mortes causadas por

discussões banais são um dos principais argumentos utilizados pelos adeptos do

desarmamento civil. Tentar evitá-las com leis é ter a pretensão da cura para a imbecilidade

através de palavras. Não aparenta ter solução possível.

- Homicídio. Pronúncia. Legítima defesa. Absolvição. Age em legítima defesa quem, após acirrada discussão com a vítima, ao se ver por ela ameaçado com arma de fogo apontada na sua direção, desfere-lhe um tiro de revólver, único meio de que dispunha naquele momento para repelir essa agressão iminente.46

Como já visto algumas vezes neste item, grande é o apetite dos malfeitores

pelos bens alheios, sendo que os que participaram dos fatos descritos na ementa abaixo não se

intimidaram sequer com um disparo de arma de fogo efetuado pelo legítimo possuidor da

residência. Vem à baila novamente a questão: e se esse indivíduo não tivesse ao seu dispor

uma arma de fogo? O que seria desse indivíduo, de seus bens e de sua honra sem uma arma de

fogo? Ressalte-se: os criminosos que o afligiram não desistiram de seu intento nem com um

disparo de arma de fogo.

- Penal - limites da pronúncia - ausência de testemunhas - provas técnicas - uso moderado dos meios necessários - reconhecimento da legítima defesa - absolvição. É incabível o afastamento, pelo presidente do tribunal do júri, de causa de justificação na fase do art. 410 do código de processo penal. A legítima defesa pode ser aceita, não obstante a ausência de testemunhas presenciais, se a excludente encontra arrimo na palavra do acusado e na prova pericial. Age legitimamente quem, ao perceber durante a madrugada a invasão de seu domicílio, dá um tiro de aviso e após, sem a desistência da conduta evidentemente injusta, dispara contra os invasores, por ser lícito, mais do que defender o patrimônio, o temor pela própria vida. A moderação deve ser medida levando-se em conta vários fatores, tais como o pânico e o medo naturais e decorrentes da insegurança que reina atualmente em Brasília. Caracteriza-se também pelo uso de apenas dois projéteis, quando a arma ainda possuía mais sete.47

Brasília, em particular, parece sofrer deste mal há bom tempo: bandos de

adolescentes, as chamadas “gangs”, dedicando-se à prática da violência gratuita. Muitas são

as histórias de pessoas inocentes agredidas covardemente e até mesmo mortas sem qualquer

razão aparente. Esse seria o destino do cidadão autor dos fatos descritos na seguinte ementa,

46 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 112280. Relator: Getúlio Pinheiro. Data do julgamento:

04/02/1999. DJU de 19/05/1999, p. 95. 47 TJDF. 1ª Turma Criminal. Acórdão nº 111813. Relator: Everards Mota E Matos. Data do julgamento:

25/06/1998. DJU de 14/04/1999, p. 40.

38

não fosse por ele ter ao alcance uma arma de fogo, que provavelmente o livrou de graves

lesões, senão da morte.

- Direito penal. Homicídio. Tentativa. Legítima defesa. Absolvição sumária. Age ao amparo da excludente de ilicitude, derivada da legítima defesa, e implica na absolvição sumária, agente que, para não sucumbir, repele a tiros, injusta agressão atual, praticada por uma "gang" que pretendia surrá-lo.48

Conforme o estudado no item 1.2.3, não há no ordenamento jurídico pátrio a

obrigatoriedade de uma proporção entre a agressão e a repulsa defensiva à ela. É lícito o uso

de um meio potencialmente mais lesivo do que o utilizado para agredir injustamente,

conforme nos relata a ementa abaixo. O uso de arma de fogo é, sem dúvida, desproporcional à

ameaça com arma branca – no caso uma faca – mas como era o único meio disponível ao

agredido, tornou-se legítimo. Conforme a lição de ALTAVILLA, “Se o agredido não pode

dispor senão de um meio desproporcionado, não existirá excesso, desde que o seu uso era

indispensável à defesa”.49

- Penal - homicídio tentado. Legítima defesa. Age em legítima defesa, agente que sofrendo perseguição injusta, estando a vítima armada com uma faca, desfere tiros para amedrontá-la, e assim defender sua integridade física, vindo a atingi-la, sem, contudo, levá-la a óbito.50

