moacyr scliar leitores - ulbra.br · em 2004, a cidade de dom feliciano (172km de poa) se preparou...

14
MOACYR SCLIAR – Moacyr múltiplo, um escritor amigo de seus leitores 1 Angela da Rocha Rolla (Ulbra) Moacyr Múltiplo – tema deste encontro - é também o Moacyr dos encontros com seus leitores, o Moacyr dos Programas de Leitura em que se envolveu até o final de sua vida. O engajamento para a formação de leitores fez parte de um compromisso que assumiu consigo e que levou adiante mesmo depois de alcançar repercussão internacional como escritor. Há mais de 10 anos, acompanho suas andanças pelo RS, primeiro através do Projeto Adote um escritor e depois através do Programa de Leitura Fome de Ler. Trago um depoimento do Moacyr escritor sob o ponto de vista de seus leitores, do Moacyr que visita os meninos nas escolas (por mais distantes que sejam, em qualquer rincão do estado), que dá autógrafo em cadernos escolares e assiste com prazer apresentações sobre suas obras, ouvindo pacientemente músicas, textos, homenagens que lhe fazem. Se tivesse de escolher algumas palavras para sintetizar esta experiência, poderia falar em COERÊNCIA, GENEROSIDADE, CARISMA, INTEGRIDADE, SIMPLICIDADE. Moacyr é generoso porque sempre se doou aos seus pequenos e grandes leitores, de forma irrestrita. E em vez de se queixar, fazia humor com tudo isso. Fragmento da crônica “Estes jovens entrevistadores e seus fantásticos gravadores” da obra “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar 1 Palestra apresentada por Angela da Rocha Rolla no evento em homenagem a Moacyr Scliar, Moacyr Múltiplo, promovida pela Secretaria do Estado do RS, no Memorial do RGS, em 26 de março de 2013, pela passagem de dois anos da morte do autor e também de seu aniversário ele nasceu no dia 23 de março. O encontro teve a coordenação da professora Débora Mutter e a participação dos palestrantes Sergius Gonzaga, Luis Fernando Verissimo, Márcia Ivana de Lima e Silva e Ângela da Rocha Rolla. No mesmo dia, foi realizada a exposição Scliar, uma Vida em Imagens, com painéis de composições fotográficas sobre a vida do autor.

Upload: ngokien

Post on 25-Apr-2019

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

MOACYR SCLIAR – Moacyr múltiplo, um escritor amigo de seus

leitores

1Angela da Rocha Rolla (Ulbra)

Moacyr Múltiplo – tema deste encontro - é também o Moacyr dos encontros com seus leitores, o Moacyr dos Programas de Leitura em que

se envolveu até o final de sua vida. O engajamento para a formação de leitores fez parte de um compromisso que assumiu consigo e que levou

adiante mesmo depois de alcançar repercussão internacional como escritor.

Há mais de 10 anos, acompanho suas andanças pelo RS, primeiro através do Projeto Adote um escritor e depois através do Programa de

Leitura Fome de Ler.

Trago um depoimento do Moacyr escritor sob o ponto de vista de seus

leitores, do Moacyr que visita os meninos nas escolas (por mais distantes que sejam, em qualquer rincão do estado), que dá autógrafo

em cadernos escolares e assiste com prazer apresentações sobre suas obras, ouvindo pacientemente músicas, textos, homenagens que lhe

fazem.

Se tivesse de escolher algumas palavras para sintetizar esta experiência, poderia falar em COERÊNCIA, GENEROSIDADE, CARISMA,

INTEGRIDADE, SIMPLICIDADE.

Moacyr é generoso porque sempre se doou aos seus pequenos e grandes leitores, de forma irrestrita. E em vez de se queixar, fazia

humor com tudo isso.

Fragmento da crônica “Estes jovens entrevistadores e seus fantásticos gravadores” da obra “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar

1 Palestra apresentada por Angela da Rocha Rolla no evento em homenagem a Moacyr Scliar, Moacyr

Múltiplo, promovida pela Secretaria do Estado do RS, no Memorial do RGS, em 26 de março de 2013, pela

passagem de dois anos da morte do autor e também de seu aniversário – ele nasceu no dia 23 de março.

