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Palavra Arma Santos

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  • E-Legis | Revista Eletrnica do Programa de Ps-GraduaoCentro de Formao, Treinamento e Aperfeioamento da Cmara do Deputados

    http://inseer.ibict.br/e-legishttp://bd.camara.gov.br

  • A PALAVRA COMO ARMA: Anlise do discurso do Deputado Mrio Covas em defesa da imunidade parlamentar

    Elizabeth Paes dos Santos1

    Resumo: Este artigo faz uma anlise do pronunciamento do Deputado Mrio Covas, em dezembro de 1968, em defesa da imunidade parlamentar e da liberdade de palavra, principais ingredientes dos regimes democrticos. Utilizando as propostas formuladas por Norman Fairclough, Patrick Charaudeau e Tereza Halliday, reconstituem-se elementos caracterizadores da enunciao e os principais recursos discursivos utilizados. Palavras-chaves: anlise de discurso; imunidade parlamentar; discurso parlamentar.

    Abstract: This paper analyses the speech given by the Congressman Mario Covas, in December 1968, in defense of immunity and the guarantee of freedom speech. Using the proposals presented by Norman Fairclough, Patrick Charaudeau and Tereza Halliday, the autor reconstitutes the typical elements of the utterance and the main discursive resources present in the text. Keywords: discourse analysis; immunity; parliamentary speech.

    1 Introduo O objetivo principal deste trabalho analisar um discurso feito em dezembro de 1968

    pelo Deputado Mario Covas em defesa da imunidade parlamentar, tema bastante controverso ainda hoje. Para isso sero utilizadas as propostas tericas e metodolgicas de Norman Fairclough, Patrick Charaudeau e Tereza Halliday.

    O texto a ser analisado foi publicado no Dirio da Cmara dos Deputados (DCD) do dia primeiro de junho de 2000. As notas taquigrficas do pronunciamento no saram nos Anais da Cmara, pois haviam sumido e as fitas de udio reutilizadas, restando apenas alguns trechos (Markun, 2001). Estas notas reapareceram em 2000, quando a servidora aposentada da Cmara, Anna Lcia Brando, entregou-as para publicao. Ela tivera acesso ao material no incio de 1980, quando realizava as pesquisas para o seu livro A resistncia parlamentar aps 1964 (Brando, 1984) e as conservou em seu poder durante todo este tempo.

    Alm da importncia histrica, a escolha desse discurso justifica-se pela necessidade de

    1 Especialista em Processo Legislativo e Assistente de Controle Interno da Cmara dos Deputados.

    Especialista em Processo Legislativo e em Auditoria Interna. ([email protected]).

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    mostrar quo necessrio garantir a liberdade de expresso aos parlamentares. A imunidade uma prerrogativa do Parlamento como um todo e no dos deputados isoladamente, e serve para garantir a inviolabilidade das suas manifestaes.

    2 Pressupostos tericos e metodolgicos 2.1 Os caminhos prticos da anlise do discurso

    Norman Fairclough conferencista no Departamento de Lingstica e Lngua Inglesa Moderna da Universidade de Lancaster. Ele um dos principais autores da Anlise do Discurso Crtica (ADC), a qual pode ser definida como um mtodo que, envolvendo vrias disciplinas, analisa o uso que se faz da linguagem de forma crtica e que podem passar despercebidas pelo auditrio. Para ele, o discurso um modo de ao, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros (Fairclough, 2001, p. 91).

    Esse um aspecto que nos interessa abordar j que entendemos que o pronunciamento parlamentar tem por objetivo, mais que qualquer outro gnero do discurso, agir sobre o mundo e sobre os outros. isso que acontece quando um deputado se pronuncia em plenrio. Ali, por meio de sua fala, ele tenta convencer os outros parlamentares a mudarem o curso das votaes e at da prpria Histria.

    Em Discurso e mudana social (2001), Fairclough mostra que o estudo do discurso passa por trs dimenses, as quais na prtica esto superpostas e compem um quadro tridimensional, cujos elementos seriam: (1) anlise das prticas discursivas, focalizando a intertextualidade e a interdiscursividade das amostras do discurso; (2) anlise dos textos (microanlise da prtica discursiva); e (3) anlise da prtica social da qual o discurso uma parte (Fairclough, 2001, p. 282). Como o objetivo de Fairclough propor um mtodo prtico de anlise do discurso, ele comea alertando para os trs itens principais de seu mtodo: os dados, a anlise e os resultados.

    Sobre os dados no caso do discurso parlamentar, ressalte-se que a prpria transcrio das amostras implica uma interpretao. Desse modo, a anlise de um pronunciamento parlamentar pode se apoiar na gravao de vdeo ou nas notas taquigrficas. Independentemente do material selecionado, entretanto, o pesquisador deve estar ciente de que a sua escolha tem um significado que deve ser explicitado. Alm disso, no caso de uso das notas taquigrficas, deve-se levar em considerao que podem ter ocorrido algumas correes da linguagem oral na transcrio.

    Aps a indicao precisa dos dados, deve-se passar para a fase de anlise, a qual envolve a indicao das caractersticas, dos padres e das estruturas tpicas do tipo de discurso escolhido. Tambm faz parte da anlise do texto a indicao de alguns aspectos gramaticais como: de que modo as oraes e os perodos esto relacionados; quais os tipos de marcadores de coeso que aparecem no texto; se foram criados novos termos e de que forma ocorreu; como foram empregados os verbos e advrbios, etc. Outro aspecto indispensvel a esta anlise o

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    1levantamento das metforas utilizadas, apontando seus efeitos estilsticos e esclarecendo os fatores (culturais ou ideolgicos) que podem ter levado o autor a escolh-las.

