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CALDEIRÃO DE SANTA CRUZ DO DESERTO: UM MASSACRE SOB O “PODER DA MEMÓRIA” NO CEARÁ Gilberto Freyre DE MENINO A HOMEM DNOCS - 100 ANOS O “Senhor das Águas” em agonia de sede Um anarquista construtivo passeia pela sua história IPEA - 45 ANOS: A ENCOMENDA DE LULA PARA O BRASIL DO FUTURO Edição Nº 06 — Ano I — Revista Nordeste VinteUm – Publicação sobre economia, política e cultura — www.nordestevinteum.com.br R$ 9,90 6

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Um anarquista construtivo passeia pela sua história DNOCS - 100 ANOS IPEA - 45 ANOS: A ENCOMENDA DE LULA PARA O BRASIL DO FUTURO CALDEIRÃO DE SANTA CRUZ DO DESERTO: UM MASSACRE SOB O “PODER DA MEMÓRIA” NO CEARÁ R$ 9,90 Edição Nº 06 — Ano I — Revista Nordeste VinteUm – Publicação sobre economia, política e cultura — www.nordestevinteum.com.br 6

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CALDEIRÃO DE SANTA CRUZ DO DESERTO: UM MASSACRE SOB O “PODER DA MEMÓRIA” NO CEARÁ

Gilberto Freyre

DE MENINO A HOMEM

DNOCS - 100 ANOSO “Senhor das Águas” em agonia de sede

Um anarquista construtivo passeia pela sua história

IPEA - 45 ANOS: A ENCOMENDA DE LULA PARA O BRASIL DO FUTURO

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Temos muito mais a mostrar: belezas naturais, oportunidades e desenvolvimento nas mais diversas formas.Mas preferimos que você confira de perto. Porque nenhuma imagem consegue transmitir uma sensaçãoainda melhor: o calor humano da nossa gente.

É por isso que fizemos esse anúncio com muitas imagens.Pra você também se encantar com o nosso Estado logo à primeira vista.

O PIAUÍ ENCHE OS OLHOS DOS VISITANTES E INVESTIDORES

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Temos muito mais a mostrar: belezas naturais, oportunidades e desenvolvimento nas mais diversas formas.Mas preferimos que você confira de perto. Porque nenhuma imagem consegue transmitir uma sensaçãoainda melhor: o calor humano da nossa gente.

É por isso que fizemos esse anúncio com muitas imagens.Pra você também se encantar com o nosso Estado logo à primeira vista.

O PIAUÍ ENCHE OS OLHOS DOS VISITANTES E INVESTIDORES

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Gilberto de Mello Freyre. (Recife, 15 de março de 1900 — Recife, 18 de julho de 1987). Sociólogo, antropólogo, escritor e pintor brasileiro. Um dos grandes nomes da história do Brasil. Visões de mundo

“Um dos característicos de nossa geração é repugnarmos o dramalhão. Ele se tornou ridículo para nós. A voz com que hoje enfrentamos os momentos mais difíceis, em nossa vida sentimental como na política, é a simples e quase de conversa. Se Carlayle aparecesse hoje, nós pediríamos a Carlayle o grande favor de falar um pouco mais baixo. Se Euclides da Cunha escrevesse hoje, nós pediríamos ao grande autor d’ Os Sertões o obséquio de escrever um pouco mais simples”.

“Nossa arte manter-se-á fiel à realidade através do lastro tradicional, ou não se manterá de modo nenhum. E nunca

será demais lembrar que foi o movimento dirigido por Gilberto

Freyre, o primeiro a anunciar profeticamente esta verdade”.Ariano Suassuna, pesquisador, dramaturgo, romancista e poeta brasileiro

“Felizmente o Brasil futuro não vai ser o que os velhos historiadores disseram e os de hoje repetem. Vai ser o que Gilberto Freyre disser. A grande vingança dos gênios é essa”Monteiro Lobato, escritor (18/04/1882 – 04/07/1948)

“O que o Brasil e os brasileiros devem a Gilberto Freyre poderia ser definido como tomada de consciência histórica. Através da interpretação gilbertiana o Brasil ‘reconhece-se’ e foi ‘reconhecido’ pelo mundo, o que é, por sua vez, um fato decisivo, uma data na história brasileira”Otto Maria Carpeaux, ensaísta, crítico literário e jornalista austríaco por nascimento e brasileiro por opção

(09/03/1900 – 03/02/1978)

Insigths

“O humano só pode ser compreendido pelo humano – até onde pode ser compreendido; e compreensão importa em maior ou menor sacrifício da objetividade. Pois tratando-se de passado humano, há que deixar-se espaço para a dúvida e até para o mistério”

“Creio que cada um deve ficar o mais possível no lugar onde nasceu. Nada de muita emenda ao soneto da vida: ou do destino, que é o mesmo”.

“Deus pra mim existe porque minhas intuições reclamam que Ele exista. Fora

de toda Teologia. Creio que os teólogos só têm feito atrapalhar a compreensão humana de Deus. Eu acho que os teólogos são, realmente, tecnocratas da pior espécie. Eles querem tecnocratizar o Mistério.”

“Aliás, para Freyre não existem fronteiras rígidas entre a região da poesia e a região da ciência. Da ciência criadora, como ele precisa, aquela ciência como que apocalíptica e quixotesca, tantas vezes tão próxima do ridículo e do obscuro, que é a mais alta das ciências”Manuel Bandeira, poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro (19/04/1886 – 13/10/1968)

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OPINIÃO“Dai De beber a quem tem seDe”

À guisa de introdução sobre perversidades contra um Centenário

Pois, então, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas tornou-se centenário. Poucas foram as institui-

ções oficiais que, prestando efetivos bene-fícios econômicos e humanos ao Nordeste, resistiram tanto à força demolidora dos inimigos de nossa região.

Um século de proveitosos empreendi-mentos banha a história impávida desta autarquia federal, o primeiro órgão a se preocupar concretamente com os proble-mas do semiárido.

O Dnocs das estradas e dos açudes. Dos socorros nos tempos de calamida-des. Das emergências nas secas, atalhan-do os filetes d’água com barragens, pros-pectando o chão comburido em busca de mananciais subterrâneos, no cumpri-mento da assertiva bíblica de “dai de be-ber a quem tem sede.”

O Nordeste, porta de entrada da coloni-zação ibérica do Brasil, é marcado por cer-tos maus humores do destino. Detentora do primeiro ciclo econômico, o da agricul-tura canavieira, a região nordestina foi per-dendo espaço para outras regiões, à me-dida em que se desenvolviam os demais estágios da economia. Até transformar-se na predileta referência trágica da miséria nacional, objeto de romances, poemas e ensaios sociológicos, inclusive de famosa tirada demagógica do imperador Pedro II, que prometeu empenhar o último brilhan-te de sua coroa para que não morresse ne-nhum cearense de fome.

O fator determinante de nossa pobreza regional foi a seca, fenômeno histórico des-ta banda geográfica do Brasil, responsável por grandes calamidades e pela quebra do processo dinâmico de nossa economia.

Como os nossos rios não são alimen-tados por mananciais constantes de importância, pois a maioria dos olhos d’água desta região têm vazão insignifi-cante, dependemos exclusivamente das precipitações pluviosas.

Com apenas duas estações, que cha-mamos de inverno e verão, vivemos com um olho nas nuvens e o outro no chão, no trapézio oscilante entre a vida e a morte, no líquido paradoxo das chuvas ou das lágrimas.

As condições desfavoráveis da nature-za devem ser corrigidas pelo homem, que pelas conquistas da inteligência tornou-se o domador de seu próprio destino, no nosso caso, do destino adverso.

O Dnocs, nesta longa e secular traje-tória, vem cumprindo a sua parte na mis-são de desentortar a nossa sina, ao cus-to do enfrentamento das oligarquias, das omissões de lideranças, das negligências oficiais, dos interesses políticos mesqui-nhos, do pessimismo e do conformismo atávico, culturalmente arraigados na alma nordestina por decepções continu-adas e até incentivo espiritual.

A tudo, sobrevive o Dnocs, com atua-ção veemente e destemida afirmação la-boriosa a serviço do Nordeste.

Sua identificação com as esperanças e a saga nordestina é de tal ordem que a autarquia se confunde com os símbo-los perenes e sagrados de nosso povo. O Dnocs é tão nosso quanto a mata caa-tingueira, o mandacaru, o vento Aracati, o desfile do maracatu, a faca peixeira, o doce de buriti, São Francisco de Canindé ou o Padre Cícero Romão.

Agora, da plena soberania dos cem anos, em longa e lenta agonia contem-pla o largo vale de suas realizações. E, para que a memória não se perca nos escaninhos do desleixo, a revista Nor-deste VinteUm publica neste número, um expressivo relato sobre suas obras e divulga noções do seu acervo docu-mental. Permeado de relatos fascinan-tes de pessoas geradas e transformadas a partir da ingente tarefa de, sob o sol causticante, umedecer a terra e o cora-ção dos nordestinos.

Editora Assaré Ltda MERua Waldery Uchôa, 567 A n BenficaFortaleza, Ceará n CEP: 60020-110e-mail: [email protected]/fax: (85) 3254.4469

20. Caleidoscópio

46. Saberes & Sabores66. Ateliê – Totonho Laprovitera

57. Cento e cinquenta anos depois Gilmar de Carvalho

35. Caldeirão, entre história e memóriaO historiador Régis Lopes fala sobre como o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto resiste ao aniquilamento nas contendas da história

seções

artigo

ensaio

Edição Nº 06Ano I — Novembro/Dezembro — 2009Circulação Dezembro 2009Revista Nordeste VinteUmPolítica, Economia, Culturawww.revistanordestevinteum.com.br

Capa: Marcos Aurelio/Ilustração

Francisco Bezerra Diretor de Negócios e Relações Institucionais [email protected]

Orlando Júnior Diretor Administrativo Financeiro [email protected]

Wilton Bezerra Júnior Editor Executivo [email protected] [email protected]

Marcel Bezerra Editor Adjunto [email protected]

Por Juarez Leitão, do Conselho Editorial da Nordeste VinteUm (*)

(*) JUAREZ LEITÃO, é escritor, historiador e membro da Academia Cearense de Letras

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Gilberto Freyre

Sumário

Editora Assaré Ltda MERua Waldery Uchôa, 567 A n BenficaFortaleza, Ceará n CEP: 60020-110e-mail: [email protected]/fax: (85) 3254.4469

Conheça o Prece, um modelo de aprendizagem cooperativa que leva sertanejos aos bancos das universidades

inovação social58

Os 150 anos da primeira expedição científica brasileira à província cearense do “Norte”

Comissão Científica de exploração

48

O desafio de um instituto na construção da agenda desenvolvimentista de longo prazo para o Brasil

ipea 45 anos

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20. Caleidoscópio

46. Saberes & Sabores66. Ateliê – Totonho Laprovitera

57. Cento e cinquenta anos depois Gilmar de Carvalho

Francisco Bezerra Diretor de Negócios e Relações Institucionais [email protected]

Orlando Júnior Diretor Administrativo Financeiro [email protected]

Wilton Bezerra Júnior Editor Executivo [email protected] [email protected]

Marcel Bezerra Editor Adjunto [email protected]

TODOS OS DIREITOS SÃO RESERVADOS. É proibida a reprodução total ou parcial, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos ou qualquer outro meio ou processo existente ou que venha a ser criado.

Flamínio Araripe Editor Adjunto do caderno Ciência e Tecnologia [email protected]

Claudemir Luis Gazzoni Diretor de Arte [email protected]

Vladimir Pezzole Editor de Arte [email protected]

Lucílio Lessa e Samira de Castro Reportagem [email protected]

Paulo Rocha Repórter Fotográfico [email protected]

Imagem Assessoria de Comunicação Marketing – [email protected]

Colaboradores Gilmar de Carvalho, Régis Lopes e Totonho Laprovitera

Impressão MarcografTiragem 16.000 exemplares

BrasilEm De Menino a Homem, o revolucionário da Sociologia e Antropologia e um dos maiores intérpretes do Brasil passeia em reflexões biográficas às vésperas de ser homenageado pela Flip 2010, no mês de agosto

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Carta dO EdItOrLegitimidade pelo jeito de bem dizer exemplos do bom viver

Nordeste Vinteum

N ove meses do ano de 2009 deixa-ram marcada, de Fortaleza para o Nordeste e o Brasil, uma breve

e singular história de empreendedorismo sobrevivente na selva que é o mercado gráfico-editorial de nossa região. Mas, que se reafirma a cada dia. Com coragem e per-severança, mesmo que a vida venha a nos violentar. Eis a trilha do jornalismo que es-colhemos para palmilhar. Pautados sempre no sentimento de insurretos exploradores a limpar a roça, tirar as coivaras, pelejar. Com a mira aprumada na infinitude dos nú-meros para edições da nossa revista.

Uma obra coletiva. Gênita do arrojo de uma equipe de jornalistas imperturbável frente às inclemências do nosso clima e tempo. Que fincou reconhecença. Aquele sinal em terra, pelo qual os viajantes iden-tificam as paragens das costas. Seja na po-lítica, economia e cultura, que constituem o tripé informativo de nosso veículo. Seja nas incursões desbravadoras pelo univer-so da ciência e tecnologia.

Desde o início de tudo, esteiados nas evocações do pensar original de figuras como Celso Furtado, Josué de Castro, Câ-mara Cascudo, Padre Cícero, Graciliano Ramos e Gilberto Freyre. Gente de preemi-nente acuidade no olhar sobre nosso pas-sado, presente e futuro que, não por acaso, abrilhantou o tratamento editorial dos seis temas de capa da revista.

Páginas estas a não se arredar infinité-sima parte que fosse do seu compromisso editorial com o resgate de questões como o desenvolvimentismo, a história dos de-sequilíbrios regionais, os avanços socioe-conômicos e a necessidade de revisão das políticas públicas.

É assim que chegamos a esta edição de número seis. Para conferir, basta cor-rer a vista pelas próximas folhas e atestar a abrangência temática e a profundidade no trato de conteúdos como: o drama do cen-tenário Dnocs, a pujança do Ipea ao chegar dos seus 45 anos, o poder da memória so-bre o massacre de uma utopia de fraterni-dade no Cariri cearense, a história do per-nambucano que revolucionou o estudo da Sociologia e da Antropologia no mundo e, por fim, a grata experiência de aprendiza-gem cooperativa que leva sertanejos aos bancos de universidades.

O pioneirismo centenário de um desbravador do sertão que agoniza lenta e silenciosamente nos últimos lugares da lista de prioridades governamentais

Dnocs10

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Política Pública

desbravadordo semiArido´

Agonia lenta e silenciosa de um

Um século de existência marcado tanto pelo pioneirismo quanto pelo passado recente e atual instante de enfraquecimento político e institucional. Eis um brevíssimo e injusto resumo da trajetória do

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), instrumento estratégico na execução de políticas de convivência com as secas que,

lamentavelmente, acabou apropriado politicamente pelos coronéis nordestinos no século passado. Uma arrogação de posse que se perpetua em pleno século XXI. Agora, por novos “mestres de campo” e “caciques”

políticos. O órgão, reconhecidamente importante para o desenvolvimento regional, agoniza lenta e silenciosamente. Chegou a ser extinto em 1999 no governo de Fernando Henrique Cardoso. Com Lula, sem renovação

de quadros, ocupa um papel secundário no maior projeto hídrico do atual governo: a transposição de águas do Rio São Francisco.

Por Samira de [email protected]

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desbravador

A

do semiArido

Agonia lenta e silenciosa de um

o longo de dez décadas, segundo o Governo Federal, o Dnocs inves-tiu US$ 20 bilhões no semiárido (a preços atuais), conseguindo evi-tar, na devida proporção do que lhe coube, grande parte do êxodo rural nordestino. Hoje, uma nova dimensão está sendo destinada ao órgão, que caminha rumo a uma estratégia para definir seu for-talecimento, passando pela sua reestruturação institucional, pela

definição de novas funções voltadas para a gestão dos recursos hídricos regionais, combate à desertificação e estudos e ações que minimizem as mudanças climáticas no semiárido brasileiro. Além de concurso público e um plano de cargos e carreiras para os servidores do órgão.

Muito se discute – na Câmara Federal, no Se-nado, no Ministério da Integração Nacional. Porém, nada de concreto se apresenta. Para o economista André Silva Pomponet, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na Secretaria do Planejamento da Bahia, quando foi concebido, o Dnocs (então Iocs) teve o mérito de despertar o Brasil para a questão das secas. “Até então, quando

ocorria alguma estiagem, a medida que se tomava era a distribuição de alimentos. Milhões de nordes-tinos morreram ou migraram nessas ocasiões. De-pois, o problema era esquecido”, afirma.

“O Nordeste era órfão de tudo”, acrescenta o engenheiro civil Cássio Borges, servidor aposentado do órgão e atual diretor técnico científico da Socie-dade Amigos do Dnocs (Soad). A criação do órgão

11Nordeste VinteUm

Novembro/Dezembro n 2009

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levou os governos a tentarem con-ter os fluxos migratórios por meio de obras de infraestrutura hídrica. “Para a atual geração de nordesti-nos e brasileiros, que nunca tomou conhecimento dos implacáveis fla-gelos das secas ocorridas no pas-sado, tudo o que o Dnocs realizou nos seus 100 anos de existência, e se incorporou à paisagem nordesti-na, foi uma dádiva de Deus. Para esta geração, os 3.300 quilômetros de rios perenizados, superior à ex-tensão do rio Danúbio, que corta a Europa de leste a oeste, já existia mesmo antes do descobrimento do Brasil”, compara Borges, que tem acompanhado o trabalho do Dnocs na região nordestina nos últimos 50 anos.

Coube ao Dnocs construir o Nordeste, resume Roberto Morse

Com toda a sua história, o ór-gão chega aos seus 100 anos

desprestigiado. Oficialmente, não se fala em esvaziamento. Mas, bas-ta lembrar que o Dnocs participa de forma acanhada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com 14 obras estruturantes e outras por meio de fontes de seu orçamen-to, envolvendo recursos superiores a R$ 1,5 bilhão. E está praticamente de fora do projeto da transposição do São Francisco. “O Dnocs não tem estrutura para tocar uma obra dessa dimensão. E, talvez por uma questão política, o governo tenha preferido não envolvê-lo na discus-são, já que a obra não é unanimi-dade entre os estados nordestinos”, afirma Pomponet.

Fora da Transposição, descontínuo fluxo financeiro e sucateamento

Situação de parte do acervo do Dnocs, em más condições de conservação

Foto: Arquivo

de Souza, presidente da associação dos Servidores do órgão (Assecas). “Onde construímos um açude, uma rodovia e uma rede de energia, vi-rou uma cidade”, comenta. Traba-lho importante não apenas quando se fala em grandes reservatórios,

estradas de ferro. “Mas também o dia a dia, as pequenas ações nos recantos mais humildes do sertão, em que nós servidores ajudamos os pequenos agricultores na luta diária pela sobrevivência”, conta Morse.

“Mesmo com todos os vícios políticos que sempre contamina-ram o órgão, em alguma medida, as obras de infraestrutura ajudaram a conter fluxos migratórios mais in-tensos em direção ao litoral e con-tribuíram para reduzir as mortes nos períodos de secas mais rigoro-sas”, reconhece Pomponet. Ele res-salva que “isso não apaga, todavia, o triste passado em que o Dnocs foi usado como moeda de troca políti-ca e que muitas obras aconteceram em propriedades privadas, favore-cendo os coronéis beneficiários da indústria das secas”.

onde construímos um açude, uma rodovia e uma rede de energia, virou uma cidade

roberto Morse, presidente da assecas

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Uso político de diretorias e desintegrado à órgãos como BNB, Codevasf e Sudene

MOEda dE trOCa

Minguados recursos da União, um passivo insti-tucional, sedes regionais caindo literalmente aos pe-daços e nem um escritório em Brasília. O quadro é des-crito pelo próprio diretor administrativo do Depar-tamento, Albert Gradvhol, que afirma lamentar “pro-fundamente a forma como o Dnocs tem sido tratado atualmente”. “O Dnocs tem uma demanda de R$ 12 bilhões. E não tem sequer uma secretaria em Brasí-lia. A estrutura física das coordenadorias estaduais, que são os braços do órgão, está completamente suca-teada. Em alguns casos, a fiação elétrica está aparen-te, só falta o forro cair na cabeça do servidor”, relata.

irrigada. Para esses planeja-dores, embora este conceito tenha mudado mais recente-mente, o Nordeste é um de-serto que se apresenta irre-versível, com uma população acabrunhada pela sede e pela fome, os rebanhos flagelados pela penúria da pastagem. E a solução, no seu entendi-mento, é a retirada em massa de todo o ser vivente, transfor-mando a região em terras de ninguém”, pontua.

Mapas, projetos do órgão, obras raras e documentos relevantes sem qualquer cuidado. Alguns estavam amassados e outros, rasgados.

Cássio Borges lembra que o Departamento sofreu muitas estag-nações em sua atuação face a irre-gularidade dos recursos financeiros. O rompimento do açude Orós, em 1960, é um exemplo de descontinui-dade do fluxo de dinheiro. “Sem-pre houve um entendimento dos planejadores governamen-tais, geralmente sulistas, de que as obras construídas pelo Dnocs deveriam proporcionar o retorno do capital investido, ou seja, a prática da lavoura

Historicamente, o Dnocs sempre foi utilizado como moeda de troca e a sua direção indicada por políticos

nordestinos. Nunca teve ações integradas a outros órgão de desenvolvimento regional, como a Sudene, a Codevasf e o Banco do Nordeste.

“Não destoa muito da prática em outros órgãos no pre-sente e no passado. Creio, todavia, que aos poucos a neces-sidade de se indicar dirigentes utilizando critérios técnicos vai se impondo, seja pela própria maturidade institucional do País, seja pela necessidade de quadros mais qualificados para compreender os problemas e propor soluções adequadas”, acrescenta Pomponet.

Para Cássio Borges, não se pode encobrir que o Dnocs, como outros organismos federais e, principalmente, os es-taduais, sofre da nefasta interferência de maus políticos. “Infelizmente – e esta é a origem do problema –, os cargos mais importantes do órgão são preenchidos por indicações partidárias, em detrimento de técnicos com longo tempo de serviços prestados à instituição. Tenho observado que mui-tos engenheiros, administradores, técnicos, de uma forma geral, desempenhando funções de enorme responsabilidade, com idealismo e patriotismo, se contentam em receber uma fração de vencimento que poderiam ganhar na iniciativa pri-vada”, completa.

“Para sulistas, uma terra de ninguém”

13Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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borges argumenta que a visão distorcida dos sulistas em re-

lação ao Nordeste em muito contri-buiu para a imagem negativa da au-tarquia – como “órgão ineficiente”, sumidouro dos recursos financeiros da União. “Foi por isso que FHC, um paulistão de quatro costados, ex-tinguiu não somente o Dnocs, como a Sudene”, comenta. O engenheiro teme que, com uma nova extinção do Dnocs, a problemática do semiá-rido nordestino seja transferida para Brasília, onde burocratas nada com-prometidos com a região irão decidir seus rumos.

No Governo FHC, relembra Pomponet, vivia-se uma onda liberal de vigência efêmera e de êxitos duvi-dosos. “O Dnocs acabou atingido du-plamente: por ser um órgão público

– num período de ‘caça às bruxas’ ao setor público – e também por atuar numa região que não era priorizada economicamente e cujos beneficiá-rios potenciais não necessariamente são grandes grupos empresariais”, argumenta Pomponet. “No Governo Lula”, prossegue ele, “as concessões políticas aos poderosos locais não cessaram e o órgão acaba afetado pela falta de clareza nas estratégias de longo prazo”. Daí, a ausência de concursos e de uma política institucional mais clara.

Cássio Borges é mais enfático: “o Dnocs agora passa por momentos de incertezas em sua existência, pois está morrendo por inani-

ção”. Ele acrescenta que, infeliz-mente, mesmo com um presidente nordestino, a situação do órgão não mudou. “E nada foi feito, até agora, que vislumbre dias melhores para aquele operante departamento fede-ral”, lamenta o engenheiro civil.

ao confessar a frustração por não poder realizar mais no cargo –

por conta da estrutura engessada –, o diretor administrativo, Albert Grad-

vhol, faz uma mea culpa: “acho injusto ocupar este

cargo. O diretor admi-nistrativo deveria ser um servidor. É preci-

“Com FHC, extinção. Com Lula, inanição”

“Acho injusto ocupar este cargo”MEa CUlPa

Museu das Secas, antiga sede do Dnocs, em Fortaleza

Albert Gradvhol, diretor administrativo do Dnocs

so que o Dnocs, assim como outros órgãos de desenvolvimento, tenha a menor interferência política pos-sível. Que seja nomeado apenas o diretor geral. Todo o chamado se-gundo escalão deveria ser composto por servidores de carreira, que são a prata da casa, com conhecimento inestimável sobre a entidade, como acontece em organismos internacio-nais”, diz.

Para o economista André Pom-ponet, a ausência de articulação en-tre instituições e órgãos públicos é um problema secular no Brasil. “O planejamento dos órgãos é paralelo e muitos esforços são inúteis, porque as políticas públicas concebidas não se articulam. Faltam diagnósticos sistêmicos, compreensões ao mes-

mo tempo amplas e profundas dos problemas da região”. Se há crédito, às vezes, não há acompanhamen-to técnico, sistemas de irrigação ou qualificação para os produtores ou até mesmo acesso aos mercados. “Se houvesse um esforço efetivo para ar-ticular políticas de bancos, órgãos, ministérios, esses problemas seriam menores, porque se saberia, com mais objetividade, o que é necessário fazer e como cada setor deve atuar”.

14Nordeste VinteUm

Novembro/Dezembro n 2009

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“Com FHC, extinção. Com Lula, inanição”

a história do Dnocs começou na época imperial brasileira. Em

1877, o Nordeste enfrentou a maior estiagem de todos os tempos: 500 mil pessoas morreram de fome e sede,

C riado pelo então presidente Nilo Peçanha, por meio do

Decreto nº 7.619, de 21 de outubro

Tragédia da seca de 1877 com 500 mil mortes impulsionou criação de novo órgão

Único ente federal em socorro do Nordeste até meados de 1945

ENgENharIa

Trabalhadores do Dnocs em obras

Retirantes da seca de 1877. Desenho especial de Percy Lau para o livro Geografia da Fome de Josué de Castro, 7ª. edição, 1961. O desenho foi baseado numa gravura original da época

D. Pedro II e família, da esquerda para a direita: a imperatriz, D. Antonio, a princesa Isabel, o imperador, D. Pedro Augusto, D. Luís, o conde D’Eu e D. Pedro de Alcântara.

numa seca que se estendeu por três anos. Populações se deslocaram, fa-mílias se separaram e epidemias se alastraram. A catástrofe sertaneja des-pertou o governo Imperial para a ne-cessidade de encontrar alternativas e evitar novas desgraças.

