“derrotar nas ruas e vencer em 2022”: crÍtica da via

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PG.4 VOLTA ÀS AULAS: UM CONTO DE FARSAS? VOLTA ÀS AULAS: UM CONTO DE FARSAS? TRÊS ATOS PARA UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA TRÊS ATOS PARA UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA ENTREVISTA DO MOMENTO: HELENA HIRATA ENTREVISTA DO MOMENTO: HELENA HIRATA PG. 11 PG.17 PG.14 CAROLINA MARIA DE JESUS OBRA: QUARTO DE DESPEJO O ASSALTO AO QUARTEL MONCADA 68 ANOS DE REBELDIA EM CUBA EDITORIAL: O MOMENTO - HISTÓRIA DO PRESENTE “DERROTAR NAS RUAS E VENCER EM 2022”: “DERROTAR NAS RUAS E VENCER EM 2022”: CRÍTICA DA VIA ELEITORAL CONTRA O BOLSONARISMO CRÍTICA DA VIA ELEITORAL CONTRA O BOLSONARISMO PG.2 PG.12 PG.7 ANÁLISE CRÍTICA DAS OLIMPÍADAS ANÁLISE CRÍTICA DAS OLIMPÍADAS ÀMEMÓRIADEARIOVALDOMATOS ÀMEMÓRIADEARIOVALDOMATOS PG.18 www.omomento.org omomentoba Salvador | Bahia Agosto de 2021

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PG.4

VOLTA ÀS AULAS: UM CONTO DE FARSAS?VOLTA ÀS AULAS: UM CONTO DE FARSAS?TRÊS ATOS PARA UMA TRAGÉDIA ANUNCIADATRÊS ATOS PARA UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA

ENTREVISTA DO MOMENTO: HELENA HIRATA ENTREVISTA DO MOMENTO: HELENA HIRATA PG. 11

PG.17

PG.14

CAROLINA MARIA DE JESUSOBRA: QUARTO DE DESPEJO

O ASSALTO AO QUARTEL MONCADA68 ANOS DE REBELDIA EM CUBA

EDITORIAL: O MOMENTO - HISTÓRIA DO PRESENTE

“DERROTAR NAS RUAS E VENCER EM 2022”:“DERROTAR NAS RUAS E VENCER EM 2022”: CRÍTICA DA VIA ELEITORAL CONTRA O BOLSONARISMO CRÍTICA DA VIA ELEITORAL CONTRA O BOLSONARISMO

PG.2

PG.12

PG.7ANÁLISE CRÍTICA DAS OLIMPÍADASANÁLISE CRÍTICA DAS OLIMPÍADAS

À MEMÓRIA DE ARIOVALDO MATOSÀ MEMÓRIA DE ARIOVALDO MATOS PG.18

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EDITORIAL

Por Milton Pinheiro

O jornal O Momento – Diário do Povo teve seu primeiro período de circulação entre abril de 1945 e novembro de 1957. Cumpriu uma densa jornada de defesa dos interesses da classe trabalhadora, apresentou uma consistente pauta de denúncias das iniquidades do sistema burguês, defendeu a democracia na ordem política e social brasileira, assim como contribuiu para o processo de formação política de amplos segmentos sociais naquele período.

Durante os anos 1980, um conjunto de quadros políticos do PCB/Bahia e intelectuais socialistas do jornalismo baiano tentaram reeditá-lo. Inclusive, contando naquele episódio de relançamento com a presença do João Falcão, que foi diretor do primeiro período e posteriormente o combativo proprietário de um ícone da imprensa baiana, o Jornal da Bahia. No entanto, ficou apenas, nesse retorno, com uma edição.

No final de 2019 e começo de 2020 os comunistas baianos voltaram a discutir a imprensa comunista em nosso estado e a possibilidade de relançamento do O Momento – Diário do Povo. Essa tarefa foi levada a frente por um conjunto de militantes comunistas do PCB tendo à frente alguns

professores e jovens estudantes da universidade pública.

Publicamos nossa primeira edição em meados de 2020 e agora estamos completando, em agosto, o primeiro ano de vigência do nosso terceiro retorno. Temos uma edição mensal impressa (pdf) e um instrumento online que é diariamente alimentado. Tornando possível a circulação de conteúdos caracterizados com o perfil da imprensa popular de orientação comunista, contudo, aberta para amplos segmentos populares e de esquerda.

O jornal segue um perfil bastante singular: um editorial, uma entrevista, um texto sobre a memória política de velhos militantes e 4 ou 5 artigos sobre temas regional, nacional ou internacional que sejam candentes e que tenham especial relevância para nossa posição política. Durante a semana, com entradas diárias, o jornal é alimentado com textos/matérias.

Dentro da visão política que qualifica nosso perfil jornalístico, é importante registrar o caráter autoral do jornal, pois, todos seus textos são assinados. Para além dessa dinâmica político-editorial, tem toda uma construção técnica que da forma ao nosso conteúdo através de imagens,

Mais um ano de história da imprensa popular

Arquivo: Biblioteca Nacional

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omomentoba

Jornalista responsável Milton Pinheiro MTB 72.595/SP

Conselho de Redação Camila Oliver, Milton Pinheiro, Rômulo Caires,

Nalbert Antonino e Rafaela Fraga Editora

Camila OliverDiagramação e Capa

João Abreu

Colaboradores desta ediçãoBenedito Libório , Gabriel Galego, João Pedro

Aguiar, Célula de Educação Popular Iracy PicançoRevisão

Gabriel Galego e Rafaela Fraga+55 (71) 99299-1368

[email protected] www.omomento.org

EXP

EDIE

NTE

fotografias e o perfil da diagramação. Forma e conteúdo encontram sua razão dialética no projeto que é apresentado aos leitores através das nossas edições mensais.

Seguindo a razoabilidade da boa técnica jornalística realizamos rotineiramente reuniões para definições de pautas e para retroalimentarmos o instrumento online. Todo esse trabalho conta, para além da presença do jornalista responsável, da presença da editora chefe, do diagramador, de um conselho de redação e de um conjunto de colaboradores sempre muito próximos.

Ao completarmos um ano de retorno dessa fénix da imprensa popular, queremos registrar os compromissos norteadores do nosso projeto jornalístico: defesa sem trégua dos interesses

imediatos e estratégicos da classe trabalhadora, combate contra as opressões da sociabilidade da ordem burguesa, defesa das liberdades democráticas (diante de um tempo histórico de obscurantismo e neofascismo), ampla divulgação dos movimentos desenvolvidos pelo bloco proletário e popular em defesa da reorganização da classe trabalhadora, através do amplo trabalho de base e da construção da greve geral política no Brasil como instrumento de articulação de um grande encontro da classe trabalhadora, um ENCLAT. Todo esse projeto de jornalismo-compromisso deve ser pautado nos princípios da verdade histórica, da luta pelo Poder Popular na trilha do socialismo.