    Para os propsitos deste trabalho, interessam-nos particularmente as consideraes de Fairclough sobre intertextualidade, pois procuraremos mostrar, no pronunciamento sob anlise, a presena de outros textos com os quais se relaciona e as situaes sociais que acabaram influenciando a sua produo, distribuio e interpretao (consumo). Dele sero utilizadas tambm as indicaes dos passos a serem seguidos para se proceder a uma microanlise, ou seja, anlise da estrutura interna do discurso.

    2.2 As regras do jogo de mscaras Patrick Charaudeau professor na Universidade de Paris-Nord e diretor-fundador do Centro de Anlise do Discurso. No seu livro Discurso poltico (2006) encontram-se tanto as questes sobre a anlise do discurso, enquanto uma proposta terico-metodolgica de abordagem da linguagem, quanto as questes que essa proposta enfrenta ao tomar por objeto o pronunciamento poltico.

    Ele comea destacando o uso das mscaras no ato da comunicao, pois no ato de linguagem o enunciador usa a imagem que acha mais conveniente para convencer o seu interlocutor, e este por sua vez, ao tentar interpretar a mensagem recebida, pode fazer uso de outra mscara tentando, da melhor forma possvel, influenciar o primeiro enunciador. por isso que, para o autor, todo ato de linguagem obedece a certos princpios. O primeiro o da alteridade, pois s possvel a tomada de conscincia de si quando se est perante o outro; o segundo o princpio da influncia, quando se convence algum a agir de algum modo, ou at mesmo dizer ou pensar segundo a inteno do primeiro. Mas se esta pessoa reage e tambm quer exercer, por seu turno, alguma influncia sobre o outro, d-se o princpio da regulao (Charaudeau, 2006).

    Para o autor, a palavra que garante os espaos de discusso, de ao e de persuaso, os quais asseguram que as decises sobre as aes polticas sero, primeiramente, debatidas, que haver troca de opinies, que haver uma tentativa de se resolverem os conflitos pelo convencimento e no pela fora. Nesse sentido, afirma o autor que o governo da palavra no tudo na poltica, mas a poltica no pode agir sem a palavra (Charaudeau, 2006, p. 21). De fato, quando se pronuncia no Plenrio ou em uma Comisso, o deputado tenta convencer seus colegas a agir de acordo com aquilo que ele defende. De tal forma que a ao poltica ganha sentido e motivada pelo discurso, e isto justifica plenamente o interesse que o estudo do discurso e do discurso poltico mais especificamente sempre despertou entre diversas reas da cincia, como a histria e a filosofia poltica.

    Para Charaudeau, h trs instncias de realizao do discurso poltico: a poltica, a cidad e a miditica. Na instncia poltica, relacionada com o lugar de governana, importante que o indivduo tenha legitimidade, ou seja, que os outros reconheam nele a capacidade de

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    dizer e de fazer. Essa legitimidade pode se dar por filiao, por formao ou por mandato. Claro que interessa ao poltico atingir o maior nmero possvel de pessoas, portanto,

    para persuadir, o discurso poltico passa necessariamente pela emoo, pela razo e pela construo de uma imagem. Em outras palavras, para que um orador consiga a adeso de um auditrio ele tem que ir alm do uso racional dos argumentos. Ele ter que construir uma imagem de si, um ethos, com o objetivo de conseguir uma identificao com o auditrio. Para isso ele dever recorrer ao uso da emoo.

    Foi Aristteles quem introduziu a noo de ethos com sua obra Retrica. Para ele, em todo discurso h um potencial implcito de persuaso. Para convencer o auditrio, o orador usa algumas provas tcnicas para sustentar seu discurso persuasivo. Entre elas est o ethos que corresponde imagem de si prprio e que serve para inspirar confiana e conseguir a adeso do auditrio. Os outros instrumentos so o pathos e o logos. O uso do logos que permite convencer, pois faz uso da razo, enquanto pathos visa produzir emoo no auditrio, levando-o a agir.

    Para o poltico, a construo de uma imagem tarefa das mais espinhosas. Essa imagem de si, criada pelo poltico, tem de ter credibilidade. por isso que o poltico procura construir um ethos de srio, de virtuoso e de competente.

    Usando a teoria defendida por Charaudeau, procuraremos mostrar como foi importante que o Deputado Mrio Covas tivesse legitimidade para usar a palavra no plenrio da Cmara dos Deputados e que fosse reconhecido pela imagem (ethos) de seriedade e liderana para conseguir a adeso do auditrio.

    2.3 Por uma anlise situacional Foi Tereza Lcia Halliday quem trouxe para o Brasil a teoria da Anlise Retrica

    (Rhetorical Criticism). Halliday fez parte do corpo docente da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Bacharel em jornalismo e PhD em Comunicao Pblica, dedicou-se aos estudos sobre teoria da comunicao e anlise dos discursos organizacionais.

    A Anlise Retrica tem por objetivo examinar as circunstncias de realizao de diversos tipos de discursos persuasivos, como o publicitrio, o religioso e o poltico, em que h claramente a inteno de influenciar a audincia.

    A primeira tarefa proposta pela Anlise Retrica fazer a anlise da situao retrica do discurso, ou seja, uma descrio do ambiente em que se realiza o ato retrico. Para Halliday instncia a situao que tem que ser modificada por um discurso (por um ato retrico), e ocorre somente quando um retor (orador, escritor, anunciante) se importa com determinada situao factual, ou tem interesse em modific-la (Halliday, 1988, p. 124).