Profissionais de engenharia do Instituto Politécnico do Rio de Janeiro se reuniram sob a presidência do genro de D. Pedro II, Conde D’eu, e apre-sentaram sugestões sobre estudos e obras que permitissem o abastecimen-to de água à população e a manuten-ção da agricultura e pecuária durante as estiagens.

O Império virou República e novas secas chegaram desafiando os técnicos, que avançaram nos estudos e experiências com equipamentos até então nunca usados na América Latina. Essas comissões, criadas no

Ceará e no Rio Grande do Norte, tornaram-se a raiz do órgão que se-ria o grande pensador, executor e gerenciador das mais importantes obras realizadas no Nordeste para a convivência com as estiagens.

de 1909, com o nome de Inspetoria de Obras Contra as Secas (Iocs), e transformado em Inspetoria Federal

em 1919, o Dnocs passou a ser um Departamento só em 1945, pelas mãos do presidente José Linhares. Desde a sua fundação até meados de 1945, órgão foi praticamente a única agência governamental fede-ral executora de obras de engenha-ria no Nordeste.

Cruzando vales, transpondo serras e montanhas, entrecortando a terra – na maioria das vezes seca e árida – em todas as direções, os engenheiros do Dnocs fizeram de tudo. Construíram açudes, estradas, pontes, portos, ferrovias, hospitais, campos de pouso e usinas hidrelé-tricas. Implantaram redes de energia elétrica e telegráfica. Até a criação da Sudene, em 1959, o órgão era o responsável único pelo socorro às populações atingidas pelas cíclicas secas que assolavam a região.

Foto: Arquivo

15Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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No começo, o Dnocs concentrou-se em:Estudos sobre uma região desconhecida. Para tanto,

valeu-se de especialistas internacionais nas áreas de botânica, agronomia, geologia, hidrologia e enge-nharia.

A partir dos resultados, tratou de amenizar os pre-juízos trazidos aos nordestinos pela irregularidade de chuvas na região, buscando não apenas acudir o homem mas também melhorar a capacidade de resistência do rebanho pecuário – principal supor-te econômico do Nordeste semiárido à época.

Dar prioridade à construção de barragens para acumulação de água. O órgão marcou o solo nor-

destino com ferrovias e estradas, para facilitar o acesso a centros urbanos. Foi a partir daí que tam-bém passou a fazer obras de menor porte – perfu-ração de poços tubulares e instalação de pequenas hidrelétricas –, como ga-rantia de água potável nos principais grupamen-tos urbanos nordesti-nos. A cada seca, a mão-de-obra desempregada (agricultores e pescado-res, em sua maioria) era absorvida pelo Dnocs.

Somente na década de 1950 se tentou abandonar o conceito de “combater” as secas e adotar a filosofia da convivência com seus efeitos, deslocando a abordagem da questão da dimensão climática para a econômica e social – explica o economista André Pomponet. “Infelizmente, a longa ditadura que se seguiu terminou por sufocar essa discussão, que incluía o tema crucial da reforma agrária”, acrescenta.

Antes da ditadura, uma mudança de foco: do clima para a questão sócioeconômica

déCadas dE 50/60

O instituto marcou solo com várias obras que iam de ferrovias e estradas a barragens e suporte a cultura

de várias áreas como pecuária e piscicultura.

16 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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Maior empreiteira da América LatinaNa época em que o Governo Federal construía suas obras por administração direta no Nordeste, o Dnocs chegou a ser “a maior empreiteira da América Latina”, com mais de 30 mil operários e funcionários. Nos períodos de seca, com os alistamentos para as frentes de serviço, os trabalhadores chegavam a 100 mil.

a lém de grandes reservatórios, como o Orós, o Banabuiú e o Araras, coube ao órgão a construção da rodovia Rio-Bahia e o início da barragem de

Boa Esperança. Com a criação de órgãos especializados, o acervo de obras não hídricas – como rodovias, linhas de transmissão, ferrovias e portos – foi a estes transferido. Seria o começo do esvaziamento do órgão.

O primeiro grande reservatório do Dnocs foi o Juscelino Kubitschek, inau-gurado em 1961, no município cearense de Orós, com capacidade para dois bilhões de metros cúbicos de água. Em 1983, veio a construção do açu-de Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte. O Açu, capaz de armazenar 2,4 bilhões de metros cúbicos de água, passou a ser o maior reservatório da região, superado somente 20 anos depois, quando o Dnocs er-gueu o Castanhão. O gigante do Vale Jaguaribano cearense, com capacidade para acumular 6,7 bilhões de metros cúbicos de água, marcou o ápice da engenharia de barragens no semiárido. O Castanhão é o maior açude para múltiplos usos do Brasil.

Banabuiú

Araras

Boa Esperança

AçuCastanhão

Açude de Orós

17Nordeste VinteUm

Novembro/Dezembro n 2009

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O projeto de reestruturação do Dnocs parece seguir a passos

de tartaruga, há mais de um ano. Há quem diga que permanece es-quecido no fundo de alguma gave-ta do Ministério da Integração ou do Planejamento, em Brasília.

Segundo o diretor adminis-trativo, Albert Gradvhol, já houve

tratativa com o ministro Geddel Vieira Lima para que o processo seja acelerado e levado à Câmara Federal para aprovação. “A rees-truturação deve ser discutida o mais urgente possível e que sofra a menor influência política possí-vel para que haja sucesso na sua revitalização”.

Reestruturação do órgão continua parada em gavetas de Ministérios

Expectativas e decepções com o governoCom a eleição do presidente Lula,

havia a esperança para o órgão. No primeiro mandato, foram prioriza-das as ações relacionadas à produção nas áreas da piscicultura e da irriga-ção, a conclusão das obras iniciadas e a construção do Centro de Referên-cia do Semiárido. A nova investida de Lula está sendo marcado pela rees-truturação de vários órgãos federais e o Dnocs continua esquecido.

Para André Pomponet, o proces-so de transição da perspectiva mera-mente de engenharia civil do Dnocs, para a social e econômica ainda não se completou. “Mas, a tarefa de ar-ticular políticas de convivência com a seca, porém, transcende o Dnocs”, defende o economista.

A grande questão que se coloca para o Nordeste, reflete o economista baiano, é como consolidar esse mo-delo de convivência com a seca, que seja economicamente viável, ambien-talmente sustentável, socialmente justo e includente e politicamente

agora centenária, a entidade precisa renovar forças e energia para encarar os desafios que incluem a sua reestruturação e revitalização

roberto Morse, presidente da assecas

Esplanada dos Ministérios, em Brasília

tividade política. “Quando houver cla-reza em termos de como se desenvol-ver a região, então surge o momento de mobilizar os diversos órgãos. Isso, todavia, implica em uma decisão polí-tica mais ampla, de se voltar a discutir a região. Como aconteceu nos anos 1950, com Celso Furtado e o Gtdn, que originou a Sudene”, frisa.

Para Roberto Morse, a grande mudança em curso não é do cenário e sim do próprio Dnocs. “Agora cen-tenária, a entidade precisa renovar forças e energia para encarar os de-safios que incluem a sua reestrutu-ração e revitalização. É fundamental que a Assecas participe deste pro-cesso e esteja preparada para opinar e orientar seus associados. Somos nós, os servidores, os agentes destas transformações”, frisa.

equilibrado. “O enfrentamento desse desafio exige uma arquitetura insti-tucional que envolve vários ministé-rios, mas que sem dúvida passa pelo Dnocs”, completa.

Para Pomponet, o que falta à re-gião, em linhas gerais, são diagnósti-cos mais adequados e sistêmicos dos seus problemas, foco nos segmentos sociais mais fragilizados e representa-

D e acordo com Gradvhol, até hoje não existe um Plano de

Cargos, Carreiras e Salários (Pccs) no Departamento, que conta com 13 mil aposentados, merecedores de respeito. Ele defende investimentos em gestão. “Tem gente que ainda pensa que o Dnocs é uma fábrica de furar poço. Temos aí a piscicultura, que poderia estar sendo mais bem desenvolvida, gerando divisas para o País através das exportações”.

O diretor acrescenta que a falta de recursos é um dos maiores entraves ao fortalecimento do órgão. “Nossa conta de recursos próprios para investimento no reforço das regionais, por exemplo, é muito burocrática”, lamenta.

Uma solução, segundo ele, seria leiloar a prestação do serviço da folha de pagamento dos servidores, que movimenta R$ 38 milhões. “Por que não negociar isto com um banco, que pode, em troca, oferecer serviços para este contingente de servidores?”, questiona, acrescentando falas sobre remuneração pelo uso da água dos reservatórios construídos.

Cobrança por menos discurso e mais ação

18 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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326 açudes públicos com capacidade de acumulação total de 25 bilhões de metros cúbicos de água

622 açudes executados em regime de cooperação com estados, municípios e particulares, com capacidade de acumulação de 1,5 bilhão de metros cúbicos de água

27 mil poços públicos e particulares perfurados, com índice de aproveitamento de 90%

177 sistemas de abastecimento público de água implantados em cidades, inclusive em algumas capitais nordestinas, beneficiando mais de 2 milhões de habitantes

8 usinas hidrelétricas de pequeno porte instaladas em açudes públicos, com capacidade total de 14.000 CV

22.600 km de rodovias construídos, que se constituíram na malha pioneira do que hoje é a rede rodoviária nordestina

4.000 km de rios perenizados, com cerca de 100 m³/s, volume suficiente para irrigar 65.000 ha (65%) e abastecer 18 milhões de habitantes (35%)

71.739 hectares irrigados implantados em 38 projetos públicos, entregues 41.271 ha para 7.197 pequenos irrigantes, 1.090 ha

para 66 engenheiros agrônomos, 864 ha para 67 técnicos agrícolas e 20.097 ha para 335 empresas agropecuárias

8 estações de piscicultura construídas, além de 01 Centro de Pesquisas Ictiológicas e um Laboratório de Larvicultura de Camarões.

4 estações de piscicultura em fase de construção e/ou início de operação.

181 açudes públicos monitorados para pesca.

1.555 km de adutoras regionais implantados, para atender uma população de 1,6 milhão de pessoas.

NÚMEROS DO PIONEIRISMO QUE FICOU PARA TRÁS

Venderei a última jóia da coroa, mas não morrerá um cearense de fome

como de costume, os trabalhos da inspetoria de secas sofreram sensível declínio com a paralisação de obras importantes, iniciadas sob a pressão dos flagelos que passavam paulatinamente

Quem mais sabe de um recurso que será estratégico, quem mais conhece o semiárido, quem pode se abrir para

a ciência, para a tecnologia, para a Universidade, é o Dnocs

o Dnocs agora passa por momentos de incertezas em sua existência, pois está morrendo por inanição

Precisamos pegar aquela bancada política do Nordeste que não deixou o órgão ser

extinto e trazer para a discussão atual, fazer o Pccs chegar ao bolso do servidor.

Precisamos diminuir os discursos bonitos e provar à sociedade que somos soberanos. o Dnocs está precisando nascer de novo, sem

amarras políticas e institucionais. o que ele tem é tão pouco, e precisa de tanto que a

gente vai precisar fazer 200 anos

Dom Pedro II, 1877

Thomaz Pompeu Sobrinho, engenheiro e antropólogo, 1953

Gustavo Krause, então ministro do Meio Ambiente,

dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, 1997

Cássio Borges, engenheiro civil e diretor da Soad, 2009

Albert Gradvhol, diretor Administrativo

do Dnocs, 2009

Frases

19Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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[email protected]

CaleidoscópioKariri beach semiáriDo

COMItIVa dO sEMINÁrIO CarIrI CaNgaÇO VIsIta NOrdEstE VINtEUM

Cumbuco ganha hotel internacional

Nordeste VinteUm recebe carta de recomendação técnica da Icid 2010

A redação da Revista Nordeste Vinte Um recebeu a visita da comitiva coordenadora do Seminário Cariri Cangaço (cariricangaco.blogspot.com), realizado em setembro deste ano, nas cidades de Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha e Mis-são Velha, no Ceará. Formado pelo curador Manoel Severo, as secretárias de Cultura do Crato, Danielle Esmeraldo, e de Juazeiro do Norte, Glória Tavares, além de represen-tantes das prefeituras de Barbalha, Missão Velha e Aurora (Rodrigo Torres, Jussara Macedo de Aurora e Ingrid Ali-diane) o grupo conversou com o editor-chefe, Wilton Bezerra Júnior, e o diretor administrativo-financeiro da Editora Assaré, Orlando Júnior. Na oportunidade, foram reafirmados os com-promissos editoriais da publicação com as temáticas regionais e o desenvolvimentismo, ao mesmo tempo que elogiada a cobertura da Nordeste Vinte Um ao evento Cariri Cangaço. Na ocasião, destaques para as contribuições dos pesquisadores Antonio Vilela, Napoleão Tavares Neves, Antonio Amaury e Pei-xoto Júnior, em matéria escrita pelo do confrade Barros Alves.

A Praia do Cumbuco, em Caucaia, a 27 quilômetros de Fortaleza, acaba de ganhar seu primeiro hotel com características de resort ‘pé na areia’. É o Kariri Beach, um empreendimento de R$ 20 milhões investidos por empresários escandinavos. A denominação do hotel foi uma home-nagem aos índios Cariris, primeiros habitantes daquele litoral. Segundo

Nestor Munhoz, gerente geral, o hotel possui 187 apartamentos com vista para o mar e distribuídos em quatro categorias. As acomodações variam entre 30 e 66 me-tros quadrados. A piscina do hotel mede 600 metros quadrados e dispõe de cascata que inicia uma leve correnteza e forma

um pequeno rio que desemboca na piscina semiolímpica com três raias, concebida para representar o Oceano Atlântico. O hotel é ainda equipado para receber eventos de empresas e festas. O Salão Karioca possui 110 metros quadrados de área climatizado, com capacidade para 100 pessoas e estrutura operacional de equipamentos próprios. O Kariri Beach Hotel oferece ainda aos hóspedes business center, internet, serviço de lavanderia, estacionamento coberto para 80 carros, agência de viagens com serviços de locação, passeios de buggy, quadriciclos, jangadas e cavalos, além de uma guardaria para material esportivo. O Manacá Restaurante tem cardápio re-gional e internacional, além de pratos exóticos. Ainda na área de alimentos e bebidas, destaque para o atendimento personalizado na beira da praia.

A revista Nordeste Vinte Um tem a honra de divulgar para seu público leitor que acaba de receber Carta dE rECOMENdaÇÃO téCNICa da Direção da sEgUNda CONFErÊNCIa INtErNaCIONal EM ClIMa, sUstEN-taBIlIdadE E dEsENVOlVIMENtO EM rEgIÕEs sEMI-ÁrIdas - ICId 2010. O documento, assinado pelo dire-tor da ICID, economista antônio rocha Magalhães,

destaca que para tornar efetivas as discussões e participações no processo de difusão social da Conferência, julga-se necessária a construção de um veículo de mídia capaz de abordar com propriedade e abrangência as várias visões científicas, teses e projetos à luz de uma linguagem acessível, bem decodificada e desmistificadora de valores incutidos ao longo de anos sobre a inviabilidade de adaptações e desen-volvimento sustentável no “mundo” semiárido. Nesse sentido, a carta reforça o papel social que a revista Nordeste VinteUm pretende desempenhar junto ao seu público preferencial, justamente aquele composto pelas comunidades acadêmicas, pesquisadores, decisores públicos e privados, terceiro setor e organismos nacionais e internacionais ligados ao evento. Por último, Rocha Magalhães considera digna de apoio a proposta da revista Nordeste VinteUm, de publicar números especiais dedicados à ICId 2010, cobrindo temas relevantes para o desenvolvimento sustentável das regiões semiáridas do Nordeste e do Planeta.

20 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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CiClo de debates

Energia em pauta no Recife

O lançamento regional da Revista Nordeste Vinte Um acontece por intermédio da promoção do Ciclo de Debates Nordeste VinteUm. Para marcar a estreia de nossa iniciativa em caráter regional, a programação temática dos eventos convoca atenção de renomados pesquisadores, políticos, técnicos e decisores públicos, personalidades empresariais e acadêmicas da região. Em debates, atualidades sobre assuntos ligados ao desenvolvimento socioeconômico regional. Os eventos são realizados também como forma de aprofundar a discussão de temas em pauta nas edições da revista. Assim, no intuito maior de preservar na ordem do dia reflexões sobre como o Nordeste brasileiro permanece filho dileto da realidade histórica de um país 75º lugar (entre 182) do ranking de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (IDH), é que hoje, levamos nossa revista aos quatro cantos da região.

No mês de outubro, em Fortaleza, o lançamento da Nordeste VinteUm mobilizou figuras de expressão como o governador Wellington Dias, o presidente do BNB, Roberto Smith. Por último, programamos a vez de Pernambuco nos receber em Recife, através da Fundação Gilberto Freyre, para realização da segunda etapa do Ciclo, no último dia 6 de novembro, com representantes da Sudene, Chesf, Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste – (Etene/BNB), Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da Universidade Estadual do Ceará (Iepro / Uece) e Secretaria de Ciência e Tecnologia de Pernambuco. Entre os palestrantes, o deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), a economista Fernanda Ferraro, diretora de Gestão da Informação para o Desenvolvimento da Sudene; o gerente de Informações do Etene, Francisco Diniz Bezerra e o secretário adjunto de Ciência e Tecnologia de Pernambuco, Anderson Stevens Gomes.

Nosso objetivo era, especificamente na edição pernambucana, discutir energia elétrica e desenvolvimento. Em destaque, estudos que apontam para a autossuficiência nordestina no setor, num passeio pelas potencialidades de geração e transmissão, envolvendo matrizes hidrelétricas, termelétricas, eólicas e de biomassa. Oportunidades históricas de recolher, sistematizar, documentar e difundir informações a partir de embasados depoimentos, a programação o Ciclo de Debates Nordeste VinteUm prossegue nos próximos meses, pelas cidades de Teresina, Salvador e Juazeiro do Norte.

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Por Marcel Bezerra / [email protected]

Os avanços socioeconômicos obtidos nos últimos anos e o bom desempenho do Brasil diante da crise econômica mundial trouxeram de volta com mais força o tema do desenvolvimento

ao centro da agenda do País. O desafio é, a partir de agora, retomar o diálogo sobre uma perspectiva nacional de longo prazo, esquecida desde o início dos anos 80. Para auxiliar

nessa ampla e árdua tarefa, a nação conta com instituições de excelência como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que aproveita a ocasião dos seus 45 anos de fundação

para animar o necessário debate acerca do assunto

iPea 45 aNos

PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

Visão de longo prazo é possível na terra dos desiguais?

22 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 2008

70 com IDH alto - 85 com IDH médio - 21 com IDHbaixo

iPea 45 aNos

PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

ono de uma das dez maiores reservas globais de petróleo. Maior exportador mundial

de ferro, café, soja, suco de laran-ja, carne bovina, frango, açúcar e etanol. Referência internacional na produção e no desenvolvimento de biocombustíveis. Sétimo maior fabri-cante de carros no mundo. Quarto maior fabricante mundial de aerona-ves e líder na produção de modelos com capacidade de até 120 passa-geiros. Maior bacia hidrográfica do mundo, com 73% da matriz elétrica com origem hídrica.

Citados assim, esses dados rapi-damente permitiriam inferir: eis um perfil de país desenvolvido. Revelar que eles dizem respeito ao Brasil tal-vez possa frustrar a mais apressada conclusão, embora não seja justo dei-xar de reconhecer que, nos últimos anos, a nação tem experimentado um ciclo de expansão. Na Era Lula, o go-verno apostou suas fichas no controle da inflação, no equilíbrio das contas públicas e em um forte programa de inclusão social, que proporcionaram taxas de crescimento econômico mé-dio de 5% nos dois últimos anos e estabilidade fiscal, com um superávit primário das contas públicas (4,1% do PIB em 2008).

Por outro lado, é forçoso colocar que os desafios ainda são imensos

sui nenhum tipo de coleta de esgoto. No país, o acesso à internet ainda é baixo: 5,3 acessos em cada 100 mil habitantes, contra uma média de 30 acessos em países europeus.

Equacionar problemas tão gran-des, graves e históricos num país de dimensões continentais não é sim-ples. O poder público intervém na vida econômica e social da nação e, dadas as proporções do Brasil, é difí-cil até mesmo esquadrinhar a com-plexa organização do Estado e seus intrincados processos decisórios que impactam diretamente da execução de políticas públicas governamen-tais. A finalidade última seria pro-porcionar o tão sonhado bem estar social. Afinal, entre os 182 países do mundo, figuramos entre as 20 maio-res economias, mas ocupamos ainda o 75º lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) divulgado no início de outubro pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O Brasil se encontra longe do grupo de países de IDH muito elevado (índice acima de 0,90), como Noruega, Austrália, Islândia, Canadá e Irlanda, os cinco primeiros, respectivamente. Embo-ra classificados como de IDH alto (0,813), à nossa frente temos Chile, Uruguai, Argentina, México e Costa Rica, por exemplo.

Idh. Mede os avanços alcançados por um país em três aspectos: vida longa e saudável (baseado na esperança média de vida ao nascer), acesso ao conhecimento (baseado na alfabetização e na escolarização) e nível de vida digno (baseado no PIB per capita associado ao poder de compra em dólares americanos). Os países são classificados dentro desses aspectos em valores médios entre 0 e 1

Desigualdade é nossa marca: a parcela 10% mais rica da

população brasileira concentra 42,7%

dos rendimentos do trabalho, enquanto os 10% mais pobres ficam com o 1,2% restante,

D

naquilo que é mais básico para uma população. Divulgada em setembro, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) vai direto ao pon-to. Desigualdade é nossa marca: a parcela 10% mais rica da população brasileira concentra 42,7% dos ren-dimentos do trabalho, enquanto os 10% mais pobres ficam com o 1,2% restante, afora os desequilíbrios entre regiões – proporcionalmente, a Cen-tro-Oeste é a mais rica, e a Nordeste a mais pobre. Na educação, um em cada dez jovens de 18 anos ou mais não sabe ler nem escrever – e a mé-dia de analfabetismo do Nordeste é o dobro da nacional. Além disso, falta saneamento básico, já que um em cada quatro lares brasileiros não pos-

23Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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ara um país sempre vítima do “curto-prazismo” e que viveu até há poucos anos sob

o medo do retorno de uma inflação galopante e de suas traumatizantes consequências, o governo comemo-ra o desempenho do país diante da crise econômica mundial — varia-ção positiva de 1,9% do PIB no se-gundo trimestre de 2009 — como sinal de solidez econômica e de que o Brasil está no caminho cer-to. Diante disso, voltou à tona com força o debate sobre a necessidade de um projeto orientador do desen-volvimento brasileiro que confira ao país muito mais do que crescimento econômico, visão, aliás, predomi-nante nos debates sobre o assunto até o início dos anos 70.

Qualquer debate sobre desenvol-vimento nos dias atuais tem de tratar

gOVErNO E sOCIEdadE

P

DesenvolvimentismoTemática negligenciada a encomenda de Lula

obrigatoriamente de dimensões rele-vantes e básicas. Primeiro, a inserção internacional do país e a condução das políticas macroeconômicas, se-guido dos diversos desafios ligados às esferas da produção (primária, secundária e terciária), da inovação e competitividade das empresas e do país. Em terceiro lugar, os temas correlacionados à territorialização e à regionalização do desenvolvimento, onde ocupam espaço questões como os desequilíbrios regionais e seus impactos nos espaços urbanos e na sustentabilidade do meio ambiente, assim como a adequação da logística de base — discussões sobre matriz energética, telecomunicações, trans-portes — e infraestrutura econômica brasileira. Por último, a compreen-são de que a garantia de direitos, a promoção da proteção social e a ge-

Entre os 182 Países do mundo,

figuramos entre as 20 maiores economias, mas

ocupamos ainda o 75º lugar no

ranking do Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH)

24 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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evolução Do PiB através Dos temPos

2003-2008

8%

6%

4%

2%

0%

-2%

-4%

-6%1986-1989 1990-1992 1993-1994 1995-2002

Sarney Collor Itamar FHC Lula

Fonte: Folha de S.Paulo – Vinicius Torres Freire: Um PIB cinco estrelas na eleição? – 18/09/2009

No país, o acesso à internet ainda é baixo: 5,3 acessos

em cada 100 mil habitantes, contra uma média de 30

acessos em países europeus

Na educação, um em cada Dez jovens de 18 anos ou mais

não sabe ler nem escrever – e a média de analfaBetismo

do norDeste é o DoBro Da

nacional

ração de oportunidades de inclusão são condições necessárias a qualquer projeto nacional.

Trabalhar o desenvolvimento implica necessariamente construir um planejamento de longo prazo. E isso o Brasil tem deixado de lado, especialmente desde a crise da dí-vida externa do início dos anos 80. “O Brasil se contaminou com a ló-gica de curtíssimo prazo e relegou a um segundo plano a temática do de-senvolvimento”, avalia o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann. Esse “deixar de lado” contribuiu para certa descaracterização desta impor-tante função pública.

Porém, dada a evolução positiva que o país tem vivenciado – e apesar do arrefecimento provocado pela cri-se mundial –, estamos diante de uma boa oportunidade. Na visão do pre-sidente do Ipea, é preciso um olhar que unifique governo e sociedade. Nesse sentido, o Ipea recebeu do governo Lula – através da Secretaria Nacional de Assuntos Estratégicos (SAE), à qual o instituto é vincula-do – há cerca de dois anos a incum-bência de elaborar um plano de de-senvolvimento de médio prazo para

Márcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

o Brasil. Segundo Pochmann, o Ipea tem hoje cerca de 400 profissionais que trabalham a construção de uma agenda nacional de longo prazo.