Arquivo: Biblioteca Nacional

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“DERROTAR NAS RUAS E VENCER EM 2022”:CRÍTICA DA VIA ELEITORAL CONTRA O BOLSONARISMO

No avançar da grave situação brasileira muitos tem feito ao menos duas perguntas: o que nos trouxe até aqui? E o que fazer diante disso? Na va-riedade das respostas podemos encontrar uma diversidade de lentes de análise e de posições em que se apoiar. Quando se trata de respos-tas políticas podemos questionar a validade da criação de modelos puros e imparciais, os quais bastariam uma boa aplicação para termos os re-sultados desejados. Boa parte da economia (po-deríamos também chamar de econometria) con-temporânea tem se esforçado na construção de tais arcabouços. Basta ligarmos em algum tele-jornal para termos boas amostras de economis-tas supostamente acima do conflito “esquerda--direita” recomendando mudanças em algumas taxas para que enfim o mercado “aqueça” e o Brasil recupere a “confiança dos investidores”. O velho Marx chamava esse tipo humano de “economista vulgar” para diferenciar dos “eco-nomistas clássicos”, que por serem porta-vozes de uma burguesia ainda revolucionária eram ca-pazes de descobertas e análises científicas da

realidade. Sujeitos como Paulo Guedes seriam pelo contrário representantes de uma burgue-sia apenas preocupada na manutenção mais escancarada de suas taxas de exploração, nem um pouco interessada nos anseios populares por melhorias reais em suas condições de vida. A crise na economia política clássica se desenvol-ve de forma desigual e diferenciada nas diver-sas nações em formação. Pois ao refletir o pró-prio desenvolvimento do capitalismo em cada local específico, a economia política reproduzi-ria teoricamente os anseios de cada burguesia no processo de consolidação de seu poder eco-nômico e político. Uma questão que sempre se colocou na análise marxista da realidade de um país como o Brasil é se a rigor poderíamos falar em Revolução Burguesa ou ainda em burguesia nacional como uma classe que se demarcaria em relação a outras burguesias do capitalismo mundial. Em outras palavras, em que sentido se-ria possível falar em modernização, progresso e conquistas democráticas no Brasil? Como ficaria a “crítica da economia política” em um país de

Por Rômulo Caires

Foto: Nino Guimarães/PCB Bahia

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capitalismo subordinado, ou seja, um capitalis-mo que não se desenvolveu por uma via clássica, em que a burguesia em seu processo ascensio-nal não se moveu junto as massas populares na realização das tarefas democráticas, mas pelo contrário se moveu contra as massas ou sim-plesmente indiferente às suas necessidades? Há uma longa tradição brasileira de pensar criti-camente a história de nosso país, apontando jus-tamente como aqui a formação nacional se deu “pelo alto”, como as mínimas demandas popula-res foram sempre ofuscadas e as lutas das clas-ses trabalhadoras foram muitas vezes esmaga-das pelas classes dominantes. Não haveria aqui “tarefas democráticas” a serem concluídas e se existiu alguma positividade no desenvolvimen-to capitalista brasileiro, certamente estamos hoje muito distantes dessa suposta positivida-de. Ao contrário, a nossa situação sempre fun-cionou como uma espécie de amostra de como o capitalismo mundial necessita justamente da barbárie na periferia para sustentar suas más-caras democráticas nos países centrais. Muito mais do que se comparar com nações-modelo as quais deveríamos alcançar a partir da impor-tação de cartilhas de desenvolvimento, uma am-pla gama de pensadores críticos e movimentos revolucionários ousaram apostar na dimensão criativa da classe proletária, na sua capacidade de tomar o futuro em suas mãos em direção ao processo de emancipação social. Este preâmbu-lo nos serve para situar brevemente alguns mar-cos de análise que possam dar inteligibilidade a um processo complexo e contraditório, que se não refletido na totalidade de suas determina-ções pode nos levar ao desespero ou, como tem sido muito comum, pode trazer um conjunto de falsas soluções ou soluções antigas e já experi-mentadas, que são apresentadas como se fos-sem grandes descobertas ou novidades. Dentre essas falsas soluções está a que estamos cha-mando de “via eleitoral para derrotar o bolso-narismo”, estratégia adotada por amplos seto-res da esquerda hegemônica como resposta à ascensão da extrema-direita ao governo e os di-versos efeitos da chamada catástrofe brasileira. Muito mais do que um evento aleatório e trá-gico na história brasileira, a ascensão do bolso-narismo reatualiza determinações já postas em nossa formação social, como o genocídio da po-pulação pobre e periférica, a violência estatal

explícita contra os de baixo, a superexploração da força de trabalho, o racismo e a opressão contra as mulheres, a destruição ambiental, a tutela das forças militares etc. Porém, além de demonstrar a continuidade da barbárie na reali-dade brasileira, nação que surgiu a partir de lon-go e violento processo de colonização, faz-se fundamental situar o que há de novo em todo esse desenvolvimento. O processo histórico, como diria o filósofo húngaro Gyorgy Lukács, tem como traço constitutivo a irreversibilidade do tempo, ou seja, não é possível girar a roda da história para trás em busca de um retorno aos momentos “idílicos”. Já seria bastante questio-nável considerar que houve momentos idílicos na história brasileira, porém é ainda mais notó-rio o fato de que os momentos de florescimen-to democrático e participação ativa das massas populares no destino brasileiro são muito mais exceção do que regra. Os quase 30 anos que durou a “Nova República” no Brasil, tal qual os chamados “Trinta Anos Gloriosos” do pós-guer-ra europeu, devem ser creditados às diversas contingências que possibilitaram um desen-volvimento capitalista com alguma capacidade de inclusão do povo trabalhador. Se a glória da Europa era garantida a partir do sangue da ex-ploração das colônias e nações subordinadas, o processo de redemocratização brasileiro, es-pecialmente o período em que o Partido dos Trabalhadores chegou ao governo, foi favore-cida por situações transitórias que permitiram o aumento da taxa de lucro da burguesia e ao mesmo tempo algum nível de transferência de renda para a população menos favorecida. Muitos analistas apontam que o período de redemocratização foi marcado por um “refor-mismo fraco” e no plano político garantiu uma transição que não se preocupou em enfrentar as chagas do período da ditadura militar brasi-leira. A aposta em um “capitalismo democráti-co” ou de face humana não enfrentou sequer os crimes bárbaros cometidos no período ante-rior e muito do arcabouçou jurídico-político do período ditadorial foi mantido, sem ao menos a punição dos principais responsáveis por um dos períodos mais trágicos de nossa história. A questão militar foi posta em escanteio pela es-querda e se hoje vemos o governo com a maior presença de militares na história do país, não se pode esquecer do quanto as chamadas “forças

