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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DOUTORADO EM DIREITO WREMYR SCLIAR TRIBUNAL DE CONTAS: DO CONTROLE NA ANTIGUIDADE À INSTITUIÇÃO INDEPENDENTE DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Porto Alegre 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

DOUTORADO EM DIREITO

WREMYR SCLIAR

TRIBUNAL DE CONTAS:

DO CONTROLE NA ANTIGUIDADE À INSTITUIÇÃO INDEPENDENTE DO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Porto Alegre

2014

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WREMYR SCLIAR

TRIBUNAL DE CONTAS:

DO CONTROLE NA ANTIGUIDADE À INSTITUIÇÃO INDEPENDENTE DO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientadora: Profa. Dra. Regina Linden Ruaro

Porto Alegre

2014

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Catalogação na Fonte (CIP)

S419t Scliar, Wremyr

Tribunal de Contas : do controle na Antiguidade à

instituição independente do Estado Democrático de

Direito / Wremyr Scliar. – Porto Alegre, 2014.

294 f.

Tese (Doutorado) – Faculdade Direito, PUCRS.

Orientador: Profa. Dra. Regina Linden Ruaro.

1. Administração Pública - História. 2. Tribunal de Contas -

Brasil. 3. Controle Administrativo. 4. Democracia.

5. Estado Democrático de Direito. I. Ruaro, Regina Linden.

II. Título.

CDD 341.3

Bibliotecária Responsável

Ginamara de Oliveira Lima

CRB 10/1204

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WREMYR SCLIAR

TRIBUNAL DE CONTAS:

DO CONTROLE NA ANTIGUIDADE À INSTITUIÇÃO DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em: ___ de ____________________ de 2014.

Banca Examinadora:

______________________________

Professora Doutora Regina Linden Ruaro – PUCRS – Orientadora

______________________________

Professor Doutor

______________________________

Professor Doutor

______________________________

Professor Doutor

______________________________

Professor Doutor

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À Elizabeth, Vanessa, Diego e

Arthur.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Regina Linden Ruaro, desde os bancos acadêmicos até o incentivo para a elaboração desta tese, os agradecimentos pelo exemplo de jurista e professora.

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O povo, autor do controle, limite do poder e afirmação da sua liberdade, seu destinatário e ator necessário.

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RESUMO

O Tribunal de Contas, no regime constitucional brasileiro, exerce as atribuições de

controle da administração pública direta e indireta, em todos os poderes e unidades

da federação. O controle pelo Tribunal de Contas é a expressão técnico-política da

limitação do poder dos governantes. Ele é o autocontrole do Estado sobre o Estado,

exercido em nome do povo. Milenar, encontram-se registros em livros e documentos

do controle entre os hebreus consignados em normas com moldura narrativa e

forma lítero-religiosa. Os gregos e romanos criaram instituições colegiadas,

magistraturas insertas em sistemas democrático e republicano, respectivamente.

Dos povos da Antiguidade, herdou-se o legado civilizatório. O predomínio do

feudalismo e da religião eclipsaram as instituições estatais; entretanto, em cidades

italianas, francesas e na Inglaterra, o controle exerceu-se no interesse da comuna,

do rei ou impondo limites à casa real. A inflexão para a institucionalização

republicana permanente, resultado de um conflito radical com o regime anterior é a

Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada durante a Revolução

Francesa, que defenestra, radicalmente, o regime aristocrático-feudal e impõe o

direito popular e social do controle limitador do poder. A Proclamação da República

no Brasil institui o Tribunal de Contas, saneador das finanças e organizador da

administração contábil. Nos períodos autoritários, o Tribunal é mantido em recesso

ou sem autoridade. Venceu a nascente república a reação ao controle. Com a

redemocratização de 1988, o Tribunal de Contas no Brasil torna-se instituição de

Estado que controla a administração pública, ampliadas as suas atribuições,

emergindo da Carta a independência, a autonomia para as suas atribuições,

equiparado aos Tribunais de Justiça. No Estado Democrático de Direito brasileiro a

função do Tribunal de Contas é convergente aos valores fundamentais: democracia,

república e direitos humanos. Quedam problemas e lacunas identificadas no sistema

brasileiro de controle; para eles se apresentam proposições visando resolvê-los.

Palavras-chaves: Tribunal de Contas. Origens. Controle do poder. Administração

pública. Estado Democrático de Direito.

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ABSTRACT

The Court of Auditors in the Brazilian constitutional regime is responsible for

controlling the direct and indirect public administration in all the powers and units of

the federation. Control by the Court of Auditors is the technical and political

expression of the limitation of the power of rulers. It is the self-control of the State

over the State, carried out in the name of the People. It is thousands of years old

and is mentioned in books and documents regarding control among the Hebrews, in

the form of rules with a narrative and literary-religious framework. The Greeks and

Romans created collegial institutions of magistrates as part of the democratic and

republican systems. The predominance of feudalism and religion eclipsed the State

institutions, however, in Italian and French cities and in England, control was exerted

on behalf of the interests of the commons, the king, or imposing limits on the power

of royalty. The inflection towards permanent republican institutionalization as the

result of a radical conflict with the previous regime is the Universal Declaration of

Human Rights, proclaimed during the French Revolution, which radically

defenestrated the aristocratic and feudal regime and imposed the popular and social

rights of control limiting power. When the Republic was proclaimed in Brazil the Court

of Auditors was instituted to solve financial aspects and organize the administration

of accounts. During authoritarian periods, the Court remained in recess or had no

authority. The newborn republic prevailed over the reaction against control. When

Brazil became a democracy again, in 1988, the Court of Auditors in Brazil became

the institution of the State that controls public administration. Its powers were

broadened, and from the Constitution emerged the independence and autonomy to

carry out its tasks, equivalently to the Courts of Justice. In the Brazilian Democratic

Rule of Law the purpose of the Court of Auditors converges with the fundamental

values: democracy, republic and human rights. Some problems and voids have still

been identified in the Brazilian control system; proposals are presented to solve

them.

Key Words: Court of Auditors. Origins. Control of power. Public administration,

Democratic Rule of Law.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 11

1 ORIGENS DO SISTEMA JURÍDICO DO CONTROLE DA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.................................................................

15

1.1 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ENTRE OS

HEBREUS...............................................................................................

15

1.2 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM ROMA................. 49

1.3 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA GRÉCIA............... 60

1.4 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS CONTROLES DA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DOS GREGOS, ROMANOS E

HEBREUS...............................................................................................

66

2 O SURGIMENTO DAS CORTES DE CONTAS – DA IDADE MÉDIA

À REVOLUÇÃO FRANCESA.................................................................

75

2.1 AS CORTES DE CONTAS MEDIEVAIS................................................. 75

2.1.1 Idade Média – características políticas e jurídicas............................ 75

2.1.2 O controle na Inglaterra........................................................................ 78

2.1.3 O controle na França............................................................................. 81

2.1.4 O controle nas cidades italianas.......................................................... 83

2.1.5 O controle em Portugal......................................................................... 90

2.2 A RUPTURA DA REVOLUÇÃO FRANCESA COM A MONARQUIA E

O SISTEMA FEUDAL NA FRANÇA – AS DECLARAÇÕES E O

CONTROLE FINANCEIRO E ADMINISTRATIVO..................................

93

2.2.1 Reforma da administração pública...................................................... 96

2.2.2 As normas e as medidas revolucionárias que fundamentam o

controle..................................................................................................

98

2.2.3 A derrocada do velho regime e suas instituições financeiras e as

normas revolucionárias de 1789 para o controle das finanças........

103

2.2.4 As Constituições posteriores a 1789 e o controle financeiro........... 110

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3 O TRIBUNAL DE CONTAS NO BRASIL............................................... 115

3.1 O CONTROLE DURANTE O PERÍODO COLONIAL PORTUGUÊS...... 115

3.2 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA PELA CÂMARA

DE CONTAS NO TERRITÓRIO OCUPADO PELA HOLANDA..............

117

3.3 AS TENTATIVAS DE CRIAÇÃO DE UM TRIBUNAL DE CONTAS NO

IMPÉRIO BRASILEIRO...........................................................................

123

3.4 A INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS NO BRASIL. O

DECRETO Nº 966-A E A CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA DE 1891...

127

3.5 O TRIBUNAL DE CONTAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1934.................... 139

3.6 A CARTA AUTORITÁRIA DE 1937, TRIBUNAL DE CONTAS E A

SUSPENSÃO DE SUAS ATIVIDADES...................................................

142

3.7 A REDEMOCRATIZAÇÃO E O TRIBUNAL DE CONTAS

RESTABELECIDO NA CARTA DE 1946................................................

145

3.8 TRIBUNAL DE CONTAS NA CARTA DE 1967....................................... 151

3.9 A CARTA DE 1969 E O TRIBUNAL DE CONTAS.................................. 154

3.10 REDEMOCRATIZAÇÃO – A CARTA DE 1988 E A AMPLIAÇÃO DAS

FUNÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS................................................

156

3.10.1 Atividade financeira do Estado e fiscalização.................................... 157

3.10.2 Controle da administração pública...................................................... 160

3.10.3 Amplitude da ação fiscalizadora.......................................................... 164

3.11 CONGRESSO NACIONAL E O AUXÍLIO DO TRIBUNAL DE

CONTAS..................................................................................................

168

3.12 PARECER PRÉVIO................................................................................. 177

3.13 COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO.................................................. 178

3.14 OUTRAS COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS.................................. 182

3.15 COMPETÊNCIAS INFRACONSTITUCIONAIS....................................... 183

3.16 SÚMULA Nº 347 DO STF: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE

CONTAS PARA APRECIAR A CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS E

ATOS.......................................................................................................

184

3.17 NATUREZA JURÍDICA DO TRIBUNAL DE CONTAS............................ 186

3.18 PROBLEMAS E LACUNAS – PROPOSTAS.......................................... 189

CONCLUSÃO......................................................................................................

208

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REFERÊNCIAS.................................................................................................... 214

ANEXO A – Declaração Universal dos Direitos do Homem................................

230

ANEXO B – Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890................................ 232

ANEXO C – Exposição de Motivos ao Projeto do Decreto nº 966-A................... 240

ANEXO D – Rascunho da Exposição de Motivos ao Decreto nº 966-A.............. 253

ANEXO E – Comentários e anotações de Ruy Barbosa sobre a criação do

Tribunal de Contas.........................................................................

261

ANEXO F – Projeto Botafogo – Criação do Tribunal de Contas – Originário do

IIº Império do Brasil........................................................................

276

ANEXO G – Decreto nº 5.795, de 26 de junho de 1935...................................... 281

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11

INTRODUÇÃO

O Tribunal de Contas, organismo estatal disseminado, é resultado moderno

da Revolução Francesa de 1789.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, anunciada pela Assembleia

nacional francesa inscreve, como conquista, o direito dos cidadãos de verificar as

finanças do estado (cláusula décima quarta) e da sociedade de exigir do agente

público a prestação de contas da administração pública (cláusula décima quinta).

Será efetivado em 1807, com a criação da Court de Comptes francesa.

A humanidade percorrera um longo caminho antes da queda da Bastilha.

Esse longo caminho é o conflito milenar do povo e elites governantes para

limitar o poder e ser exercido em benefício do homem e da sociedade.

As origens do controle para o qual foram criados os Tribunais de Contas têm

raízes remotas na Antiguidade.

Os hebreus, desde a poeira do tempo, afirmavam em normas jurídicas com

caráter divinizado que o rei deveria ser escolhido entre seus iguais, comedido em

sua vida pessoal e familiar, cumprir as leis, manter a liberdade, impedir a escravidão

e fazer a justiça e a solidariedade, normas que se aplicavam a todo o povo e aos

estrangeiros que entre eles viviam (uma república democrática e teocrática). A

fiscalização, desde a consciência popular, exercida pelo conselho de estado

(sinédrio) foi exercida revolucionariamente pelos profetas-fiscais e poetas da lei.

Roma e Grécia instituíram instrumentos jurídicos de controle dos

administradores inseridos na estrutura estatal e respeitados, mediante colegiados e

magistraturas. Nem mesmo imperadores foram eximidos do seu controle.

A administração pública em Roma tornou-se complexa e organizada: a ideia

central era a da responsabilidade dos que administravam as coisas públicas (res

publica); seu apogeu ocorre durante a República.

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Os gregos igualmente criaram estruturas controladoras, colegiados e

magistrados. A ideia principal – a inserção ética e responsável do cidadão na polis –

estava estabelecida no sistema de escolha dos magistrados (eleição, sorteio ou

indicação); o sistema democrático ocorria na Ágora (paliá agorá = velha praça do

mercado), local público e em público; os cidadãos de Atenas se reuniam até setenta

vezes ao ano. O auge do controle se desenvolve durante a democracia.

A Idade Média é o período do ocaso estatal – a época do domínio político e

econômico do feudo e da ideologia religiosa. Não é exatamente a época para se

manter o democrático e republicano controle. Reis e comunas adotaram colegiados

e magistraturas de controle, notadamente na Inglaterra, França e Itália, para o

controle, em benefício da casa real ou das comunas, ou ainda, como conquistas

limitadoras paulatinas do poder.

Nesse intervalo, durante a ocupação holandesa no Brasil colônia, nos anos

seiscentistas, se instala a primeira Câmara de Contas no território brasileiro, como

transplante da prática controladora batava.

Somente com a Proclamação da República brasileira, em 1889, subjugada a

anterior resistência imperial, é proposta a criação de um Tribunal de Contas, obra do

Ministro da Fazenda Ruy Barbosa, inspirado em modelos europeus conjugados. O

Tribunal será instituído pela primeira Carta Republicana (1891).

O exercício das suas atribuições sofreu lapsos temporais por suspensão ou

emasculação: de 1937 e 1945 e de 1964 a 1988.

As redemocratizações políticas e jurídicas no Brasil restauram o Tribunal de

Contas, ampliado em suas atribuições e declarada a sua independência e autonomia

para a efetiva fiscalização da administração pública, em todos os poderes e em

todas as unidades federativas.

O Tribunal de Contas, sua jurídica crônica e natureza constitucional o

demonstram, é um ente de estado não vinculado a nenhum poder.

Está de “permeio” entre eles, como um “tribunal, sui generis, mas tribunal”.

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Também se demonstra que ele somente exerce a plenitude de suas funções

constitucionais quando o Estado está organizado em sistema republicano e

democrático, seus governantes submetidos à lei.

Seu objetivo no Estado Democrático de Direito é o de garantir e concretizar

os direitos humanos, preâmbulo e conteúdo da Carta que organiza esse Estado.

São instrumentais à República e à democracia, indisponíveis, indelegáveis e

indispensáveis. Aparelham-se como instituições independentes e autônomas para

controlar os programas públicos, a fidelidade orçamentária, a ação administrativa e

em relação ao homem, controlar o direcionamento estatal para a administração e

finanças que concretizem os direitos humanos: segurança, saúde pública, educação,

seguridade social, obras públicas, proteção ao meio ambiente. Não age

solitariamente. A participação ativa da cidadania, instrumentalizada para encontrar

na corte de contas a representatividade e o direcionamento das suas denúncias,

assim nos “cadernos” de 1789 e como na Antiguidade clássica, ter os seus tribunos

ou inserir-se na polis, e mais, remotamente, os discursos e as críticas dos profetas.

A democracia e a República não são obras acabadas: seus instrumentos de

controle também carecem de aperfeiçoamento.

São processos em constante evolução (e retrocessos).

No processo, o Tribunal de Contas é instituição existencial.

Nessa senda, a Constituição de 1988 atribuiu funções estruturais ao Tribunal

de Contas, com relevância jurídica, dotado de predicamentos e assemelhado aos

Tribunais de Justiça, garantia aos seus membros, especializado para fiscalizar as

ações da administração pública e dos seus agentes.

Ressente-se a Corte de Contas, o tempo e a experiência o demonstram, de

problemas e lacunas na sua posição constitucional, composição e finalidades

efetivas, todas submetidas ao modelo federativo impositivo.

Propõe-se soluções.

Com elas, pretende-se angariar e qualificar meios e recursos profissionais.

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O controle é o limite do poder dos governantes, para ser exercido segundo a

lei.

É garantidor – institucional e independente – da democrática e republicana

gestão das coisas públicas, cuja finalidade é a concretização dos direitos do homem.

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15

1 ORIGENS DO SISTEMA JURÍDICO DO CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA

As origens do controle da administração pública são encontradas entre os

hebreus, a partir da compreensão dos seus livros e documentos.

Seus valores, assim como os de Roma e Grécia, são o legado para o

sistema jurídico de controle. Os romanos e gregos criaram um sistema institucional e

normativo mais sofisticado e ampliado, com definições quanto aos tribunais e

magistraturas.

Vertentes da Antiguidade, nela se encontra a germinação de princípios

jurídicos civilizatórios.

1.1 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ENTRE OS HEBREUS

O controle da administração pública encontra as suas raízes mais remotas

entre os hebreus1 e posteriormente entre os gregos2 e romanos3.

O conhecimento jurídico sobre a organização estatal e social do povo hebreu

está baseado na análise da Torá4, no Talmude5 de Jerusalém e no Talmude da

1 Os hebreus, povo que se fixou nas terras costeiras ao mar Mediterrâneo, com o rio Jordão e o mar Morto no flanco oriental, segundo a narrativa bíblica seria originário de Ur, na Caldéia e conduzidos à denominada Canaã por seu patriarca Abrahão. A palavra deriva de ibri, significando além do rio. Com os reinos posteriores, divididos entre Israel e Judeia, a palavra hebreu traduz, para o autor, a denominação mais adequada para a designação daquele povo. Para essa designação, CHOURAQUI, André. Os homens da Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

2 Relativamente ao controle da administração pública pelos gregos, o período jurídico se refere ao clássico, quando a democracia, sob Péricles e as práticas da Ágora (a praça do mercado de Atenas), com o voto, sorteio e escolha entre os cidadãos atenienses.

3 O controle da administração pública entre os romanos, aqui referido e utilizado neste trabalho, ocorre no período jurídico da república, dos cônsules e do senado.

4 Torá, palavra hebraica, é usualmente traduzida por lei, derivada do verbo instruir, ensinar ou guiar. São os cinco primeiros livros do Velho Testamento ou Bíblia hebraica, nominados de Pentateuco, palavra de origem grega. Posteriormente, Torá ou Pentateuco foi associado à sabedoria e à palavra primordial (verbo), segundo a narrativa do Gênesis, como origem do mundo. É também sinônimo de conhecimento aliado à bondade. O autor utiliza para esse fim ARMSTRONG, Karen. A Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

5 Talmude é a palavra em português para o hebraico Talmud (ensino ou estudo). Refere-se às duas escrituras. A primeira é originária de Jerusalém (Yerushalmi), completado no século V d. C. O

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Babilônia, nos textos dos profetas e nos manuscritos descobertos nas cavernas de

Qumram, nas fraldas do mar Morto6.

Dois autores da antiguidade clássica, Flávio Josefo7 e Fílon de Alexandria8,

o primeiro hebreu que viveu seus últimos dias em Roma e, o segundo, hebreu

alexandrino, são, juntamente com os Manuscritos, as fontes mais precisas a respeito

desse tema.

São contemporâneos do sistema jurídico hebreu (cerca do primeiro século

da era cristã) e legaram extensa obra com abordagem jurídica sobre o sistema legal

hebreu.

Os hebreus constituem-se em um povo cuja descrição bíblica, Velho e Novo

Testamento, está repleta de descrições míticas, cuja caracterização a partir das

pesquisas notadamente filológica e textos de André Chouraqui9, permite afirmar

Talmude da Babilônia, cuja escritura se inicia durante o período da escravidão dos judeus na Babilônia sob o rei Nabucodonosor, foi completado no século VI d. C. O segundo, (Bavli) é considerado, também pelo autor, como mais completo. Os Talmudes se transformaram na interpretação possível nos períodos de escravidão e de exílio. O episódio que inicia a escravidão babilônica, quando levados pelo rei Nabucodonosor (na verdade, a elite do povo hebreu, seus sacerdotes, sábios, literatos, juízes e o rei Joaquim, além dos homens e mulheres válidos para o trabalho escravo, foi magistralmente representado pela ópera Nabuco, de Giuseppe Verdi, cujo coro “Va pensiero” é um hino à liberdade, quando a Itália esteve submetida ao império austríaco no século XIX. Ambos os Talmudes são comentários ao sistema jurídico hebreu, tornando possível a sua aplicação em terras estrangeiras. Como o Templo de Jerusalém foi destruído, a Torá e os Talmudes tornam “a religião portátil” do povo hebreu.

6 Os Manuscritos do Mar Morto são a prova documental arqueológica da existência do corpo jurídico hebreu. Encontravam-se no wadi (rio seco), nas cavernas de Qumram (duas caveiras) e somam mais de 1.100 rolos, que estavam guardados em ânforas seladas. São cópias do Velho Testamento, o regulamento e os hinos (originais) de uma seita denominada essênios, que ali construiu junto ao Mar Morto, ao sul de Jerusalém um mosteiro e oficinas de escribas. A esse respeito, VERMES, Geza. Os manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Mercuryo, 1992. Outros autores, especialmente arqueólogos também publicaram: E. L. Sukenik, H. H. Rowley, W. F. Albright, R. de Vaux, A. Dupont-Sommer e Y. Yadin.

7 Flávio Josefo foi sacerdote, governador militar, general e, sobretudo, historiador. Viveu no início da era cristã, quando Roma destrói o país dos hebreus. Aprisionado por Vespasiano e Tito, é levado como escravo para Roma, vive no palácio do imperador e tem liberdade para escrever Antiguidades Judaicas e Guerra dos Judeus contra os Romanos, entremeados de uma autobiografia e de Resposta a Ápio. Seu nome foi latinizado e manteve relações com Plínio. Com Horácio e outros latinos, polemizou sobre a filosofia e modo de vida dos hebreus. Suas obras completas em português – História dos Hebreus – foi editada pela Editora das Américas Ltda., Rio de Janeiro, 1992, 1 ed. Para a biografia de Flávio Josefo (nome latinizado) e chamado em hebreu de Josefo filho de Matias, HADAS-LEBEL, Mireille. Flávio Josefo, o judeu de Roma. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

8 Fílon de Alexandria era filósofo, tradutor e hermeneuta do Velho Testamento. Viveu em período contemporâneo a Flávio Josefo em Alexandria, colônia grega no Egito, onde habitava uma importante comunidade hebraica, rivalizando com a de Jerusalém e influenciada pela filosofia grega clássica, especialmente Aristóteles. As referências principais a Fílon estão em Flávio Josefo.

9 Pela sua tradução da Bíblia para o francês, foi agraciado com a medalha de ouro da Academia Francesa de Ciências. Suas pesquisas, continuadas na Universidade Hebraica de Jerusalém,

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tenha origem nômade, oriundo da bacia dos rios Tigre e Eufrates, até se fixarem na

Palestina, em território mais ao interior.

No período do nomadismo, quando o povo estava dividido em tribos

ancestrais, os hebreus já adotavam alguns dos princípios, posteriormente

enunciados de forma ampliada durante a passagem pelo deserto do Sinai na saga

libertadora do cativeiro do Egito, conduzidos por Moisés10, que outorga ao povo o

decálogo, ou dez mandamentos, cognominados de “palavras”, inscritos em pedra e

atribuídos à fonte divina, recebendo a qualificação de normas jurídicas de conduta

geral sob o manto da ideologia religiosa, igualmente codificada e incisivamente

monoteísta.

O sistema jurídico dos hebreus não incluía normas especificadas sobre o

controle da administração pública, mas, em relação à organização administrativa e

judicial, era bastante extenso.

As normas de controle são esparsas, emolduradas de rituais e regras

religiosas, ao mesmo tempo em que se constituem em uma narrativa histórica da

vida nacional dos hebreus.

Entre os textos da Torá, Talmude e Profetas há imposições de conduta ética

aos governantes na sua vida pública e privada, assim como nas suas condutas

comunitárias (sociais).

Conforme Frank Crüsemann11 sobre a Torá:

incluem uma vasta obra de interpretação sobre os livros bíblicos. Para o Novo Testamento revela-se importante, porque não há comprovações arqueológicas a respeito da narrativa bíblica posterior à Bíblica hebraica.

10 Moisés era um nobre (teria sido príncipe?) nascido no Egito, nome copta, a antiga língua da região, cujo sufixo és é deus ou divindade e que retira seu povo do cativeiro, conduzindo-o ao retorno à terra de origem. Sua figura é mítica. Por ter conquistado a liberdade, liderado o povo na travessia do deserto do Sinai, instituído o monoteísmo e outorgado uma constituição fundadora (decálogo ou dez mandamentos) os hebreus (e os judeus hoje) consideram-no criador da nação hebraica.

11 CRÜSEMANN, Frank. A Torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Tradução de Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 11-12. Sobre o autor anota-se que, após a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, os Livros do Velho Testamento foram revalorizados, especialmente por filósofos, teólogos e professores. Crüsemann é um desses autores que se dedicaram ao estudo do Velho Testamento. Observa que, mais do que uma lei, a Torá é um paradigma de procedimentos rotineiros para os homens. Jubileu, perdão das dívidas, direitos dos pobres – direitos humanos, relações sociais são pautadas pela realização da justiça normatizada. A Torá é o coração do Velho Testamento que é, a sua vez, o coração do Novo Testamento.

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18

Tradicionalmente, a Torá foi entendida sob o conceito cristão de “lei”. Com isso, muitas vezes acabou contraposta ao “Evangelho”. Porém, histórica e teologicamente, há muito já foi reconhecido que tais oposições somente são possíveis através de uma deturpação do conceito bíblico de Torá.

A palavra tóráh designa, em linguagem coloquial da época do Antigo Testamento, o ensinamento da mãe (Pr 1,8,; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,1s) para introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das ciladas da morte. Nisso, como em todos os demais usos, a palavra abrange informação e orientação, instrução e estabelecimentos de normas, e, com isso, também promessa e desafio. Expressa igualmente o mandamento e a história da instrução, da qual emerge. A partir daí, o conceito Torá torna-se um termo técnico para a instrução dos sacerdotes aos leigos (Jr 18,18; Ez 7,26), mas designa também as palavras dos mestres da sabedoria (Pr 7,2; 13,14) ou do profeta (Is 8,16.20; 30,9) para os discípulos. No Deuteronômio, por fim, Torá transforma-se no conceito mais importante da vontade de Deus universal e literariamente fixada (p. ex. Dt 4,4s; 30,10; 31,9). Aqui, Torá abrange tanto narrações (esp. Dt 1,5) quanto leis (cf. esp. SI 78,1.5.10). Mais tarde, esse conceito deuteronômico designa a lei de Esdras (p. ex. Ne 8,1), todo o Pentateuco, mas também a palavra profético-escatológica de Deus para os povos (Is 2,3 par.; Mq 4,2; Is 42,4).

Enquanto a Torá e o Talmude expõem essas normas, os profetas12 têm uma

função, com seus discursos de denúncia e críticas aos governantes e a todo o

povo13.

Criticam e denunciam os profetas não apenas o desregramento em relação

às normas de conduta pública e privada, mas inclusive em assuntos de

relacionamento com os povos vizinhos, com veemência e a partir de exemplos

pessoais, em uma forma poética. As críticas e as denúncias candentes aos desvios

e desregramento quanto às condutas exigidas pela Torá granjearam aos profetas a

admiração do povo, ouvidos atentamente e seguidos pelo povo, que se reunia nas

portas das cidades para ouvi-los e guardar as palavras, muitas vezes sob ameaça

de terríveis castigos que adviriam aos poderosos e ao povo pelos fatos narrados

pelos profetas.

A comprovação histórica dessas normas e do papel desempenhado pelos

profetas está inscrita na descoberta em abril de 1947 nas cavernas de Qumram,

12

Os profetas, para os fins do controle da administração, têm um papel crítico, que denunciam os desvios do cumprimento das leis, não apenas pelos governantes, mas também pelo povo. São profetas importantes Isaias, Amós e Oséias; suas críticas e denúncias abordam as questões de governo, tributos, administração e cumprimento das leis pelas classes dirigentes. O valor literário dos profetas tem sido fonte de inspiração para escritores, poetas, pintores e compositores.

13 ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. 5. ed. São Paulo: Ícone, 1989. p. 17 et seq. Conforme Altavila, na p. 35, após citar Michelet, Stuart Mill e Will Durante: “[...] dos judeus saiu a idéia de justiça social e dos direitos humanos [...]”.

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19

situadas em agrestes montanhas salitradas, de difícil acesso, às margens do mar

Morto, ao sul de Jerusalém.

Ali viveu uma comunidade sectária denominada de essênios, que produziu

uma biblioteca com cerca de 1.100 livros, em forma de rolos, escondidos em ânforas

nas cavernas quando o exército imperial, sob o comando de Vespasiano e seu filho

Tito, após terem destruído o Templo e arrasado a cidade Jerusalém, se aproximava

da localidade onde existia um monastério e as demais instalações comunitárias e

ritualísticas no ano 70 d. C.

Alguns desses livros são coincidentes com os livros do Velho Testamento,

outros correspondem às regras da comunidade essênia ou são apocalípticos,

contendo também hinos e material lítero-religioso.

Interessa, sobretudo, a extraordinária descoberta do livro do profeta Isaías,

um rolo com aproximadamente 7 metros de comprimento, 70 cm de altura,

praticamente intacto pelas condições do esconderijo e para o qual foi erguido um

museu em Jerusalém, denominado de Santuário do Livro, que guarda a forma das

ânforas e exposto permitindo a sua perfeita leitura.

No Livro, Isaías faz referências às normas antigas e acusa governantes e

povo de descumprirem-nas.

A existência desse livro14, copiado entre 150 a. C. e 100 d. C., é a prova

documental (a mais importante descoberta arqueológica até o presente) de um

sistema jurídico que iniciado em período tribal e nômade, portanto com tradição oral,

torna-se uma codificação, à qual os textos proféticos serão incluídos, e são

perfeitamente permeadas por normas de administração pública e seu controle

peculiar.

14

O Livro de Isaías, encontrado em uma caverna do wadi (rio seco), em Qumram, é produto de cópia de um original codificado no séc. V a. C. Muitos dos livros, em forma de rolo, com duas hastes nas extremidades dos manuscritos, que são giradas para desenrolar e permitir e leitura, são cópias dos livros bíblicos, mas outros são próprios da seita essênia, cujo ritual é bastante assemelhado ao do cristianismo primitivo, especialmente pelo despojamento e comunitarismo dos bens, refeições rituais e preocupação com a higiene e saúde.

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20

O rei Josias15 tinha mandado codificar esses textos, considerados sob várias

faces, religiosa, nacional e jurídica, dando-lhes a conformação pela qual hoje são

conhecidos.

Se as normas da Torá são inicialmente orais, pelas próprias condições

nômades e tribais do povo, tornam-se paulatinamente em documentos à medida que

o povo se estabelece, sob a condução de Moisés, na sua terra original,

sedimentando-se e fazendo nascer a vida urbana e organizada administrativamente.

A nação se unifica, o povo torna-se sedentário, preponderantemente rural,

com atividades agrícolas e pastoris, até que as cidades, notadamente Jerusalém, já

ao tempo do rei Salomão, se torne uma cidade importante e centro político e

administrativo do povo hebreu.

Moisés, como líder e unificador e fundador da nação, e o decálogo,

considerado uma constituição política fundadora, incluindo o monoteísmo, são os

marcos iniciais da política e da administração.

O sistema jurídico, portanto, é devido a Moisés e registrado e instituído nos

dez mandamentos.

Contém normas estritas de conduta dos governantes, desde a sua escolha,

os requisitos pessoais e as funções.

Sob a formalidade religiosa, essas normas podem ser entendidas também

como uma ideologia, mas tinham uma finalidade: a unidade do povo, sob o

monoteísmo e normas específicas quanto à administração da justiça, serviços

estatais, atividades comunitárias e familiares, a organização religiosa, civil,

econômica e tributária.

O início histórico dessa evolução normativa é a libertação do cativeiro do

Egito, conhecido como Pessach, traduzido do hebraico como passagem, travessia

ou páscoa. Sob essa última denominação, a cada ano, de acordo com o calendário

lunar, era comemorada a “festa da liberdade”, e em consequência, banida a

escravidão entre os hebreus e instituído o respeito aos estrangeiros.

15

O rei Josias, por volta do século V a. C., diz a narrativa bíblica, encontrou a arca da aliança com livros de cuja existência havia apenas a tradição oral. Escoimados de material alheio ao judaísmo, são codificados e ordenados; essa versão é a conhecida como Bíblia hebraica.

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21

O decálogo é fruto da libertação e proclama a submissão de todos os

hebreus, sem distinção, ao cumprimento da lei.

Do rei, sumo sacerdote, ricos até o mais humilde pastor de ovelhas, deviam-

lhe submissão.

A liberdade da escravidão no Egito produz um segundo princípio próprio dos

dez mandamentos: todos são iguais; instaura-se a igualdade.

A comemoração da páscoa tem mais um significado, além da lembrança do

cativeiro e da conquista da liberdade, inscrita como princípio jurídico fundamental, a

igualdade é o outro princípio jurídico fundamental inscrito na Torá e fundador da

nação.

A unificação nacional é outro instrumento além da lei fundadora.

A criação de um conselho de sábios e letrados, irrepreensíveis na sua vida

privada e comunitária, acolhidos e respeitados pelo povo.

O Sinédrio16, assim denominado o conselho, funcionava como órgão político

supremo, tribunal superior, elegia o rei, os governantes, principais oficiais e

funcionários.

Não lhe era permitido alterar a lei, apenas interpretá-la e zelar pelo seu

devido cumprimento17.

A memória política e ritualística que se celebra na páscoa é, sobretudo,

nacional e política.

Sua principal oração recorda a escravidão no Egito e adverte para o caráter

desumano da escravidão.

16

Havia um Sinédrio (conselho) denominado de Grande (71 membros) e outros menores, denominados de Pequenos e provavelmente em várias cidades. Era o intérprete legislativo, julgador, mas sua função primordial correspondia ao atual conselho de estado porque escolhia o rei, decidia sobre paz e questões bélicas, além de julgar o próprio rei. Não tinha o Grande Sinédrio competência criminal, atribuída aos demais tribunais.

17 Sobre o Sinédrio, COHN, Haim. O julgamento de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1994. p. 116 et seq. Cohn foi procurador geral do Estado de Israel, ministro e presidente da Suprema Corte. É especialista em direito antigo. Faz extensas e precisas referências sobre o Grande e os Pequenos Sinédrios, composição, competência, funcionamento. Sua tese é de que o Grande Sinédrio não julgava "crimes de sangue".

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22

Na Torá, os princípios não se restringem à liberdade (e a vedação da

escravidão) e à igualdade.

São atributos dos governantes a efetivação da justiça, da solidariedade e da

caridade, assim como a deveres de qualquer um do povo, do mais rico ao mais

humilde.

O sistema jurídico dos hebreus é democrático e, ao mesmo tempo,

republicano, quando atribui ao Sinédrio (Grande Conselho) a responsabilidade

máxima pela condução da nação.

Os dez mandamentos18, norma inicial, está contida em duas passagens do

Velho Testamento.

A primeira no Êxodus (em hebraico Shemot, traduzível literalmente para o

português como “Nomes”).

A segunda no Deuteronômio (em hebraico Devarim, cujo significado literal

em português corresponde a “Palavras”).

As passagens referidas nas quais consta o decálogo têm pequenas

variações entre si, nenhuma substancial, precedidas de introdução, mais breve no

Êxodo.

A seguir utiliza-se o texto mandamental do Deuteronômio.

6 Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egypto, da casa da

servidão:

7 Não terás outros deuses diante de mim;

8 Não farás para ti imagem de esculptura, nem similhança alguma do que ha em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas aguas debaixo da

terra:

9 Não te encurvarás a ellas, nem as servirás: porque Eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos paes sobre os filhos, até á terceira e quarta geração d’aquelles que me aborrecem,

18

Os dez mandamentos trazidos por Moisés, em dois momentos (no primeiro, foi destruído quando viu o povo adorando um bezerro de ouro), são normas fundantes da nação hebraica. Sob o aspecto do corpo jurídico hebreu elas têm prevalência sobre as normas restantes e de uma certa forma, é um conjunto completo, com significado também literário e ético.

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23

10 E faço misericórdia em milhares aos que me amam, e guardam os meus mandamentos.

11 Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão: porque o Senhor não terá por inocente ao que tomar o seu nome em vão;

12 Guarda o dia de sábado, para o sanctificar, como te ordenou o Senhor teu Deus.

13 Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra,

14 Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus: não farás nenhuma obra n’elle, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro que está dentro de tuas portas: para que o teu servo e a tua serva

descancem como tu:

15 Porque te lembrarás que foste servo na terra do Egypto, e que o Senhor teu Deus te tirou d’ali com mão forte e braço estendido: pelo que o Senhor teu Deus te ordenou que guardasses o dia de sábado.

16 Honra a teu pae e a tua mãe, como o Senhor teu Deus te ordenou, para que te prolonguem os teus dias, e para que te vá bem na terra que te dá o Senhor teu Deus.

17 Não matarás.

18 E não adulterarás.

19 E não furtarás.

20 E não dirás falso testemunho contra o teu próximo;

21 E não cobiçarás a mulher do teu próximo e não desejarás a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.

19

Comentando os princípios inscritos no decálogo, Norberto Bobbio20 ressalta

a sua importância para a história da civilização, demonstrando a sua relevância

instituidora para o mundo cristão, como valores emotivos do homem ou a sua própria

lei em conformidade com a natureza, além da sua permanência perene.

19

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 181-182. Optou-se por esse exemplar da Bíblia face à reconhecida qualidade da tradução. Embora impressa em vernáculo com a grafia legalmente revogada, observa-se o criterioso trabalho de translação do latim para o português.

20 Norberto Bobbio ressalta nas suas observações pertinentes sobre o decálogo a importância para o mundo cristão, atualizadíssimo como norma ética ou legal em sua conformidade com a proteção da natureza. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 56 et. seq.

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24

Norberto Bobbio21 assim se expressa: “Eles foram durante séculos, e ainda

são, o código moral por excelência do mundo cristão, a ponto identificados com a lei

escrita no coração dos homens ou a lei conforme a natureza”.

À lição de Bobbio pode-se acrescentar que o decálogo é não apenas o

código moral do mundo cristão, mas também do mundo islâmico – fundamento

civilizatório vinculado ao monoteísmo, princípio moral legado pelo povo hebreu, e

adotado por todo o mundo civilizado.

Sob o aspecto jurídico, pode-se anotar que os cinco primeiros mandamentos

têm vinculação religiosa e litúrgicas, atribuindo a Deus o domínio da terra e de tudo

sobre o que nela se encontra, aqui notavelmente declarando domínio divino a

própria vida humana, a terra e todos os bens existentes.

E ainda atribui ao domínio divino o próprio poder político e social,

independentemente da sua tribo, família, casta, condição econômica ou social, sob o

signo da liberdade e da igualdade sob a lei.

Os seguintes cinco mandamentos têm natureza civil. No contexto, o sexto se

afigura como intermediário entre os dois grupos de princípios.

Para a análise do controle da administração pública, os mandamentos se

constituem em um conjunto uniforme e coerente, mas o décimo e último

mandamento do decálogo, dirigido a todos os homens, tem um sentido peculiar

quando alguém está investido de poder político, judicial ou administrativo.

Ele veda a cobiça, desde a sua gestação psíquica como desejo, em um

elenco não taxativo de situações humanas.

Veda a cobiça da mulher do próximo; em relação ao outro, veda a cobiça

dos seus bens e, por fim, “nem coisa alguma do teu próximo”.

Ao outro, ao próximo, o décimo mandamento impõe uma conduta negativa,

de absoluto respeito por tudo o que significa o próximo: sua mulher, seus bens ou

qualquer coisa.

21

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 56-57.

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25

Segundo o princípio da igualdade impositiva do decálogo, sem nenhuma

distinção, do rei ao mais humilde dos pastores, mas aí incluindo o sumo sacerdote,

os juízes, os oficiais e funcionários, os ricos e poderosos, assim como a totalidade

do povo, nada pode ser cobiçado (ou desejado) que não seja seu.

É um princípio impositivo de conduta negativa, com natureza ética, cujo

fundamento é o respeito ao ser humano.

As demais normas da Torá, estimadas em cerca de seiscentas22, tanto

positivas como negativas, todas relacionadas com a conduta do homem, não são

mais relevantes do que o decálogo, a ele subordinadas, cujo poder reside em ser

constitutivo, unificador, interpretador e fundante e, em última análise, marco da

crônica histórica do povo hebreu.

Com algumas irrelevantes exceções, as demais normas da Torá são

desdobramentos tardios do decálogo, compilados, organizados ou codificados em

épocas posteriores.

Eles permanecem no sistema jurídico, consagrados como princípios

imutáveis, com caráter ideológico religioso, respeitados inicialmente pela sua

atribuição divina, mas demonstrados fundantes e coincidentes com o eterno anseio

de liberdade e igualdade do homem.

Guardados em tábuas23, a eles foi destinada uma pequena arca de madeira,

que perambulou pelo deserto e era protegida pelos reis e sacerdotes, até Salomão

satisfazer o projeto do pai (rei Davi) e construir um templo destinado à sua

localização definitiva.

Quanto à administração pública dos hebreus, e seu controle, o decálogo tem

íntima relação com outros princípios da Torá, que se aplicam aos juízes,

denominação significativa dos magistrados que antes da monarquia eram os

governantes, assim como aos oficiais e funcionários mandatários dos juízes.

Substituídos os juízes (1.031 a 586 a. C.) pela monarquia, os princípios

antes aplicados aos juízes passaram a vigorar sobre os reis e sua corte, incólumes. 22

As demais normas, catalogadas em seiscentas, dirigem-se à vida privada, tanto civil, como econômica.

23 As tábuas eram de madeira (cedro do Líbano, raro e valioso, mas também poderiam as letras da lei serem gravadas em tecido); nos templos atuais encontram-se esculpidas em madeira nobre.

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26

Eles estão no Deuteronômio, 16,18 a 20:

Deveres dos juízes

18 Juízes e officiaes porás em todas as tuas portas que o Senhor teu Deus te der entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça.

19 Não torcerás o juízo, não farás acepção de pessoas, nem tomarás peitas; porquanto a peita cega os olhos dos sábios, e perverte as palavras dos justos.

20 A justiça, a justiça seguirás; para que vivas, e possuas a terra que te dará o Senhor teu Deus.

24

O sistema jurídico dos hebreus estabelece, inicialmente, os princípios

fundantes constantes do decálogo e se incluem e fixam, após, outros princípios

relativos à efetivação da justiça, devendo-se assinalar que o sistema não admite que

um homem já nasça rei ungido por regras monárquicas ou aristocráticas.

Eles somente se tornarão reis após serem submetidos a uma escolha que

competirá ao Sinédrio, o qual detém o poder político e administrativo sobre a nação.

A exigência na formulação dos mandamentos e no versículo 17,14 do

Deuteronômio é de que a escolha sobre o futuro rei e seus oficiais e funcionários

não é predeterminada por um artifício familiar de ordem monárquica ou aristocrática.

A exigência é de que o rei cumpra a lei, não a modifique nem crie outras,

efetive a justiça e que não se eleve acima dos seus irmãos25.

Nas palavras de Frank Crüsemann:

24

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 192-193. Quando o texto bíblico, no versículo 20 diz: “A justiça, a justiça seguirás;” além da preciosa forma poética, a repetição (tantas vezes utilizadas) de uma palavra dá-lhe um sentido de cogência. No texto acima, a palavra justiça é repetida para demonstrar o imperativo aos juízes. Ao mesmo tempo, a forma impressiona como cântico.

25 As leis são consideradas imutáveis, seja declaração de que tinham origem divina ou porque fossem acolhidas como um corpo normativo considerado perfeito. É matéria para indagação, entendendo o autor que a sua formulação é resultante de um povo que conquistou a liberdade, não pratica a escravidão e tem na vida simples e pastoril seus principais predicados: não acumular riquezas e praticar a justiça. Perante a lei, portanto, o rei não estava em posição de superioridade; era rei de acordo com a lei que atribuía ao Sinédrio a escolha.

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27

Esta retirada completa do poder da realeza, espantosa para o Antigo Oriente, levanta de modo inevitável a pergunta pela instância que tem poder e autoridade para isso.

Pela lei do rei, o povo é autorizado a empossar reis.

A autoridade que fala na lei está acima de ambos.

O assunto tratado aparece nas determinações sobre o sistema jurídico e a profecia.

26

A escolha do rei está fixada em norma deuteronômica e acolhe os

qualificativos necessários à pessoa para ser eleita pelo Sinédrio e desde logo já

impõe as regras de sua conduta futura.

Esse conjunto jurídico compõe-se de valores democráticos, no qual o centro

é a escolha por um colegiado, justaposicionados valores republicanos, seja pela

origem do eleito e a conduta determinada ao escolhido.

O Deuteronômio, versículos 17, 14 a 20 dispõe:

14 Quando entrares na terra, que te dá o Senhor teu Deus, e a possuíres, e n’ella habitares, e disseres: Porei sobre mim um rei, assim como teem todas

as gentes que estão em redor de mim:

15 Porás certamente sobre ti como rei aquelle que escolher o Senhor teu Deus: d’entre teus irmãos porás rei sobre ti: não poderás pôr homem estranho sobre ti, que não seja de teus irmãos.

16 Porém não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egypto, para multiplicar cavalos; pois o Senhor vos tem dito: Nunca mais voltareis por este caminho.

17 Tão pouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie: nem prata nem oiro multiplicará muito para si.

18 Será também que, quando se assentar sobre o throno do seu reino, então escreverá para si um traslado d’esta lei n’um livro, do que está diante

dos sacerdotes levitas.

19 E o terá comsigo, e n’elle lerá todos os dias da sua vida; para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus, para guardar todas as palavras d’esta lei, e estes estatutos, para fazel-os;

26

CRÜSEMANN, Frank. A Torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Tradução de Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 332.

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28

20 Para que o seu coração não se levante sobre os seus irmãos, e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda: para que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.

27,

Em 17, 24, no mesmo livro deuteronômico, onde é narrada a crítica mordaz

do profeta Samuel, consta que os hebreus adotam a monarquia, mas o nome do

magistrado, como rei, não tem o significado que os outros povos orientais lhe

davam.

Para os hebreus, o rei era um homem comum, cuja escolha pelo Sinédrio o

tornava um “fiscal” e “executor” da lei.

O escolhido somente será rei por vontade do povo.

O rei não pertencia a nenhuma família privilegiada; o trono não era resultado

de um determinismo.

Sua escolha dependia, em primeiro lugar, de “ser um irmão entre irmãos”, o

que excluía estranhos ou estrangeiros.

Os hebreus não adotavam o voto amplo e generalizado28.

A um grupo de sábios, cuja vida pública e privada era irrepreensível,

conhecedores das leis e das tradições e que formavam o Sinédrio, competia a

eleição.

Essa forma de escolha já estava consignada antes mesmo do término da

travessia ou passagem (“Pessach”), e, embora fosse antes uma tradição oral, o

estatuto escrito na Torá tem a mesma moldura divina dos dez mandamentos.

O Sinédrio (Grande Sinédrio, havia outros três – pelo menos – Pequenos

Sinédrios), uma espécie de conselho de estado, com poderes superiores ao próprio

rei, e cuja principal função era a eleição do rei, submetendo-o desde a escolha à lei

e à interpretação desse conselho, demonstram claramente que o Sinédrio

27

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 193.

28 Distintamente dos gregos e romanos, a democracia hebraica não se exercia pelo sufrágio. O Sinédrio era formado por pessoas letradas e consideradas justas, aceitas pelo conjunto do povo; seus membros elegiam o rei e tinham controle político, financeiro, tributário e administrativo sobre ele. Quando o rei se deparava com uma situação sob sua competência, mas que lhe faltava conhecimento para decidir, transferia ao Sinédrio a solução.

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29

funcionava também como um controlador, mesmo porque ambos,

independentemente das funções que possuíssem estavam submetidos e

subservientes às mesmas leis inalteráveis e perenes.

O Sinédrio também escolhia oficiais e funcionários, assim como deliberava

sobre assuntos relevantes, como guerra, paz, acordos e julgava os assuntos mais

intrincados, não apenas às instâncias solicitadas pelos tribunais inferiores, mas

também quando o rei entendia estar frente a uma propositura que lhe escapava aos

seus conhecimentos.

A escolha do rei pelo Sinédrio não era livre, nem se regia por normas criadas

pelo Conselho. Elas já estavam postas.

Os princípios deuteronômicos que estabeleciam critérios sobre a pessoa do

futuro rei exigiam dele uma vida pregressa e futura moderada.

Não possuir muitas mulheres, como recato quanto à vida pessoal e família;

nem muitos cavalos, ou seja, não possuir poder militar ou de força, porque os

equinos simbolizam poder guerreiro; nem faria o povo voltar ao caminho do Egito

(escravidão); não acumularia ouro nem prata; não se desviaria nem para a direita

nem para a esquerda, numa clara alusão ao cumprimento da Torá.

Mandaria o futuro rei fazer uma cópia das leis e com elas conviveria durante

o seu reinado29.

Fílon de Alexandria, citado por Samuel Belkin30 entendia que o versículo

33,5 do Deuteronômio (“Houve um rei em Ieshurun, quando os chefes do povo se

29

O texto é revelador. Mais do que a chefia, o rei deveria ter consigo, como objeto próximo e pessoal, uma cópia das leis e com ela com ela conviver nas suas atividades.

30 BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. São Paulo: Exodus/Sêfer, 2003. p. 16. Samuel Belkin (1911-1976) nasceu na Polônia, ordenado rabino aos 17 anos. Logo depois, emigrou para os Estados Unidos, recebendo o título de Ph.D. pela Brown University. Sob a sua gestão, a Yeshiva University (para a formação teológica judaica) amplia o ensino para Medicina, Psicologia e Serviço Social, tornando-se a primeira universidade norte-americana fundada pela comunidade judaica. Em 1976, liderou a criação da Faculdade de Direito Benjamin N. Cardozo School of Law, em N. York, como homenagem ao primeiro judeu a integrar a Suprema Corte norte-americana. Seus estudos sobre o Talmud levaram Belkin aos textos de Flávio Josefo, cuja denominação de “teocracia democrática” é, pela primeira vez, cunhada por Fílon de Alexandria e adotada por Josefo.

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30

reuniram”)31, referia-se à escolha de Moisés, o primeiro profeta que se torna rei, pelo

conselho dos anciãos.

O Sinédrio formado pelos “chefes”, em realidade, conselheiros de estado,

reuniu-se em nome do povo.

A escolha, mesmo não sendo direta, era plenamente legitimada porque

obedecia às normas já postas para o próprio conselho.

A escolha dos oficiais e funcionários, assim como os decretos, seguiam a

mesma norma, e explicitamente consigna-se a aceitação comunitária para a sua

legitimação.

A norma, proveniente da interpretação, era específica: “Todo decreto que o

tribunal impuser sobre a comunidade e que a maioria da comunidade não aceita,

não tem força”32.

O Sinédrio era o supremo poder sobre a nação, mas limitado pela lei e como

se observou, também pela comunidade.

Além da escolha do rei, oficiais e funcionários, suas atribuições judiciais

incluíam o direito criminal, civil, público.

Na área penal, sua competência restringia-se ao indiciamento e processo do

sumo sacerdote. Em outras situações, os setenta e um membros não tinham

competência. Ela era atribuída aos vinte e três membros dos três Pequenos

Sinédrios.

Mesmo em situações excepcionais, como guerra ou território ocupado pelo

inimigo, ao rei era defeso empreender operações bélicas, a não ser ouvido e

autorizado pelo Grande Sinédrio.

Segundo o historiador Flávio Josefo, assim como para Fílon de Alexandria,

referidos por Samuel Belkin33, esse corpo de práticas públicas (e privadas)

31

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 210.

32 BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. São Paulo: Exodus/Sêfer, 2003. p. 144.

33 Ibid., p. 17.

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31

sustentado pela lei imutável pode ser conceituado como uma “teocracia

democrática”34.

Samuel Belkin acresce:

Dada esta compreensão do corpo de práticas judaicas como uma lei Divina projetada para a proteção e defesa do indivíduo, o judaísmo pode muito bem ser caracterizado como uma “teocracia democrática”, usando o termo “teocracia” no sentido que Josefo lhe deu, e não como é entendido pelos intelectuais de hoje. É uma teocracia, pois a força motriz da moralidade judaica não é a proteção do Estado ou da comunidade de forma abstrata, ou de nenhuma forma de governo humana. Todo o sistema da moralidade judaica deriva e é fundado no conceito de soberania de Deus. É uma democracia pois, diferente de qualquer sistema legal, o código talmúdico coloca toda a ênfase no valor e caráter sagrado infinitos do ser humano. No judaísmo, o reconhecimento do demos – o valor individual e infinito da sua personalidade – é uma consequência necessária da aceitação do theos de Deus (do Seu governo), uma relação resumida na frase “teocracia democrática”.