    Alm da instncia, compem o problema retrico (tambm chamado de situao retrica) uma audincia ou pblico passvel de ser influenciado para atuar na modificao da instncia [e] um conjunto de limitaes e restries (Halliday, 1988, p. 124).

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    1Para se fazer uma boa anlise retrica, Halliday prope um roteiro com seis passos.O

    primeiro deles supe a reconstituio dos elementos histricos, polticos e culturais que influenciam no surgimento de uma instncia, de uma situao que precisa ser modificada. Passa-se ento para a anlise dos fatores que levaram o retor a pensar que o seu discurso poderia ser a soluo do problema que se apresentava ou o que representaria para a transformao daquela situao. Para isso pode-se partir do prprio levantamento dos argumentos apresentados pelo retor na tentativa de identificar a instncia e de construir a sua prpria verso dos fatos.

    Ponto em comum a vrios mtodos de anlise do discurso, a exemplo da proposta de Fairclough, a identificao da sua anatomia e fisiologia, ou seja, a identificao do tipo de vocabulrio, os argumentos e as figuras de linguagem usados pelo retor. Outro fator importante a ser investigado o relacionamento estabelecido entre o retor e a audincia. Para isso necessrio mostrar se o retor possui, ou no, credibilidade.

    Ponto alto na anlise do discurso deve ser a interpretao desse ato retrico. Esse passo visa contribuir para ampliar a viso que se tem do discurso e da circunstncia em que se efetuou. Muitas vezes essa interpretao influenciada pela especializao do analista que se vale de sua experincia para identificar os elementos presentes naquele ato retrico.

    O ltimo passo da anlise permite que o analista assuma a postura de juiz, de avaliador do fenmeno pesquisado (Halliday, 1988, 129). Para no fazer uma anlise na base de suposies pessoais, devem ser observados alguns critrios como os pragmticos (ou de efeitos), estticos (ou de qualidade) e ticos (ou de valor).

    3 Anlise do texto 3.1 Os antecedentes da enunciao

    No Brasil, entre o final da dcada de 1950 e incio da de 1960, vivia-se um clima de euforia, com um presidente bossa nova, que havia prometido o desenvolvimento de 50 anos em 5. Aps Juscelino Kubitscheck, em janeiro de 1961, toma posse o presidente Jnio Quadros e o vice Joo Goulart. Mas, em 25 de agosto de 1961, Jnio renuncia. A posse do seu vice, Jango (apelido de Joo Goulart), foi conturbada. Jango no era bem visto pelos militares. Ele s conseguiu ser empossado, em 7 de setembro de 1961, aps uma manobra poltica instituindo o parlamentarismo. Tivemos o retorno ao presidencialismo aps o plebiscito realizado, antecipadamente, em janeiro de 1963.

    No s a posse de Jango, mas todo o seu curto governo foi conturbado, pois ele no conseguiu apoio para as suas propostas de reformas de base. Assim, os seus opositores comearam a apertar o cerco contra seu mandato. Aps o histrico comcio da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de maro de 1964, os militares antijanguistas se organizaram e, com o apoio de vrios setores da sociedade preocupados com o perigo comunista e com a desordem na economia, depuseram Joo Goulart. O golpe foi deflagrado na madrugada do dia 31 de maro, em Minas Gerais.

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    O Comando Supremo da Revoluo logo editou um ato claramente de exceo, estabelecendo, entre outras coisas, eleies presidenciais indiretas e dando ao presidente amplos poderes, j que lhe era permitido cassar mandatos e suspender direitos polticos por dez anos, ou seja, retirou os poderes do Legislativo e fortaleceu os do Executivo.

    Mesmo com o recrudescimento do regime, com a utilizao de instrumentos ditatoriais e anticonstitucionais, os militares tentaram manter uma fachada democrtica. Para continuar com o simulacro de democracia, foi convocada, pelo AI-4, uma assemblia nacional constituinte, a qual promulgou, em 1967, um texto basicamente ditatorial. Os deputados e senadores conseguiram, entretanto, duas vitrias: a proibio de fechar o Congresso e a criao da imunidade parlamentar (Jornal do Senado, 2006).

    Todavia, aqueles que apoiaram o golpe logo ficaram descontentes e comearam a reagir. A Igreja e a OAB se posicionaram contra a Lei de Segurana Nacional (LSN). A imprensa comeou a denunciar os aspectos autoritrios, os atos de violncia e as torturas. A juventude brasileira, como a de outros lugares do mundo na poca, contestadora e anticapitalista, passou a lutar de diversas formas contra a ditadura (PAES, 1992).

    Em sntese, a ttulo de concluso da leitura dos antecendentes da enunciao, podemos dizer que entre o Golpe de 64 e a edio do AI-5, ainda havia espao para se fazer oposio ao regime. Mesmo dentro do Congresso, com toda a ameaa de cassao pairando sobre as cabeas dos parlamentares, a oposio situada no MDB ainda conseguia acusar o governo a partir das CPIs (Comisso Parlamentar de Inqurito) e os movimentos estudantis ainda conseguiam se mobilizar para protestar contra a situao.

    O governo reagia a esses movimentos de contestao com violncia e s esperava uma desculpa para fechar ainda mais o regime e acabar de vez com a oposio. A ocasio surgiu com o pronunciamento feito, no dia 3 de setembro de 1968, pelo Deputado Mrcio Moreira Alves, que foi considerado ofensivo pelas Foras Armadas.

