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A Fundao Luterana de Diaconia (FLD), em conjunto com a Secretaria Geral e a Secretaria de Misso

da Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil (IECLB), as Faculdades EST, o Conselho de

Misso entre Indgenas (COMIN), o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA) e o Movimento

Nacional de Catadores de Materiais Reciclveis (MNCR) tem satisfao em compartilhar com o pblico

do Seminrio Justia Socioambiental e Mudanas Climticas: Desafios e Compromissos este

material que rene diversos textos de pessoas e instituies que atendendo a solicitao dos

promotores deste evento, colaboraram, tanto na realizao do Seminrio, como na elaborao deste

subsdio.

A estas importantes parcerias, nosso agradecimento!

A conscincia dos problemas ambientais

no deve nos paralisar, mas ser um fator de motivao

para a ao junto ao seu grupo ou comunidade.

As tarefas so muitas e h espao para todo tipo de habilidade ou conhecimento.

S se mexendo que se descobre qual seu papel no processo.

(Arno Kayser)

INTRODUO

Os textos selecionados para compor o presente material procuraram seguir a mesma lgica da

programao do Seminrio, a fim de que abordagens distintas e a partir de diferentes reas do

conhecimento, pudessem estar conectadas entre si, construindo durante o processo (tanto da

realizao do Seminrio, como da leitura deste material) a percepo da interdependncia dos

processos e fenmenos.

Para aprofundarmos nossa compreenso sobre justia socioambiental e mudanas climticas e nosso

lugar e atuao no mundo - como indivduos e como organizaes entendemos necessria uma

abordagem sobre os princpios da justia socioambiental, bem como um diagnstico/ mapa

sobre a injustia socioambiental no Brasil, alm de uma contextualizao acerca do atual

modelo de desenvolvimento, especialmente sobre suas contradies e sobre o desafio de promover

a transio.

Neste contexto, uma descrio sobre os principais acontecimentos do ltimo sculo, especialmente na

esfera social e ambiental, nos permite melhor compreendermos a evoluo da viso ecolgica e a

importncia de eventos como a Rio+20 e a Cpula dos Povos, marco histrico tanto em termos de

avanos como de frustraes. Pertinente tambm o debate acerca da dvida ilegtima entre pases

j que acirra injustias socioculturais, econmicas, polticas e ambientais especialmente em pases do

hemisfrio sul.

Como conseqncia deste modelo desigual e injusto de desenvolvimento, que no exclusivo do

Brasil, mudanas climticas intensificam-se, tornam-se mais evidentes e geram impactos

cada vez mais dramticos especialmente quando afetam populaes humanas em situao de

vulnerabilidade. A relao entre injustias e vulnerabilidades diretamente proporcional, sendo

especialmente percebida na menor ou maior mobilizao social, conforme o contexto de injustias

vivido por determinada comunidade. Mobilizao esta que, associada ao conhecimento local,

determinante para o desenvolvimento de novos comportamentos, que consideram os riscos em suas

aes dirias. Portanto, a mobilizao social na gesto de riscos e desastres fator essencial,

inclusive na construo de um novo modelo de desenvolvimento, que, como condio primeira, deve

gerar menos riscos e desastres socioambientais para toda a criao. Para melhor compreenso desta

temtica alguns conceitos bsicos sobre desastres foram introduzidos nesta publicao.

Neste processo o tema da resilincia e sustentabilidade de comunidades e ecossistemas

assume importncia fundamental por sua relao com a diversidade social, cultural, biolgica e com

estratgias econmicas locais. Quanto maior a sociobiodiversidade e a autonomia local, menor o

impacto das alteraes climticas sobre elas e maior a sua capacidade de adaptao. A interveno

sustentvel e holstica que comunidades vem fazendo em seus meios, como por exemplo atravs da

agroecologia, prova de que h sim possibilidades de reverter o contexto de injustias e degradaes

que agravam a crise climtica.

Assim, em dilogo est a proposta de um desenvolvimento transformador orientado pela Aliana

ACT, que rene mais de 130 organizaes crists presentes em mais de 140 pases, que juntas, atuam

sem qualquer tipo de distino, para mudar a vida de pessoas afetadas pela pobreza e injustia por

meio de iniciativas coordenadas nas reas humanitria, de desenvolvimento e incidncia. A FLD

membro de ACT. Assim, importa compartilharmos com nossos parceiros no Brasil texto relativo ao

desenvolvimento transformador e apoio psicossocial de base comunitria em situaes de

emergncias.

Em sua atuao, permanente e comprometida, no mbito rural e urbano, FLD, CAPA, COMIN, MNCR,

EST e IECLB vem contribuindo para a superao de vulnerabilidades, para a mobilizao e resilincia

de comunidades e de agroecossistemas e para a promoo da sociobiodiversidade, na perspectiva da

gesto de riscos de desastres.

Neste mbito, em 2011, a FLD coordenou a elaborao coletiva do Mecanismo de Atuao em

Emergncias, que desde ento vem sendo implantado no mbito da IECLB e organizaes parceiras

da FLD.

Considerando que o tema Justia Socioambiental e Mudanas Climticas vasto, listamos tambm

alguns links onde possvel obter mais subsdios.

Ao final deste material encontra-se uma relao de cooperativas, associaes, lojas/

entrepostos e feiras, assessorados pelo CAPA no sul do Brasil, onde possvel encontrar

alimentos e outros itens, produzidos de forma agroecolgica. A opo por estes produtos e

alimentos a concretizao de um consumo responsvel e de um comrcio justo e

sustentvel. Ajude a construir esta REDE!

SUMRIO

Princpios da justia ambiental .............................................................................................. 7

Rede Brasileira de Justia Ambiental

Mapa da injustia ambiental e sade no Brasil ...................................................................... 8

FIOCRUZ e FASE

Brasil: como criar as condies para a Grande Transio? .................................................. 16

Cndido Grzybowski IBASE

Evoluo da viso ecolgica ................................................................................................. 22

Arno Kayser - Movimento Roessler

Cpula dos Povos, caminhos ecumnicos e ACT ps Rio+20 ................................................ 26

Rafael Soares de Oliveira KOINONIA

Declarao final da Cpula dos Povos na Rio+20 ................................................................. 31

No todo lo legal es legtimo, ni todo lo que se dice es verdad ............................................... 34

P. Juan Pedro Schaad IERP e FLM

Desastres naturais e geotecnologias - conceitos bsicos ..................................................... 41

Emerson Vieira Marcelino INPE

Evidncias observacionais das variaes climticas

Mudanas ambientais de curto e longo prazo: projees e incertezas .................................. 48

Contribuies do GT1 para o Primeiro Relatrio de Avaliao Nacional

Painel Brasileiro de Mudanas Climticas

Preveno e mobilizao social para a gesto de riscos e de desastre ................................ 59

Janaina Rocha Furtado e Daniela da Cunha Lopes UFSC/ CEPED-SC

Estratgias agroecolgicas para aumentar a resilincia no contexto de mudanas climticas

............................................................................................................................................. 66

Miguel A. Altieri SOCLA; Clara I. Nicholls - REDAGRES

Crise da biodiversidade, ainda distante da economia ........................................................... 71

Paulo Brack UFRGS/ ONG ING

Nossa compreenso de desenvolvimento Desenvolvimento transformador ....................... 87

ACT Desenvolvimento ACT Aliana

Apoyo psicosocial basado em la comunidad ......................................................................... 90

ACT Alianza

Mecanismo de atuao em emergncias............................................................................... 96

FLD e IECLB

Desenvolvimento local solidrio e sustentvel e economia solidria .................................. 101

Ana Mercedez Sarria Icaza, Pedro de Almeida Costa, Rosinha Machado Carrion UFRGS

Rede de comrcio justo e solidrio ..................................................................................... 106

Links sobre justia socioambiental e mudanas climticas ........................................................... 111

Seminrio Justia Socioambiental e Mudanas Climticas: Desafios e Compromissos

20, 21 e 22 de novembro de 2012. Faculdades EST, So Leopoldo - RS.

Objetivo: refletir sobre o contexto de injustias e de degradao ambiental e sua relao com a atuao em emergncias - especialmente em gesto de riscos, reabilitao e desenvolvimento - a fim de fortalecer boas prticas j em curso, bem como perceber e assumir desafios para a promoo da justia socioambiental. Programao Dia 20/11

13h30- Abertura 14h00 s 17h30 - Painel Modelo de desenvolvimento

. Atual modelo de desenvolvimento: anlise e contradies - Sociloga Dra. Ana Mercedes Icaza - Ncleo de Economia Alternativa/ UFRGS . Reflexes sobre a sociedade de consumo - Agrnomo Arno Kayser Movimento Roessler para Defesa

Ambiental . Religies por Direitos na Cpula dos Povos/ Rio+20: resultados e perspectivas - Telogo Dr. Marcelo

Schneider assessor do moderador do Conselho Mundial de Igrejas . Reflexes teolgicas sobre o modelo de desenvolvimento Dra. Pa. Renate Gierus Coordenadora pastoral e programtica COMIN

19h30 s 20h45 Palestra Dvida ilegtima e justia socioambiental

P. Juan Pedro Schaad Igreja Evanglica do Rio da Prata/ IERP/ Argentina Coordenador do Programa de Incidncia sobre Dvida Ilegtima da Federao Luterana Mundial

Dia 21/11 8h30 s 12h30 - Painel Impactos do atual modelo de desenvolvimento e perspectivas para sua

transformao . Mudanas climticas e sua relao com o modelo de desenvolvimento - Gegrafo Ms. Ricardo Burgo Braga - ITAPUANA - Assessoria e Gerenciamento de Projetos de Sustentabilidade Ambiental

. Mobilizao social na gesto de riscos e de desastres - Psicloga Ms. Janaina Rocha Furtado CEPED- Centro Universitrio de Estudos e Pesquisas sobre Desastres/ UFSC . Construindo comunidades resilientes e sustentveis - Bilogo Dr. Paulo Brack UFRGS/ Ing - Instituto

Gacho de Estudos Ambientais . Reflexes teolgicas sobre justia socioambiental - Telogo Ms. Daniel Souza - Rede Ecumnica da Juventude - REJU

14h00 s 14h45 Painel Desenvolvimento transformador e justia socioambiental: Aliana ACT

Economista Ms. Angelique van Zeeland Assessora de projetos da FLD Arne Dalle Coordenador do Programa Brasil - Ajuda das Igrejas da Noruega/AIN

15h00 s 18h00 - Apresentao de prticas exitosas relacionadas justia socioambiental e gesto de riscos a partir da sociedade civil

- Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA)

- Conselho de Misso entre Indgenas (COMIN) - Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclveis (MNCR) - Rede de Comrcio Justo e Solidrio/ Criatitude (IECLB/ FLD)

- Apoio psicossocial de base comunitria ( FLD) 19h30 - Coquetel Dia 22/11

8h30 - Cenrios, desafios e perspectivas a partir das abordagens e experincias compartilhadas 09h30 - Proposta de documento final, debate e apreciao do documento. 11h30 Encerramento

PRINCPIOS DA JUSTIA AMBIENTAL

Rede Brasileira de Justia Socioambiental*

O conceito de Justia Ambiental refere-se ao tratamento justo e ao envolvimento pleno de todos os

grupos sociais, independente de sua origem ou renda nas decises sobre o acesso, ocupao e uso dos

recursos naturais em seus territrios.