Se o segundo elemento na frase deve ser entendido no sentido dado por Josefo, o primeiro elemento é usado conforme a definição de Filo, que procurou explicar a constituição política da Torá a um mundo não judaico. De acordo com Filo, a democracia é “a melhor e a mais tolerável das constituições”. Deve se entender que Filo não usou o termo “democracia” no sentido moderno de um governo eleito por toda a população, em que cada pessoa tem o direito de ter um mandato. Para Filo, a democracia, como uma forma ideal de governo, “honra a igualdade e tem a lei e a justiça como seus governantes”. Pouco importava a Filo se, na antiga constituição política do judaísmo, o governo funcional fosse baseado em uma monarquia, em uma aristocracia ou em uma casta sacerdotal. Para ele, o judaísmo significava a soberania de Deus conforme revelada na Torá, a constituição Divina que tem como objetivo a extensão da justiça para todos. Foi neste sentido que Filo caracterizou o judaísmo como uma democracia e, como apontou o professor Harry Wolfson, ele praticamente cunhou o termo “teocracia” mais tarde usado por Josefo para descrever o Estado Mosaico.

35

Inobstante as competências do Grande Sinédrio e as próprias do rei, a lei

não os tornava divino. Eles se submetiam à lei, a ela deviam obediência, assim

como qualquer um do povo. É nesse contexto que se afirma o princípio da

igualdade.

Outro valor perpassa as normas jurídicas e que igualmente confluem para o

controle da administração.

34

Flávio Josefo e Fílon de Alexandria cognominam, comparando o corpo jurídico hebreu ao grego e ao romano, como um corpo denominado de teocracia democrática. Conquanto se atribua origem divina à lei (ela é imutável para os governantes) ao mesmo tempo ela é igualitária.

35 BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. São Paulo: Exodus/Sêfer, 2003. p. 16-17.

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32

É o princípio da justiça e para o qual a organização pública, como a estrutura

social, comunitária e familiar são apenas instrumentos de realização.

A organização do sistema judicial, por essa razão, era desenvolvida,

possuindo cada cidade o seu próprio tribunal, com um número mínimo de três juízes,

escolhidos pela comunidade.

Os princípios da liberdade e da igualdade são, ao lado do princípio da

justiça, a seiva alimentadora e orgânica do povo hebreu.

No Deuteronômio há uma norma paradigmática e esclarecedora (versículo

16,18, como ordem aos que forem eleitos juízes, posteriormente denominados de

reis)36: “A justiça e apenas a justiça seguirás; para que vivas e possuas a terra que

te dará o Senhor teu Deus"37.

O versículo, composto de força poética, impõe a condição nacional ao povo

hebreu. Sua terra onde viverá e dela será possuidor dependerá da condição de ser

justo, efetivar a justiça e somente a ela se dedicar.

A norma, uma exortação positiva aos juízes, primeira denominação dos

governantes, tem o sentido de que a justiça é a finalidade do próprio poder, sem o

qual a nação não se estabelece na terra, nela não viverá e dela não será

possuidora.

Praticar a justiça, como imposição aos governantes, resultava na garantia

afirmada como outorga divina de ter o elemento nacional plenamente configurado38.

Ao povo, portanto, cabia a penalização quando seus mandatários a justiça e

apenas a justiça não seguiam.

O destinatário da justiça era o próprio povo, quando ela não era efetiva, na

penalização não era apenas a injustiça, mas tinha o significado muito mais amplo

quanto à sua própria identidade e história nacional.

36

BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. São Paulo: Exodus/Sêfer, 2003. p. 16-17. 37

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 193.

38 O corpo jurídico hebreu é também a crônica da formação nacional do povo e a essência desse corpo é a prática da justiça.

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33

O povo, nessas condições, jamais aceitaria manter-se governado por um juiz

que descumprisse essa norma.

Ela, como a liberdade e a igualdade, eram essenciais ao povo.

Esses três princípios nascem com a constituição da nação e são a sua base

nacional.

A monarquia, infere-se do texto, é uma escolha derivada da influência da

organização dos povos vizinhos, mais desenvolvidos.

Mas a Torá não a considera como o modelo ideal, admite-a porque é a

escolha do povo no seu regime de liberdade.

A escolha do rei é criticada; dela resulta que critérios rígidos e rigorosos são

apostos para a escolha.

Seus poderes são limitados.

O profeta Samuel contra a escolha do rei se insurge claramente e lança a

sua crítica.

A existência de um rei contrasta com o monoteísmo, único como devoção.

O regime político se afigura indiferente ao povo. Desde que preservada a

liberdade, a igualdade e a justiça, a forma de governo não aparentava ter a mesma

importância que tinha aos povos do oriente antigo.

Libertados do cativeiro no Egito, dotados de uma legislação fundante da

nação sob os princípios da igualdade e da justiça, a lei para os hebreus é em

primeiro plano um conceito de direitos individuais.

Viver nos limites da lei era a garantia desses princípios, o direito à terra e

nela viver.

O sistema jurídico hebreu iguala a todos: Sinédrio, rei, sumo sacerdote,

oficiais e funcionários com o próprio povo.

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34

Esse sistema tem o amplo significado de preservar a individualidade e para

isto o povo deveria estar sempre atento ao controle dos seus governantes, mesmo

que essa função incumbisse em primeiro plano ao Sinédrio39.

A lei é o principal instrumento controlador, não apenas dos governantes,

mas dos próprios indivíduos.

Depreende-se, e depois os profetas demonstrarão com mais agudo senso

crítico e denunciador, que todos controlavam o cumprimento da lei; o controle era

amplo e constante. A ameaça ou a efetividade do descumprimento da lei pairava e

irá pairar no surgimento do cristianismo primitivo como a mais grave punição ao

povo; a perda do seu templo, a perda da sua terra, novamente a escravidão ou o

exílio.

O quarto princípio que compõe o sistema jurídico dos hebreus é a

solidariedade, que se concretiza na caridade, na ajuda aos órfãos, viúvas e pobres.

Parte do campo era destinado (o “canto”) para cultivo daqueles que não

possuíam terra. A cada cinquenta anos, o “ano jubilar” implicava no desfazimento de

todas as propriedades sobre a terra e a remissão das dívidas sobre a terra, assim

como no ano sabático (a cada sete anos) todos os escravos eram libertados.

O próprio dízimo devido às autoridades era parcialmente destinado

diretamente aos necessitados, junto aos portões das cidades40.

Essas práticas impositivas legalmente não dizem respeito ao controle, mas

envolvem também a administração, dando-lhe um caráter de respeito e cumprimento

aos direitos humanos.

A segunda fonte do direito na Torá é o Talmude.

Em hebraico, a palavra é Talmud, correspondente a “estudo” ou “ensino”.

39

Perpassa pela Torá a proteção e preservação da individualidade. Cumprir a lei é uma decisão pessoal; quando o Sinédrio ou o rei mandassem cumprir a lei, deveriam observar a individualidade de cada um, como produto divino, segundo a ideologia religiosa, e também perfeito.

40 Um sistema criativo. Os contribuintes do dízimo destinavam uma parte aos necessitados, em períodos predeterminados. A entrega era feita nas portas das cidades, independentemente de formalidades, tão próprias das outras civilizações. Era suficiente que os contribuintes declarassem ter cumprido com a lei e praticado a justiça e a caridade. Nas festas, igualmente eram convidados os necessitados para que compartilhassem a mesa.

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35

São dois os livros conhecidos como Talmude, o primeiro escrito em

Jerusalém, denominado de Yerushalmi e o outro é originário da Babilônia, onde os

judeus haviam sido levados como escravos pelo rei Nabucodonosor, denominado de

Bavli.

A destruição do reino hebreu, assim como do templo de Jerusalém, a derrota

imposta pelo invasor romano, que se consolida no ano 70 d. C., a nova submissão a

uma potência estrangeira (antes, o Egito, Assíria, Grécia, Babilônia) e a consequente

dispersão do povo pelo norte da África, continente europeu e Ásia (“diáspora”)

obrigaram os estudiosos a adaptar o cumprimento da legislação da Torá, tanto na

parte pública, como na vida privada e na religião e seus rituais, demonstrando a

impossibilidade da continuação da normalidade que antes se registrara na crônica

histórica dos hebreus, ainda que interrompida pelas invasões e vassalagens.

Os Talmudes são livros interpretativos, adaptações das normas e do seu

cumprimento. Passam a figurar como princípios de maior expressão no exílio a

fraternidade, a caridade, o estudo e a observância ritualística.

Com a destruição do templo, a Torá e o Talmude (assim considerados

ambos os livros) passam a simbolizar o sentido nacional do povo hebreu, como

catalizadores da unidade nacional perdida, cuja última esperança seria o retorno

futuro a Jerusalém.

Os rituais e as festas, notadamente o pessach, têm a sua importância

ressaltada e no âmbito familiar ou comunitário, longe das festividades anuais de

Jerusalém. O Velho Testamento, para as gerações seguintes, necessita com mais

intensidade da leitura do Talmude para a sua compreensão.

Os textos talmúdicos possuem características diferenciadas da Torá41.

Eles suprem a ausência da terra nacional pela investigação intelectual, a

interpretação constante e compelem o intérprete e o estudante a encontrarem

41

Sobre as normas dos hebreus, LEITE, Edgard. Pentateuco: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Trata-se de uma obra concisa que discute as questões textuais. Professor de História da Antiguidade e História das Religiões na Universidade do Rio de Janeiro, para ele, “a jornada de Moisés é uma caminhada de resistência ao poder discricionário do Estado e à arrogância que se propõe infinita dos poderosos”.

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36

respostas próprias e soluções adequadas à vida individual e comunitária em países

que constantemente desprezam e perseguem os hebreus.

Ambos os Talmudes são elaborados entre os séculos V e VI d. C., cujos

autores são cognominados de sábios, profundos conhecedores do Velho

Testamento.

O Talmude babilônico é considerado mais completo e criativo, devido ao

conhecimento de seus autores, enquanto que o Talmude de Jerusalém é gestado

em condições precárias, sob ocupação romana, com o povo colonizado e submetido

à vassalagem.

Os Talmudes compõem-se de estórias, parábolas, ironias, humor42.

O saber jurídico emerge acima das lendas e dos mitos, mas pouco

representa em relação à administração e ao seu controle, cujas normas já não são

exercidas, as instituições e seus prédios e bens integralmente destruídos.

Submetem-se, comunitária, familiar e individualmente, na medida do

possível, às leis da Torá, mas na prática estão submissos às leis dos países e

cidades onde vivem, algumas legisladas especialmente contra os hebreus, com

vedações de atividades econômicas ou profissionais, determinações de bairros

específicos para moradia (ghettos) e proibição de livre locomoção.

Aos hebreus resta a memória da sua história nacional e o novo anseio pela

liberdade.

A Torá torna-se um conjunto normativo de cumprimento proibido, portanto de

execução impossibilitada.

42

Os discursos de Jesus, narrados no Novo Testamento, são reproduções de hinos, cânticos e orações anteriores. Sua forma é nitidamente talmúdica. Quanto à ironia e humor, marca dos hebreus, é uma das heranças que será transmitida de geração em geração, entre os mais simples, assim como entre escritores, filósofos, poetas e intelectuais. Há uma vasta literatura com essa temática, bastando lembrar os escritores Sholem Aleichem (um cognome que significa a paz esteja convosco) nascido em uma aldeia perdida do império czarista, no IXX, ou Philip Roth, americano e contemporâneo, dentre muitos outros.

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37

O Talmude é então o instrumento normativo para o conhecimento e a

preservação dos textos bíblicos, que na prática tornam-se virtualmente literatura43.

O Talmude babilônico, inclusive pela sua forma gráfica, que assim o exigiu, é

interativo.

Ele não exige apenas a leitura, mas a participação do seu intérprete e

estudante. Envolve especialmente as discussões interpretativas sobre a Torá, uma

tarefa de difícil execução pelas condições materiais relativas à ausência da terra

originária.

Esse sistema singular, que predomina na vida comunitária, familiar e

individual dos hebreus, implicará o desenvolvimento dos sacerdotes e estudiosos,

que ganham a denominação honrosa de sábios, os quais assumirão o papel antes

reservado às autoridades, na liderança e condução das comunidades dispersas por

praticamente todo o globo.

Não é uma substituição do Velho Testamento, mas um novo centro de

unidade e coesão, de certa forma, uma centralização ética que manteve intactos os

princípios milenares que seus antepassados haviam criado e desenvolvido.

Ao interpretar a Torá que regia o período histórico precedente à destruição

do reino, o Talmude afirma que o rei não é divino, mas um homem comum, embora

os deveres de reverência e honrarias que lhes são devidos.

A reverência e as honrarias com que são tratados e dotados não os

desigualam dos demais do povo, cujos direitos continuam a ser iguais.

Sua escolha pelo Sinédrio implicava submetê-lo ao Grande Conselho, não

apenas nas substanciais questões políticas de estado, mas também nas rotineiras,

permitindo-lhe, sem demérito, recorrer quando alguma questão se mostrava acima

da sua capacidade.

43

Eram mantidos, a Torá e os Talmudes, em locais protegidos; quando encontrados pelos invasores e inimigos estrangeiros eram profanados e queimados. O invasor grego colocou estátuas e símbolos de Zeus no Templo e os romanos, insígnias e estandartes, todos com finalidade de humilhação, submissão e profanação. Nas fugas pelas perseguições, os primeiros bens a serem enviados para outras terras eram os livros sagrados para os hebreus.

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38

Diferentemente dos povos orientais, a exclusão do rei hebreu do amplexo da

categoria divina determina que ele, o rei, é controlado pelo Sinédrio.

Explicita Samuel Belkin:

A visão que considera o chefe político do Estado, mesmo filosoficamente falando, uma autoridade sobre-humana, e um veículo através do qual é expressa a lei Divina, foi sempre estranha ao judaísmo e contrária ao seu conceito fundamental de monoteísmo. Além disso, no judaísmo histórico, a formulação da lei e o cargo da realeza não estão no mesmo domínio. O judaísmo baseia-se no princípio da soberania infalível de Deus, não do homem. A realeza é um assunto para os mortais; a lei é a palavra revelada de Deus.

44

Para Flávio Josefo,

[...] não se permita ser acometido por nenhum desejo por outra constituição política, mas contente-se em tomar as leis como seus dirigentes e governar todas as suas ações por elas; pois Deus é suficiente como seu governante. Porém, se ficar fascinado por um rei, faça com que seja da sua própria raça e que esteja sempre ciente da justiça e da virtude em todas as formas. Que ele conceda às leis e a Deus a posse da sabedoria superior, e que não faça nada sem o Sumo Sacerdote e conselho de seus anciãos.

45

Fílon de Alexandria afirma que, para os hebreus, o rei era um juiz voltado à

justiça, esclarecendo:

Na visão talmúdica, o dever fundamental do rei era dedicar-se “às necessidades da comunidade”. Assim, por exemplo, durante a dinastia de David, o rei designou juízes e, muitas vezes, ele mesmo atuou como tal. Filo também afirma que o rei atuava como juiz, porém acrescenta:

[...] se os fatos criam uma sensação de incerteza e de grande obscuridade, e ele [o juiz] sente que a sua apreensão dos mesmos não está clara, deveria recusar-se a julgar os casos e enviá-los a juízes com maior capacidade de discernimento. E quem seriam estes senão os sacerdotes, e o chefe e líder dos sacerdotes? Pois os ministros genuínos de Deus tomaram todo o cuidado para aguçar a própria compreensão e para considerar o menor erro como não sendo um erro pequeno, pois a grandeza inigualável do rei a quem eles servem é observada em todas as questões.

46

44

BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. São Paulo: Exodus/Sêfer, 2003. p. 70. 45

JOSEFO apud BELKIN, op. cit., p. 70. 46

FÍLON DE ALEXANDRIA apud BELKIN, op. cit., p. 71.

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39

É nesse sentido que o Sinédrio atuava como conselho de estado e tribunal

superior, acima das funções do próprio rei.

Na interpretação talmúdica sobre a monarquia dos hebreus, embora as

reverências e honrarias devidas à figura real, não o transmudavam da figura humana

e ser comum, não o isentavam de observar e cumprir, como todos, a lei.

Não possuindo a Torá o conceito de estado ou sociedade análogo ao dos

romanos e gregos, o conceito era próprio: o poder político central era o da

comunidade e do homem, individualmente considerado47.

Os hebreus eram considerados “filhos da cidade”, como seu domínio.

O templo de Jerusalém, as casas de banho, as sinagogas, a Arca do Livro,

os Livros, os poços de água, as ruas e os equipamentos urbanos, as estradas e

caminhos, as florestas e campos, os rios, enfim, o conjunto de bens – todos – eram

considerados como pertencentes à comunidade e de uso comum pelos homens.

A escolha de oficiais e funcionários, especialmente os locais, segundo

Samuel Belkin, eram assegurados à comunidade.

Em parte alguma das fontes talmúdicas encontramos referências ao método de preservação da ordem democrática comum em nossos dias, ou seja, a seleção para cargos públicos através de eleições públicas. Por este processo, o eleito torna-se, essencialmente, um agente por meio do qual a vontade do povo é expressa. Entretanto, deve ser reconhecido que dificilmente haja outra constituição democrática que enuncie, de modo tão claro e firme, os princípios fundamentais de uma democracia espiritual como fizeram os rabinos de antigamente em sua abordagem teológica da vida.

Na estrutura social judaica de antigamente, os funcionários de uma determinada comunidade – ou da comunidade em geral – não eram eleitos pelo voto popular que exigisse deles a expressão da vontade da comunidade; em sua conduta privada e pública, os líderes tinham que expressar a vontade de Deus, o que o homem só consegue fazer ao praticar, junto aos seus semelhantes, os atributos Divinos de misericórdia e bondade. Os homens públicos cumprem essa tarefa Divina através da proteção vigilante dos direitos de todos os indivíduos, não importa quão humildes são. O homem, portanto, serve a Deus ao manter um relacionamento moral com seus semelhantes na comunidade, por meio de sua devoção às disciplinas Divinas. Esta é a sua aceitação do “jugo do Reino dos Céus”.

47

Do ponto de vista da institucionalização política, o conceito próprio de estado ou sociedade, comunidade e o homem considerado como um ser individual completo e acabado é a mais notável diferença com os sistemas institucionais políticos da Grécia e Roma.

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40

Mas enquanto na teocracia democrática do judaísmo os homens públicos e juízes da comunidade são guiados não pela vontade expressa do povo, mas pela constituição Divina, a atitude do público era um fator decisivo para a indicação dos homens públicos e juízes, bem como para a promulgação dos decretos religiosos e civis instituídos pelo San’hedrin. O Talmud declara: “Nós não designamos um funcionário para a comunidade a menos que esta seja previamente consultada”. Esse respeito pela vontade e pela opinião da comunidade era um reconhecimento legal de grande significado.

48

A prerrogativa comunitária incluía também a aceitação dos decretos.

O Talmude esclarece que um decreto de um tribunal anterior não poderia ser

revogado posteriormente por outro tribunal, quando ele estava chancelado à época

passada pela comunidade.

A revogação somente era permitida quando o decreto estava em desuso,

seu cumprimento já não era mais exigido em completo desacato. A revogação

dependia ainda do conhecimento demonstrado pelo tribunal atual, reconhecidos os

seus juízes como sábios e desde que em número superior ao tribunal anterior.

A lei era considerada manifestação divina, mas a exigência do seu

cumprimento justo era atribuição da comunidade. Na abrangência de um sistema

jurídico peculiar, o rei era também um homem comum subserviente à exigência do

cumprimento da lei.

Os profetas se constituem em uma característica singular do povo hebreu e

seus discursos são adotados pela Torá como integrantes do sistema jurídico.

Os profetas exerceram um papel histórico de críticas e denúncias, assim

como de fiscalização quanto aos governantes e ao próprio povo, acusando-os de

descumprimento das leis, corrupção ou desvios de condutas ordenadas pela Torá.

Os discursos e textos dos profetas têm uma função crítica e denunciadora,

como um controle do cumprimento fiel e efetivo das leis, dos políticos, da

administração, assim como as condutas desviadas do povo. O conteúdo não se

restringe à efetividade do cumprimento das leis; incluem desvios e desobediências

aos rituais religiosos, questões de infringências morais em todas as camadas dos

hebreus.

48

BELKIN, Samuel. A filosofia do Talmud. São Paulo: Exodus/Sêfer, 2003. p. 142-143.

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41

Abrangem, ainda, questões de disputas internacionais, situações de guerra

ou beligerância, invasões de território e vassalagem nacional; criticam e denunciam

práticas judiciais e administrativas, como corruptas, as desigualdades econômicas, o

enriquecimento desmedido das elites dos hebreus, e, entre outros, também

tributações exageradas e práticas comerciais consideradas ilegais.

Os textos incluídos no Velho Testamento têm reconhecido valor literário,

apresentados em forma poética criativa e peculiar, admirados e fontes de inspiração

para escritores e poetas nos tempos posteriores.

A avaliação dos hebreus é de aceitação das críticas e denúncias, como

fiscalização quanto ao cumprimento das leis, resultando serem considerados parte

integrante do sistema normativo da Torá.

Imprecaram os profetas contra a classe dominante e o conjunto do povo por

um período estimado de três séculos anteriores à era cristã, com um sentido político

predominante.

Não eram exaltados que reclamavam contra o descumprimento das leis; seu

papel político corresponde à de fiscais da lei, críticos e denunciadores de condutas

ilícitas.

Seus pronunciamentos, que atraíam o povo, eram proferidos nas portas das

cidades, locais públicos mais frequentados, advertindo, apontando fatos e pessoas,

criticando-os e denunciando pelo cumprimento das leis.

Não tinham poderes administrativos nem cargos políticos. Sua força,

entretanto, advinha da candência dos seus discursos e textos, acatados por quanto

deles assistiam ou ouviam a ressonância das suas palavras49.

O comportamento pessoal dos profetas (alguns vinham de famílias ilustres e

eram letrados) e suas atitudes permanentes de críticos em favor do cumprimento

das leis lhes atribuíram respeito popular e da elite.

49

A função dos profetas era exclusivamente política. Suas críticas e denúncias, o discurso candente, mas com expressão literária, era mais do que um alerta. Considerados e respeitados pelos governantes e pelo povo, eram acatados, embora não haja registro de que, à época, tenham obtidos resultados concretos. Para a posteridade, especialmente para a compreensão do sistema jurídico e seu papel controlador e fiscalizador da administração, assim como dos desvios do cumprimento das normas pelo povo, a função dos profetas transformou-se um identidade com o corpo jurídico.

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42

Essa prática política dos profetas viria a ser adotada pelo grupo de líderes

do cristianismo primitivo, evidenciando o quanto ela era acatada pelo povo.

Os profetas hebreus não eram adivinhos, predizentes do futuro, mágicos ou

oráculos.

Na tradução da Torá do hebreu para o grego, a palavra hebraica que

designava esses críticos era nabi, aquele que tem a palavra na boca, foi

transliterada equivocamente para profetas. Na verdade, entre os hebreus, os nabi

profetas são aqueles que criticam e denunciam50.

Na língua portuguesa, a palavra profeta denomina aquele conjunto de

homens críticos e assim figura nas edições em língua vernácula do Velho

Testamento.

A tradução para o grego ficou conhecida pelo nome de septuaginta porque

os tradutores somavam setenta especialistas, convocados pelo rei Ptolomeu em

Alexandria, no Egito, onde se localizava uma extensa e próspera comunidade de

hebreus, helenizados e influentes na corte. Seus conhecimentos acabaram por

resultar na tradução a pedido real para que fizesse parte da biblioteca palaciana e a

elite dela tivesse utilização.

Os profetas hebreus não se afirmavam por poderes sobrenaturais, como os

gregos ou romanos e no oriente antigo. Ao contrário, viviam a realidade, avaliavam

os fatos e condutas pessoais; seu objetivo era o presente, o cumprimento das leis, o

retorno à moralidade e às práticas rituais determinadas pela Torá51.

Não há para os profetas quem ficasse imune ou privilegiado às suas críticas

e denúncias. Do rei ao conjunto de povo, todos eram passíveis de crítica e denúncia.

50

CHOURAQUI, André. Os homens da Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 205 et seq. André Chouraqui em Os homens da Bíblia realiza um trabalho de filologia, interpretando os textos bíblicos a partir do significado antigo das palavras e suas raízes. Após sua passagem pela França (é nascido no norte da África), onde foi agraciado com Medalha de Ouro da Academia Francesa de Ciências, passou a lecionar na Universidade Hebraica em Jerusalém. Depois dos estudos bíblicos, a arqueologia é a segunda fonte de conhecimento dos hebreus e com base nestas duas fontes, André Chouraqui reconstitui o cotidiano do povo hebreu, inclusive aspectos importantes da sua normatização, especialmente sobre a administração, a justiça, os tributos e os estatutos relativos a estrangeiros, pobres, órfãos, viúvas e escravos.

51 Outro aspecto relativo aos profetas é de que eles não tinham função de prenunciar o futuro, não eram mágicos não faziam augúrios ou presságios. Sua função era sobre os fatos presentes.

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Para os profetas, a questão central não era a organização estatal, as

instituições, mas o cumprimento da lei com um objetivo definido – a lei era o meio

jurídico para a concretização da justiça determinada pela Torá.

Amós, o profeta52 critica e repudia com veemência os aparatos pomposos

das cerimônias religiosas, dos ritos, o vestuário custoso dos sacerdotes, os

sacrifícios de animais e os tributos cobrados excessivamente do povo.

Para Amós, esses fatos criticados eram uma demonstração da injustiça

praticada pela elite.

No Velho Testamento, Amós é o primeiro profeta escritor.

Acusa Amós (Amós 5, no Velho Testamento sob o título de corrupção de

Israel), aqueles que oprimem e exploram os pobres, extorquem-lhes tributos

exagerados, denuncia-os como causadores e responsáveis por injustiças contra o

povo, violadores dos direitos dos pobres nos tribunais.

No Velho Testamento, versículos 6, 1 a 7, Amós em tom poético de lamento

doloroso:

6 Ai dos desançados em Sião, e dos seguros no monte de Samaria: que teem nome entre as primeiras das nações, e aos quaes se foi a casa de Israel!

2 Passae a Calne, e vêde; e d’ali ide á grande Hamath; e descei a Gath dos filisteus, se são melhores que estes reinos, ou maior o seu termo do que o

vosso termo.

3 Vós que affastaes o dia mau, e achegaes o assento da violência.

4 Os que dormem em camas de marfim, e se estendem sobre os seus leitos, e comem os cordeiros do rebanho, e os bezerros do meio da manada:

5 Os que cantam ao som do alaúde, e inventam para si instrumentos músicos, assim como David.

6 Que bebem vinho de taças, e se ungem com o mais excelente óleo: mas não se afligem pela quebra de José:

52

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 816 et seq. Amós inicia o conjunto de profetas indignados com a situação política, social e econômica. É reconhecido a partir do ano 740 a. C. Discursava em escadarias, com braços abertos. Para Amós e os demais profetas a seguir referidos: BORGER, Hans. Uma história do povo judeu. São Paulo: Sêfer, 2002. p. 97 et seq.

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7 Portanto agora irão em captiveiro entre os primeiros dos que forem em captiveiro, e cessarão os festins dos estendidos.

53

Como Amós, o profeta Oséias54 também lamenta esses fatos, mas acresce

a ameaça aos sacerdotes, chefes de Israel, gente da casa real: contra esses haverá

um julgamento e ele os afligirá (Oséas, Velho Testamento, 5, 1 a 15)55.

Isaias56, também profeta, o mais popular e admirado dentre eles, tem uma

visão não apenas a respeito do reino e do povo hebreu, mas demonstra ter

conhecimentos sobre os povos vizinhos aos hebreus e de política

internacional.

Seus candentes discursos e textos dirigidos às elites e ao povo são aqueles

que mais repercutiram e tiveram influência sobre os contemporâneos e futuros

habitantes.

Considera-se que os textos de Isaías são os que mais influenciaram a

doutrina política e religiosa do cristianismo primitivo, cujos textos evangélicos estão

redigidos sob a sua influência57.

As críticas, embora a forma poética, têm a força não alcançada pelos

profetas anteriores.

Sua visão política internacional está contida no versículo 2,4 do Velho

Testamento: “4 E julgarás entre as gentes, e reprehenderá a muitos povos; e

53

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 820.

54 Oséias é contemporâneo de Amós. Enquanto o primeiro tem uma forte conotação de denúncia e crítica social, o segundo tem um discurso lírico com vívida expressão poética. Sua condenação ao povo e aos dirigentes é, sobretudo, quanto ao abandono da devoção e fidelidade religiosas. Ambos não sofreram impugnação real, ao contrário, pela força e combatitividade de suas palavras, conquistaram a liberdade para discursar para o povo.

55 BÍBLIA sagrada. Op. cit., p. 808-809.

56 Isaías é o mais notável dos profetas. Com esse nome, identificam-se mais de um profeta. A referência é ao profeta Isaías do capítulo 66 do Velho Testamento.

57 O Livro de Isaías, em sua versão completa, encontra-se no Santuário do Livro, em Jerusalém, copiado pelos escribas essênios no wadi Qumram, às margens do mar Morto, em datação identificada no século imediatamente anterior à era cristã. Ocupou cargo de ministro e identificou e criticou não apenas as candentes questões sociais e econômicas, mas também as de política internacional. Seus textos proféticos foram utilizados no Novo Testamento, especialmente quanto pretendia que o messias (“ungido”, ou massiah, em hebraico) despojaria os poderosos dos tronos. Seu texto (versículo 40) foi utilizado por Handel no coral Hallelluya, do oratório Messias, o qual, junto com a parte coral da Nona Sinfonia de Beethoven, sejam as obras musicais com texto coral mais interpretadas.

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converterão as suas espadas em enxadões e as suas lanças em foices: não alçará

espada nação contra nação, nem aprenderão mais a guerrear.” 58

As críticas e denúncias quanto à situação social, em poético lamento,

registram-se no versículo 10,2: “2 Para desviarem aos pobres do seu direito, e para

arrebatarem o direito dos afflictos do meu povo, para despojarem as viúvas e para

roubarem os órfãos.” 59

E de igual forma literária, a crítica às elites, no versículo 5,860: “8 Ai dos que

ajuntam casa a casa, achegam herdade, até que não haja mais logar, e só vós

fiqueis os moradores no meio da terra!”

Isaías é um antecessor dos discursos utópicos e não apenas um crítico

político ou social da sua situação contemporânea.

Em relação às nações, ele almeja um futuro de convivência pacífica, paz e

colaboração entre os povos.

A inclusão dos textos proféticos no texto bíblico – visto que os profetas não

são contemporâneos do surgimento do decálogo e, portanto, em relação às normas

da Torá não possuíam autoridade política gestadora –, comprova a importância

reconhecida pela elite e pelo povo aos personagens proféticos e aos seus discursos

e textos de denúncias e críticas. A decisão das autoridades políticas e religiosas em

incluir os profetas como parte integrante da Torá é reconhecimento da importância

da sua função e da admiração da elite e do povo por esse grupo peculiar, cujo papel

fiscalizador complementa e integra o sistema jurídico hebreu.

Em conjunto com o restante do texto da Torá, os profetas são acolhidos pela

sua sabedoria, importância, força textual e discursiva, considerados necessários

para o cumprimento da lei e advertência quanto aos desvios da classe dirigente e do

povo.

Para os profetas, não aumentar nem multiplicar o patrimônio real ou pessoal,

implicava obedecer à lei, praticar a justiça, a fraternidade e a caridade; não apenas

58

BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, s.d. p. 626.

59 Ibid., p. 632.

60 Ibid., p. 628.

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para a elite, também para o conjunto do povo hebreu, o significado da atuação dos

profetas corresponde em primeiro plano ao cumprimento da lei61.

Mas é também uma forma lítero-poética, singular e peculiar ao povo hebreu,

de fiscalizar politicamente a administração pública.

Frank Crüsemann assevera que a Torá incluía os controles necessários para

o cumprimento da lei.

Diz o autor:

Podemos considerar todo o Deuteronômio como comentário sobre isto, em especial seu sistema de impostos. A fórmula tríplice de não “multiplicar”, “aumentar”, ressalta a restrição desta atividade e inclui os controles correspondentes. Mesmo assim, se indica que, como antes, neste campo estão as atribuições do rei permitidas e previstas pela lei. Exército profissional, relações exteriores e administração do tesouro do estado continuam sendo suas tarefas. Por outro lado, são-lhe tirados, na esfera militar, o exército popular, que nesta época com certeza era mais importante, e toda a esfera do culto, mas também a maior parte de suas fontes de renta até então e o sistema judicial.

62

O sistema jurídico hebreu constante da Torá contém um controle peculiar da

administração pública.

Se ao Sinédrio, como conselho de estado, incumbia a observância das

normas, ficou evidenciado que, para os hebreus, o cumprimento das leis era o

instrumento da realização da justiça.

Sociedade fundada após a libertação do cativeiro, cujos princípios de

liberdade e observância igualitária das leis, a fraternidade e a caridade como

práticas determinadas, ela era essencialmente agrícola e pastoril.

Exígua a sua expressão urbana, arquitetônica, urbanística ou artística, seus

templos e palácios não competem com os dos povos vizinhos e especialmente com

Roma e Grécia.

61

A crítica social, política, econômica e até mesmo as questões internacionais, junto às críticas, assim como as denúncias aos desmandos relativos aos fatos administrativos, formavam um extenso conjunto crítico e denunciante dos profetas.

62 CRÜSEMANN, Frank. A Torá: teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Tradução de Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 331.

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Mas os princípios são inerentes à sociedade e ao conjunto do povo – e estão

profundamente entranhados no sistema jurídico formado pela Torá.

Suas práticas públicas e privadas, emolduradas de ideologia religiosa,

encimadas pela liberdade, fez com que Ambrogio Donini63, surpreendido, afirmasse,

quanto à vedação de escravidão entre os hebreus que “esta é uma norma judaica

que não tem comparação na Antiguidade”.

Fixou um dia da semana para descanso absoluto das pessoas, cessando

toda a atividade, especialmente as que envolvessem trabalho ou lides com a

natureza, estabeleceu normas relativas à proteção das viúvas, órfãos, pobres e

hospitalidade com os estrangeiros.

A cada sete anos (sabáticos) os escravos e as dívidas eram liberadas e a

cada cinquenta anos (jubilares) todas as propriedades sobre a terra e as dívidas

fundiárias eram extintas.

O sistema jurídico estrutura-se na Torá longamente, tendo por base a

individualidade e a comunidade.

A fiscalização do cumprimento da lei, inclusive na administração pública, é

decorrência de que o rei, os sacerdotes, os oficiais e funcionários, são iguais a

qualquer do povo, submetidos ao mesmo sistema jurídico, que organiza o estado e a

comunidade, tendo por centro a justiça e o respeito aos seres humanos e sua

dignidade, considerados ideologicamente como obra divina.

63

DONINI, Ambrogio. Breve história das religiões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 150. Donini utiliza abordagem marxista com método dialético. Sua observação denotando surpresa quanto à proibição de escravidão entre os hebreus, reconhecendo nesta norma um valor que a caracterizava como exceção entre os povos antigos mereceu do autor uma citação face à relevância das suas observações. Acresce Donini (ainda na página 150 da obra referida): “Na vida do povo hebreu, pelo menos no que se refere aos membros do mesmo grupo, a escravidão não teve um peso capaz de torná-la um fator determinante e socialmente importante; e isso contribuiu para o surgimento em Israel de um poderoso sentimento de solidariedade nacional, acima das próprias considerações de classe, reforçado posteriormente pelos desastres militares, pelo exílio e pelas perseguições raciais. Mas a explicação disso não deve ser procurada em motivos particulares de índole moral ou religiosa. Trata-se da sobrevivência de leis e costumes que remontam ao período inicial da história de Israel, quando predominavam as regras de uma vida nômade e pastoril”. Ao que acresce o autor: perfeitamente conservadas e observadas quanto à nação atinge um grau mais elevado de organização política e social. Não se conhece registro de um conjunto tão extenso e elaborado de normas que tenham atravessado um período primitivo pastoral e nômade e mantidas quando a sociedade se torna urbana.

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Flávio Josefo, com a autoridade de historiador contemporâneo do povo

hebreu, exercendo importantes funções públicas e último general hebreu a enfrentar

o invasor romano, vencido em 70 d. C., no seu Livro Segundo, “Resposta às críticas

de Ápio”, registrou:

Eu digo, pois, que aqueles que por seu amor pelo bem público estabeleceram leis para o regimento dos costumes são muito mais estimáveis do que os que vivem sem ordem e disciplina. Assim, todos devem conformar-se com as mesmas, não fazer novas leis, pela vaidade de passar por criadores e não por imitadores. O dever do legislador consiste em nada ordenar que não seja justo, e cujo uso seja útil aos que observam as causas preceituadas; vice-versa o dever dos povos consiste em jamais se afastar delas, nem na prosperidade nem na adversidade.

Ora, eu digo que nosso legislador, em antiguidade, precede a Licurgo, a Solon, a Zaleuco de Locres e a outros, tanto antigos como modernos de quem os gregos tanto se ufanam e que o nome de lei entre eles não era conhecido outrora, como parece, pois Homero nunca o usou. Os povos eram governados por máximas e ordens dos reis, das quais se usavam, segundo a oportunidade, sem que algo houvesse escrito. Mas nosso legislador, que, aqueles mesmos que falam contra nós, não podem negar ser muito antigo, mostrou que ele era um guia provecto de um grande povo, porque depois de lhe ter dado excelentes leis, ele o persuadiu a recebê-las e observá-las inviolavelmente.

[...]

As diversas nações, que existem no mundo, governam-se de maneiras diferentes: Umas abraçam a monarquia; outras, a aristocracia, outras, a democracia. Mas nosso divino legislador não estabeleceu nenhuma dessas espécies de governo. Escolheu uma república, à qual podemos dar o nome de Teocracia, pois que a fez inteiramente dependente de Deus e ao qual nós consideramos como o único autor de todo bem, que provê às necessidades gerais de todos os homens, Só a Ele recorremos em nossas aflições e estamos persuadidos de que não somente todas as nossas ações lhe são conhecidas, mas do que penetra mesmo todos os nossos pensamentos.

[...]

Não houve poder, por maior que fosse, nem consideração qualquer, que jamais nos pudesse afastar da observância de nossas leis. O único desejo de as conservar e não o de nos engrandecermos, nos fez empreender generosamente grandes guerras. Nós sofremos com paciência todos os outros males; mas, quando quiseram tocar nessas santas leis, para defendê-las, praticamos atos de valor que parecem superiores às nossas forças, sem que o extremo a que nos vimos reduzidos tivesse podido afrouxar nosso ardor e enfraquecer nossa coragem.

[...]

O que é, porém, muito mais admirável ainda é que, assim como Deus governa o mundo com sua sabedoria e com seu poder, nossa lei age por si, mesmo nos espíritos e nos corações, sem que seja necessário, para fazê-la observar, que se obrigue a quem quer que seja; e aqueles que refletirem no que se passa em seu país e em suas casas, não terão dificuldade em

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prestar fé ao que estou dizendo. [...] Já falei muito difusamente, delas, bem como também da antiguidade de nossa nação e da forma de nossa república na minha história dos judeus; foi somente por necessidade que voltei a fazê-lo agora aqui, sem intenção de censurar os outros, nem de nos louvar, mas somente para mostrar a malícia dos que nos atacam e nos atribuem tantas coisas contrárias à verdade.

64

A Torá é um conjunto de normas, acrescida de textos proféticos, que contém

o legado para o mundo ocidental de que a fiscalização ao cumprimento das leis, a

observância das normas impositivas à administração pública são indispensáveis

para a efetivação da justiça e estão fundadas na liberdade, igualdade e

solidariedade.

1.2. O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM ROMA

Em Roma, no período republicano (509 a. C a 27 a. C.) o controle da

administração pública possuía desenvolvida institucionalização jurídica, formada por

magistrados e órgãos estatais, com organização bem estruturada, como em outras

atividades, notadamente as organizações política, judiciária, administrativa e militar.

A partir do término do período da realeza, que foi abolida65, e a instauração

da república, a administração romana e o seu controle é o reflexo de um Estado com

imensa extensão territorial e consequente poder econômico, cujas fronteiras ao

ocidente, se iniciavam na Inglaterra e alcançava, ao oriente médio, a Síria e a

Palestina.

64

JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Obra completa. Rio de Janeiro: CPAD, 1990. p. 734-735, 740-741.

65 O término do período da realeza e a transferência do poder para o senado, que escolhia os governantes é a forma institucional e política dos romanos. É decorrente da luta de classes, inicialmente entre patrícios latifundiários e patrícios enriquecidos; posteriormente entre patrícios e plebeus (em parte também enriquecidos) que exigem participação no poder, defendidos pelos irmãos Graco. Os plebeus conquistam lugar no senado e posteriormente algumas magistraturas, inclusive o consulado. Quanto à administração pública, o valor adotado pela república, cujas palavras juncionadas (res e publica) terão o significado republicano mais notável do período, do ponto de vista administrativo-público. As coisas da república pertencem a todos e os seus administradores são responsáveis por ela. O passo seguinte será a institucionalização do controle dessa responsabilidade republicana.

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50

Não apenas reflexo, mas instituição necessária ao poder, a organização

administrativa romana é indispensável para gerir o desenvolvimento econômico e

social de Roma, impondo-se como um novo aparelho que resultasse em eficiência e

pragmatismo, características gerais do Estado romano, e ao mesmo tempo,

devidamente controlado.

A hierarquia e seu controle sobre a administração pública eram exercidas

pelo Senado ao lado de duas espécies de magistrados, que também exerciam

funções controladoras sobre os dinheiros e bens públicos66.

A primeira, eram os questores, que, aliás, já existiam ao tempo da realeza,

mas não com a relevância da república, com dupla função. Eram eles os

preparadores dos elementos para as acusações públicas e as de gerir as contas do

tesouro público.

Em 240 a. C., os questores deixam de ser preparadores dos elementos de

acusação, que passam para a esfera de atuação dos tribunos e ficam

exclusivamente com a guarda do tesouro público (aerarium Saturni).

Os questores eram em número de dois, mas em 421 a. C., tem seu quadro

majorado para quatro, divididos em dois para Roma, onde residiam (quaestores

urbani) e dois agregados ao exército, junto a generais em campanha ou ocupação

militar no exterior (quaestores militaris).

O quadro de questores não permaneceu estático; ele foi aumentado na

mesma medida de povos incorporados ao jugo romano e a extensão crescente da

área geográfica do Estado, assim como suas tarefas, também aumentavam e se

tornavam mais especializadas.

São criados, assim, mais quatro magistrados questores, em 267 a. C.,

responsáveis pelos equipamentos da marinha romana e administração do restante

da península itálica, recém conquistada e submetida a Roma (quaestores classici).

66

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 38. O autor examina a Tábua Nona da Lei das XII Tábuas, relativa ao direito público e constata que “[...] se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado recebeu dinheiro para julgar a favor de uma partes em prejuízo de outrem, que seja morto”. Considerando a gravidade do fato e a punição máxima, o direito romano era extremamente severo para com a administração da justiça, assim se podendo inferir quanto à administração dos bens públicos.

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51

Sila, em 32 a. C. eleva a quantidade de questores a vinte, e Cesar, a

quarenta. No império, período imediatamente posterior à república, são reduzidos

para vinte questores.

Os questores urbanos eram os responsáveis pela arrecadação e guarda dos

dinheiros públicos havidos sob a forma de tributos, taxas, indenizações de guerra e

pagamento dos povos submetidos a Roma67.

Encarregavam-se, de outro lado, pela distribuição dos valores públicos.

Entregavam esses valores aos questores militares para pagamento de soldo às

tropas, pagamento dos censores e edis, incumbidos de pagamento das obras e

trabalhos públicos.

Outros cargos em Roma também tinham atribuições financeiras – os

censores, mas suas tarefas não eram exclusivas, posto que acumulavam as lides

administrativas, como o recenseamento geral e político, a fiscalização dos costumes

(regimen morus) e a elaboração da lista senatória (electio senatus).

Os censores eram designados em número de dois pelas comissões

centúrias (comitia centuriata), com mandato restrito a cinco anos, reduzido para um

ano e meio pela lei Emília, o que ocorreu em 434 a. C.

Sua principal função financeira era a gestão de fundos que lhes eram

destinados pelo Senado e provenientes do tesouro público para satisfazer as

despesas com obras públicas, assim como responsáveis pelas rendas públicas

(vertigaglia), vertidas do domínio público.

Essas rendas compunham-se da exploração de minas, pedreiras, aduana,

passagem e outras imposições exigidas por Roma.

A importância dos censores pode ser aquilatada pelo fato de que, na sua

vacância, as funções eram assumidas por cônsules e as de natureza financeira por

pretores, edis ou questores.

67

Como antevisão avançada, o controle da administração pública era ao mesmo tempo a lide das atividades financeiras, como a receita (recepta) e as despesa públicas, além da guarda e responsabilidade pelos bens públicos.

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52

Em casos de dissídio sobre administração pública, os censores julgavam a

pendência, mas se o mesmo fosse de esfera privada, designavam os censores um

juiz para resolvê-lo.

Eram os questores e censores cargos hierarquicamente qualificados pela

sua importância, com predicados de magistratura. O exercício não era conjunto,

cada um deles tinha sua função própria, podendo o outro interferir e reformar a

decisão. A atuação era individual, autônoma ainda que submetida à revisão.

Eram, como membros da magistratura, dotados dos predicados

correspondentes (honoris), cuja característica no sistema jurídico romano é a

atribuição de poderes, a potestas e o imperium.

A primeira é de forma generalizada, toda a forma de autoridade conceituada

pelas normas romanas, inclusive na esfera privada e não apenas na esfera pública

(assim, exemplificativamente, na vida privada, pátria potestas).

Todos os magistrados eram detentores da potestas, por representarem o

Estado e assim estabelecer prescrições (condutas ou atos) denominados de jus

edicendi, exercer coerção e impor as multas (coercitivo minus).

O imperium era atributo de magistrado com maior elenco de poderes.

Era um conjunto de atribuições públicas, militares, judiciárias ou civis.

Eixo do sistema jurídico romano, o imperium não era exercido apenas em

Roma, mas nos territórios submetidos, inclusive como poderes militares,

administrativos e judiciais.

Três princípios são relevantes às magistraturas: periodicidade,

colegiabilidade e responsabilidade68.

Eles, portanto, são atributos inerentes aos magistrados com atividades

financeiras, administrativas ou de controle.

Em sua plenitude, a magistratura, como esses princípios que lhes limitam e

qualificam, são uma das marcas essenciais do regime jurídico da república romana. 68

Opinião do autor. Segundo essas três características, fica evidenciada que a república, perfeitamente definida para o sistema jurídico romano, é paulatinamente aperfeiçoada, mas essas características têm, ao mesmo tempo, a marca da democracia.

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53

Nas diferentes classificações da magistratura, como magistraturas maiores,

nas quais se incluem o consulado e a pretura, ou magistraturas menores, em que

figuram os censores; ordinárias, com funções permanentes (cônsules, censores,

questores) ou extraordinárias (os ditadores), para efeitos da tipificação jurídica dos

controladores da administração pública, interessa aquela que distingue os

magistrados dotados de império (cum império) e os magistrados não dotados de

império (sine império).

Essa tipificação irá distinguir os magistrados controladores da administração

pública dos demais magistrados.

Na segunda qualificação, não dotados de império, situam-se os questores e

censores.

Quanto aos censores, embora destituídos desse atributo, o cargo era

respeitado e suas funções consideradas relevantes para a república.

Sobre essa classificação jurídica, competência e relevância dos censores,

expõe Mário Curtis Giordani:

Os censores careciam de imperium mas seu cargo era considerado, sob alguns aspectos, a dignidade mais elevada que um cidadão romano podia alcançar; assim é que somente os consulares, isto é, os que haviam sido

cônsules, eram eleitos ordinariamente para o cargo [...].

Entre as atribuições dos censores destacamos:

1. O census: recenseamento quinquenal dos cidadãos, o qual tinha por fim reparti-los em centúrias e tribos segundo sua idade, sua fortuna, sua residência e sua condição;

2. Regimen morum: no desempenho de suas atividades, o censor exercia um policiamento dos costumes podendo censurar os cidadãos cuja vida privada ou oficial revelasse aspectos reprováveis: a nota censória podia privar o cidadão de seus direitos políticos (jus suffragii e jus honorum);

3. A lectio senatis era a elaboração da lista dos senadores podendo ser

excluídos os considerados indignos.69

69

GIORDANI, Mário Curtis. Direito romano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1991. p. 135.

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54

Os questores, igualmente destituídos de império, detinham cargos

relevantes, o que se evidencia por que exerciam suas funções como auxiliares dos

cônsules.

Explicita Mário Curtis Giordani sobre os questores:

Os questores como auxiliares dos cônsules em suas funções administrativas da cidade foram criados em 447 a. C. em número de dois. Entre as atribuições dos questores (cujo número aumentou) na época republicana podemos lembrar: guardar o tesouro conservado no templo de Saturno; acompanhar os cônsules em campanha, providenciando o pagamento das despesas e cuidando das presas de guerra. Fundamentalmente a órbita de atuação desses magistrados, quer em Roma, quer nas províncias, girava em torno da administração das finanças.

70

A hierarquia mais elevada no sistema jurídico romano quando ao controle da

administração pública incumbia ao Senado romano71.

A sua importância não era decorrente apenas da incumbência do controle

administrativo, uma qualificação que já demonstraria o papel relevante do Senado.

Sua função era preponderante no conjunto político-jurídico de Roma;

portanto o papel de controle lhe é decorrente da sua preponderância na escala

republicana.

A evolução pela qual o Senado atinge essa preponderância é a própria

superação do período da realeza.

A palavra senado deriva de senex, que significa velho. É um conjunto – em

forma de conselho, de anciãos e neste sentido não é uma criação republicana,

originária da época anterior da realeza, explicando-se porque no período

republicano, a sua origem aristocrática ou elitista ainda é mantida.

70

GIORDANI, Mário Curtis. Direito romano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1991. p. 136. 71

ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 31 et seq. Moreira Alves observa a organização institucional da república salientando que elas subsistiram no principado, mas com atribuições cada vez mais reduzidas, visto a incompatibilidade entre a monarquia absoluta que se instaura e as instituições republicanas. Ressalvado que o principado não corresponde à monarquia, mas um regime político de governo baseado em absorção e exacerbação de poderes, aliás concedidos pelo senado, adota-se a observação.

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55

Seus membros ainda são denominados de patres, pais, com o significado de

que ainda são os cargos reservados aos patrícios e chefes das principais famílias

romanas; um privilégio consuetudinário para aqueles que detinham o efetivo e

tradicional poder político em Roma.

Com a instauração da república e a sua evolução, essa tradição e

efetividade é abrandada pela elaboração de listas (particípio conscripti), cujos

listados eram acrescidos aos antigos e tradicionais patres.

A partir do século IV a. C., a elaboração das listas é atributo dos censores a

cada cinco anos.

Na lista (álbum senatus), os censores poderiam não incluir um candidato por

motivos morais, porque o zelo da moralidade pública eram um dos predicamentos

das funções dos censores.

Os magistrados de categoria menor ou inferior, com a evidência do

abrandamento dos privilégios patrícios, passam a integrar o Senado, o que ocorre

no século II a. C.

Sila renova substancialmente a composição senatorial pela lei que tem seu

nome admite o ingresso dos questores no Senado.

A mais radical inovação nessa evolução ocorre com Caio Júlio Cesar, que

inclui no corpo senatorial os representantes das províncias, dando maior pluralidade

ao ente máximo dos romanos.

O número normal de senadores era de trezentos; Sila o eleva para

seiscentos e Cesar para novecentos membros do Senado.

Os ditadores majoram com o acréscimo dos questores, fazendo vagas os

cargos desses. Sendo a questura requisito para ingresso no Senado, identifica-se,

além das atribuições, mais um qualificativo de relevância aos cargos de questor.

O Senado, que já era composto de membros preparados e experientes pelo

anterior exercício da magistratura, transforma-se, evolutivamente, em uma instituição

respeitada, autônoma, que se impunha ao conjunto dos magistrados e da

sociedade.

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56

O senador, mesmo na presença dos principais magistrados, com poder

político relevante (imperadores, por exemplo), mantinha-se senador, como símbolo

emblemático da sua autoridade e autonomia.

Vitalícios e protegidos por prerrogativas, suas competências incluíam a

esfera militar, política exterior, religião e ritos, assim como a distribuição das

províncias aos generais e governadores.