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democráticas” se submeteram a alianças espú-rias com esses setores, sem de nenhuma forma incidir sobre a formação ideológica dos militares (marcada pelo anticomunismo e pelo entreguis-mo nacional), ao contrário favorecendo acúmulo de ganhos salariais e demais benefícios e não se preocupando que as Forças Armadas continuas-sem a sua saga de combate ao “inimigo interno”.No plano econômico, o período de redemocrati-zação inicia em um momento de grandes trans-formações no capitalismo em nível mundial. O fim da URSS e do chamado bloco socialista deu margem para um avanço brutal da exploração capitalista, com reordenamento dos pactos in-ternacionais e incentivo cada vez maior aos go-vernos, especialmente dos países periféricos, em seguir as cartilhas propagadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. No Brasil já não fazia mais qualquer sentido em falar em “incompletude” no capitalismo, já leva-do a termo pelas forças militares no período di-tadorial. Mesmo tendo completado a formação do mais importante parque industrial da Améri-ca Latina, não houve por aqui a tentativa de en-frentar radicalmente a dominação burguesa e a subordinação ao imperialismo e continuamos a reproduzir os mecanismos de dependência. Se o boom das comodities permitiu que no período lulista tivéssemos algum nível de redistribuição de renda, não se avançou nas tarefas de garantir a soberania nacional, desenvolvimento tecnoló-gico e incremento da produtividade do trabalho, deixando o país refém das flutuações dos preços dos produtos primários no mercado mundial. O bolsonarismo, que tem sua gênese a partir da impossibilidade de manutenção do antigo pac-to conciliatório, veio para radicalizar o proces-so de subordinação brasileira ao imperialismo, com ataques massivos à soberania nacional e aos direitos do povo trabalhador. Não pode ser simplesmente analisado a partir da aplicação de modelos a priori, especialmente retirados de realidades alheias a particularidade brasilei-ra. Apontar simplesmente que se trata de uma “regressão fascista” ou “regressão antidemo-crática” serve na maioria das vezes para ocultar a grande violência da dominação burguesa no Brasil e seus traços de longa duração, como tam-bém mascarar a continuidade de políticas eco-nômicas que não tocaram no cerne dos proble-mas mais candentes da realidade brasileira. Os

pactos policlassistas e as tentativas de concilia-ção com a barbárie são marcas indeléveis do ca-pitalismo brasileiro. O bolsonarismo não se re-sume assim a figura de Bolsonaro e muito mais do que uma regressão demonstra a progressão da incapacidade do capitalismo, especialmente na periferia, de resolver as suas próprias con-tradições. A esquerda hegemônica, representa-da principalmente pelo Partido dos Trabalhado-res, pouco se interessou em tensionar os pactos sociais do capitalismo periférico e muito menos apontar os horizontes reais de sua superação.Nesse sentido, em um momento de retomada das manifestações populares e da ocupação das ruas pelas massas indignadas com a atual situação do país, devemos desmascarar as fal-sas promessas de saída da crise brasileira. Es-perar uma progressiva diminuição do apoio po-pular de Bolsonaro e apostar todas as fichas no processo eleitoral de 2022 é no mínimo ignorar que até lá milhares de vidas serão perdidas para a pandemia de covid-19, que a tradição golpista da história brasileira não irá desaparecer, que o capitalismo brasileiro não tem qualquer espaço para humanização e desenvolvimento progres-sista e que as novas condições do pacto conci-liatório não serão as mesmas que a de décadas atrás. Sem ignorar a necessidade da participa-ção nos processos eleitorais, uma esquerda re-almente combativa não deve se furtar em criti-car radicalmente a situação dada, denunciando as forças que continuam se iludindo com a exis-tência de setores progressistas na burguesia brasileira e apontando as continuidades do bol-sonarismo com a tradição de dominação bur-guesa em nosso país. Não é possível imaginar que a vitória eleitoral de uma esquerda que de-monstra diariamente sua vontade em continuar conciliando com os setores mais regressivos da burguesia será capaz de deter as forças de ex-trema-direita que invadiram o governo federal e o Planalto. É preciso lembrar que o fascismo histórico foi derrotado em uma guerra heroica, que custou a vida de milhões de trabalhadores. Gritar que vivemos um genocídio, que vivemos a ameaça do fascismo e continuar apostando nas mesmas receitas gastas, na mesma conci-liação e na mesma aposta no jogo eleitoral so-mente turvará o que consideramos a única saída possível para a catástrofe brasileira: a cons-trução do Poder Popular rumo ao socialismo.

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O mais forte, o mais ágil, e o mais veloz! Esses princípios nortearam a intencionalidade de to-das as atividades que emergiram no legado olímpico. Como costumavam dizer Marx e En-gels, o capitalismo se origina das relações entre mercadorias. O esporte não foge a isso.O esporte é um processo de transição, ele é uma linguagem desse tempo para as atividades corporais dentro da estrutura social capitalista. Nesse sentido, a compreensão da cultura que constrói o esporte é fundamental para enten-dê-lo e superá-lo.O senso comum entende que toda atividade corporal é esporte. O esporte possui caracte-rísticas próprias, tais como: a universalização da prática, às regras comuns, a busca do rendimen-to absoluto (rendimento máximo), busca de igualdade de condições para mensurar e definir os ‘melhores’. Os esportes em geral têm origem em atividades que se organizaram para atender outros campos de necessidades, oriundos de movimentos de lutas, ginástica, ou de jogos e brincadeiras.O esporte, segundo a literatura especializada, surge em um período em que a concentração de pessoas em cidades era crescente e partia de demandas da nova forma de vida (sobrevi-da), que passa a organizar as relações humanas. Por conta de uma série de enfermidades, sur-ge demandas que constituem a ciência: sob a égide do higienismo, organizam a vida em pe-

quenos espaços, que garantiria a manutenção da produção e colocaria o conhecimento articu-lado aos interesses organizativos da classe he-gemônica. Para tanto, seria necessário estrutu-ras que amparassem as relações de produção e circulação de mercadorias: estradas, hospitais, estruturas de esgoto e tratamento de água, regulação arquitetônica, a escola, entre tantas outras. Destacaremos a escola, pelo fato de ser um espaço onde o esporte se origina, sendo a educação física o ambiente privilegiado para se discutir elementos necessários, e muitas vezes obliterados, da ideia de saúde e do sentido de classe que esse conceito possui.O higienismo enquanto movimento ideológico constituiu espaço de produção de conhecimen-to que remanejou locações, e construiu novos hábitos culturais. Higiene corporal e alimen-tar foram introduzidos na vida do trabalhador comum. Estávamos vivendo uma transição do modelo agrário feudal para o modelo urbano industrial. A escola como espaço que desenvol-veria novas técnicas elaboradas pelos trabalha-dores, visando a ampliação da produção e ou-tras necessidades da mercadoria, mas, acima de tudo, compreendendo que o corpo do trabalha-dor precisava funcionar adequada, cotidiana e servilmente. A escola constitui elementos fun-dantes para a construção de uma humanidade adequada a esses novos tempos. Articulada a outros setores, que compunham o arcabouço