O Brasil se contaminou com a lógica de curtíssimo prazo e relegou a um segundo plano a temática do desenvolvimento

25Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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nasciDo na DitaDura

HSob a missão de produzir, articular e disseminar conhecimento

á cerca de dois anos na atual função, Márcio Pochmam dirige uma das instituições nacionais mais im-portantes com a missão de produzir, articular e disseminar conhecimento para aperfeiçoar as políticas públicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento brasileiro. Nascido em plena Ditadura

Militar, em 1964, o Ipea completou em setembro 45 anos de existência. Nesse sentido, o instituto vem reali-zando desde 16 de setembro uma série de eventos alusivos à data, com lançamentos de livros, seminários e debates sobre o futuro do país, abordando as temáticas do planejamento e da construção de um novo pensa-mento nacional.

Cada diretoria do Ipea discute seus temas específicos em uma localidade diferente. No Nordeste, a agenda incluiu debates em Recife, Salvador e Aracaju. Segundo o Ipea, o processo deverá culminar na formulação de um documento-base que apresentará as propostas desta geração, que irão nortear a estratégia de desenvolvi-mento econômico social do Brasil para os próximos 45 anos.

Conforme consta o site do instituto, as atividades de pesquisa do Ipea “fornecem suporte técnico e ins-titucional às ações governamentais para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros”. Todo esse trabalho é posto à disposição de qualquer pessoa através de diversas e regulares publicações e seminários e, mais recentemente, via programa semanal de TV em canal fechado. Na esteira comemorativa, duas publicações importantes foram lançadas: Brasil em Desenvolvimento: Estado, Planejamento e Políticas Públicas (Série Brasil: estado de uma nação), um amplo estudo das políticas públicas brasileiras, e Da Pobreza ao Poder – Como Cidadãos Ativos e Estados Efetivos Podem Mudar o Mundo.

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o dia 16 de se-tembro, o presi-dente Lula – pri-

meiro chefe da nação a visitar a sede do instituto – participou da solenida-de de comemoração dos 45 anos do Ipea. Na oca-sião, ao discursar sobre o momento econômico do país e pedir mais pesqui-sas que contribuam para o conhecimento do país e o planejamento do futu-ro nacional, o presidente ressaltou a importância de o Ipea expandir a sua presença no território bra-sileiro, além de Brasília e Rio de Janeiro. Em entre-vista exclusiva à Nordes-te VinteUm, Márcio Po-chmann afirmou que está nos planos da instituição ter representações do Ipea em cada região do país.

O apelo do presidente Lula faz todo sentido. O Ipea é a maior instituição pública de pesquisa apli-cada das Américas, visto internacionalmente como um espaço de excelência acadêmica. Desde o nas-cedouro, teve importância fundamental na organiza-ção do planejamento du-rante as décadas de 60 e 70. A partir do Plano De-cenal de Desenvolvimento Econômico (1967-76), re-alizou trabalhos que cul-minaram com a criação de novas instituições como a Financiadora de Estu-dos e Projetos (Finep) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), assim como os estudos que estimularam a exploração agromineral

maior instituição PúBlicade pesquisa aplicada das Américas

do Centro-Oeste naquelas duas décadas.

Além de incentivar com apoio financeiro o sistema de pós-graduação nas áreas sociais e econô-mica que ainda dava os primeiros passos – Progra-ma Nacional de Pesquisa em Economia (Pnpe) e de bolsas para estudos no ex-terior –, o Ipea contribuiu para a reforma bancária e tributária do país, e até mesmo a proposição e o

empoeirados nas estantes das bibliotecas, cada vez mais somente disponíveis ao decrescente grupo mi-noritário de estudiosos e defensores do desenvolvi-mento nacional”. “A temá-tica do desenvolvimento terminou sendo transfor-mada em algo anacrônico, peça de descrédito”, as-severa ele, ao acrescentar que o quadro atingiu tam-bém o Ipea. “A maior ins-tituição do pensamento e do desenho de estratégias para o desenvolvimento nacional acusou o golpe, tendo que se acomodar ao contexto geral de restrição orçamentária, de compe-tição com outras institui-ções de pesquisas, com esvaziamento, envelheci-mento e não reposição de quadros técnicos”.

Hoje, de acordo com seu presidente, o Ipea vive outra realidade. “Somente mais recentemente o orça-mento do Ipea voltou a ser recuperado, interrompendo uma longa trajetória do seu definhamento”, conta. O instituto também celebra a realização do recente con-curso público, que permitiu o ingresso de mais de 100 novos técnicos. Da mesma forma, Pochmann comemo-ra a possibilidade de uma nova sede, o pluralismo de visões técnicas e a diversi-dade de formações acadê-micas que, alinhadas com a reorientação pela qual o instituto vem passando, vem “alargando a presença do Ipea no centro do debate nacional a respeito dos mais distintos temas”.

n

manejo público do plane-jamento e da gestão or-çamentária tornaram-se possíveis em época mais recente a partir da moder-nização que o Brasil expe-rimentou.

Entretanto, como co-loca Márcio Pochmann, os efeitos da crise da dívida externa do início dos anos 80 fez com que os projetos para o Brasil fossem sendo gradualmente postergados, “quando não acumulados e

O presidente ressaltou a importância de o Ipea expandir a sua presença no território brasileiro, além de Brasília e Rio de Janeiro

27Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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“o estaDo Brasileiro Precisa ser refunDaDo”

28Nordeste VinteUm

Novembro/Dezembro n 2009

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“o estaDo Brasileiro Precisa ser refunDaDo”

ENtrEVIsta MáRCIo PoCHMANN, PRESIDENTE Do IPEA

ma instituição prepara-da para fornecer asses-soria especializada e

direta ao governo, compatível com a necessária organização dos dissensos em torno do de-satar dos complexos nós que entravam o desenvolvimento nacional. Esse é, na ótica de Márcio Pochmann, o perfil do Ipea atualmente.

Bacharel em Ciências Eco-nômicas pela Faculdade de Ci-ências Econômicas da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Márcio Pochmann é professor da área de Economia Social e do Trabalho da Univer-sidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especia-lista em Relações de Trabalho (Universi-dade de Bologna, Itália) e em Ciências Políticas (Associação de Ensino Superior do

Distrito Federal, Brasília), é também doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Unicamp. Em seu currí-culo, constam experiências como Secretário Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo na gestão Marta Suplicy (2001 a 2004), diretor executivo no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), junto ao Instituto de Economia da Universidade Es-tadual de Campinas, de 1997

a 1998. entre os diversos livros publicados, estão Desafio da Inclusão Social no Brasil, Pa-drões de Relações de Trabalho e Sindicalismo no Brasil, Déca-da dos Mitos e A batalha pelo primeiro emprego.

Márcio Pochmann é autor de uma das mais interessan-tes análises sobre a atual crise econômica mundial. Em artigo publicado em abril deste ano, Pochmann defendia que a saída para a crise deveria ser política. “o Estado precisa ser refundado. Ele deve ser o

meio necessário para o desenvolvimento

do padrão civilizatório

contempo-râneo em

u

29Nordeste VinteUm

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Nordeste VinteUm — Quais as grandes conquistas do Ipea até hoje? E os de-safios a enfrentar de modo a atender a sua missão de contribuir rumo a um Brasil mais justo social, econômica e ambientalmente sustentável?Márcio Pochmann — O tema desenvol-vimento voltou ao centro da agenda do país. Ela pressupõe a sua própria rees-truturação, em termos de identificação dos nós e as condições necessárias para atingir o desenvolvimento. Digamos que o Ipea vem se recolocando. Tem feito três movimentos nos últimos dois anos. O primeiro diz respeito a uma reorgani-zação temática mais ampla possível para poder dar conta do que não poderia ser apenas econômico. Constituímos duas diretorias para tratar dos aspectos relacio-nados à demografia, a instituições no Bra-sil. Tratamos de um desenvolvimento em tempos democráticos e não organizado entre quatro paredes. Também constitu-ímos uma diretoria voltada para assuntos internacionais. Não é possível nos dias de hoje, pensarmos no desenvolvimento endógeno, exclusivamente nacional. In-corporamos o tema da sustentabilidade ambiental, que de certa forma emergiu muito rapidamente. Constituímos um plano de trabalho de forma coletiva, com o objetivo de ampliar áreas temáticas. Percebemos que não tínhamos quadros suficientes. Fizemos um concurso, que permitiu o ingresso de 117 colegas novos. Um desafio temático, organizado de for-ma matricial em diferentes diretorias.

NVU — E quais as etapas seguintes?MP — O segundo passo foi organizar ati-vidades cada vez mais institucionalizadas.

conformidade com as favoráveis possibilidades do século 21”, coloca. Para ele, o mundo está diante de novos e complexos desafios que exigem profundas reformas estatais. Nesse sentido, defende que três grandes eixos estruturadores do novo Estado precisam ser perseguidos com clareza e efetividade.

o primeiro, segundo o presidente do Ipea, diz respeito à constituição de novas institucionalidades na relação do Estado com o mercado. De acordo com ele, com as bases de promoção da competição enfraque-cidas pelo mercado através da monopolização, novas instituições portadoras de futuro devem ser “capazes de garantir a continuidade da inovação por meio da concorrência combinada com a cooperação entre empreendedores e da maior regulação das grandes corporações empresariais”.

“o segundo grande eixo estruturador do novo Estado deve resultar da revolução na propriedade que impulsione uma relação mais transparente, de-mocrática e justa com toda a sociedade”. Neste caso, acrescenta o economista, a ampliação do fundo público se faz necessária para sustentar o padrão ci-vilizatório do século 21, a partir da tributação sobre o excedente adicional gerado por novas fontes de riqueza, “que por serem intangíveis escapam cres-centemente das anacrônicas bases arrecadatórias vigentes na mais de 200 anos”.

Por fim, Márcio Pochmann estabelece que o terceiro eixo reside na profunda transformação do padrão de gestão pública. “Políticas cada vez mais matriciais e intersetoriais pressupõem a organização do Estado em torno do enfrentamento de problemas estruturais e conjunturais. Noutras palavras, a merito-cracia e o profissionalismo para conduzir ações públi-cas articuladas para lidar com problemas estruturais e políticas governamentais descentralizadas e com-partilhadas com a sociedade e mercado para enfren-tar diversos e específicos problemas conjunturais”.

Em entrevista exclusiva à Nordeste VinteUm a propósito dos 45 anos do Ipea, Pochmman falou sobre as conquistas e desafios do instituto – como a constru-ção de um projeto de desenvolvimento de longo pra-zo –, assim como analisou a importância do Nordeste dentro do contexto brasileiro e do papel que a região pode desempenhar na superação do subdesenvolvi-mento brasileiro. Confira a seguir os principais trechos:

Constituímos uma diretoria voltada para

assuntos internacionais. Não é possível, nos dias

de hoje, pensarmos no desenvolvimento

endógeno, exclusivamente nacional

30 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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Ou seja, o fortalecimento do Ipea junto aos gestores, formuladores de políticas públicas das esferas fede-ral, estadual e municipal, bem como no Legislativo e Judiciário. Fizemos um conjunto muito grande de con-vênios, mais de 70, para oferecer análises sistemáticas, monitoramen-to, avaliação das políticas em curso. Desde avaliação da qualidade do gasto, em que medida as políticas de fato alteram a realidade do país. Te-mos um conjunto grande de publi-cações, estudos e comunicados que estão sendo divulgados praticamen-te todos os dias, semanas e meses. Organizamos ainda redes de gestão pública do conhecimento do tema do desenvolvimento. São parcerias com centros de pós-graduação, que formam quadros, tem expertise aca-dêmica. Nos aproximamos com um programa grande de bolsas. Cons-tituímos redes com o setor produ-tivo, associações de pesquisadores nacionais e internacionais. E, agora, avançamos para representações nas principais regiões do Brasil. Quere-mos uma no Nordeste, no Norte, e no Sul, o que daria essa maior capa-cidade de compartilhar conhecimen-to, aprender e socializar. Ao mesmo tempo, também nos colocarmos em cooperação com outros países. Uma fase de internacionalização do Ipea para latinoamericanos e da África de Língua Portuguesa. O Ipea vem se fortalecendo no que tange a prepa-rar quadros do serviço público. Para protagonizar as políticas de médio e longo prazo do planejamento do de-senvolvimento brasileiro. O que nós perdemos. É uma marca muito pre-sente do regime autoritário. O Ipea deve ter o papel não de construir um pensamento único em torno do desenvolvimento, mas sim organizar os dissensos em torno do tema.

NVU — O presidente Lula solici-tou ao Ipea um plano junto com a Secretaria de Assuntos Estraté-gicos para o desenvolvimento do Brasil a médio prazo, a ser apre-sentado até o ano que vem. Como está esse plano?MP — Temos atualmente cerca de

400 pesquisadores na construção da perspectiva do desenvolvimento brasileiro, da agenda nacional de longo prazo. É uma série com dez publicações. Duas já foram consti-tuídas, a primeira tratando do que a gente chama de “nós do desenvol-vimento nacional”. Feito por cole-gas que constituem o Conselho de Orientação do Ipea, personalidades históricas. O segundo volume trata das experiências recentes em ter-mos internacionais, de alguns paí-ses que conseguiram avançar. Ago-ra, teremos então sete publicações tratando dos aspectos temáticos. Tem discussão sobre sustentabili-dade ambiental, proteção e geração de oportunidades, macroeconomia, inserção internacional, logística de base, dinâmicas regionais. Sete te-mas, sete publicações com estudos aprofundados. Com mais duas, são nove. A décima será uma síntese para esta agenda de longo prazo.

Uma demanda que o presidente nos fez, fez ao então ministro Mangabei-ra, e que certamente foi reafirmada agora com o ministro Samuel (Gui-marães, da Secretaria de Assuntos Estratégicos). Vamos disponibilizar esse material a partir do ano que vem. De certa maneira, uma contri-buição também no próprio debate eleitoral.

NVU — Como órgão que analisa políticas públicas e trabalha com a questão do desenvolvimento, o que significa dirigi-lo, num pata-mar de importância para o Brasil comparado a instituições como Bndes, CNPq e Ibge?MP — Do ponto de vista do conti-nente americano, dificilmente a gente encontra uma instituição com a especificidade que tem o Ipea. Recentemente tivemos uma missão junto ao governo angolano, estrei-tando possibilidades de cooperação e até de criar uma representação do Ipea lá. Uma das demandas do governo angolano, que vive período de crescimento econômico superior ao da China, é constituir uma ins-tituição como o Ipea. Acredito que ganhamos maior importância, não por produzir trabalhos acadêmicos, porque achamos que isso inclusive é papel das instituições de pesqui-sas acadêmicas, das universidades brasileiras. Não devemos competir neste âmbito. Devemos justamente complementar com análises aplica-das, que permitam ao gestor públi-co poder fazer escolhas. Oferecer cenários, alternativas a respeito do entendimento da realidade e de projeções caso seja tomada uma ou outra decisão. Nosso papel é o de assessorar o governo, evidentemen-te, mas também a sociedade.

NVU — O ex-ministro Mangabeira chegou a elaborar o esboço do que ficou conhecido como Proje-to Nordeste. Ele saiu, deixando a iniciativa aparentemente no éter. O projeto estaria no âmbito da Casa Civil e seria lançado ain-da este ano, pela ministra Dilma Rousseff. Nessa perspectiva, que

O Ipea vem se fortalecendo no que

tange a preparar quadros do serviço

público. Para protagonizar as

políticas de médio e longo prazo do planejamento do desenvolvimento

brasileiro

31Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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tipos de instituições deveriam ser fortalecidas ou criadas, e que outros atores devem ser incorpo-rados para dar vida a um projeto como esse? O senhor acredita nesse tipo de tentativa de cons-trução orientadora?MP — Sim, acredito. Acredito até que nós estamos tendo a possibi-lidade de transitar naquilo que de certa maneira era um dos eixos or-ganizadores da ideia do desenvolvi-mento regional. Que era reproduzir a realidade e a trajetória, evitando a região Sudeste, da industrialização. No geral, cada estado, nas mais di-ferentes regiões, tendia a procurar reproduzir o que foi São Paulo. E eu vejo que essa perspectiva está supe-rada. Precisamos ter uma visão, a partir da questão regional, e enten-dendo sua dinâmica. Isso implica não a construção, a partir de Brasí-lia, mas sobretudo um envolvimen-to com os diferentes saberes que existem nas regiões. E esses saberes possibilitam valorizar possibilida-des. Muitas vezes, elas não estão colocadas quando a perspectiva é abandonar o que existe de potencia-lizador localmente e trazer de fora aquilo que foi uma realidade para a experiência do Sudeste. Entende-mos sim, que o Brasil não terá fu-turo sem resolver regiões que ainda estão na expectativa de melhor po-tencializar as suas expertises, como é o caso do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste. São regiões que ainda não resolveram as suas espe-cificidades. Mas, não há dúvidas de que o Brasil de amanhã dependerá das saídas que essas regiões devam encontrar. E suas saídas não pode-rão depender estritamente da solu-ção. Ela pressupõe, na verdade, um amparo e uma condução comparti-lhada nacionalmente. Então, nossa preocupação em ajudar a montar essa agenda é confluir o interesse nacional com as possibilidades de potencializar as regiões.

NVU — Qual o papel que a região Nordeste pode desempenhar em um novo modelo de desenvolvi-mento para o Brasil?

MP — Acreditamos que nós temos uma via que é a de explorar o que já é conhecido. O setor primário, o secundário, da indústria, agropecu-ária. Mas, acredito que o Nordeste poderá colaborar cada vez mais com o desenvolvimento do trabalho ima-terial. Quer dizer, no setor terciário. Isso obviamente implica um grande esforço de aprofundar o ensino e a aprendizagem. O trabalho material vai depender cada vez mais de uma infraestrutura que não está associa-da ao padrão desenvolvimento que o Brasil percorreu dos anos 30 aos anos 80 do século passado. Isso significa uma valorização do povo em novas bases. Isso é plenamente possível, porque nós podemos con-

formar novas formas de trabalho. Ao mesmo tempo um padrão de bem estar social coletivo quando polí-ticas públicas são desenvolvidas e articuladas pelos governos federal, estadual e municipal. Nessa pers-pectiva, moldar o futuro da região sem desvalorizar aquilo que lhe dá sustentação, que é a enorme dis-ponibilidade de recursos humanos. Embora com a qualificação ainda contida. A região vive um momen-to talvez sem paralelo desde o iní-cio do século vinte, que é a forte contenção migratória. De maneira geral, foi uma grande região de mobilização de mão-de-obra para outras regiões. Hoje, nós percebe-mos uma inflexão no movimento migratório e até mesmo o retorno de migrantes. Então, o diferencial: é a única área territorial do Brasil que se identifica como um con-ceito. De nordestino. Porque não existe em outra região o conceito nortista, centroísta, sulista.

NVU — Já é possível avaliar com mais clareza a conjuntura nacio-nal e internacional após o ponto alto da crise econômica? O se-nhor falou que a saída seria po-lítica. Nesse sentido, qual a per-cepção sobre a postura política do governo brasileiro, e quais as perspectivas daqui em diante?MP — A crise da dívida interna, a cri-se internacional impôs uma inflexão na trajetória brasileira, que é puxa-da pelos investimentos e fortemente para o mercado interno. A crise, no último trimestre, interrompeu esse movimento, mas não representou seu fim. Estamos observando já desde a saída do primeiro trimestre deste ano, uma recuperação das de-cisões de investimento das empre-sas. Mas, isso é insuficiente para fazer com que o Brasil cresça no mesmo ritmo que vinha desde o ano passado. Agora, para 2010, possivel-mente teremos um crescimento vir-tuoso, não apenas nas decisões de gastos das empresas, mas sobretudo nos investimentos. O que não está muito claro é justamente esse cres-cimento e sua sustentação em ter-

Agora, para 2010, possivelmente

teremos um crescimento virtuoso,

não apenas nas decisões de gastos das empresas, mas

sobretudo nos investimentos. O

que não está muito claro é justamente esse crescimento e sua sustentação em termos ambientais

32 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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mos ambientais. Uma problemática não apenas brasileira. A perspectiva desse crescimento nos coloca dian-te de decisões importantes no que diz respeito ao território internacio-nal. Se o Brasil continuará um país cuja população se concentra funda-mentalmente na parte litorânea ou avançará para o fortalecimento das cidades médias e pequenas, que dependem basicamente de infra-estrutura, mas também de serviços modernos. Isso é que vai permitir o fluxo de mão-de-obra mais qua-lificada, de médicos, entre outros profissionais, elevando o padrão de bem estar que se tem nas regiões metropolitanas. O crescimento eco-nômico é a válvula necessária para o país poder andar, mas exige, e isso depende da própria democracia, da capacidade de organização da socie-dade, de decidir qual o perfil desse crescimento. De que maneira ele seja mais includente e menos de-pendente do exterior.

NVU — No contexto de crise, ga-nhou força a interpretação de que o Nordeste foi bem menos afetado devido à sua condição de subdesenvolvimento e da for-ça da presença estatal na região. Diante do atual cenário de obras estruturantes que podem trans-formar completamente o perfil da região, e dessa necessidade de se fortalecer o ensino, como o senhor avalia a região nesse con-texto?MP — A região Nordeste está sub-metida a um pacote de investimen-tos significativos, que não apenas

remodelam sua infraestrutura fí-sica, mas também sustentam uma característica de crescimento em base industrial avançada. Agora, há dificuldades, pela herança que te-mos, do ponto de vista da brutal de-sigualdade e exclusão que marcam a trajetória do país, das exigências de se organizar e construir um amparo em políticas públicas frente à emer-gência colocada pelo crescimento. O Estado precisaria ser refunda-do, pois a forma de atuação ainda remonta ao século XX. Olhamos os problemas tão somente do ponto de vista setorial. Os problemas hoje são cada vez mais totalizantes. Não é um problema só na Saúde, quando ela está vinculada à Educação, que está vinculado ao trabalho, que está vinculado ao transporte. Portanto, essa emergência de investimentos que protagonizem um padrão de políticas públicas que concebem a totalidade é algo que mereceria um apoio da classe política e também da sociedade. Do movimento social organizado. Porque a reprodução do passado não nos é suficiente para dar conta da complexidade coloca-da hoje em todo o país, sobretudo na região Nordeste.

NVU — O Ipea se caracteriza pela postura de certa independência em relação aos governos. Como o senhor avalia seu comportamen-to hoje, em relação ao governo Lula? Dá para fazer um trabalho técnico-científico livre de inter-ferências políticas? Como o Ipea lida com isso?MP — Optamos por um tripé de

posicionamento. Primeiro, no que tange à defesa do pluralismo de agendas, de visões. De tal for-ma que garantíssemos, através do contraditório, do debate, a maior conquista em termos de produção e difusão do conhecimento. O se-gundo pressuposto é o cosmopoli-tismo, quer dizer, a possibilidade de termos um intercâmbio crescente com colegas, pesquisadores, inves-tigadores, estudiosos, gente de ins-tituições nacionais e internacionais. No mundo de hoje, a endogenia não nos é saudável. Com a possibilida-de desse intercâmbio, criamos um programa de bolsas de grande ex-pressão. E o terceiro pressuposto é a garantia da democracia dentro da instituição. Uma democracia, evi-dentemente, responsável. Cada um faz o que quer, mas toma uma deci-são de forma coletiva. Dentro de um plano estratégico de longo prazo. A instituição passou a ter um plano de trabalho anualmente. É organizado e planejado no último trimestre e apresentado no ano subseqüente. A partir desse plano, passamos a ter metas institucionais publicadas no Diário Oficial. Garantimos a demo-cracia e a transparência do uso de recursos e do que se faz no âmbito do Ipea. O nosso sítio coloca todas as publicações, que podem ser bai-xadas gratuitamente.

Samuel Guimarães é um quadro de excelência nacional, referência internacional. É alguém que pode ser considerado um patrono do tema de relações internacionais, um homem

público com serviços prestados, muito valorizados interna e externamente

Márcio Pochmann

33Nordeste VinteUm

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NVU – O ministro Samuel Gui-marães falou em sua posse que queria ver o Ipea plane-jando o Brasil, um envolvi-mento do instituto em proje-tos de até doze anos para a frente. Quais as suas expecta-tivas em relação ao Ipea dian-te desse discurso e quanto à condução da pasta?MP — As expectativas são bas-tante alvissareiras, porque, a exemplo do ministro Manga-beira, Samuel Guimarães é um quadro de excelência nacional, referência internacional. É al-guém que pode ser considerado um patrono do tema de relações internacionais, um homem pú-blico com serviços prestados,

econômico, social, cultural, ambiental, para que se possa construir democracia plena com sustentabilidade? É pos-sível listar esses desafios de maneira resumida, sem ser simplista?MP – Temos duas questões que nos levam a avaliar as decisões em relação a uma perspectiva do futuro. A primeira são as mu-danças demográficas do Brasil. Muito rápidas que alteram a própria expansão populacional. Vamos entrar numa quadra de redução da população brasileira depois de 2030, que está muito próximo. Isso implica o envelhe-cimento da população. Precisa-mos repensar as políticas que

uma estrutura mais compatível com a sociedade que temos.

NVU — Como os parlamenta-res e governadores nordesti-nos podem contribuir para um repensar de um modelo de de-senvolvimento, incorporando o Nordeste como uma variável positiva, como solução, e não um problema? De que forma o senhor encara o preparo dessas pessoas para discu-tir desenvolvimento? É uma temática ainda muito distan-te em função dos interesses imediatos?MP — Não tenho dúvidas. Fi-camos mais de duas décadas submetidos à pressão do curto-

muito valorizados interna e ex-ternamente. Ajudou a conduzir a reorientação do Ministério das Relações Exteriores, cujos resultados são muito evidentes. Entendemos que a vinda dele fortalece ainda mais a própria agenda que o ministro Manga-beira constituiu. Uma agenda de levar ao Ipea um esforço gigan-tesco de oferecer à sociedade uma visão de mais longo prazo, a ser discutida, compartilhada com os brasileiros.