Quando ocorriam reclamações contra magistrados, o Senado exercia uma

espécie de jurisdição senatorial, abrangendo inclusive matéria administrativa,

impondo censura ou outras penalidades72.

Seus membros formavam os juris que julgavam os processos intentados

contra governadores acusados de concussão.

Em matéria especificamente administrativa, o Senado detinha também

competência para gestão dos bens públicos, criação de colônias, doação de terras

públicas, decidir sobre despesas e receitas do Estado, comandar os questores,

autorizar emissão monetária (quando as moedas exibiam as letras S e C, abreviação

de senatus consultus, indicando a autorização senatorial).

As funções fiscalizadoras do Senado, durante o período republicano,

incidiam sobre os magistrados que administravam dinheiros e bens públicos.

Nas tarefas ordinárias decorrentes das suas funções, cujos efeitos eram

controladores, o Senado majorava tributos, podia criar outros tributos, votar sobre os

gastos em moeda para os serviços públicos.

As atribuições senatorias incluíam a fiscalização e a revisão dos contratos

de Roma efetivados pelos censores e demais magistrados por delegação senatorial.

As retiradas de fundos públicos (aerari dispensatio) por censores dependia

de mandato expresso, exceto quanto eram realizadas pelos cônsules em Roma.

O funcionamento do Senado era permanente e sua fiscalização

administrativa constante. 72

Atribuir ao Senado romano uma espécie de jurisdição própria com funções sobre a administração pública e respectivas punições é outra situação do avançado sistema controlador romano. Quem exerce administração não pode também controlar; essa função atribuída ao Senado é característica republicana adotada contemporaneamente.

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57

Essa forma de funcionamento predicava ao Senado como a única instituição

romana que possuía todas as informações e controles sobre a integralidade dos

negócios públicos.

Esse extenso conjunto de funções de administração financeira, juncionadas

à fiscalização financeira acarretava, pelo seu volume e complexidade, a fragilização

do efetivo controle sobre os magistrados, especialmente nas províncias.

Os magistrados, mesmo situados em províncias, ainda que longínquas,

deveriam prestar contas, mas isto ocorria em períodos espaçados, envolvendo

alguns anos, quando os desvios, a dilapidação e a corrupção dos dinheiros ou bens

públicos já tinha ocorrido, o que ocorria com certa frequência.

Alguns magistrados que haviam incorrido nesses atos e práticas foram

sindicados pelo Senado e punidos.

É o caso ocorrido com o censor Emilio Lépido que, em 184 a. C., foi julgado

por ter utilizado indevidamente fundos públicos para construir em Terracina um dique

protetor contra inundação beneficiando suas terras particulares.

Situação análoga ocorreu com Cipião, o Africano, que foi chamado ao

Senado para prestar contras de sua gestão financeira na Ásia. Agastado e sentindo-

se humilhado, o general, famoso pela segunda guerra púnica, rasgou os

documentos que continham o demonstrativo de suas contas no recinto do Senado,

concitando o povo a celebrar a efeméride da derrota que ele impusera a Aníbal.

Preferiu exilar-se, abandonando Roma.

Com o volume crescente de ilicitudes, o Senado foi criticado por seus

julgamentos terem decisões políticas, muitas vezes complacente com os acusados,

levantando suspeitas, conforme a influência dos acusados73.

As críticas encontraram efeito.

73

Conquanto ente institucional republicano, o Senado romano, quando exercia suas funções controladoras da administração pública, deslizava para decisões políticas Essa prática republicana também é contemporânea. O controle vai oscilar entre as decisões técnico-jurídicas e a influência política, cujo jogo poderá determinar o conteúdo de decisões controladoras.

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58

As atribuições para fiscalizar a administração passam às comissões

especiais de jurados, presididas por magistrado dotado de poder de império, e as

penalizações são rígidas e severas.

Posteriormente essas comissões especiais de jurados foram substituídas por

tribunais específicos e permanentes, com funções próprias e denominados de

questiones perpetuae.

O tribunal permanente e específico foi instituído pela lei Calpurnia, em 49 a.

C., iniciativa do tribuno Calpurnio Piso Fuinghi, com matéria especializada para os

casos de concussão.

Novas leis impuseram aos magistrados responsabilidades, aprimorando o

quadro legal de fiscalização.

Arrolam-se as Acília, Servilia, Clauciae, Cornelia (iniciativa de Sila) e Julia

(iniciativa de Augusto).

Essas duas últimas previam o exílio aos peculatários e fraudadores.

A cominação usual era de restituição; aqueles que fossem condenados e

não restituíssem no prazo de um ano, ficam incursos no residuae pecuniae, que

majorava a condenação para ser acrescida a devolução com uma multa equivalente

a um terço do montante condenado.

Com o quadro legal especializado e as funções fiscalizadoras ativas, os

desvios e abusos tornaram-se mais frequentes e um repúdio popular propagou-se

por Roma.

A lei Pórcia, em 195 a. C., é resultado dessa indignação e limita as despesas

pessoais dos governadores nas províncias.

Os direitos aduaneiros (portoria) que beneficiavam os magistrados são

extintos em 60 a. C., mas restabelecidos mais tarde.

Em 59 a. C. foram reduzidos de um terço os valores devidos aos

arrendatários de impostos na Ásia.

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59

Inobstante, a espiral de desvios e abusos continuava em uma espiral

crescente.

A república estava no seu ocaso, sua sucessora será uma figura única: o

imperador.

O Senado, quando da época do império, divide seus poderes com o

imperador, mas paulatinamente o princeps consegue submeter o colegiado,

tornando ele individualmente o magistrado política e administrativamente mais

importante de Roma.

O ocaso da república é a dominância da figura do imperador.

A administração financeira, incumbência senatorial, com o império, é

transferida ao imperador74. O Senado torna-se apenas uma imagem pálida das suas

outroras prerrogativas.

As mudanças atingem outras instituições e cargos.

O tesouro, que era único (aerarium Saturni), perde sua autoridade individual

em razão do surgimento de dois novos tesouros: fiscus Caesaris e o aerarium

militare, o primeiro atributo do imperador e o segundo para fins militares.

Augusto institui na administração do tesouro público dois cargos de

prefeitos, que sucedem aos dois questores urbanos, importantes na república. Aliás,

esses dois novos magistrados, no império, já exerciam atribuições antes designadas

ao Senado.

Os prefeitos eram nomeados pelo imperador escolhidos dentre os

senadores, mas essa escolha demonstrava o poder político subtraído pelo imperador

ao Senado.

A atividade fiscalizadora continuou a ser exercida no império praticamente

da mesma forma pela qual ela era exercida no anterior período republicano75.

74

Pode-se afirmar, para os requisitos republicanos exigidos ao controle da administração pública, que a transferência do controle do Senado ao imperador é o ocaso de um sistema complexamente republicano.

75 O império e os poderes dos imperadores foram outorgados pelo próprio Senado, portanto práticas republicanas. Julio Cezar torna-se ditador temporário e depois perpétuo por decisão senatorial, face aos graves problemas e riscos de sobrevivência que enfrentava a dividida e conflituada republicana.

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60

O poder do imperador minimiza a atividade fiscalizadora e conforme o

crescimento da sua influência política, as práticas fiscalizadoras no regime imperial

perdem a importância que haviam galgado na república. A perda de importância

ocorreu também em relação às instituições e aos magistrados.

O poder do Senado é transferido ao imperador, que escolhe os magistrados

que irão administrar e fiscalizar.

A fiscalização autônoma dos magistrados e do Senado se extingue, o poder

compete ao imperador.

1.3 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA GRÉCIA

Na Grécia, a saber, na cidade-estado Atenas, o controle da administração

pública era uma das características político-jurídicas do elevado grau de

desenvolvimento civilizatório, cuja relevância pode ser apontada não apenas pelos

conhecimentos filosóficos, científicos, políticos, assim como sua arte, mas

especificamente pelo exercício da democracia concebida pelos gregos76.

A fiscalização que será analisada refere-se ao período democrático

compreendido na denominada época clássica, entre os séculos V e IV a. C.

A civilização ateniense incluía uma desenvolvida organização estatal,

conjuntamente com as obras urbanas que compõem o patrimônio da humanidade,

com as suas atividades políticas, judiciárias, celebrações, rituais, e, inclusive, suas

incursões bélicas que mantinham extensos territórios sob ocupação e tributários da

sede estatal.

76

A democracia grega era praticada na Ágora (a palavra em grego, significativo de mercado, é, em realidade, masculina). Os cidadãos de Atenas, calculados em cerca de dez mil, número reduzido porque mulheres, estrangeiros, escravos, crianças e pessoas de poucas propriedades não faziam parte dessa categoria) reuniam-se na praça (situada logo abaixo do Partenon, em uma parte plana, com duas construções à direita e à esquerda (as recentes descobertas arqueológicas revelam até mesmo encanamentos subterrâneos). As assembleias decidiam sobre leis, escolhas de magistrados, paz com outros povos e igualmente guerra, expedições, feriados e eram decididas de três formas: por voto, por sorteio ou por escolha. O cidadão que ingressasse na Ágora sabia que, nas cerca de setenta assembleias anuais, poderia ser sorteado para exercer cargo.

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61

Essa sofisticada organização estatal, assim como social, exigia recursos

financeiros para os quais os atenienses encontram dificuldades na sua obtenção em

território local quando confrontada com o princípio de liberdade conquistado pelos

proprietários, que consideravam o cumprimento de obrigações pecuniárias ao estado

como uma limitação da sua livre vida e imposição indevida aos direitos de cidadãos.

As fontes de renda auridas provinham dos tributos dos povos submetidos,

assim como dos aliados por sua proteção, locações, tarifas aduaneiras, presas e

despojos de guerra, contribuição dos ricos, denominada de liturgias.

Essas rendas eram administradas pelo estado, com funções administrativas

atribuídas a magistrados, segundo leis, mediante comissões compostas de dez

cidadãos, escolhidos por sorteio ou eleição.

Os magistrados encarregados das finanças públicas eram os helenotamos,

que arrecadavam os tributos dos estados aliados, os poletas, celebrantes de

contratos com os rendeiros públicos e também vendiam os bens confiscados e os

practores, recebedores de multas em favor do tesouro público.

As rendas obtidas eram relatadas ao conselho estatal (boulé), para

conferência, verificação, registro e depósito nos cofres públicos77.

O excesso de arrecadação, quando desnecessário, vertia ao “fundo teórico”,

a cargo de um funcionário que era seu tesoureiro, como bonificação popular para

custeio das festas públicas. Essa complexa administração financeira,

posteriormente, ficou a cargo de um único magistrado, como mecanismo

simplificador da atividade financeira.

Conscientes da sua liberdade, os cidadãos atenienses, praticantes de um

sistema democrático aprimorado, exigiam o controle da atividade financeira e jamais

negligenciaram a fiscalização sobre os magistrados que tinham funções de

administração financeira.

Cercaram-se de garantias jurídicas, sob fundamentos éticos e políticos,

determinando mandatos periódicos, com curta duração, indicações para os cargos

77

O conselho, por essas funções, tinha as características próprias de uma instituição republicana.

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62

mediante processo de sorteio ou escolha de magistrados e repeliam o exercício

autoritário e ditatorial.

A instituição ateniense da docimasia completa esse quadro democrático.

A docimasia era uma prática análise dos candidatos a cargos, com o exame

prévio de sua conduta moral, hábitos, costumes e vida pregressa. Os magistrados,

mesmo escolhidos, e antes de assumir suas funções, eram submetidos a esse

exame.

Quando considerados indignos para o cargo, a eleição era anulada.

De outro lado, ao final do término do mandato, era obrigatória aos

magistrados a prestação de contas devida a outros magistrados78.

Pretendiam que o tesouro público não fosse lesado e na sua ocorrência,

providências eram enérgicas para a punição do acusado e o ressarcimento do dano.

A fiscalização da atividade financeira dos magistrados foi objeto de

cuidadoso e apurado conjunto de leis dos legisladores atenienses.

O exercício das funções fiscalizatórias era concretizado por duas comissões

de auditores (os logistas), com dez membros cada uma, representativos das dez

tribos em que se dividiam os atenienses.

A composição dessas comissões resultava de um sorteio – uma das práticas

democráticas –, efetivado na Ágora. As comissões, quando necessitavam, contavam

com o auxílio de funcionários.

À primeira comissão cabia verificar e fiscalizar as contas dos magistrados

em cada pritânia que correspondia ao período de hegemonia política e

administrativa de cada uma das tribos na condução e gestão da cidade.

Os processos de prestação de contas incumbiam àqueles que, por sorteio,

juntamente com os membros da comissão, eram indicados para atuar na comissão.

78

Valor republicano, a prestação de contas se transmitiu à contemporaneidade pelos gregos (como também pelos romanos). Administrar com responsabilidade e segundo normas postas, prestar contas das suas atividades e ser punido pelas infrações cometidas é o conjunto de medidas que caracteriza a administração pública republicana.

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63

Eram dez inspetores de contas, denominados eutinos, um para cada tribo e

vinte auxiliares, paredros, em número de dois para cada inspetor de contas.

A apreciação da comissão não era definitiva.

Qualquer cidadão, no prazo de três dias, poderia propor ação de verificação,

civil ou penal, contra o magistrado acusado.

O pedido de ação era figurado em uma plaqueta de madeira branca, com o

nome do acusador, do acusado, a descrição da lesividade e o pedido de punição

com a indicação da penalização ou multa.

A plaqueta era encaminhada ao eutino, que poderia acolher os elementos ali

contidos.

Se fosse caso de interesse privado, os juízes encaminhavam a questão ao

exame do tribunal correspondente à tribo do acusado.

Em situação de interesse público, o eutino inscrevia o magistrado acusado

em um registro dos testometas, aos quais cabia examinar, e se concluíssem pela

procedência da acusação, encaminhavam a ação ao tribunal cuja decisão era

soberana.

A outra comissão de logistas, igualmente composta de dez membros, por

sorteio, era assistida por dez advogados que auxiliavam o colegiado (os sinégonos).

Realizavam sindicância nas contas dos magistrados responsáveis pela

administração financeira.

As leis impediam que o sindicado saísse de Atenas ou alienasse seus bens

antes da decisão da comissão na sindicância.

Se comprovado desvio de fundos públicos a condenação era por furto e o

montante de pecúnia desviada deveria ser devolvido em décuplo, o que ocorreria em

qualquer hipótese de corrupção praticada por magistrado79.

A multa não seria majorada se paga até a nona pritânia, mas se

inadimplente, ela era duplicada.

79

A punição era severa. Ela forma um conjunto de determinações jurídicas: administrar com responsabilidade, prestar contas da sua administração, ser julgado e punido em caso de ilicitude.

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64

O princípio da responsabilidade – e da responsabilização –, era paralelo ao

da publicidade.

Os valores de receitas e despesas públicas, após aprovados, eram gravados

em pedra, para exposição pública (um exemplar dessas pedras encontra-se no

Museu Britânico).

O relato de Aristóteles é elucidativo quando ao exercício da fiscalização

financeira em Atenas.

Segundo ele:

O exame das contas e a escolha das magistraturas constituem o maior de todos os poderes [...] enquanto para administrar os dinheiros públicos, comandar os exércitos e exercer as magistraturas mais importantes, é preciso um sentimento elevado.

É importante tornar dependente o poder, e não suportar aqueles que dele dispõem obrem segundo os seus caprichos, porque a possibilidade de fazer tudo o que se quer impede de resistir às más inclinações da natureza humana.

Como certas magistraturas, para não dizer todas, têm o manejo dos dinheiros públicos, é forçoso que haja uma outra autoridade para receber e verificar as contas, sem que ela seja encarregada de qualquer outro mister. Os magistrados que a exercem são chamados controladores, examinadores, inspetores.

80

O controle da administração exercido pelos magistrados em Atenas

demonstram uma relação consequente de um sistema democrático e o respeito e

deveres face aos valores e bens públicos.

Fábio Konder Comparato descreve e analisa essa relação:

Efetivamente, na vida política ateniense, por mais de dois séculos (de 501 a 338 a. C.), o poder dos governantes foi estritamente limitado, não apenas pela soberania das leis, mas também pelo complexo de um conjunto de

80

ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Toles. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 142. Foi noticiado pelos meios de comunicação a iniciativa de uma editora contra a Martin Claret a respeito de utilização indevida de traduções para publicação, mediante alterações do texto. Não havia menção de Política, de Aristóteles. O autor consultou outras edições, não observando discrepâncias, razão pela qual utilizou e utiliza esse exemplar, referindo a autoria da tradução.

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instituições de cidadania ativa, pelas quais o povo, pela primeira vez na História, governou-se a si mesmo.

Basicamente, a democracia ateniense consistiu na atribuição ao povo, em primeiro lugar, do poder de eleger os governantes e de tomar diretamente em assembléia (a Ekklésia) as grandes decisões políticas: adoção das novas leis, declaração de guerra, conclusão dos tratados de paz ou de alianças. Os órgãos do que chamamos hoje Poder Executivo eram, aliás, em Atenas, singularmente fracos: os principais dirigentes políticos, os estrategos, deviam ter suas funções confirmadas, todos os meses, pelo Conselho (Boulê).

O regime da democracia direta fazia ainda, em Atenas, com que a designação dos juízes se realizasse por sorteio, e o povo tivesse competência originária para julgar os dirigentes políticos e os réus dos principais crimes.

Mesmo nos processos que se desenrolavam perante os juízes oficiais, qualquer das partes tinha o direito de recorrer da sentença para um tribunal popular (ephesis).

A soberania popular ativa completava-se com um sistema de responsabilidades. Era lícito a qualquer cidadão mover uma ação criminal (apagoguê) contra os dirigentes políticos; e estes, ao deixarem seus cargos,

eram obrigados a prestar contas de sua gestão perante o povo.

Pela instituição do graphê paranomôn, o cidadão tinha o direito de se opor, na reunião da Ekklésia, a uma proposta de lei violadora da constituição (politéia) da cidade; ou, caso tal proposta já tivesse sido convertida em lei,

de responsabilizar criminalmente o seu autor.81

Efetivamente, para os efeitos de fiscalização são importantes em Atenas a

eleição ou sorteio dos magistrados (determinados magistrados eram escolhidos,

como generais, comandantes de navios) na Ágora, duração breve dos seus

mandatos, os cargos não poderiam ser exercidos mais de uma vez (exceto militares)

ou eram limitados com determinada frequência, nenhuma magistratura era vitalícia,

os magistrados eram fiscalizados por comissões especializadas, responsabilizados e

punidos; a auditoria, assim como outros assuntos relevantes são decididos em

assembleia.

Também Pinto Ferreira82 anota que, em Atenas havia uma corte integrada

por dez oficiais, eleitos anualmente pela Assembleia.

81

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 41.

82 FERREIRA, Luís Pinto. Curso de direito constitucional. 3. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1974. v. 1.

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66

1.4 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS CONTROLES DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA DOS GREGOS, ROMANOS E HEBREUS

Os gregos construíram um sistema jurídico de controle da administração

pública baseado em instituições coletivas constituídas de magistrados, decorrência

da soberania popular da democracia exercida em Atenas.

Denominados de controladores, examinadores ou inspetores, ou ainda,

auditores, amparados pelo sistema, eram especializados no controle, autoridades

que, relevantemente, com o respeito do povo, buscavam submeter aqueles que

exerciam poderes políticos ou administrativos, dispondo sobre os valores e fundos

públicos.

O controle, tanto no sentido da apurada organização estatal, como pelo

conjunto controlador, objetiva-se sobre inclinações ou tendências, ou ainda,

efetivamente, sobre desvio ou má gestão de fundos públicos.

Entre os anos de 501 a 338 a. C., o poder político e administrativo foi

estritamente controlado, acrescendo-se que assim ocorrera em decorrência das

práticas da democracia ateniense que atribuía aos cidadãos, sob a Ágora, em cerca

de setenta assembleias anuais, a eleição, sorteio ou escolha dos magistrados.

A soberania que o regime democrático atribuía ao povo era completa por um

sistema decorrente de responsabilidades dos magistrados que tinham o dever de

gerir os bens e valores públicos de uma forma correta.

Nesse sentido, encontram-se, precedentemente, as noções valiosas para os

gregos da ética na vida pública.

O cidadão era integrado à vida política da cidade – seu valor privado

imbricava com o valor da sua participação na vida pública, uma identificação que o

envolvia entre a vida pública e a privada.

As distintas funções dos controladores (e as outras denominações que lhes

eram atribuídas) e os entes colegiados existentes entre os gregos exerciam um

poder próprio – o poder controlador.

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67

Não havia sentido no exercício da democracia sem o complementar poder

dos cidadãos de controlar seus magistrados, e o exercício controlador associava-se

intimamente com a natureza do regime democrático grego. Era um componente

intrínseco existencial.

A consequência era de que o desvio dos fundos públicos pelo exercício

desleal dos gestores implicava em medidas do poder controlador, em caráter

punitivo precário ou definitivo.

Desde que se estabelecia a ação controladora, que poderia ser iniciada por

qualquer cidadão (apagoguê, que designava uma ação criminal promovida por

qualquer cidadão contra os dirigentes políticos), ou pelos entes colegiados, era

vedado ao responsável a sua saída de Atenas, proibida a alienação dos seus bens e

a imposição de multas, a devolução dos valores no montante equivalente ao décuplo

do fundo desviado.

A qualquer magistrado, em hipótese de corrupção sobre dinheiros, bens ou

valores estatais, os magistrados controladores tinham o poder de sindicar, julgar e

aplicar as penas cabíveis.

Esse sistema complexo e evoluído de magistrados e colegiados

controladores somente pode ser entendido como o controle que a democracia

atribuía ao povo soberano em razão do necessário controle das atribuições

outorgadas aos políticos e administradores (aos políticos, a graphê paranomôn

qualificava os cidadãos ao direito de se opor na reunião da ekklésia a uma proposta

de lei violadora da politéia – constituição da cidade –, e mesmo que a proposta já

tivesse sido convertida em lei, o instrumento iria buscar a responsabilidade criminal

do seu autor).

São qualificativos institucionais da democracia grega, segundo os quais o

poder político está submetido à soberania do povo e ao poder de controle, também

democrático, inserido no regime democrático.

Diz Fábio Konder Comparato:

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O regime de democracia direta fazia ainda, em Atenas, com que a designação dos juízes se realizasse por sorteio, e o povo tivesse competência originária para julgar os dirigentes políticos e os réus dos principais crimes.

Mesmo nos processos que se desenrolavam perante os juízes oficiais, qualquer das partes tinha o direito de recorrer da sentença para um tribunal popular (“ephesis”).

83

Semelhante complexidade institucional também é encontrada entre os

romanos, cujo centro irradiador não está no regime democrático, como entre os

gregos, mas no regime republicano por eles adotado.

Os romanos tinham a convicção arraigada, no período clássico da república,

derrotado o sistema monárquico, e as normas e práticas assim o comprovam, de

que o administrador público geria a coisa pública (res publica), algo que não lhe

pertencia, mas era comum a todos os cidadãos, e ainda de que administração

balizada por esse entendimento também se baseava na busca de um valor comum

ou disseminado.

A utilidade e o pragmatismo – valores tipicamente romanos –, era baseada

na lei.

Coisa pública, responsabilidade e valor comum eram conceitos que

confluíam e harmonizavam em um sistema elaborado cuja amplitude caracterizava-

se pela praticidade baseada na responsabilidade do magistrado no exercício das

suas atribuições. Esse exercício era decorrente de uma escolha e cumprido em

condições de temporariedade e rotatividade, assim como a estrutura colegiada.

A temporariedade (periodicidade), a rotatividade, a estrutura colegiada

(mesmo os cônsules eram designados em número de dois) e a responsabilidade das

magistraturas – incluídas as dos magistrados controladores –, são características

romanas, encontradas também entre os gregos.

Mas os sistemas grego e romano têm suas distinções típicas.

Os romanos evoluem com radicalidade da monarquia à república. Essa

nasce de uma luta entre classes que adquirem poder econômico antes do poder

83

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 41.

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69

político, em razão do desenvolvimento do estado, da sua expansão e das suas

riquezas acumuladas.

A divisão entre patrícios e plebeus jamais foi pacífica entre os romanos,

tanto durante a monarquia como no período republicano e depois no império.

Esse conflito resulta em instituições e normas que se aperfeiçoam no regime

republicano, com atribuições crescentes até mesmo no império aos representantes

da plebe.

A evolução dos gregos para o regime democrático resulta de uma situação

histórico-jurídica diferente.

Ela é mais intelectualizada e consensual do que entre os romanos.

Entre os romanos a figura central a respeito do conceito e prática da

responsabilidade dos administradores romanos é Cícero, como Péricles entre os

gregos.

Mas as vozes discordantes entre os romanos quanto ao poder da elite

patrícia não se limitaram ao torneio intelectual.

Os plebeus organizaram-se, armaram-se e arregimentaram extensas

multidões populacionais, insurgindo-se contra o poder, retirando-se de Roma,

liderados entre si ou por magistrados aderentes, como os irmãos Graco e somente

obtiveram conquistas jurídico-institucionais em razão da sublevação civil (igual sorte

não tiveram os escravos, liderados por Espártaco, que não pretendiam enfrentar o

poder político e militar romano, mas retornar aos seus países através da Sicília.

Foram derrotados e milhares crucificados ao longo das vias).

Republicanos os romanos e democratas os gregos, nos períodos clássicos

antes examinados, a liberdade e a igualdade eram atributos apenas das elites

dominantes.

O sistema administrativo romano, assim como o grego, completava-se com

um correspondente e necessário sistema de controle.

Ao término do exercício das suas atribuições, os magistrados romanos,

como os gregos, eram obrigados a prestarem contas das suas gestões, ou seja,

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relatar e demonstrar sobre as suas tarefas, fundos públicos, bens públicos, tributos,

obras públicas.

Entre os gregos salienta-se, a prestação de contas decorrida da soberania

popular ativa, cuja base inicial para o magistrado que devesse prestar contas era a

sua eleição, sorteio ou escolha, completando-se o quadro institucional e jurídico da

limitação do poder.

Os romanos também exigiam a prestação de contas dos magistrados,

também como complementação do quadro institucional e jurídico da limitação do

poder. Mas diferentemente, não era exercício de soberania ativa, mas de uma

complexa organização estatal na qual a cidade e suas instituições (senado,

cônsules, leis, tributos) eram preponderantes e representados por um conjunto de

magistrados e colegiados que interagiam reciprocamente com suas competências

coletivas e individuais.

Fábio Konder Comparato demonstra:

Já na república romana, a limitação do poder político foi alcançada, não pela soberania popular ativa, mas graças à instituição de um complexo sistema de controles recíprocos entre diferentes órgãos políticos.

Escrevendo no segundo século antes de Cristo, o historiador grego Políbio não hesitou em atribuir a esse refinado mecanismo de “checks and balances” a grandeza de Roma, que em menos de cinqüenta e três anos lograra estender a sua dominação “à quase totalidade da terra habitada, fato sem precedentes”.

84

Em Roma ou Atenas, os sistemas jurídicos de controle (assim como os

demais sistemas) e outros aspectos civilizatórios, como a organização urbana,

exército, justiça, elaboração das leis e o seu conjunto, o pensamento filosófico,

obras literárias, teatro, arquitetura, escultura, artes cênicas e pictóricas, a

superestrutura social e política, em seu conjunto, eram baseados na exploração do

trabalho escravo, na vassalagem de outros povos, na expansão de impérios e na

mão de obra formada em corveias e tributos – um sistema de vencedores e

vencidos.

84

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 41-42.

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Para os hebreus o sistema legal (com atribuição de criação divina) é

fundante e pré-existente à própria posse da terra.

O decálogo (dez mandamentos) é considerado como a constituição fundante

da nação dos hebreus.

Nesse sentido, Karl Lowesnstein ressalta:

Los hebreus – el primer pueblo que practicó el constitucionalismo fueron los hebreos.

Flavio Josefo acunó para la forma de sua sociedade el término de “teocracia”.

Desde entonces este concepto há sido aplicado a aquellos sistemas políticos en los cuales los súbditos viven o pretenden vivir bajo el domínio de uma autoridade divina.

En este sistema, los detentadores del poder en esta tierra – seglares o sacerdotes – son meramente agentes o representantes del poder divino. Esta ideologia del domínio fue común en los impérios orientales de la Antigüedad, donde los valores religiosos e seculares estaban fusionados, aunque em ciertas épocas sólo subconscientemente, en un marco ideológico coerente que engendró a sua vez las instituciones adecuadas para dichos valores.

La teocracia apareció bajo diferentes nombres y formas en el mundo islâmico, en el budismo y en el xintoísmo. El ejemplo europeu más importante se dio en la Ginebra de Calvino. Este tipo de gobierno se mantiene todavia en el Tibet.

El regimen teocrático de los hebreos se caracterizo – y aqui se oculta un elemento decisivo de la historia de la organización política – porque el dominador, lejos de ostentar um poder absoluto y arbitrário, estaba limitado por la ley del Señor, que sometía igualmente a governantes y governados: aqui radicaba sua constitución material.

[...] Durante más de dos mil años, la Biblia há sido, por encima de su papel de imperativa ley moral, na norma estándar para valorar gobiernos seculares, y apenas existe teoria política posterior que no haya podido obtener sus argumentos de la Biblia.

85

85

LOWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1970. p. 151. Tradução livre do autor: Os hebreus – o primeiro povo que praticou o constitucionalismo foi o hebreu. Flávio Josefo denominou para a forma de sua sociedade o termo de “teocracia”. Desde então esse conceito tem sido aplicado àqueles sistemas políticos nos quais os súditos vivem ou pretendem viver sob o domínio de uma autoridade divina. Neste sistema, os detentores do poder na terra – seculares ou sacerdotes – são meramente agentes ou representantes do poder divino. Esta ideologia de domínio foi comum nos impérios orientais da antiguidade, onde os valores religiosos e seculares estavam mesclados, ainda que em certas épocas apenas subconscientemente, em um marco ideológico coerente que engendrou a sua vez instituições adequadas para esses valores. A teocracia apareceu sob diferentes denominações no mundo islâmico, no budismo e no xintoísmo. O exemplo europeu mais importante ocorreu na Genebra de Calvino. Esse tipo de governo se mantém ainda no Tibet. O regime teocrático dos hebreus se caracterizou – e aqui se oculta um

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Mas ele resulta de um fato antecedente e dele é consequência: liderados por

Moisés, o príncipe legislador, o povo é libertado do cativeiro egípcio que durara

cerca de quatro séculos e conduzido durante quarenta anos pelo deserto – quando a

geração de escravos já estava extinta – um povo livre, com liderança e constituição,

formando uma nação, assoma à terra dos seus ancestrais.

O primeiro mandamento é relativo ao monoteísmo e à consequente

normatização de que a terra, seres e todos os bens nela existentes são direitos

divinos, submetendo a todos, independentemente de sua condição política,

econômica, social ou religiosa, a uma mesma e efetiva declaração de igualdade.

A lei nasce antes, é imutável, portanto, a elite não a elabora e lhe é vedado

modificá-la.

Distintamente dos gregos e romanos, a característica dos hebreus é a de

que a lei já está posta e imposta, inicialmente como tradição oral, após grafada e

posteriormente organizada e codificada pelo rei Josias (como já observado).

A igualdade da lei para todos e a libertação da escravidão trazem dois

valores à nação que irá se estabelecer no seu território.

A igualdade é absoluta e a escravidão é vedada entre os hebreus, aliás,

traços diferenciadores absolutos quando comparados aos demais povos, inclusive a

ocidente ou oriente.

Ressalta-se também que, para os hebreus, a igualdade e a liberdade,

valores fundantes da nação em caminho (passagem) para a sua terra, somente se

completam e adquirem seu sentido pleno quando o sistema jurídico tem por

finalidade a justiça, aqui entendida não apenas como a devida e proporcional

aplicação da lei, mas também a justiça social, mediante a ajuda fraterna dos homens

e das comunidades aos mais necessitados, elencando-se as viúvas, os órfãos, os

pobres, os necessitados, os asilados nas cidades de refúgio, a distribuição, inclusive

direta, dos tributos, e assim por diante.

elemento decisivo da história da organização política – porque o dominador, longe de ostentar um poder absoluto e arbitrário, estava limitado pela lei do Senhor, que submetia igualmente a governantes e governados: aqui se radicava sua constituição material. [...] Durante mais de dois mil anos, a Bíblia tem sido, além do seu papel de imperativa lei moral, a norma padrão para os valores dos governos seculares e apenas existe teoria política posterior que não tenha podido obter seus argumentos da Bíblia.

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Aos reis, funcionários e oficiais, esses valores determinavam explicitamente

uma vida pessoal e pública comedida, parcimônia, estrita observância das leis.

O controle é uma essência e decorrência desse sistema insculpido nas leis

originais da Torá e acrescido das críticas e denúncias dos profetas, assim como da

jurisprudência do Talmude (tanto o da Babilônia como o de Jerusalém).

Os hebreus não construíram obras, bens ou arte que rivalizasse com os

gregos e romanos.

Exceto seu texto bíblico, que é, ao mesmo tempo norma e religião,

resultando em uma religião normatizada, cujo valor literário é reconhecido e é

inspirador de obras literárias, teatrais ou musicais, os hebreus não construíram

cidades, arcos, monumentos, prédios públicos ou privados ou templos imponentes.

Mesmo o templo de Jerusalém foi construído com recato, utilizando-se pedras não

polidas.

O que distingue os hebreus dos romanos e gregos é um sistema jurídico

fundado na liberdade (como conquista histórica), na igualdade (como afirmação

humana), a incessante busca pela efetividade da justiça e da fraternidade.

Na Bíblia, o direito é concebido como de origem divina.

Deus é a última fonte e sanção de toda a regra de comportamento; todo o

crime é um pecado pelo qual a comunidade é responsável perante Deus, e não

perante um governo humano.

Na Bíblia, como de resto nos veda, ou no Corão – as prescrições jurídicas,

morais e religiosas estão confundidas.

Existem, no entanto, algumas partes do Pentateuco cujo conteúdo

corresponde mais especialmente às matérias que hoje se chamam jurídicas86.

As normas inscritas na Torá tinham a força do caráter perpétuo, da

imutabilidade uma construção jurídica baseada tanto na individualidade como no

valor comunitário. Foi, afinal, o que lhes restou durante os períodos frequentes de

86

GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 68.

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vassalagem, exílios ou dispersão, os quais, somados, são superiores ao período de

soberania do povo.

Nesse sistema, explícita e implicitamente, o controle dos reis, oficiais e

funcionários é dele decorrência.

A classe dirigente não era superior, face à lei, aos que eram dirigidos.

A primeira atribuição dos dirigentes era cumprir a lei e ao mesmo tempo ser

justo.

À ausência de um sofisticado aparelhamento estatal, inclusive corpo de

magistrados individuais ou colegiados, como tiveram os romanos e gregos, os

hebreus atribuíram ao próprio povo, comunitário ou individualmente, o controle e ao

Sinédrio o supremo controle administrativo (e político) sobre a elite dirigente.

O decálogo constituinte impõe as condições para a escolha do rei e prefixa

imutavelmente as suas atribuições e atribui ao Sinédrio, desde Moisés (conselho de

anciãos), como um conselho de estado, ente máximo da nação, a escolha do rei,

dos funcionários e dos oficiais, assim como as competências mais elevadas da

nação e o próprio controle sobre o rei e administradores.

Esse sistema teria aparência de concentrador em um colegiado de setenta e

um membros; entretanto, ele se dilui nos pequenos Sinédrios (três, ao menos),

tribunais locais e no controle que a comunidade e os profetas, como críticos e

denunciadores, exerceram em grau de magnitude e relevância, outorgando-lhes a

transferência para o próprio corpo legislativo.

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2 O SURGIMENTO DAS CORTES DE CONTAS – DA IDADE MÉDIA À

REVOLUÇÃO FRANCESA

Registra-se a evolução desde o surgimento das Cortes de Contas na Idade

Média até o rompimento do sistema político-jurídico feudal pela revolução francesa.

As cortes medievais eram órgãos de interesse do soberano e atuavam em seu

benefício. A Revolução Francesa introduz valores republicanos e democráticos e a

participação dos cidadãos no controle. Posteriormente, irá criar a primeira Corte de

Contas moderna, em 1807, na França, com o controle orçamentário e contábil.

2.1 AS CORTES DE CONTAS MEDIEVAIS

As cortes de contas medievais não tem uma conformação homogênea. Em

Portugal, o controle, deficiente e primário, é exclusivamente em favor do patrimônio

real.

Na Itália, em algumas comunas, há um desenvolvimento com sentido

próprio, visando a administração local e uma certa autonomia.

O desenvolvimento dessas cortes e magistraturas não serão desprezadas

posteriormente. Nas alterações sociais, a cada mudança, as novas instituições

mantêm as características anteriores que não sejam conflitantes com as conquistas

obtidas.

2.1.1 Idade Média – características políticas e jurídicas

O ocaso da civilização grega, a decadência, o desmoronamento do império

romano e a dispersão do povo hebreu encerra um período em que o controle da

administração pública se baseava em princípios democráticos e republicanos.

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Ele é sucedido por um novo período histórico, denominado de Idade Média,

que irá se prolongar desde o século III d. C. até o século XV.

A característica jurídico-institucional desses longos séculos é a inexistência

do estado como centro político concentrador como era conhecido na Grécia, em

Roma e entre os hebreus.

Um novo sistema de predomínio ideológico de uma nova organização

econômica, social e política intitulada feudalismo e o predomínio da religião católica

que se torna oficial substitui as práticas até então vigentes no continente europeu,

enquanto que a terra dos hebreus é ocupada e submetida à vassalagem.

Para Jacques Le Goff, a institucionalidade da Idade Média no sistema feudal

pode ser assim resumida:

O sistema feudal repousa economicamente na posse da terra e no direito de cobrar um certo número de taxas. Isso gera uma hierarquia social de uma hierarquia de poderes.

Na base dessa hierarquia está a massa de leigos, que são 90% de camponeses. Uma parte deles, na alta Idade Média, digamos até o século XI, não é livre. Ainda existem escravos e, principalmente, servos, e as alforrias libertam a grande maioria dessa base social leiga.

Depois vêm os senhores, que são a um tempo os proprietários, os exploradores e os beneficiários da terra e dos produtos econômicos em geral. São os senhores dos leigos.

Ao lado e acima deles, estrutura-se uma hierarquia política dividida essencialmente em dois tipos de governo: os governos urbanos com magistrados urbanos, e governos que, pouco a pouco, a partir do século XI e sobretudo do século XII, assumem um aspecto estatal e geram monarquias, as principais sendo as monarquias inglesa, francesa e castelhana.

Enfim, à parte, os clérigos formam a Igreja, principal poder dominante da Idade Média e da sociedade feudal, que supervisiona, controla, garante o domínio de Deus sobre o conjunto da sociedade e mais especialmente dos leigos.

87

Jacques Le Goff tem uma extensa bibliografia sobre a Idade Média. Ele

encontra traços humanísticos que conduzirão à Renascença, os quais recuperarão

alguns princípios clássicos e instituições gregas e romanas. 87

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Conversas com Jean-Luc Pouthier. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 66-67.

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77

O poder não é centralizado e está dividido entre os senhores feudais, que

possuem domínio econômico, cujos feudos, cristalizados em um regime próprio,

baseado na exploração dos servos da gleba e na economia rural, representam o

imobilismo e a estratificação social, política e econômica. O outro detentor de poder

reside na Igreja Católica, ela também dominadora de extensas áreas de terra, com

seus servos e o controle ideológico sobre o povo e a elite.

As riquezas provindas da terra e da cobrança de taxas (per capita, de

guerra, sobre os produtos, pelo direito de passagem, assim como sobre os bens

trazidos de outras regiões) eram carreadas aos senhores feudais e ao rei, como se

esse também fosse um senhor feudal; eram objeto de fiscalização, não mais como

um princípio democrático em proveito geral ou como verificação da responsabilidade

dos administradores, como tinha ocorrido na Antiguidade e no período clássico

grego e romano. A finalidade da fiscalização se realizava no interesse dos titulares

dessas riquezas.

Embora se institucionalizem os controles, a preponderância deles era a sua

utilidade como verificação do exato cumprimento por parte dos servos e súditos ou

das obrigações, como o dízimo, devidas à Igreja.

Como se verá, paulatinamente, e à medida que surge uma nova classe

social denominada burguesia, cuja origem é sua saída dos feudos e concentração

nas vilas e cidades, a fiscalização especializa-se para o benefício geral e para a

limitação do poder. Nesse aspecto, como será demonstrado, as cidades da

península itálica desenvolvem um conjunto de instituições e magistrados dotados de

funções próprias, as quais tendem e se tornam o poder republicano nas comunas,

até entrarem em ocaso com o poder absolutista.

A propriedade do rei, enquanto isso, o jus eminens dominium, e a dos

senhores feudais, o jus utile, eram fiscalizadas como prática privada da casa real e

dos dominadores feudais.

Mesmo com o desenvolvimento das comunas italianas, os valores e práticas

atenienses, romanas ou dos hebreus desvanecem-se nas brumas do passado, e

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78

seus relatos documentais são considerados segredos guardados pela Igreja,

vedados ao conhecimento dos servos e mesmo dos senhores feudais88.

Para maior segurança os livros continham veneno nas suas páginas para

aqueles que eventual e dificilmente tivessem o acesso proibido. Para Eco,

Aristóteles e outros clássicos ficavam assim resguardados de divulgação,

apropriando-se a hierarquia católica do monopólio do conhecimento e mantendo

estática a ignorância, situação que somente será rompida na Renascença.

A fiscalização era necessária para os senhores feudais e para a Igreja.

O sistema não era homogêneo nas várias regiões e igualmente não alcança

desenvolvimento simétrico.

Pode-se mesmo destacar algumas instituições e funcionários encarregados

da fiscalização, mas estão amplamente dessincronizados quando observados o

desenvolvimento e especialização das comunas italianas e das outras regiões, como

França ou Inglaterra.

2.1.2 O controle na Inglaterra

Para o controle no período feudal na Inglaterra são criados cadastros de

terras, em 1086, denominados de Domesday Bood, por ordem de Guilherme, o

Conquistador.

Esses cadastros tinham por fim registrar as propriedades para fins de

cobrança de taxas em benefício da casa real89.

As práticas e bases eram rudimentares, os senhores feudais e reis instituíam

comissões e funções e nomeavam funcionários que servirão para uma embrionária

88

Umberto Eco, em O Nome da Rosa, também adaptado para o cinema, descreve com detalhes como os segredos, constantes em livros, estavam escondidos em labirintos nos prédios dos mosteiros. ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 1999.

89 Semelhante medida foi adotada pouco mais tarde, na Dinamarca, com o mesmo fim instrumental e em benefício real, quando reinava Valdemar II, em 1231.

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administração financeira e através deles faziam as suas previsões para o ingresso

ou percepção dos recursos necessários.

As entradas e os gastos eram sindicados de uma forma primitiva por

comissões escolhidas pelos titulares – senhores feudais ou reis –, e recrutadas entre

aqueles que exerciam funções judiciais.

Dessas comissões e práticas rudimentares surge uma gradual

especialização que paulatinamente ganha conhecimentos próprios90.

As disputadas guerras entre os barões feudais e os reis, na Inglaterra,

propiciam, em favor do baronato e como limitação ao poder real, a fiscalização da

arrecadação dos tributos, assim como dos gastos da casa real.

Desde antes, o poder real na Inglaterra só vinha sendo submetido aos

Witans, um conselho formado por aqueles que eram escolhidos dentre os que

tinham conhecimentos e cuja função era examinar as cobranças dos tributos e os

atos realizados pelo rei com a arrecadação tributária.

Vencido nesta disputa pelos barões, o rei João sem Terra outorga a Cartha

Magna, em 1215, decorrência de seus abusos na cobrança dos tributos e nos gastos

com eles realizados.

Essa Carta é um instrumento limitador do poder real, uma nova forma de um

sistema representativo dos senhores feudais frente ao rei. Sua outorga decorre de

abusos cometidos na arrecadação e gastos, considerados extorsivos e desviados

pelo baronato com o apoio do povo.

Nesta Carta Magna institucionalizam-se direitos em benefício do baronato

que outros instrumentos posteriores irão complementar e ampliar.

Dentre eles, o estatuto de Eduardo I, em 1297, denominado De tallagio non

concedendo, segundo o qual o rei necessitava da autorização dos barões,

90

Essas comissões e seus funcionários vieram a constituir as câmaras ou conselhos de contas, com competências mais definidas, atividades de nível especializado, especialmente a partir do século XIV. Na Normandia, os duques anteciparam-se a essas instituições com a figura do Echiquier, com funções sobre as contas, em Ruão, por volta do século XII. Com isso, a Normandia viabilizou um sistema diferenciado de controle, com cortes contábeis, antes que assim ocorresse na Inglaterra.

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componentes de um conselho do reino, e posteriormente da autorização dos Pares e

dos Comuns para a decretação de novos tributos.

A autorização, notória e relevante, tinha a formulação jurídica sob No

taxation without autorization91.

É também encontrável a palavra inglesa representation – representação, em

lugar da palavra autorization. Não altera o sentido, mas seria completo poder ser

declarado: nenhuma tributação sem a nossa autorização mediante representação.

A importância dessa conquista fixada naquela norma é o nascimento do

orçamento moderno, segundo o qual a arrecadação pelo poder executivo depende

da autorização do poder legislativo.

Mais adiante, cerca de um século depois, fixa-se nova norma, acrescida à

primeira, segundo a qual as despesas fundadas na arrecadação, previamente

autorizadas, também dependerão do conselho de barões.

Ou seja, não apenas a arrecadação deverá estar autorizada, mas as

despesas reais serão especificadas pelo conselho92.

A arrecadação e as despesas reais, já fixadas em normas jurídicas

elaboradas em razão da autorização representativa, necessitavam de uma segunda

etapa.

A fiscalização era a segunda etapa, consequência e herdeira da autorização

da arrecadação ou cobrança e dos gastos em despesas reais.

Para isso, os ingleses criaram uma Corte do Exchequer, derivada da cúria

ducis, originária da Normandia.

Essa corte estava dividida. De um lado, a saccarium majus, cuja função era

a revisão dos atos dos responsáveis pela receita e despesa e, de outro lado, a

saccarium de recepta, ou, ainda, recepta saccari, incumbida dos pagamentos93.

91

Tradução do autor: “Nenhuma tributação sem a nossa autorização.” 92

Com essa segunda fórmula jurídica, a Inglaterra lega ao mundo civilizado o embrião da legalidade do orçamento, com as necessárias autorizações legislativas dos representantes para arrecadar tributos e gastar nas despesas públicas.

93 A utilização da palavra latina recepta demonstra conhecimentos sobre a prática romana quanto à cobrança de tributos. No Forum em Roma havia uma cesta, denominada recepta (receptáculo, em

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81

A Corte do Exchequer era formada por membros destacados na hierarquia

política e social e recebiam títulos reais: justiceiro, condestável, marechal, tesoureiro

– como oficiais reais. Todos tinham o título elevado de barão real de Exchequer.

Ao tempo de Henrique III criou-se o cargo de Chancellor of Exchequer, com

funções de tesoureiro e relevante situação na hierarquia da corte inglesa.

2.1.3 O controle na França

A monarquia na França tinha uma sólida situação política e econômica.

Em decorrência, o controle das receitas, dos bens e do tesouro, assim como

das despesas, era realizado em benefício do monarca.

Os representantes reais que tinham funções financeiras relatavam ao rei as

situações das contas e despesas e por três vezes ao ano recolhiam o saldo dos

valores aos cofres reais.

Isso diferencia a situação com a Inglaterra, na qual os barões,

paulatinamente, foram reduzindo, ou limitando, os poderes reais, enquanto que, na

França, a realeza detinha e exercia o poder plenamente nas suas lides financeiras.

Em consequência, a casa real possuía um sistema contábil evoluído e

aprimorado.

Jean Sarrasin, camarista do rei Luis IX (São Luis), exercia as funções de

centralização dos valores do tesouro real (uma espécie de caixa central) e tinha a

incumbência do registro das contas, para o qual utilizava o método de partidas

dobradas, até então desconhecido. Esse método era mais confiável nos registros,

sendo a monarquia francesa a primeira a adotá-lo.

português) na qual eram depositadas as moedas pela elite romana. O significado era simbólico. Eles deviam tributo à Roma e a moeda ali depositada tinha o significado de que a obrigação seria cumprida. A palavra recepta origina, em português, variante, receptador, agente cujo ato de receptar é figura penal. O tributo, dada sua antipatia pelo povo, passa a ser uma espécie de sinônimo de que o credor tributário retira aquilo que não é seu, resultando na evolução do termo para a variante receptador, como criminoso.

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Afonso de Poitiers, conde de Toulouse, em 1256, criara métodos apurados

de registros, destacados por sua técnica e confiabilidade; esses métodos

disseminaram-se para uso das comunas francesas.

O rei Luis IX demonstrava cuidadosa diligência com os registros. Para isso

editou ordenanças em 1254, em 1255 e em 1256 que estabeleciam normas

rigorosas para a gestão do patrimônio e valores reais, criando nesse último ano uma

corte de contas.

Felipe, o Belo (1285-1314), em 1309, paralelamente ao Conselho do Rei,

criou a Chambre des Comptes (Câmara de Contas), perante a qual os funcionários

reais encarregados das lides financeiras deviam relatar suas contas94.

Com a evolução das finanças na França, o primeiro orçamento surge em

1313, denominado de Relações de Entradas e Despesas do Reino.

Pouco depois, em 1310, Felipe, o Longo, reorganiza a Chambre des

Comptes, inovando características próprias, tornando-a fixa, com sede em Paris,

deixando por isso de ser ambulante.

A partir de 1350, reúnem-se as Assembleias Provinciais e, logo após, os

Estados Gerais.

Nessas ocasiões, os representantes reclamam e obtêm o direito de

examinar as contas relativas aos fundos destinados ao monarca, criando-se na

França o início de uma fiscalização parlamentar, realizada pelos próprios

representantes.

Durante o reinado de Carlos IV, o Louco, em 1409, os Estados Gerais, por

conquista do partido popular, fixa, de forma ainda mais acentuada, o direito de

fiscalização ou contrasteamento95.

94

Relatar contas não era apenas uma demonstração dos valores recebidos e gastos e sua respectiva gestão. Relatar, ou prestar contas, desde a época romana, era o instituto pelo qual o administrador público responsável relatava todos os fatos financeiros que lhe estavam afetos durante o período precedente. Atualmente, a prestação de contas do administrador público, além da incumbência legal é também o instrumento de transparência do gestor. Necessariamente não envolve dinheiro ou cálculos matemáticos, como o termo contas poderia sugerir. Ser responsável por bens, como os cavalos ou navios reais, implicava em demonstrar no relato a situação desses bens.

95 O contrasteamento, se verá mais adiante, era o sistema de verificação que os fiscais reais realizavam em face dos seus registros e os bens ou valores particulares. Como os registros vinham

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83

Em decorrência, a Chambre des Comptes sofre uma reorganização e lhe

são atribuídas novas funções fiscalizadoras.

Ela própria exercia a escolha dos seus membros e funcionários, como o

Tesoureiro, o Superintendente Geral, o Recebedor Geral e o Fiscal dos Subsídios.

A consolidação absolutista em um largo período sem que tivessem havido

convocações para as reuniões dos Estados Gerais, escoando-se as condições

propícias à fiscalização fazendária.

A Câmara de Contas, instalada em Paris, por ordenança de Luis XI, em 26

de fevereiro de 1461, possuía funções próprias para examinar e julgar as contas dos

responsáveis, assim como aglutinava a jurisdição criminal sobre os funcionários

responsabilizados.

Também acumulava relevantes funções de verificar e registrar os éditos

reais e ordenanças relativas a finanças reais, compreendendo inclusive atividades

administrativas, como a guarda dos títulos de domínio da coroa e inspecionar a

administração financeira do reino.

2.1.4 O controle nas cidades italianas

As realidades político e jurídica das cidades italianas eram distintas da

França e da Inglaterra. A Itália não era unificada. Cada cidade tinha o estatuto de

estado96.

em forma de rolos de papel, eram denominados de contre-rôle, daí o método comparativo, ou constrasteamento.

96 As cidades italianas funcionavam como estados, com extensas áreas territoriais. A vida urbana, especialmente ao final do período medieval, já continha em sua organização social e econômica uma burguesia desenvolvida, dedicada ao comércio, bancos, manufaturas, artesanato. A obra de Maquiavel, notadamente O Príncipe e Os Discursos sobre Tito Lívio, ainda que já na Renascença, demonstram o quanto a divisão do poder político entre as cidades era prejudicial para a Itália, quando as comunas disputam entre si o poder, militarmente, às vezes aliadas a outros países. Esse lamento de Maquiavel traduz também uma melancolia perante a crônica que o poder do império romano havia atingido, dominando desde a Inglaterra, ao ocidente, até a Pérsia e mais adiante, ao oriente, além do norte da África, atravessando três continentes. MACHIAVEL. O príncipe. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

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A partir do século XII o feudalismo demonstra sinais de decadência na

península itálica. O sistema econômico, baseado exclusivamente na exploração da

terra que gerara o poder dos senhores feudais e da Igreja, enfrentava uma crise de

esgotamento.