ANÁLISE CRÍTICA DAS OLIMPÍADAS

Foto: Divulgação: COB

Por Benedito Libório

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ideológico, serviam de esteio para a regulação inerente ao conflito de classes, proveniente de relações desiguais de produção e divisão da ri-queza. A ciência burguesa é uma delas, pois é nela que se estrutura uma ideia de saúde que compreende apenas os elementos biológicos para definir o que é saudável. Mais uma vez, re-corremos a Engels e Marx: na sua crítica a Feuer-bach, explicitam que o ser biológico precisa se humanizar. Nesse sentido, saúde para nossa du-pla seria a capacidade plena de realizações das potencialidades individuais do ser social!A escola prepara as pessoas para se inserirem nas engrenagens produtivas da sociedade regi-da pela mercadoria. Como diria o velho Marx, a capacidade de transformar qualquer coisa em mercadoria passa a organizar a relação produ-tiva. Através dos estudos de Marx e Engels, en-tendemos que o próprio corpo do trabalhador é uma mercadoria e é necessário mantê-lo fun-cionando.Nos textos da juventude, em especial, em seus manuscritos econômicos-filosóficos, Marx já apresentava um conhecimento que desdobrava a estrutura da alienação como fundamental à lógica capitalista. Ele foi mais longe discutindo que a raiz de toda a desigualdade se origina da propriedade privada dos meios de produção, sendo eles originados das necessidades “...do estômago, ou da fantasia”. O trabalhador na relação com esporte organiza sua relação como produtor e consumidor do espetáculo esporte.As aulas de educação física tinham se organiza-do pelo conhecimento ginástico, sua herança helênica, adequada aos tempos modernos. Foi na Inglaterra que, em lugar exercitação do cor-po, as public schools traduzem os elementos dos jogos, sob regras rígidas, visando a organi-zação e universalização dessa manifestação sob uma entidade própria, que traria simultanea-mente o exercício necessário ao funcionamento da estrutura biológica adequada, mas também valores caros a subjetividade capitalista: a com-petição, a mensuração, a orientação para exe-cução do ato e elaboração para fins de interes-se de classe. Embora marcado por essa gênese, o esporte carrega contradições que se apresen-tam nas suas relações históricas, apontando os espaços em disputa histórico do esporte como espetáculo, passando a ser melhor recebido.Nosso objetivo não é compreender o esporte

como aspecto negativo (apenas como negação no sentido dialético), mas compreendê-lo para além da aparência. O esporte carrega em si a contradição entre a cooperação e a competição e, como toda unidade dos contrários, essa rela-ção depende da correlação de forças entre elas, evidenciando valores extremamente contem-plados nessa forma social: a individualidade, a comparação, a submissão servil e a total falta de empatia.Quando um nobre, conhecido por Barão de Co-bertin, resgata os jogos helênicos da antiguida-de, ele deixa claro o que desejava enquanto ob-jetivo das ações dos atletas: o mais forte, o mais ágil e o mais rápido entrariam em conflito com o discurso de congraçamento, que caracteriza-riam a ideia que o senso-comum abraça. O que o Barão acharia das atuais olimpíadas mo-dernas? Nesses espetáculo, os atletas são leva-dos a condições extremas de exaustão, muitas vezes mutilações irreversíveis de várias ordens, assim como conflitos que colocam países em defesa das propagandas de seus progressos, ou em defesas pseudocientíficas, defendendo o desempenho com critérios raciais. Por outro lado, acabam escondendo a mazela da desigual distribuição de recursos, da naturalização da re-lação de êxito em detrimento ao investimento pessoal. Dessa forma, se desconhece uma série de sujeitos que compõem a equipe e auxiliaram o atleta ao sucesso. Ora, pela própria natureza do esporte, quantos ficaram para trás? A mídia é responsável pela propaganda dos ra-ros casos de sucesso, negando toda a estrutura excludente, mutiladora e alienante que abriga essa atividade. Para tanto, faremos o exercício que o velho Lenin apresenta sobre a sua com-preensão da escola burguesa: devemos criti-cá-la e transformá-la, compreendendo os seus limites e ressignificando a partir dos interesses históricos dos trabalhadores. O esporte deve ser ressignificado. Na sua pulsão, deve organi-zar os proletários, desvelar o seu caráter polí-tico, sempre presente em seu exercício, repul-sando os valores ligados a classe hegemônica e orientando as massas a sentirem a opressão, ao qual estão sujeitos. O esporte apresenta a condição mais avançada de mercantilização de corpos: os atletas alienam-se de si, tanto objeti-va quanto subjetivamente.

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O MOMENTO - O sistema da ordem do capital passa por uma profunda crise que tem contri-buído para erodir os pilares de regulação do capitalismo. Como podemos situar a questão da mulher nesse cenário de avanço da barbá-rie societal?

HELENA HIRATA - Houve avanços e retrocessos na situação da mulher nas sociedades contem-porâneas. No plano legislativo, com leis sobre igualdade profissional e igualdade de direitos houve algum avanço, embora em muitos países como o Japão a legislação não seja respeitada nem cumprida. Também a questão da violência contra as mulheres, e a questão do assédio se-xual começou a ser amplamente mediatizada com o #meetoo e em alguns países, como a Es-panha, houve importantes manifestações e gre-ves de mulheres contra o avanço da barbárie so-cietal e das políticas de desregulamentação dos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores. Entretanto, a crise também atingiu desfavora-velmente as mulheres, crise que se aprofun-dou com a pandemia do Covid 19. As mulheres

estando fundamentalmente na área de servi-ços foram duramente atingidas, o número de empregos no serviço doméstico por exemplo diminuiu drasticamente em países como o Bra-sil. Sendo também majoritárias entre as traba-lhadoras na área da saúde, elas também foram contaminadas e adoeceram, e faleceram, em virtude de sua atuação profissional. Também é necessário constatar que a globalização signifi-cou aumento do emprego feminino, mas esse emprego é precário e vulnerável. Aumentou o número de trabalhadoras em tempo parcial nos países do Norte e o número de trabalhadoras informais nos países do Sul.