NVU — Quais seriam os dile-mas, gargalos que precisam ser superados, nos campos

não são mais apenas para crian-ças e jovens, mas para segmen-tos mais envelhecidos. Precisa-mos considerar as mudanças da população, sua ressocialização no espaço nacional. Um país continental com uma popula-ção relativamente pequena. Se-gundo: questão da refundação do Estado brasileiro. Achamos que o Estado que temos hoje não está à altura do desafio de construção da sociedade pós-industrial, para onde estamos caminhando. Precisamos de um estado de ação matricial que reinvente a competição no mer-cado, que ajude a reorganizar

prazismo. É da mão para a boca, digamos assim. Só muito recente-mente nós voltamos a começar a sonhar com o longo prazo. Agora, esse sonho precisa se tornar uma realidade quando há elemen-tos que tornam presente aquilo que está muito longe do futuro. Significa levar a sociedade a ter que decidir quais os caminhos. É um desafio a contar com a inte-ligência brasileira, os diferentes saberes. Não apenas o acadêmi-co, mas também na instituição patronal, de trabalhadores, nas associações de bairros, na comu-nidade. Tem saberes que não po-dem ser negligenciados.

34 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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Software inteligente reduz gastos com telecomunicações

Caderno especial

tecnologia antiapagão e modernização Judiciária

ma tecnologia de proteção à trans-missão de energia

elétrica gerada pelo Instituto Federal de Educação (Ifce) serve de exemplo para o país como prevenção à ocorrên-cia de apagões. A Chesf, par-ceira do projeto de pesquisa e desenvolvimento do Cpqt, já encomendou o protótipo para a produção em escala industrial – primeiro passo para a adoção da tecnologia em âmbito nacional, tema de reportagem nesta edição.

Outro texto aborda o projeto de modernização do Tribunal de Justiça do Cea-rá, (TJ-DE) que investe em tecnologia da informação e virtualização com objetivo de agilizar e dar maior qua-lidade aos serviços jurisdi-cionais. Um Judiciário forte é requisito para o fortaleci-mento da democracia, como destacou o coordenador da bancada federal do Ceará, José Guimarães (PT), ao co-nhecer o projeto. A implan-tação da proposta inovado-ra terá positiva influência sobre a economia e toda a sociedade cearense.

A edição mostra tam-bém a força da inteligência da mulher cearense que é destaque no Instituto Atlân-tico. A conquista do certifica-do CMMI5 dá cores mais for-tes à presença do Ceará no mapa mundial da qualidade na produção de soluções da tecnologia da informação e telecomunicações.

Carta do Editor

03

12

Nov/Dez de 2009

Chesf investe em tecnologia do Ifce para

evitar apagões no Nordeste

Sebrae registra casos de sucesso das incubadoras

02

Liderança feminina nacertificação internacional

do Instituto Atlântico08

U

Gabriela Telles. Gerente Técnica do Instituto Atlântico

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tome scientia!

Bahia e pernamBuco, únicos do nordeste no mapa de inovação ibge

software compara contas e reduz gastos com telecomunicações

finep: 35,65% das empresas do Brasil são inovadoras

mercado de ti no ceará atrai empresa de Brasília

No Ceará, a Pintec foi iniciada em agosto de 2009, em todo o Estado, e será concluída no final de janeiro de 2010. A informação é da coordena-dora local do estudo, Daniele Viana. Nas empresas com mais de 500 funcionários, a entrevista da pesquisa

é realizada de modo presencial. Nas empresas com menos de 500 colabo-radores, escolhidas por amostragem, a entrevista é feita por telefone. A Pintec cobre indústrias, empresas de informá-tica e telecomunicações. No Ceará, é realizada apenas com indústrias.

informática e telecomunicações do ceará ficam fora da pintec

Um software faz a gestão inteligente dos recursos de tele-comunicações da empresa. Mede o consumo e confronta os valores com as contas das operadoras, para derrubar os gastos. Essa é a função principal da solução CPqD Gestão de Recursos de Telecomuni-cações, desenvolvida pelo CPqD, de Campinas-SP, parceiro do Instituto Atlântico. O programa possui um tarifador convergente, similar ao uti-lizado pelas operadoras, que per-mite conferir as faturas levando em conta as cláusulas de descontos e benefícios tarifários estabelecidos nos contratos. Com a organização e o gerenciamento eficiente de seus recursos – não só de telefonia fixa, mas também de celular, linhas VoIP, de transmissão de dados, etc. –, a empresa pode obter resultados surpreendentes em pouco tempo. Foi o que ocorreu com a empresa Suzano Papel e Celulose, de São Paulo, que reduziu em até 40% seus gastos anuais com Telecom. O Banco do Brasil adotou a solução do CPqD em 2004; em apenas quatro meses de utilização, econo-mizou R$ 15 milhões em despesas de telefonia.

A Pintec 2005 contabiliza 34.983 empresas inovadoras e os investimentos com inovação representam 2,8% da receita líquida das indústrias no Brasil. De acordo com reportagem da re-vista Inovação, da Finep, 35,62% das empresas no Brasil são inovadoras. O resultado da nova Pintec sai em julho de 2010. Leia mais em: www.pintec.ibge.gov.br.

Depois de estudar os mercados de Recife e Salvador, a empresa SW/ti, de Brasília, optou por instalar escritório em Fortaleza. É especializada em se-gurança da informação, armazenamento de dados, gerenciamento de redes, telefonia IP e disponibilidade com melhoria de desempenho. A apresentação da companhia ao mercado cearense foi feita em jantar da Sociedade de Usu-ários de Informática e Telecomunicações (Sucesu) com palestra deste repórter sobre o tema “Imprensa e Tecnologia da Informação”. Diretor da empresa, Marcos Santos fez a saudação aos convidados e apresentou o gerente local, Luiz Eduardo Junqueira.

[email protected]

Por Flamínio Araripe

Únicos estados no Nordeste com Produto Interno Bruto (PIB) acima de 1% do na-cional, Ceará, Bahia e Pernambuco foram incluídos na Pesquisa de Inovação Tecnológi-ca (Pintec) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge) em 2009. Os estados do Sul e Sudeste, além de Goiás e o Distrito Federal compreendem o uni-verso com cerca de 16 mil empresas. Esta é a quarta edição da Pintec, que é bianual, mas demorou três anos por atraso no repasse de recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

2 ciência &TecnoloGia /nov/dez de 2009nordeste vinteUm

Inclusão digital sobre rodas. É o que faz o Laboratório Móvel de Informática do Instituto Federal de Educação (Ifce), um ônibus com 10 computadores e equipamentos de multimídia como LCD/Telão. Os cursos de informática básica são ministrados por alunos do Ifce sob a supervisão de um professor da instituição. Este ano atende a popu-

lações carentes da Região Metropolita-na de Fortaleza em um projeto de capa-citação executado pelo Ifce em parceria com a Secretaria de Trabalho e Desen-volvimento Social do Estado (Stds).

ifce ensina informática Básica sobre rodas

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inovação

ma tecnologia desenvolvida no Ce-ará vai ser implantada na rede de energia elétrica da Com-panhia Hidro elétrica Vale

do São Francisco (Chesf) para prever falhas no sistema e evitar apagões. Denominada “Rede de Sensores Sem Fio” (Rssf) para detecção de fuga a ter-ra nos circuitos de corrente contínua de subestações e usinas, a inovação foi gerada em pesquisa e desenvolvimento (P&D) do Centro de Pesquisa e Qualifica-ção Tecnológica (Cpqt) do Instituto Federal de Educação (Ifce), em parceria com a Chesf e Agência Nacional de Energia Elétrica (Ane-el).

A tese de mestrado em Computação Profissional Aplicada, de Reginaldo Bezerra

Leitão, técnico da Chesf em Fortaleza e gerente do projeto aprovado pela Aneel, gerou o

U

s procedimentos para detecção de problemas deste tipo são considerados de alto risco. As intervenções em sistemas de proteção e automação envolvem a integração de todos

os circuitos de manobra de equipamentos e subsistemas presentes dentro da instalação sem a possibilidade de iso-lamento ou bloqueio das suas funções. “Como os circuitos contínuos são segmentados em diversos ramais, se ocorre este problema em um, os demais são afetados pelo mesmo fato”, explica Reginaldo Leitão.

Para o monitoramento e detecção do evento de fuga à terra é usada a tecnologia de Rssf em intervenções corretivas otimizadas. “Sem a necessidade de recorrer à busca conven-cional aleatória, o foco é centrado em ações corretivas otimi-zadas na área afetada pela anormalidade. A rede autônoma de sensores sem fio deve proporcionar o monitoramento em tempo real de todas as cargas do sistema auxiliar de corren-te contínua. Deve ser totalmente portável para o sistema de monitoramento já existente da Chesf, além de oferecer baixo custo para a viabilidade do projeto”, afirma o pesquisador.

OSAÍDA PARA ALTO RISCO DE AÇÕES RASTREADORAS E CORRETIVAS

TECnOLOgIA DO CPQT uSADA nAChESf PARA EVITAR APAgÃO

estudo do protótipo que já tem garantidos R$ 300 mil de investimento para ser desenvol-

vido em escala industrial.O projeto com duração de dois anos

deverá estar concluído no início de 2010 com a preservação do conheci-mento assegurada por pedido de pa-tente, informa Reginaldo Leitão. O es-tudo percorreu as etapas de P&D e já

está na fase de testes e protótipo. “Das falhas que ocorrem no sistema elétrico,

cerca de 45% são causadas por problemas associados a fuga à terra”, observa o pesqui-sador.

A tecnologia de Rssf faz a identificação de falha causada por fugas à terra e o monitora-mento em tempo real da rede de energia.

Reginaldo Leitão gerencia o projeto de pesquisa das Redes Sem Fio do Ifce para a Chesf

3 nov/dez de 2009 / ciência &TecnoloGianordeste vinteUm

Projeto vai entrar na linha de produção em série para ser aplicado em toda a rede da companhia já com a perspectiva de abranger o sistema elétrico nacional. A rede será capaz de fazer monitoramento e detectar falhas em tempo real

REDE DE SENSORES SEM FIO

integração eletroenergética

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inovação

DImEnSÕES E hETEROgEnEIDADE DAS REDES ORIgInARAm PRObLEmAS

DESLIGAMENTOS

s sistemas elétricos de potência estão na base de todo o desenvolvimento das sociedades modernas. Sua função bá-sica é o atendimento da demanda de

energia dos consumidores da maneira mais econô-mica possível, dentro de padrões de continuidade e qualidade contratados. Porém, com os avanços tecnológicos e econômicos, esses sistemas foram ampliados para se adequarem ao atendimento das demandas de produtores e consumidores.

Surgiu, assim, uma grande rede de interliga-ções complexas que chega a ter dimensões nacio-nais e continentais, composta de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações. A maioria das instalações de potência possui um parque bastante heterogêneo de relés de proteção e dispositivos de controle, comando e regulação, que para se man-terem ligados ininterruptamente utilizam fontes de corrente contínua de energia em forma de banco de baterias. Contudo, problemas podem ocorrer nes-tes sistemas de alimentação, a exemplo da fuga à terra em potenciais sistemas de corrente contínua.

O

AnEEL E ChESf: PATROCÍnIODE SOLuÇÕES CIEnTÍfICAS

utros dois trabalhos de P&D estão sen-do desenvolvidos no Ifce / Cpqt em parceria com a Chesf e Aneel. O “de-tector de fuga à terra em instalações

elétricas de potência utilizando Rssf”, já está em fase conclusiva e tem cinco protótipos instalados na subestação de Fortaleza da Chesf, inclusive com a aprovação para elaboração de um “cabe-ça de série”, início de produção industrial, pela Chesf/Aneel.

O outro projeto que também tem Reginaldo Leitão como gestor é o “Sistema de Rastreabilida-de de Funções Lógicas em Relés Digitais”, ora em fase de estudos e de consolidação do modelo abor-

dado. A participação do autor em ambos trabalhos vai desde a criação da ideia, na defesa da proposta junto aos órgãos patrocinadores (Chesf/Aneel), na participação efetiva do desenvolvimento acadêmi-co, até a busca de soluções científicas ao lado de pesquisadores da equipe e a gestão técnico-finan-ceira para viabilizar os empreendimentos.

Para Reginaldo Leitão, a P&D com inovação é uma forma de estimular a aproximação da ciência presente nas academias e centros de pesquisa com a tecnologia instalada nas indústrias e ou-tros locais afins. “Busco juntar esforços, fazendo parcerias e contatos, neste sentido, para a melho-ria do conhecimento no Ceará”, afirma.

O

O QuE é fugA À TERRAFuga à terra em potenciais de

controle de sistemas de corrente contínua — explica Reginaldo Leitão — é caracterizada como um desequilíbrio entre resistências das barras positiva e negativa, provocado pelo surgimento de cargas não previstas entre estas barras e a terra. Podem surgir de diversas formas, como a degradação natural dos equipamentos elétricos ou de forma acidental, através de conexões mal elaboradas por erro de projeto. As consequências deste tipo de fuga à terra são os disparos incorretos de relé digitais rápidos e sensíveis, introduzindo risco de desligamentos indevidos em subestações e usinas, que podem ser graves para todo o sistema elétrico interligado.

4 ciência &TecnoloGia /nov/dez de 2009nordeste vinteUm

P&D

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capacitação

EnSInO A DISTÂnCIA VAI ATEnDER POPuLAÇÃO CARCERÁRIA DO CEARÁ

ara começar de imediato os cursos, o secretá-rio da Justiça e Cidadania, Marcos Cals, indi-cou as duas Casas de Privação Provisória de Liberdade localizadas no município de Itaitin-

ga, a 25 quilômetros de Fortaleza. As duas unidades são monitoradas da sua sala pela internet, cada uma com ca-pacidade para 952 presos. Também foi dada prioridade à escola penitenciária montada na secretaria, para a realiza-ção de cursos para os servidores do órgão, que irá indicar os conteúdos de interesse.

“No local, será instalado um polo presencial”, informa o reitor do Ifce, Cláudio Ricardo Gomes de Lima, que parti-cipou da reunião com Cals e o deputado para discussão do projeto. Pesquisa de Elionaldo Julião, da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro (Ufrj, apontou uma ociosidade de 76% dos presidiários no Brasil. No Ceará, segundo cita, apenas 2,75% da população penitenciária trabalha.

P

As 14 grandes prisões de Ceará, com cerca de seis mil detentos, vão ser dotadas de salas de videoconferência para ensino a distância pela internet. A programação dos cursos está sendo montada pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifce) para a Secretaria da Justiça e Cidadania do Ceará (Sejus). A proposta foi formulada pelo deputado Ariosto Holanda (PSB-CE) e incluída no projeto de Modernização do TJ-CE, apresentado à bancada federal para emenda ao Orçamento da União

PROPOSTAS

riosto Holanda informa que o projeto de insta-lação de salas de videoconferência nas peni-tenciárias do Ceará atende também a interesse do presidente do Tribunal de Justiça do Ceará,

Ernani Barreira, que pretende evitar deslocamento de presos com audiência a distância prevista por lei.

Em visita às instalações da Sejus, Ariosto Holanda propôs a implantação de um Centro de Inclusão Digital (CID) no auditório da secretaria, a ser dotado de sala multimeios com videocon-ferência com link para o Ifce , espaço para biblioteca e sala de informática com 12 computadores conectados à internet. Foi decidida também a implantação de um Centro Vocacional Tec-nológico na sede do antigo Ippo, na avenida Expedicionários, em Fortaleza, para atender os presos do regime semiaberto.

AVIDEOCOnfERênCIAS, CEnTROS DE InCLuSÃO DIgITAL E TECnOLógICOS PARA A SEjuS

O reitor Cláudio Ricardo diz que o Ifce ministra cursos de graduação a distância pela Universidade Aberta do Brasil (UAB) do Ministério da Educação, e também oferta cursos técnicos por meio da Escola Técnica Aberta do Brasil (E-Tec). O Ifce desenvolve plataforma para educação a distância, realiza pesquisas na área e irá formatar uma proposta pedagógica de cursos de diferentes níveis para a Secreta-ria da Justiça e Cidadania. A proposta incluirá cursos profissionais de formação inicial e con-tinuada de 120 a 160 horas, cursos de nível técnico, graduação e até pós-graduação.

IFCE DESENVOLVE PLATAFORMAS, PESQUISAS E CURSOS

O QuE é fugA À TERRA

5 nov/dez de 2009 / ciência &TecnoloGianordeste vinteUm

Marcos Cals discute proposta de Ariosto Holanda com Cláudio Ricardo e Leandro Vasques

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CuRSOS “PROnTA-EnTREgA” PARA CAPACITAÇÃO

TRIbunAL DE juSTIÇA DO CEARÁ QuER A mAIOR VIRTuALIzAÇÃO DAS AméRICAS

capacitação

secretário de Justiça, Marcos Cals, demonstrou interesse em cursos “pronta-entrega”. O Ifce ofereceu cursos prontos nas áreas de segu-

rança do trabalho, informática com ênfase no desenvolvimento de softwares, edificações e eletrotécnica, cujos conteúdos estão disponí-veis com material impresso, apoio de internet, CD-Rom e videoconferência.

Na área dos cursos de educação inicial e continuada, foram mencionados os módulos de saúde pública, hotelaria, línguas (inglês e

espanhol); na graduação, curso de segurança e justiça e especializações: educação para a diversidade, jovens e adultos na diversidade e práticas leitoras, ler e escrever.

No encontro, ficou acertado que as ne-cessidades de capacitação da Sejus serão apresentadas, assim como o Ifce irá formu-lar a sua oferta. “Nas áreas de interesse da Sejus que o Ifce ainda não tem conteúdo pronto, o instituto irá formatar proposta de cursos novos para atender a demanda”, dis-se Cláudio Ricardo.

O

O deputado Ariosto Ho-landa propôs convidar o secretário de Nacional de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia, Augusto Gade-lha, — ele trata dos fundos setoriais que, por lei, não podem ser contingenciados —, para conhecer o projeto do Tribunal de Justiça do Ceará. “Tenho certeza de que a bancada vai fechar com este projeto”, adian-tou o parlamentar, ao pedir um cronograma das etapas sequenciais da implanta-ção da proposta.

6 ciência &TecnoloGia /nov/dez de 2009nordeste vinteUm

INFORMATIzAçãO PROCESSUAL

Corte quer avançar na substituição da burocra-cia dos papéis pela agilidade informatizada na tramitação dos processos. É o que pretende com o projeto Inovação e Modernização do Poder Ju-

diciário do Ceará, apresentado este mês a parlamentares da bancada federal do Estado, com vistas à captação de recursos de emendas. “Com este projeto, o TJ Ceará vai ser o primeiro absolutamente virtualizado nas Américas”, disse o desembar-gador Ernani Barreira, presidente do Judiciário cearense.

A falta de transparência, a morosidade e falta de previ-sibilidade nas decisões, para o presidente do TJ, são proble-mas que estarão resolvidos com a implantação do projeto que possibilitará canais de fiscalização das partes e rapidez

A

na tramitação dos processos.Casos que duram três anos não devem durar

mais que seis meses, assinala Barreira ao anunciar que o projeto irá introduzir regras básicas nos proces-sos. Segundo o desembargador, com um simples to-que no computador, uma parte vai ter a noção exata de quem é o responsável pela morosidade e, assim, poder cobrar.

Participaram da reunião com os desembarga-dores os deputados José Guimarães (PT), líder da bancada no Congresso Nacional, José Arnon, Ariosto Holanda, José Airton, Eugênio Rabelo e Paulo Hen-rique Lustosa. Ao reconhecer que a Justiça precisa se modernizar, Guimarães entende que é chegada a hora de dar a merecida atenção especial a esse projeto. “Não tem estado de direito sem uma Justiça forte”. O coordenador solicitou a indicação de um interlocutor do TJ com a bancada para adequar o projeto ao formato de emendas.

Conforme a apresentação técnica, a proposta foi orçada em cerca de R$ 75 milhões. Existem no Judiciário 890 mil processos em andamento para serem digitalizados, 373 unidades jurisdicionais do primeiro grau instaladas nos 184 municípios e 33 unidades jurisdicionais do segundo grau na capital a serem virtualizadas.

Bancada federal assiste a apresentação de como funciona a Justiça Virtualizada

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virtualização do Judiciário

PRInCIPAIS mETAS DO PROjETO DE mODERnIzAÇÃO

99 Informatizar a prestação de serviços jurisdicionais e administrativos;

Gestão de risco e segurança da 99informação;

Investimento na adequação da 99infraestrutura física do Judiciário, e sobretudo nas áreas de tecnologia da informação e de telecomunicação.

Integração do Tribunal de 99Justiça na Gigafor — Redes Comunitárias de Educação e Pesquisa da Região Metropolitana de Fortaleza — e, em seguida, ao Cinturão Digital do Ceará, a infraestrutura de fibra óptica que está sendo implantada pelo governo cearense em todo o interior, prevista para ser entregue em maio de 2010;

Integração à Secretaria da 99Fazenda, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Finanças de Fortaleza, Procuradoria Geral do Município e Varas de Execuções Fiscais para maior agilidade no recebimento de recursos a que o Estado tem direito;

Implantação das tecnologias de 99videoconferência, educação e audiência à distância em presídios, controle da progressão penal, correio eletrônico corporativo, o Serviço de Mensageiria Judicial (SMS), gravação de audiências (voz e imagem), degravação assistida por computador e certificação digital para magistrados e servidores.

a reunião com a bancada federal, foi mos-trado o vídeo de como funciona a Justiça Virtualizada, uma prestação de serviços jurisdicionais célere, absolutamente sem

papel. A primeira etapa visa a informatização da comarca de Fortaleza e das quatro principais comarcas do interior, no prazo de 10 meses e um ano e meio, no máximo, para as demais do interior. “Temos a tecnologia, e estamos aperfeiçoados, corrigindo os equívocos das experiências anteriores de outros tribunais”, afirmou o secretário de Tecnologia da Informa-ção do TJ, José Montenegro.

No aspecto dos custos, Montenegro observou que com a celeridade nas decisões haverá resultados que tor-nam o projeto de modernização totalmente sustentável. A primei-ra etapa da implantação, a ser realizada em quatro meses, prevê a definição de como os processos tramitarão com a virtualização. Em paralelo, é encaminhada a parte de in-fraestrutura do projeto.

A segurança da infor-mação é um ponto importante no pro-jeto. Foram espe-cificados projetos para gover-nança, gerenciamento de risco e conformidade da TI, ambiente, processos e pessoas; gestão da infraestrutura computacional, gestão de acesso a internet (web), segurança corporativa, antivírus e servidor de arquivos corporativo criptografado. O up grade na infraestrutura exigirá também espaço físico da infor-mática, novo datacenter para o Tribunal, datacenter para o Fórum da capital e melho-rias na rede de energia, de dados e de telefonia em ambos os prédios.

N

SEguRANçA E SuSTENTABIlIDADE

EQuÍVOCOS DE OuTROS TRIbunAIS SERVEm PARA APERfEIÇOAR mODELO

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nov/dez de 2009 / ciência &TecnoloGia

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ois anos de dedicação in-tegral e apelos inusitados aos colegas do ambiente de trabalho. Coisas como

pedir às pessoas que comandavam equipes para não brigarem com o ma-rido ou esposa nem ficar doente. Tudo em nome do exclusivo foco no traba-lho, do cumprimento das etapas do processo e atendimento aos prazos. Ao receber o anúncio oficial do certifi-cado, Gabriela confessou que foi aten-dida em suas invocações.

Na conquista do certificado CMMI5 — ostentado por apenas seis empresas no Bra-sil — o Instituto Atlântico investiu R$ 2 milhões, além de

R$ 1 milhão na conquista do CMMI 2 em 2005 e do Nível 3 em 2006, que também tiveram a participação de Ga-briela Telles.

Após concluir o curso na UFC, a hoje executiva teve uma experiência de trabalho internacional em 2000 e 2002 em Portugal, quando soube da instalação do Instituto Atlântico em Fortaleza, no ano de 2001, o que pos-sibilitou a sua volta ao Brasil com o marido, Carlo Giovano, hoje colega na mesma empresa. Entre 2004 e 2006, Gabriela Telles concluiu mestrado em

Ciência da Computação na Unifor.Como líder da preparação do Atlântico em todo

D

LIDERAnÇA fEmInInA nA COnQuISTA DECERTIfICADO PARA InSTITuTO ATLÂnTICO

CMMI5 É DO CEARá

Ocupação de cargos de liderança na área de tecnologia do Ceará era assunto tabu até pouco tempo, resvalando em questões de gênero. Uma espécie de “clube do Bolinha” ou área privativa de homens já se impunha quando um exemplo de destaque na área foi dado pela gerente técnica do Instituto Atlântico, Gabriela Telles. Cearense formada em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Ceará (1993-1997), ela liderou quase 200 pessoas da instituição, uma sociedade civil sem fins lucrativos — na conquista do nível máximo da certificação de desenvolvimento de software, a mais importante do mercado internacional, o CMMI5 (Capability Maturity Model Integration).

Empresas com certificado CMMI5 no Brasil• Instituto Atlântico (Ceará)• Accenture Brazil (São Paulo)• Ci&T Software S.A (São Paulo)• CPM Braxis (Bahia)• EDS (São Paulo)• Unisys Brazil Solution Center (Minas Gerais)

ti com qualidade

Predomínio feminino na gestão da qualidade (CMMI5) no Atlântico (da esquerda para a direita): Joice Barbosa, Luciana Trindade, Gabriela Telles, Carla Ilane, Walter Costenaro, Paula Luciana, Thais Araújo

8 ciência &TecnoloGia /nov/dez de 2009nordeste vinteUm

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avaliação de qualidade foi feita pela em-presa ISD (Integrated System Diagnostics Brasil S/C Ltda), consultoria internacional com foco exclusivo em qualidade de pro-

cessos, e publicada no site da empresa. Uma placa alusiva ao reconhecimento foi entregue em outubro pela consultora da ISD, Cláudia Mendonça Camargo, que acompanhou todo o processo de preparação do Atlântico desde o CMMI nível 2 até o CMMI5.

“O CMMI5 é um diferencial nacional e interna-cional. Pouquíssimas empresas no Brasil têm este

A

ISD

COnSuLTORIA InTERnACIOnAL ATESTA mELhORIA nA QuALIDADE DE PROCESSOS

ti com qualidade

Cláudia Mendonça Camargo entrega a placa alusiva ao reconhecimento ao superintendente do Atlântico, José Eduardo Martins

o processo de reconhecimento do seu nível de ma-turidade e qualificação no desenvolvimento de sof-tware, Gabriela está sendo requisitada para pales-tras sobre a experiência. Já fez uma apresentação para executivos em São Paulo e outra em Curitiba para um grande banco multinacional. De 22 a 25 de março, em Savannah, na Georgia (EUA), apresenta o artigo Agile with High Maturity Levels: An innovation approach. (Agilidade com Altos Níveis de Maturidade: Uma abordagem inovadora) que aprovou e publicou no congresso anual de engenharia de software, SEPG North America 2010.

gabriella Teles diz que no CMMI Nível 3 foram defini-dos e estabelecidos os processos. Agora, com o nível 5, os processos serão continuamente melhorados. O con-trole estatístico é um pré-requisito para essa melhoria.