As lutas por justia ambiental defendem:

1 - os recursos ambientais como bens coletivos, para o presente e para o futuro, cujos modos de

apropriao e gesto devem ser objeto de debate pblico e de controle social;

2 - os direitos das populaes do campo e da cidade a uma proteo ambiental equnime contra a

discriminao scio-territorial e a desigualdade ambiental;

3 - garantias sade coletiva, atravs do acesso equnime aos recursos ambientais, de sua

preservao, e do combate poluio, degradao ambiental, contaminao e intoxicao

qumica que atingem especialmente as populaes que vivem e trabalham nas reas de influncia

dos empreendimentos industriais e agrcolas;

4 - os direitos dos atingidos pelas mudanas climticas, exigindo que as polticas de mitigao e

adaptao priorizem a assistncia aos grupos diretamente afetados;

5 - a valorizao das diferentes formas de viver e produzir nos territrios, reconhecendo a contribuio

que grupos indgenas, comunidades tradicionais, agroextrativistas e agricultores familiares do

conservao dos ecossistemas;

6 - o direito a ambientes culturalmente especficos s comunidades tradicionais;

7 - a alterao radical do atual padro de produo e de consumo.

* Fonte: www.justicaambiental.org.br

MAPA DA INJUSTIA AMBIENTAL E SADE NO BRASIL

FIOCRUZ e FASE*

Este Mapa de conflitos envolvendo injustia ambiental e Sade no Brasil resultado de um

projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio do Departamento de Sade

Ambiental e Sade do Trabalhador do Ministrio da Sade. Seu objetivo maior , a partir de um

mapeamento inicial, apoiar a luta de inmeras populaes e grupos atingidos/as em seus territrios

por projetos e polticas baseadas numa viso de desenvolvimento considerada insustentvel e prejudicial sade por tais populaes, bem como movimentos sociais e ambientalistas parceiros.

Em consonncia com os princpios da justia ambiental, o Mapa busca sistematizar e socializar

informaes disponveis, dando visibilidade s denncias apresentadas pelas comunidades e

organizaes parceiras. Os casos foram selecionados a partir de sua relevncia socioambiental e

sanitria, seriedade e consistncia das informaes apresentadas, Com isso, esperamos contribuir para

o monitoramento de aes e de projetos que enfrentem situaes de injustias ambientais e problemas

de sade em diferentes territrios e populaes das cidades, campos e florestas, sem esquecer as zonas costeiras.

Este trabalho tem por respaldo a Constituio da Repblica Federativa do Brasil, em especial seus

artigos 1 inciso III e artigo 5, os quais esto diretamente relacionados misso institucional da

FIOCRUZ no tocante defesa da dignidade humana e do direito vida, liberdade e igualdade. As

informaes disponibilizadas no contedo deste mapa so de responsabilidade da coordenao deste

projeto, atravs da FASE e do grupo de pesquisa certificado pela FIOCRUZ denominado Abordagens

Integradas para a Promoo da Sade e Justia Ambiental envolvendo Populaes Vulnerveis.

Portanto, no configuram uma posio institucional do conjunto da FIOCRUZ. Nesse sentido, o Mapa se

apresenta como um espao aberto de expresso dos conflitos ambientais associados sade no Brasil, contribuindo, desta forma, na busca de solues.

Os conflitos foram levantados tendo por base principalmente as situaes de injustia ambiental

discutidas em diferentes fruns e redes a partir do incio de 2006, em particular a Rede Brasileira de

Justia Ambiental (www.justicaambiental.org.br). O foco do mapeamento, portanto, a viso das

populaes atingidas, suas demandas, estratgias de resistncia e propostas de encaminhamento. As

fontes de informao privilegiadas e sistematizadas nos casos apresentados seguiram essa orientao.

Consistem principalmente de documentos disponibilizados publicamente por entidades e instituies

solidariamente parceiras: reportagens, artigos e relatrios acadmicos, ou ainda relatrios tcnicos e

materiais presentes em aes desenvolvidas pelo Ministrio Pblico ou pela justia que apresentam as

demandas e problemas relacionados s populaes. Os casos selecionados no esgotam as inmeras

situaes existentes no pas, mas refletem uma parcela importante nos quais populaes atingidas,

movimentos sociais e entidades ambientalistas vm se posicionando. As informaes nele contidas

devem ser vistas como dinmicas e em processo de aperfeioamento, a medida em que novas

informaes e situaes possam, na continuidade do projeto, aprimorar, corrigir dar visibilidade a

denncias e permitir o monitoramento de aes e de projetos que enfrentem situaes de injustias ambientais e problemas de sade em diferentes territrios e populaes no pas.

Embora tenha contado com apoio governamental para a sua realizao (e esperamos venha a ser

utilizado pelo Ministrio da Sade e por outros rgos e instncias - federais, estaduais e municipais

(na busca de dados e diagnsticos para suas polticas e gestes), ele direcionado para a sociedade

civil. A ela e s diferentes entidades que a conformam, acima de tudo, o Mapa est aberto para

informar, para receber denncias e para monitorar as aes dos diversos nveis do Estado tomadas a

respeito. Nesse sentido, ele est democraticamente a servio do pblico em geral e, principalmente,

das populaes atingidas, dos parceiros solidrios e de todos e todas que se preocupam com a justia

social e ambiental.

O Mapa apresenta cerca de 300 casos distribudos por todo o pas e georreferenciados. A busca de

casos pode ser feita por Unidade federativa (UF) ou por palavra chave. Clicando em cima do caso que

aparece no mapa por estado surge inicialmente uma ficha inicial com os municpios e populaes

atingidas, os riscos e impactos ambientais, bem como os problemas de sade relacionados. Clicando

na ficha completa do conflito aparecem as informaes mais detalhadas, incluindo populaes

atingidas, danos causados, uma sntese resumida, uma sntese ampliada e as fontes de informao utilizadas.

O Mapa pertence a todos/as os/as interessados /as na construo de uma sociedade socialmente justa

e ambientalmente sustentvel. Por isso mesmo, cabe a ns no apenas us-lo, mas tambm mant-lo

alimentado de novas informaes, fazendo dele um importante instrumento para o aprimoramento da

democracia e para a garantia dos direitos humanos e da cidadania plena para cada habitante deste Pas.

SNTESE DOS PRINCIPAIS RESULTADOS

1) DISTRIBUIO DOS CONFLITOS POR ESTADO E REGIO

Destacamos na tabela abaixo a importncia dos estados de So Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro,

Bahia e Amazonas, embora as regies Norte e Nordeste, juntas, representem cerca de 50% dos casos

apresentados. O elevado nmero de conflitos nos estados do Sudeste est relacionado ao histrico de

intensa ocupao territorial e de industrializao com inmeros impactos socioambientais, bem como

aos movimentos sociais organizados na regio. Mas em regies como o Nordeste, Norte e Centro-

Oeste que atualmente se encontra a fronteira de expanso capitalista no pas, atravs principalmente

do agronegcio, do ciclo da minerao e inmeras obras de infraestrutura, como hidreltricas, rodovias

e transposio do So Francisco. Com freqncia tais casos envolvem vastos territrios e diversos

municpios simultaneamente, dada a extenso dos conflitos decorrentes. Isto justifica porque em

certos estados os conflitos envolvem um elevado percentual dos municpios - como no Amap (100%),

Acre (64%), Mato Grosso (61%) -, enquanto em So Paulo este percentual menor que 6%, embora

seja o estado com maior nmero de conflitos. O Rio de Janeiro uma exceo no Sudeste nesse

aspecto, pois os conflitos atingem 63% dos municpios, fato explicado pela existncia de casos

relacionados a grandes complexos industriais e porturios, alm de desastres qumicos no rio Paraba

do Sul, que passa por inmeros municpios.

2) DISTRIBUIO DOS CONFLITOS EM REAS URBANAS E RURAIS

A distribuio preponderante de conflitos na regio rural no Mapa tem duas explicaes principais. A

primeira, relacionada ao item anterior, decorre da expanso capitalista brasileira estar fortemente

direcionada pela busca por recursos naturais e terra, caso do agronegcio, da minerao nos ciclos

ferro-ao e bauxita-alumnio, e de grandes empreendimentos de infraestrutura, como hidreltricas e

rodovias. Tais casos de injustia ambiental atingem vastos territrios e inmeros grupos populacionais,

desde indgenas, quilombolas, extrativistas e pescadores, at pequenos agricultores e assentamentos

da reforma agrria. Por sua vez, vrias lutas urbanas no pas envolvendo questes de sade, meio

ambiente, moradia, saneamento, qualidade de vida, direitos humanos e cidadania ainda no

incorporaram o conceito de justia ambiental, numa trajetria diferente de pases como os EUA, onde

tais lutas urbanas marcaram o incio dos movimentos contra o racismo e a injustia ambiental. O

desenvolvimento de movimentos por justia ambiental, por moradia digna e por direitos humanos nas

cidades brasileiras, em especial nos territrios das favelas e reas afetadas por lixes, fbricas, poluio atmosfrica e enchentes, dever aumentar o nmero de conflitos nos prximos anos.

3) POPULAES ATINGIDAS

Seguindo a explicao do item anterior, as principais populaes atingidas so as que vivem nos

campos, florestas e regio costeira nos territrios da expanso capitalista: povos indgenas,

agricultores familiares, comunidades quilombolas, pescadores artesanais e ribeirinhos. Mas tambm se

destacam populaes urbanas, como moradores em reas prximas a lixes, operrios e moradores em bairros atingidos por acidentes ambientais.