O encontro teve a coordenação da professora Débora Mutter e a participação dos palestrantes Sergius

Gonzaga, Luis Fernando Verissimo, Márcia Ivana de Lima e Silva e Ângela da Rocha Rolla. No mesmo dia,

foi realizada a exposição Scliar, uma Vida em Imagens, com painéis de composições fotográficas sobre a vida

do autor.

(2009)”.

Eu gosto de conversar com jovens ou com qualquer pessoa sobre literatura. É um ofício muito solitário, este,

de modo que romper a casca de vez em quando é benéfico. (...) Eu às vezes recebo telefonemas aflitos:

- Rápido! Tenho prova amanhã! O que o senhor quer dizer com a sua obra? Não há dúvida que é um bom exercício de síntese e que

deve ter alguma utilidade: acredito que, no dia do Juízo, o Senhor nos cobrará mais ou menos nesses termos –

Rápido! Qual foi o sentido de sua vida? – de modo que é bom a gente estar preparado. (p. 58)

Moacyr é coerente porque sempre se mostrou fiel aos seus princípios,

buscando a proximidade com os mais humildes estudantes em escolas que nem sempre poderiam lhe dar o conforto de boas instalações.

Moacyr escreve em Memórias de um aprendiz de escritor (p.10)

Cada vez que me julgo importante, por ser escritor, ou por

ser médico, ou por escrever no jornal, uma vozinha debochada me chama à realidade – que besteiras são essas que andas escrevendo, Mico? – e me faz lembrar

que é preciso ser humilde.

Moacyr tem carisma porque consegue interagir com plateias de crianças, jovens ou adultos, trazendo suas experiências de acordo com o

público que o assiste.

Em 2003, na primeira edição do Programa, Scliar aceitou participar e as escolas de Guaíba EEEM Ruy Coelho Gonçalves e EMEF Amadeu

Bolognesi o escolheram para interagir com suas obras e receber sua

visita. O encontro seria no final do ano e a expectativa era grande. Quando houve o anúncio de que o escritor assumiria uma cadeira na

Academia Brasileira de Letras, os estudantes ficaram impressionados e ao mesmo tempo tristes porque julgavam que um imortal não poderia ir

conversar com alunos de uma escola pública de um lugar pouco importante como Guaíba. Prepararam leituras, fizeram maquetes de

suas obras, combinaram apresentações de cenas, mas não esperavam que Scliar fosse vê-los. Quando ele chegou, a alegria foi imensa: havia

pais, funcionários, professores, todos queriam tocar o imortal e a sua fala com eles foi de um amigo próximo, comprovada nos grandes

sorrisos que ficaram gravados nas fotos do evento.

Scliar encanta plateias de todas as idades. Fome de Ler 2003

FOME DE LER 2003 – O recém imortalizado escritor na EEEM Ruy Coelho

Gonçalves

Moacyr era sempre o primeiro da lista. No Programa Fome de Ler, em

todos os anos há uma lista de autores participantes e o processo de escolha é realizado de forma democrática: cada escola indica suas

preferências através de um formulário enviado para o site da CRL e da Ulbra. O critério dos organizadores foi sempre estabelecido a partir da

data do envio dos formulários pelas escolas. Havia uma espera ansiosa.

Quem queria receber o Moacyr enviava o formulário à primeira hora do dia estipulado. Assim aconteceu com Dom Feliciano, com Cerro Grande

do Sul e muitos outros.

Em 2004, a cidade de Dom Feliciano (172km de Poa) se preparou inteira e o escritor não pode ir porque teve de realizar uma cirurgia na coluna.

O mau estado de nossas estradas (em especial da região Centro-sul) acabou causando uma decepção dos leitores que o esperavam

ansiosamente.

Em 2006 (já refeito), Scliar se deslocou para Cerro Grande do Sul

(120km de POA) onde encontrou estudantes de todas as 12 escolas públicas do município. Para os acadêmicos de Letras, Leticia e Estevão,

que o acompanharam, foi uma experiência rica e inesquecível. A honra

de estar ao lado dele motivou-os ainda mais para perseguir a profissão escolhida. Foi um evento marcado pela presença de autoridades,

diferente do que acontece comumente na capital. No interior, a visita de

um escritor é uma festa. No início do Programa Fome de Ler, os escritores passavam o dia todo no município e havia almoço festivo com

direito a discurso e presença do prefeito e secretários. Essas atividades

são importantes, mas para um escritor podem ser exaustivas. No entanto, Scliar sempre se dedicou a esses compromissos com o prazer e

a tranquilidade de quem se propõe a uma missão, pois dizia:

Só não vou a mais escolas porque não tenho condições. Se atendesse a todos os pedidos, estaria todo dia em algum lugar do Brasil. É uma emoção, olho para aqueles rapazes

e moças e me vejo no meio deles, vejo o fascínio que tinha pela figura do escritor.