Seis mulheres e um homem integraram a equipe do Atlântico na conquista do CMMI5: Paula Luciana, Lu-ciana Trindade, Gabriela Telles, Carla Ilane, Walter Cos-tenaro, Joice Barbosa e Thais Araújo. O presidente do Instituto Atlântico, Cláudio Violato, e o superintendente José Eduardo Martins confiaram a missão a esta equi-pe, e contam com uma outra mulher no quadro geren-cial, Vitória Damasceno Matos, gerente técnica.

nível de qualidade, um conjunto de melhores prá-ticas utilizadas pela organização para levar seus projetos adiante”, disse a consultora ao entregar a placa ao superintendente do Atlântico, José Eduardo Martins. “A organização demonstra um compromisso claro para melhoria de processos”, afirmou Joseph Morin, líder da ISD, que conduziu a avaliação.

O que move o Atlântico no processo da obten-ção do CMMI5 é, segundo Martins, o sentimento de que a organização precisa ter qualidade de pro-cessos, condições de previsibilidade em termos de prazo, de custo e de volume de trabalho a ser fei-to para que consiga satisfazer o cliente. “Estamos sempre melhorando para atender as exigências do mercado cada vez mais competitivo. Com o CMMI5, temos condições de comprovar que realmente me-lhoramos, medir a melhoria e poder dizer que esta-mos em um outro nível de excelência em termos de controle de processos”, assinala.

José Eduardo observou que para um processo longo teve de ser feito um planejamento detalhado passo a passo até chegar ao CMMI5. “O grande mé-rito do CMMI5 é envolver toda a organização; não se aplica a um só setor, mas a todos. Isso exige um trabalho de motivação, de trazer todas as pessoas, principalmente as que estão liderando o processo”, disse, ao lembrar que o trabalho de qualidade está voltado para o mercado interno e externo.

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mATuRIDADE, ExPAnSÃO E APOSTA nOS TALEnTOS LOCAIS

ti com qualidade

OITO ANOS

A CONQUISTA DO CMMI5 EXIGIU DEDICAÇÃO, MASTAMBÉM INVESTIMENTO DE MAIS DE R$ 3 MILHÕES.

As MULHERES compõem 29% DO CORPO FUNCIONAL DO ATLÂNTICO, conforme levantamento do GUIA VOCÊ S/A EXAME que, em 2009, incluiu a instituição NA LISTA DE 150 MELHORES EMPRESAS PARA VOCÊ TRABALHAR.

Conforme a avaliação, ali o ÍNDICE DE FELICIDADE NO TRABALHO É DE 77,9% (NOTA FINAL) E 89,4% DOS 113 FUNCIONÁRIOS REGISTRADOS SE IDENTIFICAM COM A EMPRESA.

A APROVAÇÃO DOS LÍDERES FICOU EM 86,8%. Outro indicador: 80,6% dos funcionários declararam acreditar que têm desenvolvimento na instituição que aprovou plano de cargos e carreira.

Instituto Atlântico atua no Cea-rá há oito anos. Hoje, vive um momento de estabilidade na trajetória de crescimento ins-

titucional. O início foi caracterizado pelos acordos e apoios recebidos do Governo do Estado, que viabilizaram a ideia com a participação decisiva do CPqD (Centro Na-cional de Pesquisas e Telecomunicações) para trazer a instituição à Fortaleza. “Nos primeiros anos não sabíamos do celeiro de talentos que o Ceará e Fortaleza têm. Apostamos muito nos talentos locais”, re-lata o superintendente.

A conquista do CMMI5 dá a certeza e a segurança de que o Atlântico consolidou uma base forte formada para propiciar os no-vos passos. “O momento político-econômico atual aponta para conjuntura da crise mun-dial sendo debelada aos poucos, mas ainda é difícil prever. O mundo hoje e a tecnologia mudam muito rápido”, assinala Martins.

Para ele, os últimos dois anos foram de significativo crescimento. Agora, é a vez de expandir. Como exemplo, diz que as fi-liais nos municípios de Sobral e São Paulo estão funcionando dentro da característica de métodos e processos maduros desen-

OO Instituto Atlântico, que faz parte do universo CPqD, foi incluído no guia da revista Você S/A Exame, considerado uma das melhores empresas para trabalhar no Brasil

Presidente do Instituto Atlântico, Cláudio Violato, vice-presidente de Tecnologia do CPqD

volvidas na matriz em Fortaleza, que foram transferidas, exportadas e absorvidas.

O planejamento leva em conta o mer-cado nacional e o mercado internacional. A operação de exportação, que já respon-de por 12% da receita do Instituto, é rea-lizada pelo CPQi, a parceria do Atlântico com a empresa Firm economics, da In-glaterra. O site www.cpqi.com, totalmen-te em inglês, tem linguagem voltada para o mercado internacional do segmento de outsourcing e offshore, o foco do CPQi.

“Encapsulados, criamos, demos cor-po e, agora, estamos prontos para fazer um spin-off (destacar o CPQi do Atlântico para concentrar o foco no que vai desem-penhar). A idéia é que o CPQi tenha sede própria, que evolua da mesma forma que o Atlântico ao longo dos anos”, informa.

O Atlântico é uma instituição científico-tecnológica. Não se dedica àquela pesqui-sa básica do âmbito da universidade.“No posicionamento mais estratégico, o Atlân-tico fica situado entre a universidade e o mercado”, define José Eduardo, acrescen-tando que essa situação cria uma cultura institucional na organização que demanda um perfil de profissional.

10 ciência &TecnoloGia /nov/dez de 2009nordeste vinteUm

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ti com qualidade

característica principal dessa indústria em que nós trabalhamos é a inteligência das pes-soas. Não sobrevivemos sem ter pessoas com qualificação e competência, que se propõem

a enfrentar desafios de uma forma muito bem prepara-da”, assinala José Eduardo. Para ele, onde há centros de formação como Fortaleza com suas universidades e insti-tutos existe essa característica”.

No Ceará, o superintendente avalia que a região Nor-te também conta com esse aspecto, embora em menor escala, que justifica a existência da unidade em Sobral. Ele vê potencial também na região do Cariri, no Sul, que está se desenvolvendo. José Eduardo conta que já visitou o Cariri numa prospecção junto a autoridades locais, mas os contatos ainda não deram resultado.

A“

PERSPECTIVAS

m crescimento vertiginoso em São Paulo. De seis para 100 pessoas, entre três e quatro me-ses. Motivo: o desenvolvimento de software para o mercado financeiro. “Essa maturidade

que temos e foi transferida para São Paulo hoje garante que façamos isso sem grandes turbulências na instituição como um todo”, afirma o superintendente do Atlântico.

Para 2010, José Eduardo disse que está previsto cres-cimento numa taxa normal de mercado, com a possibilida-de de atração de novas receitas e novos clientes. Hoje, a

U

João Dilmar, Jorge Guimarães, Ariosto Holanda, José Eduardo e Cláudio Ricardo Gomes de Lima em Limoeiro do Norte

InTELIgênCIA E CEnTROS DE fORmAÇÃO nAS REgIÕES

Na região Central, ele vê potencial em Quixadá, do-tado de bacharelado da UFC em sistemas de informa-ção. O superintendente visitou Limoeiro do Norte com o deputado Ariosto Holanda, o presidente da Capes, Jorge Guimarães, e o reitor do IFCE, Cláudio Ricardo Gomes de Lima, onde vê possibilidade de parceria com o cam-pus do IFCE. Esteve também em Tauá a convite do presi-dente da Assembléia Legislativa, Domingos Filho.

fILIAIS Em SÃO PAuLO E SObRAL

filial Sobral tem uma capacitação a permitir que todos os recursos de desenvolvimento sejam cumpridos na unida-de. Primeiro a filial recebia partes do projeto, desenvolveu especialidade em algumas áreas, mas depois de um pro-grama de capacitação, transferência de métodos, proces-sos e conhecimento chegou ao ponto que agora permite desenvolver um projeto completo na unidade.

José Eduardo observa que a tecnologia possibilita que hoje os projetos sejam controlados e gerenciados remotamente. “As reuniões presenciais são importan-tes, acontecem periodicamente. Mas hoje temos um ar-cabouço tecnológico que permite fazer de modo remoto em diversas localidades. Desde que se tenha formação e mentes brilhantes disponíveis”, afirma.

Filial do Instituto Atlântico em Sobral

Equipe do Instituto Atlântico em Sobral

11 nov/dez de 2009 / ciência &TecnoloGianordeste vinteUm

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s relatos destacam o desempenho das em-presas no tocante à inovação — em produto, processo, marketing ou gestão organizacio-nal. A divulgação dos casos de sucesso visa

proporcionar maior visibilidade às ações do Sistema Sebrae, que é o principal parceiro financeiro da Intece no apoio tecnológico e à inovação das micro e pequenas empresas.

A Intece coordena seis incuba-doras em Quixeramobim, Aracati, Crateús, Juazeiro do Norte e Li-moeiro do Norte com 50 empre-sas incubadas que geram 232 empregos diretos. Na incuba-dora, as empresas recebem orientação de consultoria e treinamentos na área de gestão e marketing, informa a coordena-dora da Intece, Sueli Vasconcelos, presidente da Rede de Incubadoras do Ceará (RIC). A incubadora integra a diretoria de Pesquisa e Inovação do Instituto Centec sob responsabilidade de

Desirée Bezerra.O Sebrae aprovou o projeto do Ceará para dupli-

car o número de empresas incubadas da Intece sele-cionada em edital com direito a R$ 590 mil a serem aplicados em dois anos no apoio às empresas. Já fo-

ram escolhidas 23 empresas que apresenta-ram planos de negócios e as outras têm

prazo para serem selecionadas até março de 2010, disse Sueli Vascon-

celos. Cerca de R$ 120 mil serão destinados a cada incubadora, exceto a de Limoeiro do Norte.

A incubadora de Limoeiro do Norte, segundo ela, teve aprovado edital do Sebrae nacional de R$ 120 mil apre-sentado pela Intece para fazer

atendimento descentralizado a empreendedores que não estão

no processo de incubação em 10 municípios do Vale do Jaguaribe. Já

foram atendidas 1.304 pessoas físicas e 354 pessoas jurídicas.

O

A SK Bombas é uma das sete empresas do Ceará, todas incubadas na Intece, a incubadora do Instituto Centec, convidadas pela Unidade de Acesso à Inovação e Tecnologia do Sebrae nacional para fornecer informações de suas histórias e negócio para o Banco de Dados “Casos de Sucesso de Inovação”. Também autorizaram o Sebrae a documentar suas histórias a JM Máquinas, de Juazeiro do Norte; Doce Delícia, de Crateús; Tina Condimentos, de Crateús; Serraria São Francisco, de Solonópole; Ortobral, de Sobral e Ceará Designer, de Quixeramobim.

SEbRAE REgISTRA CASOS DE SuCESSO DAS InCubADORAS

BANCO DE DADOS COM ExEMPlOS

inovação para consumo externo

SK Bombas King

12 ciência &TecnoloGia /nov/dez de 2009nordeste vinteUm

ciência &TecnoloGia / jUnho de 2009

Wilton Bezerra júnior Editor Executivo n [email protected] n [email protected] Bezerra Diretor Editor Adjunto n [email protected] Flamínio araripe Editor Adjunto de Ciência e Tecnologia n [email protected]

apoio escritório Técnico de estudos econômicos do nordeste (eTene) / Banco do nordeste do Brasil (BnB)apoio Técnico centro de Pesquisa e Qualificação Tecnológica (cPQT)

diretor-executivo edson da Silva almeidacolaboração assessoria de comunicação Social do instituto Federal de educação, ciência e Tecnologia do ceará (iFce) / jornalista Marlen danúsia

TODOS OS DIREITOS SÃO RESERVADOS. É proibida a reprodução total ou parcial, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos ou qualquer outro meio ou processo existente ou que venha a ser criado. O CADERNO DE ciência &TecnoloGia É uMA PARTE INTEGRANTE DA REVISTA nordeSTe vinTeUM E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

editora assaré ltda Me - Rua Waldery uchôa, 567 A n Benfica, Fortaleza, Ceará n CEP: 60020-110e-mail: [email protected] - Fone/fax: (85) 3254.4469

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eNsaio

Uma dívida não honrada com nosso passado. Um precioso objeto de pesquisa daquilo que, na academia, se convenciona chamar de “o Brasil profundo”. Um fenômeno sócio-político e religioso que ainda passa longe de prescindir dos fôlegos de curiosidade e saberes interpretativos capazes de fazer com que as nossas ditas “elites” reconheçam-no como história social genuína. Movimento messiânico de romeiros e migrantes surgido na segunda década do século XX em terras do município de Crato, no Ceará, pautado no trabalho e fraternidade, o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, teima contra seu o aniquilamento nas contendas da história. Atormenta o sono daqueles que sabem muito bem distinguir em nossa vida institucional, aqui incluídos sobejamente Estado, Igreja e latifúndio, o que sejam “memórias do poder” e “o poder da memória”.

Caldeirão de Santa Cruz do Deserto

Entre a história

Por Francisco régis lopes doutor em história social (PUC-sP),

professor do departamento de história da Universidade Federal do Ceará (UFC)[email protected]

Fotos livro Caldeirão de régis lopes/Eduece 1991

Cena 13 da taula de sant Miquel (séc. XIII) do mestre de soriguerola (Baixa Cerdanha - Catalunha) – detalhe: O Caldeirão dos supliciados

e a memória, a rebeldia da

tradição no Cariri cearense

35Nordeste VinteUm

Novembro/Dezembro n 2009

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o princípio, foi um mistério: a hóstia transformou-se em sangue. Depois veio a infin-

dável legião de romeiros, para confir-mar o milagre e em busca de solução para toda sorte de sofrimentos e des-venturas. Foi assim que, em 1889, nasceu o chão sagrado de Juazeiro. Rebento de fé nos poderes do sangue que jorrou quando a Beata Maria de Araújo comungava pelas mãos do Pa-dre Cícero. Afirmando que tudo não passava de fanatismo, a Igreja desen-volveu uma prolongada repressão ao movimento, mas o efeito esperado não se realizou. Com o passar do tempo, apareceram novos adeptos e as romarias cresceram. Mesmo sus-penso de ordens e proibido de fazer pregações, Padre Cícero assumiu, na crença dos sertanejos, o papel de pro-tetor milagroso.

JOSÉ LOURENÇO não foi o único que chegou. O seu grupo de romeiros também não era único que chegava ao sagrado Juazeiro. Por outro lado, Juazeiro não era a única opção para quem fazia romaria. Eram muitas as paragens do sagrado e o que não fal-tava era o trânsito de romeiros. Além

O início de tudo. Juazeiro, para todo sempre

N de Juazeiro, tinha Bom Jesus da Lapa no sertão da Bahia, Canindé no ser-tão do Ceará e vários outros recantos de menor destaque. E vale lembrar que Canudos era também um centro de peregrinos.

José Lourenço chegou a Juazeiro por volta de 1890 e por lá ficou. Era romeiro, mas a fé aumentou e ele se transformou em beato. Além da fé, desenvolveu a sensibilidade do líder. Tornou-se conselheiro, pregador e fundou uma pequena comunidade de camponeses, em um pedaço de terra que ele mesmo arrendara, o Sítio Bai-xa Danta. Baseado em princípios da religiosidade católica, liderava serta-nejos e sertanejas que trabalha-vam na agricultura e divi-diam os frutos da labuta. Ao assumir a condição de Beato, começou a fazer pregações que possuíam três princí-pios: a fraternidade, a oração e o trabalho.

Existiam muitos outros beatos e bea-tas, que moravam em Juazeiro ou por lá passa-vam para renovar a fé nos

poderes do Padre Cícero. Mas a sua opção foi peculiar: além da reza e da penitência, ele fez uma comunidade de agricultores. Nada muito grande, porém lá se colocava em prática a tra-dição que em outros lugares só estava na palavra: a igualdade entre os fi-lhos de Deus. Nesse caso, a tradição tornava-se rebelde, feria os interesses dos que praticavam a religião como forma de legitimar a desigualdade.

O sossego foi abalado de modo mais profundo em 1914, durante a chamada “Sedição de Juazeiro”, e alguns anos depois, quando o beato foi acusado de alimentar o fanatis-mo do povo em torno do “Boi Man-sinho”. Preocupado com a imagem do Padre Cícero, o deputado Floro Bartolomeu agiu sem delongas, em perfeita sintonia com sua determi-nação de evitar qualquer coisa que pudesse macular a “modernidade de Juazeiro”: ordenou a prisão do beato e mandou matar o “Boi Santo”.

Depois da morte do “Boi Man-sinho”, José Lourenço ainda ficou algum tempo detido na cadeia pú-blica de Juazeiro. Quando se viu fora das grades seu destino foi voltar para Baixa Danta. Retomou o cotidiano de oração e trabalho, mas em 1926 foi obrigado a procurar outras terras para o seu povo. O Sítio Baixa Dan-tas foi vendido e o novo dono exigiu a posse do terreno. Para resolver o im-

passe, José Lourenço conseguiu com o Padre Cícero outro

espaço para dar continui-dade ao trabalho comu-nitário: o “Caldeirão dos Jesuítas”, um ter-reno irrigado e fértil, circunscrito no sopé da Serra do Araripe.

depois que o bispo o proibiu de pregar na igreja, Padre Cícero passou a falar aos devotos na própria janela de casa

O líder do sítio Baixa danta, beato José lourenço, preso

sob a acusação de promover um boi a santo milagreiro. Foto livro

Caldeirão régis lopes/Eduece

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o assumir a condição de be-ato, sob influência da movi-mentação de peregrinos de

Juazeiro, José Lourenço começou a fazer pregações que possuíam três princípios: a fraternidade, a oração e o trabalho. As relações entre os seres humanos deveriam ser fraternas, pois todos eram filhos de Deus, todos eram iguais. A oração deveria estar sempre presente: como forma de agradecer a Deus por mais um dia de vida; de pe-dir ajuda aos poderes do Além; ou de fazer penitência, ritual que martiriza o corpo para purificar o espírito. O tra-balho era, também, uma penitência: cada um deveria tirar o sustento com o suor do seu rosto.

Em outros termos: tudo era velho

No Caldeirão a terra dava frutos e os frutos eram divididos. O líder dizia: nada era de ninguém e tudo era de todos. E assim se fez uma irmandade de agricultores. Irmãos, pois eram filhos de Deus e eram filhos de Deus porque conheciam a mensagem igualitária da Bíblia. Na seca de 1932, muitos escaparam da fome com as reservas da comunidade e alguns dos que por lá passaram lá ficaram. O Caldeirão crescia. Em 1934, com a morte do Padre Cícero, começaram a usar roupa preta, em memória do santo que dava o alívio para as dores da vida.

Tudo era de todos, nada era de ninguém

igualdade uma coisa do demônio ou de um ser semelhante.

O que importava, nas pregações do beato, não era somente o dito, mas sobretudo o jeito de dizer, a pre-sença de uma vida que, de maneira explícita, envolvia-se com a experi-ência religiosa. Quem falava era um homem de oração e isso fazia a dife-rença para quem escutava.

Entre os anos de 1988 e 2002, gravei vários depoimentos com so-breviventes. Perguntei sobre o que ele pregava e ouvi uma longa seqüên-cia de narrativas, “exemplos do bom viver”, como sempre ressaltava Mari-na Gurgel. Mas havia muitas manei-ras de falar. O senhor João Silva, em seus depoimentos, repetiu inúmeras vezes: “o que ele dizia, ele dizia com a vida dele”. Do que o beato gosta-va de cantar, dona Marina lembra de um velho refrão, repetido moro-samente na calada da noite, quando se reuniam para rezar: “Dai-me meu Jesus / um doce coração / pelas cinco chagas / da vossa paixão”.

É claro que no curto espaço desse artigo não tenho condições para reproduzir o que escutei sobre os conselhos e as narrativas do bea-

to, mas não posso deixar de citar um pedaço do

depoimento de dona Maria Lourença: “Ele falava da pes-soa que quer ser grande. Quer ser grande, mas pra Deus não valia nada. Que o pé-de-pau quanto mais alto, mais a queda é grande.”

Legitimidade pelo jeito de bem“dizer” exemplos do bom viver

A

habitantes do Caldeirão usavam roupas pretas

Camponeses do Caldeirão

e novo, ao mesmo tempo. Velho por-que tudo já estava na Bíblia, ou nas tradições da oralidade cató-lica. Novo porque pouca era a fraternidade que saía da palavra para a ação. Todos eram fi-lhos de Deus, sobre isso havia unani-midade, mas sobre a igualdade entre todos os irmãos não havia consen-so. Afinal, a Igre-ja Católica estava cheia de compro-metimentos com as classes dominan-tes, que viam na

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momento de maior aperreio foi em março de 1937, quando o capitão Bezerra e mais três militares morreram em luta com o grupo de ex-ha-bitantes do Caldeirão que estava liderado pelo Beato Severino Tavares,

também morto no embate. Logo depois do conflito, uma tropa de militares vasculhou os arredores do lugar, a fim de prender e torturar os que andavam com roupa preta. Até hoje, não se sabe a quantidade de mortos.

O Caldeirão era uma irmandade. A vida de cada dia seguia a tradição: trabalhavam, rezavam, cantavam, faziam penitência, gostavam de contar sobre coisas de outro mundo e nunca esqueciam de dar graças ao Padre Cícero. Se aqueles camponeses eram tão tradicionais, por que a polícia resolveu destruí-los? Porque, a partir dos costumes, foram rebeldes. Afirmavam, com base na Bíblia, que todos eram iguais. Transformaram a utopia cristã em realidade concreta. A Igreja se zangou e o bispo do Crato chegou a dizer que o Caldei-rão instalava o inferno na Terra. Era a reação institucional diante daquilo que o historiador inglês Edward Thompson chamou de rebeldia da tradição.

as, há outro fator que deve ser levado em con-sideração, quando se avalia a circunstância que arrumou o fim do Caldeirão em setembro de

1936: as memórias em torno de Canudos. Na cabeça das elites, tinha ficado o exemplo de uma revolta que não poderia se repetir. A destruição da comunidade do Caldeirão foi um ato preventivo, mobilizado pela assom-brosa lembrança das derrotas que o Exército brasileiro sofrera em Canudos.

A rigor, não havia acusação concreta para a inter-venção policial no Caldeirão. O próprio tenente Góes de Campos Barros reconheceu isso publicamente, em seu

A polícia não gostou. O Governo do Estado, a Igreja Católica e os latifundiários também não gostaram, pelo mesmo mo-tivo. A solução foi simples e corriqueira: em setembro de 1936, um destacamento militar invadiu e destruiu o Caldeirão. Diante das baionetas, todos os habitantes foram expulsos do chão de onde tiravam o sustento de cada dia. Mais uma vez, o beato foi perseguido pela polícia. Passou mais de um ano procurando refúgio pelas matas da Serra do Araripe.

Tramas e dramas da destruição

Sobre memórias e ameaças

Tragédia de uma utopia deequidade, justiça e autossuficiência

Uma nova “ordem de penitentes”,um novo “Canudos” a ser destruído

O

MCamponeses do Caldeirão durante o ataque policial de 1936

relatório divulgado na imprensa da época e no livro ‘A Ordem dos Penitentes’. O que existia, de fato, era uma mentalidade preventiva, pronta para identificar o proble-ma antes de o problema existir.

O Caldeirão não foi destruído porque era um núcleo fora-da-lei, mas porque poderia ser um novo Canudos. Para os poderes institucionais, a memória serve de alerta, tem utilidade pública, para manter a ordem dos privilé-gios. Os que gostam das idas e vindas de deferimentos e licitações sabem que o jogo da memória tem seu valor, na medida em que faz e desfaz legitimidades. Diante do pretérito, os vampiros inventam, ao sabor de interesses particulares, rupturas e permanências.

Mas, tem sempre mais um lado na história, que, ape-sar dos burocratas de plantão, desmancha o penteado. Hoje, Canudos e Caldeirão fertilizam outras memórias, em conexão com a renovação dos estudos históricos. Mortos no tempo, escaparam nas pelejas da História, mostrando que, apesar da memória do poder, existe o po-der da memória. Por outro lado, percebe-se que, sobre os dois episódios, há poucos estudos de qualidade e uma en-joada safra de cópias não-confessadas. Os procedimentos de interpretação e o fôlego de pesquisa ainda estão longe de produzir obras de maior densidade. A dívida com o nosso passado continua.

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Nesse sentido, a perseguição foi quase uma provação. Nas palavras de dona Marina, o beato aparece encar-nado na “imagem cristológica”. Assim como Cristo, o beato também anunciou: “eles não sabem o que fazem”. O respeito, mesmo diante da polícia, era a orientação: “Então, chegou um rapaz e disse: meu padrinho, o Cal-deirão está cercado com 200 praça. Aí ele disse: ‘tá?’ Ele respondeu: ‘tá’. Aí, ele foi e sentou. E disse: ‘Olhe, o que eu tinha de dizer, eu já disse, ensinei a todos, dei o bom conselho, saibam responder bem a polícia, respeitar...’.” Além de rememorar a mensagem dos evangelhos, o Beato Lourenço estava propondo uma tática de preser-vação da vida. Afinal, a experiência mostrava que reagir diante da polícia significava grande perigo.

oi assim que dona Marina e o senhor Eleutério responderam quando lhes perguntei, pela primeira vez, sobre a vida no Caldeirão. Só depois de prosear sobre as virtudes do Padrinho Cícero foi que eles começaram a falar sobre o Beato José Lourenço: “era um homem humilde, só pensava

em fazer o bem...”. Juntamente com outros devotos, dona Marina lembrava a abundância e a fraternidade em

contraste com a escassez depois da expulsão em setembro de 1936. A certeza de ter vivido “no caminho certo” entrava em contradição com as acusações que faziam da experiência comunitária um ato criminoso.