4) PRINCIPAIS IMPACTOS E DANOS AMBIENTAIS

Os principais impactos socioambientais se referem alterao no regime tradicional do uso de solo

bem como a problemas na demarcao dos territrios de terras indgenas, quilombolas ou para a

reforma agrria. Tais impactos esto relacionados disputa por territrios por parte de setores

econmicos como o agronegcio, a minerao ou obras de infraestrutura. Outros impactos de grande

importncia so a poluio (hdrica, do solo e atmosfrica), o desmatamento, problemas no

licenciamento ambiental, alterao no ciclo reprodutivo da fauna, invaso ou danos a reas de

proteo ambiental, o assoreamento dos rios e a eroso do solo. A questo do licenciamento ambiental

de particular importncia, pois se encontra presente em praticamente todos os casos nos quais o que

est em jogo um novo empreendimento econmico, sejam hidreltricas, siderrgicas, aterros

sanitrios, indstrias petroqumicas ou ecoresorts tursticos. Via de regra, as denncias apontam a

falta de participao e de critrios tcnicos vinculados legislao ambiental e sanitria existente.

Embora de menor importncia no Mapa, o impacto nos territrios urbanos est presente em questes

como poluio, enchentes, formao de lixes, acidentes ambientais e regulao fundiria.

5) PRINCIPAIS DANOS E RISCOS SADE

O Mapa apresenta uma concepo ampliada de sade que reflete no somente a dimenso biomdica

dos impactos ambientais, mas questes relacionadas qualidade de vida, cultura e tradies, aos

direitos humanos e capacidade de organizao e mobilizao coletivas. O resultado indica a piora na

qualidade de vida como o principal problema de sade levantado pelas populaes atingidas em suas

lutas, e isso decorre da percepo de como a disputa territorial e o modelo de desenvolvimento esto

impactando ou podero vir a impactar seus modos de vida. O que est em jogo neste caso no

apenas evitar os prejuzos decorrentes de certos impactos ambientais, como a poluio, mas a

manuteno de certos valores, prticas sociais e relaes com a natureza que foram ou sero perdidos

diante do progresso econmico no aproveitamento de recursos naturais e da disputa por territrio.

Portanto, o conceito de qualidade de vida representa uma viso complexa que rejeita a idia de

crescimento, riqueza e consumismo custa da perda dos prprios valores e sentidos de vida

comunitria, em especial nos povos das florestas, campos e regies onde os ecossistemas se

encontram mais preservados e a subsistncia depende de sua vitalidade. Outra questo de grande

importncia a presena da violncia como problema de sade em suas vrias formas: desde a coao

e ameaa at os assassinatos. Ela expressa a questo fundamental dos direitos humanos em nossos

pas, ou seja, de como as populao atingidas e vulnerabilizadas sofrem com a falta de cidadania,

principalmente pela impossibilidade de exercer o direito organizao coletiva para reivindicarem e

protestarem contra as injustias que lhes so acometidas. Outras questes bsicas de sade se

referem ao problema de insegurana alimentar, das doenas no transmissveis (como o cncer e as

doenas respiratrias decorrentes da poluio qumica), os acidentes e, atrelados a todos estes

problemas, a falta de assistncia mdica adequada e de estudos que associem tais problemas de sade

com os problemas ambientais na regio. Tambm o agravamento das doenas transmissveis pela degradao ambiental e falta de saneamento bsico aparecem de forma relevante nos conflitos.

6) ATIVIDADES RESPONSVEIS PELO CONFLITO

Existem dois grandes grupos de causas de injustias ambientais que aparecem reunidas neste item. O

primeiro se refere s atividades econmicas e seus agentes que, ao interferirem nos territrios e

modos de vida das populaes, geram inmeros impactos e conflitos. Tais atividades expressam os

principais eixos econmicos que orientam o atual modelo de desenvolvimento brasileiro em sua

insero na economia capitalista globalizada. Dentre eles se destacam, nesta ordem, o agronegcio, a

minerao e siderurgia, a construo de barragens e hidreltricas, as madeireiras, as indstrias

qumicas e petroqumicas, as atividades pesqueiras e a carcinicultura, a pecuria e a construo de

rodovias, hidrovias e gasodutos. Na categoria outros aparecem de forma destaca os setores turstico

e imobilirio na disputa territorial que sistematicamente busca expulsar populaes dos locais onde

vivem, sejam as tradicionais nos parasos ecolgicos dos eco resorts, sejam nas reas urbanas,

onde os moradores pobres e de favelas so frequentemente acusados de serem os responsveis pela

degradao ambiental e a violncia na cidades. O segundo grupo responsvel por injustias ambientais

est associado atuao, ou melhor, deficincia do prprio poder pblico e entidades

governamentais, incluindo problemas associados atuao do judicirio e/ou dos ministrios pblicos

e a deficincia das polticas pblicas e legislao ambiental. Destacam-se aqui problemas relacionados

forma como os licenciamentos ambientais so realizados, bem como morosidade ou deficincia das instituies da justia defenderem os interesses coletivos das populaes atingidas.

7) PRINCIPAIS PARCEIROS E APOIADORES DOS ATINGIDOS

Dentre as entidades que atuam como parceiros das populaes atingidas na defesa de seus direitos,

destacam-se as ONGs que militam no campo da justia ambiental, integrando as dimenses sociais,

polticas e ambientais, em oposio s estritamente ambientalistas, que dissociam a proteo

ambiental da luta pela democracia e os direitos humanos. Tambm se destacam entidades

governamentais e ministrios pblicos, principalmente aqueles que valorizam a articulao com

populaes atingidas e a participao democrtica em seus recursos humanos e polticas de atuao. A

existncia de movimentos sociais organizados, bem como organizaes de populaes atingidas,

tambm contribuem de forma expressiva no desenrolar do conflito. Cabe ainda destacar o papel das

redes, das organizaes ligadas s igrejas e das organizaes sindicais como apoiadores dos atingidos.

*Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Federao dos rgos para Assistncia Social e Educacional

(FASE) - Fonte: www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br

BRASIL: COMO CRIAR AS CONDIES PARA A GRANDE TRANSIO?

Cndido Grzybowski*

H alguns anos foi constitudo um grupo de trabalho internacional "The great transition initiative:

visions and pathways for a hopeful future para pensar propostas e prticas de transio para uma

civilizao planetria enraizada na solidariedade, na sustentabilidade e no bem-estar humano. Tratava-

se de definir como, em cada situao, desencadear processos, aqui e agora, que gestem a necessria

transformao dos impasses a que nos levou o desenvolvimento capitalista industrial, produtivista e

consumista, gerador de excluses e desigualdades sociais eticamente inaceitveis e, ao mesmo tempo,

da destruio ambiental que ameaa todas as formas de vida e a integridade do planeta Terra. Como definir e criar as condies para isso no Brasil, hoje uma das festejadas potncias emergentes?

Nunca demais lembrar o quanto o Brasil ainda um pas profundamente injusto. Apesar de ser a

sexta economia capitalista do mundo e dos enormes avanos recentes, induzidos por ativas polticas

distributivistas dos governos do PT, temos mais de 16 milhes de pessoas vivendo como miserveis,

com menos de meio dlar per capita por dia, e outros mais de 30 milhes com no mximo 1 dlar por

dia. So aproximadamente 20% da populao total na pobreza e extrema pobreza, segundo critrios

do Banco Mundial, sem contar que o critrio de meio dlar ou 1 dlar por dia simplesmente ridculo num pas que pratica preos iguais aos dos pases desenvolvidos.

Poderia enumerar vrias gritantes desigualdades sociais em todos os campos, incluindo desigualdades

de gnero e raciais. Mas talvez o maior contraste, revelador do tamanho das contradies, seja o dado

revelado por O Globo, um jornal de perfil bem conservador, no dia 15 de outubro passado. Segundo o

jornal, 4.640 milionrios brasileiros (aqueles que tm ao menos US$ 30 milhes em conta bancria),

tm riquezas que somam US$ 865 bilhes (em reais, R$ 1,764 trilhes). " mais do que as reservas

internacionais de todos os pases da Unio Europeia juntos, segundo o jornal. A renda per capita por

dia de cada membro dessas riqussimas famlias de milhares de dlares! Esse o Brasil, usando o

critrio to ao gosto de um mundo dominado por mercados e dinheiro.

A questo da pobreza funciona como um divisor poltico no processo de democratizao do Brasil e nas

opes de desenvolvimento. O debate sobre o desenvolvimento no Brasil dominado pela viso e pela

proposta em relao ao quanto, como modelo e estratgia, ele distributivista e se capaz ou no de

enfrentar a enorme pobreza. O debate da destruio ambiental, na arena pblica, quando existe, tende

a ser dominado pela questo da justia social. O grande jogo poltico se faz em torno da justia social,

em que at amplos setores tradicionalmente predadores e conservadores se valem do argumento social para continuar o seu negcio.

Considero ainda embrionrias e at aqui com pouca capacidade de incidncia poltica as demandas por

aliar a dimenso da justia social e a dimenso ambiental como faces da mesma questo. No Brasil,

ainda bem marginal o debate de alternativas ao desenvolvimento, de mudana de paradigma, de

transformar processos. Fundamentalmente e ainda mais nos governos sob hegemonia do PT, dos

ltimos 10 anos, quer-se mais e mais desenvolvimento, do mesmo desenvolvimento produtivista e

consumista, s que com incluso social. Hoje estamos diante de um "novo desenvolvimentismo, na

verdade do velho modelo de desenvolvimento com razes da Cepal combinado com polticas sociais

mais ativas em termos distributivos do crescimento. E tal crescimento, para praticar a incluso social,

precisa ser de 5 a 7% ao ano, como disse a nossa presidente Dilma no Frum Social Temtico, em Porto Alegre, em janeiro de 2012.

Esse o ponto de partida, duro e difcil, de onde devemos partir para ento pensar em mudar,

definindo as propostas e analisando se e como possvel politicamente viabiliz-las. Devido urgncia

que a mudana climtica levanta, fixo meu olhar na questo energtica, na questo do agronegcio e,

para finalizar, no que preciso criar em termos de imaginrio mobilizador e de incidncia no debate pblico para viabilizar um processo de transio para outro paradigma civilizatrio.

http://www.gtinitiativee.org/http://www.gtinitiativee.org/

A questo energtica

O Brasil caminha a passos grandes, de verdadeira potncia emergente, para solues energticas que

vo torn-lo muito mais poluente do que hoje. Na energia eltrica, devido s hidreltricas, temos

uma matriz de produo relativamente "limpa, se no for contabilizado o passivo ambiental e social

que as grandes barragens criaram ao serem implantadas e continuam criando hoje. Pensando o futuro

e a demanda crescente por energia pois, como nos dizem oficialmente, estamos longe do padro de

consumo de energia eltrica dos pases desenvolvidos, novas hidreltricas precisam ser feitas. Hoje, o

grande potencial de nova energia desse tipo se concentra nos grandes rios da Amaznia. D para

imaginar o que significa construir de 40 a 60 hidreltricas de mdio e grande porte num territrio como

a Amaznia? Quanta terra inundada, mata destruda e impacto no clima e na biodiversidade? Quantos

territrios e povos indgenas devastados? Quantos ribeirinhos, posseiros e coletores de frutos da

floresta perdero seu modo de subsistncia?