    3.2 Contexto da enunciao Em 29 de agosto de 1968, uma quinta-feira, a Universidade de Braslia (UnB) foi

    invadida por militares que procuravam o estudante Honestino Guimares, presidente da Federao dos Estudantes Universitrios de Braslia, que tivera sua priso preventiva decretada. Foi uma operao de guerra, testemunhada por vrios parlamentares. Muitos deles tinham ido procura dos prprios filhos e acabaram sendo agredidos, mesmo depois de se identificarem.

    Nos dias seguintes invaso, os pronunciamentos no Congresso refletiam a indignao dos congressistas. Mrcio Moreira Alves, parlamentar carioca, utilizou a tribuna nos dias 2 e 3 de setembro de 1968 para condenar a invaso ao campus da UnB. No primeiro pronunciamento, feito numa segunda-feira, ele cobra das autoridades providncias concretas na apurao dos responsveis. No segundo, ele utiliza um espao de tempo destinado a ligeiras comunicaes, o Pequeno Expediente, tambm conhecido como pinga-fogo, no qual cada deputado podia falar

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    1por at cinco minutos. Neste pronunciamento, Moreira Alves j no solicita das autoridades as medidas necessrias punio dos invasores, mas passa a sugerir ao povo maneiras de reagir, de protestar contra aquela situao. A sua inteno era partir para a ao: por isso que ele sugeriu aos pais que no levem seus filhos para assistir s comemoraes de 7 de setembro e que as moas no namorem militares.

    O pronunciamento foi considerado ofensivo pelos Ministros das Foras Armadas. Os integrantes da linha dura pressionaram o Presidente da Repblica, Arthur da Costa e Silva, pois desejavam um endurecimento do regime e precisavam de um pretexto para baixar mais medidas de exceo. O Ministro da Justia, Luiz Antonio Gama e Silva, aproveitou-se, ento, da situao e solicitou autorizao ao Congresso para processar o deputado.

    O pedido foi aprovado na Comisso de Constituio e Justia, pois a Arena, numa manobra que procurava garantir o resultado desejado, substituiu seis de seus deputados, j que eles haviam demonstrado a inteno de rejeitar o pedido. No dia 12 de dezembro de 1968, o Projeto de Resoluo n 22, de 1968, foi para a deliberao do Plenrio.

    3.3 As contingncias do pronunciamento A histrica sesso de 12 de dezembro de 1968 foi aberta com a presena de 48

    deputados dos 409 que compunham a Cmara. Aps a leitura da ata, deu-se incio ao Pequeno Expediente, que contou com 32 pronunciamentos, dos quais dezesseis versaram sobre o pedido de licena para processar o Deputado Mrcio Moreira Alves.

    Aps o Pequeno Expediente, foi aberta, ento, a Ordem do Dia destinada apreciao da pauta: votao do Projeto de Resoluo n 22, de 1968. Feita a contagem dos votos verificou-se que votaram 369 deputados: 141 votaram sim; 216, no e 12 votaram em branco. O projeto foi rejeitado e enviado ao arquivo.

    Para o nosso estudo importa mostrar as razes de o auditrio ter se manifestado de uma forma to expressiva pela rejeio da concesso da licena (diferena de 75 votos), quando a expectativa do governo era de que fosse no mximo de vinte votos.

    3.4 Auditrio A sexta legislatura da Cmara dos Deputados foi instalada em 1 de maro de 1967 e

    contava, por fora de lei, com 409 deputados federais. Destes, 370 estavam presentes sesso de 12 de dezembro de 1968. No foi possvel localizar a lista de presena, mas pode-se ter uma idia do perfil da audincia, sabendo-se que 46% deles eram advogados; 27% eram engenheiros, mdicos, economistas, professores e jornalistas; 14% eram industriais, comerciantes e fazendeiros, e entre os 13% restantes havia profissionais de diversas reas, com destaque para um grande nmero de militares (20). Ou seja, provvel que quase a metade do auditrio naquela tarde fosse formada por advogados e mais de um quarto por profissionais liberais.

    Um outro dado a ser levantado a composio partidria. A Arena era o partido

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    majoritrio e o MDB, mesmo com dificuldade, conseguiu reunir o nmero mnimo para formar a sua bancada: 120 deputados.

    Como podemos ver, a Cmara era composta, em sua maioria (67%), por deputados da situao. Isto representava uma dificuldade a mais para o orador, pois apesar de a fidelidade partidria s ter sido introduzida em 1969, com a Emenda Constitucional n 1, a radicalizao era evidente: a Arena era considerada um partido do governo e os seus representantes deviam dar sustentao a todas as suas decises.

    Para se avaliar a eficcia do discurso do Deputado Mrio Covas, temos de levar em conta que mesmo com essa situao to adversa, o resultado obtido (216 votos contrrios licena) nos permite deduzir que muitos arenistas contrariaram a orientao do partido e foram persuadidos pelo pronunciamento do lder oposicionista.

    3.5 Legitimao do pronunciamento Segundo Tereza Halliday para se conseguir a legitimidade preciso agir

    retoricamente, ou seja, necessrio construir com palavras e outros smbolos uma realidade dentro da qual os outros vejam as coisas como gostaramos que eles as vissem (Halliday, 1987, p. 9).

    Charaudeau acrescenta que a legitimidade no ocorre apenas no plano poltico, mas, seja onde for, ela depende das normas institucionais que regem cada domnio de prtica social, atribuindo status e poderes a seus atores (Charaudeau, 2006, p. 65).