Em certas situações, as operações da memória desenvolveram-se em forma de denúncia, ou no intuito mostrar que, apesar de tudo e antes de tudo, o beato e seus seguidores não perderam a dignidade. João Silva contou que seu pai, durante a expulsão, não levara nada do armazém, afirmando para os comandantes que tudo era de todos: “o Capitão José Bezerra ofereceu cinco burro para ele trazer carregado de mantimento do jeito que ele quisesse. Ele agradeceu, sabia que meu padrim (José Lourenço) tava pro mato passando fome. ‘Aí, também eu não vou querer nada de você’ - ele disse”. (João Silva, 1989)

Em seus depoimentos, os devotos fizeram um acerto de contas: do presente com o passado. Enfrentaram, com a voz, as letras estampadas em jornais que, nos anos 30, haviam criminalizado os habitantes do Caldeirão. Falaram o que fora abafado nas malhas da história oficial, colocaram-se diante de outras memórias, construindo o pretérito como exigência do devir, não só para curiosos como eu, mas sobretudo para eles mesmos. Através de suas lembranças, ficaram diante de espelhos e se viram como partícipes de uma história exemplar.

o acerto de contas

Não houve reação

“Relembrar o passado é sofrer duas vezes...”

Diante do ataque da polícia, ogesto pela preservação da vida

F

A

Marina gurgel

s rememorações atuali-zam o direito de expli-car o que foi mal enten-

dido. As operações da memória abrem mais espaço para uma autoafirmação ou uma auto-va-lorização diante das acusações que giravam em torno dos devo-tos do Padre Cícero. Por outro lado, fica uma certa incompre-ensão diante desses curiosos que o pensar acadêmico cha-ma de pesquisadores: “O que é isso? Eu num sei... Você vem aqui e faz as perguntas e a gente começa a lembrar. Veio aqui um professor e me levou numa sala

Capa do relatório sobre o ataque policial ao Caldeirão

Tragédia de uma utopia deequidade, justiça e autossuficiência

Uma nova “ordem de penitentes”,um novo “Canudos” a ser destruído

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ermo “Caldeirão”, antes de dar nome ao sítio que abrigou a irmandade liderada pelo beato José Lourenço, já designava uma falha geológi-ca formada por pedras que se enchia de água do riacho que por ali

passava. Essa estrutura natural foi muito importante para o desenvolvimento da comunidade, porque a água ficava acumulada no “caldeirão” mesmo em tempos de seca.

O clima na região do Cariri é semiárido, com chuvas concentradas nos quatro primeiros meses do ano. Depois desse curto período, nem uma gota cai do céu. Por isso o desafio maior para o pessoal do sítio era irrigar as plantações, uma vez que o solo não possibilitava a retenção de água.

“Como é possível sustentar toda uma comunidade dependendo de um solo que tem restrições agrícolas? O grande mérito do beato foi exatamente este: ele soube utilizar os recursos e os ecossistemas do semiárido”, afirma o geógrafo Arlindo Siebra. Além do modus vivendi igualitário, o Caldeirão foi um exemplo ecológico para o Nordeste. Segundo Siebra, a comunidade construiu várias microbarragens e dois açudes. Faziam também um tipo de cisterna, que cobriam para evitar a evaporação, armazenando a água no subsolo.

Outra característica importante frisada por Siebra era o não-desmata-mento da “coroa da serra” - como são chamadas as partes mais altas da fa-zenda. Normalmente os agricultores trabalham com rotação de culturas, ou seja, queimam a vegetação para adubar o solo e depois plantam durante cerca de três anos. Posteriormente, abandonam a área – deixam a vegeta-ção brotar de novo, o que chamam de “encapoeiramento” – para repetir o processo após três ou cinco anos. A falta de espaço, porém, impedia José Lourenço de fazer as rotações.

Segundo Siebra, o beato “só plantava abaixo da ‘coroa da serra’, e apenas em um trecho por ano, passando depois para outro. Como a cobertura vegetal da coroa permanecia intacta, quando chovia as sementes eram dispersadas de cima para baixo. Dessa maneira, utilizando a força da gravidade, a área encapo-eirava mais rápido que um terreno plano”. Com esse manejo agrícola, somado à criação de peixes e de gado, as quase duas mil bocas da irmandade não sentiam falta de comida.

(Trecho da matéria Sopro de liberdade - A tragédia de uma utopia de igual-dade e autossuficiência) Revista Problemas Brasileiros, nº 370, julho/agosto 2005, editada pelo Sesc/SP.)

Exemplo ecológico. Por João Alves Araújo *

A origem do termo Caldeirão e os méritos do beato na sustentabilidade do lugar

O Caldeirão acabou, mas continua. Sua importância para a nossa história se torna cada vez mais atual, sobretudo quando se vê que não temos a reforma agrária que já deveríamos ter

T

cheia de foto do Beato que eu nem conhecia. Chega jornalista e pergun-ta. É bom, é um povo educado. Às vezes eu penso que essas entrevista é um meio de vida... Eu num sei...” (Marina Gurgel, 1990).

O senhor Eleutério, certa ocasião, me disse: “tem coisa que nem adianta eu explicar. Não adianta. Eu entendo porque eu tenho a crença e a fé. O Padre Cícero era um espírito de luz!” Logo depois, explicou o seguinte: “Es-ses livro que escrevem, eu nem olho. Tudo é mentira... Agora, eu sei! A gen-te vê as histórias do Padre Cícero nos livro. Eu que conheço e pego um livro. E vejo: tem umas parte até mais ou menos, mas logo vem uma mentira”.

O Caldeirão acabou, mas con-tinua. Sua importância para a nossa história se torna cada vez mais atual, sobretudo quando se vê que não temos a reforma agrária que já deveríamos ter. E, como se isso não bastasse, ain-da não desapareceram as notícias de trabalhadores rurais assassinados pelo poder do latifúndio.

Mas, afinal o que fazer? Antes de

tudo, escutar os poetas, em uma escu-ta que não pode esquecer Thiago de Mello em O Tempo dentro do espelho: “O tempo passa? Ai, que me dera! O tempo / fica dentro de mim, cantan-do fica / ou me queimando, mas sou eu quem canto / eu que me queimo, o tempo nada faz / sem mim que lhe permito a minha vida. / De mim de-pende, sou sua matéria, / esterco e flor do chão da minha mente, / o tempo é o meu pecado original”.

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ação criminosa contra a comunidade de campo-neses do Sítio Santa Cruz do Deserto foi efetiva-da de diversas formas, desde bombardeios aéreos

e no solo, à utilização de fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões contra mulheres, crianças, idosos, doentes e a tantas outras vítimas da ação ensandecida das forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937. Uma ação caracterizada pela legislação brasileira e pe-los Acordos e Convenções Internacionais como crime de Lesa Humanidade / Genocídio / Crime contra a Humani-dade. Portanto, considerado imprescritível.

Com base nisso, a ONG SOS – Direitos Humanos, com sede em Fortaleza, ajuizou em 2008 uma Ação Ci-vil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo a localização exata da cova coletiva onde foram enterrados os corpos dos cam-poneses católicos assassinados em 1937. Pelas informa-

SoS Direitos Humanos – 1.000 mortos

Ação Civil para achar cova coletiva na Serra do Araripe

AIntegrantes da irmandade mortos após ataque

ções populares, a vala fica localizada em cima da Serra do Araripe, nos arredores de um lugar conhecido como Mata dos Cavalos.

De acordo com o presidente da SOS – Direitos Hu-manos, Otoniel Ajala Dourado, paira uma dúvida sobre as razões pelas quais as autoridades não procurem a cova coletiva. Em nota enviada à redação da NE VinteUm, há a seguinte indagação: “Seria descaso ou discriminação por serem ‘meros nordestinos católicos’?”

O texto comenta ainda que a Universidade Regional do Cariri (Urca) poderia utilizar tecnologia avançada e pessoal qualificado, para, através da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa (Prpgp), do Grupo de Pesquisa Chapada do Araripe (Gpca) e do Laboratório de Pesquisa Paleontológica (Lppu), encontrar a cova.

Ainda conforme o texto, a Universidade Federal do Ceará (UFC), no início de 2009, enviou pessoal para au-xiliar nas buscas dos restos dos corpos dos guerrilheiros mortos no Araguaia, esquecendo-se de procurar na Chapada do Arari-pe, interior do Ceará, uma cova com 1.000 camponeses.

Diante disso, a ONG rea-liza uma campanha com base na Ação Civil, para que o crime do Caldeirão não seja esqueci-do e que as vítimas sejam, en-fim, enterradas com dignidade. “Para que as vítimas ou descendentes do massacre sejam beneficiadas pela ação, devem entrar em contato com a SOS - Direitos Humanos para fornecerem por escrito e em vídeo seus depoimentos sobre o período em que par-ticiparam da comunidade do Caldeirão, sobre como esca-param da ação militar, e informações relevantes sobre o evento”, ressalta Otoniel Ajala Dourado.

Mais informações pelo telefone (85) 8613.1197, ou através do site www.sosdireitoshumanos.org.br

Seria descaso ou discriminação por serem ‘meros nordestinos católicos’?

presidente da sOs – direitos humanos, Otoniel ajala dourado

A origem do termo Caldeirão e os méritos do beato na sustentabilidade do lugar

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mbora o contrato entre a Fundação Gilberto Freyre e a Global Editora não permita um adiantamento mais denso do novo lançamento, há algum tempo os críticos, estudiosos e admiradores da obra do autor já têm alguma ideia do que virá. Entre as passagens principais, está o relato que Freyre faz da elabo-

ração e lançamento de um de seus três clássicos mais importantes, Casa Grande & Senzala, ocorrido em 1933 – os outros são Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959).

caPa

O ano de 2010 será marcante para a memória e obra de Gilberto Freyre. Em agosto, o pernambucano

que revolucionou o estudo da Sociologia e da Antropologia em escala mundial figura como

principal homenageado do evento literário brasileiro de maior prestígio no exterior, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro. Antes, em julho, será lançada uma obra inédita, De Menino a Homem, pela Global Editora. Conjunto

de reflexões biográficas, o livro se coloca como uma continuação de Tempo

Morto e Outros Tempos, publicado pela primeira vez em 1975, que

traz as memórias do autor entre os anos de 1915 e 1930. A nova publicação, que permaneceu por vários anos na Fundação Gilberto Freyre

(FGF), no Recife, compreende o período do ano da revolução que levou Getúlio Vargas ao poder pela primeira vez até 1984, três anos antes da morte do sociólogo

Gilberto Freyre

“De Menino a Homem”O anarquista construtivo vai mobilizar

Paraty (Flip) em 2010

Por Marcel [email protected]

EIlustração: Marcos Aurélio

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Considerado uma “redescoberta” da nação brasileira, Casa Grande & Senzala foi lançado após a experiência de Gilberto no exílio devido à Revolu-ção de 1930. Trata-se na primeira parte de uma vasta obra sobre a sociedade patriarcal no Brasil. Tida por gente da categoria de um Darcy Ribeiro como “uma espécie de fundação do Brasil” no plano cultural.

A própria relação tumultuada de Gilberto com Getúlio Vargas, cujo epi-sódio maior se deu com o convite – de-clinado – do ditador a Freyre para ser ministro da Agricultura, também está na nova publicação. “Ele já percebia o declínio político de Vargas e não acei-tou o convite”, comentou há cerca de dois anos, no Jornal do Commercio, Gustavo Henrique Tuna, especialista na obra freyreana e um dos responsá-veis pela preparação da edição.

Segundo Gilberto Freyre Neto, su-perintendente da FGF e um dos poucos privilegiados por já ter lido o livro, nas andanças da memória, o avô escreve sobre atos e fatos acontecidos durante a vida. “É um livro interessante, porque vai desmistificar alguma coisa pautada, criada por ele mesmo em livros ante-riores e interpretadas de uma forma, e que ele, com o humor que lhe era pe-culiar, não desmentiu. Agora, no livro, ele explica melhor. São construções e desconstruções de imaginários, o que é a cara de Gilberto Freyre”, interpreta.

Gilberto Neto considera que De Menino a Homem será ainda mais in-teressante para quem leu o primeiro livro de memórias do autor. “Quem leu Tempo Morto e Outros Tempos vai per-ceber que as interpretações podem ser diferentes. Na hora que você completa com a leitura do segundo livro, pode ter uma visão diferente de como o fato que ele citou no primeiro ocorreu”.

Seriam, então, retificações? Ao que Gilberto Neto, ressalva, atiçando curio-sidades: “Não vou dizer que muda, mas reforça muita coisa na vida de Gilberto que os críticos vão adorar”.

Em antológica entrevista à revista Playboy, quando chegou aos 80 anos, Gilberto Freyre disse: “Eu temo ser considerado um bonzinho que agra-da a todo mundo, um convencional que não arrepia nenhuma convenção. Creio que quem tem atitudes precisa se conformar com o fato de desagra-dar a alguns”.

Não é preciso ser profundo conhe-cedor da personalidade e da produção

intelectual dele para deduzir que sua história foi permeada de polêmicas, muitas vezes, até por ele próprio fomen-tadas e protagonizadas. “Certamente, vai ser possível perceber como Gilberto se divertiu com a crítica em relação a essa obra, as passagens da vida dele”, coloca Gilberto Neto.

Outro trecho polêmico do novo livro diz respeito ao plano pessoal. De acordo com matéria do jornal Folha de S. Paulo, Gilberto conta passagens curiosas, como um caso homossexual que teve na Alemanha, nos anos 1920. Além disso, Tuna se referiu também a “um encontro com uma ‘loirinha germa-nicamente loira’. Sem qualquer alarde”.

Essas particularidades do novo li-

vro já foram inclusive comentadas pela filha de Freyre, Sônia, também no Jor-nal do Commercio. “É claro que para um filho ler sobre isso é meio chocante. Mas, se ele próprio assinou embaixo, se contou ter feito o que fez, não sou eu que vou desmenti-lo”, disse em 2007, ao acrescentar que “é comum que os filhos não pensem sobre a vida sexual dos pais. Muito menos sobre aspec-tos menos convencionais”. Na mesma entrevista à Playboy, o próprio Gilber-to explicou a experiência. “Você pode imaginar alguém como eu, interessado em tudo o que é humano... e, portanto, tive a curiosidade de ver o que era o amor não heterossexual, umas poucas e não satisfatórias aventuras”.

ilberto Freyre se proclamava um “anarquista construtivo”, uma forma interessante como se colocava, segun-

do o neto. “Era porque ele tinha uma ótica pes-soal em relação ao Estado, ao governo, a coisas desse tipo, à forma como o poder é representa-do, é emanado. Então, o anarquista construtivo é um pouco isso, uma forma de você se colocar à margem para poder analisar melhor o cenário político, da gestão do Estado, da gestão de to-dos os processos que o Estado coloca”, explica o superintendente geral da FGF, ao deixar escapar que esse aspecto não é abordado com tanta pro-fundidade pelo autor no livro.

O viés político de Gilberto Freyre, aliás, é pouco trabalhado, especialmente no Brasil, na visão de Gilberto Neto. “Seria um desafio grande para qualquer crítico da obra dele tentar traba-lhar isso. Acho que é um mundo a ser descoberto. Ele teve uma participação política interessante, e que precisa ser descoberta”, sugere, ao contra-por que a fase “é pouco retratada por ele mesmo, que não considerou uma passagem gratificante. Foi muito dura”, recorda. Por outro lado, o novo livro não cita o regime militar nem sua posição simpática aos militares na década de 70, o que lhe custou, segundo a Folha, muitos desafetos na academia brasileira.

Embora se denominasse um “quase políti-co”, Freyre elegeu-se deputado federal em 1946, foi constituinte e teve uma intensa atividade

parlamentar, notadamente no campo da inte-lectualidade. Proferiu palestras e conferências, chegando a ter seu nome indicado para o Prê-mio Nobel de Literatura. Naquele período, par-ticipou em Paris, do Conclave dos Oito Sábios do Mundo, sendo ele um dos citados na lista, o úni-co sul-americano presente a esse nível. Também delegado parlamentar do Brasil junto à 4ª Con-ferência Internacional da ONU em Nova Iorque, Gilberto teve na proposta e luta pela criação do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais – hoje fundação (Fundaj) – o marco principal de sua atuação.

De acordo com a matéria da Folha, Gus-tavo Henrique Tuna coloca que De Menino a Homem, de certa forma, “humaniza” a figura de Gilberto Freyre. Para quem é da família, essa noção é fruto de uma concepção não tota-lizante sobre o escritor. “Poucos são os críticos que conseguem penetrar e tomar como base a visão de que Gilberto foi uma pessoa, e como pessoa ele tem virtudes e pecados . Em cima disso, cunhou uma obra que é a percepção sua em relação a um país em construção, um país que estava buscando sua identidade. Se hu-maniza ou se não humaniza, eu prefiro ficar à margem da discussão”, diz Neto, que tinha 13 anos quando o avô faleceu. “Minha vida com Gilberto foi uma vida de avô para neto. Falar de humanizar Gilberto Freyre... Bom, eu só co-nheci o lado humano dele”, complementa.

“Um quase polItico”À margem de tudo, uma ótica pessoal dos cenários e da gestao do Estado

G

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momento vivido pelo Brasil foi o mote principal para a escolha de Gilberto Freyre como personagem a ser homenageado pela Flip em 2010, ano do 110º ani-

versário de nascimento do autor. “A idéia é trazer para o primei-ro plano o debate sobre os rumos do Brasil. A tentativa de fixar uma ‘identidade brasileira’, a volta do ufanismo nesses últimos anos de era Lula, as aspirações de protagonismo do país no cenário internacional. Todos esses temas me parecem dignos de discussão no âmbito dessa homenagem”, justifica o diretor de programação da festa, Flávio Moura.

Em sua oitava edição ano que vem, a Flip já homenageou expoentes das letras brasileiras, como Vinicius de Moraes, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Nelson Rodri-gues, Machado de Assis e Manuel Bandeira. Em 2008, ano do centenário da morte de Machado de Assis (1839-1908), a Flip presta homenagem ao grande escritor carioca.

Desde o centenário de Gilberto Freyre, em 2000, o debate sobre o autor e sua obra ganharam maior movimentação. “A home-nagem da Flip é mais uma ação nesse ce-nário bem mais amplo de recuperação e reavaliação de seu legado”, julga o diretor.

Para Gilberto Neto, por ser um festival popular que aproxima autores e público, a Flip com o tema Gilberto Freyre pode contribuir para desmistificar concepções acerca da sua produção intelectual.

“Notadamente, sua obra é colocada como elitista, ou seja, poucas pessoas tem acesso a ela. Mas, tem deficiência nesse acesso simplesmente porque existe, pos-so dizer, um certo preconceito em relação a Gilberto Freyre, porque se conhece pou-co da obra dele no Brasil. Isso é uma gran-de verdade”, argumenta.

Brasil em efervescencia justa homenagemFlip 2010

Precursor do que seja “Patrimônio Imaterial”

s métodos de avaliação de Gilberto Freyre revolu-cionaram o estudo da sociologia e da antropologia ao introduzir confrontos com muitas formas até

então vigentes. Apesar de muito debatido, criticado e não unânime, seu trabalho é referência para a compreensão do Brasil, na visão de Fernando Henrique Cardoso.

Na sua interpretação de país, Gilberto Freyre advertia, já em 1947, que “a inteira subordinação de diferenças históri-cas e geográficas a um rígido ideal de uniformidade levaria a uma forma de unidade estreita demais para um continen-te cultural tão complexo como o Brasil”. “Ele foi o precursor do conceito de patrimônio imaterial, conceito este que se concretizou com enorme sucesso”, afirmou Antonio Carlos Sartini, superintendente-executivo do Museu da Língua Por-tuguesa, no site da Fundação Gilberto Freyre.

“Outra contribuição da obra de Freyre foi a tentativa de

desmistificar a noção de determinação racial na formação de um povo, apontando a miscigenação conferida no país como elemento positivo. Em Casa-Grande, o papel de índios e ne-gros na formação do povo brasileiro é valorizado de forma praticamente inédita”, escreveu a jornalista Rosane Araújo.

“Gilberto Freyre escreveu livros sobre moda, gastrono-mia, imaginário, assombrações, turismo. O primeiro guia turístico brasileiro é dele. Então, você tem aí uma série de informações da vida e da obra de Gilberto que um festival li-terário como a Flip certamente vai abrir, do ponto de vista da abrangência, espaços para discussões das mais sinceras em relação à obra dele”, antevê Gilberto Neto. Na sua concepção é a obra de Gilberto Freyre “que cria métodos para analisar as diferenças e mostrar que existe um caminho que foi percor-rido pelo Brasil para se criar a identidade nacional, inclusive muito pacífico”.

Inovacoes pelos metodos e avaliacao

O

O

A riquezA de umA existênciA em livros, Acervos e títulosA produção de Freyre é vasta. São mais de 80 livros publi-cados, inúmeros artigos, discursos, palestras, poesias, prefá-cios, um acervo que conta com uma biblioteca pessoal de mais de 42 mil títulos – maior biblioteca privada do Brasil, segundo Neto –, mais de oito mil fotografias, dez mil corres-pondências e um imenso arquivo com recortes de jornal que guardam grande parte de uma das trajetórias mais ricas que um ser humano possa ter tido.

Por mais de sete décadas, sua obra tem sido analisada, discutida e criticada, sobretudo como teoria da formação da sociedade brasileira e na compreensão e interpretação de sua realidade social. Ela lhe rendeu diversas láureas e reconheci-mento pelo mundo, como os títulos de doutor Honoris Causa

pela Sorbonne (Paris) e pelas universidades de Münster (Alemanha) e Sussex (Inglaterra). Em 1971, recebeu, da rainha Elizabeth II, o tí-tulo de Sir. Muitas de suas obras foram publi-cadas no exterior.

Gilberto Neto acrescenta ainda Nordeste (1937) e Assucar (1939) ao rol das cinco obras fundamentais da lavra de Gilberto Freyre. Mas, outras como Um Engenheiro Francês no Brasil (1940), Região e Tradição (1941), Socio-logia (1945), Aventura e Rotina (1953), Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1934), Além do Apenas Moderno (1973) e Tempo Morto e Outros Tempos (1975), “retra-tam a terra, a vida, as coisas, os animais e os fatos do cotidiano de luta pela organização de uma civilização nos trópicos”, diz o site da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

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importância internacional de Gilberto Freyre pode ser medi-da com dois exemplos citados

por seu neto, que esteve recentemen-te nos Estados Unidos e na Inglater-ra. No primeiro participou de debate sobre o avô na conferência Brazil and the Future (O Brasil e o Futuro), rea-lizada em parceria entre a Columbia University de Nova Iorque, o Jornal do Brasil e a Casa Brasil.

Já na Inglaterra, Gilberto Neto esteve na King’s College, que com a colaboração da Embaixada do Brasil em Londres, promoveu a “Semana Gilberto Freyre”, onde cerca de dez

ilberto Freyre nasceu no Recife (PE), em 1900. Iniciou seus estudos no

Colégio Americano Gilreath e completou a sua formação nos Es-tados Unidos, onde freqüentou as universidades de Baylor (Texas) e

Fundacao preservamemOria e obra do escritor

Personalidade internacional em grandes centros acadEmicos

A

GColumbia (Nova York). Retornou ao Recife em 1923, passando a residir posteriormente em Apipu-cos, antigo bairro da capital per-nambucana, onde exerceu diversas atividades no âmbito da cultura e do ensino no Brasil e no exterior.

pensadores de língua inglesa, de uni-versidades como Cambridge, do pró-prio King’s College e da Universidade da Flórida (EUA), catedráticos sobre o Brasil e a América Latina, por exem-plo, debateram a obra do brasileiro. “E o organizador disso: Peter Burke, hoje, em nível global, talvez o mais importante historiador inglês de todos os tempos”, aponta.

Professor aposentado recente-mente da Universidade de Cambridge, Burke, casado com a brasileira Maria Lúcia Tavares, é hoje um dos grandes escritores em língua inglesa sobre a vida do pernambucano. Juntos, eles

lançaram Gilberto Freyre: So-cial Theory in the Tropics. “Ele fez uma compara-ção da vida de Gilberto Freyre para os ingleses conhecerem esse pen-sador brasileiro”, detalha Neto. Em entrevista ao Jornal do Commercio no ano passado, o inglês disse que sua missão é divul-gar o sociólogo.

Ocupou o cargo de deputado fe-deral (1946-1950), quando criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Dedicou-se aos estudos sobre cultura e sociedade brasileiras, organizou congressos e realizou diversas conferências.