Uma nova classe social, a burguesia mercantil e também formada por

artesãos, proprietários de pequenas indústrias manufatureiras, acumula riqueza,

ainda sem poder político, mas nas vilas e cidades as necessidades são

diametralmente diferentes da vida do feudo e mesmo das aglomerações urbanas

feudais, que não possuíam importância. Uma nova ideologia surge com a burguesia,

baseada na vida mercantil e no sentido de livrar-se das teias feudais e

clericais.

Volta-se a nova classe, assim como as comunas burguesas, contra os

privilégios feudais, reais e da Igreja, sobretudo na cobrança de taxas, na exploração

econômica e no poder exercido sobre a nova classe.

O conflito tem infraestrutura econômica, que é base que gera a organização

e ideologia social e política, mas a sua visibilidade é a disputa pelo exercício do

poder político, no qual se inclui a organização autônoma das cidades e também o

controle sobre as arrecadações e despesas reais, custeadas pela burguesia.

Desse conflito, essencialmente de classes, surgem os governos comunais,

cujo exemplo das cidades-livres da Alemanha e os governos das comunidades da

França. Ou seja, trata-se de um fenômeno político que, embora não restrito à

península itálica, terá nela os fatos jurídicos mais notáveis, como as conquistas

jurídicas quanto ao controle mais efetivo nas comunas.

Esse período de florescimento das cidades italianas ocorre entre os séculos

XIV e XV, quando a Idade Média está cedendo à Renascença e a autonomia das

comunas será substituída pelo poder absolutista e dos principados.

Milão possui um governo comunal, transformado em ducado em 1277.

As rendas comunitárias de Milão não eram de montante elevado, recorrendo

a comuna constantemente aos empréstimos públicos ou privados para solver suas

pendências financeiras.

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Possuía Milão cadastros minuciosamente elaborados para registrar as

propriedades públicas e separadamente as propriedades privadas.

As perturbações por guerras internas e externas desorganizaram as finanças

de Milão e a sua gestão foi delegada em 1235 a um financista de prestígio, Beno dei

Gozzadini, que logo foi impopularizado pelo aumento dos tributos.

Mas ele cria um conselho de finanças, denominado Officium Fodrorum, cuja

finalidade precípua era fiscalizar a riqueza pública.

Insucedido, odiado pelo povo, acabou assassinado pela massa popular

milanesa.

Em 1388, Milão dispunha de um colegiado com atribuições sobre a

tributação, designado por Colégio de Impostos. Possuía atribuição deliberativa,

dependente do Referendário da Cúria Ducal.

Inobstante essa dependência, tinha a efetiva gestão das finanças e da

contabilidade pública.

Gian Galleazo institui um Conselho Secreto para as finanças da cidade de

Milão, que exercia a supervisão das repartições das receitas, com os Magistrados

das Entradas Ordinárias e Extraordinárias e os Referendários da Cúria Ducal, nas

várias províncias da cidade97.

Veneza adotara instituições fazendárias e fiscalizadoras cuja importância e

complexidade eram paralelas à importância política daquela cidade. A sua

relevância residia também no seu porte econômico, financeiro e institucional.

Possuía Veneza vários colegiados de magistrados, como o Conselho dos

Quarenta, o Conselho Maior ou Conselho dos 480, o Conselho dos Dez, o Conselho

Pleno, dentre outros.

Veneza submetera muitas cidades e outros povos, inclusive ao oriente, das

quais cobrava tributos e vassalagem; era o centro marítimo de entreposto comercial

97

A denominação adotada para os magistrados: Magistrados das Entradas Ordinárias e Extraordinárias, termos financeiros tecnicamente utilizados atualmente, com ligeira modificação na legislação brasileira – receitas ordinárias e receitas extraordinárias – evidenciam o conhecimento sobre as técnicas financeiras que adotara Milão. São etapas técnicas, separadamente das etapas político-jurídicas para o futuro controle que se criará mais tarde, mas igualmente necessários.

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e dispunha, para manter esse poder econômico e político, de uma avançada

esquadra e organização militar.

Os carmelengos ou camaristas tinham funções específicas, nas quais se

incluíam o recolhimento das entradas ou receitas e dos direitos de regalia comunais,

custódia e distribuição dos dinheiros públicos e ainda a cobrança dos devedores

públicos.

Nas províncias venezianas funcionavam Câmaras de Fisco e os

carmelengos mantinham representantes nestas províncias.

As funções recebedoras e pagadoras eram realizadas em dupla,

acompanhados de dois cidadãos em cada província. Seus registros em livros eram

detalhados e rigorosos quanto às anotações, examinados e confrontados

mensalmente para a prestação de contas perante Veneza, para onde e para esse

fim eram remetidos ao final de cada ano.

O Conselho de Oficiais de Contabilidade, surgido em 1381, foi encarregado

de tomar as contas de todos os gestores nas províncias venezianas quando eles

deixassem suas funções. Igual providência era adotada em relação aos

embaixadores e magistrados urbanos.

Depois de várias modificações legislativas, o Conselho dos Dez decretou a

obrigatoriedade, para todos os magistrados que lidassem com dinheiros públicos, a

levarem perante esse Conselho, mensalmente, suas contas devidamente

liquidadas98.

98

É de salientar o alinhamento organizativo financeiro e controlador de Veneza com os institutos e procedimentos que Roma tivera quase mil anos antes. Significa um conhecimento técnico sobre a história romana? Ou seria uma “memória ético-cultural” dos venezianos sobre os seus antepassados? De qualquer maneira, a coincidência está constatada pelo autor. Mais relevante que esses institutos e valores serão os legados (conjuntamente com os princípios a serem adotados pela Revolução Francesa, em 1789) civilizatórios que implicarão na limitação do poder financeiro dos governos e no consequente controle efetivo. Uma explicação paralela também é anotada pelo autor: Veneza foi organizada como república durante um larguíssimo período, seus colegiados, com repartições de competência e formados pelos magistrados com a devida autonomia distinguem essa comuna dos demais exemplos comunais de países: o controle compreendia perfeitamente que os dinheiros, valores e bens públicos da república pertenciam a todos e eram geridos sob responsabilidade, com a necessária prestação de contas periódica e registros rigorosos e confiáveis, salientando-se, ainda, a verificação local dos bens públicos e seus registros.

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Florença, igualmente, possuía magistraturas instituídas para serem

encarregadas das atividades financeiras.

Ainda que não tenha tido Florença o poderio político e econômico (com

reflexos no exterior) como tinha Veneza, essa comuna às margens do Arno, sem

porto marítimo, do qual se ressentia politica e economicamente, dispunha de outras

qualidades. É a cidade de Maquiavel e Leonardo da Vinci.

Sua intelectualidade era mais desenvolvida do que a de Veneza e

posteriormente isso se concretizará com as obras de arte, a literatura, a arquitetura

que ainda assombram, sem par no mundo.

Além disso, diferentemente de Veneza, e como ocorria em Milão, Florença

não conseguia manter um equilíbrio nas suas finanças, também recorrendo

frequentemente a empréstimos públicos e privados.

Seus Montes Diversos foram fundidos em 1343 no Monte Comum, como

centralização desses fundos e buscando mais capacidade financeira.

O centro da contabilidade do tesouro público era a Câmara da Comuna

como um lugar destinado à custódia e administração do tesouro público.

Os gestores das finanças públicas eram denominados – sucessivamente, de

Anziani, Priori delle Arti, Gonfalonieri di Giustizia, Podestà e Capitano del Popolo.

Eles eram incumbidos de executar as decisões dos Conselhos e cuidar das

medidas necessárias para a provisão e disposição dos dinheiros públicos.

A Câmara da Comuna, em Florença, por outro lado, contava com dois

funcionários designados de numeratores pecuniarum, que exerciam funções de

contagem de moedas e escriturários dos livros de crédito, de débito e dos contratos

da cidade.

Os integrantes dessa Câmara denominavam-se carmelengos e eram

pessoas religiosas (vinculadamente à Igreja) ou leigos. Posteriormente, os leigos

com o aumento do número de membros da Câmara passaram a predominar no

colegiado.

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Os leigos eram pessoas igualmente católicas e praticantes, mas não

pertenciam à organização católica. Uns e outros eram eleitos pelo prazo de dois

meses.

Eles propunham o orçamento e seu registro nos Conselhos. Os pagamentos

deveriam ter a aprovação de dois doutores – os Advogados da Comuna, igualmente

eleitos por prazo de dois anos99.

A fiscalização sobre os atos dos responsáveis pelo dinheiro comunal era

atribuída ao Sindicato, cuja atuação era rigorosa, mediante critérios desenvolvidos e

aplicados para os efeitos de uma efetiva finalidade fiscalizadora.

Ao deixarem seus cargos, os magistrados florentinos ficavam durante um

período de tempo à disposição do Sindicato, cujos síndicos examinavam sua

atuação, apreciavam as reclamações ou queixas formuladas contra eles, podendo,

caso julgados culpados, aplicar penas contra os responsáveis.

A instituição Sindicato, face à brevidade dos mandatos dos responsáveis,

exerceu função relevante para a fiscalização, utilizando o método de controle

posterior, determinando o ressarcimento, quando fosse o caso, como fator de efetiva

fiscalização, mas também de moralidade pública100.

Nápoles, Sabóia e Piemonte tinham a fiscalização financeira submetida

diretamente ao Reino da Itália.

Em Nápoles, a fiscalização se origina na Magna Cúria dos Mestres,

instituída pelos normandos (1140 a 1194).

Posteriormente, sob os suevos (1194 a 1266), Nápoles manteve a mesma

organização antes adotada, na qual as entradas e despesas eram afetas ao Grande 99

As eleições para essas magistraturas e a sua temporariedade e periodicidade eram valores nitidamente republicanos, também herdados da prática da república romana. Esses valores, como os adotados em Veneza, igualmente serão legados para as instituições republicanas atuais.

100 O controle da administração pública no Brasil, segundo as normas vigentes, também se exerce posteriormente, mas não após o fim do mandato, mas a cada ato ou fato administrativo, ou ao final do ano fiscal – ano civil. Igualmente a punição, se for o caso, ocorre quando as contas prestadas acusam irregularidades. Há uma tendência, pelo menos para as licitações e contratos, assim como obras públicas de vulto – não há critérios dimensionadores, em realizar-se o controle da administração pública concomitantemente com o desenvolvimento das suas etapas. Assim ocorreu com o Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul em relação aos valores monetários públicos alocados para as obras de envergadura realizadas para a realização da Copa do Mundo promovida pela FIFA, em 2014, em que uma das sedes esportivas foi a cidade de Porto Alegre, cujas contas municipais estão sob a jurisdição dessa Corte de Contas.

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Camerista assistido pelos Magistri Rationales ou Magistri Rationun Curiae, contando

com auxiliares subordinados designados por Mestres Secretos ou Questores. Esse

eram os fiscais das obrigações tributárias.

É na cidade de Nápoles que se institui a primeira Tesouraria Pública e Real

e, como na Grécia ou Roma, o povo podia efetuar reclamações ou queixas contra os

funcionários, os quais eram julgados pelo próprio rei.

No Piemonte e Sabóia, a função fiscalizadora incumbia aos Auditores

Computorum ou Magistri Auditores Computorum, organizados em um Colégio, corpo

coletivo de atuação para essa finalidade, os quais verificavam as contas dos

tesoureiros, recebedores, juízes e demais membros da organização comunal que

manejavam dinheiros ou bens públicos.

Amadeu III, em 1342, eleva esse Colégio formado por auditores ao estatuto

da magistratura, sob o nome de Corte de Contas, por direta influência da Chambre

des Comptes adotada na França.

O presidente e os mestres auditores do Colégio zelavam pela integralidade

dos valores e dinheiros públicos, fiscalizando, mediante sindicatura as contas dos

funcionários.

Suas atividades foram ampliadas posteriormente, tornando-se um ente

administrativo que resolvia as questões fiscais e patrimoniais mediante ritos

sumários.

Incumbia o zelo tanto da administração dos bens como das rendas públicas,

o que era atribuição específica de comissários especiais, encarregados das

listagens dos contribuintes, que ofereciam os dados e elementos indispensáveis à

sindicância das contas.

Esses comissários especiais apresentavam ao colegiado, anualmente, sob

juramento quanto à veracidade, as relações das receitas e despesas.

Um presidente e três auditores faziam o exame minucioso, relatando em

audiência previamente designada. Aqueles que eram interessados podiam fazer

alegações perante o colegiado, assim como um procurador patrimonial expunha

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seus argumentos e razões. Concluídas essas fases, as contas eram julgadas em

definitivo101.

2.1.5 O controle em Portugal

Portugal, como ocorria em outros países, também teve lutas de disputa pelo

poder entre o rei e os três estados: nobreza, clero e burguesia nascente.

Para afirmar o poder dos conselhos locais, durante os reinados de Afonso II

(1211 a 1223) e Afonso III (1248 a 1279), eles foram beneficiados por atos reais, que

outorgavam ao povo franquias e vantagens expressivas.

Dentre elas, no século XIII, o direito de eleger os membros dos concelhos

locais, os seus alcaides, que eram administradores comunais e até então nomeados

pelo rei, aos quais se atribuíam funções administrativas, judiciais e militares.

A partir de D. João II, posteriormente, ocorre um retrocesso sob o

absolutismo e os conselhos perdem sua importância entrando em decadência.

Portugal não teve o apuro nem a complexidade técnica, organizativa ou em

competências quando comparadas às respectivas instituições da França ou da Itália

nas suas comunas.

A fiscalização em Portugal era rudimentar, em regra realizada por agentes

individuais.

Os responsáveis, quando condenados, eram submetidos a penas rigorosas,

cruéis e desproporcionais, inclusive à pena capital.

101

Observa-se nestas comunas uma prática de procedimentos, com designação prévia de audiência, direito de defesa, acusação em sala de julgamento e em seguida a deliberação do conselho. Uma prática antecipada do devido processo legal ao qual deve obediência o Tribunal de Contas no sistema de controle administração brasileiro, de resto, uma prática dos estados democráticos de direito. Registra-se uma certa simetria entre um controle medieval e o controle atual. Comprova-se que as normas de um sistema jurídico não nascem de uma erupção, elas estão engendradas na sociedade e poderão sofrer retrocessos – e efetivamente sofrem, mas o processo histórico embora os homens sejam atores e autores, revela uma racionalidade em busca de valores relativos aos direitos humanos.

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As Ordenações Afonsinas abrandaram essas punições excessivas102.

A fiscalização no reino português era efetivada em proveito da coroa real,

ainda que as declarações das Cortes (casas parlamentares) tivessem um cunho

mais popular.

As Cortes, em 1261, exemplificativamente, declararam ao tempo de Afonso

III que um tributo sobre propriedade era concessão ao reino e não ao rei.

Mas, face ao poder real, eram declarações sem efetividade, que resultavam

em afirmações desprovidas de efetividade, porque a coroa demonstrava sua

indiferença com as deliberações das Cortes, de um lado, e porque possuía o

necessário poder e aparelhamento estatal para fazer valer os tributos em favor da

casa real.

Portugal oferece uma diminuta contribuição à fiscalização financeira,

comparada aos países e comunas já analisados.

Quase ao fim da Idade Média, D. João II, já sob a ideologia absolutista,

restringiu as antigas regalias e benefícios da nobreza e transformou os alcaides dos

conselhos, eleitos pelo povo, a meros delegados da casa real.

Mesmo nessas circunstâncias, logo após a crise financeira do século XIV, a

fixação da sede do reino em Lisboa, uma necessária centralização e nova

organização administrativa, uma reforma protagonizada por D. João I, consolidando

as finanças nacionais, em uma tentativa de depuração dos atrasos medievais vividos

por Portugal, inclusive na administração financeira. Ainda assim, essa reorganização

não dissociou a administração das questões reais e políticas, mantendo esse

atrelamento, cuja prática age em sentido contrário ao da fiscalização.

Desde o reinado de D. Dinis já existiam Casas de Contos em Portugal,

precedidas por uma Cúria Régia e Ofícios do Conselho Real, sempre sob a

completa autoridade e tutela do rei103.

102

As Ordenações Afonsinas, Livro II, Título 51, modificam essas penas, determinando, em caso de condenação, a perda do cargo ou multa em dobro ao montante julgado irregular. DOMINGOS, João. As ordenações alfonsinas. Lisboa: Zefiro, 2008.

103 Houve uma Casa de Contas em Vila Rica, nas Minas Gerais, durante o período colonial brasileiro, como colônia portuguesa. Sua localização se devia à exploração predatória de ouro, carreado para Portugal, gerando o clima para a tentativa de emancipação ocorrida através do movimento

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As Casas do Conto deveriam ser instituições autonômicas e especializadas

em atividades financeiras, distinguindo as finanças públicas das finanças da casa

real. Foi uma tentativa frustrada.

A mais antiga dessas Casas remonta a 1389. Ela era submetida a um

Regimento dos Contos, complementados por D. João I, em 28 de novembro de

1419, e depois por D. Duarte, em 22 de março de 1434.

Esses atos regulavam disciplina atuadora da atividade financeira, assim

como o recenseamento da população (que incluía, como os romanos também

faziam) o recenseamento dos bens. Os prédios eram então medidos pelo perímetro

do telhado onde ficavam a eira e a beira, daí a expressão humilhante de uma casa

que não possuísse nem eira nem beira104.

Em 1514, D. Manuel, e depois D. Sebastião, em 1560 (Portugal ainda estava

na Idade Média, quando a Itália já vivia plenamente sob a Renascença) aglutinaram

várias funções sob a competência da Casa dos Contos.

Segundo a administração do atual Tribunal de Contas de Portugal, essa

Corte teria nascido em 5 de julho de 1389, quando se criou a mais antiga das Casas

dos Contos, com um respectivo Regimento de Contas105.

sedicioso e de índole republicana denominado de Inconfidência Mineira.

104 Segundo o Novo Testamento, quando José e Maria, já nascido Jesus na Galiléia, se dirigem a Belém, atendiam a ordem do governador (um procurador) romano, a fim de serem submetidos ao censo. Com base no censo, os romanos cobravam o mais antigo dos impostos, o per capita, ou por cabeça, quando cada pessoa natural passava a ser devedora do império romano. Se possuíssem propriedades, como campo, árvores, animais, casas ou outros bens, sobre eles também pagavam tributo. Todos os povos submetidos aos romanos odiavam o censo, porque a partir dele, coagidos por uma escola militar, acompanhada pelo arrecadador, tinham que pagar imediatamente o tributo. Também no Novo Testamento é relatada a passagem na qual, indagado sobre o pagamento do tributo, Jesus responde com a frase “"dai a Cesar o que é de Cesar”, já que a moeda trazia a gravação da face do imperador. O autor entende que na versão grega e depois na vulgata, houve uma adulteração, porque o princípio adotado pelos hebreus era de que, se a moeda tinha essa imagem, ela seria apenas devolvida.

105 A afirmação é do próprio Tribunal de Contas de Portugal, constante de um Álbum de Divulgação por ocasião do 600º aniversário daquela Corte. Ela atualmente goza de absoluta independência, divorciada plenamente do passado originário medieval. Seus membros têm a mesma envergadura dos juízes superiores e suas decisões não são submetidas ao Poder Judiciário. A informação quando à data primitiva como origem do Tribunal de Contas de Portugal está em PORTUGAL. Tribunal de Contas de Portugal. Álbum de Divulgação. 600º aniversário. Lisboa: Tribunal de Contas de Portugal, 1989. Edição especial.

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2.2 A RUPTURA DA REVOLUÇÃO FRANCESA COM A MONARQUIA E O

SISTEMA FEUDAL NA FRANÇA – AS DECLARAÇÕES E O CONTROLE

FINANCEIRO E ADMINISTRATIVO

O exaurimento e a decadência político-jurídica do sistema econômico feudal,

que ocorre em épocas distintas e em diferentes países na Europa, origina um novo

sistema político e uma nova sociedade com um aparato político-jurídico, baseados

em valores econômicos burgueses-liberais. Há um período intermediário entre a

extinção paulatina do sistema feudal, que, todavia, continua imperante na área rural,

especialmente no sistema econômico e nas relações sociais, no qual o estado

francês plenamente o estágio de monarquia.

Antes da revolução de 1789, a monarquia consolidou-se em detrimento de

qualquer representatividade, englobando os mais amplos poderes políticos e

jurídicos.

As finanças, os tributos e a contabilidade de estado atendem, em razão da

hegemonia monárquica, assuntos de interesse real e desvinculados do povo. Essas

atividades eram realizadas exclusivamente no interesse da coroa.

Enquanto a burguesia germinava no seio da sociedade, com as novas

atividades mercantis, artesanais e de desenvolvimento comercial, a realeza

mantinha seu poder destinado à arrecadação e gastos sem nenhum controle ou

contrasteamento.

A análise jurídica da evolução do controle exercido sobre a administração

púbica, as normas inscritas na Declaração de 1789 e nas Declarações seguintes

demonstram a profunda modificação que a burguesia francesa esculpe através da

Revolução Francesa de 14 de julho de 1789.106

106

A data é a da queda da prisão da Bastilha, da qual foram libertados os presos, dentre o Marquês de Sade. O prédio foi demolido – hoje há apenas uma placa indicativa, e suas pedras foram utilizadas na construção da Pont Neuf sobre o rio Sena, em Paris. Quando informam ao rei sobre os acontecimentos daquela manhã, ele indaga: “É uma rebelião?”, ao que lhe responde o ministro: “Não, majestade, é uma revolução”. Ainda não tinham ideia do que estava ocorrendo. Trata-se de uma revolução burguesa, com o apoio do povo da cidade. É o primeiro movimento revolucionário na história da civilização baseado em textos de filósofos e escritores, salientando-se Jean-Jacques Rousseau, um genebrino, de cuja obra (O Contrato Social e Textos Filosóficos Sobre a Origem e

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É a etapa histórica de um movimento revolucionário cuja consequência para

os administradores públicos é a necessidade do controle, efeito do

desmantelamento do absolutismo monárquico, da base econômica feudal e do poder

da Igreja Católica.

Esse controle, que estará assegurado na Declaração, não é o ressurgimento

do controle como fora exercido na Antiguidade hebraica, romana ou grega, embora

os valores de liberdade, igualdade e fraternidade (esse último específico dos

hebreus) estejam no cenário e centro de discussões das transformações político-

jurídicas que irão, institucionalmente, serem inscritas nas cláusulas da Declaração

de 1789 (e das posteriores) que a Assembleia Nacional irá votar e elaborar, como o

produto primeiro e de efeitos universais da Revolução Francesa.

Fenômeno histórico, a revolução de 1789 institui a república, ainda que o

monarca fosse mantido no trono, reduzidos seus poderes e sob o título de rei

constitucional.

A revolução extingue os privilégios da aristocracia (suprime todos os títulos e

honrarias), do feudalismo e da Igreja Católica, assim como as ordens e instituições

decorrentes ou que lhes davam sustentação.

os Fundamentos das Desigualdades Entre os Homens) resulta a adoção dos princípios da igualdade e da soberania baseada na vontade geral, mediante representação popular. O busto de Rousseau foi colocado na entrada do prédio da Assembleia Nacional, poder no qual se elabora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto de 1789. Ao busto, os deputados faziam reverência ao transitar por ele. Montesquieu, de cuja obra O Espírito das Leis a Declaração adota o princípio da separação dos poderes e a afirmação de que, onde não há separação, não há democracia. Também Voltaire, cuja racionalidade é adotada na Declaração, além de Diderot, D'Alembert e Holbach. Além das obras individuais e da ação política desses autores, deve ser salientada a elaboração, na qual colaboram, sob a coordenação de Diderot, da Enciclopédia Francesa, escrita, em vários volumes, para abarcar o conhecimento filosófico e científico. A palavra filósofo é a cognominação desses intelectuais, sua ação política e a denominada era das luzes ou iluminismo indicarão devidamente a importância desse conjunto de filósofos. De uma certa maneira, são herdeiros da Renascença, na qual se afirma o valor da ciência e, como verdade, que é o homem o centro do universo. Por iniciativa de Robespierre, um busto de Rousseau foi colocado no prédio da Assembleia Nacional, onde era reverenciado. Os corpos de Rousseau e de Voltaire foram transladados para o Panteão Nacional. Nas artes, a Revolução também produziu: os quadros de Jacques-Louis David, as obras literárias de Beaumarchais, Molière, Chaderlos de Laclos e Hypolite Taine. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social ou princípios do direito político. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, s.d.; Id. Textos filosóficos. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Seleção de Patrícia Piozzi. Tradução de Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: Paz e Terra, 2002. MONTESQUIEU, Charles Louis de. O espírito das leis. São Paulo: Martins, 2002.

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A queda da monarquia e a adoção do regime republicano e por valores

democráticos, a igualdade e a liberdade são fundamentados em um novo sistema

econômico, amparado com o triunfo da classe burguesa107.

Ao assumir o poder político, a burguesia pretende controlar os

administradores, valor que a revolução também consignará como princípio em duas

cláusulas da Declaração – 14ª e 15ª.

Esse controle será exercido politicamente, mediante rígido modelo de

autorização de despesas e receitas pela Assembleia Nacional e sua

institucionalização jurídico-técnica somente ocorrerá mais tarde, em 1807, sob

Napoleão108.

O poder é efetivamente assumido por uma assembleia única, eleita pela

nação, para um período de dois anos e se instala independentemente da tradicional

e formal convocação real na primeira segunda-feira de maio de 1789. O movimento

revolucionário se instalará em julho e a Declaração será votada em 4 de agosto.

Seus deputados são declarados e mesmo as ações judiciais contra eles

deverão ser previamente autorizadas pelo corpo legislativo.

A transferência de poder do monarca aos legisladores é completa. A

assembleia nacional disporá de polícia armada própria ou poderá requisitá-la no

aquartelamento da cidade. As forças armadas deverão estar situadas à distância de

trinta milhas, ou mais, do prédio da assembleia.

107

A burguesia na França já acumulara riquezas desde três séculos antecedentes, mas não exercia poder político nem participava do aparelho estatal. Os cargos pertenciam ao rei e eram vendidos à nobreza, mediante comissão ao rei podiam ser herdados pelos filhos nobres ou vendidos a outros membros da nobreza. Sentem-se, como os camponeses sob o feudo, submetidos a um sistema injusto, tanto político, tributário como econômico e social.

108 A institucionalização aqui referida será a criação do Tribunal de Contas, por Napoleão, cujo modelo irá se disseminar em vários países, dentre os quais o Brasil. Eric Hobsbawn, ao escrever sobre a Revolução Francesa, criando a expressão “ecos da Marselhesa”, irá elencar os efeitos disseminados pela revolução, mas neles não incluirá o controle e o tribunal de contas. HOBSBAWN, Eric. Ecos da Marselhesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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2.2.1 Reforma da administração pública

A administração pública é radicalmente reformada109.

A administração superior e central, em torno do monarca, é reduzida para

apenas seis ministros e o rei não mais expede atos ou ordens sem o consentimento

formal deles, mediante assinatura.

Os ministros formam um conselho, distinto do conselho real, o qual está

submetido à assembleia geral.

Para que a responsabilidade de cada ministro possa ser apurada (política e

administrativa) as deliberações desse conselho serão anotadas em um registro

especial, em forma de livro, confiadas a funcionários do novo regime.

O rei ainda nomeia alguns funcionários de hierarquia superior, como

marechais, almirantes e parte restrita da oficialidade, em conformidade com as leis

de promoção e o consentimento dos ministros. Mas o conjunto de funcionários e

oficiais administrativos passará a ser eleito, excetuados aquele pequeno grupo antes

definido.

É restringido o seu poder de declarar guerra ou firmar tratados

internacionais.

Essa atribuição somente poderá ser exercida por prévio assentimento da

assembleia geral, denominação republicana do corpo legislativo.

É esse corpo legislativo, de onde nascem as expressões “esquerda” ou

“direita”, conforme a posição dos deputados no recinto do prédio e respectivamente

revolucionários e conservadores ou moderados, que detém, a partir de agora, julho

109

Além da reforma radical da organização administrativa, introduzidas pelas Declarações, cria-se na França o moderno direito administrativo, no qual os destinatários dos serviços são qualificados como cidadãos e considerados e tratados em igualdade pelos funcionários e oficiais superiores públicos. O esclarecimento é de Prosper Weil, para quem a revolução criou um “produto de exportação”, segundo a sua expressão, disseminando especialmente entre os países do sistema jurídico latino o princípio da legalidade na administração pública, a sua finalidade pública e igualdade para os cidadãos e entre o Estado e os cidadãos. WEIL, Prosper. O direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1997.

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de 1789, o poder que tem relevância para os efeitos da administração pública e do

seu controle.

Observa Albert Mathieu:

Em teoria, o rei continua sendo o chefe supremo da administração civil do reino, mas na realidade, esta administração lhe escapa porque os administradores e os próprios juízes são eleitos pelo novo soberano: o povo.

Ainda em teoria, o rei conserva parte do poder legislativo porque possui o direito de veto suspensivo.

Mas esse veto não é aplicável nem às leis constitucionais, nem às leis fiscais, nem às deliberações que se relacionem com a responsabilidade dos ministros, e a Assembléia tem ainda a prerrogativa de dirigir-se diretamente ao povo, por proclamações não sujeitas ao veto.

[...]

Pelo seu direito de fiscalizar a gestão dos ministros, por suas prerrogativas financeiras, pelo seu controle da diplomacia, pelas imunidades judiciárias de seus membros, etc. [...], o corpo legislativo é o primeiro poder do Estado. Sob as aparências monárquicas, a França tornou-se uma verdadeira república, mas uma república burguesa.

110

Política, a Revolução Francesa é tomada do poder pela burguesia e a

inscrição constitucional de valores jurídicos caracterizados pela república, soberania

da vontade popular, através da lei, sufrágio, eleição, rotatividade dos cargos

110

MATHIEZ, Albert. História da revolução francesa. São Paulo: Atena, s.d. v. I. p. 124-125. Sobre a revolução francesa, o autor utilizou também HORNE, Alistair. La revolución francesa. Barcelona: Editors, 2005. Essa obra tem a forma de um álbum pictográfico, com texto, ilustrações, reprodução de quadros e reprodução gráfica mantendo a imagem original dos documentos da revolução, inclusive a Declaração de 1789. Também de HOBSBAWN, Eric as seguintes obras: A revolução francesa. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; A era das revoluções. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; A era das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; Ecos da Marselhesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. De MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A guerra civil na França. In: ______. Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Vitória, 1961. 3 v.; também desses mesmos dois autores: A comuna de Paris. Belo Horizonte: Aldeia Global, 1977; LISSAGARAY, Hypolite Prosper Olivier. História da comuna de 1871. São Paulo: Ensaio, 1991; GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel – as concepções de Estado em Marx, Engels Lênin e Gramsci. 10. ed. Porto Alegre: L&PM, 1986. O autor também se valeu da película cinematográfica LA MARSELHAISE. Direção: Jean Renoir. Diretor da produtora: André Seigneur. Intérpretes: Pierre Renoir (Luis XVI) - Lese Delance (Marie-Antoinette. Música clássica: Lalande, Grecry, Rameau, Bach, Rouge de Lisle. Música moderna: Sauveplane, Kosma. Paris: Studio Cinema – 1937. Produção: La Compagnie Société d'Explotation et de Prodution Cinémetrographiques. Diretor da produtora: André Swoboda. DVD (2h15min), preto&branco. Distribuição: Versátil Home Vídeo. Versão do título em português: A marselhesa.

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políticos, representação do povo e a afirmação preambular da liberdade, igualdade,

propriedade privada, livre contratação e livres atividades de comércio e indústria.

Juridicamente a revolução francesa, ao substituir o antigo regime pela

república, estabelece que os homens deixam de ser súditos e tornam-se

cidadãos111.

2.2.2 As normas e as medidas revolucionárias que fundamentam o controle

O controle da administração pública é uma consequência da liberdade que

os cidadãos, em igualdade, exercem.

A Declaração organiza, harmoniosamente, a afirmação dos direitos de

liberdade e igualdade com o posterior direito de cidadania quanto ao controle da

administração.

A obra da Revolução pode ser resumida, segundo Jean Rivero112, em três

aspectos:

1. antes de mais nada, uma obra de destruição: a quase totalidade da

Administração do Ancién Regime desaparece. É, pelo menos na

aparência, a tábua rasa, a ruptura total com o passado. Subsistem

111

Na película MARSELHESA, nobres recusam o tratamento de cidadãos, na tentativa de humilhar os burgueses que assim os chamavam, em uma cena de rua, afirmam serem nobres. Os diálogos captados por Jean Renoir foram obtidos nos jornais da época e em livros de memórias. Os cidadãos estavam divididos entre ativos e passivos inativos. Esses últimos foram excluídos do direito eleitoral, por não disporem de propriedades. Os empregados também foram colocados na categoria dos cidadãos passivos. A Revolução não abole a escravidão, apenas em algumas colônias. Entre os cidadãos ativos, separados por hierarquias, qualificavam-se os que votavam pagando uma contribuição direta de, no mínimo, três jornadas. Conforme a instância do voto, o valor aumentava. Somente os cidadãos ativos participavam da vida pública. Em 1791, para uma população os cidadãos ativos atingiram a 4.298.360 em um universo de 26 milhões de franceses. Três milhões de pobres foram excluídos do direito de cidadania. No dia 20 de agosto de 1789, 400 operários de Paris foram à sede da comuna reclamar o direito de participarem das assembleias e integrarem a guarda nacional. Os proletários, classe então nascente, reclamava seus direitos. Nascia uma república. Em substituição aos títulos aristocráticos, feudais ou eclesiásticos, suprimidos, nasce a república dos proprietários e do dinheiro.

112 RIVERO, Jean. Direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1991. p. 27-28. A expressão “tábua rasa de 1789” coincide com a opinião do autor, acrescentando ainda Rivero que no ano VIII nasceria a justiça administrativa, distinta da justiça ordinária.

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apenas os corpos administrativos especializados, devido ao seu caráter

técnico;

2. sobre o solo assim aplainado, vai tentar a Revolução edificar uma

Administração racional, uniforme e coerente. Das diversas tentativas que

nesse sentido se sucedem apenas se manterá um elemento positivo: o

recorte territorial da França em departamentos e comunas. Mas o método,

pelo contrário, subsiste: o espírito do sistema e o gosto da uniformidade

caracterizarão durante longo tempo o regime administrativo francês;

3. por fim, e o mais importante, a Revolução formula os princípios de filosofia

política que permanecerão como base de toda a ulterior elaboração: o

primado da lei, a separação das autoridades administrativas e judiciais, o

liberalismo político, a igualdade dos cidadãos perante a Administração, o

liberalismo econômico.

Alguns componentes dessa ideologia atenuaram-se, mormente em matéria

econômica, mas a maior parte conservou a sua autoridade; fornecem ao direito

administrativo o essencial dos seus princípios gerais.

O controle inscrito na Declaração não é exercido em benefício do rei; ele é

exercido em benefício social e individual. Integra o conjunto de direitos conquistados

pela burguesia em 1789.

A liberdade e a igualdade político-jurídica, das quais resultam os demais

direitos sociais e econômicos, incluem, como decorrência, o direito de controlar a

gestão das coisas públicas.

É com fundamento nas obras dos filósofos iluministas que os revolucionários

inscrevem os princípios normatizados pela assembleia nas Declarações, os quais

coincidem com as suas ideias políticas, assim como as leituras dos clássicos da

antiguidade e dos Testamentos que desde a Renascença estavam sendo difundidos,

não mais como segredos entesourados pela Igreja nos seus mosteiros e labirintos

medievais, mas para a futura utilização pela nascente e embrionária burguesia.

As normas inscritas na Declaração e basilares do controle da administração

pública estão nos artigos primeiro, 2, 3, 4, 5 e 6 e preambularmente no qual os

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deputados relacionam a ignorância, o descuido ou o desprezo pelos direitos

humanos como as causas únicas das desgraças públicas e da corrupção dos

governos.

Dispõe o preâmbulo da Declaração de agosto de 1789:

Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia nacional, considerando que a ignorância, o descuido ou o desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, possa lembrar-lhes sem cessar seus direitos e deveres; a de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo instante comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante em princípios simples e incontestáveis, redundem sempre na manutenção da Constituição e na felicidade de todos.

113

Em consequência, a Assembleia nacional reconhece, declarando na

presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do

Cidadão114.

O artigo primeiro estabelece a liberdade e a igualdade:

“Artigo Primeiro. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em

direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum.”

O art. 2 estabelece a responsabilidade das associações políticas com esses

direitos e outros adiante proclamados.

113

Utilizou-se o texto traduzido por Fábio Konder Comparato. Na reprodução gráfica da Declaração, editada em Barcelona e sob os auspícios do governo francês, o autor encontrou discrepâncias com o texto traduzido por Comparato. Nenhuma dessas discrepâncias é importante nem altera o sentido do texto revolucionário. O preâmbulo original inicia com a expressão “Leu Peuple français”, manuscrito, e não por “Os representantes do povo francês”. O artigo primeiro na Declaração está grafado segundo a ortografia francesa, ou seja, ART. 1er (“article premier”, abreviadamente ambas as palavras. Os demais artigos são numerados, sem a abreviatura “Art.”, apenas por números romanos. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 151 et seq. Para os demais artigos das subsequentes Declarações adiante transcritos igualmente utilizou-se a tradução de Fábio Konder Comparato.

114 Declaração Universal dos Direitos do Homem. Anexa-se reprodução gráfica da Declaração, referida na nota 113.

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“Art. 2. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos

naturais e imprescritíveis do homem. Tais direitos são a liberdade, a propriedade, a

segurança e a resistência à opressão.”

O art. 3 trata do princípio da soberania e do exercício de autoridade

decorrente da soberania emanada da lei.

“Art. 3. O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação.

Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não

emane expressamente.”

O art. 4 estabelece critérios do exercício da liberdade e o respeito ao

exercício dos demais membros da sociedade, nos termos da lei.

Art. 4. A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem: em consequência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos demais membros da sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei.

O art. 5 estipula os limites da lei e os constrangimentos a fazer ilegais.

Art. 5. A lei não pode proibir senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo o que não é defeso em lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena.

Finalmente: a lei como expressão da vontade geral, sua formação igualitária

pelos cidadãos ou representantes, bem como sua aplicação pelo princípio da

igualdade; e a admissibilidade aos cargos e empregos públicos.

Art. 6. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente, ou por meio de representantes, à sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna. Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a

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todas as dignidades cargos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção a não ser a de suas virtudes e talentos.

115

Maurice Hariou classifica os direitos individuais do homem e do cidadão na

Declaração de 1789 como direitos cívicos e políticos:

Los derechos cívicos y políticos – Se llaman derechos cívicos a aquellos que permiten la participación en la autoridade pública, en la cosa pública, y el poder de dominación política.

Tales son: el accesso a las funciones, cargos y empleos públicos, el derecho de ser jurado y testigo, el derecho de ser soldado y el de pagar impuesto. Estos derechos cívicos pertenencen a todo ciudadano francês, aunque no sea elector y mientras no este privado de ellos en virtude de condena.

Los derechos políticos permiten la participación en el poder de dominación político, o, dicho de outra manera, en la soberania nacional, y sólo pertenencen al ciudadano elector. Son las diversas modalidades del derecho de sufrágio: derecho de voto en las elecciones, derecho de elegibilidade, derecho de voto en el referendum en aquellos países en que está organizada esta forma de sufrágio.

116

Essa radical reforma administrativa se estende amplamente e alcança o

colegiado de controle de contas, originado na Idade Média. Ele é extinto.

A burguesia execrava todos os colegiados e magistrados de origem

nobiliárquica, com traços monárquicos e feudais.

Mesmo que à época representassem (e representavam) controles que as

comunas tinham efetivamente conquistado, eles estavam impregnados da influência

real, da sua utilização pela aristocracia e pelas pessoas de poder econômico.

115

Trata-se de texto inspirado no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (vide nota 108). 116

HAURIOU, Maurice. Principios de derecho público y constitucional. 2. ed. Madri: Instituto Editorial Reus, Centro de Enseñanza y Publicaciones S. A., s.d. p. 109. Tradução livre do espanhol realizada pelo autor: “Os direitos cívicos e políticos - Se denominam cívicos aqueles que permitem a participação na autoridade pública, na função pública, na coisa pública e no poder de domínio público. Tais são: o acesso às funções, cargos e empregos públicos, o direito de ser jurado e testemunha, o direito de ser soldado e de pagar imposto. Esses direitos cívicos pertencem a todo cidadão francês, ainda que não seja eleitor e enquanto não estiver privado deles em virtude de condenação. Os direitos políticos permitem a participação no poder de domínio político, ou dito de outra maneira, na soberania nacional, e somente pertencem ao cidadão eleitor. São as diversas modalidades de sufrágio: direito de voto nas eleições, direito de elegibilidade, direito de voto no referendo naqueles países nos quais está organizada esta forma de sufrágio.”

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Poderiam ter resultado em controles, mas agora com uma nova classe no

poder, que fora alijada de participação do poder e defenestrada a monarquia

(embora o rei e a rainha ainda continuassem, sem poder efetivo, no trono), até que a

guilhotina os justiciasse após o episódio da tentativa restauradora na fuga de

Varennes, esses colegiados tornaram-se instituições do passado pertencentes e

ornamentos do velho regime, incompatíveis com a Declaração que se proclamava.

Igualmente, as antigas jurisdições, justiças de classe, de exceção ou de

privilegiados foram extintas.

Os juízes passam a ser eleitos, assim como procuradores e membros dos

tribunais do júri.

Nessa nova e radical organização judiciária, destituída de representantes

aristocráticos, não atrelada ao monarca ou a seus ministros, a sua

representatividade era atribuída aos burgueses, admissíveis desde que integrantes

da classe dos cidadãos ativos.

É criada uma alta corte dependente da assembleia, com competência para

julgar delitos cometidos por ministros e funcionários de elevada hierarquia e formada

pelos juízes do tribunal de cassação e por jurados sorteados em lista com 166

nomes, sendo dois por departamento.

A acusação é originada no corpo legislativo, o qual nomeia procuradores

(grandes procuradores), que irão organizar o respectivo processo.

Para as questões administrativas, exceto tributárias, cria-se o contencioso

administrativo. A reforma judiciária, radical, tem a mesma radicalidade e é paralela à

reforma administrativa.

2.2.3 A derrocada do velho regime e suas instituições financeiras e as normas

revolucionárias de 1789 para o controle das finanças

Durante a Revolução Francesa não se instala o órgão especializado de

controle da administração pública.

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O fato, ressalta-se, cria um vácuo, sob o aspecto técnico.

No período monárquico, que sucede diretamente o feudalismo, no interesse

da coroa, há um desenvolvimento promovido pelos monarcas no sentido de uma

maior tecnicidade da contabilidade do tesouro real.

Henrique II (1547-1559) cria a figura de dois contadores reais para seus

serviços de fiscalização das finanças reais.

Henrique III (1574-1589) convoca os Estados Gerais, que se reúnem em

Blois e editam várias reformas visando aprimorar a fiscalização, reiterado em 1578,

quando novamente se reúnem. Henrique IV (1589-1593) nomeia Sully (1560-1641)

seu ministro, que fica conhecido por importantes reformas na contabilidade pública,

com medidas visando obstaculizar a voracidade dos funcionários arrecadadores do

tesouro real e no esbanjamento das rendas estatais.

Sully, em 1597, elabora um Orçamento de Previsão, segundo o precursor

orçamento da Relação de 1313, ao fim do reinado de Felipe, o Belo. As tentativas de

Sully foram frustradas pela dificuldade existente na arrecadação desarticulada e

descentralizada, visto que o reino não possuía uma organização capaz de unificar a

atividade arrecadadora.

Outra tentativa de Sully, sempre no interesse real, foi dividir as entradas

públicas, uma atribuída exclusivamente ao rei e a outra a Conselho de Razão,

nomeado por uma Assembleia de Notáveis. As dissenções e as disputadas daí,

obviamente resultantes, face à competição de interesses e funções, acabaram por

fazer com que o próprio Conselho de Razão pedisse a sua extinção.

Os Estados Gerais se reúnem novamente em Paris, em 1614 (no reinado de

Luís XIII) e face à desordem financeira imperante pedem ao rei informações precisas

sobre a situação. Como proposta em relação à desordem do tesouro, sugerem ao rei

que se abstivesse de emitir as comptants, uma espécie de ordem emanada do rei

para pagamento pelas caixas do erário, sem nenhum controle ou contrasteamento,

declaradas secretas e não registradas no então orçamento, denominado de Estado

Geral das Finanças.

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Os membros dos Estados Gerais insistem na adoção da medida, uma vez

que, passando a registro, poderiam ser conhecidos os valores e as suas finalidades.

O rei recusa peremptoriamente e daí, até 1789, os Estados Gerais não mais serão

convocados.

O fato é importante porque, em um longo período de 1614 a 1789, os

Estados Gerais não se reúnem, cuja convocação era privilégio real e a razão foi a

disputa dos membros dos Estados Gerais (realeza, burguesia nascente e clero) com

a figura do monarca de então e seus sucessores. Somente a Revolução,

independentemente de convocação real, reunirá novamente os Estados Gerais,

aproximadamente 150 anos após a última convocação, na primeira segunda-feira de

maio de 1789, já agora iminente e em meio à agravada desorganização e crise

financeira do reino e as agitações populares e a completa alienação política e social

do rei, da rainha (“se não tem pão, que comam bolos”) e da aristocracia, Igreja e

senhores de terras.

Na França, entre o ocaso da Idade Média e até o 14 de julho, quando o

Absolutismo imperou livremente, não teve, nem mesmo o governo real, capacidade

política para controlar a gestão financeira, cujas dívidas, arrecadação e gastos

extorsivos eram arcados pelo peso tributário, aos quais, por privilégio, estavam

imunes a aristocracia, os senhores feudais e a Igreja.

Pouco restava de sobrevida à Chambre des Comptes, que tivera um

razoável desenvolvimento técnico e representativo durante a Idade Média. Na sua

instituição, multiplicaram-se cortes de contas, como em Aix, em 1522; em Pau, em

1527; e ainda em Ruão, Nantes, Blois, Metz, Nancym Montpellier e Bar-le-Duc.

Como antes, todas voltadas ao interesse real.

Outras duas corporações também tinham atribuições semelhantes: os

Parlamentos e a Câmara dos Socorros, em Dijon, Grenoble, Besançon e Lille.

Devido a um período de inépcia dessas câmaras e mal sucedidas nas suas

finalidades, o reino, em 1661, objetivando a reorganização financeira, cuja situação

se agravava, tornando o reino praticamente insolvente, foi criada, em 1661, uma

instituição em bases mais aprimoradas, denominada Chambre de Justice, de

duração efêmera, deixando de funcionar apenas quatro anos depois, em 1665, e

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106

finalmente extinta em 1669. Sua estrutura e atividades logo demonstraram ao

monarca que lhe constituía entrave ao seu absolutismo, tornando-se indesejável à

casa real.

Quase ao final do velho regime, Necker, que ocupava o cargo de Fiscal

Geral de Finanças (um ministro extraordinário para as finanças públicas), em 1777

centraliza a contabilidade pública e generaliza os procedimentos técnicos, com a

utilização do método das partidas dobradas, reorganiza os serviços de cobrança dos

créditos públicos, reduz o elevado número de funcionários arrecadadores, limitando-

os a poucos recebedores gerais. Necker adota ainda métodos de publicidade

financeira, visando confiabilidade nos dados dos valores do tesouro. São seus

últimos atos. Não conseguiram evitar a derrocada da realeza. Em 1781, ainda

publica seu livro Compte-Rendu, conhecido em vários países europeus. As medidas

já não eram suficientes em termos reorganizativos ou publicação de manuais.

O povo já estava nas ruas e a burguesia, ela sim detentora de riquezas

acumuladas, germinadas no período anterior, seria a semente do estado liberal, de

livre competição e livre acumulação, criador de duas classes antagônicas: os

capitalistas e os proletários.

Ao derrotar o antigo regime, a Revolução aboliu não só os privilégios

pessoais, mas também as instituições que não lhe seriam úteis ou estavam

indelevelmente maculadas.

Antes de criar novas instituições, como se verá adiante, a Declaração

ocupou-se em afirmar direitos dos cidadãos quanto à fiscalização.

Os artigos 14 e 15 estarão inscritos na Declaração de 1789, e a seguir são

transcritos:

Art. 14. Todos os cidadãos têm o direito de verificar, pessoalmente, ou por meio de representantes, a necessidade da contribuição pública, bem como de consenti-la livremente, de fiscalizar o seu emprego e de determinar-lhe a alíquota, base de cálculo, a cobrança e a duração.

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Art. 15. A sociedade tem o direito de pedir, atodo agente público, que preste contas de sua administração.

117

A análise da cláusula inicia com a reafirmação da igualdade, também para a

contribuição pública e o seu consentimento.

A palavra inicial é, significativamente, todos, com a repetição do princípio da

igualdade, desde o início do texto constitucional inscrito.

A palavra seguinte é uma das mais simbólicas e conquista universal da

revolução francesa: cidadãos – o direito de igualdade (todos) se dirige aos cidadãos,

aqueles que agora têm direitos, são livres e iguais e não mais súditos da monarquia.

O artigo especifica o que (todos e cidadãos) têm um direito declarado, o

direito de verificar, predicado que traduz movimento e ação.

Verificar tem o significado de fiscalizar, controlar, contrastear.

É certo que, à época, o cidadão ativo e comum não disporia de

conhecimentos ou meios para “verificar”. Como se reconhecesse essa dificuldade

intransponível, acarretadora da inocuidade da norma, após declarar que esse direito

se exerce pessoalmente, ele também é exercível por meio de representantes.

As ideias de Rousseau transparecem claramente. O genebrino defensor da

democracia direta logo perceberia que, em Paris, a democracia direta era

irrealizável, por isso, embora sua opinião, ele aceita a delegação de soberania

popular aos representantes.

O texto tem nítida inspiração em uma conciliação “rousseauniana” entre a

democracia direta e a representativa.

Somente a representação popular dos cidadãos, no exercício da democracia

representativa, terá o poder de verificar o que a cláusula permite: a necessidade da

contribuição pública e, mais do que isso, autorizá-la, como fizeram séculos antes os

117

O texto do artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma precisa antecipação da terminologia técnica adotada hodiernamente. Indica corretamente as etapas dos procedimentos de tributação. O artigo 15 é complemento normativo racional ao artigo 14.

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108

barões ingleses perante o rei João sem Terra, ou seja, como diz o texto: consenti-la

livremente.

A igualdade, afirmada ao início do artigo 14, a democracia explicitada no

exercício direto ou por representantes e, nesse trecho, a invocação do princípio da

liberdade, o consentimento livre para a necessidade de contribuição pública.

A cláusula explicita, então, o que as câmaras de contas, ineptas e

ineficientes, a serviço da realeza e não da fiscalização popular, não efetivaram:

fiscalizar o emprego das contribuições públicas.

Surpreende a conclusão do artigo, seja pelo seu tecnicismo, pela sua

amplitude ou pela inscrição constitucional: o direito de determinar os valores

quantitativos (e em consequência qualitativos também) da alíquota, base de cálculo,

cobrança e duração da contribuição pública.

É uma norma de apurada qualificação técnica, se já não fossem

absolutamente relevantes as invocações aos princípios da igualdade, democracia e

liberdade.

Norma que tem por finalidade evidente a eficiência e eficácia do objeto

controlado.

A definição do artigo 14 poderia se conter em um real paradigma de

igualdade, democracia e liberdade na verificação e fiscalização das finanças

públicas.

Sua atribuição ao cidadão, pessoalmente ou por seus representantes, para

avaliar a necessidade e se entendida devida, determinar a alíquota, base de cálculo,

cobrança e duração, e concluindo o ciclo, fiscalizar o seu emprego.

Por sua vez, o artigo 15 determina para a sociedade o direito de exigir a

prestação de contas pelo agente público, já existente na Antiguidade.

É uma consequência do disposto no artigo 14.

Todos os instrumentos de igualdade, democracia e liberdade contidos no

artigo 14 dependem para a sua efetividade que a sociedade detenha o direito de

pedir a todo agente público a prestação de contas de sua administração.

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109

Embora o instituto jurídico da prestação de contas não se refira apenas à

administração financeira, mas, também, a todas as esferas de administração pública

(rigorosamente para o autor, a administração financeira, como a tributária, embora

com princípios distintos, se juncionam à atividade administrativa como gênero).