    No caso dos discursos parlamentares a legitimao se d na medida em que o discurso autorizado, legtimo. Esta legitimidade construda retoricamente obedecendo-se s regras de uso da palavra disciplinadas nos regimentos internos das casas legislativas.

    3.6. O pronunciamento do oponente Para Charaudeau (2006) no existe uma liberdade total quando se fala, existem sempre algumas restries nas situaes de comunicao/atos de linguagem. No caso do discurso poltico, alm dos atores da comunicao (locutores e interlocutores) implicados na troca comunicativa, aparece tambm o adversrio, que pode ser o concorrente numa disputa eleitoral, algum que ocupou antes um determinado cargo e tambm o crtico das suas opinies. Na histrica sesso em que foi feito o pronunciamento objeto de anlise deste trabalho aparecem claramente duas posies antagnicas: ou se a favor da concesso da licena ou contrrio a ela.

    Geraldo Freire, lder do governo naquele momento, ocupou a tribuna na sesso de 12 de dezembro de 1968 para defender a concesso da licena para processar o Deputado Moreira Alves, por isso pode-se classific-lo como o oponente ao pronunciamento do Deputado Mrio Covas.

    No seu discurso, ele sustentou que a imunidade parlamentar no era uma prerrogativa,

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    1mas um privilgio dos parlamentares: Concedida a licena, a imunidade se ausenta, restaura-se a vigncia normal do princpio, fazendo desaparecer os privilgios (...) (DCN, p. 112), e acrescentou porque nesta Ptria no h privilgios (DCN, p. 119)

    Ele conclui o seu pronunciamento lembrando que j que o MDB estava obedecendo fidelidade partidria, que a Arena com seus homens desabusados e dignos, coerentes e puros, bravos e patriticos deveria fazer o mesmo. Com seu pronunciamento, Geraldo Freire visava refutar os argumentos utilizados pelo Deputado Mrio Covas, desqualificando-o.

    3.7 Ethos e credibilidade Das trs provas do discurso indicadas por Aristteles (1966), o ethos era considerado

    mais importante. Para ele o orador deveria ter virtudes morais que lhe garantissem a credibilidade dentro de uma dimenso social que lhe permitiria convencer seu auditrio ao se exprimir de um modo apropriado.

    Para descobrirmos como era a identidade discursiva de Mrio Covas investigamos qual era a imagem que dele tinham os seus colegas e como esta imagem foi construda atravs do seu pronunciamento, mostrando quais foram os recursos discursivos usados por ele para persuadir o plenrio e levar os parlamentares a concordarem com suas idias.

    Este santista, filho de um comerciante portugus de caf e de uma espanhola, desde cedo mostrou vontade de seguir a carreira poltica. Dizia que iria ser prefeito de sua cidade. Em 1961, disputou e perdeu a eleio para esta prefeitura, mesmo contando com o apoio de Jnio Quadros, que o via como um lder jovem e promissor.

    Covas continuou na poltica e foi eleito deputado federal em 1962, na legenda do Partido Social Trabalhista (PST). Em 1965 ingressou no recm-criado Movimento Democrtico Brasileiro (MDB). Reconhecido pela sua audcia e por no fraquejar ao defender seus pontos de vista, ele no escondia o seu posicionamento em relao ao governo.

    Foi como lder da oposio que Mrio Covas, em 12 de dezembro de 1968, subiu tribuna para fazer um pronunciamento apoiado em uma identidade discursiva construda ao longo da sua vida: um orador srio, um poltico honesto, austero e corajoso. Alm de ser conhecido pelo timbre de voz grave, ele era reconhecido, principalmente, pelo seu comprometimento com suas crenas polticas.

    Podemos dizer que suas palavras s foram aceitas porque como poltico ele construiu uma imagem de credibilidade, achavam-no digno de crdito j que aquilo que ele dizia correspondia imagem que tinham dele.

    3.8 Estrutura externa do pronunciamento Para Aristteles, um discurso comportava, obrigatoriamente, duas partes: na primeira

    indicava-se o assunto e na segunda fazia-se a sua demonstrao. Ele admitia, ainda, que estas partes fossem desdobradas em exrdio, exposio, prova e eplogo. Esta a estrutura bsica

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    que pode ser encontrada, ainda hoje em dia, em todo discurso, seja num pronunciamento religioso, cientfico ou poltico.

    O discurso de Mrio Covas, de um modo geral, obedece a este esquema. No exrdio, composto pelos dois primeiros pargrafos, aps fazer a sua apresentao e justificar a sua presena na tribuna dizendo que vai falar na condio de membro desta Casa, ele passa a expor o tema do seu pronunciamento: esta Casa est sendo submetida a julgamento sobre a validade de uma das suas mais caras prerrogativas (...) que a inviolabilidade (DCD, p. 99).

    Nos terceiro e quarto pargrafo feita a proposio. Ele comea a desenvolver a sua tese recuperando um fato semelhante que aconteceu com Carlos Lacerda, acusado de revelar o contedo de um telegrama secreto, e que teve seu pedido de licena para ser cassado recusado pela Cmara dos Deputados. Ele estabelece um paralelo entre estes dois fatos: so situaes carregadas de emoo e, em ambos os casos, os deputados so usados pelos que esto no governo para atacar o Parlamento.