Pouco antes de falecer, em 1987, preocupado com a manu-tenção e difusão de seu legado, o sociólogo criou na Vivenda Santo Antonio de Apipucos, a fundação que leva seu nome. “Uma Funda-ção que não apenas reunisse o seu patrimônio cultural, seus bens e acervos, mas que também pudesse estimular a continuidade dos seus estudos e de suas idéias, voltados para a compreensão e interpreta-ção da realidade social brasileira”, como diz o site da instituição, que abriga ainda a Biblioteca Virtual Gilberto Freyre (bvgf.fgf.org.br), onde estão diversas informações sobre sua trajetória e obra.

gilberto Freyre Neto, superintendente da FgF

Fundação gilberto Freyre: funciona na casa onde residia o sociólogo e escritor, em apipucos, recife

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“O livro (Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão, de Lira Neto), envolvente e detalhista, já entrou nas listas dos mais vendidos deste final de ano e seu ritmo chamou a atenção do cinema. A produtora brasileira RT/features com-prou os direitos para a tela grande e o diretor será Sérgio Machado (de Cidade Baixa). A obra chega em momento chave do processo de reabilitação histórico-eclesial do pa-dre pelo Vaticano, conforme afirmou à reportagem o bispo italiano Fernando Panico, da Diocese do Crato. Cícero foi alvo de um tumultuado processo eclesiástico, que resultou em sua suspensão das ordens sacerdotais e, mais tarde, em um decreto de excomunhão do Santo Ofício, em Roma. À época, ele foi acusado de desobediência e de insubordina-ção pela alta cúpula do clero. Morreu proscrito pela Igreja, aos 90 anos. Para Lira Neto, a reabilitação canônica do Padre Cícero precisa ser compreendida dentro do contexto da ‘guerra santa’ entre católicos e neopentecostais. ‘A Igreja, tardiamente, percebeu que o fenômeno Padre Cícero é for-te demais para ser combatido ou esquecido.’ O historiador americano Ralph della Cava (autor de ‘Milagre em Joaseiro’, primeira obra fundamental sobre o religioso, publicada nos anos 70) diz que, ao contrário de Canudos, que teve a sorte de ter um grande historiador debruçado sobre o tema (José Calasans), sempre houve pouca produção acadêmica e literária sobre o Padre Cícero. Para Lira Neto, essa situação começou a mudar há duas décadas. ‘O próprio livro de Ral-ph abriu caminho para uma vasta produção subsequente, o que demonstra que não há qualquer preconceito inte-lectual quanto ao personagem. Longe disso. O problema é que essa bibliografia ficou restrita, de modo geral, ao inte-rior dos muros das universidades, sem conseguir provocar um diálogo efetivo com um público mais amplo.’ (Jotabê Medeiros -Agência Estado)

CINEMA ENVOLVIDO PELO SUCESSODA BIOGRAFIA DE LIRA NETO

[email protected]

aGÊNcia estaDo

Dirigida a funcionários e aposentados do Banco do Nor-deste, a revista conterrâneos, editada pelo ambiente de comunicação do bNb desde julho de 2006, fechou o ano com uma novidade para seu público. Na edição n.º 21, no-vembro/dezembro de 2009, a publicação brindou seus leitores com o papercraft de um presépio, símbolo da cristandade transformado em presente para a família benebeana. Com linguagem leve e bom espaço iconográfico, a revista aborda temas de interesse geral, mas procurando sempre um link com a realidade e o universo dos colaboradores, assim como assuntos sobre o Nordeste do país. Nesse aspecto, “a revista

de quem é do Banco do Nordeste” aproveita a chegada das férias escolares e faz, na última edição deste ano, um passeio por Jericoacoara, pelo Delta do Parnaíba e pelos Lençóis Maranhenses, mostrando a “rota das emoções”, um dos maiores potenciais turísticos da Região. Impressa totalmente em papel reciclado e produzida pela equipe de comunicação do Banco, a Conterrâneos tornou-se relevante instrumento de comunicação da organização, dando visibilidade ainda a projetos culturais apoiados pela Instituição. Um exemplo é a pesquisa sobre o cofo patrocinada pelo Programa BNB de Cultura. O tradicional artesanato utilizado por muitas comu-nidades do Maranhão, transformado em elemento decorativo ou instrumento para acondicionar ou comercializar diferentes artigos, tem 40 tipos e modelos variados.

coNterrâNeos, a reVista De QUem é Do baNco Do NorDeste

A quantas anda a política cultural do Estado do Ceará? Pergunta sempre incômoda e oportuna que se impõe, por exemplo, quando se tem notícia das dificuldades de financiamento às ações do museu da imagem e do som (mis-ce). Em 2010, a instituição comemora 30 anos de existência. E, como diria Ariano Suassuna, “não adianta ficar com cara de jumento olhando pra uma igreja”, o jeito foi formar um conselho curador para o museu com profissionais e acadêmicos que atuam nas diversas áreas do acervo. Gente de rádio, televisão, jornal e instituições de memória e patrimônio, acadêmicos de História, Antro-

pologia, Comunicação, Sociologia e Arquitetura. Primeira missão: fundar uma associação de amigos, entidade sem fins lucrativos, com perspectiva plural e inclusiva, que pudesse angariar recursos para o MIS através de patrocínios, apoios, doações, venda de souvenires, entre outros. Hoje, o museu sofre com problemas de espaço e de indefinição do perfil institucional, de formação profissional e de condições para a preservação de seu grande acervo. A eleição da primeira diretoria da Associação aconteceu no último dia 8 de dezembro na atual sede do mis, situada na avenida barão de studart, 410, um dos pontos mais tradicionais de Fortaleza. A casa que hoje o abriga foi projetada pelo arquiteto José Barros Maia (Mainha) para ser residência do senador Fausto Augusto Borges Cabral, sendo inaugurada em novembro de 1951.

mis do ceArá à bAse de sos dos Amigos

ai De ti, cUltUra!

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PArA A estAnte

Uma obra que reúne textos sobre o Padre Cí-cero como resultado de pesquisas que em 2009 completam exatos 40 anos. Onde se percebe o quanto avançaram os estudos e as investigações sobre o grande personagem, desenvolvidos por historiadores locais e de fora, em iniciativa própria ou a serviço de alguma instituição aca-dêmica. Com Padre Cícero, A Sabedoria do Conselheiro do Sertão, o historiador, biólogo, jornalista e escritor Daniel Walker busca escla-recer que, ao contrário de opiniões propagadas por muitos escritores, de fato, Cícero Romão Batista era um homem de estudo e dotado de extraordinária sabedoria. Um excelente conse-lheiro para os seus milhares de afilhados e ad-miradores. Na parte Entrevista-biográfica Daniel lança mão de um curioso recurso jornalístico conhecido como entrevista-montagem, na qual o entrevistado responde a perguntas a partir de textos por ele mesmo produzidos. O conteúdo das respostas foi extraído das cartas escritas pelo padre e do seu testamento, obedecendo-se à

originalidade dos textos. Uma espécie de Padre Cícero por ele mesmo. É, portanto, sua autobiografia. O livro traz também uma biografia já publicada por Daniel, mas agora revisada e ampliada. Ali, dois assuntos mereceram atenção especial: a visita de Lampião a Juazeiro, oportunidade em que ele se encontrou com o padre e lá recebeu a famigerada patente de Capitão; e a questão do milagre da hóstia. A polêmica da patente ao cangaceiro é retratada em versão nova, pouco divulgada. Quanto à questão do milagre, mais detalhes foram acrescentados. O livro pode ser comprado pela internet através de depósito bancário no valor de R$ 20,00 (já incluída a des-pesa de Correio) conforme os seguintes dados: Conta para depósito - Banco do Brasil / Conta Corrente nº 6852-7 Agência: 1598-9 – Bradesco / Conta Corrente nº 10072-2 / Agência: 692. Con-tato com o autor através do e-mail: [email protected]

a sabeDoria Do PaDre cícero, Por daNIEl WalKEr

CINEMA ENVOLVIDO PELO SUCESSODA BIOGRAFIA DE LIRA NETO

“coNselheiro Do sertão”

imiGraNtes

Publicado primeiramente nos Estados Unidos, o livro Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos tem como foco a imigração brasileira na terra do “Tio Sam”. Escrito pela pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Bernadete Beserra, a obra conta em 275 páginas “as diversas formas como os brasileiros se enredam no empreendimento de

visitar ou migrar para os Estados Unidos”. As difi-culdades e desafios que os imigrantes brasileiros enfrentam na adaptação ao país e as dúvidas sobre voltar ou não à pátria são pontos apresentados ao leitor por meio de trechos e en-trevistas instigantes e reveladoras. Uma profunda viagem sobre a imigração num mundo que se diz “global”. Segundo o professor Ruben George Oliven, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “à medida em que analisa a relação entre globalização, fronteiras nacionais e imigração, Bernandete nos permite lançar um olhar para o imigrante, menos como um outro estranho e mais como um de nós que sonha e tenta sobreviver num mundo cada vez mais complexo”.

berNaDete beserra e oUtras PossibiliDaDes De ser brasileiro

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histÓria

urante dois anos e meio, entre 1859 e 1861, o Ceará foi palco de um dos mais controvertidos episódios do Brasil

Imperial (1822-1889). Embora muitas vezes ignorada por historiadores e por estudiosos locais e regionais, a Comissão Científica de Exploração constitui capítulo importante da história de um Brasil “de ciência balbuciante, sem modelo e tradição”, conforme afirma o professor Renato Braga em seu livro História da Comissão Científica de Exploração, lançado pela primeira vez em 1962 e reeditado em 2004 pelas Edições Demócrito Rocha.

A Comissão Científica de Ex-ploração foi criada pelo governo imperial no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Ihgb) em 1856. Incumbida de organizar uma expedição às províncias do “Norte”, a comissão tinha o objetivo de “conhe-cer o interior do

território e suas riquezas, coletar material para o Museu Nacional e promover a pesqui-sa científica no País”, como coloca a profes-sora Maria Sylvia Porto Alegre em Comissão das Borboletas – A ciência do império entre o Ceará e a corte (Museu do Ceará/Secult, 2003). Oficialmente batizada de “Imperial Comissão Científica” e “Comissão Explo-radora das Províncias do Norte”, decidiu iniciar seus trabalhos percorrendo a então província do Ceará.

Em seu livro, Sylvia Porto Alegre afirma que “a história da expedição ao Ceará

foi bastante conturbada, gerou críti-cas veementes da imprensa, acusa-

ções políticas ao governo, desen-tendimentos entre os membros componentes da comissão e conflitos com os grupos locais.

Os incidentes da viagem foram amplamente

explorados.

COMIssÃO CIENtíFICa dE EXPlOraÇÃO – sEsqUICENtENÁrIO – CEarÁ

Por Marcel Bezerra / [email protected]

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que era um plano oti-mista no início foi se transformando, paulati-

namente, em ambiente negativo e, finalmente, hostil”. Segundo Sylvia Porto Alegre, a comissão acabou sendo alvo de anedotário e chacotas, e chegou a ser apeli-dada de “Comissão das borbole-tas” e “Comissão defloradora”. O fato também foi explorado politi-camente pelos opositores ao go-verno Imperial de Dom Pedro II, que nela não viam proveito con-creto e acusaram de ser apenas “mais uma forma de desperdício dos recursos públicos”.

O professor Renato Braga, hoje falecido, considera em seu traba-lho que a comissão “viveu e se foi sem quase deixar rastros de sua existência”, não passando de um belo plano frustrado em suas espe-ranças, apesar da generosidade da ideia. Por outro lado, Sylvia Por-to Alegre observa que um exame mais acurado do episódio atenua o malogro. “Ela representou, na verdade, um momento importante de transição, revelador das inquie-tações nacionalistas que caracte-

rizaram o período de consolidação do Estado Imperial, assim como ponto de inflexão significativo na gestação do pensamento científico no Brasil”, pontua.

De fato, conhecer a história da Comissão Científica implica ne-cessariamente entender o contexto histórico e político do Brasil de en-tão. O século XIX caracterizou-se como época de profundas mudan-ças no país. Naquela metade de sé-culo, o Brasil já havia visto a che-gada da família real portuguesa em 1808 e seu retorno em 1821. No ano seguinte, nos tornávamos in-dependentes de Portugal. A partir de então, tinha início o Primeiro Reinado, que durou até Dom Pe-dro I abdicar ao trono em favor do filho, Dom Pedro II, dando início ao Segundo Reinado e ao Período Regencial, este um dos mais con-turbados da história do país, mar-cado por crise econômica, insta-bilidade política e revoltas por todo o território.

De acordo com Sylvia Porto Alegre, em meados do século XIX, estava em curso, no Brasil, um projeto científico e cultural

alicerçado em torno do regime mo-nárquico, “ansioso por fortalecer-se internamente e projetar, além-fronteiras, a imagem de um país promissor”. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Ihgb) ha-via sido fundado em 1838. À sua sombra, como conta Renato Bra-ga, foram-se acolhendo as figuras mais expressivas da cultura literá-ria, artística e científica do país, o que deu ao Ihgb fisionomia ampla-mente generalizada, mas sem pre-juízo do setor historiográfico.

Após uma primeira década acanhada apesar dos esforços de seus fundadores, o Ihgb vê outros ventos lhe soprarem através de um patronato especial. “A partir de 15 de dezembro de 1849, o Imperador abre as portas do Paço às sessões do instituto e desce do trono para presidir regularmente os traba-

lhos”, conta Braga.

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ntitulado protetor do insti-tuto, Dom Pedro II chegou a comandar mais de 500

sessões, incentivou e financiou pesquisas, fez doações valiosas e até tomou parte em debates, além de ceder sala no Paço Im-perial para sede. Estimulado pelo patrocínio régio, o Ihgb se projetou como instituição nacional, e virou uma espécie de centro polarizador das ativi-dades intelectuais do império, “notadamente no que toca aos estudos brasileiros”, ressalta o autor. Foi exatamente no Ihgb que nasceu e proliferou a ideia de uma expedição nacional, que mais tarde viraria a Comissão Científica de Exploração.

Após épocas conturbadas,

o começo de 1859, Dom Pedro II anunciou a inten-ção de materializar ações

para promover melhoramentos nas províncias do Império. Ele próprio resolveu visitar as regiões mais dis-tantes, sendo recebido com festa, em outubro, no Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernambuco. Meses antes – em fevereiro – outra comitiva havia partido rumo ao Norte.

A Comissão Científica de Ex-ploração, como foi denominada,

o Brasil Imperial passou a uma fase de consolidação. “Os princi-pais expoentes da nossa cultura letrada empenhavam-se na bus-ca das origens da brasilidade, no autoconhecimento da história e do território, enquanto a ciência ocupava-se em descrever, cata-logar e classificar os recursos da natureza, as riquezas do solo e do subsolo, as populações, o de-senvolvimento moral e material. O progresso estava na ordem do dia”, afirma Sylvia Porto Alegre. Nesse clima de otimismo, avalia Renato Braga, “impunha-se à dig-nidade nacional também colabo-rar no reconhecimento científico da pátria. Daí a receptividade do projeto e as fundadas esperanças nas investigações programadas”.

dom Pedro II em 1851. retrato de João Maximiano Mafra

precisou de três anos para se pre-parar. Apesar da rápida acolhida que teve a ideia do Império em “no-mear uma comissão de engenhei-ros e naturalistas que explorem o interior de algumas províncias, de-vendo fazer coleções de produtos naturais para o Museu Nacional, e para os das províncias”, como atesta a Lei nº 884 – que fixava a despesa para o exercício financeiro de 1857-1858.

Mas, esse desejo de explorar o interior do Brasil não surgiu de

aracati

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iante a perspectiva de en-frentar longa viagem – por terra e por água – através

de sertões carentes de tudo, os membros da Comissão Científica, mesmo não tendo estabelecido ainda o itinerário, trataram de equipá-la. O material foi selecio-nado com acuidade, e abrangia itens de acampamento, farmácia, transporte, defesa, instrumental adequado às seções e bibliográ-fico. Para este último, foram

repente. Desde a chegada da cor-te portuguesa ao Rio de Janeiro, muitos viajantes estrangeiros se propuseram a desbravar intensa e continuamente o território bra-sileiro. Estimulados pelo próprio Estado, que, ao dar guarida e in-centivo às expedições, ia ao en-contro das instituições científicas e museológicas que se multiplica-vam nos centros europeus como fruto da ilustração.

“Entre 1808 e 1840, o governo Imperial patrocinou o estabeleci-mento de várias instituições ligadas à cultura, às ciências e às artes no Rio de Janeiro, como a Imprensa Régia, a Biblioteca Real, o Jardim Botânico, a Academia Real de Be-las Artes, o Real Arquivo Militar, a Academia Médico Cirúrgica, o Conservatório Dramático, a Aca-demia de Ópera Lírica, o Museu Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, destaca Sylvia Porto Alegre.

adquiridos mais de mil livros que continham conhecimentos sobre geologia, botânica e zoologia brasileiras, todos ainda desconhe-cidos das bibliotecas do Rio de Janeiro – e que mais tarde iriam compor o acervo da Biblioteca do Museu Nacional.

Os aparelhos vieram das me-lhores firmas francesas, inglesas, alemãs e austríacas, e em alguns casos, a demora da chegada des-tes foi responsável, em parte, pelo

o IHGB resolveu dividir os trabalhos pertinentes à Comissão em cinco seções, e indicou ao titular da pasta do Império as pessoas que deveriam chefiá-la. Todas membros do instituto. Francisco Freire Alemão, também presidente da comissão, ficou encarregado da seção BOtâNICa; Guilherme Schüch de Capanema, da gEOlógICa E MINEralógICa; Manuel Ferreira Lagos, da ZOOlógICa; Giacomo Raja Gabaglia, da astrONôMICa e gEOgrÁFICa; e Antônio Gonçalves Dias, da EtNOgrÁFICa e Narrativa da Viagem. Como desenhista da expedição, o pintor José dos Reis Carvalho acompanhou o grupo, além dos diversos auxiliares. Sylvia Porto Alegre destaca ainda que esta foi a primeira expedição científica formada exclusivamente por brasileiros.

atraso da partida da comissão. Embora mais tarde os resul-

tados não tenham atingido o pa-tamar planejado, a Comissão de Exploração tentou justificar seus propósitos baseada nos princípios dominantes da época, impreg-nada tanto pelo nacionalismo romântico como pela ideologia do progresso material, através da ciência e da técnica, pela valori-zação da racionalidade no estudo da realidade.

lugar chamado Fortaleza em sobral

antônio gonçalves dias

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enato Braga revela que aos “científicos” caberia também cole-tar “tudo quanto possa servir de prova do estado de civilização, indústria, usos e costumes dos nossos indígenas”, assim como

recuperar as tradições orais e populares, para as quais deviam estar atentos os membros da seção de etnologia.

Também, na visão de Sylvia Porto Alegre, havia a expectativa de que o estudo dos hábitos sociais e do temperamento individual re-velasse a propensão ao trabalho. Pois “o ocioso tem atitudes bem diferentes do trabalhador”, diz Renato Braga.

“Em um período de desagregação do trabalho escravo, logo após a proibição do tráfico de africanos, o debate em torno do trabalho livre fazia-se sentir. A ciência ‘a serviço da civilização’ colaborava com as classes dominantes para aumentar a oferta de mão de obra e o sis-tema produtivo” afirma a pesquisadora. Ao mesmo tempo, ela inter-preta que entrava novamente em foco a velha ideologia de combate à “ociosidade” do índio e do caboclo, “tão profundamente enraizada no pensamento social brasileiro e nas relações de trabalho, desde os tempos coloniais”.

Nos itens referentes à investigação lingüística, acrescenta a pro-fessora, propunha-se a elaboração de gramáticas para as línguas ain-da não conhecidas e dicionários para as conhecidas, bem como tabe-las comparativas entre as várias línguas indígenas.

esmo não tendo sido feita logo de início, a escolha do Ceará como província

a ser explorada não se guiou por princípios, digamos, patrióticos.

“Preferiram o Ceará por causa das suas supostas riquezas mine-rais”, decreta Renato Braga em seu livro, baseado na observação de amostras de minérios de fer-

ro e carvão, abundantes no solo, colecionadas nos mostruários do Museu Nacional.

O regimento aprovado pelo mi-nistro do Império, Sérgio Teixeira

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de Macedo, é claro: “Se, porventura, a Comissão descobrir alguma mina, cuja exploração seja vantajosa para o estado, com o maior segredo, sendo possível, expedirá logo para esta corte um portador seguro, dando conta da descoberta, acompanhada de todas as infor-mações que julgar necessárias, e fará ao Presidente da Província as participações convenientes a tal respeito”.

O vapor Tocantins com a Comissão Científica de Exploração deixou o Rio de Janeiro no final do primeiro mês de 1859 rumo a Fortaleza, então uma cidadezinha de 15 a 16 mil moradores. “Con-tava pouco mais de 800 casas de tijolos, das quais 60 assobrada-das, raras, porém, as de dois andares. Na sua maioria, eram casas pequenas, baixas, escuras, de beira e bica, aconchegadas umas às outras por medida de economia”, descreve Renato Braga em seu livro, ao acrescer os cerca de 1.600 casebres de palha situados nos arredores do riacho Pajeú, “onde vegetavam dois terços da popula-ção de Fortaleza”.

comissão empolgou For-taleza, onde permaneceu durante os seis primeiros

meses, aguardando a chegada do material e seguindo o conselho de personalidades locais de não adentrar o interior durante o pe-ríodo das chuvas, dadas as más condições das estradas atingidas pelas cheias.

Os integrantes da expedição permaneceram trabalhando nos arredores de Fortaleza até en-frentarem os sertões a partir da segunda quinzena de agosto. “Por onde passavam, os ‘científicos’, esquadrinharam a província de

norte a sul, litoral, serra e sertão. Caminharam em várias direções, ora em conjunto, ora dividindo-se em pequenos grupos”, assina-la Sylvia Porto Alegre.

A partir daí, já se verifica-vam desentendimentos entre seus integrantes e desregramen-tos comportamentais – bebedei-ras, farras noturnas e assédio às moças bonitas – que lhes ren-deram a alcunha de “Comissão defloradora”. Alguns episódios chegaram inclusive a ecoar na corte distante, convertendo-se em munição para a oposição po-lítica ao imperador.

Vista de Fortaleza

Igreja matriz em aracati

Igreja N. s. da ConceiçãoFortaleza, Ceará

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de Sylvia Porto Alegre, “as disputas políticas e o anedotário desviaram a atenção dos contemporâneos e mesmo dos estudiosos quanto à real contribuição da viagem”.

INCIDENTES E DESPRESTÍGIONo início de 1860, a Comissão Científica reuniu-se quase total-mente no Crato, região do Cariri, onde foi bem acolhida por onde passou. Em fins de abril, os respon-sáveis pela comissão já se encon-travam em Fortaleza. “Tinham per-dido a altanaria dos primeiros dias. Os empeços administrativos, as desavenças internas, a incompre-ensão pública e a certeza do pouco que haviam conseguido, mormen-te no setor mineral, fizeram esma-

ma passagem chamou de fato a atenção dada a reper-cussão negativa alcançada. A importação de 14 came-

los vindos de Argel, acontecimento que abalou Fortaleza e causou pas-mo à população. A tentativa desas-trada de aclimatação dos ruminan-tes como animais de transporte de carga foi a gota d’água a cobrir de ridículo a “Comissão das Borbole-tas”, abalando de vez o seu prestí-gio já minado, descreve a professo-ra Sylvia Porto Algre.

Mesmo no interior houve ca-sos em que a visita da comissão vinha precedida pela má fama de seus integrantes, causando a des-confiança dos sertanejos. O inci-dente mais grave, conhecido como “processo Abel”, ocorreu com a força policial de Icó, no sertão Sul do Ceará, que culminou na prisão de um dos guias da expedição, e envolveu a comitiva em processo explorado pela imprensa. Na visão

ecer aquela radiosa esperança que os iluminava ao tocarem a terra ce-arense”, considera Renato Braga, ao adiantar que o pensamento cor-rente na corte e na província era o de que a iniciativa fracassara por não haver encontrado os tesouros ansiosamente esperados.

Mesmo assim há de se reco-nhecer o espírito desbravador dos integrantes da expedição na longa e penosa travessia dos sertões. Para agravar ainda mais a situação, os repasses para custeio das viagens já não eram mais tão regrados, e a expedição passou a contar com a ajuda do presidente da Província do Ceará, Antônio Marcelino Nu-nes Gonçalves. A 23 de março de 1961, encerrou-se o ciclo das jor-nadas da Comissão Científica.

Capela pertencente a freguesia do riacho do sangue

Pesca das piranhas em russas

serra da Pedregosa em sobral

Igreja Nossa senhora do ó em Cascavel

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e acordo com a professora Sylvia Porto Alegre em Co-missão das Borboletas, o que

descobriram e fizeram os membros da Comissão Científica de Explora-ção ficou registrado em documen-tos que podem ser consultados, nos acervos públicos e também nas coleções particulares. “Trata-se de material raro e valioso para o traba-lho de estudiosos das mais diversas áreas e um testemunho precioso para a história das ciências no Bra-sil, nos primórdios de suas expan-são e consolidação”, declara.

Na ótica da professora, para além do conteúdo específico dos trabalhos produzidos, a análise dos resultados da iniciativa permite uma série de reflexões relevantes para a história do pensamento so-cial no Brasil, em meados do sé-culo XIX. Por exemplo, a discussão de temas como a questão da nacio-nalidade e da identidade nacional, a representação da categoria do “outro” no interior da nação, as perspectivas que as chamadas “an-

tropologias nativas” desenvolvem a respeito de si mesmas, a proble-mática da modernidade e do pro-gresso e a recorrente questão das “redescobertas” do Brasil.

DOCUMENTAÇÃO NAUFRAGADA Por outro lado, sob o prisma da história da antropologia e de seus precursores, a expedição ao Cea-rá ainda não teve seu contributo devidamente estudado. Ao final da viagem, foi organizada uma

exposição, no Museu Nacional, de produtos coletados no Ceará. “Com isso, procurava-se demons-trar os recursos do território, fazer ver suas possibilidades, o potencial natural e industrial da nação, mes-mo nas regiões mais afastadas da corte, e calar a oposição política”, sublinha Sylvia.

Para culminar, parte da docu-mentação recolhida por Capanema e Gonçalves Dias teria sido perdi-da ao final da viagem, em mal ex-plicado naufrágio do iate Palpite, que transportava a carga do norte da província para Fortaleza, contri-buindo para sua condenação pela opinião pública. A comissão re-gressou ao Rio, à exceção de Gon-çalves Dias, que dirigiu-se depois ao Amazonas. A continuidade dos trabalhos foi também ameaçada pe-las desavenças entre os membros, depois do retorno. A experiência extinguiu-se por volta de 1864, em-bora oficialmente os trabalhos da Comissão continuassem a constar dos relatórios oficiais até 1867.