O drama atual em torno de Belo Monte revelador do que pode acontecer. Tenho dito, e repito aqui:

com energia e minerao, com explorao da madeira e gado, depois soja, a Amaznia o territrio

brasileiro de espoliao e colonizao. Colonizao interna, do poder e da economia existente sobre o

prprio povo brasileiro, de brasileiros sobre brasileiros, por setores sociais dominantes de outras reas

e grandes grupos empresariais, com olho no mercado mundial e, sobretudo, seu prprio bolso.

No debate poltico interno, se no for possvel implementar o projeto de tornar a Amaznia um grande

fornecedor de energia eltrica "sustentvel, o argumento bramido como ameaa que vamos ser

obrigados a construir mais e mais termoeltricas a carvo ou gs! Na prtica, no entanto, o ritmo de

construo de termoeltricas no pas mostra que a estratgia prioritria dos promotores do desenvolvimento a pleno vapor essa, independentemente de mais ou menos hidreltricas.

Est claro que a opo do tal "novo desenvolvimentismo o binmio hidreltricas e termoeltricas,

como, alis, est no Plano Decenal de Energia 2021. E, como fantasma, ronda a ameaa da energia

nuclear. A moratria no nuclear, depois do grande desastre no Japo, apenas temporria. O incrvel

que, tendo o dobro de insolao da Alemanha, sejamos to reticentes em utilizar essa ddiva e

avanar estrategicamente na energia solar. A mesma ateno damos aos ventos que fazem tremular nossas palmeiras nos mais de 8 mil km de litoral; mas,... pouca energia eltrica geram.

No centro da questo energtica, preciso destacar o lugar estratgico das grandes construtoras.

Fazem-se grandes barragens e usinas porque um bom negcio para empreiteiras. J existem estudos

que mostram o potencial de pequenas hidreltricas, voltadas s necessidades locais, sem grandes

impactos ambientais e sociais para a sua implantao e posterior transmisso da energia gerada.

Contabilizando tudo, as pequenas geradoras hidreltricas em rede so muito menos invasivas e muito

mais produtivas e democratizadoras da economia, alimentando a sustentabilidade nos territrios. S

que no exatamente isso que se busca com o desenvolvimento que temos. O olhar sobre rios sobre

um recurso natural a explorar, e no aquela bacia integradora, bem comum compartido por quem a

vive. Nunca demais lembrar que a opo por grandes barragens hidreltricas no Brasil nunca foi por

ser energia renovvel, mas porque era frente de expanso para grandes negcios, induzida pelo Estado desenvolvimentista em aliana com grupos empresariais.

Mas o calcanhar de Aquiles energtico do Brasil emergente so as jazidas de petrleo do pr-sal. Ao

mesmo tempo que no mundo cresce o debate sobre como sair da dependncia da matriz energtica

fssil principal fonte de emisso de gases que ameaam o clima , ns estamos caminhando a

passos largos para mergulhar dedos, mos e a prpria cabea no petrleo. emblemtico que o

petrleo seja visto e saudado como a nossa carta de alforria para entrar no seleto clube dos

desenvolvidos. Vejo na questo do petrleo nosso grande desafio poltico para pensar como sair dessa

armadilha do desenvolvimento. O pior de tudo o senso comum que se forjou, que aponta o petrleo

como a base para o grande salto do Brasil ao tal desenvolvimento; isso, sobretudo, no meio da "classe

batalhadora os mais de 30 milhes que saram do limiar da pobreza com as polticas distributivas recentes.

As estimativas atuais das reservas de petrleo do pr-sal so de 50 a 100 bilhes de barris. Esto

espalhadas ao longo de 800 km, a cerca de 300 km da costa brasileira; esto entre 5 e 7 mil metros

abaixo do nvel do mar. Tudo isso revela que o desafio tecnolgico da extrao de tal petrleo

enorme, ainda mais depois do grande acidente no Golfo do Mxico. Mas o governo brasileiro decidiu

enfrentar esse desafio, e uma enorme arquitetura legal, institucional, financeira, industrial e

operacional est sendo construda para passar de um pouco mais de 2 milhes de barris de

petrleo/dia atuais para mais de 6 milhes em 2020. Claro, a maior parte para exportao. O Brasil vai

contribuir com mais de 3 milhes de barris/dias para Tudo continuar na mesma no mundo

dependente de energia fssil.

A questo trgica, mas no simples. At recentemente (menos de 10 anos), o Brasil era um pas

em processo de industrializao dependente de petrleo. Ainda nos anos 1950 do sculo passado, uma

grande mobilizao em torno da campanha "O petrleo nosso levou o ento presidente Vargas a

criar a Petrobras e o monoplio do petrleo. Muita coisa se passou desde ento, mas at hoje a

Petrobras vista como modelo de Estado empreendedor e facilitador do desenvolvimento, alm de

smbolo de uma cidadania que quer controlar o seu futuro. E a Petrobras que, no arranjo institucional

feito pelo governo do PT, est no centro da operao do pr-sal, revertendo a tendncia de concesses

para empresas privadas de lotes de explorao adotada pelo governo anterior. Tambm desde o

Governo Lula, foi fixado um percentual de "componente nacional nas enormes demandas de navios,

sondas e tudo o mais da Petrobras, fazendo renascer uma agressiva indstria naval. S para o pr-sal

so mais de 60 navios petroleiros de grande porte dada a distncia da costa e mais de 60 sondas

para extrao de petrleo em alto-mar. O movimento sindical, bero do PT, especialmente a Central nica dos Trabalhadores (CUT), hoje a principal fora de apoio ao projeto petrolfero.

Mas tem mais. O debate no Brasil no se vale a pena explorar o petrleo ou deix-lo onde est; pelo

contrrio. O debate sobre como distribuir as rendas do petrleo... Foi proposta uma nova lei

regulatria para todo o setor, a que volta botar a Petrobras no centro das operaes. Na mesma lei se

instituiu um fundo soberano, sob a administrao federal, sobre o principal das rendas do petrleo, um

pouco em sintonia com o que se fez na Noruega para fins sociais. Mas existem os royalties. At agora,

s os estados e municpios das reas de extrao e refino recebiam royalties. Com o pr-sal,

instaurou-se uma disputa federativa, pois todos os Estados do pas querem participar do butim. A

confuso da disputa dos ovos de ouro de uma galinha petrolfera, que ainda no est produzindo, est

na praa. O Rio de Janeiro, principal estado produtor, teve em 2011 uma gigantesca mobilizao, de

mais de 100 mil pessoas, em defesa dos royalties do petrleo! Vale a pena sinalizar que, de um ponto

de vista capitalista, o Rio de Janeiro, em particular a cidade do Rio, est sendo transformada em

cidade global pelos investimentos diretos dos grandes grupos, especialmente petroleiros. Como enfrentar isso? Existe ampla coalizo de foras, hoje, pr-petrleo.

No debate energtico e em sua relao com a questo climtica, importa observar de perto o papel do

etanol para carros de passeio, rea em que o Brasil foi pioneiro. Antes de tudo, deve ser registrado

aqui que a motivao inicial para desenvolver a tecnologia e produo de etanol a partir da cana-de-

acar no foi de ordem ambiental, mas comercial. Devido crise do aumento dos preos de petrleo

nos anos 1970 do sculo passado, que afetou enormemente o frgil equilbrio das contas externas

brasileiras, o regime militar decidiu apostar num substituto vivel gasolina para mover os carros e,

com isso, dar condies de expanso para a indstria de automveis instalada no Brasil, importante

setor de empuxe do ento "milagre econmico brasileiro e, diga-se de passagem, bero do combativo movimento sindical, do PT e da CUT.

O etanol foi importante nos anos 1980 e incio dos 90, mas sofreu com a reduo relativa dos preos

do petrleo e, sobretudo, com a descoberta do petrleo na costa brasileira, permitindo reduzir a

dependncia de importaes. O bom, em termos ambientais, foi a manuteno da mistura de etanol

gasolina algo em torno a 20%, em mdia, que tem claros impactos positivos nas emisses dos

carros, especialmente nas cidades. Mas a inveno dos carros flex movidos a gasolina, lcool ou com

uma mistura dos dois, no comeo dos anos 2000, permitiu que a produo de etanol desse um

grande salto, a ponto de o governo brasileiro comear alardear que tinha encontrado a frmula ideal

para enfrentar um dos viles das emisses, a frota crescente de carros de passeio no mundo. Na

verdade, o etanol e o biodiesel, como seu correlato, no passam de agronegcio, uma das mais

importantes bases do desenvolvimento do Brasil emergente. Seu impacto ambiental, do ponto de vista

de emisses, at pode ser positivo, mas seu impacto social devastador. Isso me remete prxima questo.

A questo do agronegcio

Conta-se que um chins, respondendo a uma pergunta sobre os emergentes agrupados no BRIC o

bloco, ainda emergente em termos geopolticos, formado por Brasil, Rssia, ndia e China, afirmou

que, sem dvida, esses pases tentavam embarcar e tomar o leme do navio do poder, mas estava

difcil. Em todo caso, havia possibilidades, dado que a China poderia ser a indstria do mundo; a ndia,

a prestadora de servios; a Rssia, a petroleira; e o Brasil, a fazenda. Trgica, mas boa imagem!

Lembro isso para destacar uma verdade: o Brasil hoje depende muito do agronegcio como fora de

sua presena no mundo. Claro que isso significa transformar em "vantagens comparativas segundo

a regra ptrea da competio capitalista nos mercados o enorme patrimnio natural de que o Brasil

dotado, mas que deve ser conservado para o equilbrio ambiental do planeta como um todo. Se

acrescentarmos ao agronegcio o extrativismo mineral, temos somado, nas tais commodities, uma

dependncia crescente das exportaes brasileiras da natureza (terra + minas + gua + sol), em ltima anlise. Existe, sim, capital e trabalho, mas tributrios da natureza.

Ao menos na pauta de exportao, o Brasil claramente reprimariza a sua economia como estratgia de

desenvolvimento. Nos ltimos anos, tal dependncia de produtos primrios vem aumentando.