Essa última cláusula é a mais expressa vertente da prática dos hebreus no

Sinédrio e nos tribunais locais, assim como da democracia grega e seus tribunais de

magistrados controladores e da república romana, cujo instituto de prestação de

contas foi exercido no período clássico da república.

Os dois artigos se fundem, funcionam harmonicamente ainda antes da

criação de um órgão (ou órgãos fiscalizadores especializados), os representantes,

na madrugada de 4 de agosto de 1789, inscreveram os seguintes e notáveis valores

revolucionários que se afirmaram para a História, como exercício soberano de

igualdade, democracia e liberdade:

direito de verificar;

pessoalmente ou por meio de seus representantes;

a necessidade da contribuição pública;

consenti-la livremente;

fiscalizar o seu emprego;

determinar a alíquota, a base de cálculo, a cobrança e sua duração;

direito de pedir, a sociedade;

a todos os agentes públicos;

prestar contas da sua administração.

Extintas as câmaras de contas em setembro de 1791, detestadas e odiadas

como instrumento de poder real, nas quais seus magistrados eram descritos e

considerados como agentes monarquistas a serviço da realeza.

Aliás, já destituídas as câmaras de contas (inclusive a Chambre des

Comptes) de suas atribuições face à Declaração de 1789, a assembleia atribui-se as

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110

funções de regulamentar (e fiscalizar) a atividade financeira, em face da urgência da

situação revolucionária e também pela degradação da situação das finanças

públicas, já insolvente nessa altura dos históricos acontecimentos.

2.2.4 As Constituições posteriores a 1789 e o controle financeiro

Em 1791, a nova Constituição, no Título Primeiro, art. 2, acresce, como

disposição fundamental garantida, com natureza civil e natural, como princípio de

repartição tributária igualitária (justiça tributária e financeira) dos tributos entre todos

os cidadãos, em proporções dos seus recursos (princípio da proporcionalidade).

Dispõe o artigo 2 de 1791:

“Art. 2. Que todos os tributos sejam repartidos entre os cidadãos de modo

igual, na proporção dos seus recursos.”118

A nova assembleia, sob a denominação de Convenção (por influência do

constitucionalismo norte-americano, em 1793, considerado o ano I da Revolução),

aprova uma nova carta em meio aos graves acontecimentos que culminam no

guilhotinamento/decapitação do monarca e sua consorte, acusados de traição. Os

acontecimentos são agravados pela formação de dois partidos rivais, os girondinos e

jacobinos. Os primeiros eram liberais e pretendiam voltar aos valores originais de

1789 e a reafirmação dos direitos individuais; os segundos, liderados por

Robespierre, buscavam aprofundar a revolução, em face das circunstâncias internas

e externas desfavoráveis e da miséria da população urbana e em virtual estado de

beligerância, ampliando os direitos sociais.

O controle da administração financeira e a prestação de contas constantes

dos artigos 14 e 15 de 1789 são ratificados na Declaração de 1793, substituindo a

118

O referido artigo 2 da Declaração de 1791 adota o princípio da igualdade, inscrito prefacialmente no art. 1 da Declaração de 1789 e o princípio de justiça tributária, mediante a proporcionalidade da cobrança dos tributos segundo os recursos econômicos do contribuinte

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111

expressão contribuição pública, de ampla abrangência e conteúdo social por tributo

assim como substitui necessidades por utilidade pública119.

Diz o artigo 20 da Declaração de 1793:

Art. 20. Nenhum tributo pode ser estabelecido, a não ser por razões de utilidade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer ao estabelecimento de tributos, fiscalizar o seu emprego e exigir uma prestação de contas.

120

Como se constata, prestação de contas ficou adstrita ao emprego dos

tributos.

Nesse aspecto, a cláusula é um retrocesso em relação à igualdade,

democracia e liberdade afirmadas nos artigos 14 e 15 de 1789.

O dispositivo inicia, dando-lhe importância, ao estabelecimento de tributos.

Não há mais referência a todos os cidadãos, pessoalmente ou por seus

representantes, e à liberdade de autorização.

A Constituição de 1793, entretanto, não chegou a ser aplicada.

Sucede-se o golpe de estado, a prisão e após a execução de Robespierre

(27 de julho de 1794 – 9 do termidor do ano II).

A nova Constituição terá a hegemonia dos girondinos e a definitiva liderança

da burguesia no processo histórico.

Em muitos aspectos, formalmente, ela é um retrocesso em relação à

Declaração de 1789, mediante a adoção de valores subjetivos, alguns extraídos de

119

Tributo se origina da palavra “tribos” – parte de um povo, e de “distribuere” – distribuir entre a tribo. As palavras raízes são latinas e tiveram uma conotação pejorativa, no sentido de que tributar é postar alguém, submetido, de joelhos. Além disso, tributo é relacionado à cobrança coercitiva que os reis ou senhores feudais impunham ao povo, em benefício da casa real ou do senhor do feudo. De outro lado, necessidades são com um conjunto de carências individuais ou coletivas, mas relacionadas às pessoas e ao povo. Utilidade geral é um termo vinculado à arrecadação estatal.

120 Nesta cláusula, a Revolução Francesa de 1789 inclui dois valores: a vontade geral, legado da filosofia de Jean-Jacques Rousseau e o controle, atribuído, democraticamente, a “todos os cidadãos”. Essa ideia do genebrino de atribuir o controle direto a todos é impraticável. Nascido em uma pequena cidade, o preconizado controle disseminado entre os cidadãos carece de condições reais na França, face à dimensão populacional. Em 1807, Napoleão criaria a Cour des Comptes (Tribunal de Contas) para dar efetividade ao controle da administração pública.

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ensinamentos religiosos ou teológicos, outros, em sentido moralista, opostos à

racionalidade das luzes que preponderou em 1789. Há palavras que parecem

utilizadas diretamente de manuais de catecismo, tipicamente paulinas e dogmáticas.

O art. 16, que trata da atividade financeira do estado, resume-se

laconicamente ao seguinte:

“Art. 16. Todo o tributo é estabelecido em razão da utilidade geral: ele deve

ser repartido entre os contribuintes, em razão dos seus recursos.”121

Resumidamente, a Revolução Francesa extingue as câmaras de contas, de

origem medieval, e atribui ao poder legislativo a fiscalização financeira.

Para essa finalidade, ao lado das normas acima expostas e constantes das

Declarações, a lei de 17-29 de setembro de 1791, atribui à assembleia a

competência exclusive para apurar as contas da nação.

Na mesma lei, é criado um novo órgão de controle, o Bureau de

Comptabilité, organizado sob a forma de uma comissão com atribuições sobre a

contabilidade nacional. Esse órgão é formado por quinze membros, nomeados pelo

rei (que ainda estava no trono), dividido em cinco seções de três membros cada

uma.

Tinha o Bureau competências auxiliares, mediante elaboração de relatórios

em matéria financeira a serem submetidos à deliberação legislativa.

A Constituição de 1793 substituiria o Bureau por verificadores, os quais

deviam fiscalizar os comissários encarregados das finanças públicas. Como essa

carta não chegou a entrar em vigor, aquele órgão continuou a existir.

A Constituição seguinte criou duas comissões distintas, uma para tesouraria

e outra para contabilidade. Seus membros, designados comissários, na comissão de

tesouraria eram incumbidos de fiscalizar as receitas e prover os movimentos de

fundos e pagamentos de despesas públicas autorizadas pelo poder legislativo. Os

comissários da comissão de contabilidade verificavam e liquidavam as contas de

receitas e despesas da república, apresentadas pelos comissários da tesouraria. 121

A Revolução, no art. 16, qualifica a necessidade do tributo com o mesmo princípio hodierno: o interesse público; e a sua exigibilidade de cobrança é, a sua vez, qualificada pela aplicação da proporcionalidade entre os contribuintes.

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113

Faltava-lhes, entretanto, as atribuições fiscalizadoras, eram meramente

preparadores ou instrutores, cabendo ao poder legislativo, exclusivamente, a

atribuição de fiscalização das contas e demitir os funcionários (lei do ano III).

Enquanto os resultados técnicos quanto à contabilidade pública eram

satisfatórios, a fiscalização sobre as contas não alcançava o mesmo resultado.

Na Constituição do ano VIII, criou-se uma “Comissão de Contabilidade

Nacional”, formada por sete membros escolhidos pelo corpo legislativo. Uma vez

mais os resultados foram insatisfatórios, porque lhes faltavam as garantias

oferecidas pela organização judiciária que as antigas câmaras de contas possuíam.

Nestas circunstâncias, já encerrado o ciclo revolucionário, sob o influxo de

um retrocesso político, Napoleão cria a Cour des Comptes, em 16 de setembro de

1807, organizada pelo decreto do dia 28 do mesmo mês.

Sua organização, com nítida inspiração judiciária, se assemelhava às

antigas Câmaras de Contas, única, resultado da consequência financeira adotada

pela revolução e em vigor.

A Cour de Comptes é objeto de candentes críticas, em razão de sua atuação

em favor do poder e da burguesia. Durante os acontecimentos da Comuna de Paris,

os revolucionários, acuados pela traição da classe dirigente que permite o cerco de

Paris pelas tropas prussianas e após os massacres e fuzilamentos do povo, o prédio

da Cour é incendiado.

Os revolucionários poderiam ter utilizado os documentos arquivados na Cour

para denunciar os casos de corrupção financeira e dos desvios de fundos que a elite

cometera, agora homiziada em Versalhes.

Optaram os dirigentes da Comuna em não utilizar esses documentos.

A Cour napoleônica terá uma índole excessivamente contábil, esquivando-se

de criticar os desvios ou gastos, limitando-se ao contrasteamento dos valores

relativos às receitas e despesas, sem avaliar o mérito dos fatos financeiros.

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114

Mas o modelo napoleônico, anota-se, irá se disseminar em muitos países,

inclusive no Brasil, como medida político-jurídica de controle do poder, como

instituição de limitação dos governantes.

A Court des Comptes, fruto dos princípios republicanos e democráticos

adotados pela revolução francesa, é organizada, levando-se em consideração a

unidade financeira centralizada adotada na França e será mais um dos “produtos de

exportação”, insculpidos na Declaração, e que mais tarde irá se refletir na nascente

república brasileira.

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115

3 O TRIBUNAL DE CONTAS NO BRASIL

A criação do Tribunal de Contas no Brasil é fruto direto da Proclamação da

República. O período do império da história do Brasil assiste a tentativas frustradas

de instalação de uma corte de contas.

Durante o período colonial português e nesse durante a ocupação holandesa

no Brasil, existiu fiscalização sobre a administração financeira.

3.1 O CONTROLE DURANTE O PERÍODO COLONIAL PORTUGUÊS

O controle financeiro durante o período colonial (que se encerra com a

independência, proclamada em 1822) foi exercido pelas Casas dos Contos,

instituição diretamente transplantada por Portugal a sua colônia brasileira.

Essa entidade foi instalada em Vila Rica, hoje Ouro Preto, em Minas Gerais,

em razão da importância e do volume do ouro extraído das jazidas ali existentes.

Na metrópole, a fiscalização durante a Idade Média, como já observado, era

feita rudimentarmente, de uma forma primária, por agentes individuais, em

atividades de contrasteamento, empiricamente. Não havia corpos coletivos,

aparelhados e dotados de organicidade.

As punições eram rigorosas, abrandadas pelas Ordenações Afonsinas.

Após os anos 1500, Portugal, após o descobrimento do Brasil e a extensão

imperial à Índia, por necessidade de uma fiscalização mais efetiva, certamente pela

distância das colônias em relação à corte e à metrópole, o rei D .Manuel restaura os

conselhos, em 1517, mas inteiramente submetidos ao poder real. Em 1521, com as

Ordenações Manuelinas, introduzem-se vários dispositivos que demonstram a

situação das finanças: as punições aos funcionários prevaricadores graduam-se de

multa, perda do cargo e pena de morte.

A fiscalização, entretanto, continua rudimentar.

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116

É sob D. João III (1521-1557) que o Império atinge seu vulto econômico e

político.

As finanças, entretanto, são exauridas, por desvios ou por incompetências.

O rei, frequentemente, se via obrigado a desfazer-se de seus bens pessoais

a súditos enriquecidos, para pagar as dívidas (como ao Imperador Carlos V, ao qual

foi paga a importância de 350.000 ducados pelo pacto das Molucas).

A coroa recorria a empréstimos com juros extorsivos, que chegavam a

25%122.

A situação financeira iria melhorar no reinado de Felipe II (1598-1621), com

o crescimento das rendas públicas. As Ordenações Filipinas, da época, não

esclarecem sobre a organização financeira, nem seus instrumentos.

Apenas atribui aos corregedores, designados agentes do rei junto aos

conselhos, cujo número havia sido majorado, devendo, em suas funções averiguar a

situação em que os juízes vereadores mantinham as contas do reino.

Esses corregedores, assim como os ouvidores e juízes de fora, deviam

informar à Câmara Real, na corte, antes do término dos seus mandatos (que eram

de três anos) sobre a situação na qual deixavam as contas ao término do respectivo

mandato.

Um desembargador (ou alguém designado) era destinado à residência

desses funcionários, uma forma de tornar pública a situação financeira. Isso permitia

a quem quisesse demandá-los, obrigando-os ao comparecimento. Implicava

igualmente em que os funcionários não poderiam se ausentar das localidades

durante essas demandas, iniciadas por queixa.

Eram então remetidas as queixas ao Desembargo do Paço, na metrópole,

que as julgava, aplicando as penas aos acusados de acordo com a gravidade das

faltas apuradas. Esse processo lembra dos processos romanos e atenienses, mas

certamente porque o sistema estava disseminado, não havendo razões para se dar

crédito a um ressurgimento dos institutos da época clássica de Roma ou Atenas.

122

LOPES, Alfredo Cecílio. Ensaio sobre o Tribunal de Contas. São Paulo: s. ed., 1947. p. 76 et seq.

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117

Com a declaração de Independência do Brasil, resta a Portugal, quanto à

fiscalização, seguir seus rumos próprios, distanciados da antiga colônia.

No Brasil, após a Independência, mantém o sistema das Casas dos Contos.

A fiscalização antes exercida no interesse dos monarcas portugueses tem o

sucedâneo do interesse da fiscalização em benefício dos imperadores no Brasil

independente.

O Império, como se demonstrará, não conhece um sistema atualizado e

moderno de controle, como já ocorria em vários países, especialmente na França.

3.2 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA PELA CÂMARA DE

CONTAS NO TERRITÓRIO OCUPADO PELA HOLANDA

Durante um breve período entremeado entre os anos de 1630 a 1645, o

Brasil teve parte de seu território colonial ocupado pela Holanda.

Isso ocorreu no nordeste do Brasil, especialmente em Pernambuco, Alagoas

e Bahia.

Durante esse curto episódio, na zona ocupada pela Holanda existiu uma

Corte de Contas, segundo o modelo do país invasor.

Esse é o fato jurídico que demonstra que, mesmo antes da criação de um

Tribunal de Contas, o que somente ocorrerá na Proclamação da República (1889),

no Brasil existiu uma Câmara de Contas, regrada segundo as normas da Holanda.

O fato é relevante porque durante o período em que foi colônia de Portugal,

no Brasil não houve um órgão dessa importância e envergadura de organização;

tampouco durante o estado independente desde 1822 e até 1889.

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118

Somente por iniciativa do invasor holandês, a Câmara de Contas cria um

marco jurídico, que, embora inaproveitado posteriormente, fixa no território brasileiro

a existência de uma corte de contas segundo o modelo batavo123.

A ocupação holandesa, conquanto de prosperidade econômica e urbana,

não foi pacífica. Portugueses e brasileiros mantiveram constantes conflitos e

fustigamentos militares com os invasores.

A fiscalização financeira do interesse da monarquia holandesa, já difícil pela

distância da sede da coroa, teve despesas elevadas com as lutas travadas pelos

invadidos.

Durante a ocupação, chefiada pelo nobre Maurício de Nassau, a coroa

instalou no território ocupado uma câmara controladora das atividades financeiras

realizadas pela administração colonial, denominada de Câmara de Contas.

Esse órgão seguia o modelo controlador adotado na metrópole e tinha uma

função precípua: fiscalizar os gastos realizados pelos holandeses neste território,

colônia de Portugal.

De regra, tinha a mesmas funções do seu modelo em funcionamento na

metrópole.

A incumbência da instalação foi atribuída ao próprio Maurício de Nassau,

como órgão da coroa.

123

A Câmara de Contas no Brasil holandês foi apenas um dos fatos relevantes durante tão curto período. A corte de Maurício de Nassau é acompanhada de figuras importantes, como o pintor Franz Post, o rabino Aboab da Fonseca (o nome traduz um descendente dos fugitivos das perseguições da inquisição na península ibérica, fundador da primeira sinagoga, denominada de Zur Israel – rochedo de Israel, da América, hoje museu de um prédio restaurado em Recife, na antiga rua dos Judeus). Também em Alagoas existiu uma sinagoga fundada pelo rabino Samuel Israel, ainda não localizada pelas pesquisas arqueológicas. Recorde-se que a corte holandesa enviou Gaspar Barléu, um cronista do reino, cuja obra permite conhecer em detalhes a vida no território ocupado, suas instituições e o cotidiano, assim como narra sobre a Câmara de Contas. O livro de Barléu encontra-se na Biblioteca do Senado da República, guardado em caixa forte, ao qual o autor teve acesso e obteve um exemplar que graficamente reproduz com fidelidade o original. Esses fatos demonstram a importância das liberais sociedade e coroa holandesa, em cujo país se destacam também Baruch (ou Bendito) Spinoza, filósofo racionalista e, anteriormente, Erasmo de Roterdam (1466-1536), cujas ideias e práticas burguesas e liberalizantes são utilizadas no território ocupado. Sem dúvida, os rígidos conceitos luteranos, ladeados pelo mercantilismo burguês e pela liberalidade religiosa e de pensamento, igualmente se mostram na existência de um controle da administração financeira holandesa no território do nordeste. BARLÉU, Gaspar. O Brasil holandês sob o Conde João Maurício de Nassau. Brasília: Senado Federal, 2005.

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119

Para exercer as suas funções, procedia a Câmara segundo as normas pré-

existentes na metrópole. Não há, portanto, nenhuma adaptação ou inovação. Ela, a

Câmara, organiza-se e age estritamente como uma organização colegiada da corte

holandesa no Brasil.

Sua ação fiscalizadora responsabilizava diretamente Maurício de Nassau

pela prestação de contas que lhe era devida e face à própria coroa holandesa. Sua

atuação, conquanto independente, tinha um objetivo finalístico: zelar pelo tesouro

real.

Quando da invasão no território do nordeste do Brasil, a Holanda já havia

superado a Idade Média.

Como a Itália, vivenciara a Renascença e todos os aspectos políticos e

humanísticos por ela representada, assim como nas artes, na filosofia, na literatura,

na arquitetura, no desenvolvimento da nascente burguesia, na expansão econômica.

Ao contrário de Portugal, cujo absolutismo mantinha o país nos limites filosóficos e

econômicos do feudalismo, inobstante as grandes descobertas de terras e as

navegações, a Inquisição mantinha o país sob atraso. Não é o que ocorre na

Holanda124.

A preocupação com a fiscalização permite compreender porque essa Corte

de Contas é, no modelo existente, instalada no Brasil.

Se essa atividade não tinha, ainda, o prenúncio dos ideais republicanos e

democráticos, a filosofia iluminista e a ideologia burguesa são indissolúveis da

normatividade dessa fiscalização.

O fato de que a fiscalização, em última instância, se concretizava no

interesse do zelo do patrimônio e dos valores reais não exclui do colegiado instalado

no nordeste do Brasil ocupado pelo invasor holandês uma semente de observância

rigorosa na administração financeira.

124

No entendimento do autor, a criação na Holanda da Companhia das Índias Ocidentais e da Companhia das Índias Orientais, as duas primeiras sociedades anônimas europeias, galga aquele país para a liderança no desenvolvimento econômico. O espírito mercantilista da nova classe burguesa em ascendência, acumulando seus capitais, necessitava de uma religião e filosofia, que será o iluminismo, que lhes proporcionasse o exercício liberal e criativo, o qual iria romper com as amarras do feudalismo. Não apenas a exploração do açúcar do Brasil, em larga escala, mas também a indústria naval, têxtil, madeireira e o florescimento urbano colocam a Holanda no desenvolvimento econômico acentuado.

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120

A Câmara de Contas estava organizada segundo forma colegiada, composta

por cinco membros, escolhidos segundo a sua idoneidade.

Desses cinco membros, dois exerciam as funções de tesoureiro, em sistema

de rodízio anual.

A escolha para os membros dessa Câmara de Contas no Brasil holandês

recaía entre os conselheiros de justiça, os quais não eram remunerados. A escolha

era efetivada ao fim dos mandatos desses cargos de conselheiros.

Ao mesmo tempo, acumulava atribuições em assuntos financeiros e

econômicos da representação da coroa holandesa.

A Câmara também era chamada a colaborar com a administração e

mantinha estreita atuação junto a Maurício de Nassau, podendo estabelecer tributos,

além de funções típicas em assuntos tributários e políticos.

É, portanto, um órgão múltiplo. As tarefas diversificadas não lhes restringem

a fiscalização financeira. Demonstram, ao contrário, sua importância na organização

da administração colonial holandesa, alcançando outras funções, políticas,

econômicas, administrativas e também tributárias.

A origem dos seus membros – dentre os conselheiros de justiça, qualificam

a Câmara e dão-lhe a autoridade indispensável perante Maurício de Nassau e a

própria coroa, como órgão representativo da metrópole.

Distinta da magistratura da justiça, sua importância e influência revelam-se

nessa multiplicidade de atividades.

Contava com um corpo de funcionários especializados, compreendendo um

chefe de contabilidade, um secretário do chefe de contabilidade, um oficial maior,

um escriturário e um mensageiro.

A remuneração do chefe de contabilidade importava em 250 florins; seu

secretário, 120 florins; escriturário, 60 florins; e o mensageiro percebia 46 florins.

Os cinco membros que formavam o corpo do colegiado não perceberiam

remuneração, visto terem sido recrutados entre os magistrados de justiça que não

eram remunerados. É uma dedução perfeitamente realizável. No sistema real,

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121

ganhariam títulos de nobreza e bens, como terras rentáveis pelos serviços

prestados.

Despercebido pela literatura jurídica brasileira e pelas publicações dos

tribunais de contas no Brasil, Waldemar Ferreira, entretanto, registrou a existência

dessa Câmara e ressaltou a sua importância.

O texto de Waldemar Ferreira é o seguinte:

Teve Maurício de Nassau a cautela de criar e instalar logo órgão adequado à fiscalização e tomada das contas de sua gestão, composto de cinco pessoas de muita idoneidade, duas das quais se revezariam anualmente na função de tesoureiro. Funcionalismo especializado, constituído de chefe de contabilidade, seu secretário, oficial maior, escriturário e mensageiro, se incumbiria dos serviços necessários a fim de que as contas se tomassem com regularidade e presteza.

Ainda não se determinou bem a natureza desse aparelho governamental.

Tem sido havido como autêntico Tribunal de Contas, o primeiro de que se há notícia em toda a América. Não poucos chamam-no de Câmara de Contas. Nomeou-o Gaspar Barléu de Collegium Rationalium, na edição latina do seu trabalho histórico sobre o governo mauriciano. Na tradução brasileira de Cláudio Brandão, sob os auspícios do Ministério da Educação, este, em nota, àquele título se referiu; mas, no texto, assim trasladou:

“Existe, além disso uma Câmara de Contas, que administra o erário da Companhia e examina as contas públicas bem como as do fisco. Houve-se por bem escolherem os membros desta Câmara no número dos conselheiros de Justiça sempre que deixassem o cargo.

Dois deles, pois são cinco, funcionavam cada ano como tesoureiro”.

Ao que parece, o que se tem chamado de Tribunal ou Câmara de Contas, e também Conselho de Finanças, fruía de mais destacados poderes que o de simples tomador de contas. Influía na gestão dos negócios públicos. Deliberava sobre assuntos financeiros e econômicos.

Colaborava com o governador. Estabelecia tributos. Agia mais como órgão de administração, de atribuição orçamentária e política, de onde ter escrito o historiador não ter sido muito ao sabor de Maurício de Nassau, a cuja “clara percepção, entretanto, não escapou que não era a criação de um Conselho de Finanças que viria salvar o Brasil de sua miséria econômica, nem tão pouco o tratamento brutal inflingido aos plantadores, retardados nos pagamentos".

No verão de 1642, foram nomeados membros desse Colégio cinco comerciantes e empregados de boa reputação, a saber: Balthazar van Dortmont, Adiaen Lems, Pieter van der Hagen, Gerard van Volbergen e Henricus Gasparus Torquinius.

125

125

FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. Tomo III. São Paulo: Max Limonad, 1955. t. III. p. 140, 150 et seq.

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122

Equivoca-se Waldemar Ferreira Filho. Maurício de Nassau não teve

“cautela” ao criar e instalar aquele órgão. A iniciativa executiva é realmente sua, mas

a ordem é da coroa holandesa.

Demais, por dispor de destacados poderes “agia mais como órgão de

administração”, não o qualifica apenas como órgão de administração, mas uma

espécie de conselho de estado, com relevantes competências, das quais a primeira

é a tomada de contas do próprio Maurício de Nassau. Quanto a Gaspar Barléu, há

outro equívoco. Ele é cronista real, não propriamente um historiador. Não retiram,

contudo, o acerto valioso do registro de Waldemar Ferreira Filho.

A fonte dessas precisas informações é primariamente a crônica de Gaspar

Barléu, que, por incumbência real, acompanhava Maurício de Nassau para realizar a

crônica dos fatos desenrolados no Brasil holandês.

Nota Barléu que havia no território ocupado pela Holanda um corpo de

magistratura de justiça. Isso se revela importante, porque salienta o relevo do

território ocupado para a metrópole, bem como seus planos, que não seriam apenas

de exploração econômica, mas de estabilização de uma colônia, que se pretendia

permanente.

É desse corpo de magistrados que se requisitam os cinco conselheiros da

Câmara de Contas. Gaspar Barléu, cronista e testemunha dos episódios, ao

denominar o colegiado de Câmara de Contas, não comete o equívoco acima

observado de qualificar o órgão como Tribunal de Contas. Essa expressão somente

surgiria em 1807, quando Napoleão criaria o respectivo tribunal na França.

Narra a crônica de Gaspar Barléu:

Cada uma das províncias tem também a sua magistratura que exerce jurisdição sobre as cidades e vilas do seu território. Os membros dela são chamados eleitores e os escabinos desempenham função temporária e não remunerada. Perante estes servem o cargo de promotores públicos, não sem autoridade, aqueles que se chamam escultetos, pretores oubalios.

Existe além disso uma Câmara de Contas, que administra o erário da Companhia e examina as contas públicas bem como as do fisco. Houve-se por bem escolherem-se os membros desta Câmara do número dos

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123

conselheiros de Justiça, sempre que deixassem o cargo. Dois deles, pois são cinco, funcionam cada ano como tesoureiros.

126

Gaspar Barléu nasceu em 1584 e morreu em 1648. Era holandês,

acompanhando a incursão holandesa às terras portuguesas. Sua atribuição era

registrar, sob a forma literária de crônica, os fatos durante esse período.

Segundo o relato do cronista real, a Câmara de Contas era um órgão de

controle da administração pública, examinando e tomando as contas das receitas,

despesas, incluindo a fiscalização dos tributos. A composição qualificada da

Câmara, assim como do seu funcionalismo especializado, permitem concluir sobre a

efetiva e independe fiscalização exercida.

Ele é o primeiro tribunal de contas no Brasil e, segundo anotou Waldemar

Martins Ferreira, o primeiro também da América.

Essa Câmara de Contas, cujo modelo está estabelecido na metrópole

holandesa, é um órgão específico, embora com outras atividades a lembrar um

conselho de estado, mas com relevantes funções de fiscalização, das quais, como

se verifica, o Conde Maurício de Nassau não o considerava um aliado (ao “seu

sabor”), portanto, exercente independente de suas funções reais.

3.3 AS TENTATIVAS DE CRIAÇÃO DE UM TRIBUNAL DE CONTAS NO IMPÉRIO

BRASILEIRO

Não lograram êxito as tentativas de criação de um Tribunal de Contas nos

períodos do primeiro e segundo impérios do Brasil.

A primeira tentativa de criar a Corte de Contas é de Felisberto Caldeira

Brandt, Visconde de Barbacena, e de José Inácio Borges.

126

BARLÉU, Gaspar. O Brasil holandês sob o Conde João Maurício de Nassau. Brasília: Senado Federal, 2005. p. 350.

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124

Ambos apresentaram ao Senado imperial, em 1826, projeto de lei com essa

finalidade. O projeto foi rejeitado127.

Como nos processos legislativos posteriores, sem lograrem igualmente

êxito, pode-se concluir que durante o IIº Império, cujo regime político era

concentracionário, não interessava à coroa brasileira submeter-se à fiscalização da

administração pública por um órgão que se pretendia independente e gestado pelo

poder legislativo.

A criação desse órgão controlador implicaria o desvendamento das contas

públicas, o contrasteamento das receitas e despesas financeiras, a movimentação

do erário em benefício da casa monárquica especialmente no segundo império,

quando a oposição liberal e republicana, assim como a imprensa e a opinião pública

de parte da elite, se tornavam cada vez mais ativas, gerando base para críticas

fundamentadas nos dados que se revelassem e fortalecendo o partido republicano e

carreando mais adeptos a sua causa.

O projeto de lei de 1826, apresentado pelo Visconde de Barbacena e José

Inácio Borges foi obstaculizado pela oposição de Manuel Jacinto Nogueira da Gama,

Marquês de Baependi e Senador do império.

Pontes de Miranda, comentando a Constituição do Brasil de 1967, assim

interpreta a oposição manifestada pelo Marquês de Baependi e a proposta posterior

de Manuel Alves Branco em 1845:

Por onde se vê que, se, de um lado, combatia a criação proposta, por outro se mostrava partidário de um Tribunal de Contas mais eficiente, mais poderoso.

Em 1845, Manuel Alves Branco, Ministro do Império, propôs a organização de um Tribunal de Contas que, sobre exercer fiscalização financeira, apurasse a responsabilidade dos exatores da Fazenda Pública, com o poder de ordenar a prisão dos desobedientes e contumazes e de julgar à revelia as contas que tivessem de prestar. Sem bem que a ideia volvesse com Pimenta Bueno (depois, Marquês de São Vicente), Silveira Martins,

127

LOPES, Alfredo Cecílio. Ensaio sobre o Tribunal de Contas. São Paulo: s. ed., 1947. p. 213 et seq. Dessa dissertação o autor também utiliza as informações sobre as demais tentativas frustradas de criação de um tribunal de contas durante o primeiro e segundo impérios no Brasil.

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125

Visconde de Ouro Preto e João Alfredo, o Império não possuiu o seu Tribunal de Contas.

128

A argumentação desfavorável à criação do Tribunal de Contas exposta pelo

Marquês de Baependi, abalizada por seus conhecimentos técnicos e experiência,

porquanto exercera o cargo de Ministro da Fazenda em período anterior ao seu

ingresso no Senado, buscava demonstrar a fragilidade e ineficiência do Tribunal

proposto naquele projeto de lei.

Ele não esposava uma posição política contrária à criação; advogava,

entretanto, um tribunal mais efetivo e que não se limitasse ao exame da

documentação no Tesouro.

Outra tentativa de criação da Corte de Contas ocorre por iniciativa do

Marquês de Abrantes, em 1838, então Ministro da Fazenda, mediante novo projeto.

Diferentemente do projeto anterior, esse pretendia atribuir ao Tribunal de

Contas funções judicantes no exercício da fiscalização financeira, seguindo rumo

inteiramente distinto do projeto já revogado. Mas, de igual maneira, o projeto de lei

do Marquês de Abrantes também foi rejeitado.

Manoel Alves Branco, no segundo império, em 1845, que exercera o cargo

de Contador Geral do Império e à época era Ministro do Império, cumulando com o

cargo de Ministro da Fazenda, interessado na reorganização dos serviços exercidos

pelo Tesouro Nacional, também apresenta projeto de lei com a finalidade de instituir

um Tribunal de Contas.

Nesse projeto, Manoel Alves Branco, mais voltado para questões técnicas

internas da administração fazendária, excluía do Tribunal em projeto as funções

principais de fiscalização financeira e lhe atribuía funções típicas de um tribunal

administrativo apto a julgar prestações de contas.

Seu projeto continha proposta de, em caso de rejeição das contas, poder o

Tribunal aplicar pena de prisão ao administrador responsável e condenado no

128

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 244-245.

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126

julgamento desfavorável. Tratava-se de um Tribunal administrativo com radicais

competências, usuais apenas aos Tribunais judiciais.

O projeto tem, entretanto, um aspecto diferenciado ao estabelecer um elo de

nexo relacional entre o Tribunal de Contas e o contencioso administrativo, com

poderes de punição próprios.

Pimenta Bueno, em 1857, comenta sobre essas iniciativas e a necessidade

da criação de um Tribunal de Contas:

É de suma necessidade a criação de um tribunal de contas , devidamente organizado, que examine e compare a fidelidade das despesas com os créditos votados, as receitas com as leis do imposto, que perscrute e siga pelo testemunho de documentos autênticos em todos os seus movimentos a aplicação e emprego dos valores do Estado, e que enfim possa assegurar a realidade e a legalidade das contas. Sem esse poderoso auxiliar nada conseguirão as câmaras.

129

Também o escritor José de Alencar, discursando na Câmara dos Deputados,

em 2 de agosto de 1861, defendeu incisivamente a criação de um Tribunal de

Contas:

A criação, pois de um Tribunal de Contas, composto de membros vitalícios bem remunerados, incompatíveis com quaisquer cargos de eleição popular ou de nomeação do poder executivo, responsáveis perante o Supremo Tribunal de Justiça, quando esta Câmara decreta a sua acusação, é um complemento necessário do governo parlamentar.

Um Tribunal, quanto à despesa pública, garante a estrita e severa economia dos dinheiros do Estado, e põe a salvo da calúnia a probidade da administração. Em relação à receita, moraliza o imposto, e tira-lhe o odioso que ordinariamente o acompanha.

130

129

BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Exteriores,1959. p. 90. Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente (1803-1878), faz uma observação precisa sobre as funções da corte de contas, sua necessidade e cuja finalidade é assegurar a avaliação da realidade e a legalidade das contas.

130 ALENCAR apud ROSA, Ruben. Relatório do Tribunal de Contas. Exercício de 1943. Brasília: Tribunal de Contas, 1943. p. 11.

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127

Dois Ministros de Fazenda igualmente sustentaram em relatórios

encaminhados ao Poder Legislativo do Império propostas de criação do Tribunal de

Contas. Silveira Martins, em 1878, em relatório à Assembleia Geral Legislativa,

frisava a necessidade da instituição dessa corte de contas; no mesmo sentido,

sustenta pela criação de uma Corte de Contas o Visconde de Ouro Preto, em 1879,

no seu relatório ministerial, enfatizando a importância da fiscalização sobre a

ordenação de despesas e, principalmente, sobre a execução das despesas

públicas.

Finalmente, já ao ocaso do império, em 1889, João Alfredo, o derradeiro

Ministro da Fazenda do quase extinto império, pleiteava a urgente criação do

Tribunal de Contas.

O baile da Ilha Fiscal, no qual a nobreza expôs seu desprezo pelo dinheiro

público, no ato final do Império, em uma faustosa festa na qual se consumiram não

apenas desmedidas quantidades de bebidas e alimentos de banquete, mas de

valores exorbitantes, impulsionou os militares a decretarem o fim do regime imperial

e proclamarem a República.

As condições para a criação do Tribunal de Contas estavam concretizadas.

3.4 A INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS Nº NO BRASIL. O DECRETO

966-A E A CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA DE 1891

Ao proclamarem a República em 15 de novembro de 1889, os militares

assumem o governo, denominado de Governo Provisório, constituído pelo Exército e

pela Armada, sob a Chefia do Marechal Deodoro da Fonseca.

A situação financeira e orçamentária estava desorganizada e desequilibrada.

O sistema orçamentário é frágil e inconfiável. A contabilidade pública não

fornece dados fidedignos e seus registros são insubsistentes ou incompletos, com

procedimentos duvidosos que comprometem a execução orçamentária. Não há

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128

controle exercido sobre a execução orçamentária ou sobre a contabilidade

pública.

Ruy Barbosa, no cargo de Ministro da Fazenda, propõe ao governo

provisório a criação de um Tribunal de Contas como instrumento necessário para

corrigir a situação de descontrole financeiro, orçamentário e contábil da nascente

República, herdada do regime anterior.

A proposta de Ruy Barbosa, elaborada pessoalmente, está consignada no

decreto que viria a receber o número 966-A, datado de 7 de novembro de 1890,

cerca de um ano depois de proclamada a República e é assinado pelo Marechal

Deodoro da Fonseca e pelo próprio Ruy Barbosa.

Relevante, entretanto, para conhecer as justificativas, as motivações e os

conhecimentos jurídicos de Ruy Barbosa em relação às Cortes de Contas, inclusive

no campo do direito comparado, é o texto da sua exposição de motivos131.

Na Exposição de Motivos Ruy Barbosa demonstra seu apreço pelo projeto,

ainda no período imperial, de Alves Branco, apresentado em 1862 (e rejeitado pelo

poder legislativo imperial).

Na Exposição, Ruy demonstra a importância de uma peça orçamentária

inviolável e soberana, como mecanismo administrativo e político do povo.

Diz Ruy Barbosa:

Necessidade de tornar o orçamento uma instituição inviolável e soberana, em sua missão de prover as necessidades públicas mediante o menor sacrifício dos contribuintes, à necessidade urgente de fazer dessa lei das leis uma força da nação, um sistema sábio, econômico, escudado contra todos os desvios, todas as vontades, todos os poderes que ousem perturbar-lhe o curso traçado.

131

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. Manteve-se a ortografia original. O autor teve acesso e obteve cópias gráficas idênticas aos originais de Ruy Barbosa: Decreto 966-A, Exposição de Motivos, Rascunhos de ambos os documentos e anotações e comentários junto à Casa de Ruy Barbosa, com sede na cidade do Rio de Janeiro. Da Exposição de Motivos (parcialmente transcritas por Ruy Barbosa nos Comentários à Constituição Federal) extrai-se os conhecimentos jurídicos de Ruy acerca das cortes de contas, inclusive no campo do direito comparado. Como fonte primária de pesquisa e conhecimento, o autor anexa esses documentos.

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129

Nenhuma instituição é mais relevante, para o movimento regular do mecanismo administrativo e político de um povo, do que a lei orçamentária. Mas em nenhum há maior facilidade aos mais graves e perigosos abusos.

132

Prossegue Ruy Barbosa na sua Exposição de Motivos ao Decreto 966-a

salientando o papel regenerador da república, fazendo cumprir, escrupulosamente, o

orçamento federal.

Afirma igualmente que o sistema de contabilidade orçamentária é defeituoso

no seu mecanismo e fraco na sua execução.

Propõe, nesse passo, a criação de um Tribunal de Contas, corpo de

magistratura intermediária à legislatura e à administração, nos seguintes termos:

Cumpre à República mostrar, ainda neste assumpto, a sua força regeneradora, fazendo observar escrupulosamente, no regimen constitucional em que vamos entrar, o orçamento federal.

Se não conseguir este desideratum: se não pudermos chegar a uma vida orçamentária perfeitamente equilibrada, não nos será dado presumir que hajamos reconstituído a pátria, e organizado o futuro.

É, entre nós, o sistema de contabilidade orçamentária defeituoso em seu mecanismo e fraco de sua execução.

O Governo Provisório reconheceu a urgência inadiável de reorganizá-lo; e a medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediaria à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com attribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias – contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.

Só assim o orçamento, passando, em sua execução, por esse cadinho, tornar-se-á verdadeiramente essa verdade, de que se fala entre nós em vão, desde que neste país se inauguraram assembléias parlamentares.

133

Prossegue Ruy Barbosa na Exposição de Motivos:

Mas para a edificação republicana esta reforma deve ser uma das pedras fundamentais.

132

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. p. 425 et seq.

133 Ibid., p. 425 et seq.

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130

A necessidade de confiar a revisão de todas as operações orçamentárias da receita e despesa a uma corporação com as attribuições que vimos de expor, está hoje reconhecida em todos os países, e satisfeita em quase todos os sistemas de governo estabelecidos, que apenas divergem quanto à escolha dos moldes; havendo não menos de quatorze constituições, onde se consigna o princípio do Tribunal de Contas.

134

Ao propor a instituição do Tribunal de Contas no Brasil, Ruy Barbosa

enumera na sua Exposição os dois sistemas então adotados: o modelo originário da

França e adotado pela Suécia, Espanha, Grécia, Sérvia, România e Turquia, além

dos Estados centrais: Alemanha e Império Austro-Hungaro.

O segundo modelo é o adotado pela Itália, seguido pela Holanda, Bélgica,

Portugal, Chile e Japão.

No primeiro modelo, a fiscalização se limita a impedir que as despesas

sejam pagas ou executadas além das limitações orçamentárias.

No outro modelo a ação é mais ampla: antecipa-se ao abuso, atalha a sua

origem e evita os atos do executivo capazes de gerar despesas ilegais.

O modelo do Decreto 966-A é híbrido.

O Tribunal de Contas ali previsto é fiscalizador e julgador, ao mesmo tempo.

Dispõe o artigo primeiro do Decreto 966-A, de 7 de novembro de 1890:

“Art. 1º. É instituído um Tribunal de Contas, ao qual incumbirá o exame, a

revisão e o julgamento de todas as operações concernentes à receita e despesa da

República.”135

O Tribunal de Contas previsto nesse Decreto não foi instalado, e também

não foi regulamentado esse decreto.

Ruy Barbosa havia nomeado uma comissão para elaborar o projeto de

regulamento ao Decreto 966-A.

Entretanto, deixa o cargo de Ministro da Fazenda em 22 de janeiro de 1891.

134

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. p. 426 et seq.

135 O texto encontra-se na anexa cópia gráfica autêntica do original manuscrito do Decreto, incluso no Livro de Decretos da República.

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131

Não lhe restou tempo hábil para apreciar o resultado produzido pela

comissão. O novo titular do Ministério da Fazenda, em substituição a Ruy Barbosa,

Tristão Araripe, extingue mediante portaria aquela comissão, em 12 de fevereiro do

mesmo ano.

A Exposição de Motivos será a motivação para a inclusão de dispositivo na

Constituição republicana.

Quanto ao Tribunal de Contas, um corpo de magistratura independente para

fazer cumprir o soberano orçamento, como mecanismo político e administrativo do

povo, na afirmação de Ruy Barbosa, entende-se ser este definição precisa e

adequada não só à compreensão da instituição mas à sua relevância e importância

republicanas.

Miguel Seabra Fagundes, em conferência pronunciada em 12 de novembro

de 1975, resume o pensamento de Ruy Barbosa à seguinte frase:

“Tribunal é, mas Tribunal sui generis”.136

O autor divisa dois problemas na proposta de Ruy Barbosa.

Embora a Corte de Contas instituída no artigo primeiro do Decreto 966-A

não tenha sido instalada, logo, não entrou em funcionamento efetivo, o dispositivo

(primeiro dispositivo republicano sobre o Tribunal de Contas não prevê a sua

instituição pelos Estados-membros, os quais iriam ser previstos na Carta republicana

vindoura).

Assim, o Tribunal constitucionalizado, cuja semente modeladora é o do

Decreto, nasce como órgão central e centralizado, atributo exclusivo do governo

provisório, como se fosse uma continuidade do poder centralizador do regime

imperial recentemente deposto.

O ideário republicano incluía a repartição do poder entre os Estados-

membros federados. Seria não apenas um atributo republicano, mas democrático.

136

FAGUNDES, Miguel Seabra. Discurso de abertura. In: VII CONGRESSO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL. João Pessoa, 1976. Anais, v. II, p. 393 et seq. Os anais estão arquivados nas bibliotecas do Tribunal de Contas da União, em Brasília, e na Casa de Ruy Barbosa, na cidade do Rio de Janeiro.

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132

Ao olvidá-lo, a Carta futura também nasceria sem essa previsão

constitucional.

A federação é a repartição de competências, tanto quanto possível, de forma

simétrica.

A ausência de previsão de controle orçamentário e contábil, a prestação de

contas e o julgamento não seriam exercidos, segundo Ruy Barbosa, e a Carta não

assim o determinará, nos limites dos governos próprios das futuras unidades

federativas. O controle será deficiente.

Outro aspecto a ressaltar é que Ruy Barbosa, influenciado pela proposta de

Alves Branco, para a qual tece elogios e a transcreve (na Exposição de Motivos ao

Decreto 966-A), propõe um Tribunal de Contas limitado à peça orçamentária,

receitas e despesas públicas, sob a ótica mecanicista da contabilidade pública,

como instrumento de fidedignidade.

Essa distorção quanto ao Tribunal de Contas, decorrente igualmente do

modelo napoleônico, excessivamente contábil e instrumento de registros, tolhe o

sentido histórico pelo qual hebreus, gregos e romanos, assim como as civilizações

posteriores, reclamaram: o limite do poder dos governantes.

A Declaração de 1789, nesse sentido, lapidada um século anterior, é mais

avançada nos seus valores: o controle inclui a verificação da necessidade dos

tributos, sua base de cálculo, suas alíquotas, seu universo contributivo e, por fim, a

consequente prestação de contas.

O excessivo objeto contábil iria criar uma cultura (jurídica e judicial, inclusive)

de deturpação da importância institucional do Tribunal de Contas.

Ele passaria a ser confundido com um órgão “de contas”, assim entendida a

contabilidade; quando em realidade é um órgão de controle da responsabilidade dos

governantes em relação à administração financeira.

Ficaria a mácula, difícil de ser apagada, de que esse Tribunal teria sido

criado para fiscalizar números ou valores, sem valorar o conjunto do mandamento

constitucional, e sem se aperceber corretamente da sua função político-popular de

limitação do poder governamental, ideário ao qual aderiu o movimento republicano

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133

brasileiro, não concretizado plenamente, entretanto, na nascente república

brasileira.

Positivamente, das normas propostas por Ruy Barbosa, a importância

resulta na adoção do controle sobre as contas dos governantes.

O governo provisório, logo após a Proclamação da República, designa uma

comissão, mediante Decreto nº 29, de 3 de dezembro de 1889, para elaborar um

projeto de Constituição federal que deveria ser submetido à apreciação da

Assembleia Nacional Constituinte.

A comissão não previu a inclusão de um Tribunal de Contas na sua proposta

destinada ao Chefe do Governo Provisório.

Ruy Barbosa, incumbido de revisar o projeto, procedeu diferentemente.

Uma incompreensível atitude praticada por quem, minuciosa e

candentemente, demonstrara empenho na criação da corte de contas na Exposição

de Motivos ao Decreto 966-A, certamente com mais conhecimento sobre a matéria

do que os membros da comissão incumbida do projeto de carta constitucional e que

encerra seus trabalhos em 18 de junho de 1890.

No apoio ao corpo legislativo é criada uma comissão de vinte e um

membros, para ordenar os trabalhos e a matéria a ser votada.

Essa comissão é que irá propor uma emenda aditiva introduzindo a

instituição de um Tribunal de Contas na Carta Republicana.

O texto da emenda corresponde ao futuro artigo 89 da Constituição137.

Anotado por Alfredo Cecílio Lopes. que expõe minuciosamente a gênese

jurídica do novo texto constitucional138.

O texto constitucional de 1891 assim dispõe:

137

O artigo 89 da primeira Carta republicana adota a emenda aditiva da comissão ordenadora dos trabalhos constituintes.

138 LOPES, Alfredo Cecílio. Ensaio sobre o Tribunal de Contas. São Paulo: s. ed., 1947. p. 221 et seq. Alfredo Cecílio Lopes examina mais expressivamente a regulamentação desta Corte de Contas inaugurada pela República. O texto constitucional é tratado de forma mais sucinta. São importantes as anotações sobre a criação do Tribunal de Contas, como o conjunto dessa obra, pela riqueza de detalhes e dados políticos e jurídicos.

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134

Art. 89. É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso.

Os membros deste Tribunal serão nomeados pelo Presidente da Republica, com aprovação do Senado, e sómente perderão seus logares por sentença.

139

Trata-se de um dos derradeiros dispositivos constitucionais. O artigo 90,

seguinte, trata das hipóteses de revisão da Carta, e o artigo 91, final, determina que,

uma vez aprovada, a Carta será promulgada pela Mesa do Congresso. Seguem-se

os dispositivos relativos à matéria transitória.

Como se observa, a instituição do Tribunal de Contas está inserida ao final

da Carta, logo após dispositivos que tratam de recepção das normas do regime

anterior.

Como o Decreto 966-A estivesse em vigor, apenas com base nele o governo

provisório não instalou e por isso não propiciou o funcionamento da Corte de

Contas, faltando-lhe a regulamentação necessária que Ruy Barbosa não apreciou,

porque deixou o cargo de Ministro da Fazenda antes de fazê-lo, assim como seu

sucessor extingue a comissão responsável pela elaboração das normas

regulamentares, é de se refletir se o Tribunal de Contas já não estaria criado antes

da Carta de 1891140.

Isso se resolve face à superveniência de norma de ordem constitucional,

tratando da mesma matéria. Prevalece, como prevaleceu, o artigo 89 da nova carta.

A autoria da Corte de Contas ainda é de Ruy Barbosa?

Ruy Barbosa teve atritos com a comissão elaboradora da Carta de 1891.

139

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. p. 425. Manteve-se na transcrição do artigo 89 a grafia utilizada em 1934. Ao comentar a Carta de 1889, em esparsos artigos e ensaios, Ruy Barbosa não produziu um livro. Coligidos e ordenados os comentários de Ruy Barbosa, Homero Pires produziu um livro, igualmente pleno de anotações.

140 O Decreto nº 966-A cria o Tribunal de Contas, o primeiro do Brasil. Mas não se efetiva a sua instalação e ele não entra em funcionamento efetivo. O funcionamento do Tribunal de Contas somente ocorrerá após a Carta Republicana, previsto em seu artigo 83. A reflexão cabível é de que, juridicamente, a Carta apenas mantém o Tribunal, não o cria. O Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul foi criado pelo Decreto nº 5975, de 26 de junho de 1935, autografado pelo Governador General José Antonio Flores da Cunha, interventor no Estado. A cópia autêntica do documento está anexada; o original encontra-se arquivado no Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul.

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135

Quanto ao Tribunal de Contas, sua Exposição de Motivos ao Decreto 966-A,

muito especialmente quando aborda a ilíquida situação financeira e orçamentária,

desorganizada e descontrolada, serviu de inspiração aos constituintes. Como se

observou, entretanto, embora contando com a confiança do Chefe do Governo

Provisório, com ele autografou o Decreto que não se efetivou, e cuja Exposição é

dirigida a Deodoro de Fonseca, ao qual denomina de Marechalíssimo, Ruy Barbosa

não influi diretamente na redação do artigo 89. Ela será fruto de revisão antes do

encaminhamento ao Legislativo.

Ruy Barbosa, nos seus Comentários à Constituição Federal brasileira, antes

de apreciar o texto do artigo 89, por obra do trabalho de coligir e ordenar, Homero

Pires, registra as longas passagens da Exposição de Motivos ao Decreto 966-A,

como subsídio à compreensão do texto constitucional, saúda efusivamente, como

conquista democrática e republicana, a consignação da instituição do Tribunal de

Contas.

Após comentários preambulares ancorados na Exposição, Ruy Barbosa

qualifica o Tribunal de Contas como meio de proteção da ordem jurídica.

Inaugura um subtítulo denominado de Funcções do Tribunal de Contas, nas

quais a corte de contas exerce uma proteção contra abusos do poder na

administração e na legislatura.

Define, inicialmente, esse sistema protetor como meios judiciários sem

interferência funcional aos demais poderes do Estado. Distingue Ruy Barbosa com

brilhantismo o poder judiciário incluído nos artigos 50 a 60 da nova Constituição141,

para só então adentrar nas competências do Tribunal de Contas.

Comenta Ruy Barbosa:

Instituiu a nossa Constituição um systema protector da ordem jurídica contra os abusos do poder na administração e na legislatura, systema pelo qual se

141

O comentário de Ruy Barbosa conjuga as atribuições do Poder Judiciário na primeira Carta republicana com aquelas estipuladas para o Tribunal de Contas, estabelecendo um paralelo. Não iguala Ruy Barbosa as atribuições do Poder Judiciário e as do Tribunal de Contas; mas as identifica pela similaridade que a Carta fixa a eles: as funções de julgamento. Distingue no entanto, as duas espécies de tribunal. O Tribunal de Contas é um tribunal diferenciado, ou “sui generis”.