Estação de carros no sertão (reis Carvalho)

serra do areré

Moinho de Carnaúba, aracati (reis Carvalho)

Igreja N. s. dos Prazeres, aracati

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>> Materiais das seções de botânica, geologia e zoolo-gia foram recolhidos ao Museu Nacional. O herbário in-cluía 14 mil amostras de plantas, mas ficou por quase um século vedado à consulta, armazenado em latas e inacessível aos pesquisadores; >> Coleções zoológicas excediam a quatro mil exem-plares de aves, cerca de 80 espécies de répteis, 12 mil insetos e mais de cem animais vivos vindos do Cariri;>> Foram encontrados 32 desenhos de aquarelas iden-

tificadas como de autoria de José dos Reis Carvalho, cuja coleção faz parte do acervo do Museu Histórico Nacional. Dois trabalhos de Reis encontram-se no Museu do Crato e outros pertencem a coleções par-ticulares; >> Cerca de 660 desen-hos acompanham a Flora Cearense, atual-mente depositada na Coleção Freire Alemão

da Biblioteca Nacional; >> Uma série de 89 estampas etnográfi-cas foram litografadas e coloridas à mão, por Henrique Fleiuss, figurando na Exposição An-tropológica organizada por Ladislau Neto no Museu Nacional, em 1882; >> Objetos da cultura indígena coletados por Gonçalves Dias foram destinados ao Ihgb, formando a Coleção Amazônica;>> Quanto aos textos escritos deixados por essa verda-deira “descoberta dos sertões”, as principais fontes documentais são os relatos de Freire Alemão, Capane-ma e Lagos lidos no Ihgb entre outubro e dezembro de 1861 e publicados nos Trabalhos da Comissão Cientí-fica de Exploração, em 1862; >> Guilherme Capanema publicou Apontamentos sobre secas no Ceará (1878) e A seca no Norte (1901); >> Giacomo Raja Gabaglia também dedicou-se ao problema da seca, publicando A questão das secas no

Ceará (1861) e Ensaio sobre alguns melhoramen-tos tendentes à prosperidade da Província

do Ceará (1877);

>> Quanto às questões etnográ-ficas, Capanema fez a leitura dos Apontamentos acerca das bebidas fermentadas usadas pelos indígenas do Ceará, festas e mitos religiosos e transmigra-ções tribais no IHGB (1862); >> Manoel Ferreira Lagos leu as Observações de costumes, de preconceitos, de usos, de festas populares e até de palavras especialíssimas e de significação exclusiva da população menos civilizada do Ceará, que infelizmente não foi entregue ao instituto;>> A Principal contribuição, contudo, foi dada pela seção de botânica. Entre os manuscritos de Francisco Freire Alemão, adquiridos pela Biblioteca Nacional, en-contram-se os Estudos Botânicos (1834-1866), em 17

volumes, e a Flora Cearense (1859-1861), em nove volumes; >> Além do relatório da seção botânica,

há a descrição das plantas colhidas no Ceará, em três folhetos, publicada nos Trabalhos da Comissão Científica

de Exploração (1862-1863);>> Os papéis da expedição ao Ceará incluem o

diário de viagem e notas pormenorizadas de Francis-co Freire Alemão, nos padrões dos relatos feitos pelos viajantes estrangeiros contemporâneos do botânico. Além da descrição das espécies da natureza, há infor-mações as mais variadas de tudo que era observado pelo caminho: a arquitetura do sertão, os materiais de construção das casas, a economia dos engenhos de açúcar, o fabrico de farinha, a agricultura e criação de gado, o povoamento e desenvolvimento das vilas e cidades, o clima, hábitos e costumes da população, a alimentação e o trabalho, as crenças, as festas e os di-vertimentos; >> Utilizando material coletado por Manoel Ferreira La-gos, teve lugar a primeira exposição de produtos indus-triais realizada no Brasil, a Exposição do Ceará, aberta no Museu Nacional em 1861, primeiro contato direto da corte do Rio de Ja-neiro com a cultura do sertão distante.

RESULTADOS DA COMISSÃO CIENTíFICA DE ExPLORAçÃO

Fonte: Comissão das Borboletas e história da Comissão Científica de Exploração

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ue mais impressiona, hoje, quando se foca a Comissão Científica de Exploração, é a determi-nação, a disciplina e o espírito de aventura que revestia o espírito cientificista vigente. Curioso

como este grupo conseguiu mapear um Ceará sem estra-das, se aventurando por trilhas, picadas, veredas e abrin-do seu próprio caminho.

Pode-se pensar nas tralhas que levavam e na dificul-dade de equilibrar mantimentos e equipamentos em lom-bo de burro. Francisco Sousa e eu refazemos estes

percursos hoje, com estradas esburacadas, cidades sem cobertura de celular e reclamamos das dificuldades. Ima-ginem há 150 anos!

Primeiro fomos a Tauá. O Liceu nos acolheu e as fotos dos alunos foram feitas no Parque da Cidade, uma lagoa urbanizada. A exposição que mistura as aquarelas do Reis Carvalho, as fotos que Francisco vem fazendo pelo Ceará e o resultado das oficinas básicas de fotografia digital, dos vinte alunos do Liceu, foi visitada por Dona Dolores Feito-sa, referência da questão ambiental dos Inhamuns e dire-tora do Museu Bernardo Feitosa, que funciona na antiga Casa de Câmara e Cadeia de Tauá.

Dos Inhamuns, nossa “caravana” subiu a Ibiapaba e

se instalou em Guaraciaba do Norte. Mesma gentil aco-lhida, mesmo entusiasmo dos alunos e, desta vez, “baixa-mos” no Colégio Municipal D. Pedro I. Os alunos tiveram a possibilidade de cercar melhor a natureza e de estabele-cer relações com a cultura.

Depois de uma semana, era a vez de partir para So-bral. O Liceu nos esperava e a acolhida foi ainda mais calorosa. Os alunos tiveram direito a um ônibus que os le-varam à Serra da Meruoca para as fotografias que seriam

exibidas no final da temporada.Fizemos uma escala rápida em Fortaleza e

o Crato nos esperava. O Fiat Uno da locadora Sefor marchava intrépido pela Estrada do Al-godão, que parecia interminável. A sensação de que não chegariamos lá aumentava o can-saço e nos dava uma idéia de pesadelo.

Outro Liceu, nova (boa) acolhida, mais uma oficina e as fotos desta vez seriam feitas na Chapada do Araripe. Interessante como os olhares se renovam e como as fotos dos alu-nos dialogam com as imagens do Ceará e com as aquarelas de cento e cinqüenta anos.

Libélulas azuis, flores, folhagem, troncos retorcidos, era o território mágico aprisiona-do pela tecnologia digital. Com muito esfor-ço, o calor insuportável dos “bro” (meses que terminam com esta sílaba), estava concluída a primeira etapa da viagem.

Agora, era comemorar o Natal, revisitar os planos e voltar em 2010 para fazer Icó,

Aracati, Cascavel e terminar em Fortaleza, mais preci-samente em abril, no Museu do Ceará, onde todo este material ancorará no fecho das comemorações dos 150 anos da Comissão Científica. Cada um faz suas escolhas. A homenagem à Comissão se dá aqui pelo lado das ima-gens. Não perdemos de vista que este é um projeto apro-vado (premiado) por um Edital da Secult (Secretaria da Cultura do Ceará) e que um dos objetivos é chamar a atenção para a importância do olhar para o Ceará. A ex-posição traz três camadas deste olhar: a do aquarelista Reis Carvalho, a do fotógrafo Francisco Sousa e a dos alunos e alunas das escolas públicas que surpreendem pelo vigor e ineditismo com que mostram o que não fo-mos capazes de ver antes.

Em teseGilmar de Carvalho. Pesquisador,

jornalista, publicitário e escritor

Q

[email protected]

Foto: Francisco Sousa

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PoDer local&ciDaDaNia

APRENDIZAGEM COOPERATIVA

Por Lucílio Lessa/[email protected]

PRECE dE gRatidão a inCluiR

jovEns na

univERsidadE

58Nordeste VinteUm

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Oportunizar uma experiência de protagonismo estudantil que leva centenas de universitários a retornar voluntariamente à cidade natal para auxiliar mais estudantes a entrarem na universidade. Este é o grande mérito

do Programa de Educação em Células Cooperativas (Prece). Surgido em uma comunidade rural localizada em Pentecoste, interior do Ceará, a iniciativa já atendeu cerca de dois mil estudantes e ingressou 350 alunos da rede

pública na universidade. Destes, 40 já concluíram a graduação e 10 encontram-se na pós-graduação

Eu cresci num contexto no qual a

violência e as drogas estavam muito presentes. Muitos amigos meus foram mortos. Hoje, estou me preparando para o mestrado

Nós criamos uma contracultura.

Aqui, só passava no vestibular quem era filho de comerciante. Por sua vez, este só voltava para comer peixe na beira do açude. No Prece, os estudantes têm um sentimento grande de pertença. Nós não somos um cursinho. É pobre ajudando pobre

Edílson da Costa, pedagogo

Manoel andrade, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e idealizador do projeto

“Até pouco tempo atrás a gente nunca tinha visto uma universida-de. Ninguém conhecia nem uni-versitário”. A frase é do agricultor José de Paula Souza, 49 anos, hoje concludente do curso de agrono-mia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Há pouco mais de uma década, mais um trabalhador a engrossar a legião de analfabetos no sertão de Pentecoste.

O tom de superação também faz parte do discurso do pedagogo Edíl-son da Costa, 27 anos. “Eu cresci num contexto no qual a violência e as drogas estavam muito presentes. Muitos amigos meus foram mortos. Hoje, estou me preparando para o mestrado”, diz.

Ambos, José e Edílson, são per-sonagens de uma experiência de protagonismo estudantil surgida em Pentecoste, município distante 89 quilômetros da capital cearense. Paralelamente a desvantagens de caráter sócio-econômico, o lugar carrega o peso estatístico de uma taxa anual média de 25 homicídios por 100 mil habitantes, conforme o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008.

A experiência, a despeito dos números desfavoráveis à região, permitiu que 350 estudantes de Pentecoste e de outros sete mu-nicípios ingressassem no ensino superior através de um método de aprendizagem coletiva que se de-tém na troca de conhecimentos, o Programa de Educação em Células Cooperativas (Prece).

Estratégia de estudo iniciada há 15 anos, o Prece possui uma dinâmica inovadora. Todo o capital intelectual surgido da iniciativa é

Em 2005, o Prece foi reconhecido pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da onu, como uma das 42 melhores experiências de inovação social no continente latino americano, dentre 1.300 projetos de 33 países

REConhECimEnto CEPal / onu

voluntariamente reinvestido no de-senvolvimento coletivo. Trocando em miúdos, quem entra na facul-dade retorna ao município nos fins de semana para auxiliar outros estu-dantes a se tornarem universitários.

“Nós criamos uma contracul-tura. Aqui, só passava no vestibular quem era filho de comerciante. Por sua vez, este só voltava para comer peixe na beira do açude. No Prece, os estudantes têm um sentimento gran-de de pertença. Nós não somos um cursinho. É pobre ajudando pobre”, considera o professor da Universida-de Federal do Ceará (UFC), Manoel Andrade, idealizador do projeto.

O programa já atendeu cerca de dois mil estudantes, dos quais 40 já se graduaram e dez ingressa-ram na pós-graduação (mestrado ou doutorado). O reconhecimento da iniciativa ganhou dimensões in-ternacionais.

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No CIPó, o INíCIo

ascido em Cipó, distrito de Pentecoste, o professor

Manoel Andrade pretendia inovar e mobilizar ações no sentido da melhoria de vida da comunidade. “De início, criei um campeona-to de futebol. A ideia era que as pessoas se organizassem. Cinco anos depois, estava exausto. Pre-cisavam de mim para tudo. Não havia sustentabilidade. O único benefício é que a violência havia diminuído”, revela.

Após essa primeira tentativa, Andrade decidiu, em 1994, que faria um projeto educacional. “Percebi que a educação teria

outra força”. O primeiro passo foi montar um grupo de pessoas dispostas a estudar. Sete jovens fora de faixa etária no ensino fundamental e médio decidiram investir exclusivamente no sonho de entrar na universidade.

As condições não eram nada favoráveis. Embora Andrade ga-rantisse o material de pesquisa, o grupo tinha que estudar no gal-pão mal iluminado de uma casa de farinha abandonada. As reuni-ões ocorriam a luz de velas, pois não havia energia elétrica. “As pessoas diziam que a gente não queria nada, que nós não quería-mos ajudar nossos pais”, lembra o hoje agrônomo Carlos Alberto Souza, 30 anos.

Dois anos depois do primei-ro encontro, um belo susto na comunidade: Francisco Antônio Alves Rodrigues, integrante do grupo, conseguiu o primeiro lugar no vestibular para a Fa-culdade de Pedagogia, na UFC. “Eu ouvi o resultado na casa de

farinha. Nunca vou esquecer”, lembra Antônio, hoje professor da rede pública.

A aprovação no vestibular de um membro da comunidade rural foi um marco na cidade e garantiu a popularização do pro-jeto. Dos sete pioneiros, seis en-traram na faculdade. Era o início do Prece.

pós as primeiras vitórias, os estudantes aprovados lideraram a criação do Prece, que inicialmente significava Projeto Educacional Coração

de Estudante, inspirado na música de Milton Nascimento. Todos os fins de semana, os alunos voltavam à casa de farinha e compartilhavam o que tinham aprendido para o vestibular com outros jovens das comunidades rurais.

Não demorou muito para alunos da sede aderirem à proposta. Mas a rotina não era fácil. Toda sexta-feira saía de Pentecoste um caminhão “pau-de-arara”, sem coberta, com destino a Cipó, com cerca de 50 pes-soas. Os jovens passavam todo o fim de semana estudando na casa de farinha que, pelo menos, já possuía energia.

aula à luz de vela em casa de farinha dá primeiro lugar na Pedagogia da uFC

sucesso, novos alunos, pau-de-arara e fim de semana imerso em estudo

n

a

As pessoas diziam que a gente não queria

nada, que nós não queríamos ajudar nossos paisCarlos alberto souza, agrônomo, 30 anos

Pintura em homenagem aos pioneiros

60 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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EPCS

iante da procura de jovens de outras comunidades à pequena Cipó, o lo-

cal se estabeleceu como uma incubadora de células de aprendizagem cooperativa. Dali, para se multiplicar para a sede foi um pulo. Os próprios estudantes fizeram a primeira multiplicação da iniciativa ao criar um núcleo em Pentecoste.

A notoriedade foi tamanha que não tar-dou para tomar corpo e ultrapassar fron-teiras: núcleos de estudo, denominados Escolas Populares Cooperativas (EPCs), podem ser encontrados nos municípios de Apuiarés, General Sampaio, Paramoti, Fortaleza, Maracanaú e Paracuru, além de Pentecoste.

O projeto conta hoje, com 13 Epcs. “Todas elas são independentes. O que te-mos aqui não é necessariamente um pro-jeto, é uma visão de trabalho. É claro que estamos ligados ‘emocionalmente’, mas não institucionalmente”, esclarece Mano-el Andrade.

“A viagem durava de 45 minutos a uma hora. A aula começava às 19h e terminava às 22h. No sábado, era aula o dia todo e à noite a gente tinha um culto. No domingo: estudo. Retornávamos só na segunda”, informa a univer-sitária Liliane Cavalcante oliveira, 25 anos, aprovada para o curso de secretariado da UFC. Da sua época, Liliane lembra momentos difíceis. “Não passei de primeira. Meus pais me alertaram que se não passasse no vestibular seguinte teria que abandonar os estudos para trabalhar. Chorava todas as noites. Nas via-gens para o Prece, não tinha dinheiro para comer. Passava o fim de semana inteiro com água e bolacha ‘cream-cracker’. Hoje, sou a primeira pessoa de toda a minha família a entrar em uma universidade”, revela. Quem também recorda do período pré-universitário é o estudante de Ciências Sociais e coordenador técnico do Prece, Tony Souza Ramos, 26 anos. “Quando terminei o ensino médio, fiquei sem perspectiva. Passei quatro anos longe dos estudos. Foi a partir do Prece que retomei meus objetivos”, diz. Para Tony, o maior legado do projeto é que a aprovação de um parente no vestibular faz com que outras pessoas da família invistam no próprio potencial. “Minhas irmãs mais novas participam do Prece. Uma delas cursa duas faculdades”, comemora.

Escolas Populares Cooperativas já instaladas em mais seis municípios

histórias de superação

d

Liliane e seu pai

61Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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DEPoIMENToS

Camaradagem, interessepelo estudo e abnegação

s histórias de vida nesses núcleos são pareci-das e o discurso afinado. Que o diga o estu-

dante do segundo ano do ensino médio Jorge Rodri-gues de Oliveira. Filho de uma doméstica e de um auxiliar de escritório, o jovem, de 15 anos, já se ima-gina voltando da universidade para ajudar os amigos. “Essa é a minha oportunidade de entrar na faculdade. E vou retribuir ajudando futuros ‘precistas’”, afirma.

Prestes a fazer seu primeiro vestibular, Kátia Maria Pires da Silva, 20 anos, é outra que não vê a hora de passar para a próxima etapa: a universidade. “Nunca tinha estudado tanto. Entrei aqui mais pelas amizades, mas fui contaminada pelo conhecimento. A gente até brinca que nos fins de semana tem ‘es-quema’, mas não é namoro, é o estudo”, diz.

Os grupos de aprendizagem do Prece não se li-mitam às aulas com os universitários nos fins de se-mana. Todos os dias os estudantes se reúnem para ensinar o que aprenderam. Nessa dinâmica, os que mais se destacam são escolhidos como monitores. É o caso da pré-universitária Joélia Dantas Guimarães.

“Sou coordenadora de Português. É legal por que passar o que a gente aprendeu para os demais forta-lece o aprendizado e é muito bom para a auto-estima. Todo mundo se interessa. A gente não é obrigado a nada. Vem quem quer passar no vestibular”, avalia Joélia.

Os depoimentos individuais reforçam a teoria do foco no coletivo. É o que se constata também no de-poimento do estudante de engenharia de pesca Fran-cisco Hélio Pires da Silva, 23 anos. “Todos os meus fins de semana são dedicados ao Prece. Muitas vezes, deixo a minha vida social por esse compromisso. Até entrar aqui eu não sabia direito nem o que era o ves-tibular. Retribuir essa chance é a essência do nosso trabalho”, enfatiza.

Quanto à casa de farinha, foi transformada em “estudantório”, uma homenagem aos sete primeiros estudantes. O local abriga alunos de várias localida-des, inclusive de Fortaleza.

a Essa é a minha

oportunidade de entrar na faculdade. E vou retribuir ajudando futuros ‘precistas’

Todos os meus fins

de semana são dedicados ao Prece. Muitas vezes, deixo

a minha vida social por esse compromisso. Até

entrar aqui eu não sabia direito nem o que era o vestibular. Retribuir essa chance é a essência do nosso trabalho

Nunca tinha estudado tanto. Entrei

aqui mais pelas amizades, mas fui contaminada pelo conhecimento. A gente até brinca que nos fins de semana tem ‘esquema’, mas não é namoro, é o estudo

Dos 150 alunos pentecostenses que ingressaram na universidade, pelo menos 130

voltaram para trabalhar no prece.

Jorge rodrigues de Oliveira

hélio Pires da silva, 23 anos

Kátia Maria Pires da silva, 20 anos

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VISão “PRECISTA”

vencer no lugar onde se vive é projetar mudanças de realidade

provável que ainda demore para que o poder pú-blico se sensibilize com a importância do Prece.

Só não quer dizer que os “precistas” estejam aguar-dando de braços cruzados. “Queremos criar condi-ções para que essas pessoas possam vencer no lugar onde vivem. Não estamos fazendo isso ‘porque o in-terior não presta’. Isso aqui não é um êxodo rural de elite, muito menos uma fuga de cérebros”, ressalta Manoel Andrade.

Segundo o professor, a visão política do Prece é diferente da que emprega o terceiro setor. “Não queremos assumir o espaço do governo. A gente luta para que ele apenas assuma o seu papel. Será uma grande derrota para nós se isso não vier a aconte-

RESIDêNCIA E TRANSPoRTE

Falta apoio do poder público municipalas nem tudo são flores. Por mais que as declarações sejam inspiradoras, o fato é que o desenrolar do projeto é bem complicado. E o motivo é a falta de apoio do poder público, que acaba por transformar os

resultados expressivos em transtornos. Por exemplo: devido ao grande número de aprovados no Prece, as residên-cias universitárias ficaram abarrotadas de alunos “precistas”, prejudicando o ingresso dos demais.

A solução encontrada, em Pentecoste, foi tentar, através de uma emenda parlamentar, possibilitar aos estudan-tes uma residência a ser mantida pela Prefeitura. De acordo com Manoel Andrade, uma emenda para transporte dos estudantes também já havia sido colocada no orçamento do município. No entanto, só foram contemplados os estudantes da sede, ficando de fora as comunidades rurais. “Quem está colaborando com esse público é o Governo do Estado, através de uma articulação nossa. o município não cumpriu a emenda”, revela.

m

É

cer”, teoriza. A busca por ações que tragam esse novo perfil

governamental fez com que o Prece estabelecesse três eixos de atuação: Educação Básica, Empodera-mento Comunitário e Desenvolvimento Econômico. Enquanto o primeiro foca iniciativas para o desenvol-vimento intelectual, justamente a pedra fundamental do projeto, os demais auxiliam os “precistas” na mu-dança de mentalidade política da sociedade local e no surgimento de oportunidades de trabalho na região.

Em Pentecoste, onde ocorre boa parte das ações destaca-se, no eixo II, o observatório do leitor. Trata-se do monitoramento e fiscalização do poder públi-co por meio dos estudantes nas sessões da Câmara Municipal. Toda discussão é informada através de um programa de rádio, o “Coração de Estudante”. O mu-nicípio de Apuiares também adotou a estratégia.

Observatório do eleitor em ação durante evento político

Queremos criar condições para que essas pessoas possam vencer no lugar

onde vivem. Não estamos fazendo isso ‘porque o interior não presta’. Isso aqui não é um êxodo rural, de elite, muito menos uma fuga de cérebrosManoel andrade

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EdUCaÇÃO BÁsICaeducação de jovens e adultos

Pre-vestibular cooperativoincubadora de células educacionais

estudante cooperativoações de apoio ao estudante

EMPOdEraMENtO COMUNItÁrIO

observatório do eleitorPrograma de rádioJornal comunitário

Debates nas eleiçõesorganização de fóruns

movimento em defesa da escola PúblicaParticipação em conselhos municipais

dEsENVOlVIMENtO ECONôMICO - adEl célula social Produtiva

Difusão tecnologias agroecológicasJovens empreendedores rurais

Fundo rotativo solidárioapicultura integrada

caprinovinocultura de corte

PARCERIA

Escola de governantes do Ceará leva formação política e de gestão

á em parceria com a Escola de Formação de Governan-

tes (EFG), Pentecoste recebe a cada 15 dias a visita de palestrantes que tratam de temas como plane-jamento urbano, orçamento par-ticipativo e sustentabilidade. En-cabeçada pelo professor e diretor da Escola, Alberto Teixeira e pelo coordenador do Prece, Tony Sou-za Ramos, a ação, que começou em setembro, realiza até dezembro um ciclo de formação política. Para 2010 estão programados cursos de formação em gestão de prevenção à corrupção, em função das próxi-mas eleições.

No quesito Desenvolvimento Econômico, o Prece conta com a Associação de Desenvolvimento Econômico Local (Adel), criada em 2007. “Antes, existia um núcleo

j

ECONOMIa sOlIdÁrIa

Antes, existia um núcleo de

assessoria ao pequeno produtor rural, mas os agricultores tinham dificuldade de se fixar na região porque não possuíam uma instituição que desse suporte jurídico para captar recursosantônio adriano Batista de souza, presidente da Adel

porque não possuíam uma institui-ção que desse suporte jurídico para captar recursos”, considera o pre-sidente da Adel, Antônio Adriano Batista de Souza.

Instituição originária do Prece, mas independente deste, a Adel atua em três municípios: Pentecos-te, Apuiarés e Tejuçuoca. O foco é o trabalho com ovinocaprinocultu-ra, apicultura e agroecologia. “O principal objetivo é criar formas para potencializar e desenvolver as associações, que só em Pentecoste são 12”, informa Adriano.

de assessoria ao pequeno produtor rural, mas os agricultores tinham dificuldade de se fixar na região

alberto teixeira, Diretor da EFG

64 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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JoSé DE PAULA SoUzA, 49, AGRICULToR

agronomia, dois filhos graduados, dois na faculdade e uma escola

oi no meio da caatinga, na mais rural das rurais, que a Nordeste

VinteUm encontrou o agricultor, ex-analfabeto e hoje estudante de agro-nomia José de Paula Souza. “Quando decidi fazer supletivo e depois o ves-tibular, muita gente me criticou. Di-ziam que eu não iria em frente e que deveria investir apenas na educação dos filhos”, relembra.

Hoje, o universitário cala a boca de muita gente. Aprovado no vestibu-lar juntamente com uma das filhas, ele conseguiu iniciar uma bem sucedida trajetória estudantil e plantou essa se-mente no restante da família. Dos oito filhos de José, dois estão graduados, dois cursam faculdade e os pequenos já perceberam que o negócio é estudar. “Quando vejo meu pai na faculdade, fazendo cadeiras comigo, tenho um or-

instituto Coração de Estudante, um escritório de apoio a projetos

esde 1998, mesma época que a sigla Prece passou a ter o significado atual, funciona em

Fortaleza, o Instituto Coração de Estudante (ICE). Entidade fundada pelos pioneiros para coordenar as ações do programa, o ICE é uma espécie de es-

d

F

Quando decidi fazer supletivo e

depois o vestibular, muita gente me criticou. Diziam que eu não iria em frente e que deveria investir apenas na educação dos filhosJosé de Paula souza

gulho enorme”, diz o estudante de agro-nomia, Paulo Glaydson, 26 anos.

Não contente em apenas pos-sibilitar a educação dos filhos, José de Paula foi além e fundou em 2005 uma EPC. “Começamos com cinco estudantes. Houve uma época em que tivemos que estudar embaixo de uma palhoça improvisada. Depois, a gente ganhou um recurso e hoje já possu-ímos o nosso teto. Já aprovamos 11 estudantes”, comemora.

Entre os jovens que se reúnem no local, está a pré-universitária Maria Lucineide Gomes do Nascimento, 20 anos. “Vou fazer vestibular para Letras, e isso já é uma grande vitória, já que antes talvez só me restasse ser borda-deira. E por mais que toda profissão seja digna, fico feliz em saber que ago-ra posso escolher o que quero ser”.

sede do Instituto Coração de Estudante

ICE CENTRALIzA AçõES

critório do Prece, e também agrega os projetos que se originaram a partir do programa, como a Adel.

“o Prece e os demais projetos não possuem folha de pagamento. Contratado, mesmo, temos apenas um contador. o ICE é, sobretudo, uma for-ma de organizar a captação dos recursos para pro-jetos e conseguir incluir os nossos estudantes em bolsas de pesquisa”, informa Andrade.

De acordo com a relatora da coordenadoria do instituto, Arneide Andrade, além dos escritó-rios de apoio aos projetos, a estrutura conta ain-da com dois quartos para hospedar alunos. Para executar a coordenação do Prece, o ICE realiza parceria com a Igreja Presbiteriana Independente de Fortaleza, Fundação Mary Speers, Brazil Foun-dation, Ashoka Empreendedores Sociais, Ceja de Itapipoca e UFC.

65Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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Totonho Laprovitera - Álbum de família, retrato nº 1 - 2007 - AST - 160 x 160 cm

66 Novembro/Dezembro n 2009Nordeste VinteUm

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