O MOMENTO - Nessa condensação da crise capitalista alterou-se profundamente a sub-jetividade da classe trabalhadora, ampliando a competição. Como as mulheres têm enfren-tado essa realidade diante das  novas rela-ções do trabalho cada vez mais flexibilizadas e precárias?

HELENA HIRATA - As mulheres são as que mais

ENTREVISTA DO MOMENTO: HELENA HIRATA

Foto: Maria Leonor de Calasans/ IEA USP

Por Milton Pinheiro

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tem sofrido as consequências da precariedade do trabalho e do emprego e da flexibilização das relações de trabalho e da organização do trabalho nos dias de hoje. Segundo dados da OIT publicados em 2018, as mulheres no tra-balho informal enquanto percentagem do em-prego total eram, na Asia do Sul, 95%, na Áfri-ca subsaariana 89% e na América Central e no Caribe, 59%. No Brasil, após o crescimento do emprego formal entre 2002 e 2014, assiste-se ao aumento crescente do trabalho informal, sobretudo das mulheres, juntamente com o de-semprego que esta se desenvolvendo no con-texto especifico da pandemia que enfrentamos atualmente (julho de 2021). Ora, sabemos que a informalidade piora as condições de trabalho das mulheres pois elas realizam atividades sem proteção social (previdência social, aposenta-doria, seguro desemprego, férias, etc.). Entre-tanto mesmo o trabalho formal não é uma ga-rantia contra baixos salários e más condições de trabalho, no quadro das reformas trabalhistas em curso. Elas têm sido vítimas da privatização dos servi-ços públicos relacionados ao cuidado das crian-ças, dos idosos, dos deficientes físicos e men-tais, dos doentes. Como diz Nancy Fraser, a crise do cuidado está relacionado com o desmante-lamento dos serviços sociais e dos serviços pú-blicos do cuidado, e a uma transformação da socialização em uma privatização do cuidado: “o desengajamento do Estado e das empresas de proteção social é amplamente encorajado” (Fraser, Crise do cuidado? Paradoxos sócio re-produtivos do capitalismo contemporâneo, in T. Bhattacharya, 2017, trad. franc. 2020) no regi-me atual do capitalismo financeiro globalizado.Assim, a crise do cuidado nos países do Norte e do Sul, provocada pelo envelhecimento da po-pulação e pela entrada das mulheres no merca-do de trabalho, se aprofunda com o desenga-jamento do Estado nas tarefas de reprodução social. A flexibilização dos postos de trabalho no terci-ário (serviços, comércio) onde está concentrada 88% da força de trabalho feminina na França, 85% no Brasil et 83% no Japão, impõe às mu-lheres condições de trabalho difíceis para “con-ciliar” trabalho assalariado e trabalho domésti-co e de cuidados.

O MOMENTO - Qual a importância da questão de gênero na dinâmica da ordem capitalista atual?

HELENA HIRATA - O gênero é central na dinâ-mica da ordem capitalista atual, pois essa or-dem é assentada nas relações sociais de sexo/gênero, que torna possível a reprodução do tra-balho produtivo através da superexploração do trabalho doméstico e de cuidado não remune-rado das mulheres. A ordem capitalista atual é assentada na exploração, opressão, dominação e apropriação dos homens sobre as mulheres, que se traduz numa divisão sexual do trabalho que confere os postos de prestigio hierárquico e poder aos homens. A ordem capitalista atual não seria possível sem a educação às crianças dada pelas mulheres no seio da família ou nas creches e escolas. Todos os equipamentos so-ciais, de educação, de saúde, de proteção social não poderiam funcionar sem a inserção ativa das mulheres nessas modalidades de trabalho. Como diz Nancy Fraser: « A produção econômica capitalista não é autônoma, ela depende da re-produção social » (Fraser, id.ibid.) A produção do viver está inscrita nas relações de gênero, enquanto atribuição das mulheres, garantindo a dinâmica das relações capitalistas de produção e consumo. Para alterar as rela-ções de gênero em vigor as lutas interseccio-nais mostram o caminho, considerando que as relações de gênero estão imbricadas com rela-ções de raça e de classe enquanto relações de poder.

O MOMENTO - Como você examina as no-vas teorias sobre o trabalho doméstico não remunerado no âmbito da criação de valor e qual é a relevância desse debate?

HELENA HIRATA - As novas teorias da repro-dução social são importantes pois trazem de novo à tona a relevância do trabalho doméstico não remunerado para a criação do valor. Essa controvérsia em torno de trabalho produtivo/improdutivo, valor de uso/valor de troca-valor, tinha alimentado o debate entre as feministas nos anos 1970 (“domestic labour debate”). O trabalho doméstico produz valor ou valor de uso? Tal era a questão no centro desse debate. As teorias de Federici e Mezzadri, de um lado,

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e de Tithi Bhattacharya, Nancy Fraser, e outras sobre capitalismo e reprodução social (cf. Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recente-ring Oppression, 2017) mostram que a produção só é possível com a realização das tarefas de re-produção social que na sociedade incumbe às mulheres, isto é, que o trabalho produtivo não pode existir sem trabalho reprodutivo.Eu considero que o trabalho do cuidado é ao mesmo tempo trabalho produtivo e reprodu-tivo: enquanto produção e reprodução da vida, ele pode ser considerado como um trabalho produtivo, ao mesmo tempo em que partici-pa da reprodução social. Assim penso que é possível elaborar uma proposição alternativa, transversal e materialista levando em conta os desenvolvimentos recentes das teorias da reprodução social, ao mesmo tempo que em recuso a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo sobre a qual elas se fundam.

O MOMENTO - O individualismo como proje-to capitalista está modificando o sentido do feminismo classista? 