A nossos pedidos ele não recusava. Em 2008, mais encontros para matar a fome de ler – Colégio Estadual Cônego Scherer (Guaíba) e

EEEM Ana Cesar (Camaquã). A professora Dóris Hupel, apaixonada pela

obra “O Centauro no jardim”, era a primeira a beber as palavras do autor, incendiando a escola o ano inteiro com a preparação para a

visita.

Scliar no Colégio Estadual Cônego Scherer / Guaíba / Fome de Ler 2008

Scliar na Escola Estadual Cônego Scherer, Guaíba, Fome de Ler 2008

Em novembro de 2009 (25/11), a Folha Cultural do IE Dr. Carlos Augusto de Moura e Cunha e os aprendizes de jornalistas convidavam

toda a comunidade guaibense para a IV Semana Cultural nas salas temáticas especialmente preparadas a partir da leitura das obras do

Scliar. A exemplo do autor, a imaginação corria solta entre a professora Silvania e os criativos alunos do ensino médio: “O mistério da casa

verde” em releitura com o túnel da loucura inspirado em “O alienista”, de Machado de Assis; a encenação de O amigo de Castro Alves

desencadeando estudos de questões como a escravidão, o preconceito, envolvendo jornalismo e teatro. Os artistas do ensino médio viveram

intensamente a literatura antes, durante e depois da visita de Scliar, fazendo toda a escola refletir sobre sua obra.

Os encontros aumentavam mais e mais. Muito assediado, aceitava participar de todos. Em 2010 foi a Guaíba, Canoas, Minas do Leão e

Cachoeira do Sul. Tudo que ele fazia trazia algumas recompensas.

Acadêmicos do curso de Letras Ulbra Guaíba com a coordenadora,

Angela Rolla, a professora Iveliz Sarczuk e o escritor Moacyr Scliar IEE Gomes Jardim, Guaíba, Fome de Ler 2010

Na rede municipal de Canoas, Scliar esteve com alunos de EJA em uma escola no bairro Guajuviras com o significativo nome de EMEF Carlos

Drummond de Andrade.

O auditório da Biblioteca Municipal de Minas do Leão foi o palco do

encontro com o Scliar naquela cidade. Todas as escolas públicas participaram e expuseram seus trabalhos para o autor ver. Lembro em

especial de um trabalho da sétima série com o conto “A orelha de Van Gogh”, organizado pela professora Rosana. O conto é impactante e as

reflexões dos alunos foram incríveis.

No dia do encontro no IEE Gomes Jardim, em 2010 (28/09), os alunos

se transformaram em cronistas, compositores, diretores de teatro e bibliotecários:

- Filipe Santos e Vinicius Gallo criaram a música Amigo Moacyr;

- Agatha de Oliveira dirigiu uma peça a partir da obra O exército de um

homem só e seus colegas foram os atores;

- Karen Pereira da Silva escreveu uma crônica dedicada ao autor e se

confessou futura escritora;

- O escritor recebeu um “cantinho do autor” na biblioteca da escola.

Alunos do Ensino Médio encenando peça a partir da obra do Moacyr, O exército de um homem só, com direção da aluna Agatha de Oliveira

A sua passagem deixava sempre um rastro de encantamento,

transformado em ações de leitura e escrita. Muitos que tinham passado

indiferentes às obras, agora as procuravam com renovado interesse, associando-as à figura cativante que encontraram no autor.

Moacyr e os leitores no IEE Gomes Jardim / Fome de Ler 2010

Segundo a professora Iveliz Sarczuk, do IEE Gomes Jardim, “a notícia de sua morte foi um abalo terrível na escola, trouxe uma comoção, foi

como se tivessem perdido um colega, um amigo próximo”.