    A partir do quinto pargrafo proposta uma reviso de fatos: creio, Sr. Presidente, ser necessrio um exame do problema sob vrios aspectos, ainda que dentro das limitaes do tempo regimental. (DCD, P. 101). Ele ento comea a levantar vrios argumentos que servem como refutao ao que poderia ser alegado pela acusao. Primeiro, ele alega que mesmo com o risco de involuntariamente cometer omisses, foge-[lhe] lembrana a presena de defensores da concesso. (DCD, p. 101). Segundo o orador, esta ausncia de defensores se d porque a tese dos que so favorveis concesso da licena fraca.

    Apresenta tambm o argumento de autoridade ao citar Federico2 Mohrhoff, jurisconsulto italiano, autor de vrios livros sobre o assunto. Aqui, alm desse tipo clssico de argumento de autoridade, tambm vale a pena chamar a ateno para os argumentos relativos autoridade de si, que se funda em sua legitimidade ou credibilidade (Charaudeau, 2006, p. 103), os quais so construdos, por exemplo, quando Covas, mesmo pedindo para se despir da roupa vistosa da liderana, lembra audincia que era ele o lder do partido, e acrescenta que est representando todos os eleitores que depositaram nele votos e confiana.

    Ainda dentro da refutao, o pronunciamento de Covas segue a linha dos discursos de defesa, tpicos do gnero discurso jurdico, passando a apresentar as provas. Como prova documental ele se utiliza do ofcio do Ministro do Exrcito, que o Ministro reconhecera ter o Deputado Mrcio Moreira Alves, como membro da oposio, o direito e a liberdade de protestar contra os fatos ocorridos na Universidade de Braslia. Ao invocar o retrospecto histrico, ele lembra o quo paradoxal o fato de as Foras Armadas terem lutado, em solo estrangeiro, pela liberdade e democracia e agora estarem praticando ato contra esses valores.

    Para concluir o seu pronunciamento, o orador optou por uma perorao baseada na afetividade, utilizando-se de um desfecho forte (exaltado) e procurando impressionar e excitar

    2 E no Frederico como consta nas notas taquigrficas.

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    1as paixes no ouvinte (Aristteles, 1966, p. 220). Ao fazer uma gradao dos atos de crer, ele vai construindo uma profisso de f. Na liturgia religiosa d-se este nome ao momento em que as pessoas reunidas na celebrao da missa do assentimento ao que acabaram de ouvir (a homilia ou as leituras sagradas), e tem por objetivo recordar aos ouvintes as regras do seu credo. Mrio Covas faz um paralelo com a estrutura usada pelos que creem e faz tambm a sua profisso de f dizendo-se comprometido com valores universais e acreditando no homem e no povo, no regime democrtico e no Parlamento, na palavra e na liberdade.

    Sou, Senhor Presidente, por formao e por ndole, um homem que fundamentalmente cr. (...) Creio na Justia, cujo sentimento, na excelsa lio de Afonso Arinos, a noo de limitao de poder. (...). Creio no povo, annimo e coletivo, com todos os seus contrastes, desde a febre criadora mansido paciente. (...) Creio na palavra, ainda quando viril ou injusta, porque acredito na fora das idias e no dilogo que seu livre embate. Creio no regime democrtico, que no se confunde com a anarquia, mas que em instante algum possa rotular ou mascarar a tirania. Creio no Parlamento, ainda que com suas demasias e fraquezas (...). Creio na liberdade, este vnculo entre o homem e a eternidade (...). Creio (...) na honra, este atributo indelegvel, intransfervel por ser propriedade divina. (DCD, p. 109 e 110, grifos nossos.)

    3.9 Anlise da estrutura interna Para usar um termo de Charaudeau, Mrio Covas comea o seu pronunciamento do dia

    12 de dezembro de 1968 usando o procedimento enunciativo de alocuo: Senhor Presidente, permita V.Exa. e meus pares que eu reivindique, inicialmente, um privilgio singular: o de despir-me da roupagem vistosa da liderana transitria, com que companheiros de partido me honraram, para falar na condio de membro desta Casa (...).

    O uso da expresso meus pares no era comumente usada por Mrio Covas em seus pronunciamentos, o que indica ser uma expresso intencional por parte do orador para obter do auditrio uma identificao, procurando estabelecer uma relao de igualdade. Ao usar este tratamento legitimador, procura fazer com que os seus pares (tratamento de igualdade) venham a aderir sua causa.

    J a enunciao elocutiva expressa com a ajuda dos pronomes pessoais de primeira pessoa acompanhados de verbos modais, de advrbios e de qualificativos que revelam a implicao do orador e descrevem seu ponto de vista pessoal (Charaudeau, 2006, p. 174). o que faz Mrio Covas em todo o seu pronunciamento: ele refora, constantemente, o compromentimento com o que est falando: despir-me, minha condio de engenheiro, eu sou (...) um homem que fundamentalmente cr, creio, ouso, sustento eu, ater-me-ei eu reivindique, me honraram. Estas expresses servem de exemplo para o que Charaudeau denomina de modalidade compromisso, modalidade convico e a modalidade confisso. Modalidades que, segundo o autor, funcionam como facetas de um processo mais geral de modalizao, de atribuio de modalidades ao enunciado, pelo qual o enunciador, em sua prpria fala, exprime uma atitude em relao ao destinatrio e ao contedo de seu enunciado.

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    (Charaudeau, 2004, p. 334). Em relao s modalidades acima citadas, elas evocam, respectivamente, as figuras de guia supremo, de virtude e humanidade. Seno vejamos. Quando ele diz eu creio, ou ainda, sou um homem que fundamentalmente cr, ele no est tentando impor os seus valores, mas, com humanidade (despir-me das roupas vistosas da liderana), ele transmite ao auditrio a certeza de que as suas palavras tm fora e devem ser levadas em considerao.