HELENA HIRATA - Dentre as correntes femi-nistas, o projeto individualista está certamente presente, por exemplo no feminismo liberal, mas o feminismo « luta de classes » como se de-nomina na França o « feminismo classista » da centralidade absoluta ao coletivo e nega toda pretensão individualista à luta feminista. “Ar-ticular a luta feminista à luta de classes” (Suzy Rojtman, in Le genre du travail. Recherches fémi-nistes et luttes de femmes, (coord) N. Lapeyre et al, 2021) é o objetivo dessa corrente. O feminis-mo “luta de classes” se coloca como parte dos grupos subalternos em termos de classe social, de raça e de gênero, e promove ações coleti-vas para superar o projeto capitalista domina-do pelo individualismo. O feminismo “luta de classes” tem no coletivo sua razão de ser e sua bandeira de luta, e trata-se de um coletivo reso-lutamente internacionalista, adotando reivin-dicações pelo aborto livre e contra a violência feita às mulheres. Ele se une a outros coletivos, como por exemplo as organizações sindicais, conservando ao mesmo tempo sua indepen-dência face aos sindicalistas, às organizações políticas, aos homens. Atualmente a corrente “luta de classes” na França apoia o movimento

de greve das mulheres da Espanha para apoiar suas reivindicações para uma plena igualdade salarial e de condições de trabalho.

O MOMENTO - As lutas feministas do tempo presente estão se descolando da centralida-de do projeto da  classe trabalhadora  para uma visão fragmentada e pós-moderna?

HELENA HIRATA - Aqui também temos que falar de feminismos no plural. Penso que há correntes queer que se colocam em uma pers-pectiva fragmentada e pós-moderna, mas há também correntes queer que se reivindicam do marxismo e que consideram a luta da clas-se trabalhadora contra o capitalismo como uma luta a ser promovida e apoiada pelos militan-tes queer. E o caso de Rosemary Henessy, Ke-vin Floyd e Alan Sears, nos Estados Unidos (cf. Critica Marxista, n° 49, 2019) e de Sophie Noyé na França (cf. Critica Marxista, n°48, 2019). Ela mostra que é possível se nutrir de Foucault e de Butler, de um lado, e do feminismo materialista de Delphy, de outro. Para essas correntes que-er, há uma perspectiva de transformação social; e há uma crítica às políticas neoliberais que pre-carizam as mulheres, as pessoas queer e as não brancas. Particularmente interessante a ques-tão da mercantilização e privatização das sub-jetividades sexuais e de gênero no neoliberalis-mo tais como é analisada pela corrente queer materialista. Também Cervulle e Quemener em « Queer » (in Encyclopédie critique du genre, Paris, La Découverte, 2016), indicam a necessi-dade de articular teoria queer e teoria social e afirmam que « a crítica do capitalismo desem-penha também um papel importante na teoria queer » (p.532). Também deve-se mencionar a importância dada pelo grupo “Queer for eco-nomic justice” ao aumento das desigualdades sociais em detrimento de uma politica centrada nos direitos formais.

O MOMENTO - Como situar o papel da mulher na luta política nesse começo do século XXI?

HELENA HIRATA - Continuo achando que a divi-são do trabalho doméstico entre homens e mu-lheres continua sendo um ponto essencial para o avanço da luta política. Não há possibilidade de uma igualdade na luta política sem igualda-

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de na esfera doméstica e de cuidados. E uma luta política sem igualdade entre os seus pro-motores e seus participantes logo deixa lugar a desvios de toda ordem, sobretudo na conduta das lutas e na elaboração das reivindicações. Para promover uma sociedade onde o cuidado com o outro tenha um lugar central, o papel da mulher que proporciona cuidados não remune-rados em casa e remunerados nas instituições de longa permanência de idosos e nos domicí-lios, nas creches e nas escolinhas, é central. Acredito como Danièle Kergoat, na centrali-dade política do trabalho das mulheres e na emergência de uma “nova figura salarial femini-na” que possa influir na luta política no início do século XXI, pelo papel fundamental que desem-penham na sociedade, sobretudo no trabalho de cuidados. Partilho com Pierre Rimbert (« La puissance insoupçonnée des travailleuses  », Le

Monde diplomatique, janvier 2019) a utopia de um “socialismo dos serviços dominantemente feminino controlado pelos próprios trabalha-dores” onde se organizariam conjuntamente trabalhadoras domésticas, cuidadoras domici-liares, auxiliares de enfermagem, puericultoras, enfermeiras, professoras, trabalhadoras de es-critório, em torno da reivindicação: “exigimos os meios de realizar corretamente nosso traba-lho”.

Helena Hirata é socióloga e pesquisadora do Centre de Recherches Sociologiques et Poli-tiques de Paris, do Centre National de la Re-cherche Scientifique (Cresppa-GTM/CNRS), e do Réseau de Recherche International et Plu-ridisciplinaire “Marché du Travail et Genre” (Mage).

Era uma vez… O estado da Bahia vacinou apenas metade da sua população com a primeira dose. Cerca de 7 milhões de baianos ainda não foram vacinados, e nesse grupo, em sua maioria, estão os jovens em idade escolar. Apesar deste dado, grandes veículos da comunicação burguesa têm levantado uma sé-

rie de questões que visam manipular a população e colocar os trabalhadores da educação como vilões, irresponsáveis com o futuro desses milhares de jo-vens. Mas a resposta para tais ilações não pode ser dada de modo passional; ela precisa de uma investi-gação apurada, que chegue na raiz do problema. Se analisarmos a estrutura das escolas nos

VOLTA ÀS AULAS:UM CONTO DE FARSAS

Célula de Educação Popular Iracy Picanço - PCB Bahia

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

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quatros cantos da Bahia, veremos grandes discre-pâncias entre as instituições da capital e do interior. Grande parte das escolas baianas não tem ventila-ção adequada, e ainda conta com superlotação de jovens por sala. Não é preciso fazer muito malaba-rismo para saber que as condições de trabalho para professores e as condições sanitárias para os estu-dantes, bem como para a comunidade escolar em geral, já eram insalubres e antipedagógicas antes da uma pandemia. Se a preocupação é mesmo a apren-dizagem e a vida dos estudantes, não deveríamos já ter cuidado disso? A resposta é que a escola pública não atendia a população desde antes. Aqui, temos o primeiro ato do nosso conto de farsas: uma pre-ocupação com os estudantes que apareceu agora, como num passe de mágica. O segundo ato desse conto macabro apare-ce quando o discurso máximo do Governo do Esta-do (PT) é de que os prejuízos pedagógicos seriam irreversíveis, e por isso os jovens deveriam logo vol-tar, pois estariam sofrendo danos. Não temos dúvi-da dos prejuízos que nossos jovens estão sofrendo, mas dizer que eles são irreversíveis é desconhecer o processo pedagógico. Não há situação irreversível, e as experiências educacionais brasileiras já vêm mos-trando isso há décadas. Assumir essa irreversibilida-de servirá, apenas, como desculpa para culpabilizar os filhos da classe trabalhadora no futuro próximo, em um país que oferece cada vez menos oportuni-dades para nossas crianças e jovens. O segundo ato, assim como o primeiro, parece preocupação, mas na verdade é lobo vestido de cordeiro. É a difusão da ideologia neoliberal maquiada de preocupação. O terceiro ato deste conto de farsas tenta encontrar respaldo na ciência: dizem aos quatro ventos que crianças não morrem de COVID-19, que tudo já está funcionando e que não se entende mais quais as razões de a escola não voltar a funcionar. De novo, trata-se de uma maçã muito vermelha e bonita, mas envenenada. A COVID-19 já é a doença  “natural” que mais mata pessoas entre 10 e 19 anos. Além disso, a volta da atividade escolar demanda maior circulação de pessoas e maior chance de con-tágio. A própria natureza da atividade educativa a impede de ser comparada com qualquer outro ser-viço. Quem já foi em uma escola real e concreta, sabe que todo o processo se dá com toque, emprés-timo de material, atividades em conjunto. A escola pulsa vida e não pode ser um lugar de medo, pois medo jamais combinou com a aprendizagem. O Go-