Somados, s seis produtos primrios (minrio de ferro, soja, petrleo, carnes, acar de cana e caf)

chegam a mais de 44% das exportaes brasileiras de janeiro a agosto de 2012 (fonte: O Globo,

15/10/12). Dizer que se trata de "extrao natural altamente tecnificada no caso do agronegcio,

uso de sementes transgnicas e raas melhoradas, maior consumo de agrotxicos por hectare, muitas

mquinas, aumento de produtividade no resolve o fato de que estamos diante de um extrativismo

baseado nas tais "vantagens comparativas, destruidor da biodiversidade, de florestas, contaminador,

produtor de alimentos processados de qualidade duvidosa e dependente de modernos latifundirios,

parte da tradicional elite brasileira, vivendo nas cidades, ou de grandes grupos empresariais nada

identificados com o mundo rural. Afinal, vantagens para quem?

Estamos, na verdade, diante de uma bomba social e ambientalmente devastadora. So menos de 70

mil os grandes proprietrios de terras, num universo de quase 4 milhes de proprietrios rurais,

controlando quase 200 milhes de hectares, 25% do territrio nacional, o equivalente a mais de

2.800ha cada um, em mdia. Diante deles, quase dois milhes de famlias sem terra e outros dois

milhes com pouca terra. Existe negcio mais excludente?

O agronegcio depende do controle da terra e da sua explorao livre de controle social e ambiental. O

recente debate e luta em torno ao novo Cdigo Florestal no Brasil revelador do poder poltico do

agronegcio. A "bancada ruralista no Congresso Nacional tem poder de impor o que quer, tendo

derrotado o Governo Dilma em todos os rounds. Isto num pas onde os grandes proprietrios rurais so 0,0... alguma coisa da cidadania!

nesse ambiente que floresce o agronegcio, etanol de cana bem no centro, apesar do pouco peso

nas relaes externas at aqui (no o caso do acar, a alternativa a produzir etanol, de que o Brasil

goza de enorme vantagem comparativa). Estamos diante de um modelo de desenvolvimento da

produo agrcola e pecuria que pouco espao deixa aos agricultores familiares. Eles existem e at em grande nmero. Resistem, apesar de tudo.

Por conquista deles, existe hoje o Pronaf (Programa Nacional de Apoio Agricultura Familiar),

basicamente na forma de crdito subsidiado, numa escala do mais precrio ao mais vivel

economicamente. Esses crditos diferenciados comearam nos anos 1990, depois de grande

mobilizao. Com o Governo Lula e, agora, Dilma, essa linha de crdito pblico cresceu muito,

chegando a mais de R$ 18 bilhes/ano. Tambm desde o Governo Lula est vigente uma poltica de

compras oficiais pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) de produtos da agricultura

familiar para os programas pblicos de alimentos (asilos, centros de ateno especial etc.), com

grande impacto econmico e social, sem dvida. Foi instituda ainda a obrigatoriedade de comprar 1/3

dos alimentos para a merenda escolar (so 48 milhes de refeies gratuitas por dia nas escolas do

pas) da agricultura familiar da regio. So medidas no sentido da "grande transformao. Mas at

onde esto mudando a agricultura brasileira? Basta lembrar aqui que o agronegcio merece mais de R$ 120 bilhes de crdito agrcola; so muitas vezes mais do que a agricultura familiar.

Mais um aspecto relevante dessa questo deve ser mencionado aqui: a reforma agrria. Depois do

crescimento das lutas e de uma memorvel campanha no incio dos 1980, a reforma agrria entrou na

agenda poltica. Desde a Nova Repblica o regime que fez a transio da ditadura para a democracia,

instaurado em 1985, temos no Brasil ensaios de reforma agrria. A Constituio democrtica de 1988

estabeleceu princpios legais para realizar a reforma agrria, por presso popular e de movimentos

sociais dos mais importantes do pas, como o Movimento dos Sem Terra (MST). A realidade poltica do

pas, porm, mais dura. Pouco se fez em termos de reforma agrria nestes anos. duro dizer, mas

nos governos petistas ficamos patinando, dando preferncia ao crdito de apoio ao invs de

um efetivo programa de desmonte da bomba antissocial do latifndio predador social e

ambiental. Enfim, fica claro que o agronegcio parte do poder estabelecido, difcil de

mudar numa perspectiva de bases mais democrticas, includentes e sustentveis.

Pensar agricultura familiar, agroecologia e o direito humano ao alimento como pilares alternativos est

na agenda de muitos sujeitos, sejam movimentos e organizaes de agricultores, sejam entidades de

cidadania e direitos que lutam por justia social e j incorporam substantivamente a questo ambiental

como marco redefinidor da prpria luta por igualdade e participao. No entanto, h uma profunda

assimetria de poder com o agronegcio, de visibilidade na agenda pblica e de incidncia nas polticas.

Nunca demais lembrar que a arquitetura poltica para acomodar contradies nos levou a ter dois

ministrios: o Ministrio da Agricultura, entregue ao agronegcio, e o Ministrio do Desenvolvimento

Agrrio, prximo a movimentos sociais e organizaes camponesas.

Para a questo alimentar temos o Consea (Conselho Nacional de Segurana Alimentar), rgo de

assessoramento e monitoramento de polticas pblicas, com maioria da sociedade civil em sua

composio, talvez o melhor conselho dos muitos criados pelos governos petistas. Algumas conquistas

foram feitas, como a j citada aquisio de alimentos da agricultura familiar pela Conab, a extenso da

merenda escolar e a obrigatoriedade de 1/3 de alimentos que devem ser adquiridos da agricultura

familiar da regio. Tudo isso possvel, mas ocorrendo sob intensa disputa, onde os interesses do agronegcio frequentemente predominam.

Como criar as necessrias condies de transformao

Um primeiro aspecto a reconhecer aqui o fato de que estamos diante de um Brasil que vem

mudando. No estamos mais naquela fase de capitalismo selvagem, da ditadura, sem contrapesos.

Fizemos, sem dvida, incrveis avanos sociais por meio de polticas ativas, como Bolsa Famlia (com

apoio direto, em termos de renda, a mais de 13 milhes de famlias), aumento substancial do salrio

mnimo legal (de cerca de US$ 100 para mais de US$ 300), criao de milhes de empregos com

direitos trabalhistas (algo como 15 milhes nos governos petistas), ampliao da cobertura

previdenciria, expanso fenomenal do crdito para compra de bens de consumo e, sem dvida, o

controle da corrosiva inflao. Mas isso tambm foroso reconhecer fizemos sem mudar

fundamentalmente a lgica do processo de desenvolvimento capitalista, sua estrutura social

concentradora de ativos e sua base tcnica industrial, produtivista e consumista, altamente predatria

de recursos naturais; mercantilizando tudo; privatizando, se necessrio. O Brasil um exemplo de

social-democracia de bem com o capitalismo nos dias de hoje, num contexto em que o neoliberalismo e, agora, sua crise pem em questo a viabilidade de tal modelo, especialmente na Europa.

Como mudar um quadro assim? Na origem da recente "bonana do Brasil est o movimento

cidado multifacetado e forte que impulsionou a democratizao e que teve no PT a sua expresso

poltica mxima, mas no a nica. Sou dos que pensam que essa onda democratizadora est se

rebentando e esgotando na praia. No d para esperar outra coisa da atual coalizo. No vou entrar na

anlise especfica de como o DNA poltico do PT mudou ao fazer aliana com os grandes grupos

empresariais emergentes, em torno de um projeto de Brasil emergente. O fato poltico relevante que

a onda democratizadora, impulsionada mais pelas questes sociais que ambientais, est esgotando sua capacidade transformadora. Nova onda precisa ser reinventada, recriada.

A estamos diante de hipteses e apostas polticas. Existem alternativas reais? Elas so viveis? Que

condies polticas precisam ser criadas? O bom que cresce no Brasil a conscincia ambiental. O

quanto ela se alia inevitvel questo social, sem o que no h soluo vivel, ainda no est clara,

ao menos no debate pblico, aquele que importa como iderio mobilizador para criar movimentos

polticos capazes de realizar mudanas. Mas estamos longe de uma agenda coerente de mudanas

viveis. Temos ideias, mas elas so desarticuladas.

Em minha opinio, precisamos voltar s bases, fazer o que se fez na resistncia e ao finalmente

derrotar a ditadura. Trata-se de um trabalho de educao popular e cidad, na viso libertria de Paulo

Freire. Temos um enorme contingente da populao "contaminada pelo ideal do consumo, pois, afinal,

a primeira vez que o experimentam. Alm do mais, um grupo que busca a sua prpria identidade

emergente, por assim dizer, por meio de religies pentecostais, muitas vezes. Que a religiosidade

popular um elemento fundamental sabemos h muito tempo. Mas agora enfrentamos religies que

no necessariamente so nossas aliadas, ao menos at aqui, no espectro poltico brasileiro. Como agir?

Que papel devem desempenhar as organizaes de cidadania ativa nesse particular? Ou outras entidades precisam ser inventadas? Que mtodos polticos a inventar? Que pedagogia poltica?

O desafio maior para a democracia e a sustentabilidade, na perspectiva de uma transformao que

importa, no Brasil, conquistar coraes e mentes para tal agenda. O imaginrio mobilizador o

primeiro desafio. Precisamos ouvir, literalmente escutar, as ruas para entender e transformar as suas

demandas. Nosso problema e maior desafio de ordem cultural: falar para o que as pessoas sentem. Transformao s possvel com cidadania motivada e em ao.

* Socilogo, diretor do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (Ibase)

Publicado em www.cartamaior.com.br (1-11-2012) e www.adital.com.br (12.11.12)

http://www.cartamaior.com.br/http://www.adital.com.br/

A EVOLUO DA VISO ECOLGICA

Arno Kayser*

A ecologia , hoje, um dos temas mais importantes nos debates no nosso mundo. Um verdadeiro

fenmeno social contemporneo que parte ativa das grandes discusses, que esto na vanguarda da

crtica ao modelo de sociedade que temos e sua relao com as bases de suporte da vida no planeta. A

viso ambiental um tema transversal que se manifesta desde o processo de desenvolvimento

tecnolgico at as formas de educao formal e informal. Aparece tanto na questo da agricultura

quanto no planejamento urbano e regional. Tambm d seus pitacos nas questes de sade,

saneamento e alimentao. Aparece quando discutimos as questes do clima, da perda da

biodiversidade natural e na necessidade de protegermos animais, plantas e ecossistemas. Tambm

serve de base para a critica de um modelo de sociedade de consumo que esbanja recursos naturais e

produz resduos que poluem o solo, as guas e o ar. Tambm parte de uma crtica destruio das

culturas tradicionais e a busca de uma tica das relaes entre diferentes grupos humanos e seu

direito a vida e a plena manifestao cultural de seus elementos de identidade. A ecologia aparece at

como tema motor de uma busca de uma nova espiritualidade que conjugue os anseios e dvidas mais

ntimas de cada um com a busca de uma relao fraterna com os semelhantes e as demais formas de

vida existentes. Esforo que busca uma reconeco com o caracter sagrado da natureza, caracterstico

de vrias tradies culturais com a viso de mundo, que a cincia mais sofisticada dos nossos dias nos

trs. Gostemos ou no uma questo que veio para ficar e que cada vez faz mais parte de nossas vidas.