    O uso da primeira pessoa do plural, chamado pelos gramticos tradicionais de plural de modstia, no empregado por Covas com a funo de evitar ser pessoal ou muito impositivo. No seu pronunciamento, o ns tem um emprego mais particular. empregado em duas situaes especficas: quando ele quer chamar a ateno dos outros deputados para a deciso que dever ser tomada, envolvendo-os e exigindo que seja uma responsabilidade compartilhada: a causa que somos obrigados a apreciar, a orientar-nos no atual problema; ou, ainda, quando fala da imunidade, prerrogativa de todos: uma das nossas mais caras prerrogativas, da qual no temos o direito de abdicar, nossa tradio.

    A intertextualidade tambm aparece no discurso do parlamentar. Ele cita textualmente as palavras do Deputado Carlos Lacerda (colocadas entre aspas nas notas taquigrficas): um deputado como os outros e menor que os outros converteu-se, por deciso do Governo da Repblica, no teste decisivo do funcionamento das instituies democrticas no Brasil (Lacerda, 1982, p. 199). Covas, ao travar um dilogo com o texto do Lacerda, retoma suas palavras e aponta as semelhanas existentes entre as duas situaes: deputados sendo acusados pelo governo de abusar da imunidade parlamentar, e a reao dos membros da Casa Legislativa ao defenderem no uma prerrogativa individual, mas a do Parlamento como um todo.

    Ainda em relao intertextualidade, destaca-se no pronunciamento do Deputado Mrio Covas a reproduo de trechos de dois ofcios: um do Procurador da Justia Militar No tocante, porm, aos discursos proferidos na tribuna da Cmara dos Deputados, no se me afigura, in casu, exista qualquer delito, diante da indenidade assegurada no art. 34, caput, da Constituio (...) (DCD, p. 102); e o outro do Ministro do Exrcito: (...) no seu legtimo direito de adversrio do Governo (...) no uso da liberdade que lhe assegurada pelo regime institudo com a Revoluo de Maro (...) (DCD, p. 107).

    Apesar de ser a voz dos opositores, so argumentos que corroboram o seu posicionamento em defesa da imunidade. Covas, ento, utiliza-os a seu favor, pois se at os adversrios reconhecem a legitimidade de seus argumentos, no haver quem deles possa discordar.

    Ao se analisar o vocabulrio (campo lexical), pode-se verificar que foi usada, no pronunciamento de Mrio Covas, uma terminologia tpica do discurso jurdico: esta Casa est sendo submetida a julgamento. Recolhida ao banco dos rus, aguarda o veredicto, que ser exarado pelos seus prprios ocupantes (DCD, p. 99, grifos nossos); logo depois, A acusao o crime de injria a uma instituio as Foras Armadas. (DCD, p. 100, grifos nossos); e

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    1ainda, Como prova testemunhal, leio o teor do ofcio do ministro do Exrcito, solicitando as providncias legais (DCD, p. 107, grifos nossos).

    Mesmo tendo o deputado afirmado que aquela votao, ou melhor dizendo, aquele julgamento, deveria ter um carter poltico e no jurdico, ele utiliza-se do discurso jurdico para construir a sua argumentao. Esse uso do discurso jurdico se justifica no fato de que Covas pretende revestir a sua argumentao da formalidade prpria desse discurso e, com isso, reforar a defesa que faz da imunidade parlamentar empregando termos bastante comuns quase metade (46%) daquela audincia, constituda por deputados com formao na rea de Direito.

    Para reforar seus argumentos, o orador utilizou de um recurso bastante expressivo: o paralelismo, nome que se d disposio das palavras de uma mesma maneira, no necessariamente por meio da repetio delas, j que algumas vezes pode ser feita com palavras contrastantes. O objetivo desta construo gramatical, quando feita intencionalmente, chamar a ateno dos ouvintes, submetendo-os a uma estrutura diferente, em que o elo que falta na frase tem que ser preenchido pelos interlocutores: A acusao o crime de injria a uma instituio as Foras Armadas. A arma, a palavra. O instante, os dias em que atingiu o clmax a alta tenso emotiva emergente dos episdios relacionados com a invaso da Universidade de Braslia. (DCD, p. 100-101). Percebe-se que ao relacionar em um paralelo a acusao, a arma e o instante, Covas desloca, na ltima frase, a ateno da audincia das palavras pueris de Moreira Alves para algo que realmente grave e toca a muitos dos deputados: a invaso da UnB. Tal deslocamento s funciona porque foi construdo sob um paralelismo sinttico que torna as trs frases equivalentes.

    Outro elemento que se destaca no discurso o uso de metforas. Para Charaudeau, as metforas so as figuras do discurso referentes s transferncias por analogia, cujas funes principais so esttica, j que enfeita o discurso; cognitiva, pois permite explicar analogicamente um domnio novo ou pouco definido por um domnio conhecido; e persuasiva, quando transfere analogicamente um valor decisivo ligado ao termo metafrico para a proposio que se quer que seja aceita (Charaudeau, 2004, p. 330).