Correto foi o entendimento do julgador cuja ementa está abaixo. Quem é

atacado ou agredido dificilmente se achará em condições de aferir um possível excesso, nem

de avaliar as dimensões e o alcance do meio ofensivo contra si manejado. Importa que se

defenda, a si e a seus direitos, sem ceder o passo à injustiça. Na lição de MARCIANO,

“Como se poderia pretender a dosimetria da reação, se não se está em condições,

ordinariamente, de aquilatar da entidade da ofensa a que se está exposto?”. 51

- Legítima defesa. Fuga do agressor. Se a sentença reconheceu expressamente, "que até o momento em que o réu, caído ao solo, sacou de sua arma para fazer dois disparos contra a vítima, encontrava-se sob o pálio da legítima defesa", descaracterizada não estaria a excludente pelo fato de haver ele se utilizado da

48 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 103158. Relator: Joazil M Gardes. Data do julgamento:

12/02/1998. DJU de 23/04/1998, p. 68. 49 Apud HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 462. 50 TJDF. 2ª Turma Criminal. Acórdão nº 71094. Relator: Joazil M Gardes. Data do julgamento: 26/05/1994.

DJU de 03/08/1994, p. 8.744. 51 Apud HUNGRIA, ob. cit., vol. I, p. 466.

39

arma, quando a vítima estaria em fuga, pois, conforme disse a exposição de motivos ao código penal de 1940, "uma reação ex improviso não permite uma escrupulosa escolha de meios, nem comporta cálculos dosimétricos".52

Conclui-se, ao analisar a jurisprudência apresentada, que a posse de armas

de fogo por parte de cidadãos honestos pode significar a diferença entre a justiça e a injustiça;

entre a vida e a morte. Salvo melhor juízo, sábias foram as decisões que reconheceram o

instituto da legítima defesa como último recurso do cidadão para a defesa de seus direitos.

52 TJDF. Turma Criminal. Acórdão nº 35842. Relator: Paulo Garcia. Data do julgamento: 05/03/1986. DJU

de 24/04/1986, p. 6.466.

40

4. CONCLUSÃO

Não havia a pretensão, neste estudo, de criar nem modificar o que já existe,

mas tão-somente de abordar o tema sob uma perspectiva, salvo engano, inédita

academicamente.

A discussão sobre armas de fogos encontra-se a cada dia mais acalorada, e

os mais absurdos projetos de lei tentando regular o tema avançam talvez de maneira

irrefreável. Não se sabe qual será o resultado disso, mas teme-se que as mudanças ocorram

sem as necessárias pesquisas e estudos aprofundados sobre o assunto. Não há, no Brasil,

estudos sérios sobre armas de fogo, prevalecendo o preconceito disseminado particularmente

por entidades para-estatais e a inescrupulosa política sobre o interesse científico.

Vive-se o debut da nova legislação sobre as armas de fogo, lei 10.826/03, ou

“estatuto das armas”, como batizada, e esta pretende ser divisor de águas no tratamento do

tema em solo pátrio. Como exposto no item 2.2.3, foram muitas as falhas cometidas pelo

legislador ordinário na elaboração do estatuto, sendo algumas sanáveis apenas com um

impossível retorno ao passado. É lamentável que representatnes eleitos deixem-se seduzir

pelo clamor das massas manipuladas pela mídia, no afã de angariar votos ignorantes para

garantir-lhes o próximo mandato.

O direito à legítima defesa tem sido, louvavelmente, reconhecido pelos

julgadores, a rigor do que foi exposto no item 3.2, mas tal não continuará a acontecer. A

prosperar a nova legislação, só há de piorar a conduta daqueles que se importam e se esmeram

em cumprir as determinações legais. Os malfeitores continuarão a fazer o que já fazem por

natureza, ou seja, transgredir as normas, sejam elas quais forem. E ainda poderão, agora,

contar com um aliado poderoso, o Estado, que desarma os lares e os cidadãos honestos,

entregando-os aos desígnios dos facínoras.

A perspectiva adotada neste trabalho, bem como o seu desenvolvimento, faz

crer que toda a discussão que vem sendo travada sobre armas de fogo é vã e inútil, e assim

permanecerá até o ponto de não mais se reconhecer, em solo pátrio, o direito à legítima defesa

como a conhecemos hoje.

41

Em conclusão a este estudo, não há como, nos dias de hoje, restringir o

acesso do cidadão de bem às armas de fogo sem que lhe seja restringido também o direito à

legítima defesa de seus direitos.

42

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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