Mas isto nem sempre foi assim. At pouco tempo atrs a ecologia era uma cincia modesta. Alvo de

interesse de uns poucos iniciados. Enquanto cincia foi proposta em 1857 pelo naturalista Ernest

Haeckel, contemporneo de Darwin e Linneu e outros grandes cientistas do sculo XIX empenhados

em dar s cincias naturais o mesmo status cientifico conquistado pela Fsica, no sculo XVIII. A

proposta de Haeckel era estudar as relaes entre os seres vivos e seu meio buscando compreender as

vinculaes entre os ciclos bio-geo-qumicos e os seres vivos de um determinado sistema natural. Algo que, a princpio, interessava a muito pouca gente.

Qual seria a razo que levou est jovem cincia, em pouco mais de sculo e meio, a estar no centro

dos grandes debates mundiais? Porque razes ela seria tema de trs conferncias globais reunindo

dirigentes de todas as naes e um nmero imenso de organizaes da sociedade de vrios matizes, filosofias e propostas de ao?

Em parte a resposta est relacionada com o que vem acontecendo com o planeta a partir do advento

da revoluo industrial e da exploso demogrfica, alm do avano da compreenso cientifica do mundo, dos meios de comunicao de massa e dos avanos na participao cidad em todo o mundo.

At o incio da revoluo industrial o impacto das aes humanas e a capacidade de gerar grandes

modificaes ambientais era muito menor que a capacidade de absoro da natureza. A capacidade

homeosttica de manter o equilbrio natural era muito maior que a ao antrpica. Tanto que a viso

cartesiana da poca defendia claramente a dominao da natureza por meio da tecnologia sem se

preocupar com os reflexos desta ao no meio. Os espaos urbanos eram pequenos e o impacto dos

resduos, que as cidades de ento geravam, era muito menores que a capacidade de autodepurao do

solo e das guas aonde eram lanados. Alm disto a populao humana era pequena e sobravam

grandes espaos aonde a vida selvagem e os mecanismos naturais de equilbrio ocorriam sem maiores impactos humanos.

Com a revoluo industrial isto se modificou. Aos poucos a tecnologia humana foi aumentando a

capacidade de impacto sobre a terra. Uma estimativa do Professor Fensterseifer da Unisinos aponta

que no sculo XX o ser humano movimentou um volume de massa semelhante ao que as foras

geolgicas fizeram no ltimo milho de anos. A mo humana dez mil vezes mais forte e rpida que

todos os terremotos, maremotos, vulces, chuvas e ventos. Fato que tem seu impacto sobre os ciclos

naturais cada vez mais sentido. Some-se a isto que a criatividade humana vem se dedicando cada vez

mais a gerao de substncias inexistentes na Terra e contra os quais ela no tem tecnologia de

depurao. O que somado ao aumento de resduos jogados, sem tratamento, no meio ambiente, por

populaes cada vez maiores, explica a crise ambiental que se manifesta mesmo nos mais distantes rinces.

A reao a este processo comeou quase que junto com a revoluo industrial. J no sculo XVIII

comea, na Europa e EUA, a valorizao da vida no campo em contraposio ao caos urbano dos

centros industrializados. Tpica do romantismo esta reao foi iniciada por vrios autores daqueles

tempos. Entre eles Goethe e Thoureau. Mais adiante os socialistas utpicos comearam a propor

sociedades ideais, em torno de territrios, aonde se praticasse o respeito a terra e aos seres vivos.

Tambm os relatos antropolgicos dos viajantes do sculo XIX, que descreviam povos vivendo uma

relao de respeito em meio a uma natureza exuberante, contriburam na formao de uma cultura de

valorizao da vida selvagem. desta poca a famosa carta do cacique Seatle que, em resposta a

proposta do presidente americano de compra das terras indgenas, manifesta um dos mais difundidos

resumos da viso indgena da relao com a natureza. Surgiram os primeiros clubes de caminhantes e

observadores da vida selvagem. Gente que comeou a se revoltar contra o processo de degradao

natural e a propor a criao das primeiras reservas e parques naturais do planeta. O primeiro, criado

em Yellowstone, foi uma resposta ao massacre dos bises americanos que os caadores brancos

promoveram nas pradarias disparando dos trens em marcha para o oeste.

Esta vertente conservacionista, que partia do princpio de que para salvar a natureza era preciso

afastar o homem dela, criou muita fora no mundo e criou a primeira gerao de entidades

preservacionistas. Entre elas a World Wildlife Fundacion(WWF) da Inglaterra e a Fundao Brasileira de

Conservao da Natureza. O trabalho desta gente se voltou preservao dos animais em extino e a

preservao de grandes parques selvagens, no mundo todo, a partir dos estudos de emritos

naturalistas. Grande impulso a este trabalho o livro Antes que a natureza morra de Jean Dorst e os documentrios da Nacional Geografic, j no sculo XX.

Mas o sculo XX tambm trouxe uma srie de novos fatos que deixaram claro que no bastava s isto

para salvar a vida na Terra. Novas tecnologias comearam a pesar na balana. Em especial inovaes

da indstria qumica e do petrleo e os artefatos blicos baseados no tomo. Ambas responsveis por

alguns dos piores artefatos da histria da humanidade. A indstria qumica trouxe uma srie de

produtos, derivados da qumica orgnica, que no existem na Terra. Os piores foram os gases usados

como armas qumicas nas guerras mundiais. Depois de matarem milhares de soldados e populao

civil eles foram convertidos em agrotxicos e difundidos no mundo pela revoluo verde. Por sua

persistncia ambiental e capacidade de bioacumulao eles foram cada vez mais letal. Canceres,

infertilidade e doenas degenerativas ou teratognicas foram surgindo na sua esteira. O DDT foi

achado at na gordura dos ursos do rtico. A denncia deste mal resultou num dos mais clebres

livros ecologistas do planeta. Nos anos 60, Rachel Carson publicou Primavera Silenciosa. Um relato

dos efeitos dos agrotxicos na vida selvagem e no ser humano que motivou amplas campanhas de

mobilizao popular contra seu uso na agricultura. J o desenvolvimento da bomba atmica, que o

mundo conheceu em todo o seu horror em 1945, no Japo, ps a humanidade em estado de alerta.

Nunca um artefato humano assustou tanto por seu poderio de fogo. A corrida armamentista da guerra

fria s aumentou este temor. Em todo mundo personalidades famosas e movimentos organizados

comearam a pedir o seu fim. Fenmeno que ganhou fora com os movimentos pacifistas contra as guerras na Coria e Vietn.

Outro elemento que se somou a este caldo de questionamento social foi a publicao do relatrio Os

limites do crescimento. Extenso estudo, patrocinados pela ONU, a partir de um esforo de

especialistas reunidos no chamado Clube de Roma, procurou calcular o tempo de durao dos

principais recursos naturais, a continuar o ritmo de crescimento da civilizao e seu padro de

consumo. Ao mesmo tempo as primeiras fotos da Terra, feitas, do espao, pelos cosmonautas,

revelaram ao mundo uma imagem de um pequeno planeta perdido no imenso cosmos. Nossa nica morada no Universo.

Todos estes fatos somados causaram grande impacto na opinio pblica graas a massificao das

informaes, atravs dos avanos da mdia via satlite, que comearam a criar a aldeia global. Surge

um forte movimento ecologista em todo o planeta denunciando, aos quadro cantos, os efeitos locais da

poluio, devastao de ecossistemas e as ameaas da guerra. Os antigos grupos de amantes da

natureza se transformaram num movimento combativo com uma criativa interveno na construo da

conscincia ecolgica. O lema pensamento global e ao local ganhou uma fora incrvel. Atraem

pessoas de vrias geraes e se transformam num fato comportamental marcante. Algumas de suas lideranas atinge o status de celebridades internacionais como Jaques Cousteau e Jos Lutzenberger.

Aqui no Brasil no foi diferentes. J no ano de 1939 o leopoldense Henrique Roessler consegue

autorizao do Ministrio da Agricultura para atuar como delegado de caa e pesca voluntrio. Inicia

um trabalho intenso de fiscalizao e educao ambiental. Mais tarde perseguido por industriais

poderosos perde o poder legal e cria, com seus colaboradores, a UPN em 1955. Primeira entidade

ecologista do pais, anterior a FBCN, que surgiu em 1958 no Rio de Janeiro. Roessler passa tambm a

escrever artigos para o Correio do Povo. Textos que influenciaram uma gerao de seguidores que

acabaram criando a AGAPAN cerca de oito anos depois da morte do pioneiro gacho. A entidade

liderada por Jos Lutzenberger cria fama nacional e internacional deflagrando lutas contra os

agrotxicos, programa nuclear e pela preservao da Amaznia. A partir do Rio Grande do Sul surgem

movimentos em outros estados brasileiros ao longo dos anos 70 e 80. Ao ponto de no incio dos anos

90 serem registradas mais de 1500 entidades ecolgicas no pas com algo em torno de 50 mil membros, segundo estudo de Padu e Pizzi.

No plano oficial a ONU reage chamando a primeira Conferncia de Meio Ambiente e Desenvolvimento,

em Estocolmo, no ano de 1972. As denncias l apresentadas, sobre uma srie de problemas

ambientais, em vrios locais, levam os governantes mundiais a criao de rgos ambientais e

programas de meio ambiente. No Brasil surge a SEMA no plano federal. A ela seguiram-se vrios

rgos municipais e estaduais aglutinando entidades florestais, servios de parques e controle da

pesca. Estes esforos oficiais somados a presso das entidades ecolgicas fazem surgir vrias leis em

defesa da natureza como a lei dos agrotxicos a lei da poltica nacional de meio ambiente e a criao do Conselho Nacional do Meio Ambiente.

Tambm nos anos 80 a ecologia comea a ganhar os bancos escolares com vrios iniciativas de

educao ambiental em cima dos problemas locais. O que vem formando toda uma gerao de

cidados com conscincia ecolgica. Ao mesmo tempo a cincia comea a demonstrar que, alm dos

problemas locais, h efeitos globais da degradao do meio ambiente. Tem especial destaque o problema das mudanas climticas, a alterao da camada de oznio e a perda da biodiversidade.