verno do Estado da Bahia  sabe que esse terceiro ato não vai terminar bem, mas preocupação com professores e com nossos jovens nunca foi mesmo o forte do Governador (não custa lembrar a chacina do Cabula, em que o Rui Costa comparou a sangui-nária ação da Polícia Militar a artilheiros diante do gol).  É óbvio que a comunidade escolar sempre resistiu ao conto de farsas, mesmo sofrendo for-tes ameaças de cortes de benefícios, como a bolsa--permanência, caso não retornassem ao presencial ainda na pandemia. Os professores se recusaram a voltar e a comunidade também segue com medo de enviar seus filhos para escola. Tentando mostrar sua empáfia de vilão de histórias de terror, Rui Cos-ta ameaçou ainda cortar os salários dos professores, mas o Sindicato da categoria (APLB) resistiu, defen-dendo que os profissionais só voltariam quando completamente imunizados. Para nós, ainda é pouco. As aulas só devem voltar quando toda a população estiver completa-mente imunizada, e para isso, precisamos acelerar o processo de vacinação e não de retorno às aulas presenciais. Apenas professores com segunda dose é insuficiente para que a escola volte a funcionar - ainda que cheia de problemas, mas viva e pulsante, como ela deve ser. Em meio a tantas farsas e contos da carochi-nha ditos por Rui Costa, vemos com preocupação uma série de colégios estaduais apresentarem ca-sos de contaminação pelo coronavírus após a rea-bertura, resultado do decreto do dia 26 de julho de 2021. Elas acabam tendo que fechar novamente e retornar para a modalidade remota, algo que po-deria ter sido evitado se toda a comunidade fosse imunizada antes do retorno. Embora a vacinação tenha avançado a passos curtos em nosso estado, a pandemia ainda não acabou, e as variantes podem colocar todos em risco.  Uma mãe disse, numa reunião pedagógica em que se falava sobre o retorno presencial das ati-vidades escolares: “Se a minha filha morrer dessa doença, quem vai me dar outra igual?”. A moral da história vai na contramão dessa farsa: estudantes e trabalhadores unidos em defesa da vida, pela imunização completa da população e por uma escola que inspire e respire vida e luta.

Vacina para todos já! Pelo Poder Popular e Socialismo!

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26 de Julho é o Dia Nacional da Rebeldia Cubana. Nesta data, em 1953, há 68 anos, os jovens revolu-cionários liderados por Fidel Castro, Abel Santama-ría e Raúl Castro organizavam combatentes para assaltar o quartel-general Moncada, em Santiago de Cuba, e o quartel Carlos Céspedes. Ainda que o assalto tenha fracassado, a ação de vanguarda de-sencadeou uma série de acontecimentos que acele-raram a queda da ditadura de Fulgêncio Batista.Para compreendermos a Revolução Cubana, é ne-cessário remontar o histórico de um século de lutas que já temperava, no seio do seu povo, a unidade insurgente. O colonialismo Espanhol sempre en-frentou a rebelião dos povos negros escravizados, camponeses, trabalhadores urbanos, intelectuais nacionalistas e independentistas de Cuba. Parti-cularmente na segunda metade do século XIX, o caldo de revoltas resultou no avanço das forças in-dependentistas. Carlos Manuel Céspedes (que iro-nicamente dá o nome ao quartel anos depois alvo da ação dos revolucionários cubanos) e Antonio Ma-ceo edificaram o Exército Libertador e conduziram

a Guerra dos Dez Anos contra as forças espanholas (1868-1878), derrotada pelo império, como primei-ro ciclo da libertação anticolonial.Apesar da derrota, a destreza de Maceo o consolida como uma grande liderança militar, que conduziu as tropas do Exército Libertador contra a poderosa força bélica e numericamente superior das tropas espanholas, se apoiando na população camponesa, libertando escravos, rompendo os cercos das tropas espanholas com a guerra de guerrilhas e cansando as tropas oficiais. O reagrupamento dos indepen-dentistas veio junto à grande liderança de José Martí, líder patriótico que presidia o Partido Revo-lucionário Cubano. Ao lado de Maceo, Martí liderou a Guerra de Independência - ou Guerra Necessária - em 1895, retomando a ofensiva contra o coloniza-dor. Ambos caíram em combate emboscados pelo exército espanhol até 1896 e a independência de Cuba frente ao colonialismo Espanhol não se con-cretizou pela via da insurreição.Se por um lado, a Espanha enquanto império colo-nial já caduco é expulsa definitivamente de Cuba