    No pronunciamento de Mrio Covas, as metforas aparecem em maior quantidade na perorao, aps ter desenvolvido a sua fala como se fosse um discurso jurdico, ele agora quer levar seu auditrio a se emocionar, a concordar com suas palavras, e precisa que estas palavras sejam belas. No incio, ele j havia se despido da roupagem vistosa da liderana transitria, agora ele vai

    da altitude desta tribuna, da majestade desta Mesa, da altivez deste plenrio, as vozes do gnio do Direito e da Deusa da Justia podem ser ouvidas em seu pattico apelo: No permitais que um delito impossvel possa transformar-se no funeral da Democracia, no aniquilamento de um Poder e no cntico lgubre das liberdades perdidas (DCD, p. 111).

    Como afirma Fairclough, as metforas penetram em todos os tipos de linguagem e em

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    todos os tipos de discurso (...), alm disso, as metforas no so apenas adornos estilsticos superficiais do discurso (Fairclough, 2001, p. 241). Neste trecho do pronunciamento de Covas, percebe-se que ele fez uso de alguns recursos estilsticos, objetivando atingir e emocionar seu pblico, tais como o paralelismo e a gradao. Mas o que mais se destaca a personificao do Direito em gnio e da Justia em Deusa para que suas vozes amalgamadas s do orador sejam, dentro de uma operao metafrica que diz ser sua voz a prpria voz dos seres mitolgicos, portadoras de um pedido em favor da democracia. De fato, esta estratgia retrica revelou-se eficaz para persuadir seus pares da necessidade de votar contra a concesso da licena que estava sendo solicitada.

    4. Concluso Mesmo aps a edio da Emenda Constitucional n 35, de 20 de dezembro de 2001, a

    discusso sobre o mbito da imunidade parlamentar ainda se faz presente no Parlamento. Essa garantia permite que o Legislativo tenha independncia e seus membros consigam desenvolver suas atividades sem recear as represlias. Entretanto, os excessos e o mau uso dessa prerrogativa acabam denegrindo a imagem deste Poder, sendo associada impunidade.

    O pronunciamento do Deputado Mrio Covas tornou-se uma referncia por ressaltar que a imunidade um instituto inerente aos regimes democrticos, nos quais devem ser respeitadas as opinies divergentes, devem ser ouvidas as crticas da oposio, devem ser fiscalizadas as aes dos outros Poderes e, sobretudo, as contestaes no devem ser silenciadas pela fora.

    A fora do seu ato discursivo estava ligada situao em que foi proferido: o Legislativo havia sido posto em uma posio delicada. Se cedesse ao desejo do governo, perderia a sua autonomia; se resistisse, teria de enfrentar as conseqncias, como, de fato, aconteceu. Mas se foi eficaz e sobreviveu ao seu tempo para se constituir em uma referncia porque as palavras usadas e a construo lingstica desse pronunciamento foram singulares.

    Em nossa anlise, procuramos demonstrar que do contexto histrico e das circunstncias do discurso, Mrio Covas soube retirar as conseqncias maiores da aprovao (ou rejeio) do pedido de cassao. por isso que ele busca paralelos na histria, como o caso de Lacerda no Brasil e, at em outros pases, como o caso da Itlia. Por isso, tambm, que se apropria da fala dos acusadores para defender o Parlamento, mostrando que eles prprios no deixavam de reconhecer essa prerrogativa dos representantes do povo.

    Tambm nos mecanismos estilsticos utilizados destaca-se a justaposio de dois tipos de discursos. Na argumentao, predomina o discurso jurdico, sabendo Mrio Covas que uma boa parte dos seus ouvintes tinha formao na rea de Direito. O ru, ele defende, no um deputado entre outros, mas sim o prprio parlamento. A acusao a injria e a defesa, a liberdade de falar, de parlar, de ser parlamentar. Aqui, o Deputado Covas segue o que se espera de uma pea jurdica, ou seja, invoca testemunhos, subverte a fala da acusao, apresenta documentos e convoca autoridades.

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    1Na perorao, adota um outro discurso, o discurso religioso, proferindo um credo, uma

    profisso de f na justia, no povo, no parlamento e no regime democrtico. Nesse ponto do discurso, em que Aristteles diz que se deve comover os ouvintes, Mrio Covas utiliza-se do discurso ligado ao sagrado para atingir sua audincia. Antes j havia feito de sua voz a voz da Deusa da Justia e do Gnio do Direito apelando pela recusa da licena.

    No entanto, talvez nada disso teria sido to eficiente se no fosse dito por quem foi, ou seja, um lder da oposio que detinha o ethos da seriedade, um poltico que soube construir uma imagem de honestidade e compromisso com a verdade e seus deveres de cidado.

    Finalmente, se o pedido de cassao do Deputado Moreira Alves foi uma situao singular, uma provocao da qual se aproveitava o governo para justificar o fechamento do Congresso, como afirmam alguns historiadores, no menos singular foi a resistncia empreendida por Mrio Covas em seu pronunciamento. Se lhe faltava a fora e os mecanismos de coero de que dispunha largamente o governo militar, sobrava-lhe a certeza de que ceder seria curvar um poder aos ditames de outro e a democracia seria irremediavelmente aniquilada. Para defender a democracia ameaada, dispunha de uma arma, a arma da palavra, a palavra como arma. esse o sentido ltimo da imunidade parlamentar e, tambm, do discurso parlamentar.

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    Artigo recebido em: 01/03/2010 Artigo aceito para publicao em: 29/03/2010

    titulo: A PALAVRA COMO ARMA:Anlise do discurso do Deputado Mrio Covasem defesa da imunidade parlamentarNome do autor: Elizabeth Paes dos SantosData: E-Legis, Braslia, n.4 , p. 133-148, 1 semestre 2010