Esta viso e a manifestao da fora das ONGs ecologistas, pacifistas, feministas e de defesa de

minorias chega ao auge na segunda Conferncia do Meio Ambiente da ONU realizada no Rio de Janeiro

em 1992. A repercusso do evento tamanha que leva a derrota eleitoral do Presidente Bush(o pai)

por ser contrrio aos seus propsitos. A partir dela a questo ambiental comea a se consolidar como

tema essencial na agenda do planeta. Uma srie de acordos internacionais como o Protocolo de Kyoto,

a conveno de Biodiversidade e a agenda 21 so impulsionados a partir da fora do evento. A ecologia

ganha o cotidiano das pessoas de forma definitiva.

Mas tambm a partir dos anos 90 que comea a reao a sua ascenso. Tendo como mentor a

Organizao Mundial do Comrcio(OMC) inicia-se um processo de solapatao de sua caracterstica

mais virulenta e revolucionria. O movimento neoliberal consegue a criao da lei de patentes que

garante o acesso da biodiversidade aos grandes grupos econmicos. Surgem os Organismos

Geneticamente Modificados. Aliengenas, criados em laboratrio para gerar lucros e concentrao de

poder econmico, cujos efeitos ambientais ainda no esto plenamente conhecidos. A indstria de

consumo procura criar, atravs de certificaes, um mercado verde para consumidores de alto padro

de renda. A luta contra o terrorismo e narcotrfico promove um novo impulso para a indstria blica

mundial. A crise econmica mundial rouba muitos militantes do movimento ecolgico. O controle da

mdia, por grandes blocos econmicos, tiram um dos seus instrumentos mais poderosos de difuso.

Algumas lideranas so perseguidas e at mortas, como no caso do Chico Mendes. Os grupos

petroleiros resistem ao protocolo de Kyoto, a partir do governo americano, para defender seus interesses econmicos.

Os ecologistas reagem criando uma srie de coalizes locais e nacionais e mesmo mundiais. No RS

temos a Apedema-RS. A nvel nacional a Rede da Mata Atlntica, a Coalizo Rios Vivos e o Frum

Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais. A nvel internacional o Greenpeace e a Rede Amigos da

Terra. Ao mesmo tempo os ecologistas buscam se unir a outros movimentos sociais como as organizaes campesinas e a CUT que tem, hoje, na sua pauta a ecologia.

A luta contra a fome e a busca da incluso social incorporou vrias bandeiras ecolgicas. O movimento

social em torno do Frum Social Mundial tambm tem sua vertente ecologista buscando a

implementao do desenvolvimento sustentvel j proposto em 1972.

Tambm a teologia se abre para a questo ecolgica. A partir do trabalho de Leonardo Boff e Frei Betto

surge toda uma discusso teolgica colocando o cuidado com a Me Terra como cerne do debate tico.

Algo que o telogo pacifista Schweitzer j colocava, nos anos 50, em sua luta contra as armas

atmicas. Tambm movimentos religiosos de caracter popular vem resgatando a devoo ao sagrado

manifesto na natureza. A abertura s tradies religiosas indgenas, africanas e orientais no ocidente

tem alimentado este processo. Exemplos disto so as Romarias da Terra e das guas e vrias campanhas da fraternidade que expresso este processo.

Esforos que tem contribudo para dar maior penetrao popular da dimenso tica implcita na viso

ecolgica profunda, que coloca como premissa maior o direito vida plena de todas as formas de vida.

Tanto as naturais como as culturais.

Processo que completa a viso cientifica, que impulsionou a primeira onda ecologista e que contribui

para entranhar profundamente a viso ecologista, como um dos elementos fundamentais da grande

revoluo cultural, que caracteriza o incio do terceiro milnio da era crist. O que tambm trs a tona

elementos importantes da viso bblica como o valor da vida comunitria, o cuidado com a criao e a

questo do amor ao prximo. Elementos que saltam aos olhos numa nova leitura de vrios de seus

enunciados que no passado deram fundamentao tica ao processo de conquista da terra e que, hoje, so reinterpretados a partir de uma viso de cuidado com a divina criao.

Fato que reafirma o caracter libertador da questo ecolgica e seu comprometimento com a construo

permanente de um mundo ecologicamente sustentvel, socialmente justo, economicamente vivel e culturalmente aceito.

*Agrnomo, ecologista e escritor. Texto publicado no livro A reconciliao com a Floresta.

Editora Edipuc RS/ Jornal Mundo Jovem. Porto Alegre, 2007.

Tambm disponvel em http://arnokayser.wordpress.com

http://arnokayser.wordpress.com/

CPULA DOS POVOS, CAMINHOS ECUMNICOS E ACT PS RIO+20

Rafael Soares de Oliveira*

A experincia vivida na Cpula dos Povos pela Aliana ACT, representada no Comit Facilitador da

Sociedade Civil pelo seu Frum ACT Brasil traz luz muitas reflexes e aqui algumas delas so

destacadas com uma inteno, os aprendizados.

Primeiro os elementos de contexto, segundo a dinmica exigente e os desafios enfrentados, terceiro

aspectos de identidade x visibilidade, visibilidade x incidncia pblica e quarto o caminho da

continuidade.

Um contexto global desafiador para a unio de foras civis

Analisando o contexto das mobilizaes da sociedade civil no perodo dos anos 2010 e 2011os desafios

presentes no campo socioambiental e as mobilizaes por democracia e direitos para os povos se

acirraram. Diversos foram os processos que se alastraram no planeta, entre indignados/as, occupy,

primavera rabe, movimentos por justia climtica, de atingidos/as por desastres, por direitos de

povos originrios, de povos e comunidades tradicionais, por moradia e direito cidade, por economia

solidria, de pequenos produtores rurais e da agroecologia e a retomada de movimentos por direitos

civis e polticos por liberdade e contra intolerncias, e de movimentos feministas somados a

reivindicaes pela recuperao de direitos trabalhistas, assim como a luta pela terra e territrios, para

citar muitos e no todos.

Os atores e fenmenos tambm diversos nos polos opostos queles processos da sociedade no so

muitos, se vistos sob o pano de fundo da crise econmica global, a crise climtica e o sistema de

decises econmico-polticas. Tratam-se dos 1% privilegiados pelo sistema financeiro, dos

conglomerados e corporaes financeiras, extrativistas e de explorao de monoculturas, das

indstrias de alto consumo energtico e fssil, os governos com uma agenda desenvolvimentista e os

insensveis a crise ambiental entre todos esses. Um campo sem muitas sadas e propostas alternativas,

que a ONU tenta agregar sob o manto de uma nova teoria socioeconmico-ambiental, a economia

verde e seus corolrios.

As arenas em que essas diversidades tm se confrontado no so nos mesmos territrios e cenrios,

particularmente do lado da sociedade civil os mltiplos movimentos pouco se encontram ou

coordenam, ainda que se movimentem contra adversidades e adversrios comuns. Infelizmente mortes

de humanos e deteriorao do planeta tem sido o rastro deixado tanto pelo uso da fora pelos que

detm o poder, como pela desigualdade estrutural que vulnerabiliza e expem populaes aos

desastres ambientais, aos deslocamentos forados e outras violaes de direitos.

Sinais de uma agenda comum para a sociedade civil global foram emitidos a partir dos Fruns Sociais

Mundiais (FSM) e das agendas do sistema ONU, que particularmente podemos citar a agenda climtica

nas Conferncias das Partes at a ltima COP17. Ambos processos mostraram suas fragilidades. Os

FSM no foram capazes de ir alm das demonstraes da diversidade e da organizao global de

algumas lutas setoriais sem conseguir produzir uma agenda de convergncias do amplo campo de

atores que convoca. O sistema ONU, cada vez mais apoiado na crise econmica global e dando sinais

de subordinao s corporaes econmicas, vem demonstrando frgeis acordos e limitados espaos

nas negociaes entre governos e sociedade.

O desafio colocado antes da Rio + 20, que ainda permanece, tem duas vertentes: visibilidade para as

causas dos povos e convergncias de agendas globais da sociedade, tanto das lutas como das

propostas para o futuro comum do planeta e seres viventes.

Uma dinmica exigente para chegar s articulaes necessrias

Dialogar com todos os movimentos evidentes na sociedade, compartilhar de suas lutas, enfrentar as

armadilhas das incuas negociaes recentes com governos foi a tarefa que se props o Comit

Facilitador da Sociedade Civil para a Cpula dos Povos na Rio + 20 (CFSC). Esse processo comeou

com base no Brasil, aglutinando atores durante quase ano e meio, buscando aumentar o espectro de

participao e mantendo um tensionado processo de consenso entre redes e movimentos que ou fazia

tempo que no dialogavam e j expressavam antagonismos ou nunca haviam se encontrado. As

tenses eram tantas que a tarefa parecia impossvel, mas conseguiu-se avanar, inclusive agregando a

mobilizao internacional que cada rede e movimento foram capazes de mobilizar.

O processo dos FSM com o Frum Temtico por Justia Socioambiental ajudou as mobilizaes, mas

no se confundiu com elas. Outras foram necessrias e se fizeram presentes. A Cpula dos Povos

terminou por ser dirigida por um ncleo do CFSC redes e movimentos, brasileiros e internacionais. A

esse ncleo se chamou Grupo de Articulao (GA)1, que consolidou a convocao internacional da

Cpula dos Povos, lugar em que se situou o FEACTBrasil e a representao que acumulou,

compartilhada para alm do mundo ecumnico cristo, mobilizando e interagindo.

Situando a participao ecumnica e a representao compartilhada

Como se v os desafios centrais estiveram em torno de manter negociaes continuadas entre tantos e

diversos atores pblicos, que alimentavam e acalentam o sonho de mais unidade entre tantas partes

da sociedade civil em movimentos locais, nacionais, continentais e globais.

Chama-se de sonho a um processo que se tornou palpvel e no est nos limites do irreal, mas nas

fronteiras sociais, na vida cotidiana e conflituosa de milhes que vivem e sobrevivem em situaes

que a maioria de alguma forma conhece e no quer ver, ou no se solidariza, ou acostumou-se a

ocultar com desculpas casusticas. Visualizar convergncias impensadas, encontros que h muito no

ocorriam, parcerias produtivas em prol de uma causa geral e no corporativa e algumas outras aes

mais, na Cpula dos Povos, foi exemplo vivo de um novo tempo, radical e exigente.