A comunicação do autor com os alunos e professores leitores era visível e provocava uma empatia imediata. Isso acontecia porque o mundo que

Scliar mostrava a eles nos livros e as histórias que contava sobre sua

vida eram semelhantes ao mundo deles. Encontrei em uma escola a passagem de uma obra muito apreciada

pelos adolescentes que fala sobre a ligação de Scliar com o mundo através do livro, o ato de ler descrito por ele de forma simples e

verdadeira.

Lia, lia. Deitado num sofá, o livro servindo como barreira entre eu e o mundo. Isto: o livro é uma barreira; mas é

também a porta. A porta para um mundo imaginário, onde eu vivia grande parte de meu tempo. (p. 12, Memórias de

um escritor aprendiz)

É a porta que ele abriu para ser um cidadão do mundo, para poder estar

sempre próximo de nós, seus leitores e seus amigos.

Em novembro de 2010 o último encontro do ano do Programa foi com

nosso amado Scliar no Colégio Ulbra São Pedro no município de Cachoeira do Sul, a 200km de Porto Alegre. A supervisora Jane Kulmann

nos relata que a expectativa anunciada pela editora era de um Scliar sério, um pouco distante, sem muito tempo para se aproximar de todos.

Nada disso aconteceu: estava muito alegre, brincou com as crianças,

tirou fotos com o painel que fizeram para ele e surpreendeu a todos com sua proximidade e disposição.

Scliar no Colégio Ulbra São Pedro na despedida do Programa Fome de

Ler

2011 / Cachoeira do Sul

Essa disposição foi sempre perseguida pelo autor. Na crônica “O papo é

a literatura” (escrita em 1977), fala com simplicidade do escritor e o

contato com estudantes nas escolas. Fragmento da obra publicada em 2012, “A poesia das coisas simples” (Regina Zilberman como

organizadora – crônicas escritas por Scliar entre 1977 e 2010)

Há quem não goste, mas eu particularmente acho que o encontro de um escritor com o público (especialmente o

público jovem) é uma experiência muito interessante. Não que o escritor vá escrever melhor por causa disso; talvez

até escreva, em função do enriquecimento que significa esse contato. Também não acho que o público vá ampliar

seus conhecimentos sobre a literatura propriamente dita em função de um papo com escritor. Mas penso que o principal resultado desses encontros é a desmistificação de

aspectos da atividade literária — que, em nosso país (como em muitos outros), se reveste de uma aura mágica.

A verdade é que a palavra escrita impõe respeito, especialmente nos lugares em que boa parte da população ainda não a domina inteiramente.

Então, a primeira coisa que os alunos (vamos nos

restringir a alunos) descobrem é que o escritor é um ser de carne e osso igual a todo mundo. Ele não entra voando pela janela, não emite nenhuma luz mágica. Fala.

Responde perguntas.

As perguntas feitas aos escritores são interessantes. Refletem a concepção de que a literatura se gera no escritor como resultante de uma conjuntura peculiar, de

certas manobras, de determinados ritos. Os alunos perguntam a que horas o escritor escreve, como é que ele

escreve, o que faz com o texto depois de pronto, etc.

E acrescenta ainda: “Enquanto houver jovens dispostos a perguntar, valerá a pena escrever e falar sobre o escrever” (“Estes jovens

entrevistadores e seus fantásticos gravadores”, da obra “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”, (2009, p. 59)).

Ele valoriza este papel, mas ressalta que onde o escritor sente-se

realizado é através da palavra escrita.

E já que estamos falando em palavra, vamos lembrar que

para o escritor o lugar mais adequado para a palavra é na página impressa. É ali que ela encontra a plenitude de sua

realização, a sua hora da verdade. Portanto, depois de encontro com os escritores, é muito bom se encontrar com os livros. Depois de falar em literatura, é bom procurar a

literatura. É ou não é?

Não resista a este convite, é o bem que ele nos deixa de mais precioso.

REFERÊNCIAS

SCLIAR, Moacyr. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar (e

outras crônicas). Porto Alegre: L&PM, 2009.

_____________. O aprendiz de escritor. In: ______. Memórias de um aprendiz de escritor. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1984.

____________ . A poesia das coisas simples: Crônicas. Organização e

prefácio de Regina Zilberman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Depoimentos de professoras do Programa de Leitura Fome de Ler que

receberam o escritor em suas escolas. Fotografias de encontros do Programa nas escolas estaduais e

municipais.