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136

defendem os actos do Poder Legislativo contra os do Executivo e as disposições da Constituição contra as leis que as transgridem.

[...]

Se à justiça cumpre restabelecer essa legalidade, é porque a Constituição, em textos categóricos, lhe assegura essa competência definindo precisamente a jurisdição em que ella se encerra.

[...]

O Tribunal de Contas, também tem criação constitucional, mas lugar distincto dos órgãos que compõem o Poder Judiciario.

[...]

Não se inclue, pois, o Tribunal de Contas na enumeração constitucional dos órgãos do Poder Judiciario.

Tribunal é, mas Tribunal sui generis, que a Constituição não submete ao organismo do Poder Judiciario, antes o remove dali para um lugar distincto, entre as Disposições Geraes [...].

142

Acresce Ruy Barbosa, esmiuçadamente, as funções regulamentadas

daquelas previstas na Constituição de 1891 para o Tribunal de Contas; refere, em

particular, os decretos mais recentes (à época): Decretos de 23 de outubro de 1918,

de 12 de novembro de 1919 e de 1º de novembro de 1922. Pretende, então,

estabelecer o locus constitucional do Tribunal de Contas, a partir dessas regras:

Estas regras traçam com precisão matemática as funções do Tribunal de Contas [...].

Se o Tribunal de Contas reveste dois caracteres distinctos, um fiscal da administração financeira, outro de Tribunal de Justiça. Se a legislação relativa a ambos é a que consta desse decreto, se elle a reúne toda, – porque será que declarando susceptíveis de recursos os actos dessa autoridade como Tribunal de Justiça, e miudeando esses recursos, não aponte nenhum meio de revisão ou reforma cabível aos actos da mesma autoridade, quando funcciona como fiscal da administração financeira, nem diz, ou insinua que taes actos sejam reformáveis ou revisiveis?

Por que, em vez disso, se limita a declarar que o registro sob protesto será levado ao conhecimento das duas mesas do Congresso Nacional?

Não póde ser senão porque quando esse órgão de verificação financeira obra na qualidade de Tribunal, as suas sentenças são subordinadas como todas as sentenças judiciaes a esses meios de reparação, e quanto actúa como fiscal da administração financeira, a saber, como emanação do parlamento, os seus actos estão sujeitos apenas ao Congresso, e, ipso-

142

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. p. 448-456. Foi observada a grafia original na transcrição do trecho acima.

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137

facto se tornam definitivos com o acto do Congresso, que contrastear e aceitar.

143

Ressalta Ruy Barbosa que esse era o objetivo (jurídico e político) do

Governo Provisório ao autografar o Decreto 966-A, como medida de força

regeneradora da nascente república.

Com a Carta, a Ruy Barbosa se atribui a gênese jurídica do Tribunal de

Contas, ainda que sua labuta tenha ocorrido entre a Proclamação da República,

amparado no projeto de Alves Branco, e a promulgação da nova Carta Republicana.

Atribui, entretanto, o primeiro Ministro da Fazenda republicano ao Governo

Provisório a iniciativa exitosa, embora o malfadado Decreto 966-A, afinal

substanciado no artigo 89 da Constituição.

Para Ruy Barbosa, a criação de um Tribunal de Contas tinha dois objetivos

principais: garantir a soberania da lei das leis (a lei de orçamento) e o sistema de

contabilidade pública, devidamente reorganizado.

O Tribunal de Contas seria o instrumento revisional e de julgamento dessas

duas atividades governamentais.

Entretanto, não estaria em nenhum poder, mas intermediário (“de permeio”)

entre a administração e a legislatura (Poderes Executivo e Legislativo), como um

corpo de magistratura cercado de garantias.

Note-se ainda a leitura que Ruy Barbosa faz da Declaração de 1789 da

Revolução Francesa.

O orçamento destina-se a prover as necessidades públicas, ao mesmo

tempo respeitando o menor sacrifício dos contribuintes.

Um duplo valor – como previram os revolucionários de 1789. Um limite ao

poder monárquico e transplantado para o regime republicano, como instrumento

limitador face aos direitos dos homens e dos cidadãos.

143

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. p. 448-456. Foi observada a grafia original na transcrição do trecho acima.

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138

Pontes de Miranda, posteriormente, ao comentar a Constituição de 1946, na

sua remissão, além de acentuar que a primeira lei organizacional da Corte de

Contas é o diploma sob nº 23, de 30 de outubro de 1891, regulamentada pelo

Decreto nº 1.166, de 17 de dezembro de 1892, assim afirma a respeito do artigo 89

da Carta de 1891:

O Tribunal de Contas, segundo a Constituição de 1891, liquidava as contas da receita e despesa, e verificava-lhes a legitimidade, antes de serem prestadas ao Congresso Nacional.

Tratava-se, pois, de auxiliar do Congresso Nacional, que, em nome do legislador e por conta dele, procedia.

Órgão de fiscalização do Poder Executivo, – e não órgão do Poder Executivo.

Órgão de cooperação ou de auxílio, sim, porém não do Poder Executivo, – do Poder Legislativo.

144

Pontes de Miranda não se define sobre a natureza do Tribunal de Contas

como órgão auxiliar ou órgão de colaboração. Em 1946, a discussão pendia, e assim

perdurará até a Carta de 1988, quando ao Tribunal de Contas foi atribuída

autonomia administrativa e financeira.

A incerteza manifestada por Pontes de Miranda decorria de equívocos,

porque na Carta de 1946 o Tribunal de Contas está em locus diferente da Carta de

1891. Na Constituição de 1934, os Comentários de Pontes de Miranda são também

incertos: seria órgão do poder legislativo e ao mesmo tempo órgão auxiliar do poder

judiciário, em ambos os casos, identicamente sui generis.

Confunde Pontes de Miranda: a Carta de 1934145, no artigo 99, mantém o

Tribunal de Contas, ainda que lhe acrescente novas atribuições.

Essas, as atribuições de julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e

bens públicos.

144

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 1953. p. 336. O nome de Pontes de Miranda, em outras obras consta grafado completo. Respeitou-se a grafia nominada na folha de rosto desta edição da editora Max Limonad.

145 A Carta de 1934, cujo corpo constituinte teve voto feminino pela primeira vez no País, continha avanços sociais e influência da Carta de Weimar. Teve duração revogada pela declaração do Estado Novo em 10 de novembro de 1937.

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139

Nelas, Pontes de Miranda afirma que se acentuou o elemento judiciário que

ela já tinha, inclusive de composição e garantias dos seus membros.

Os comentários de Pontes de Miranda refletem a dicotomia conceitual sobre

a natureza do Tribunal de Contas, acentuada entre a Carta de 1946 até a Carta de

1988.

3.5 O TRIBUNAL DE CONTAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1934

A Carta Federal de 1934 foi votada durante a Revolução de 1930146.

Nessa Constituição, o Tribunal de Contas, no artigo 99, foi apenas

declarado, laconicamente, como “mantido”.

O texto estabeleceu suas competências, acrescentando-lhe a competência

para “julgar as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos”.

Essa é a definição financeira de alcance dos depositários de dinheiros ou

bens públicos, sem nenhuma restrição.

Pontes de Miranda acresce à expressão “alcance” a definição de “culpa”.

A expressão “culpa”, posteriormente nos julgamentos procedidos

notadamente a partir de 1946 (quando o Brasil é redemocratizado), já não tem mais

nenhum sentido.

O julgamento procedido pelo Tribunal de Contas, assim como em suas

demais funções, não considera o elemento culpa ou dolo; a responsabilidade é

considerada objetiva.

O acréscimo denota um elemento de assimilação com o poder judiciário,

uma qualidade majorada às garantias e qualificações dos membros da Corte de

Contas, desde 1891, como já se registrou acima.

146

A Carta de 1934 teve efêmera duração. Em 1937 é revogada por um golpe chefiado por Getúlio Dornelles Vargas, que havia conduzido o movimento de 1930. A Carta de 1937 é autoritária e não permite o exercício das competências dos Tribunais de Contas; sobre ela se abordará mais adiante.

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140

A despeito, o Tribunal de Contas, no capítulo VI desta Carta (1934), é

catalogado como órgão de cooperação nas atividades governamentais.

Pontes de Miranda demonstra uma certa perplexidade, afirmando que o

legislador teria errado na qualificação jurídico-constitucional (inclusive quanto ao

Ministério Público e Conselhos Técnicos).

Decorridos mais cerca de 70 anos da Carta de 1946, a compreensão

contemporânea não causa mais perplexidade alguma. Todos os poderes e as

instituições de Estado devem-se cooperação independente e harmônica.

Ao afirmar a Carta de 1934 o Tribunal de Contas como órgão de cooperação

nas atividades governamentais encontra, atualmente, um novo conceito destas

atividades.

Governo não é apenas o poder executivo: todos os poderes, mais o Tribunal

de Contas e o Ministério Público, são governos, porque governam o Estado e a

sociedade, com suas áreas separadas de competências.

No entanto, Pontes de Miranda atribui, contudo, pertencimento do Tribunal

de Contas ao Poder Judiciário, em caráter especial, como função, mas não como

órgão.

O ponto de vista de Pontes de Miranda está colacionado nos seguintes

trechos:

A que poder pertencia o Tribunal de Contas de 1934?

[...]

Era órgão do Poder Judiciário?

A composição dele era, não havia dúvida, a de órgão do Poder Judiciário (art. 100 e parágrafo único).

Não estava, porém, compreendido na expressão “tribunais federais” do art. 81, se bem que o estivesse na expressão “tribunais federais” dos artigos 70, parágrafos 1º e 2º e 76m 1, f.

[...]

Era órgão do Poder Judiciário, sui generis, órgão também, sui generis, do Poder Legislativo. Criação posterior à teoria da separação dos poderes e fruto da prática, destoava das linhas rígidas da tripartição.

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141

[...]

O Tribunal de Contas é instituição de 1891, de 1934, de 1937 e de 1946.

Cumpre, porém, atendermos a que instituição que se mantém, se mantém conforme a estrutura que lhe dão o todo da Constituição e as novas atribuições que lhe são conferidas.

[...] foi a Constituição de 1934 que lhe deu corpo de julgamento o que a leis ordinárias não podiam fazer. O Decreto nº 391, de 8 de outubro de 1896, art. 2º, parágrafo 1º, 2, entendia haver de funcionar o Tribunal de Contas como “Tribunal de Justiça com jurisdição contenciosa e graciosa”.

[...]

Hoje, e desde 1934, a função de julgar as contas está, claríssima, no texto constitucional.

Não havemos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue, e outro juiz as rejulgue depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem.

[...]

Uma vez que, constitucionalmente, é o Tribunal de Contas que julga as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, e os juízes comuns, ou militares, são os competentes para processo e julgamento dos crimes cometidos, em prejuízos de serviços ou interesses da União, por esses responsáveis, podendo também a lei ordinária atribuir-lhes a execução das decisões tomadas pelos Tribunais de Contas, temos:

a) a separação entre o julgamento e o julgamento dos crimes é de ordem constitucional. À lei ordinária não é dado permitir aos juízes comuns julgar as contas, nem ao Tribunal de Contas julgar os crimes. As duas jurisdições suscitam problemas, que adiante serão versados, no tocante à prejudicialidade das decisões do Tribunal de Contas.

b) A separação entre o julgamento das contas e a execução das decisões respectivas é de direito administrativo. O legislador ordinário tem poder para atribuir ao Tribunal de Contas a execução das suas próprias decisões, como para a deixar aos juízes comuns.

[...]

As questões decididas pelo Tribunal de Contas, no julgamento das contas dos responsáveis pelos dinheiros ou bens públicos, não são simples questões prévias; são questões prejudiciais, constituem o prius lógico-jurídico de um crime, ou, pelo menos, de circunstância material desse.

É elemento indispensável à repressão do crime de peculato, por parte do juiz comum, o julgamento das contas dos responsáveis, e esse julgamento somente pode ser feito pelo Tribunal de Contas.

147

147

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 1953. v. II. p. 337-340, 343-344. Como já averbado acima, mantém a grafia do nome de Pontes de Miranda como consta na folha de rosto do livro referido. Pontes de Miranda atinge, depois de tortuosos caminhos em que se auto indaga sobre a natureza do Tribunal de Contas, a uma das definições que servirão, plenamente, ao regime constitucional de 1988: os julgamentos de contas efetivados pelo Tribunal de Contas não são questões prévias perante o Poder Judiciário: são prejudiciais. Também merece destaque, porque em 1953 (ano da edição da obra), ainda é notável a distinção entre julgamento judicial e julgamento de contas – ambos com assento constitucional.

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142

As lições de Pontes de Miranda são válidas – e utilizadas pelo autor quando

visa distinguir as competências entre o poder judiciário e o Tribunal de Contas.

Elas não são paralelas, nem sucessivas.

Quando o Tribunal de Contas julga as contas dos responsáveis, exerce

função predicativa: “julgar”, a mesma que é atribuída aos órgãos do poder judiciário,

e, por derradeiro, ao Poder Legislativo, quando julga as contas do Presidente da

República e demais chefes de poderes executivos, com base no parecer prévio

emitido pelo Tribunal de Contas.

Pontes de Miranda distinguiu com cristalina clareza aquilo que Ruy Barbosa

preconizava.

É, como se verá adiante, uma conjugação constitucional de competências,

não conflitantes nem excludentes.

Essa conjugação, anote-se, não exclui dos órgãos do poder judiciário

matéria específica aflorada no exercício das competências do Tribunal de Contas.

3.6 A CARTA AUTORITÁRIA DE 1937, TRIBUNAL DE CONTAS E A SUSPENSÃO

DE SUAS ATIVIDADES

Na Carta de 1937, o Tribunal de Contas, criado no Brasil pela Constituição

republicana de 1891 e mantido pela Constituição de 1934, foi declarado mantido,

conforme se verifica no artigo 114:

Art. 114. Para acompanhar, diretamente ou por delegações organizadas de acordo com a lei, a execução orçamentária, julgar as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e da legalidade dos contratos celebrados pela União, é instituído um Tribunal de Contas, cujos membros serão nomeados pelo Presidente da República, com a aprovação do Conselho Federal.

Aos Ministros do Tribunal de Contas são asseguradas as mesmas garantias que aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

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143

Parágrafo único. A organização do Tribunal de Contas será regulada em lei.

148

O texto da Carta de 1937, com a inovação permissiva da fiscalização direta

ou por delegações, entretanto, atribui, ao Tribunal de Contas, como na Carta de

1934: função judiciária; julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros e

demais bens públicos, com a exclusão da hipótese de rejulgamento, o que implicaria

no absurdo bis in idem; essa jurisdição cresce de importância no texto constitucional;

e mantida a prejudicialidade observada acima por Pontes de Miranda.

Quanto à prejudicialidade, anota Pontes de Miranda, invocando voto de

Emundo Lins:

Edmundo Lins, mais afeito ao estudo de questões ligadas ao direito constitucional e ao direito administrativo do Estado de Minas Gerais, trazia a experiência das questões prejudiciais e como que advinhava a única solução possível sob as Constituições de 1934, 1937 e 1946.

Dizia ele em voto vencido: “O que é certo, o que é incontestável, ante o rigor da lógica, é que, atentos os textos legais supra-transcritos, antes da decisão

148

LOPES, Alfredo Cecílio. Ensaio sobre o Tribunal de Contas. São Paulo: s. ed., 1947. p. 253 et seq. A previsão de lei ordinária consignada no parágrafo primeiro do artigo 114 será mediante decreto lei, sob nº 426, ao inteiro critério do Presidente da República, com força de lei (essa espécie (decretos-leis voltaria a ser utilizada no regime totalitário de 1º de abril de 1964 no Brasil). A Carta de 1937 inicia um período totalitário no Brasil. Ela é outorgada pelo denominado chefe da nação Getúlio Dornelles Vargas, promulgada em 10 de novembro de 1937. A nascente democracia no Brasil é rompida, assim como a república federativa, extintos os governos dos Estados-membros (queimadas as suas bandeiras no estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, em ato público). A instituição de um Tribunal de Contas, com o sistema de fiscalização direta ou por delegações, recém previstos, em seguida será tornada inócua, embora não extintos, deixam de efetivar suas funções. É o defenestramento político e jurídico (um recesso ditatorial) do Tribunal de Contas federal e. dos demais – estaduais e municipais. O episódio do recesso ditatorial foi narrado ao autor por Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, cujo parente por ascendência era, à época, ministro do Tribunal de Contas. Por voto do Ministro Thompson Flores, do Tribunal de Contas, a Corte de Contas rejeitou a prestação de contas de Getúlio Dornelles Vargas, Presidente da República, e relativas ao exercício fiscal de 1936. A votação ocorreu na sessão do Pleno da Corte em 26 de abril de 1937. Informado o Presidente, decidiu pela disponibilidade do Ministro (que era gaúcho como o Presidente da República), o qual não mais retornou à Corte, vindo a ser aposentado em 30 de outubro de 1950. Decretado o golpe, outorgada a Carta de 1937, o Tribunal de Contas teve cessadas as suas atividades. Somente em 1946, com a redemocratização do país e uma nova Constituição, o Tribunal foi reinstalado, assim como as cortes de contas estaduais e municipais. Sob o patrocínio do autor, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Desembargador Federal da 4ª Região, proferiu conferência, esmiuçando o episódio na Escola Superior de Gestão e Controle Francisco Juruena, do Tribunal de Contas do Estado (RS), em 26 de outubro. LENZ, Carlos Eduardo Thompson Flores. O Tribunal de Contas e o poder judiciário. Revista do Tribunal de Contas (RS), Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 351-373, 1º sem 2005. Na edição da Revista aqui referida consta o texto completo sobre o episódio narrado na conferência de Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.

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144

do Tribunal de Contas, o juízo criminal não pode absolver, como não pode condenar o réu”.

É consequentemente obrigado a sobre estar no processo até que o dito Tribunal de Contas profira a sua decisão, julgando o responsável em débito com a Fazenda Nacional.

Aliás, tal doutrina era a dos acórdãos n. 83, de 31 de outubro de 1900, e 5.388, de 17 de outubro de 1919, do Supremo Tribunal Federal, que declarara:

“Considerando que enquanto o Tribunal de Contas não profere o seu julgamento, não é possível afirmar-se que o responsável tenha realmente em seu poder saldo pertencente à Fazenda Nacional....”

Também o Ministro Guimarães Natal, no habeas corpus n. 9381, de que fora Relator, claramente decidia (30 de julho de 1923):

“A autoridade competente para declarar, ou não funcionário público alcançado é o Tribunal de Contas, não podendo o Judiciário contrariar a declaração do mesmo Tribunal, pela qual um funcionário é isentado de um suposto alcance, a fim de afirmar a existência de um crime”.

149

Essas observações seriam plenamente aproveitáveis, não fosse a realidade

política decorrente da Carta de 1937: ter deixado ao inteiro critério do chefe do

movimento golpista, designado de Chefe da Nação, em novembro de 1937,

mediante lei, constante de um decreto-lei (em realidade um ato autoritário) a função

de organizar o novo Tribunal de Contas de 1937.

O Decreto-lei nº 426 se afeiçoa ao regime totalitário. Ele emascula o órgão

fiscalizador, cuja duração será efêmera.

Da conquista republicana de 1891 e da conquista democrática de 1934

ocorre um retrocesso, cuja consequência final será o definhamento do Tribunal de

Contas.

Malsinado Decreto-lei destoa até mesmo do espírito da Constituição, ao

restringir, por regulamento, as funções de fiscalização.

Vedada a apreciação final da prestação de contas pelo Poder Legislativo,

substituído por conselho corporativo aos moldes da Itália fascista de Benito

Mussolini (também a futura Consolidação das Leis do Trabalho e a organização

sindical serão inspirados na Carta del Lavoro italiana).

149

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 1953. v. III. p. 345.

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145

Na sua curta existência, o Tribunal de Contas é um órgão submetido ao

Chefe da Nação, do qual a Carta de 1937 não exige prestação de contas ao Tribunal

para parecer prévio, nem sua submissão ao Poder Legislativo.

Esse era exatamente o espírito da Carta redigida por Francisco Campos,

sob comando totalitário: restringir ou vedar qualquer fiscalização, qualquer crítica,

criar qualquer obstáculo ao Chefe da Nação.

Ao tempo em que não há democracia nem república, o Tribunal de Contas

não tem razão de existência.

Seria apenas um órgão de ornamento a dar pretensa legitimidade a governo

e sua Carta ilegítimos.

O clima de ditadura e dos governos de fato não se coaduna com a existência

legítima de um Tribunal de Contas.

3.7 A REDEMOCRATIZAÇÃO E O TRIBUNAL DE CONTAS RESTABELECIDO NA

CARTA DE 1946

A Constituição de 18 de setembro de 1946 reflete o movimento político de

redemocratização da sociedade brasileira, após a vigência totalitária do Estado

Novo, instaurado em 1937.

Em dezembro de 1945, o ditador é obrigado a abandonar o poder que vinha

sendo exercido desde 1930150.

150

A participação do Brasil na IIª Guerra Mundial, onde combateu o nazi-fascismo, com o qual o chefe de governo e vários de seus ministros mantiveram relações diplomáticas, amigáveis e comerciais, inclusive em nível pessoal e familiar, tornou insustentável um regime antidemocrático de um país que combatera pela democracia. O governo é assumido pelo Ministro José Linhares, Presidente do Supremo Tribunal Federal, que o transmitirá ao presidente eleito em pleito democrático. A eleição decorria de uma crise política, resultando na Lei Constitucional nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, firmada antes da deposição do governo. A assembleia constituinte é instalada no dia 2 de fevereiro de 1946. Sua Constituição é democrática e republicana. Em comparação à Carta que instituiu o regime de 1937, é radicalmente democrática. O voto é universal, secreto, direto e o pleito é presidido pelo Poder Judiciário.

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146

A Carta, ao contrário de 1891 e 1934, não foi elaborada tendo como

instrumento um projeto previamente elaborado, para discussão e deliberação: ela é

resultado dos membros do corpo legislativo constitucional.

Apresenta inegáveis avanços, como as limitações ao Poder Executivo,

refreamento à tributação, adoção de política municipalista, normas sobre os campos

da economia e social, declaração de direitos e garantias individuais e a recriação do

Tribunal de Contas.

Seu mérito foi servir de instrumento adequado à redemocratização.

Mas, ainda assim, sua filosofia política estava impregnada das cartas

passadas e do estamento social dominante no Brasil.

Segundo José Afonso da Silva:

Voltou-se, assim, às fontes formais do passado, que sempre estiveram conformes com a história real, o que constituiu o maior daquela Carta Magna, que nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente os regimes anteriores, que provaram mal.

Talvez isso explique o fato de não conseguido realizar-se plenamente.

Mas, assim mesmo, não deixou de cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o desenvolvimento do país durante vinte anos que o regeu.

151

A observação é pertinente quanto ao quadro geral constitucional. A Carta

não resolve problemas graves. Mantém os analfabetos e militares de pré-excluídos

do sistema eleitoral.

Também não soluciona o problema do campo, com a possibilidade jurídico-

econômica de realizar a reforma agrária.

São máculas resultantes da composição do corpo da assembleia

constituinte, reflexo do elitismo e do coronelismo.

151

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 4. ed. rev. e atual. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 43.

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147

Insuspeitamente, Aliomar Baleeiro comprova:

A Constituinte de 1946 – se for objeto de estudos quanto à composição social e profissional de seus membros, a exemplo da aguda investigação de Charles Beard sobre a Convenção de Filadélfia – revelará que congregava maciçamente titulares de propriedades.

Mais de 90% dos constituintes eram pessoalmente proprietários, ou vinculados por seus parentes próximos – pais e sogros – à propriedade sobretudo a imobiliária. Compreende-se que deste corpo coletivo jamais poderia brotar texto oposto à propriedade.

152

Em relação ao Tribunal de Contas, a Carta de 1946 é plenamente

restauradora do sistema de controle da administração.

Nos trabalhos constituintes, efetivados a partir de uma comissão formada

pelos representantes eleitos, composta de 37 membros e várias subcomissões, a

restauração do Tribunal de Contas foi antecedida de acalorados debates.

Silvestre Péricles, ministro do Tribunal de Contas e deputado por Alagoas,

defendia a tese da inserção da corte no âmbito do poder judiciário.

O deputado Mário Masagão, por seu lado, defendia a tese contrária:

O Tribunal de Contas é um preposto do Poder Legislativo e não órgão do Judiciário.

Compete ao Poder Legislativo tomar as contas da execução orçamentária, como consequência do poder que tem de elaborar as leis de meios.

Como é difícil a esse Poder, em face da natureza de seus órgãos, exercer vigilância contínua dos atos do Poder Executivo, no respeitante à aplicação da lei de meios, na maior parte dos países civilizados, ele criou um preposto – o Tribunal de Contas.

A fiscalização orçamentária nada tem de judiciária. É exercida em nome do Poder Judiciário, comunicando-lhe as irregularidades encontradas. Só o Poder Legislativo dá a última palavra.

[...]

152

BALEEIRO, Aliomar. Limitações ao poder de tributar. 2. ed. Rio de Jairo: Forense. 1960. p. 238. Aliomar Baleeiro, um dos consagrados mestres das ciências das finanças no Brasil, assim como do direito tributário, é insuspeito. Foi constituinte em 1946 e eleito pelo partido União Democrática Nacional, que reunia o pensamento liberal de direita no país. Sua ação política (vulgarmente chamada de “banda de música”) posteriormente propugnou pela deposição de dois presidentes da república (Getúlio Dornelles Vargas e João Belchior Marques Goulart).

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148

A Constituição que elaboramos deve criar um Tribunal de Contas com suas funções específicas e técnicas de preposto do Poder Legislativo, e eliminar as funções, a ele atribuídas indebitamente pelas leis ordinárias, e encampadas pela Constituição de 1934 [...].

153

O discurso do deputado constituinte Mário Masagão propondo a inserção de

um órgão técnico, voltado ao controle da execução orçamentária, como preposto do

poder legislativo, diametralmente oposta à posição de Silvestre Péricles. A

experiência e autoridade de Silvestre Péricles não foram suficientes para impedir a

aprovação da proposta contrária.

Péricles argumentava que, nas Cartas de 1934 e 1937, a corte de contas

fora situada logo após os dispositivos relativos ao poder judiciário; que possuía

funções judicantes e seria essa a oportunidade constitucional de incluí-lo dentre a

relação dos órgãos judicantes.

Não vingou a inserção do Tribunal de Contas entre os tribunais judiciais.

A Carta de 1946 resultou com os seguintes dispositivos para o Tribunal de

Contas: no artigo 76, define-se a sede (Distrito Federal e jurisdição em todo o

território nacional). No parágrafo único, seus Ministros serão nomeados pelo

Presidente da República, após aprovação pelo Senado da República e serão

equiparados, em direitos e garantias, prerrogativas e vencimentos, aos Juízes do

Tribunal Federal de Recursos (extinto pela Carta de 1988154).

O artigo 77 e seus incisos e parágrafos definem minuciosamente as suas

competências e são praticamente idênticos aos da Carta de 1934.

Merece destaque, contudo, o parágrafo segundo do artigo 76, o qual

determina que o Tribunal de Contas exercerá, no que lhe diz respeito, as atribuições

constantes do art. 97 e terá quadro próprio para o seu pessoal.

O artigo 97 da Carta de 1946 atribui aos tribunais (judiciais) eleger seus

presidentes e demais órgãos de direção, elaborar seus regimentos internos,

153

MASAGÃO apud LOPES, Alfredo Cecílio. Ensaio sobre o Tribunal de Contas. São Paulo: s. ed., 1947. p. 265-266.

154 O Tribunal Federal de Recursos era uma corte que se ganhara prestígio por suas decisões técnicas, especialmente na área tributária. Com sua extinção, sucede-lhe o Tribunal Superior de Justiça.

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149

organizar seus serviços, prover cargos e propor ao Poder Legislativo a criação ou

extinção de cargos e fixação dos respectivos vencimentos; e conceder férias e

licenças aos seus membros, juízes e serventuários subordinados.

A Carta de 1946 assimilou e assemelhou (expressão do autor) o Tribunal de

Contas aos tribunais judiciais. Assimilou porque a remissão operada ao artigo 97

não tem significado político relevante. Ele, Tribunal de Contas, está assimilado pelas

normas imperativas de independência e autonomia que garantem o funcionamento

republicano e democrático dos tribunais judiciais. Aquele, Tribunal de Contas, não

está incluído dentre os tribunais judiciais, topicamente, não é o seu locus

constitucional.

Mas assimilação por remissão não deixa mais dúvidas.

Afinal, por uma via muito específica, Mário Masagão foi vencido

indiretamente.

Quanto às funções, o parágrafo quarto do artigo 77 atribui ao Tribunal de

Contas a emissão de parecer prévio sobre as Contas que o Presidente da República

deverá prestar anualmente ao Congresso Nacional.

Restitui-se a competência de 1934.

Igual providência foi determinada pelos constituintes, ao também atribuir ao

Tribunal de Contas o julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros e bens

públicos, e as dos administradores das entidades autárquicas (art. 77, II) e julgar a

legalidade dos contratos e das aposentadorias, das reformas e das pensões (art. 77,

III).

Considera o autor relevante para o sistema político-jurídico brasileiro a

restauração plena da instituição Tribunal de Contas, consagrada pela Carta de 18 de

setembro de 1946155.

Pontes de Miranda, analisando esses dispositivos de 1946, cujos

comentários são semelhantes ao da Constituição de 1934, como acima se observou,

155

Para o autor, a Carta de 1946 é o reencontro do povo brasileiro com a democracia. Em relação ao Tribunal de Contas, a Carta de 1946 o reinstitui.

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150

ao qual se remete, para evitar repetição, assevera a natureza prejudicial, e não

apenas prévia, das decisões do Tribunal de Contas.

A questão mais passível de discussão era, como ainda é, a definição do

predicado julgar nos dispositivos de 1946.

Diz Pontes de Miranda:

Devido à imprecisão dos conceitos empregados no art. 77 [...] julgar as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos e as dos administradores das entidades autárquicas; julgar da legalidade dos contratos [...] mais ao direito administrativo que ao direito constitucional se há de consultar sobre as atribuições concretas do Tribunal de Contas.

Seja como for, a lei ordinária não pode considerar atribuição de outro corpo, judiciário ou administrativo, qualquer das funções dadas ao Tribunal de Contas.

156

Pontes de Miranda esquiva-se de comentar detalhadamente a função de

emissão de parecer prévio, jurídica e politicamente a mais importante das

competências do Tribunal de Contas, porque submete o Presidente da República a

prestar contas anuais ao Tribunal de Contas, sobre as quais será emitido um

parecer prévio e com base nele o Poder Legislativo fará o julgamento.

Preferiu, entretanto, tecer longas considerações sobre a natureza da

autarquia, cujas contas de seus dirigentes também são julgadas pela corte de

contas.

Equivoca-se quando pretende auferir do Direito Administrativo (e por que

não cita o Direito Financeiro?) em detrimento do Direito Constitucional e precisa

definição das atribuições do Tribunal de Contas.

O Tribunal de Contas, afirma o autor, é instrumento político de limitação do

poder, sonho e realidade perseguidos por homens desde os tempos bíblicos. É uma

questão de ciência política e história, alçada em norma constitucional, em todas as

Cartas Magnas brasileiras, inclusive aquela que inaugura a República, assim como a

156

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 1953. v. II. p. 347.

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incipiente Carta de 1934, que inaugura direitos sociais, e a Carta de 1946, que

restabelece a democracia.

Ao contrário da futura Carta de 1988, que deu preeminência ao parecer

prévio, a Carta de 1946 colocou-o nas derradeiras atribuições da Corte de Contas.

Seu resultado, entretanto, é a restituição dos valores republicanos, a

afirmação democrática da sociedade e do Estado brasileiros, ao qual se incumbe

papel relevante ao Tribunal de Contas.

3.8 TRIBUNAL DE CONTAS NA CARTA DE 1967

Inicia-se um período de excepcionalidade política em 1º de abril de 1964,

com a deposição, mediante movimento militar, do Presidente da República, que

exercia o cargo legitimamente. Um denominado Comando Militar Revolucionário

efetua prisões políticas de lideranças, inclusive parlamentares, que se filiavam

politicamente ao Presidente deposto, expede-se um Ato Institucional em 9 de abril

de 1964, com cassações de mandatos parlamentares, de juízes, ministros de

estado, lideranças políticas, servidores políticos e pessoas por suas filiações

partidárias ou apenas por suas ideias políticas. Igualmente foram suspensos direitos

políticos e muitos, quando conseguiram, buscaram o exílio. Seguiram-se os Atos

Institucionais nºs. 2, 3 e 4. Esses Atos, firmados pelo Comando, se autodeclaravam

emanados de um poder revolucionário e institucional.

A Constituição de 1946 foi revogada em 24 de janeiro de 1967, mediante

aprovação forçada pelo Comando ao Poder Legislativo, reunindo as alterações já

vigentes impostas por quatro Atos Institucionais e trinta sete Atos

Complementares.

Para José Afonso da Silva:

A 24.1.1967, fora promulgada a nova constituição, o que veio resumir as alterações institucionais operadas na Constituição de 1946, que findava após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso

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Nacional com base em seu art. 217 e o impacto de quatro Atos Institucionais e trinta e sete Atos Complementares, que tornaram incompulsável o Direito Constitucional então vigente.

[...]

21. A Constituição do Brasil e sua Emenda 1. Promulgada a 24.1.1967, entrou em vigor em 15.3.1967.

[...]

Sofreu poderosa influência da Carta Política de 1937, cujas características básicas assimilou.

[...]

Durou pouco, porém. As crises não cessaram. E veio o Ato Institucional 5 de 13.12.1968, e rompeu com a ordem constitucional, ao qual se seguiu mais uma dezena e muitos Atos Complementares e decretos-leis, até que insidiosa moléstia impossibilitara o Presidente Costa e Silva de continuar governando.

É declarado temporariamente impedido do exercício da Presidência pelo Ato Institucional 12 de 31.8.1969, que atribuiu o exercício do Poder Executivo aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que completaram o preparo de novo texto constitucional, afinal promulgado em 17.10.1969, como Emenda Constitucional 1 à Constituição do Brasil, para entrar em vigor em 30.10.1969.

Teórica e tecnicamente não se trata de emenda, mas de nova constituição.

A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeira se promulgou texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto que a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil.

157

No texto de 1969, o Tribunal de Contas ficou limitado e enclausurado à

condição de mero auxiliar do controle externo que cabe ao Congresso Nacional.

Ainda assim, ele possui competências interna corpore, como as de eleger

seu presidente, elaborar seu regimento interno, escolher seus titulares

administrativos, organizar seus serviços auxiliares e de iniciativa de lei para propor

criação ou extinção de cargos, fixar vencimentos, conceder férias e licenças.

157

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 4 ed. rev. e atual. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 44-45. A Carta de 1967 teve duração abreviada e qual tinha menos importância constitutiva sobre o país do que os Atos Institucionais, Atos Complementares e os decretos-leis expedidos pelo Poder Executivo com força nascente e imediata de lei, cujos instrumentos efetivaram governaram o país. Para a compreensão do Tribunal de Contas nesse período de excepcionalidade constitucional (ou recesso constitucional) importa analisar a Carta de 1969.

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153

A previsão legal (infraconstitucional) para essas competências figurava no

Decreto-lei 199, de 25 de janeiro de l967.

O decreto-lei, contudo, era poder privilegiado do Chefe do Poder Executivo,

embora eleito pelo Congresso Nacional, escolhido pelos comandantes militares.

Nascia espúria as competências interna corpore, porque eram decididas e

legisladas por autoridades políticas alheias ao Tribunal de Contas.

Como seus Ministros são escolhidos pelo Presidente da República, mas

somente tomam posse depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, ocorrem

duas anormalidades, resultantes de vícios de representação democrática e

republicana. O Presidente da República era preposto dos comandos militares e agia

em nome de uma denominada revolução redentora: a escolha dos Ministros nascia

com essa primeira patologia, um retorno ao estado imperial ou feudal; e a aprovação

da escolha competia ao Poder Legislativo formado por partidos políticos sucedâneos

de partidos históricos que tinham sido extintos, assim como a ação política e

legislativa dos membros do parlamento estava sob controle do chefe da nação e

essa era controlado pelos comandos militares. É essa uma segunda patologia,

resultante de domínio de uma corporação militar apoiada por políticos que se

sujeitavam às regras vigentes.

Examinar o texto constitucional de 1969 implicará certamente em encontrar

normas que aparelham o Tribunal de Contas, com aspecto de normalidade

constitucional.

Nascidas espúrias e contrárias ao espírito republicano e democrático que

vigera até 1964, essas normas originadas na caserna, impostas ao chefe da nação e

ao poder legislativo, não traduzem a realidade concreta: o Tribunal de Contas é

novamente emasculado, como o fora em 1937.

Não faltaram, como nunca faltam nessas condições, as soluções jurídicas

casuísticas, sejam em bastidores sem iluminação pública, ou jorradas com base nas

normas vigentes158.

158

Caso concreto do casuísmo jurídico transformado em norma legal é aquela que decorre da insurgência do chefe do poder executivo ao disposto no artigo 72, parágrafo 7º da Carta de 1969.

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154

O artigo 72, parágrafo sétimo, da Carta outorgada de 1969, trata de

competência para apreciar, para fins de registro, a legalidade das concessões

iniciais de aposentadoria, reformas e pensões.

No entanto, pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977, o chefe de governo

ficou autorizado a ordenar a execução ou o registro desses atos, ad referendum do

Congresso Nacional.

A Emenda nº 7, outorgada pelo Chefe do Poder Executivo, determinava que

o Presidente da República poderá ordenar a execução ou o registro dos atos a que

se referem o parágrafo anterior e a alínea b do parágrafro5º, ad referendum do

Congresso Nacional.

3.9 A CARTA DE 1969 E O TRIBUNAL DE CONTAS

O Congresso Nacional submetido jamais apreciaria desfavoravelmente em

referendum, pois não levaria em conta legalidade do ato impugnado pelo Tribunal de

Contas, mas, como corpo político, agiria em concordância com os interesses

políticos dominantes. Isso esterilizava a ação fiscalizadora da Corte de Contas,

limitava sua competência para apreciar com independência técnica os atos sob

exame apreciativo.

A alteração casuística nessa específica competência do Tribunal de Contas

ocorreu quando a corte recusou validade à aposentadoria – negando registro – de

um juiz classista da Justiça do Trabalho, por não ocupar cargo público.

Com a Emenda nº 7, o Presidente da República ignorou a decisão da Corte

e determinou, força própria, a execução imediata do ato, ad referendum do

Congresso Nacional.

Também a competência do Tribunal de Contas para solicitar ao Congresso

Nacional sustar a execução de ato ou outra medida impugnada pela corte, em caso

de não atendimento por parte da autoridade, foi esterilizada pelo mesmo mecanismo

de decurso de prazo aplicável aos decretos-leis. Decorridos trinta dias sem

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155

pronunciamento do poder legislativo, será considerada insubsistente a impugnação,

a solicitação de sustação, e o ato impugnado continuará a produzir efeitos.

Também no pertinente à prestação de contas dos administradores e demais

responsáveis pelos dinheiros valores e bens públicos, sujeitos, em primeiro lugar, ao

controle interno e, após, ao controle externo exercido pelo Tribunal de Contas

ocorreu outra norma casuística.

Segundo o art. 70, parágrafos segundo e quarto, daquela Carta, o exame do

Tribunal de Contas não era dependente da análise do controle interno, mesmo

porque desprovida de força coercitiva, independência ou poder de polícia.

Mas, por força do art. 70, parágrafo quinto, da mesma Carta, esse exercício

de competência somente era aplicável à administração centralizada e autárquica.

As entidades paraestatais, como empresas públicas e sociedades de

economia mista, regradas pelo Decreto-lei nº 200, ficaram excluídas dessa

apreciação independente do Tribunal de Contas. As denominadas estatais foram

regradas como instrumentos políticos e econômicos, com autonomia para ação.

Estavam diretamente vinculadas ao Presidente da República. Um deles, Ernesto

Geisel, tinha sido presidente da mais importante delas: a Petrobrás. Como os

servidores públicos integrantes do controle interno eram designados sob restrita

confiança e observância, o Tribunal de Contas, dependiam da análise relatorial

desse grupo de servidores, criando-se uma casta nascida no seio do autoritarismo.

O Tribunal de Contas da União, cujos membros eram equiparados a

magistrados, foram submetidos a uma dependência iníqua.

Afinal, petróleo era matéria de segurança nacional, segundo a ideologia

imperante da Escola Superior de Guerra.

O Tribunal de Contas nascera do ideário libertador da Revolução Francesa.

Não lhe cometia competir segundo a ideologia que não o valorizava.

Decidia-se, portanto, pelo princípio que a própria Carta adotara: a segurança

nacional era um dos objetivos do Estado brasileiro.

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156

São marcas de autoritarismo visíveis no texto constitucional da emasculação

do Tribunal de Contas. Outras marcas, entretanto, não foram visíveis.

Não será o aparato ornamental de um Congresso Nacional desfalcado de

suas legítimas lideranças, ou outras sob ameaça de perdas de mandato e de direitos

políticos, que tornam efetivas as normas de controle.

Faltou-lhes a garantia (e a liberdade político-jurídica), assim como aos

membros do Tribunal de Contas para exercerem com plenitude a missão

constitucional inscrita, e nas demais, já suprimidas, ficou apenas a lembrança da

Carta de 1946 e a resignação pelo retrocesso.

3.10 REDEMOCRATIZAÇÃO – A CARTA DE 1988 E A AMPLIAÇÃO DAS

FUNÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS

A Constituição de 5 de outubro de 1988159, em seu preâmbulo dispõe:

PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

160

O Deputado Federal Ulysses Guimarães, Presidente da Nacional

Constituinte, denominou a Carta Magna de “Constituição Cidadã”, na sessão do

Congresso Nacional que a promulgou. Os fundamentos da República inscritos no

159

A Carta de 1988, assim como a de 1946, para o autor é novamente o reencontro do povo brasileiro com a democracia.

160 MORAES, Alexandre (Org.). Constituição da República Federativa do Brasil. 40. ed. São Paulo: 2014, s. p. A editora anota o fechamento da edição: DOU de 10-6-2014. A elaboração da Constituição levou em consideração uma proposta formada por juristas; foi dividida em comissões temáticas e com a participação ativa de setores da sociedade, ouvidos constantemente, mediante debates e audiências. É mais minuciosa e detalhista das Cartas da República.

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157

artigo primeiro, no qual é declarado que o Brasil constitui-se em Estado Democrático

de Direito; o artigo terceiro, onde se inscrevem os objetivos sociais da República; e,

no artigo quarto, que define a regência das relações internacionais do Brasil,

confirmam a natureza afirmada.

O controle externo e o Tribunal de Contas estão inseridos e coadunados

com esses valores e princípios, adiante demonstrados.

O Tribunal de Contas, assim como os controles externos e internos,

receberam tratamento minucioso, mas quedarem, ainda assim, algumas lagunas,

que serão mais adiante explicitadas.

Sobre o controle externo e o controle interno são especificados no texto

constitucional no art. 70, o qual dispõe:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncias de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Parágrafo único: Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em seu nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.

161

Observa-se que a fiscalização, exercida pelo Congresso Nacional, já não é

apenas explicitamente contábil, como o fora na Carta de 1891.

3.10.1 Atividade financeira do Estado e fiscalização

Além da fiscalização contábil (o que inclui os registros e a fidelidade da

contabilidade pública), também a fiscalização financeira está no agrupamento da

ação fiscalizadora.

161

MORAES, Alexandre (Org.). Constituição da República Federativa do Brasil. 40. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 99-100.

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158

A atividade financeira do Estado é exercida, em diferença conceitual radical,

com a atividade econômica e se constitui em província própria da Ciência do Direito,

ainda que possua laços íntimos com o direito administrativo.

A finalidade da atividade financeira do Estado é dotá-lo de recursos

financeiros para atender às necessidades individuais e coletivas eleitas pela Lei.

Ao contrário, a atividade econômica, que se desenvolve em âmbito privado,

visa lucro ou resultados econômicos, mediante livre competição e concorrência no

mercado de bens e serviços.

Ela pode ser dividida (para fins metodológicos) em quatro fases:

obter receitas (ou gerar recursos);

administrar receitas (ou gerir recursos);

efetuar despesas (ou gastar recursos);

controlar as três fases antecedentes162.

Um esquema simplificado, sem prejuízo de outras competências, o controle

externo e interno estão inseridos na ultima fase, no controle das três fases

anteriores.

Não é a competência única ou exaustiva; mas inflete diretamente na

satisfação das necessidades individuais e coletivas, atendidas pelo serviço público

estatal, delegado ou mediante colaboração, e estão erigidas em finalidade ou

interesse público ao qual o Estado e a administração pública têm relação existencial

com a sociedade.

Para Ricardo Lobo Torres, a definição, sintética, da atividade financeira do

Estado resume-se a:

A atividade financeira é o conjunto de ações do Estado para a obtenção da receita e a realização dos gastos para o atendimento das necessidades públicas.

162

O esquema da atividade financeira com quatro fases, das quais a última é o controle das demais é do próprio autor.

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159

[...]

Todas essas ações do Estado, por conseguinte, na vertente da receita ou da despesa, direcionadas pelo orçamento, constituem a atividade financeira.

163

Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath divisam a atividade

financeira do Estado a partir das “necessidades públicas”. Dizem que:

Entre o que deve o Estado atender, seja por definição jusnaturalista, seja por posição positivista, e aquilo que dentro da realidade pode ele resolver, fica o imponderável econômico.

[...]

Haverá necessidade-fim, ou seja, o bem jurídico-político, no caso tutelado, e a imperiosidade da existência das necessidades-meio, para que a primeira possa ser prestada.

164

A fiscalização orçamentária, realçada na Carta de 1891, em relação à peça

orçamentária, refere-se à execução dos orçamentos fixados na Carta Federal.

A fiscalização operacional é uma das inovações da Carta de 1988 e foca-se

na atividade meio ou fim específica, aquela que concretiza a Constituição e as Leis

nos campos contábil, financeiro e orçamentário, como define o título que precede o

artigo 70.

A fiscalização patrimonial é a mais antiga das atividades fiscalizadoras do

Estado, envolvendo os bens das cidades-estados ou do reino, assim como nas

nascentes repúblicas.

A fiscalização abrange a administração direta e indireta da União nesse

dispositivo, mas, por efeito do artigo 75, a Constituição estabelece a simetria

federativa aos Estados, Distrito Federal e Municípios.

163

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 3.

164 OLIVEIRA, Regis Fernandes de e HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro. 6. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 19-20.

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160

3.10.2 Controle da administração pública

Ao atribuir ao Congresso Nacional essa competência, a Constituição está

qualificando o Poder Legislativo em poder preeminente do Estado, e refere, pela vez

primeira nas Cartas republicanas, o controle externo e o interno como instrumentos

de efetividade da fiscalização.

Em realidade, a fiscalização tem amplitude, como se fosse um gênero,

enquanto que o controle é o meio de verificação, ou contrasteamento para

efetividade da atividade fiscalizadora.

Controle, palavra empregada na Carta Federal (art. 70, acima transcrito) é

um galicismo na língua portuguesa.

Em francês, resulta da junção dos termos contre e rôle.

O rôle era um documento em pergaminho, no qual se inscreviam registros

de atos, títulos, nomes, com formalidades próprias, em folha única, enrolada, cujas

extremidades do documento eram apoiadas em duas hastes paralelas, na mesma

forma dos livros antigos.

Contre significava confrontar as obrigações devidas ao reino ou aos feudos

com o que constava no rôle. Daí contre-rôle, contraste, contrasteamento ou controle.

Os oficiais dos reinos ou feudos na Idade Média, de posse do contre-rôle

exigiam dos vassalos ou tributados os pagamentos devidos, mediante o confronto

entre o que constava em registro e a verificação do que era exigido.

O controle implicava, portanto, em submissão, registro impositivo,

fiscalização, controle e imposições patrimoniais e monetárias165.

165

Sobre os tipos de controle: MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 23; GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Regime jurídico dos tribunais de contas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 34; e MILESKI, Hélio Saul. O controle da gestão pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 149. Ainda, BERGERON apud MEDAUAR, op. cit., p. 13 et seq.; VANNI apud MEDAUAR, op. cit., p. 13; e WALINE apud MEDAUAR, op. cit., p. 18.

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161

O significado do termo controle foi abordado com propriedade por Eduardo

Lobo Botelho Gualazzi, que anotou a dificuldade da recepção na língua portuguesa

face à palavra fiscalização, como se observa em suas anotações:

O purismo lingüístico, contudo, já induziu algumas críticas, contrárias ao termo controle, considerado galicismo desnecessário, porque em português o termo fiscalização suprir-lhe-ia a significação. A tais críticas, aliás superadas, contrapõe-se a oportuna observação de Hely Lopes Meirelles: “a palavra controle é de origem francesa (contrôle) e por isso sempre encontrou resistências entre os cultores do vernáculo. Mas, por ser intraduzível e insubstituível no seu significado vulgar ou técnico, incorporou-se definitivamente no nosso idioma, já constando dos modernos dicionários da língua portuguesa nas suas várias acepções, e, no Direito pátrio, o vocábulo controle foi introduzido e consagrado por Seabra Fagundes desde a publicação de sua insuperável monografia, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário (1ª ed., 1941) (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 8ª ed., São Paulo, Ed. RT, 1981, p. 638,

nota 1).

Outrossim, o vocábulo controle já se tornou de uso corrente e consagrado, no Direito Público, como se verifica no próprio título de uma das obras de José Cretella Júnior, Controle Jurisdicional do Ato Administrativo.

A própria Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, nos arts. 70 e 71, utiliza o termo controle, na acepção precisa de “fiscalização

financeira e orçamentária”.

Assim, em consonância com a doutrina (estrangeira e brasileira) e o jus positum nacional, consideramos científica, oportuna e conveniente a utilização do termo controle, sob o aspecto idiomático ou jurídico, no tocante ao controle interno e externo da Administração Pública.

166

Maria Sylvia Zanella Di Pietro busca o conceito de controle a partir do

princípio poder-dever dos órgãos aos quais se atribui essa atividade, dizendo:

Controle da Administração Pública como o poder de fiscalização e correção que sobre ela exercem os órgãos dos Poderes Judiciários, Legislativos e Executivo, com o objetivo de garantir a conformidade de sua atuação com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico.

167

Hélio Saul Mileski, em O Controle da Gestão Pública, entende:

166

GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Controle externo e Tribunais de Contas no direito brasileiro. Revista Cons. Contas Mun. Est. CE, n. 11, p. 25-63, 1991/1992. p. 34 et seq.

167 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Coisa julgada: aplicabilidade às decisões do Tribunal de Contas. Revista TCU, Brasília, n. 70, p. 23-38, out./dez. 1996. p. 33.

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162

O controle é elemento essencial ao Estado de Direito, sendo sua finalidade assegurar que a Administração atue de acordo com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, pode-se afirmar que o controle constitui poder-dever dos órgãos a que a lei atribui essa função, precisamente pela sua finalidade corretiva, ele não pode ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilidade de quem se omitiu.

O controle da Administração Pública é corolário do Estado Democrático de Direito, tendo por objetivo verificar se a atividade administrativa ocorre de conformidade com o ordenamento jurídico nacional, a fim de evitar que a ação administrativa discrepe dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Assim, o controle obsta o abuso de poder por parte da autoridade administrativa, fazendo com que esta paute a sua atuação em defesa do interesse coletivo, mediante uma fiscalização orientadora, corretiva e até punitiva.

168

O controle externo, para Hely Lopes Meirelles significa que:

O controle externo visa a comprovar a probidade da Administração e a regularidade da guarda e do emprego de bens, valores e dinheiros públicos, assim como a fiel execução do orçamento. É, por excelência, um controle político de legalidade contábil e financeira, o primeiro aspecto a cargo do Legislativo, o segundo, do Tribunal de Contas.

Controle, em tema de administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro.

169

Com conceito finalístico, fundado no zelo pela aplicação dos princípios

regentes da administração pública, afirma Juarez Freitas:

Em outras palavras, o critério decisivo para estimar uma adequada atuação controladora reside, justamente, no zelo pela íntegra dos princípios regentes da Administração Pública, sobretudo quando se mostrar justificável a preponderância episódica de um, sem exclusão ou supressão recíproca dos demais.

170

168

MILESKI, Hélio Saul. O controle da gestão pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 138-139.

169 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 638.

170 FREITAS, Juarez Freitas. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 19.

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163

Para Odete Medauar:

Controle da Administração Pública é a verificação da conformidade da atuação desta a um cânone, possibilitando ao agente controlador a adoção de medida ou proposta em decorrência do juízo formado.