A Cpula dos Povos por Justia Social e Ambiental, contra a Mercantilizao da Vida e da natureza e

pelos bens Comuns consolidou-se como um momento de expresso das mobilizaes gerais da

sociedade civil global. Entre os efeitos que causou um principal foi de que agentes de lutas globais

atuais se reuniram por direitos (dhesca direitos civis e polticos, econmicos, sociais, culturais e

ambientais) sob uma identidade comum, que se manter durante algum tempo.

importante para essa reflexo falar um pouco sobre o uso da palavra identidade. Esta se define em

movimento e de forma relacional, est definida por valores, mas efetiva-se pelo reconhecimento

daquelas e daqueles que se reconhecem dentro de um mesmo crculo, melhor dizendo dentro de uma

mesma fronteira, cuja linha, cuja borda totalmente relacional e varia de acordo com os contextos em

que os de dentro da fronteira reconhecem aqueles que esto dentro e aqueles que esto fora, por

processos polticos, por intercmbios de reconhecimentos, de valores e de sinais simblicos de

pertena. Nesse sentido que se pode dizer que o antes, durante e depois da Cpula dos Povos

delimitou uma fronteira de identidade.

Nos contornos dessa identidade, algumas marcas da fronteira que a delimitam, foram e so:

Vontade poltica de realizar convergncias entre movimentos sociais2

Separao ntida das aes da sociedade civil daquelas das corporaes empresariais;

Separao ntida das aes da sociedade civil daquelas dos governos;

Compreenso do Estado como gerente de recursos e bens pblicos, nunca privados;

Conscincia da urgncia da crise socioambiental que se abate sobre o planeta;

1 Para ver a composio deste GA veja-se em http: www.cupuladospovos.org.br/quem-organiza-a-cupula/. ramos uma rede

entre 41 no total, de nacionais e internacionais. 2 Por movimentos sociais entenda-se um conjunto amplo dos movimentos populares por direitos, movimentos sindicais, ONGs,

movimentos de religiosos, movimentos dos indignados e os movimentos occupy e de juventudes.

http://http:%20www.cupuladospovos.org.br/quem-organiza-a-cupula/

Oposio ao modelo econmico financista e extrativista, hegemonicamente capitalista;

Solidariedade radical com a resistncia (ou resilincia) das vtimas dos conflitos

socioambientais;

Formulao de propostas alternativas para a sociedade a partir daqueles que, de vtimas dos

conflitos, tornam-se agentes de modos alternativos de enfrentamento das crises tanto no

mbito prtico da viabilidade econmica e social da vida no planeta, como no mbito reflexivo,

evidenciado em tradies culturais e em novos paradigmas societrios.

Interagir com essa fronteira de identidade de forma a incluir-se exigiu a tomada de posio sem

ambiguidades. Para tanto se fez necessrio considerar conceitos e valores, histricos e recentes do

mundo ecumnico, a exemplo:

Do conceito tridimensional do ecumenismo: unidade dos cristos, unidade com os que lutam

pela justia a paz e a integridade da criao, unidade na diversidade do dilogo e nas relaes

inter-religiosas;

Dos princpios do compartir ecumnico de recursos no competio, colaborao entre

desiguais de forma igual, recursos materiais e imateriais como bens coletivos;

Do conceito de desenvolvimento transformador.

Somente a partir do momento que a representao ecumnica, com seus valores e referncias,

conseguiu sentir-se parte daquela outra fronteira de identidade mais geral, e por ela foi reconhecida

que foi possvel participar de decises, assumir compromissos de gesto e atos de expresso pblica

em conjunto.

Obviamente que, alm dos valores, um sinal claro de mandato de representao deveria ser dado e

isto foi feito de modo dinmico na Cpula dos Povos.

Por um lado sinal delegado pelo Frum de ACT Brasil, e por outro lado como representao das

mobilizaes feitas para incentivar que diferentes atores se auto-organizassem para a Cpula dos

Povos. A exemplo do que foram as relaes internacionais mobilizadas entre CMI, Aprodev, Agncias

Ecumnicas, Anglican Alliance, Ecumenical Advocacy Alliance, ACT Alliance CIDSE e FEACTBrasil, bem

como das mobilizaes a partir do Brasil com cunho local e internacional entre as cerca de 45

expresses de religies congregadas para a Cpula. O denominador comum prtico e de valores entre

a fronteira de identidade da Cpula, do mundo ecumnico e inter-religioso foi a marca Religies por

Direitos que agregava um sentido ltimo nossa cooperao e convergncia, nossa histria de

defesa de direitos e nossa vontade de continuar defendendo, dentro dos parmetros estabelecidos pela

Cpula dos Povos.

muito difcil, para localizar um texto nos aprendizados falar de sentido ltimo de nossas aes, mas

parece ser um item necessrio, ainda que repetitivo para muitos e muitas. Por sentido ltimo se quer

designar as populaes a quem se destinam as nossas prxis (reflexo, produo de conhecimento e

prtica de apoio e fortalecimento). So aqueles e aquelas vtimas de todas as violaes de direitos,

DHESCA, como j se definiu. Agrega-se a esse sentido ltimo os direitos da prpria natureza, no

como um ente abstrato, mas como um todo em equilbrio (chamada me terra por muitos) supondo

mas indo alm da presena humana.

Operando a representao coletiva e pblica

Nesses contextos ficou claro que cada vez menos a Cpula dos Povos convergiria para uma agenda de

dilogo com governos e com organismos governamentais multilaterais. O que se acirrou mais ainda

com o progressivo retrocesso do Governo Brasileiro tanto nas negociaes com a sociedade civil, como

na produo de um documento paralelo a ser apresentado para a ONU (informaes acolhidas em maio

e confirmadas no dia 19 de junho). Estar no CFSC e seu GA implicava em afastar-se da Conferncia

Oficial e demarcar um campo para o futuro, ainda que soubssemos que parte da representao

ecumnica continuava a pleitear espao e agenda poltica de incidncia na conferncia oficial da

Rio+20.

Note-se por tudo que se analisou at aqui de que a Cpula dos Povos rechaou qualquer compromisso

com empresas e corporaes econmicas e no se configurou como uma conferncia paralela,

pautando-se pela agenda da conferncia oficial, a Conferncia Rio+20 sobre Desenvolvimento

Sustentvel. As metas desejadas pela Cpula eram para alm de uma agenda paralela, poderia inclu-

la, mas tendeu a um movimento mais amplo. O que, considerado o frgil resultado da Conferncia

Rio+20, pode-se considerar que a Cpula foi mais ampla.

Operar uma representao to ampla que inclua ACT Aliana e outros setores significava ter uma

visibilidade necessariamente compartilhada, em favor dos consensos e das convergncias alcanados.

Aqui destacamos um aprendizado: compartilhar a marca onde estejam claros o pblico alvo da

solidariedade e os compromissos com o futuro no diminui a marca, amplia e acumula simbolicamente,

pois a facilita o reconhecimento sobre que causas e que interesses se mobiliza.

A operao, manejo, da representao significava arriscar tambm no territrio da inter-religiosidade e

das ideologias poltico-econmicas, o que s foi possvel porque se manteve o foco do sentido ltimo j

definido. E esses riscos mexem todo o tempo com as expectativas e processos em que a representao

se move.

Para imprimir dinamismo a nossas participaes e prticas ecumnicas necessrio avanar nos

aprendizados:

A tomada de decises que se exigem das experincias de incidncia pblico-poltica

(incidncia), com a sua correlata visibilidade devem considerar que nossos representantes tm

mandato poltico para arriscar (dentro dos parmetros de nossos valores comuns e identidade).

irreal e nada prtico conduzir processos supondo que todas as decises crticas estaro

submetidas a processos de consultas a todos os membros;

Inserir-se como parte de outros coletivos em cooperao, tomar posies e propor atos que

impliquem em visibilidade pblica exige velocidades que no podem estar condicionadas a soma

da opinio de todos, mas vontade geral personificada em um representante e ou um grupo

mnimo de referncia para a consulta rpida.

Qual o bom senso nesses casos?

Sem dvida os prazos para que se faam ou no consultas e a contnua circulao de

informaes para todos e todas sobre o realizado;

Esses aprendizados podem ser uma obviedade para alguns, mas precisamos tomar ou retomar nossas

referncias, principalmente quando estamos a construir novas dinmicas, a exemplo da ACT Aliana,

com ano e meio de existncia formal. Pode-se dizer que foi baseado nesses aprendizados que a

circulao e legitimidade entre tantas esferas diferentes de participao e deciso foram possveis: no

Grupo de Articulao do Comit facilitador da Sociedade Civil e na gesto de tudo que se configurou

sob o guarda-chuva Religies por Direitos (religioespordireitos.blogspot.com.br).

Visibilidade com inteno pblica ecumnica e o futuro da Aliana ACT

Experincias como esta da participao na Cpula dos Povos apontam nitidamente para a necessidade

de que os atores da Famlia Ecumnica tenham sua identidade clara para o pblico e os atores

intervenientes nos processos.

Especificamente para a Aliana ACT o reconhecimento da sua identidade tem que se tornar cada vez

mais imediato, em sua face tridimensional, qual seja, desenvolvimento a longo prazo, ajuda

humanitria e incidncia pblica, sem a hipertrofia de qualquer das partes. Alcanar isso, no entanto,

no ser resultado de discusses internas de prioridades e de definies conceituais. Vir por outro

lado de um equilbrio que se alcanar com um misto de inteno poltica de interagir, de compartilhar

e de atuar em favor de causas que explicitem nossos valores e pblicos-alvo.

O aprendizado da Cpula dos Povos aponta nessa direo, de que o caminho do equilbrio da

tridimensionalidade da Aliana ACT passa pelo processo de incidncia conjunta com outros atores,

alm dos ecumnicos. Prtica que retornar para a Aliana como exigncia de coerncia com seu

sentido ltimo.

correndo riscos que atualizem permanentemente a identidade da Aliana ACT, nas diversas fronteiras

com que interagir, que se lograr uma aliana visvel assim como os seus compromissos.

Afinal as agendas de responsabilidade com solues para o futuro do planeta, de solidariedade com as

vtimas da injustia socioambiental, da injustia econmica e das injustias polticas continuam na

ordem do dia, como anuncia o documento final da Cpula www.cupuladospovos.org.br.

* Diretor Executivo de KOINONIA Presena Ecumnica e Servio.

http://www.cupuladospovos.org.br/

DECLARAO FINAL

CPULA DOS POVOS NA RIO+20 POR JUSTIA SOCIAL E AMBIENTAL EM DEFESA DOS BENS COMUNS, CONTRA A MERCANTILIZAO DA VIDA

22 de junho, 2012

Movimentos sociais e populares, sindicatos, povos, organizaes da sociedade civil e ambientalistas de

todo o mundo presentes na Cpula dos Povos na Rio+20 por Justia Social e Ambient