171

Embora preciso nos termos em que se expõe, o conceito de controle da

administração pública carece indicar a imperatividade e a coercitividade, apoiadas

pelo sancionamento.

O conceito de controle externo da administração pública, observado o

disposto na Constituição, é o seguinte:

O controle externo da administração pública é um dever-poder exercido em nome do povo, pelo Legislativo com a colaboração do Tribunal de Contas, como uma das atividades essenciais da ação estatal objetivando a concretização dos direitos humanos, e em harmonia com o interesse público.

O exercício da competência constitucional do Tribunal de Contas é independente, indisponível e indelegável e o órgão é provido de autonomia.

A independência e autonomia do Tribunal de Contas, assim como a qualificação constitucional dos seus membros assemelha-os, aos Tribunais judiciais e aos magistrados, respectivamente.

172

Ao qual, ainda se acresce, é o controle que se exerce com imperatividade,

coercitividade e cogentemente, dotado do qualificativo necessário do

sancionamento, observados os princípios a ele aplicáveis, na tendência à plenitude

efetiva na democracia e na República.

Ao passo que o controle interno é uma atividade administrativa existente em

cada Poder, ou integradamente, sem poder de polícia e integrado por servidores

públicos, com funções estipuladas na Carta Federal, artigo 74 e das quais,

171

MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 23.

172 Conceito oferecido pelo autor.

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164

esclarece-se o apoio ao controle externo no exercício de sua missão institucional

(inciso VII do artigo 74 referido).

3.10.3 Amplitude da ação fiscalizadora

A Constituição de 1988, no parágrafo único do artigo 70 dispõe sobre as

pessoas físicas, jurídicas públicas ou privadas que prestarão contas.

Como no caput do artigo 70, a norma tem expresso direcionamento à União.

O artigo 75 e seu parágrafo único estabelecem a necessária observância

das normas da seção (seção IX – Da Fiscalização Contábil, Financeira e

Orçamentária, do Capítulo I – Do Poder Legislativo, do Título IV – Da Organização

dos Poderes) para os Estados, Municípios e Distrito Federal.

As normas referidas, como se anotará adiante, aplicam-se inclusive aos

Tribunais de Contas de cada Estado, do Distrito Federal, assim como aos Conselhos

de Contas dos Municípios. Esses Conselhos são mantidos, nas capitais, como São

Paulo e Rio de Janeiro, outros, dos demais municípios, como o Tribunal de Contas

dos Municípios da Bahia ,porque eram existentes antes da Constituição de 1988.

Também terão aplicação essas e demais normas relativas ao Poder

Legislativo da União aos respectivos Poderes Legislativos Estaduais, do Distrito

Federal e Municipais.

Quanto à prestação de contas, recorda-se a sua origem na Antiguidade

clássica, entre os gregos e romanos, como atributo republicano segundo o qual o

administrador público gere o bem que não é seu, mas do Estado e de todos (res

publica) assim como os hebreus atribuíam origem divina aos bens terrestres, terra,

cidades, não sendo propriedade de ninguém, mas podendo por todos serem

utilizados.

A prestação de contas dos administradores públicos foi inscrita na

Declaração Universal de 1789.

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165

São aqueles que possuem atribuições de administração.

A atividade administrativa do Estado não é restrita ao Poder Executivo.

Ela se dissemina, face à independência dos Poderes aos corpos legislativos

e judiciários; e face à autonomia administrativa e financeira, ao Tribunal de Contas e

ao Ministério Público.

A administração pública, dividida em direta e indireta, tem dupla acepção:

conjunto de entes que prestam serviços públicos, através de servidores públicos e

bens afetados ao serviços públicos e também a atividade estatal com finalidade

pública.

É semelhante à administração privada, porque em ambas, pública ou

privada, o administrador gere bem que não é seu, segundo a lei, na pública, e

segundo o contrato, na administração privada, conforme Ruy Cirne Lima173.

A administração é, em termos gerais, antagônica à propriedade. A

propriedade vincula o bem ao proprietário. A administração vincula-o apenas para

administrar no interesse do proprietário – na Administração Pública, no interesse do

Estado e do povo.

Pereira e Souza, sobre o antigo direito português, averbado por Ruy Cirne

Lima, ensina:

“Administração he o governo, a gestão dos negócios de alguém, como o de

hum menor, de hum furioso, de hum prodígio, a quem se fez a interdição dos

bens”.174

Citando Ulpiano, prossegue Ruy Cirne Lima:

Porque em verdade – como se diz no Código de Justiniano, – moderador e árbitro de suas próprias cousas, faz por sua inspiração – não todos os negócios – porém a maior parte.

173

CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 21 et seq.

174 PEREIRA E SOUZA apud CIRNE LIMA, op. cit., p. 19.

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166

Mas os negócios alheios se desempenham, cumprido o encargo recebido.

175

A definição de Ruy Cirne Lima é a seguinte:

“O fim – e não a vontade – domina todas as formas de administração”.176

Ruy Cirne Lima, para efeitos de responsabilidade, assemelhava a

administração pública à privada, tipificando de maneira ampla o descumprimento da

finalidade da administração.

A frase merece atualização: “fim” atualiza-se para fim público ou interesse

público; “formas”, para ações, compreendendo ações mediante atos ou fatos

administrativos.

Seu discípulo e divulgador, Celso Antonio Bandeira de Mello, transcrito por

Geraldo Ataliba, assim se expressa sobre o conceito de Ruy Cirne Lima:

É sempre oportuno lembrar a magistral lição de Cirne Lima a propósito da relação de administração. Explica o ilustrado mestre que esta é “a relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente”. Nela não há, apenas, um poder em relação a um objeto, mas, sobretudo, um dever, cingindo o administrador ao cumprimento da finalidade, que lhe serve de parâmetro.

Na administração o dever e a finalidade são predominantes, no domínio, à vontade. Administração é a “atividade do que não é senhor absoluto”. O mestre gaúcho pondera acertadamente que “a relação de administração somente se nos depara, no plano das relações jurídicas, quando a finalidade, que a atividade de administração se propõe, nos aparece defendida e protegida, pela ordem jurídica, contra o próprio agente e contra terceiros.

Em suma, o necessário – parece-nos – é encarecer que na administração os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever

175

ULPIANO apud CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 22. Nota 6.

176 CIRNE LIMA, op. cit., p. 22. O conceito se tornou clássico, reverenciado pelos autores administrativistas contemporâneos, como Medauar, Bandeira de Mello, Marçal Justen Filho. O autor foi aluno de Ruy Cirne Lima. Conhecido por sua prodigiosa memória, falava corretamente meia dúzia de línguas vivas, além de grego e latim, correspondia-se regularmente com Bobbio, Jellinek, Santi Romano e Hauriou, conforme disse Geraldo Ataliba na Apresentação de Princípios de Direito Administrativo, de Ruy Cirne Lima.

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167

de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela”.

177

É sobre a administração pública nas suas funções definidas nos artigos 70 e

71 da Carta Federal de 1968 que irá exercer a sua competência o controle externo e

interno.

Nas Cartas anteriores o controle não foi expresso de forma tão definida e

incisiva.

Minuciosa e detalhista, a Carta de 1988 abrange a universalidade da

administração pública brasileira: União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tanto

direta com indireta.

Restaria anotar que o controle se denomina externo porque está situado

além do locus das atividades administrativas controladas, enquanto que o controle

interno se inclui entre as atividades administrativas.

Todavia outros controles também se exercem e estão fora do âmbito

proposto pelo autor178.

177

MELLO apud ATALIBA, Geraldo. Apresentação. In: CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. VI.

178 Os controles externo e interno são funções estatais. Mas não são as únicas espécies de controle. Também se exerce pelo exercício independente do Poder Judiciário; pela ação do Ministério Público, pelas agências controladoras, autarquias especiais, introdução recente no ordenamento normativo brasileiro: por controladores gerais ou controladorias gerais; mediante auditores ou auditorias independentes, públicas ou privadas, pelos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público, com atribuições específicas de controle interno; pelo controle social através das organizações sociais, de bairros, comunitárias, assim como as sindicais, associações laborais, conselhos estatais, conselhos fiscais; e, ainda, pelo controle popular, exercido por qualquer pessoa do povo, ao qual se atribuem instrumentos próprios, como as ouvidorias, conselhos de usuários, institutos da denúncia, petição, informação, transparência e ações judiciais próprias, como a ação popular. O controle popular tem sido desenvolvido também através dos instrumentos da democracia participativa – nos quais as pessoas do povo opinam sobre planos futuros ou em incrementação e pelos instrumentos da democracia deliberativa, na qual as opiniões, os debates e trocas de informações e mensagens têm sido notável mediante meios de uso internéticos com aparelhos quer permitem a rápida expansão de ideias, informações e agilizações sociais.

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168

3.11 CONGRESSO NACIONAL E O AUXÍLIO DO TRIBUNAL DE CONTAS

O artigo 71 da Carta de 1988 fixa que o controle externo quedou-se a cargo

do Congresso Nacional e “será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da

União”.

A expressão “com o auxílio” tem sido equivocadamente interpretada.

Pontes de Miranda já demonstrara dificuldade em compreendê-la. Como

averbado antes, nos Comentários à Constituição de 1946, Pontes utilizou uma

expressão duvidosa quando se refere ao Tribunal de Contas como órgão de auxílio

ou cooperação. São conceitos que não são idênticos, portanto a conjunção estaria

mal empregada, restando uma igualdade onde ela não ocorre. Em realidade, o

equívoco decorre, em primeiro lugar, do locus reservado na Carta ao Tribunal de

Contas, no Título do Poder Legislativo. Em segundo lugar, ao inserir a expressão

“com o auxílio”.

O Poder Legislativo, em primeiro lugar, não possui órgãos.

Segundo, se não é órgão o Tribunal de Contas, muito menos seria órgão

auxiliar.

Essa posição espacial na Carta Federal tem gerado polêmica. Interpretação

apressada situa o Tribunal de Contas da União como órgão do Poder Legislativo, e,

para isso, afirmam aqueles que assim entendem, a começar por Cretella Júnior, sua

competência é de órgão auxiliar do Poder Legislativo.

Não é auxiliar o ente que tem, entre suas competências, a ação controladora

sobre o Poder Legislativo ou qualquer dos outros dois Poderes. Também não é

auxiliar, e nem a Constituição assim o caracteriza, mas presta auxílio.

Quando auxilia – aliás, todos os Poderes devem-se auxílio ou cooperação

recíprocos, em cumprimento à harmonia sem perda da sua independência, o

Tribunal de Contas mostra-se ente de Estado indispensável e indisponível.

Melhor afirmar-se: o apoio concretiza-se na colaboração pelo Tribunal de

Contas, dotado de outras competências, além da independente e especificamente

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169

colaborativa, que é o parecer prévio às contas anuais do Presidente da República.

Estas outras competências, repise-se, incluem o controle independente sobre a ação

administrativa do próprio Poder Legislativo e demais Poderes exercida em nome da

soberania popular, como afirmação do Estado Democrático de Direito na

concretização dos direitos humanos179.

Seus membros têm a dignidade da magistratura e sua subordinação não é

outra senão que à Constituição. Não é auxiliar quem detém prerrogativa de

magistrado.

O controle externo do Tribunal de Contas tem sua primeira (e relevante)

incumbência em manifestar-se tecnicamente sobre as contas a ele devidas pelo

Presidente da República. Ela é exercida com independência e o julgamento posterior

pelo Poder Legislativo é a instância político-institucional que não se realiza sem a

colaboração constitucional – conquista democrática e republicana, evoluída

progressivamente desde os hebreus, as assembléias da Ágora, a censura romana,

os conselhos medievais e estatuída universalmente na Declaração de 1789.

A sua finalidade, como Instituição de Estado, serviente à sociedade e ao

homem, é cumprir a efetividade dos valores afetos à administração pública, inscritos

no estatuto político, dos quais o preeminente é realização da dignidade do homem,

mediante a satisfação das suas necessidades.

Por essa razão, apoiar o Poder Legislativo não implica subordinação; antes,

colaboração institucional, no exercício do dever-poder controlador constitucional.

As demais competências, inclusive o controle da administração do Poder

Legislativo, demonstram que não é subordinado; controlar o poder preeminente,

competência que cumpre não como apoio, mas como controlador com

independência, dá-lhe relevo constitucional em face do poder preeminente

(Legislativo).

179

Ricardo Lobo Torres salienta que a atividade financeira do Estado, na qual se insere o controle, tem por finalidade a dignidade humana em um Estado Democrático de Direito. Remissão às averbações acima. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 178.

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170

Sua inserção constitucional (já esteve nas Disposições Transitórias de 1891

ou entre os órgãos de colaboração, em 1934) revela apenas a confluência de

funções controladoras com o poder preeminente, o Poder Legislativo.

A compreensão da expressão “com o auxílio” não é pacífica na doutrina. A

posição que o intérprete adotar implicará a submissão ou a independência do

Tribunal de Contas em relação ao Poder Legislativo.

Reconhecê-lo como órgão auxiliar, literalmente como consta no texto

constitucional, é submetê-lo ao Poder Legislativo, retirar-lhe a independência para o

exercício das suas competências.

De outro lado, se for compreendido que o Tribunal de Contas é uma

Instituição de Estado, cujas competências são relevantemente estruturais ao Estado

brasileiro, é atribuir-lhe independência para exercer suas competências,

similarmente a qualquer poder, mais próximo, assimiladamente ao Poder Judiciário,

por força da própria norma constitucional (art. 73, caput), que atribui ao Tribunal de

Contas as mesmas competências, por remissão, previstas no art. 96 que são as de

interna corpore estipuladas aos tribunais; e seu parágrafo terceiro que trata da

similaridade dos Ministros da Corte de Contas aos Ministros do Superior Tribunal de

Justiça, que devem ser conjugados harmoniosamente com a necessária

independência dos membros da Corte de Contas.

Dissente, contudo, Alexandre de Moraes, quando afirma que o Tribunal de

Contas é auxiliar do Poder Legislativo a propósito:

A Constituição Federal estabeleceu no art. 71 as funções do Tribunal de Contas da União, que deverá auxiliar o Congresso Nacional a exercer o controle externo e fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União.

180

Também José Afonso da Silva:

180

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2011. p. 450.

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171

O controle externo é, pois, função do Poder Legislativo, sendo de competência do Congresso Nacional no âmbito federal, das Assembleias Legislativas nos Estados, da Câmara Legislativa no Distrito Federal e das Câmaras Municipais nos Municípios com o auxílio dos respectivos Tribunais de Contas.

[...] que assim se apresenta como órgão técnico [...].181

A doutrina tem, contudo, emitido lições que se perfilam pela independência

do Tribunal de Contas, não lhe reconhecendo natureza de órgão do Poder

Legislativo, tampouco função de órgão auxiliar.

É o pensamento de Odete Medauar, exposto em Controle da

Administração Pública, quando exclui as hipóteses de inclusão da corte de contas

no âmbito dos Poderes Executivo ou Judiciário.

Conclui:

Resta verificar se a Corte de Contas insere-se no âmbito do Poder Legislativo. Parece-nos que a expressão “com o auxílio do Tribunal de Contas”, contida no art. 71 da Constituição Federal tem gerado certa confusão no tocante aos vínculos entre esse órgão e o Legislativo, para considerá-lo subordinado hierarquicamente a tal poder, dada sua condição de auxiliar. Muito comum é a menção do Tribunal de Contas como órgão auxiliar do Poder Legislativo, o que acarreta a idéia de subordinação. Confunde-se, desse modo, a função com a natureza do órgão. A Constituição Federal, em artigo algum, utiliza a expressão “órgão auxiliar”; dispõe que o controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas; a sua função, portanto, é de exercer o controle financeiro e orçamentário da Administração em auxílio ao poder responsável, em última instância, por essa fiscalização. Tendo em vista que a própria Constituição assegura ao Tribunal de Contas as mesmas garantias de independência do Poder Judiciário, impossível considerá-lo subordinado ao Legislativo ou inserido na estrutura do Legislativo. Se a sua função é de atuar em auxílio ao Legislativo, sua natureza, em razão das próprias normas da Constituição, é a de órgão independente, desvinculado da estrutura de qualquer dos três poderes. A nosso ver, por conseguinte, o Tribunal de Contas configura instituição estatal independente.

182

Carlos Ayres Britto, com sua inequívoca experiência, afirma inauguralmente

que o Tribunal de Contas não é órgão do Poder Legislativo. Sua argumentação parte

181

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 728-729.

182 MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 140-141. Odete Medauar é autora dedicada ao tema. Produziu obra precisa sobre o tema do controle, consultada e relacionada nas referências.

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172

da distinção entre competências e funções. Ou seja, as funções seriam as mesmas

entre o Tribunal de Contas e o Poder Legislativo. Desbordam, contudo, as

competências.

Conforme Carlos Ayres Britto:

Feita a ressalva, começo por dizer que o Tribunal de Contas da União não é órgão do Congresso Nacional, não é órgão do Poder Legislativo. Quem assim me autoriza a falar é a Constituição federal, com todas as letras do seu art. 44, litteris: “O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos deputados e do Senado Federal” (grifo à parte). Logo, o parlamento brasileiro não se compõe do Tribunal de Contas da União. Da sua estrutura orgânica ou formal deixa de fazer parte a Corte Federal de Contas e o mesmo é de se dizer para a dualidade Poder Legislativo/Tribunal de Contas, no âmbito das demais pessoas estatais de base territorial e natureza federada.

Não que a função de julgamento de contas seja desconhecida das Casas Legislativas. Mas é que os julgamentos legislativos se dão por um critério subjetivo de conveniência e oportunidade, critério esse que é forma discricionária de avaliar fatos e pessoas. Ao contrário, pois, dos julgamentos cargo dos Tribunais de Contas, que só podem obedecer a parâmetros de ordem técnico-jurídica, isto é, parâmetros de subsunção de fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais.

[...]

Diga-se mais: além de não ser órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas não é órgão auxiliando o Parlamento Nacional, naquele sentido de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional.

[...]

Tudo fica mais claro quando se faz a distinção entre competências e funções. A função de que nos ocupamos é a mesma, pois outra não é senão o controle externo. As competências, no entanto, descoincidem.

[...]

Algumas características da jurisdição, no entanto, permeiam os julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas. Primeiramente, porque os TCs julgam sob critério exclusivamente objetivo ou da própria técnica jurídica (subsunção de fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais). Segundamente, porque o fazem com a força ou a irretratabilidade que é própria das decisões judiciais com trânsito em julgado. Isso quanto ao mérito das avaliações que as Cortes de Contas fazem incidir sobre a gestão financeira, orçamentária, patrimonial, contábil e operacional do Poder Público. Não, porém, quanto aos direitos propriamente subjetivos dos agentes estatais e das demais pessoas envolvidas em processos de contas, porque, aí, prevalece a norma constitucional que submete à competência judicante do Supremo Tribunal Federal a impetração de habeas corpus, mandado de segurança e habeas data contra atos do TCU (art. 102, inciso I, alínea d). Por extensão, caem sob a competência dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, conforme a situação, o processo e o julgamento dessas mesmas ações constitucionais contra atos dos demais Tribunais de Contas.

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173

[...]

Por outro aspecto, ajunte-se que nenhum Tribunal de Contas é tribunal singelamente administrativo (ao contrário do que se tem afirmado, amiúde). Não pode ser um tribunal tão-somente administrativo um órgão cujo regime jurídico é centralmente constitucional. É dizer: os Tribunais de Contas têm quase todo o seu arcabouço normativo montado pelo próprio Poder Constituinte. Assim no plano da sua função, como respeitantemente às suas competências e atribuições e ainda quanto ao regime jurídico dos agentes que o formam.

Com efeito, o recorte jurídico-positivo das Casas de Contas é nuclearmente feito nas pranchetas da Constituição. Foi o legislador de primeiríssimo escalão quem estruturou e funcionalizou todos eles (os Tribunais de Contas), prescindindo das achegas da lei menor. É só abrir os olhos sobre os 6 artigos e os 40 dispositivos que a Lei das Leis reservou às Cortes de Contas (para citar apenas a seção de n. IX do capítulo atinente ao Poder Legislativo) para se perceber que somente em uma oportunidade é que existe menção à lei infraconstitucional. Menção que é feita em matéria de aplicação de sanções (inciso VIII do art. 71), porque, em tudo o mais, o Código Supremo fez questão de semear no campo da eficácia plena e da aplicabilidade imediata.

183

Sepúlveda Pertence, em conferência posteriormente editada, no Congresso

dos Tribunais de Contas do Brasil, após explicitar o texto de 1891, no qual era

compreensível a posição de auxiliar atribuída ao Tribunal de Contas, possui outra

vertente argumentativa: não se limita à clássica tripartição de poderes.

Segundo Sepúlveda Pertence:

Creio ser hora de concluir, renovando escusas pelo desataviado das notas da madrugada, mas permitam-me uma observação final. A competência do Tribunal de Contas, tal como a vem reafirmando essencialmente a jurisprudência do Supremo Tribunal, ligada ao status constitucional, à extensão das garantias e do poder de autogoverno dos órgãos judiciários que se lhe conferiu, possui um relevo que não tem sido suficientemente enfatizado. A meu ver, apesar das competências, como as do artigo 71, II e sua extensão impressionante, quer do ponto de vista objetivo, quer do ponto de vista subjetivo [...]. Nesta definição, às vezes este apego não é apenas do jurista; é do legislador mesmo, por vezes – e é este exemplo do constituinte mesmo – quando enfatiza a competência de fiscalização como primordialmente entregue ao Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas e, posteriormente, lhe dá competências de todo independentes do Legislativo, a começar pelo julgamento das contas do próprio Legislativo.

[...]

183

BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 59-75. p. 60-62, 66, 69-71. Assinala-se que Carlos Ayres Britto, antes de assumir cadeira de Ministro no Supremo Tribunal Federal, exerceu o cargo de Procurador junto ao Tribunal de Contas, Sergipe.

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174

Ora, essa caracterização de auxiliar do Poder Legislativo era perfeitamente adequada à Constituição de 81, que se limitara a prever a existência de um Tribunal de Contas com uma única competência: a de emitir parecer prévio sobre as contas do Presidente da República e submetê-las ao Congresso Nacional.

[...]

O que me parece é que, não obstante todas as dificuldades de operacionalização deste imenso poder, o Tribunal de Contas se constitui, no perfil que lhe traçou a Constituição de 88, numa magistratura essencial de uma função verdadeiramente irredutível à tripartição clássica dos Poderes, em que não tem ele monopólio, mas, ao contrário, se soma às tarefas novas do Judiciário, por exemplo, em todo o imenso poder do controle abstrato da constitucionalidade das leis, ou a esse imenso poder de iniciativa que se outorgou à figura sem paralelo no direito comparado que é o Ministério Público no ordenamento constitucional vigente, com a função genérica de controle, do maior relevo na construção de um Estado de Direito democrático que seja adequado ao inevitável gigantismo do Estado contemporâneo – que não me interpretem mal os pregoeiros do fim do Estado, do neoliberalismo.

184

Demais, não haveria como catalogar como órgão de um poder aquela

unidade que dispusesse de autonomia administrativa e judiciária, idêntica às dos

Tribunais de Justiça e outorgada pela Carta Magna.

Nesse passo, busca-se amparo na decisão proferida pelo Supremo Tribunal

Federal ao julgar a ADI 119/RO, na qual foi relator o Ministro Dias Toffoli185, que

resume a orientação predominante naquela Corte, relacionando ainda outras

decisões no mesmo sentido.

Decidiu o Supremo Tribunal Federal:

C) Art. 50 da Constituição Estadual: concessão de autonomia financeira e administrativa ao Tribunal de Contas do Estado – constitucionalidade.

O autor ataca trecho do art. 50 da Carta estadual, que, tendo por premissa a fixação das competências e garantias do Tribunal de Contas, a ele outorgou, além da capacidade de autogestão, autonomia de caráter financeiro.

É de se notar que o texto estadual não inova na previsão. Numa análise sistemática da Constituição Federal, vê-se que são dadas ao Tribunal de

184

PERTENCE, Sepúlveda. Os Tribunais de Contas no Supremo Tribunal Federal: Crônicas de Jurisprudência. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 41, p. 46-47, jul./set. 1998. p. 46-47.

185 O Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, soluciona a questão do locus constitucional do Tribunal de Contas e outras questões controversas, como a extensão da sua autonomia financeira.

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175

Contas da União as mesmas garantias dos tribunais do Poder Judiciário, na forma dos arts. 93 e 96, o que inclui a autonomia financeira.

Na lição de Hugo Nigro Mazzilli: “Autonomia financeira é a capacidade de elaboração da proposta orçamentária e de gestão e aplicação dos recursos destinados a prover as atividades e serviços do órgão titular da dotação. Essa autonomia pressupõe a existência de dotações que possam ser livremente administradas, aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária a que foram destinadas” (O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 61).

Além disso, é comum o estabelecimento de autonomia financeira a determinados órgãos e entidades, em razão da relevância institucional das funções desempenhadas, no mais das vezes atreladas às atividades de controle e de fiscalização, e da necessária independência de atuação dos seus membros. Assim o é em relação ao Ministério Público e à defensoria pública, a teor dos arts. 127, parágrafos segundo e terceiro, e 134, parágrafo segundo, da Constituição Federal.

Aos Tribunais de Contas, por conseguinte, tendo em conta a alta relevância dos serviços prestados no controle externo da administração pública, é a eles atribuída autonomia de caráter administrativo e financeiro, como salvaguarda para o desempenho de suas funções de maneira independente.

Nesse particular, ainda segundo o magistério de Hugo Nigro Mazzilli, “[t]al autonomia é inerente aos órgãos funcionalmente independente, como são o Ministério Público e os Tribunais de Contas, os quais não poderiam realizar plenamente as suas funções se ficassem na dependência financeira de outro órgão controlador de suas dotações” (op. cit., p. 61).

Dessa forma, conforme reconhecido pela Constituição de 1988 e por esta Suprema Corte, gozam as cortes do país, inclusive as estaduais, das prerrogativas do autogoverno e da autonomia financeira.

Nesse sentido, há pronunciamentos deste Supremo Tribunal Federal nos seguintes julgados: ADI nº 4.418/TO-MC e ADI nº 4.421/TO-MC, ambas de minha relatoria; ADI nº 1.994/ES, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 8/9/06; ADI nº 789/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 19/12/94.

Não vislumbro, pois, vício de inconstitucionalidade no art. 50 da Carta estadual

186.

Na ADI 4.190/RJ (referendo em medida cautelar) no Supremo Tribunal

Federal, o Ministro Celso de Mello, não apenas invoca doutrina, mas precedentes

daquela Corte, para afirmar, de forma incisiva, a respeito do locus do Tribunal de

Contas na estrutura constitucional brasileira, afirmando peremptoriamente não

serem as Cortes de Contas delegatárias, nem subordinadas, do Poder

Legislativo.

186

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 119/RO. Relator Min. DIAS TOFFOLI. Tribunal Pleno. Sessão de 19.2.2014. Acórdão eletrônico DJe 062 - DIVULG 27.3.2014 - PUBLIC 28.3.2014. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 23 nov. 2014.

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176

Na ementa o Ministro Celso de Mello determina:

A posição constitucional dos Tribunais de Contas, órgãos investidos de autonomia jurídica – Inexistência de qualquer vínculo de subordinação institucional ao Poder Legislativo. Atribuições do Tribunal de Contas que traduzem direta emanação da Constituição da República. Os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de quem não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos Tribunais de Contas deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República.

187

No entendimento do autor, não sendo órgão dependente, as contas do

respectivo Poder Legislativo devem ser prestadas, impositivamente, ao Tribunal de

Contas, que as julgará em caráter definitivo quando ao seu mérito, do qual, não cabe

recurso ao Poder Judiciário.

O Tribunal de Contas não é órgão auxiliar do Poder Legislativo. Também

não é órgão auxiliar, embora preste auxílio em sentido colaborativo e harmonioso,

como se devem reciprocamente todos os Poderes e Instituições de Estado. Não está

subordinado ao Poder Legislativo, exceto à Constituição.

Não possui, portanto, vínculos de hierarquia ou dependência com o Poder

Legislativo.

As contas do Poder Legislativo, de responsabilidade do seu Presidente ou

da sua Mesa são impositiva e coercitivamente prestadas ao respectivo Tribunal de

Contas, para serem julgadas, cuja decisão é, no mérito, definitiva.

É Instituição do Estado Democrático, cujas competências constitucionais são

exercidas com independência e autonomia. Tribunal sui generis, que exerce dever-

187

BRASIL. ADI 4.190/RJ. Relator Min. CELSO DE MELLO. Tribunal Pleno. Sessão de 10.3.2010. DJE edição 10.6.2010 - DIVULG 10.6.2010 - PUBLIC 11.6.2010 - VOL 02405 -02 PP - 00313. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 23 nov. 2014. Na mesma senda decisória: Id. ADI 849/MT. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Tribunal Pleno. Sessão de 11.2.1999. DJ edição 23.4.1999 - PP 0001 - EMENT VOL 01947 - 01 - PP 00043. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 23 nov. 2014; Id. ADI 3.715/TO. Relator Min. GILMAR MENDES. Tribunal Pleno. Sessão de 24.5.2006. DJ edição 15.8.2006 - PP 00015 -EMENT VOL 02244 - 01 - PP 00188. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 23 nov. 2014.

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177

poder sem ser Poder e a nenhum deles vinculado. Órgão de colaboração com os

Poderes e Ministério Público, republicano, indisponível e indelegável, cercado de

garantias que o assimilam ao Tribunal Judicial. Presta auxílio ao Poder Legislativo

sem ser seu auxiliar e exerce outras competências terminativas no seu âmbito

constitucional.

A jurisdição una, adotada na Carta de 1988, entretanto, não permite admitir

rejulgamento das decisões do Tribunal de Contas em matéria de parecer prévio

sobre as contas do Chefe do Poder Executivo nem a decisão em julgamento sobre

as contas dos demais responsáveis, exceto no que colidirem com a Constituição

Federal e legislação infraconstitucional, ressalvado, entretanto, o mérito técnico da

decisão do Tribunal de Contas. O julgamento se restringe à lesão de direito

individual.

Destaca-se, ainda, por ser Instituição de Estado com inscrição

constitucional, que as competências enumeradas na Carta Federal atribuem ao

parecer prévio, julgamento das contas, apreciação de atos de admissão e

inativação, auditorias, fiscalizações, informações, aplicação de sanções, sustação de

atos e representações um caráter eminentemente técnico-pericial, insuscetível de

reapreciação quanto ao mérito, em qualquer Poder.

3.12 PARECER PRÉVIO

As competências do Tribunal de Contas da União inscritas no artigo 71 da

Constituição Federal e são enumeradas, inicialmente por aquela que, em primeiro

plano, constante do inciso I, se ressalta pela sua importância.

Trata-se de competência para emitir um parecer prévio sobre as contas que

devam ser prestadas anualmente pelo Presidente da República188.

O parecer é prévio porque o seu julgamento definitivo, com natureza política,

é realizado pelo Poder Legislativo (art. 49, IX, nas competências do Congresso

188

As competências são simétricas, como homenagem ao sistema federativo, no qual o Tribunal de Contas da União é modelo cogente, impositivamente aos Tribunais estaduais, do Distrito Federal e dos Municípios, como determina o art. 75 da Carta.

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178

Nacional, cuja votação delibera em maioria simples, enquanto que, nas Câmaras de

Vereadores, a deliberação em sentido contrário ao parecer prévio será qualificada

em dois terços (parágrafo segundo do art. 31 da Constituição Federal).

Para o Tribunal de Contas é a primeira e mais relevante das suas

competências.

Ela representa o controle da ação administrativa do Chefe de Estado,

verificando, exceto no âmbito político, a ação administrativa nos aspectos da

legalidade, legitimidade e economicidade, quanto às finanças, orçamento, patrimônio

e operacional.

O parecer, embora sua denominação, não é opinativo, apenas.

Ela valora, contém um juízo de valor. Não é parecer prévio nem neutro ou

imparcial. Ele faz a anatomia da ação administrativa do Chefe de Estado. Não se

intimida, pelas garantias que a Constituição transmite primariamente aos membros

da Corte.

É considerado, por autores equivocados, assim como pela homogeneidade

dos parlamentares, como peça de apoio auxiliar ao Poder Legislativo. Como também

se anotou acima, ela nasce da estampa constitucional da República, sem delegação,

hierarquia ou subordinação.

3.13 COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO

Segundo o inciso II do art. 71, atribui ao Tribunal de Contas julgar as contas

dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos

da administração direta e indireta.

Na competência para julgar, incluem-se, como se verifica, todos os

administradores e todos os demais responsáveis.

É nessa competência que estão incluídos, exceto o Presidente da República,

que não é julgado pela Corte, os Presidentes das Casas do Poder Legislativo, os

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Presidentes de Tribunais judiciais, Procuradores dos Ministérios Públicos, os

Ministros de Estado, Presidentes das entidades estatais da administração pública

indireta, sempre em simetria federativa.

O julgamento do Tribunal de Contas, ao abrigo do inciso II, não é submetido

ao respectivo Poder Legislativo.

É competência distinta basilarmente da primeira, pela sua natureza e pelo

seu exaurimento na Corte de Contas.

Incorrendo em julgamento desfavorável, a decisão sobre glosa e multa são

líquidas e certas, da qual se extrai certidão para cobrança devida (artigo 71,

parágrafo terceiro: as decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou

multa terão eficácia de título executivo).

Independente da hierarquia dos administradores e demais responsáveis,

para os quais não há uma catalogação exaustiva, porque o universo deles está em

constante alteração, são, contudo, ordenadores de despesa189.

O julgamento, mediante o predicado “julgar”, tem significado jurídico real.

Autores consideram que o julgamento é meramente administrativo: Cretella

Júnior, Hely Lopes Meirelles e José Afonso da Silva.

Diverge-se. O conceito é de ato político judicialiforme que se adota inspirado

em Victor Nunes Leal, Sepúlveda Pertence, Castro Nunes, Hélio Saul Mileski, Odete

Medauar, Ruy Cirne Lima e Seabra Fagundes190.

De Miguel Seabra Fagundes, em conferência proferida e depois editada:

No julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos (Emenda Constitucional nº 1, artigo 70, parágrafos

189

MILESKI, Hélio Saul. O controle da gestão pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Hélio Saul Mileski utiliza a terminologia tecnicamente correta. Os responsáveis são aqueles que ordenam as despesas, segundo classificação da Contabilidade Pública e adotada pelo Direito Financeiro.

190 A matéria foi exaustivamente tratada pelo autor na sua Dissertação de Mestrado intitulada Democracia e Controle Externo da Administração Pública, cujo conteúdo era predominante explanativo e narrativo. A dissertação foi aprovada com recomendação de aprovação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 10 de setembro de 2007.

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180

1º e 4º; Lei nº 6.223, artigo 2º, inciso III), os Tribunais de Contas exercem função jurisdicional.

Fazem-no enquanto fixam irretratavelmente situações contábeis, para quitar ou debitar os administradores.

O teor jurisdicional das decisões, nesses casos, se depreende da própria substância delas, não do emprego da palavra julgamento pelos textos de direito positivo.

Resulta do sentido definitivo da manifestação da Corte, pois se a regularidade das contas pudesse dar lugar à nova apreciação pelo Poder Judiciário, o seu pronunciamento seria mero e inútil formalismo, restando inexplicável a mobilização para fazê-lo, de um órgão altamente qualificado pelos requisitos de investidura e garantias dos seus membros, como é um Tribunal de Contas (Emenda nº 1, artigo 2º, parágrafo 3º).

Sob este aspecto restrito (o criminal fica à Justiça da União), as Cortes decidem conclusivamente.

[...]

Cabe aqui a observação de Pontes de Miranda a propósito do texto constitucional de 1946, a que se reporta comentando a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, de não haver como “interpretar que o Tribunal de Contas julgue as contas e outro juiz as rejulgue depois”, porquanto nessa duplicidade ter-se-ia absurdo bis in idem (Comentários à Constituição de 1946, 1ª edição, vol. II, p. 95 e Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, 2ª edição, tomo III, p. 251).

Ao Poder Judiciário não compete rever as manifestações das Cortes de Contas, nesse particular, senão acolhê-las como elemento válido, já assente, para favorecer ou comprometer aquele que vá, ou seja chamado a juízo, em torno de dinheiros ou valores públicos em geral, confiados à sua gestão ou guarda.

191

Prossegue Seabra Fagundes:

Assim sendo, o que assentarem os Tribunais de Contas obriga o juízo criminal na caracterização do delito de peculato. Este já de aceitar o que se contém nas decisões deles sobre as contas dos réus, como apuração preestabelecida de requisito de fato necessário à integração do delito (Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, 1ª edição, vol. II, p. 99)

Outro reflexo da definitividade do julgamento das contas manifesta-se na execução judicial para reposição do valor de alcance.

A liquidez da dívida, acaso argüida, não pode ensejar a reabertura do processo de tomada de contas.

191

FAGUNDES, Miguel Seabra. Discurso de abertura. In: VII CONGRESSO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL. João Pessoa, 1976. Anais, v. II, p. 393 et seq.

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181

Ocorre aí uma limitação necessária à amplitude de defesa assegurada ao executado (Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, 1ª edição, p. 32-33).

[...]

Queremos chamar a atenção para a natureza jurisdicional dessa atribuição que nos vimos de referir, que se caracteriza, como toda a função jurisdicional, pela definitividade nos atos resultantes de seu exercício.

O que a distingue da função executiva é que ela quando se manifesta, está dita a última palavra sobre a aplicação da lei, ao passo que quando o Executivo se manifesta na aplicação da lei, há uma palavra que pode vir depois, corrigindo ou ratificando o que foi dito pelo Poder Executivo.

De modo que é exatamente por ter em vista esse caráter de definitividade de aplicação da lei como característica da função jurisdicional, que só vemos, nos Tribunais de Contas, o exercício dessa função quando ele julga as contas dos responsáveis por bens e valores públicos.

192.

Também Ruy Cirne Lima, em Pareceres (Direito Público) no qual inclui

parecer de 8 de abril de 1963:

Onde se abre campo à ação (em sentido material), aí, entretanto, tem a competência do Tribunal de Contas terminado, RUY BARBOSA, ainda, é quem diz: “Se o Tribunal de Contas, por uma decisão sua, ou o Congresso Nacional, por um ato fundado no Tribunal de Contas, invadirem usurpatòriamente o terreno inviolável... (das) garantias e direitos (individuais), poderão as vítimas ir buscar o remédio jurídico na autoridade dos Juízes e Tribunais...”

[...]

Tem, portanto, entre nós, o Tribunal de Contas, “jurisdictio”; falta-lhe, porém, competência para o “judicium” e, “a fartiorí”, competência para dá-lo e cometê-lo a outrem, porque, estranha à sua função, naquêle ou neste aspecto, a idéia de ação (em sentido material). Certo, são, as decisões do Tribunal de Contas, terminativas, quando julga, ele, as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos (Const. Fed., art. 77, II). Esse julgamento compete-lhe, porém, em função do ato político do Congresso Nacional, que julga as contas do Poder Executivo (Const. Fed., art. 66, VIII). E como a competência do Tribunal de Contas, acerca do julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, sòmente lhe é atribuída em função daquele ato político, as decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não poderiam, por isso mesmo, ficar sujeitas a reexame judiciário. O julgamento político exclui o pronunciamento judiciário ulterior, nos mesmos termos em que o julgado criminal exclui a ação civil. “... não se poderá questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o autor...” (art. 1525, Cód. Civ.). De outro lado, o julgamento político tem precedência necessária sobre o pronunciamento judiciário. Em conseqüência, nem antes nem depois das decisões do Tribunal de Contas,

192

FAGUNDES, Miguel Seabra. Discurso de abertura. In: VII CONGRESSO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL. João Pessoa, 1976. Anais, v. II, p. 393 et seq.

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enquanto às contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, toca, aos Juízes e Tribunais comuns, pronunciar-se sobre o fato sujeito, ou quem lhe seja o autor. A eficácia exclusiva e terminativa das decisões do Tribunal de Contas, nessa matéria, não é mais, no entanto, do que uma aplicação do princípio de independência e harmonia dos poderes políticos (Const. Fed., art. 36). Não é, certamente, expressão do poder de julgar, que ao Tribunal de Contas, entre nós, falece por completo, embora seja, ele, e, também, atentas as linhas estruturais de nosso regime, porque seja, ele, a mais alta jurisdição administrativa da República.

193.

3.14 OUTRAS COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS

As demais competências (incisos III a IX) são relativas a (resumidamente):

apreciar a legalidade dos atos de admissão e de aposentadoria, pensões

ou reformas;

realizar, por iniciativa própria, das Casas Legislativas ou suas comissões,

inspeções e auditorias em qualquer unidade dos Poderes ou demais

entes do Estado;

fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais;

fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União aos

Estados, Distrito Federal ou Municípios;

prestar as informações solicitadas pelo Poder Legislativo sobre a

fiscalização e os resultados de suas auditorias e inspeções;

aplicar aos responsáveis em caso de ilegalidade de despesa ou

irregularidade de contas, as sanções que a lei prescrever, inclusive multa

pecuniária;

assinar prazo para providências corretivas;

sustar, se não atendido, a execução de ato impugnado;

representar o Poder competente sobre irregularidades ou abusos

apurados.

193

CIRNE LIMA, Ruy. Pareceres (Direito Público). Porto Alegre: Sulina, s.d. p. 245 et seq.

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183

Ainda constam outras competências destinadas a dar exequibilidade àquelas

acima expostas.

Merece destaque a atribuição outorgada pela Carta, primariamente, ao

Tribunal de Contas, qualificando-o como ente instrumental à República e à

Democracia, com vias à cidadania: qualquer cidadão, partido político, associação ou

sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou

ilegalidade perante o Tribunal194.

Outras competências incluem, como ente colaborativo, em face de suas

informações técnicas, para a intervenção da União nos Estados e Distrito Federal;

dos Estados nos seus Municípios, como determinam os artigos 34, VII, d e 35, II, da

Constituição.

É momento de excepcional gravidade institucional ao qual a Corte de Contas

é chamada, quando os ilícitos pela inobservância da prestação de contas. O

conteúdo do dispositivo, segundo o autor, é mais amplo: não basta prestar contas:

elas têm de ser fidedignas, confiáveis e demonstrarem que correspondem que

houve desincumbências efetivas relativas aos princípios e regras relativas à

administração pública.

3.15 COMPETÊNCIAS INFRACONSTITUCIONAIS

Também a legislação complementar ou ordinária outorga competências à

Corte de Contas.

A Lei Complementar nº 101/2000 atribui ao Tribunal de Contas o controle e

os registros, mediante relatórios de gestão fiscal, apreciados ou julgados no âmbito

da corte, universalizando o conjunto de administradores ou gestores, para fins de

controle das metas, limites, destinação de recursos e demais obrigações legais.

194

O autor critica apenas a distinção que o texto faz entre irregularidade ou ilegalidade. Seria a primeira ilícito frente a um regulamento? E a segunda, frente a uma lei? Como os regulamentos não são autônomos, diferentemente do direito administrativo francês, mas pendentes e determinados pela lei, entende-se que a irregularidade é também uma ilegalidade.

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184

Nas licitações (Lei nº 8.666/93) o Tribunal controlará as despesas

decorrentes de contratos e demais instrumentos decorrentes do procedimento

licitatório.

No âmbito do Poder Judiciário eleitoral, ao Tribunal de Contas foram

outorgadas competências de auditoria quanto à prestação de contas no regime

eleitoral brasileiro.

Segundo leis orgânicas próprias de cada Tribunal, compete-lhe, em

generalidade, a prestação de orientação técnica aos jurisdicionados, mediante

procedimentos consultivos (semelhantes ao da Justiça Eleitoral e órgãos executivos,

como órgãos de receita tributária).

É uma função relevante que orienta, aprimora e aperfeiçoa a administração

pública e seus agentes, assim como previne os ilícitos195.

3.16 SÚMULA Nº 347 DO STF: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE CONTAS PARA

APRECIAR A CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS E ATOS

Outra competência, cuja relevância decorre da sua instituição pelo Supremo

Tribunal Federal, é a decorrente da Súmula nº 347:

“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a

constitucionalidade das leis e atos do poder público”.196

Essa apreciação não implica declarar a constitucionalidade (ou

inconstitucionalidade) das leis e atos que estejam em submissão perante o Tribunal

de Contas. Essa seria competência exclusiva dos tribunais judiciários.

195

O Tribunal de Contas do Estado (RS) criou sua unidade própria para os fins didáticos da consulta, inclusive para seus próprios servidores, mediante a Escola de Gestão e Controle Francisco Juruena, autorizada especialmente pelo Ministério da Educação para cursos de especialização em gestão e controle públicos. O autor participou da criação (legal) e implantação desta Escola, tendo sido seu primeiro Diretor.

196 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 347. Aprovada em sessão plenária de 13.12.1963. Súmula da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal. Anexo ao Regimento Interno. Brasília: Imprensa Nacional, 1964. p. 151.

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185

Ocorre que, apreciada como inconstitucional uma lei ou ato sob parecer

prévio ou julgamento, o Tribunal de Contas não dará seguimento à lei ou ato.

Se for caso de lei (criação inconstitucional de cargos ou empregos públicos,

v.g.,) o Tribunal não lhes dará registro, na esfera da sua competência; se em caso

de ato (v.g., pagamentos ilegais), igualmente o Tribunal não os acolherá, mediante

impugnação para devolução e multa, conforme o caso.

É uma competência extraordinária atribuída pelo Supremo Tribunal Federal,

ainda mais que sumulada, mediante poder que nenhum órgão extrajudicial possui, o

que caracteriza ainda mais a aproximação do Tribunal de Contas com os tribunais

judiciais em suas funções judicialiformes197.

Com o exame das competências do Tribunal de Contas da União, aplicáveis

simétrica e federativamente, às demais cortes de contas, resgata-se, que a partir da

Exposição de Motivos ao Decreto nº 966-A, Ruy Barbosa, em aula inaugural sobre o

Tribunal de Contas, afirmara:

o Tribunal de Contas é uma instituição democrática;

resulta de uma Constituição livre destinada a firmar constituições

democráticas em bases sólidas;

providência de uma sociedade política bem constituída, exigida dos seus

representantes;

o Tribunal de Contas é um corpo da magistratura intermediária à

administração e à legislatura;

cercado de garantias, com atribuições de revisão e julgamento;

exerce funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-

se em instituição de ornato aparatoso e inútil;

os membros do Tribunal de Contas são nomeados pelo Presidente da

República, sujeitos à aprovação do Senado;

197

Também aos servidores públicos é-lhes defeso cumprir lei inconstitucional. Quem cumpre lei inconstitucional desonra a Carta Magna. Assim, não apenas a Súmula n. 347 do Supremo Tribunal Federal é instrumento protetivo da Constituição. De resto, é dever do servidor público.

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186

gozarão seus membros das mesmas garantias de inamovibilidade dos

membros do Supremo Tribunal Federal;

incumbe-lhe o exame, a revisão e o julgamento de todas as operações

concernentes à receita e despesa da República;

todos os decretos do Poder Executivo, ordens ou avisos de Ministérios,

que sejam suscetíveis de criar despesas ou interessar às finanças da

república, para poderem ter publicidade e execução, serão sujeitos

primeiro ao Tribunal de Contas, que os registrará quando reconheça que

não violem disposição de lei nem excedam os créditos votados pelo

Poder Legislativo;

julgará anualmente as contas de todos os responsáveis pelas mesmas,

independentemente dos Ministérios a que pertençam, dando-lhes

quitação, condenando-os a pagar, e, quando não o cumprem, mandando

proceder na forma de direito198.

3.17 NATUREZA JURÍDICA DO TRIBUNAL DE CONTAS

Para Ricardo Lobo Torres, o Tribunal de Contas está essencialmente ligado

à democracia e à República. No Brasil, como o fora em Atenas, em Roma e entre os

hebreus, é instrumento necessário e pela dimensão legitimadora e financeira da sua

atuação, indissolúvel com a concretização dos direitos humanos:

A democracia hodierna é representativa e participativa, como deixa claro a CF de 1988, assegurando às associações e demais órgãos da comunidade a possibilidade de defesas dos direitos públicos, coletivos e difusos.

198

BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal brasileira. Colligidos e ordenados por Homero Pires. São Paulo: Saraiva & Cia., 1934. v. VI. p. 448 et seq. (Mantida a grafia original do título da obra). A Exposição de Motivos ao Decreto 966-A está transcrita nesta obra. O autor anexa cópia graficamente fiel e integral desse documento histórico grafado manuscritamente no Livro de Decretos da primeira república e obtida na Fundação Casa de Ruy Barbosa na cidade do Rio de Janeiro. Exposição de Motivos ao Decreto 966-A. Cópia graficamente autêntica em anexo. O autor fez um resumo didático do longo texto de Ruy Barbosa.

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187

O Tribunal de Contas, que está essencialmente ligado aos direitos fundamentais, pela dimensão financeira que estes exibem, aparece na CF 88 como uma das garantias institucionais da liberdade, a que o cidadão tem acesso através das garantias processuais. Pode a comunidade invocar a proteção do Tribunal de Contas para o combate à corrupção, para o controle dos incentivos fiscais, para promover a fiscalização sobre as entidades financeiras privadas que, causando prejuízos a terceiros, possam atingir o Tesouro, para fixar o valor do dano ambiental causado por funcionário público ou terceiros, etc.

199.

A partir de uma visão republicana, Carlos Ayres Britto, entende:

8. O controle externo e seu vínculo funcional com o princípio republicano

8.1 Tão elevado prestígio conferido ao controle externo e a quem dele mais se ocupa, funcionalmente, é reflexo direto do princípio republicano.

Pois, num República, impõe-se responsabilidade jurídica pessoal a todo aquele que tenha por competência (e consequente dever) cuidar de tudo que é de todos, assim do prisma da decisão como do prisma da gestão.

E tal responsabilidade implica o compromisso da melhor decisão e da melhor administração possíveis. Donde a exposição de todos eles (os que decidem sobre a “res publica” e os que a gerenciam) à comprovação do estrito cumprimento dos princípios constitucionais e preceitos legais que lhes sejam especificamente exigidos.

A começar, naturalmente, pela prestação de contas das sobreditas gestões orçamentária, financeira, financeira, patrimonial, contábil e operacional.

8.2 É essa responsabilidade jurídica pessoal (verdadeiro elemento conceitual da República enquanto forma de governo) que demanda ou que exige, assim, todo um aparato orgânico-funcional de controle externo. E participando desse aparato como peça-chave, os Tribunais de Contas se assumem como órgãos impeditivos do desgoverno e da desadministração.

200

Para Diogo de Figueiredo Neto, as Cortes de Contas sofreram uma longa

evolução: de órgãos tradicionais de controle a órgãos de controle democrático nos

Estados policráticos.

199

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 179-180. Ricardo Lobo Torres junciona e dá relevo às funções do Tribunal de Contas como instituição serviente aos direitos humanos fundamentais, por suas atribuições na Carta de 1988, como cidadão - individualmente, ou como integrante da comunidade, vale dizer, da sociedade civil.

200 BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas – órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 59-75. p. 59 et seq. Carlos Ayres Britto tem uma concepção republicana, inspirada na república romana, quanto aos cometimentos e responsabilidades dos administradores públicos.

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188

Para Diogo de Figueiredo Neto o Tribunal de Contas tem um novo papel

institucional inscrito na Carta de 1988.

Esse papel é de órgão de vanguarda na concretização de suas funções de

órgão (de outros) no controle democrático nos Estados policráticos.

Para esse autor, resulta de um processo evolutivo, desde o Tribunal de

Contas idealizado por Ruy Barbosa, que tinha finalidade saneadora e moralizante

das finanças públicas e reorganizadora da contabilidade pública, ultrapassando

também a fase essencial à república, na lição de Carlos Ayres Britto.

As cortes de contas: de órgãos tradicionalmente de controle contábil a órgãos de vanguarda de controle econômico-financeiro nos Estados policráticos e democráticos.

Poucos órgãos do Estado contemporâneo podem exibir um percurso histórico quase militar, mas são ainda mais raros os que evoluíram e atualizaram as suas funções desde sua origem à atual conformação, com que, mutatis mutandis, atualmente se apresentam, nas diversas estruturas do Poder Político.

Com efeito, nesse longo período, desde as conformações pré-renascentistas às renascentistas do Estado, passando pelas estruturações intermédias, do Estado páleo-liberal, do Estado de direito e dos vários modelos de Estado intervencionista, até a atual configuração do Estado democrático de direito, os órgãos de contas foram se adaptando às multiplicadas e cambiantes necessidades de atender aos controles da gestão dos dinheiros públicos.

[...]

Em suma: nessa evolução histórica, os órgãos de contas alcançaram indubitavelmente sua maturidade e máxima prestância, deixando de ser apenas órgãos do Estado para serem também órgãos da sociedade no Estado, pois a ela servem não apenas indiretamente, no exercício de suas funções de controle externo, em auxílio da totalidade dos entes e dos órgãos conformadores do aparelho do Estado, por sua acrescida e nobre função de canal do controle social, o que o situa como órgãos de vanguarda dos Estados policráticos e democráticos que adentram no século XXI.

201

Nesse passo, pode-se afirmar que o Tribunal de Contas é instituição do

Estado Democrático de Direito, órgão da sociedade e do homem, cujas

competências constitucionais são exercidas com independência e autonomia.

201

FIGUEIREDO NETO, Diogo de. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos tribunais de contas. In: SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas – órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 77-130. p. 128-130.

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189

Não se subordina, nem se vincula hierarquicamente a qualquer Poder, dos

quais não são delegatários.

Sua fonte de independência e competências deriva primariamente da

vontade soberana do povo expressa na Carta Magna da República.

Tribunal é, mas um tribunal sui generis, que, assemelhado aos tribunais

judiciais, é também órgão de colaboração com os Poderes e Instituições do Estado.

É indispensável, indisponível e indelegável pela natureza da sua inserção na

república democrática202.

Apresenta, contudo, problemas ou lacunas.

A primeira questão que se aflora quanto às Cortes de Contas é de ordem

estrutural na Constituição de 1988.

Repisa-se, nessa primeira questão e nas demais, que elas são igualmente

pertinentes aos demais Tribunais, por força do modelo impositivo adotado pela Carta

aos Estados, Distrito Federal e Municípios, como determina o art. 75.

3.18 PROBLEMAS E LACUNAS – PROPOSTAS

O art. 70, caput, determina que o controle externo, a cargo do Congresso

Nacional, será exercido COM O AUXÍLIO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO.

Expressão, como acima demonstrado, tem orientações doutrinárias

controvertidas.

De um lado, o Tribunal seria um órgão auxiliar do Poder Legislativo.

Para outros, ainda que auxiliar, dispõe de autonomia no exercício das suas

atribuições.

Há os que defendem a ideia de que o Tribunal de Contas é órgão ancilado

do Poder Legislativo.

202

Conceito oferecido pelo autor.

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190

Nas discussões polêmicas durante a elaboração da Carta de 1946, conforme

exposto, embora admitidas competências de julgamento, o Tribunal foi considerado

órgão do corpo legislativo.

A jurisprudência, a partir da Carta de 1946, orientou-se pela definição do

Tribunal como órgão auxiliar, o que implicaria submissão e dependência.

Transcreveu-se (parte da ementa) da ADI 4190/RJ, cujo voto do Min. Celso

de Mello acentuou com incisividade a ostentação que os Tribunais de Contas

postam na estrutura constitucional brasileira institucionalizada na Carta Federal,

decorrência da qual não estão subordinados por nenhum vínculo de ordem

hierárquica, delegatárias, ou assessoramento aos corpos legislativos.

A expressão ali constante conduz a equívocos, a uma buscada prevalência

do Poder Legislativo sobre a atuação técnica da Corte de Contas, assim como sobre

a sua composição.

Danosa e equivocada, a expressão merece tratamento.

Propõe-se, com singeleza, a sua defenestração da Carta, restando ao

dispositivo: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional e do Tribunal de

Contas da União, ao qual compete [...]”.

Solucionam-se as polêmicas fundadas com interesses políticos

diversionistas na malfadada expressão “com o auxílio”.

Auxílio, como ali constante, é subordinação, hierarquização e dependência.

Na realidade constitucional e técnica, assim não resta independência para o Tribunal

de Contas ser a Instituição de Estado como fixada na Carta, ao âmbito do Estado

Democrático de Direito.

A solução pode ser confiada a uma ação (espécie a definir), mediante

ativismo da Associação própria, da Procuradoria da República, através de

representação, ou segundo a nominação dos sujeitos ativos previstos na Carta.

Emenda constitucional supressiva igualmente teria o mesmo efeito final.

Ao autor resta apenas registrar o problema. Ele, igualmente, não se esquiva

de propor solução.

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191

Outro problema está inserido no parágrafo primeiro do art. 73 da Carta

Federal.

Trata-se da nomeação para os cargos de Ministro do Tribunal de Contas da

União.

A Carta estipula os seguintes requisitos:

mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco anos de idade;

idoneidade moral e reputação ilibada;

notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou

de administração pública;

mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade

profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior.

Esses requisitos não estão densificados em legislação própria.

De um lado, a União e as unidades federativas adotam, quando adotam,

critérios distintos para a sua aferição.

Falta-lhes, portanto, concretitude.

São dispositivos vazios, os quais implicariam fixar os critérios de aferição.

Não seriam normas constitucionais, mas ordinárias, adequadas a uma lei

orgânica e nacional a todas as Cortes de Contas, cujo principal efeito seria a

homogeneidade de procedimentos legais.

Veja-se o primeiro requisito relativo à idade. A sua prova simples é a

documentabilidade hábil203.

203

Já ocorreu situação excepcional em Tribunal de Contas estadual: às vésperas da aposentadoria compulsória, conselheiro ajuizou ação não contenciosa para corrigir a sua idade, diminuindo-a naturalmente. Como as nomeações pelos cargos são disputadas, as consequências demonstram que os mínimos detalhes dos requisitos devem ser minuciosamente observados. No caso, havia dois documentos que comprovavam idades distintas, requerendo-se ao juízo de registros pessoas naturais a solução da controvérsia.

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192

Da mesma forma, o quarto requisito relativo ao tempo de exercício de função

ou de efetiva atividade profissional para os quais são exigidos os conhecimentos

notórios antes referidos.

Trata-se de fixar procedimento igualmente orgânico e nacional, do qual

decorra a homogeneidade federativa para a nomeação de futuros Ministros.

Quanto à idoneidade moral e a ilibada reputação, assim como os notórios

conhecimentos exigidos, apresentam situações mais complexas para serem

normatizada.

Visando à propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito

Constitucional, a Associação Nacional do Ministério Público de Contas, AMCON, e

outros, qualificadamente autoridades representativas do Ministério Público junto ao

Tribunal de Contas e Procuradoria Regional da República, firmaram representação

encaminhada ao Procurador-Geral da República no sentido de propor ao Supremo

Tribunal Federal a razoável interpretação do artigo 73, parágrafo primeiro e incisos,

que tratam das exigências para a nomeação de Ministros com cadeira no Tribunal

de Contas da União, definindo a forma de demonstração do atendimento àquele

comando constitucional e, por outra, estabelecendo os elementos impeditivos de

reconhecimento da satisfação dos requisitos para investidura em cargos de Membro

da Corte de Contas.

Sem perquirir sobre a legitimidade da medida judicial proposta, porque ela

aparenta, se deferida e definidas as formas de demonstração e elementos

impeditivos que tratam do pedido, invasão de competência do Poder Legislativo, a

quem competiria, em primeiro plano, definir normativamente o cumprimento de

norma constitucional dele emanado204.

204

A representação, que se preambula com o seguinte pensamento de Baruch Spinoza: “Exatamente da mesma maneira que a luz revela a si própria e as trevas, assim também a verdade é norma de si própria e do falso.” SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 137, aponta o que denomina de “repetidos episódios que sugerem o preenchimento de vagas em Tribunais de Contas em todo o País possa ter atendido a interesses pessoais ou de partidos políticos. Trata-se de fenômeno detectado em âmbito nacional, gerando perplexidades, e que tem demandado da sociedade civil ações em defesa da legalidade e da efetividade das instituições do Estado, raramente exitosas em seu objetivo. E explicita essas ações: Ação Popular (processo 2003.34.00.029866-8) intentada contra nomeação de Ministro para o Tribunal de Contas da União. Foi obtida liminar.

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193

Subsidiou-se parlamentares da Assembleia Legislativa do Estado do Estado

do Rio Grande do Sul na tentativa de uma solução mais premente.

Aventou a possibilidade de proposta de uma resolução de plenário naquele

corpo legislativo.

Seu texto, bastante econômico, se detinha em um único aspecto: a

comprovação documental perante Comissão da Casa de todos os requisitos

constitucionais, previamente, em prazo determinado, mediante apresentação de

documentos legais e privados, reconhecidos e autenticados. Esses ficariam em

exposição, a exemplo do que acontece com os documentos públicos nos países

nórdicos, podendo qualquer um, pessoa física ou jurídica, impugnar ou pedir

esclarecimentos sobre a documentação.

Garantido o devido processo legal, ao candidato ao cargo seria oportunizada

a ampla defesa e o contraditório.

A proposta legislativa recebeu o selo numérico PR nº 01/2009, quedando-se

inerte205.

Ação Civil Pública (2002.34.00.020228-9) promovida pelo Ministério Público Federal e Ordem dos Advogados do Brasil contra a mesma nomeação acima imediatamente referida. Ação Civil Pública (2008.80.00.003235-2) promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil por vícios relativos na escolha de Conselheiro para o Tribunal de Contas de Alagoas. Relativamente ao Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Medida Cautelar na Reclamação Constitucional 6.702-5, em Ação Popular contra nomeação de irmão do Governador do Estado para o cargo de Conselheiro da corte local. Contra indicação da esposa do então Vice-Governador do Estado de Minas Gerais ao respectivo Tribunal de Contas foi ajuizada Ação Popular (processos 002406215667-4 e 2156674-53.2006.8.13.0024). Ainda, no Rio Grande do Sul, Mandado de Segurança impetrado por entidades associativas e profissionais dos servidores do Tribunal de Contas e outros (TJRS MS 70033930199) objetivando impedir a posse de Conselheiro nomeado para aquela corte. Contra o mesmo fato (acima) o Ministério Público de Contas apresentou representação na própria Corte (Representação MPC nº 33/2209). Finalmente arrrola a nomeação, para o Tribunal de Contas do Estado, de ex-chefe da Casa Civil do Poder Executivo e filho do próprio Governador do Estado e ex-chefe da Casa Civil do Poder. Não noticia ação judicial ou administrativa, embora informe sobre a repercussão do fato. Sustenta a representação dirigida ao Procurador-Geral da República que os atos de indicação e nomeação, amplamente indicáveis, embora com natureza política, são vinculados a determinados critérios. Quando descumpridos, como nos casos concretos arrolados, por terem vertentes familiares e de composição ou acordos de partidos políticos, caracterizaria o desvio de finalidade, segundo fundamenta a propositura de representação.

205 A Resolução de Plenário está inscrita no rol do processo legislativo, art. 59, VII, da Constituição Federal. Tem força de lei, com ou sem efeitos externos, a exemplo do decreto legislativo. Diferente seria o caso da Resolução de Mesa, mero ato administrativo, inadequado para os fins a que se propunha.

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194

O autor tem proposta de maior amplitude; não se limita desde logo ao cotejo

judiciário entre a norma e o dever (e como) cumpri-la.

A escolha dos candidatos a Ministros (e Conselheiros) obedeceria a um

sistema aproximado ao de Portugal.

Os candidatos, cinquenta por cento do colegiado, são oriundos do cargo de

desembargador, em exercício.

Submetem-se a um processo seletivo direcionado, denominado de júri

(houve caso de um único candidato submetido ao júri). Os demais, recrutados entre

autores de doutrina afeta às finalidades do Tribunal, professores acadêmicos ou

renomados advogados ou ocupantes de cargos públicos com conhecimentos afins,

igualmente são submetidos a uma seleção pública.

O autor propõe, mediante rígida regulamentação, que, aberta a vaga de

Ministro, o Poder Legislativo instaure seleção pública, mediante edital, designação

de comissão para aferir os documentos relativos às exigências constitucionais, e,

recrutada banca de seleção, realize as provas de títulos e de exposição oral, esta

com temas indicados no edital e sorteados aos candidatos.

Aqueles que fossem aprovados seriam, então, submetidos ao exame do

Plenário da Casa Legislativa.

Ressalvam-se os Ministros Substitutos e Procuradores de Contas, os quais,

previamente concursados seriam escolhidos – individualmente – pelo próprio

Tribunal de Contas, para compor o corpo do Pleno do Tribunal.

Para esse fim e completa adequação ao dispositivo constitucional vigente

(art. 73, parágrafo primeiro, incisos I a IV), quando da realização do concurso

desses, também seria exigida a comprovação documental, na forma da lei, dos

requisitos referidos nos incisos I a IV206.

A escolha os Ministros Substitutos (assim do Procurador de Contas junto ao

Tribunal de Contas) para o cargo de Ministro do Tribunal de Contas exige, além do

cumprimento dos critérios supra referidos, também critérios de antiguidade ou 206

São requisitos relativos à idade; idoneidade moral e reputação ilibada; notórios conhecimentos especificados e mais de dez anos de exercício de função ou efetiva função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos especificados.

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mérito, a lei preconizada também regrará esses critérios, estabelecendo regras para

a indicação.

Observa-se que o Supremo Tribunal Federal já pacificou a necessidade de

concurso público para os cargos de Ministro Substituto e Procurador no Tribunal de

Contas, eliminando prática inconstitucional, até então, em alguns Tribunais

estaduais, de nomeação desses agentes em cargos comissionados ou

independentemente do certame público207.

Entende-se que, obtido sucesso na ação própria que decorrer no Supremo

Tribunal Federal resultante da representação acima referida, estaria solucionada por

via judicial, embora as ressalvas quanto ao pedido concreto e acima expostas.

Propõe o autor outro caminho: carecem os Tribunais de Contas de uma lei

orgânica e nacional, que trate devidamente dessa matéria. Também são

carecedores de outros provimentos legislativos o processo no Tribunal de Contas, a

quantificação das penas pecuniárias, além da indispensável harmonia operacional

nas auditorias e inspeções e emissão de parecer prévio.

Por essa razão, inclina-se, como se intentara localmente, por solução

legislativa.

Outra questão, antecipada acima, refere-se à lacuna legislativa e relativa à

multa prevista no art. 71, VII, que trata de “[...] aplicar aos responsáveis, em caso de

ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que

207

No Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, o cargo de Conselheiro Substituo é privativo de advogado, segundo disposição legal. O autor participou, como representante da Corte, em face de mandatos de segurança. No primeiro, a Corte adotou critérios conjuntos (misto) de antiguidade e merecimento para a elaboração da lista tríplice. Somente o primeiro nominado na lista tríplice era indicado por antiguidade; os dois seguintes foram escolhidos por critérios de mérito, em votação secreta pelo Tribunal Pleno. Em completo desacordo com a Carta Federal, a qual determina a alternância entre mérito e antiguidade. A decisão do Tribunal de Justiça local, com trânsito em julgado, inclinou-se pela determinação da elaboração da lista (foi o primeiro caso nesse Tribunal de Contas) por critérios de antiguidade, cabendo à seguinte vaga para Conselheiro Substituto o critério de mérito. No mesmo Tribunal de Contas registra-se, ainda, representações e ações judiciais por inconformismo com a exigência de titulação em direito para os candidatos ao concurso público para Conselheiro Substituto. Na primeira das ações, o autor atuou igualmente como representante da Corte perante o Tribunal de Justiça. O desenlace da ação manteve hígida a norma ordinária e o prosseguimento do concurso, cujo edital se coadunava com a regra estipulada que exigia diploma (e experiência) como advogado.

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estabelecerá entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao

erário”.208

A multa proporcional (outra lacuna) aqui referida ainda não fixada em

legislação constitucional infraconstitucional, por provimento legislativo previsto na

Carta por lacuna legislativa.

Igualmente permanecem lacunosas outras previsões legislativas previstas

na Carta; dentre elas as “outras cominações”, como a devolução de valores e outras

sanções previstas e a serem estabelecidas, posto que a Carta se refere à uma

pluralidade cominatória.

Vêm ocorrendo distorções no particular: os Estados adotam cominações e

quantificações de penas pecuniárias, a título de multa proporcional, em valores

diferenciados de um Estado para outro.

Assim, o infrator pode ser beneficiador, segundo o Tribunal que lhe aplicaria

a cominação e a multa proporcional.

Consabidamente, a pena pecuniária no Estado do Rio Grande do Sul, nos

ilícitos referidos, está em patamares exíguos e abaixo dos patamares pecuniários de

outros Tribunais de Contas.

Afirmou-se acima a necessidade de lei orgânica (para todas as Cortes)

assim como a sua natureza nacional.

Resultaria no estabelecimento de um equilíbrio federativo na matéria,

saneando a lacuna apontada209.

208

A lacuna deverá ser suprida em legislação nacional que tornará homogênea a aplicação e os valores das penalidades pecuniárias, escoimando os distintos e variados procedimentos punitivos adotados pelos Tribunais de Contas.

209 A multa proporcional estabelecida no inciso VIII do art. 71 da Carta Federal remonta, em suas origens, à aplicação da proporcionalidade. Prevista a punição proporcional no Código de Hamurabi, após o exílio babilônico, os hebreus adotaram-se como princípio. Conhecida como lei de talião, o Velho Testamento a refere em vários livros e versículos. No Levítico, 24,21 consta uma de suas variantes, com natureza exemplificativa. É o mais literário do livro dos hebreus: “Quem matar um animal, deverá restituí-lo e quem matar um homem deverá ser morto”. Quanto à imposição de pena pecuniária, ela é a expressão da ação do poder de polícia. A fiscalização do Estado quedaria inócua e incipiente sem o poder de polícia. Julgada cometida a infração, a aplicação da pena pecuniária tem o efeito jurídico de completar o quadro de fiscalização. A glosa e o respectivo reembolso da despesa pública gasta indevidamente

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Outra lacuna é a relativa à definição das atribuições plenas da judicatura do

auditor (parágrafo quarto do artigo 73 da Constituição)210.

Ele dispõe:

Parágrafo 4º O auditor, quando em substituição a Ministro terá as mesmas garantias e impedimentos do titular e, quando no exercício das demais atribuições da judicatura, as de juiz do Tribunal Regional Federal.

Além da lacuna quanto à definição “das demais atribuições de judicatura dos

auditores”, outros problemas se apresentam.

Em primeiro plano, os equívocos resultantes da denominação de auditor

para o membro do Tribunal de Contas, cuja primeira atribuição é a substituição de

Ministro. Essa denominação – de auditor, se confunde com a nominação dos

técnicos dos Tribunais, igualmente denominados de auditor, no caso do Tribunal do

Rio Grande do Sul, auditor público externo, enquanto que o auditor previsto na

Constituição é nominado como auditor substituto de conselheiro.

A Lei Federal nº 12.811/2013211 nomeou os auditores acima referidos de,

também, Ministros Substitutos212. O diploma contornou a Carta Federal.

não é punição, apenas recomposição do patrimônio público. A pena, por seu turno, é a sanção pela ilegalidade. Não se atribui a essa pena, nem qualquer outra, um efeito didático amplo: a punição de uma pessoa (no caso um agente público) não deve ter a pretensão do espetáculo. O machado e a guilhotina eram espetáculos públicos – o que lhes dava um aspecto de selvageria .A civilização evoluiu para outros comportamentos, com o resguardo da dignidade da pessoa humana.

210 Para o autor, decorrente do seu exercício no cargo de Conselheiro Substituto, a lacuna quanto à definição das “demais atribuições de judicatura” (Parágrafo quarto do art. 73 da Carta) é a de maior amplitude.

211 Dispõe o artigo 3º da Lei Federal nº 12.811, de 16 de maio de 2013, publicada no DOU de 17.5.2013: “Os titulares do cargo de Auditor de que trata o parágrafo quarto do art. 73 da Constituição Federal, os quais nos termos do texto constitucional, substituem os Ministros e exercem as demais funções da judicatura, presidindo processos e relatando-os com proposta de decisão, segundo o que dispõe o parágrafo único do art. 78 da Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992, serão denominados de Ministros Substitutos.”

212 Em atenção à comandada simetria federativa, lei do Estado do Rio Grande do Sul – Lei nº 14.413, de 2 de janeiro de 2014, publicada no D.O. de 3 de janeiro de 2014, p. 3. Em razão desta lei, foi alterado o artigo 13 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul – Lei nº 11.424/2.000 –, cujo dispositivo passou a vigorar com o seguinte texto: “Art. 13. Os titulares do cargo de Auditor de que tratam o parágrafo 4º do art. 73 da Constituição Federal e o parágrafo 2º do art. 74 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, substituem os Conselheiros e exercem

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Quanto à denominação dos Ministros Substitutos e Conselheiros Substitutos,

pensa-se que a alteração nominativa dos anteriores auditores e auditores substitutos

de conselheiros deveria constar em comando constitucional. Mas como produção

legislativa, ela atende às equivocadas interpretações, inclusive judiciais, que vinham

ocorrendo.

O cerne do problema é, contudo: as demais atribuições de judicatura.

Os dois diplomas, federal e estadual (do Estado do Rio Grande do Sul) cujos

dispositivos se transcreveu, atribuem: presidir processos e relatá-los com propostas

de decisão213.

Do texto legal verifica-se que os Ministros Substitutos têm dupla

denominação: uma com base constitucional e outra com base em lei ordinária.

A solução é, nas circunstâncias, satisfatória.

Mas ainda resta uma lacuna que as leis ordinárias referidas não solucionam.

Em qual catalogação de processos da corte de contas atuam os Ministros e

Conselheiros Substitutos nas suas “demais atribuições de judicatura”, visto que em

substituição assumem o rol de processos distribuídos ao substituído?

No entendimento e proposta do autor, duas soluções podem ser aventadas:

a primeira, com a distribuição plena de processos, sem distinção de matérias ou

outros critérios distributivos.

as demais atribuições de judicatura, presidindo processos e relatando-os com proposta de decisão, também serão denominados Conselheiros Substitutos.

213 Quando o autor exerceu o cargo de Auditor Substituto de Conselheiro, além da substituição, a outra atribuição era relativa a pareceres requeridos para os processos das atividades-fins (eventualmente das atividades-meio) em tramitação na Corte. A requisição poderia partir do presidente, do colegiado ou do relator. O parecer era lavrado individual ou coletivamente, nessa hipótese com um relator. Os pareceres constituíam peça processual e com base neles era decidido o processo. Portanto, eles eram a sustentação das atribuições dos conselheiros e a fundamentação jurídica da decisão do tribunal. Os pareceres tinham prestígio no meio jurídico, inclusive junto à magistratura. Alguns deles foram pioneiramente interpretadores da Carta Federal, como o regime jurídico único dos servidores públicos, o limite remuneratório, ou ainda, a definição do secretário municipal como exercente de agenciamento político, ao contrário do pensamento anterior, que o vinculava a cargo em comissão como ocupante de cargo. Eram publicados em revistas, originaram obras e caracterizaram a corte de contas local, pela qualificação dos seus Auditores Substitutos.

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199

A segunda poderia considerar o critério de matérias: v.g., processos relativos

aos poderes legislativos municipais.

Em qualquer solução, o corpo de Ministros Substitutos e Conselheiros

Substitutos (estes no Tribunal do Rio Grande do Sul são fixados em número de sete)

deveriam compor câmaras próprias, com a presidência de um Conselheiro, prática

anteriormente adotada no Tribunal local, em caráter emergencial face acúmulo de

processos, e da qual os resultados positivos em qualidade e quantidade para a corte

de contas.

São soluções propostas a um dissídio que já existe214.

O dissídio foi revelado também em literatura jurídica.

Jaylson Fabianh Lopes Campelo publicou artigo intitulado Avaliação da

Qualidade e Agilidade dos Tribunais de Contas do Brasil – Necessidade de

Adequação às Normas Constitucionais Quanto à Sua Composição, após descrever

as dificuldades políticas e internas quanto à plenitude das funções de judicatura dos

Conselheiros Substitutos, e aponta:

E o momento é extremamente propício à implantação do modelo constitucional, porque já se chegou a um patamar importante na vida dos Tribunais de Contas do Brasil, alcançando-os a um ponto a partir do qual não se pode mais retroceder, porque a sociedade já acordou e não aceita; porque os Tribunais já despertaram e não querem.

215

No mesmo sentido, Cláudio Augusto Canha e Luiz Henrique Lima.

Os autores narram os subterfúgios políticos e legislativos utilizados em

alguns Tribunais locais para a postergação da implantação do modelo constitucional

214

O dissídio aflora claramente no IV Encontro Nacional dos Tribunais de Contas, realizado em agosto de 2014, em Fortaleza, Ceará. Nele se fixaram diretrizes relativas aos Substitutos, a serem observadas pelos Tribunais de Contas: assento permanente no Tribunal Pleno e nas Câmaras; concretização das atribuições constitucionais ordinárias e eventuais de judicatura, com distribuição automática e igualitária dos processos; uniformizar a nomenclatura do cargo de Auditor nos tribunais estaduais e municipais para Conselheiro Substituto.

215 CAMPELO, Jaylson Fabianh Lopes. Avaliação da qualidade e agilidade dos Tribunais de Contas do Brasil – necessidade de adequação às normas constitucionais quanto à sua composição. In: LIMA, Luiz Henrique (Coord.). Tribunais de Contas – temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 51-68. p. 67.

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200

e a definição das substituições e demais atribuições de judicatura. Os subterfúgios

foram de ordem jurídica ou meramente procedimentais.

Ou seja, uma intencionada omissão de atribuir as demais funções de

judicatura, mesclada com a solerte confusão de nomenclatura com os técnicos que

atuam em serviços auxiliares, mas relevantes, das Cortes.

Luiz Henrique Lima registra, ainda, a longa e penosa marcha dos

acontecimentos, as dificuldades criadas artificialmente aos Substitutos216.

Esses cargos de Substitutos de Ministros ou Conselheiros, concebidos há

mais de noventa anos pelo Decreto nº 3.454/1918, sempre teve os predicamentos

institucionais republicanos de possuidor de garantias de magistrados que o

possibilita judicar com plena independência sem nenhuma subordinação, atrelados

exclusiva e somente ao ordenamento constitucional e legal, o que o diferencia

sobremaneira, de todos os demais cargos infraconstitucionais e infralegais, também

denominados de auditor.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (e igualmente dos demais

Tribunais) reconheceu aos Substitutos de Ministros e Conselheiros as suas

prerrogativas inerentes ao cargo e as atribuições constitucionais ou legais

necessárias ao seu desempenho. O rol de decisões judiciais favoráveis aos

Substitutos é de considerável volume.

As decisões que adiante se arrolam enfrentam de forma paradigmática e

abrangente o status e as funções do Auditor Substituto das Cortes de Contas. Elas

revelam que os Tribunais de Justiça locais apreciaram a polêmica sobre esses

magistrados e suas atribuições de judicatura plena.

O status dos Auditores dos Tribunais de Contas tem dado margem a muitas

perplexidades, que começam com a impropriedade da denominação do cargo,

ligada a uma tradição respeitável, mas totalmente divorciada do atual conceito de

atividades de auditoria.

216

LIMA, Luiz Henrique. Composição e funcionamento dos Tribunais de Contas – anotações à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: ______ (Coord.). Tribunais de Contas – temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 83-109.

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201

Imprópria, por isso mesmo, para designar o servidor que normalmente tem

assento no Plenário do Tribunal de Contas, com atribuições de relatar processos,

formalizar propostas conclusivas e exercer plena jurisdição quando convocado para

substituir Conselheiro ou Ministro217.

Arrolam-se as seguintes e incisivas decisões mandamentais, em grau de

Tribunal de justiça local: MS nº 5918-31.8.06.000/01, Tribunal de Justiça do Ceará;

MS nº 2012.00107425, Tribunal de Justiça de Sergipe; e MS nº 4001911-

74.2012.8.04.0000218.

Do decisum mandamental do Tribunal de Justiça sergipano:

[...] {da Constituição Federal, da Constituição de Sergipe e da Lei Orgânica do TCE-SE} é que o Auditor exerce a sua função ordinária, a judicatura própria e independente, razão pela qual tem direito líquido e certo a distribuição processual, devendo exercer o seu mister constitucional de magistrado presidente da instrução [...]. Mais adiante: [...] concedo a liminar pleiteada [...]. Deve se providenciar a imediata distribuição de processos de contas aos Auditores, com toda equidade, mediante critérios impessoais de sorteio aplicáveis a todos os magistrados da Corte de Contas, para que possam presidir a sua instrução dos processos, relatando-os perante os integrantes do Plenário ou da Câmara para a qual estiver designado.

219

Nessa última decisão, como as demais transcritas por Jaylson Fabianh

Lopes Campelo, já referenciado, a magistrada des. Marilza Maynaard Salgado de

Carvalho parece omitir propositadamente, após afirmar que os Substitutos de

Conselheiro deverão relatar os processos a expressão “propondo voto”".

É porque, em realidade, seria uma atribuição alheia à judicatura e, por isso

mesmo ao autor sobressai a observação de uma certa perplexidade da julgadora.

Com ela se concorda plenamente.

217

CAMPELO, Jaylson Fabianh Lopes. Avaliação da qualidade e agilidade dos Tribunais de Contas do Brasil – Necessidade de adequação às normas constitucionais quanto à sua composição. In: LIMA, Luiz Henrique (Coord.). Tribunais de Contas – temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 51-68. A decisão na ADI 1.994/SE do Supremo Tribunal Federal foi transcrita parcialmente por Jaylson Fabianh Lopes Campelo no artigo aqui referenciado.

218 Ibid.

219 LIMA, Luiz Henrique. Composição e funcionamento dos Tribunais de Contas – anotações à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: ______ (Coord.). Tribunais de Contas – temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 83-109.

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202

Após relatar, ao magistrado incumbe proferir voto.

Em assertiva final nesse tópico, observa-se que a referida proposta

conclusiva, ao relatar processo, não é atribuição de judicatura. Pode ser relevante,

provida de cerimonioso envolvimento nos Tribunais de Contas. Mas a proposta de

voto é apenas um subsídio oferecido, por mais qualidade jurídica que possua,

mesmo irrefutável, será avaliada pelos demais pares, como oferecimento de

proposta de decisão (como assim se apresenta) e ser rejeitada.

O substituto de Ministro ou de Conselheiro deve votar, exercendo os

cometimentos constitucionais do seu agenciamento político, outorgados diretamente

pela Carta Magna, sem mecanismos procedimentais que o desigualam na Corte.

A lei especificará quando, além da substituição, exerce com plenitude a

judicatura. Não serão as demais atribuições da judicatura tolhidas ou deformadas

pelo oferecimento de proposta de votos.

Outra lacuna observada pelo autor diz respeito à ausência de procuradoria

própria da Corte de Conta.

A medida também é ressentida por corpos legislativos.

A procuradoria estadual poderá ter atuação conflitante com o Tribunal de

Contas, que julga as contas da administração estadual.

Esse conflito, aflorado em oportunidades pretéritas, em contraditórios entre

as Cortes de Contas e os corpos legislativos estaduais, pode ser solucionado com a

criação de uma procuradoria judicial e extrajudicial própria e da intimidade da Corte

de Contas.

A orientação jurisprudencial é favorável220.

220

Quando os membros do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e a própria Corte ajuizaram perante o Supremo Tribunal Federal mandado de segurança contra dispositivos da Emenda Constitucional nº 12 à Constituição estadual, viu-se impelido a contratar eminente jurista recém-aposentado compulsoriamente do cargo de Ministro do Tribunal de Contas. Não contando com procuradoria própria, socorreu-se de serviços liberais de advocacia. O impedimento para a propositura da ação pela douta Procuradoria-Geral do Estado decorria de seu posicionamento favorável aos dispositivos acusados de inconstitucionais pela Corte de Contas. A primeira questão, em preliminar, no ajuizamento, foi a de legitimidade do Tribunal de Contas para a defesa das garantias e prerrogativas dos seus membros e dos predicamentos

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203

Propõe o autor, em âmbito dos processos de contas, também a adoção, via

legislativa, a adoção do instituto da audiência pública e do instituto do amicus curiae.

Ambas previstas em leis federais para processos no Supremo Tribunal

Federal: Lei Federal nº 9868/99 e Lei Federal nº 9882/99. Os artigos 6º (no primeiro

diploma) e os 7º, 9º e 20 (no segundo diploma) tratam da audiência pública.

O sentido que se imprime à proposta é mais abrangente do que aquele que

implica ouvir em audiência pública depoimentos de pessoas com experiência e

autoridade, ou manifestação de outros órgãos ou entidades na matéria submetida à

Corte Suprema.

A proposta é ouvir pessoas ou entidades, em audiência pública,

interessadas (e até mesmo afetadas) pela matéria sob discussão. Seria uma medida

relevante quanto à qualidade e quantidade dos serviços públicos, permitindo ao

Tribunal conhecer realidades econômico-sociais locais.

Mas, em se tratando de emissão de parecer prévio sobre as contas do

Presidente da República e demais chefes de Poder Executivo, a audiência pública

poderia arrolar depoimentos relevantes, os quais, quando reveladores de fatos até

então não colhidos, e ainda não julgados, obviamente, poderiam ensejar maior

senso de realidade objetiva ao julgamento das contas, assim como, paralelamente,

ser um instrumento democrático participativo e deliberativo.

Em relação às auditorias, o autor propõe a disseminação nacional de

práticas procedimentais de auditoria e inspeção bem sucedidas.

São os casos de atuação programática do Tribunal de Contas do Estado do

Rio Grande em áreas de serviços públicos como o de creches, educação primária,

meio ambiente, dentre outras, algumas com incisividade local, outras regionais, mas

uma parte ponderável terá amplitude nacional.

constitucionais da própria corte. Em preliminar, e contando com precedente jurisprudencial favorável a outro Tribunal de Contas, a preliminar foi superada, atribuindo-se ao Tribunal de Contas capacidade processual, embora ente desprovido de personalidade jurídica. A contratação foi objeto de ação popular na qual a decisão do Tribunal de Justiça local foi favorável ao Tribunal de Contas e seus Conselheiros. O pleito de criação de uma procuradoria própria já foi solucionado por assembleias legislativas, como a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, as quais possuem o seu próprio instrumento consultivo-judiciário.

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204

Exemplificativamente, arrolam-se os procedimentos previstos na Resolução

nº 888, de 9 de junho de 2010 e publicada no DE de 15.6.2010221.

A norma regulamentar aqui arrolada é aquela decorrente de adesão ao

Protocolo de Execução das Ações Governamentais para Realização da Copa do

Mundo de 2014, celebrado em 11 de maio de 2010.

A cláusula quarta daquele Protocolo autoriza o Tribunal de Contas estadual

a realizar os procedimentos fiscalizatórios.

Segundo a resolução, a cada órgão executor de despesas, bem como às

Secretarias de Fazenda estadual e municipal, autuou-se processo de tramitação

autônoma.

Conforme o art. 4º regulamentar, as inspeções são realizadas

periodicamente e in loco e os seus relatórios acompanham as fases do projeto e do

cronograma físico-financeiro da obra.

A consequência dessa fiscalização concomitante com as obras e as

despesas, em cada fase, é que, segundo o art. 5º, detectadas irregularidades na

execução do projeto, poderá o Conselheiro-Relator expedir recomendações ou

determinar medidas cautelares. Nessas se incluem a suspensão de despesas

públicas, a paralisação de obras ou sua correção, e assim por diante, obedecidos os

ritos regimentais atinentes aos demais tipos de processo de contas222.

A necessidade de uma lei orgânica e nacional para os Tribunais de Contas,

que adote procedimentos legais e regulamentares, para o autor, ficou explicitada.

Não só o exame de requisitos constitucionais – e seus critérios objetivos –,

para a investidura nos cargos de Ministros e Conselheiros, mas também a definição

221

Resolução do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Iniciativa regulamentar para fiscalizar, concomitantemente, a execução das obras públicas destinadas à realização da Copa do Mundo de Futebol, 2014, em Porto Alegre.

222 Trata-se de inspeções realizadas ao mesmo tempo em que se efetivam as despesas públicas (nas suas três fases financeiras: empenho, liquidação e pagamento – como determinado pela Lei nº 3420/ 1964), assim como sobre a concomitância da execução da obra pública. Não havia previsão para o procedimento prévio; é uma prática usual durante a vigência da Constituição de 1946, substituída pela verificação posterior. Atualmente, as normas legais deferem aos regulamentos operacionais sobre a inspeção e auditoria. Normalmente, são realizadas após os fatos consumados, embora o Tribunal possa sempre exercer a sua fiscalizadora ao tempo necessário para coibir o dano ao erário público. Assim acontece nas licitações, v.g., ou mediante denúncias formuladas ao Tribunal de Contas.

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205

das demais atribuições de judicatura dos Ministros Substitutos e Conselheiros

Substitutos, e todos os demais problemas arrolados, devem ser contemplados em

norma orgânica com alcance nacional, formando um sistema homogêneo, coerente,

racional e lógico de controle de contas.

Nesse passo, o controle externo, a cargo do Tribunal de Contas, que não é

órgão auxiliar do Poder Legislativo, independente, com sua figuração constitucional

derivada direta e primariamente da Carta, constituído de magistrados assemelhados

aos magistrados do Poder Judiciário, tem um papel democrático e republicano, que

jamais lhe foi subjacente.

Quanto à política de ações relativas de responsabilização objetiva

administrativa e civil de pessoas jurídicas pelas práticas ilícitas de corrupção, ao

Tribunal de Contas atribuíram-se novas competências, inscritas na Lei nº 12.846/13

(conhecida como lei anticorrupção).

Ruy Barbosa fincara raízes para a criação do Tribunal de Contas nos fatos

financeiros e contábeis ocorridos no regime que viria a ser substituído em 1889.

Expressava Ruy os desvios de execução na lei orçamentária e na

desorganização da contabilidade pública.

Cesar Santolim, objetivando atividades controladoras eficientes, neste

particular e em decorrência de sua formação acadêmica e experiência profissional,

entende que as auditorias exigem atuação específica, mediante agregação de

conhecimentos das melhores práticas de fiscalização e controle, capazes de impor

aos gestores corruptos a atuação eficiente e eficaz de uma política legal

anticorrupção.

Explicita Cesar Santolim, quando se refere aos Tribunais de Contas:

[...] sugerem a importância de encontrar meios adequados ao enfrentamento dessa situação, em relação à qual, parece evidente, os órgãos de controle em geral (e os órgãos de controle externo das contas públicas em particular, de que são os Tribunais de Contas, no modelo brasileiro, têm especial responsabilidade.

[...] Assim, vista a corrupção como dependente de um sistema eficiente de (des)incentivos, os Tribunais de Contas, no exercício de suas atribuições,

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podem ser importantes geradores de rente-seeking costs, contribuindo para coibi-la.

[...] Na hipótese de “responsabilização administrativa” (Capítulo III da lei), que são sem qualquer dúvida, casos de “poder/dever” da Administração, caberá aos Tribunais de Contas fiscalizarem a adequada e correta aplicação da lei, pelos gestores, naquilo que for de suas competências. O administrador público que não efetivar a responsabilização administrativa dos casos de “atos lesivos à administração”, independentemente de não estar ele mesmo envolvido na prática desses atos, responderá perante os órgãos de controle externo, nos termos do caput do art. 70 da Constituição Federal.

Caberá às Cortes de Contas aparelharem-se dos conhecimentos necessários à implementação das melhores práticas de fiscalização e controle, capazes de induzir corruptos e corruptores a considerar “alto custo” a atividade da corrupção, o que será a melhor forma de combatê-la.

223

Duas providências, de ordem legislativa, formulam-se adequadas para esse

fim, de combate à corrupção, e igualmente adequadas para as demais atribuições.

Criação de uma escola nacional de controle externo da administração

pública.

Aprovação de lei processual, nacional, para os processos de contas que se

submetem aos Tribunais de Contas.

A ótica de Cesar Santolim é a de analisar e conjugar a matéria corrupção

sob os conceitos teóricos e legais, imbricando Direito e Economia (Law &

Economics); isso resulta em complexa e mais completa apreensão do problema

legal, econômico e as técnicas necessárias para a atuação do Estado através do

seu controle, mediante ação do Tribunal de Contas.

Conclui-se: a corrupção é o devido e relevante, no atual quadro

administrativo e financeiro do país, objeto do Tribunal de Contas.

Ele, o controle, é ancestral à humanidade. Está referido poeticamente no

Velho Testamento como norma impositiva aos reis e oficiais; Roma e Grécia

adotaram-no.

223

SANTOLIM, Cezar. A lei anticorrupção e os Tribunais de Contas. In: LIMA, Luiz Henrique (Coord.). Tribunais de Contas – temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 217-224. p. 217, 221-224.

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207

Nasce o Tribunal de Contas, como instrumento de controle, das ruínas da

Bastilha.

No Brasil, somente a proclamação de uma República permitirá a instalação

da Corte de Contas.

Como sempre, entram em ocaso e emasculação nos regimes autoritários,

como ocorreu em 1937, no Estado Novo e no movimento militar de 1º de abril de

1964.

Ressurgem, revigorados, atualizados e mais necessários e indispensáveis

do que antes, quando das redemocratizações (1946 e 1988).

Não há corrupção sem a atuação do corruptor, empresários ou empresas

que vendem bens e prestam serviços ao Estado.

A existência de um controle aos tempos bíblicos ou na antiguidade clássica,

o surgimento do Tribunal de Contas dos destroços da Bastilha são marcos da

humanidade pelos quais o homem e a sociedade buscam limitar o poder, conformá-

lo à vontade geral soberana. Os atuais mecanismos são os distintos tipos de

democracia e o sistema republicano, aos quais o controle externo e o Tribunal de

Contas são indisponíveis e indelegáveis.

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208

CONCLUSÃO

O controle atribuído ao Tribunal de Contas na Constituição Federal brasileira

de 1988 é o de limitar o poder.

Sua posição institucional no Estado é derivada primariamente da Carta

Magna.

As atribuições controladoras abarcam integralmente a administração pública

em todos os poderes e entes federativos.

São exercidas com independência e autonomia.

Desde a Constituição republicana inaugural de 1891 é um ente posto de

intermédio, permeio, entre os Poderes, a nenhum vinculado.

É um Tribunal, mas Tribunal sui generis, com funções de fiscalização,

verificação e julgamento. Seu locus na estrutura constitucional é o de Instituição de

Estado estruturante.

Nos interregnos de excepcionalidade constitucional (1937-1945 e 1964-

1988) sofreu recesso e restrições autoritárias.

Ele é um tribunal que somente se realiza plenamente no controle do poder

nos regimes democráticos e republicanos.

O Estado Democrático de Direito determina o controle pleno pelo Tribunal de

Contas, concretizando a efetividade democrática e republicana em constante

processo de aperfeiçoamento.

As ações controladoras convergem para a concretitude dos valores

fundamentais conquistados e inscritos em 1988: república, democracia e direitos

humanos; nesse processo do qual é autor e atos, também não lhe são estranhas as

crescentes necessidades individuais ou coletivas.

Uma senda de conquistas e retrocessos político-jurídicos foi trilhada, desde

tempos bíblicos, cuja memória e ensinamentos busca-se conservar até a

consignação do controle nas constituições dos povos.

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209

A inflexão é a Revolução Francesa de 1789.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem grava (artigos décimo quarto

e décimo quinto) o direito dos cidadãos à verificação quanto à imposição,

administração e gastos dos tributos e à sociedade o direito de exigir a prestação de

contas pelos administradores públicos.

Na madrugada da Assembleia Nacional francesa do ano da queda da

Bastilha e derrubada do feudal e aristocrático antigo regime renasce o republicano e

democrático instituto do controle da administração.

Sua inscrição em carta revolucionária demonstra sua natureza

representativa, controladora e limitadora do poder. Em 1807, o Tribunal de Contas

da França é instalado, modelo serviente à adoção inclusive pelo Brasil.

Renasce o controle porque desde tempos milenares os hebreus o

praticaram.

Identificaram-se normas de controle nos seus livros sacralizados que

impõem ao rei, sua família e oficiais valores de conduta comedida, nada a cobiçar,

venerar e cumprir a lei inalterável, fazer justiça e a solidariedade. A atribuição

controladora estava inscrita ritualmente na mente popular, exercida pelo conselho de

estado (Sinédrio). Os desvios do rei recebiam o opróbio do povo (o mais duro

castigo) e eram acidamente denunciados e criticados pelos profetas, fiscais

ancestrais, em formas literárias.

Roma e Grécia tiveram instituições colegiadas e magistrados respeitados

com atribuições de controle. Para a república romana e a democracia ateniense são

qualificativos jurídicos do desenvolvimento de civilizações legatárias.

Para os romanos, o administrador geria coisa pertence a todos – res

publica, com responsabilidade, respondendo pelos ilícitos perante os colegiados e

magistrados, em desenvolvida organização estatal controladora, sofrendo as

punições com penalidades das quais não se eximiam imperadores, governadores ou

generais-heróis.

Entre os atenienses, o controle descendia da democracia.

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210

A participação do cidadão na vida política da cidade – polis, um dever ético,

como ator ativo da política era a expressão do exercício da democracia. Na Ágora

(paliá agorá = velho mercado) até setenta vezes ao ano, o cidadão votava e era

votado, deliberava sobre as leis e as punições aos que praticavam ilícitos, escolhia

por sufrágio, sorteio ou escolha os magistrados que administravam a cidade.

O ocaso ateniense e a decadência romana submergem o controle cujo

apogeu ocorrera durante os períodos da democracia de Péricles e a república de

Cícero.

Sucederam-lhe as câmaras de contas e magistrados medievais.

Na Inglaterra, pela guerra os barões impuseram o exequer em nome do

parlamento, controlando as finanças reais; na Itália e França as comunas exigem o

controle financeiro sobre as autoridades delegadas reais e a autonomia local. Às

casas reais o controle se exercia em benefício do seu tesouro.

Portugal tem um controle incipiente, praticado em nome da casa real e em

seu benefício.

No Brasil colônia, durante a ocupação holandesa, anos seiscentos,

comprovou-se por documentos que resenham a jurídica instituição de uma câmara

de contas, transplantada do sistema batavo. É a primeira atividade controladora em

território brasileiro.

Esse longo caminho de construção do controle disputa entre os que pagam

tributos ou vassalagens e os encastelados no poder, paulatinamente erguido para a

afirmação das instituições controladoras, terá sua vertente no Brasil.

Em 1891, a ação jurídica decisiva de Ruy Barbosa propugnará em

Exposição de Motivos ao Decreto nº 966-A, a criação do futuro Tribunal de Contas

consignado na primeira Carta republicana, com base na experiência europeia. Dele

nascerá um pensamento jurídico que se concluirá com a efetiva institucionalização

do Tribunal de Contas na Carta de 1988.

O Tribunal de Contas no Brasil é formado por agentes políticos, guarnecidos

por garantias e predicamentos de independência, similarmente equiparados aos

juízes.

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211

As salvaguardas dos membros e a organização autônoma do Tribunal de

Contas, indispensáveis para a independência das suas atribuições, os assemelham

constitucionalmente aos tribunais judiciais.

Restaram lacunas e problemas.

A elas se oferecem propostas.

O Tribunal de Contas, malgrado imagem jurisprudencial, doutrinária e

política, não é órgão auxiliar do Poder Legislativo.

Exerce suas atribuições constitucionais com independência.

Exerce poder controlador sem ser poder. Possui iniciativa de leis,

orçamentárias, inclusive, elabora o seu regimento interno (lex interna corpore).

Avalia juridicamente mediante critérios técnicos que somente ao Tribunal de

Contas competem as contas anuais devidas à Corte pelo Presidente da República (e

demais chefes de Poder Executivo).

Julga os demais administradores públicos: Presidentes dos corpos

legislativos, do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores e locais,

Procurador-Geral da República e Chefes dos Ministérios Públicos, Presidentes das

empresas estatais e autarquias, e simetricamente de todos os entes federativos

(exemplificação enumerativa), devem-lhe contas e submetem-se à fiscalização.

A eles atribui Tribunal rejeição de contas, devolução de valores, multa

pecuniária e outras sanções reflexivas, como perante a justiça eleitoral.

A escolha dos Ministros (e Conselheiros) carece da densificação dos

critérios constitucionais prévios à posse.

As indicações não são transparentes.

Entende-se que a indicação de Ministros e Conselheiros do Tribunal deva

ser realizada mediante prévia seleção pública, com critérios de avaliação e

avaliadores estabelecidos legalmente. A final, o escolhido seria submetido à

sabatina parlamentar.

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212

Os Ministros Substitutos, que são concursados, serão avaliados no certame

pelos mesmos requisitos constitucionais exigidos na Carta aos Ministros, por serem

seus substitutos e futuros pares de plenário.

A escolha para as vagas reservadas no colegiado (inclusive aos

Procuradores de Contas) serão preenchidas pela Corte de Contas, segundo critérios

fixados legalmente, alternando antiguidade e mérito.

Os Ministros Substitutos têm uma lacuna em suas atribuições

constitucionais, carente de definição legal: as demais atribuições de judicatura. Eles

não são apenas substituidores, nem pareceristas ou oferecedores, v.g., de votos aos

outros magistrados.

Suas funções são igualitárias, a distribuição de processos deverá ser

automática e plena. Poderão conformar câmaras próprias ou juízos singulares,

especificadas as competências; mas é-lhes inconstitucional e indigna as restrições

atuais, com atuação assessorante.

Observou-se que as sanções pecuniárias impostas pelo Tribunal de Contas

estão à míngua da definição da proporcionalidade, assim como as demais sanções

previstas na Carta.

Em regra, ou são exíguas ou em valores avantajados. Não são uniformes.

Seus processos de contas igualmente são diferenciados em cada Tribunal.

Nos processos de prestação de contas pelo Chefe do Poder Executivo e em

outros afetados às relevantes prestações públicas ou às comunidades interessadas,

propõe-se a instituição de audiências públicas e do amicus curiae, visando à

participação democrática e a transparência decisória.

Buscando exemplos, oferece-se novas técnicas de auditoria, com vistas não

apenas às receitas ou despesas públicas, mas à operacionalidade concreta,

buscando resultados e não apenas reprimindo, mas prevenindo os ilícitos de contas.

Exemplificativamente, na saúde pública, educação, segurança, seguridade,

meio ambiente, para as quais se aportou exemplo de controle de obras e serviços

públicos experimentados no Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul; e, ainda o

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213

efetivo combate à corrupção, com a especialização técnica do corpo fiscalizador da

Corte.

Oferece-se proposta de uma lei orgânica nacional apta a solucionar as

lacunas e problemas discriminados.

Entre outras, a lei contemplaria as situações elencadas.

Os Tribunais ignoram o modelo federativo impositivo, a uniformidade

nacional do controle, convivem com lacunas e problemas.

Instrumento democrático e republicano, convergente aos direitos humanos a

sua essencialidade existencial é o limite do poder.

As conclusões contemplam as soluções propostas.

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214

REFERÊNCIAS

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ANEXO A – Declaração Universal dos Direitos do Homem

REPRODUÇÃO GRÁFICA

REVOLUÇÃO FRANCESA – 1789

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ANEXO B – Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890

AUTÓGRAFOS DE MANUEL DEODORO DA FONSECA E RUY BARBOSA

MANUSCRITO – CÓPIA AUTÊNTICA DO LIVRO DE DECRETOS DA REPÚBLICA

ORIGINAL ARQUIVADO NA CASA DE RUY BARBOSA – RIO DE JANEIRO

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ANEXO C - Exposição de Motivos ao Projeto do Decreto nº 966-A

TEXTO DE RUY BARBOSA

MANUSCRITO INCOMPLETO – CÓPIA AUTÊNTICA DO LIVRO DE DECRETOS

DA REPÚBLICA

ORIGINAL ARQUIVADO NA CASA DE RUY BARBOSA - RIO DE JANEIRO

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ANEXO D - Rascunho da Exposição de Motivos ao Decreto nº 966-A

MANUSCRITO DE RUY BARBOSA – CÓPIA AUTÊNTICA

ORIGINAL ARQUIVADO NA CASA DE RUY BARBOSA – RIO DE JANEIRO

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ANEXO E – Comentários e Anotações de Ruy Barbosa sobre a criação do

Tribunal de Contas

MANUSCRITO DE RUY BARBOSA – CÓPIA AUTÊNTICA

ORIGINAL ARQUIVADO NA CASA DE RUY BARBOSA – RIO DE JANEIRO

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ANEXO F – Projeto Botafogo – Criação do Tribunal de Contas – Originário do

IIº Império do Brasil

CÓPIA AUTÊNTICA DO LIVRO DE DECRETOS DA REPÚBLICA

ORIGINAL ARQUIVADO NA CASA DE RUY BARBOSA – RIO DE JANEIRO

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ANEXO G – Decreto nº 5.795, de 26 de junho de 1935

CRIA O TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

AUTÓGRAFO DO INTERVENTOR JOSÉ ANTONIO FLORES DA CUNHA,

GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DATILOGRAFADA – CÓPIA AUTÊNTICA

ORIGINAL ARQUIVADO NO ARQUIVO HISTÓRICO DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL

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