O ASSALTO AO QUARTEL MONCADA 68 ANOS DE REBELDIA EM CUBA

Por João Pedro Aguiar

Foto: Ricardo Patiño - 60º aniversário do assalto ao quartel Moncada

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dois anos depois, os Estados Unidos, que apoiavam a independência da Ilha ante ao império espanhol, aumentavam sua presença política e militar na Amé-rica Latina. A derrota das forças independentistas e patrióticas abriram o caminho a um processo de se-paração enquanto colônia espanhola para a tutela dos Estados Unidos, celebrado no acordo de Paris em 1898. Daí em diante, a política imperial dos Es-tados Unidos, aliados às oligarquias cubanas, selam um acordo que governará Cuba de forma alheia aos interesses das grandes massas do país, e iniciam, as-sim, um ciclo histórico de governos títeres, ligados aos interesses ianques que só terá fim, definitiva-mente, na Revolução Cubana em 1959.Fulgêncio Batista, que governava Cuba a partir de um golpe militar emplacado em 1952, é o represen-tante dessa burguesia oligárquica com laços colo-niais com os Estados Unidos. Seu regime detinha um poderoso aparato de repressão, com centros de tor-tura e detenções em massa. Pôs na clandestinidade todas as organizações sindicais, estudantis, campo-nesas, partidos políticos populares e da classe traba-lhadora, e acabou com a liberdade de imprensa. Em uma população de aproximadamente 6 milhões à época, não havia trabalho para 600 mil cubanos; 500 mil camponeses trabalhavam arduamente 4 meses por ano e passavam fome nos 8 meses restantes; mais da metade das terras produtivas estavam nas mãos estrangeiras (principalmente norte-america-nas) e destinadas à exportação; cerca de 400 mil tra-balhadores industriais e braçais recebiam pensões que não contemplavam a moradia e não tinham di-reito ao descanso. Na letra do músico Carlos Puebla, Cuba era um “gari-to” (cassino), e sua elite vivia em casas e apartamen-tos encarando o povo a sofrer. A “festa das elites” só acabou quando o Comandante, cercando Havana e liquidando o exército de Batista, “mandou a parar”. Em quase um século de lutas por independência e contra a presença imperial, a organização combativa do povo cubano e as condições de absoluta miséria e humilhação das amplas massas, além da desmora-lização do regime pelo seu caráter abertamente re-pressivo, autocrático, corrupto, antinacional e títere dos Estados Unidos, encorajaram a jovem vanguar-da do 26 de Julho. Havia o entendimento de que, até então, faltava uma organização de vanguarda, com capilaridade de massas nos setores mais ex-plorados e oprimidos da realidade cubana, com ini-ciativa de levar o combate à ditadura até as últimas consequências e com um programa de transforma-

ções socioeconômicas e políticas que sintetizasse os interesses gerais das amplas massas que se contra-punham ao regime. Era preciso um fio condutor que extraísse o grande acúmulo de lutas para a tomada do Poder Político. O assalto ao quartel não foi uma mera expressão voluntarista de setores radicaliza-dos, mas, ante a dormência dos principais partidos populares de oposição, significava um passo à fren-te para desenvolver a resistência a Batista.Nos preparativos do assalto, foi alugada uma casa meses antes, próxima ao quartel, fantasiada de granja para não despertar as atenções do regime. A informação era preciosa demais para circular, e a repressão poderia frustrar toda a ação, comprome-tendo seu êxito. Apenas um pequeno comitê com-posto por Santamaría, Raúl e Fidel, além de outros membros do movimento que recebiam orientações para analisar a situação dos quartéis, sabiam de fato ou parcialmente sobre o caráter da ação. Os mais de 130 assaltantes recrutados vieram dos extratos mais violados do povo, por orientação do Fidel. En-tre os mais humildes, pobres, camponeses e jovens com vigor de mudança, foram feitos os recrutamen-tos para participar da ação revolucionária.

Por que Moncada e Céspedes?Primeiramente, os revolucionários abriam duas pos-sibilidades com o assalto: ao concretizá-lo, iniciar uma chamada geral, ao povo de Cuba, a um levan-te nacional pela derrubada de Batista, convocando uma greve nacional e a adesão das massas até a sua derrubada. Caso o governo reagisse com força supe-rior para a retomada do quartel - o segundo maior de Cuba -, ou caso o levante nacional não avançasse, os assaltantes se recomporiam nas montanhas e dirigi-ram uma guerra irregular contra a ditadura. Como Maceo, que movia-se contra um inimigo maior e com mais recursos, as montanhas de Cuba e a den-sa e explorada população camponesa propiciavam o desenvolvimento dos recursos sociais necessários para a luta armada insurgente desenvolver-se.Em segundo, a localização em Santiago de Cuba, há alguns quilômetros de La Havana, era um fator im-portante que retardaria uma possível contraofensi-va para retomar o quartel.A queda de Moncada foi um duro golpe nas forças revolucionárias. A maioria dos insurgentes foram executados já rendidos, incluindo Santamaría. Fidel foi capturado e posteriormente Raúl também. O julgamento de Fidel o sentenciou a 15 anos de pri-são. No cárcere, produziu uma defesa histórica nos

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tribunais da ditadura, titulado como ‘A História me Absolverá’, que potencializou sua liderança política e influência na geração de revolucionários anterio-res à vitória em 59. Libertado dois anos depois em exílio ao México, reagrupou a vanguarda de comba-tentes como Raúl e Almeida, este que também ha-via participado do assalto, e incorporou lideranças como Vilma, Che e Camilo. Agora mais experimen-tados e maduros, regressaram à Cuba somente no iate Granma, para iniciar a luta armada guerrilheira em Sierra Maestra. O Movimento 26 de Julho, que dirigiu a guerrilha, orgulhava-se do levante em Mo-cada, estampando a data do assalto em seu brasão de combate.O 26 de Julho em Moncada, segundo o comandante Raúl Castro, “em primeiro lugar iniciou um período de luta armada que não terminou até a derrota da tirania. Em segundo, criou uma nova direção e uma nova organização que repudiava o reformismo e o quietismo, que eram combativos e decididos”. Essa vanguarda heróica modificou para sempre o desti-no de Cubal, que, há 68 anos, se lançou a iniciar uma luta decidida a libertar-se da subjugação do imperia-lismo, da tirania dos donos de terras e empresários,

e da exploração do sistema capitalista, conforma-dos na ditadura de Fulgêncio Batista.Moncada é o início da luta que culminou na glorio-sa Revolução Cubana, fundando uma nova pátria li-vre e socialista, e edificando a consciência nacional, que atrela a razão da independência e da liberdade de Cuba como o resultado da vitória dos humildes, como obra dos que constroem o mundo sob a tira-nia do capitalismo e seus impérios.Hoje, passados 68 anos do assalto a Moncada, seu acontecimento celebra a rebeldia do povo de Cuba, que continua se insurgindo para sustentar o estado operário e as conquistas do socialismo. Duras condi-ções, nascido nos escombros da dominação imperia-lista e da ditadura das oligarquias títeres do império, dos latifundiários e da burguesia. Ontem, o algoz Batista; hoje, o embargo econômico que impõem os Estados Unidos à Revolução Cubana. Mas é incapaz de derrotar seu povo, que há séculos dá grande pro-va de rebeldia frustrando seus dominadores. “Quem tentar apoderar-se de Cuba, juntará o pó de seu chão encharcado em sangue, se não perecer na luta”. Antonio Maceo

Foto: Francesco Mariani

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ESPAÇO CULTURALCAROLINA MARIA DE JESUSOBRA: QUARTO DE DESPEJO

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) foi uma escritora fundamental no desenlace da literatura moderna do sécu-lo XX. Vinda da Favela do Canindé, da Zona Norte de São Paulo, Carolina viveu boa parte da vida como catadora, passando por muitas dificuldades financeiras, lutando por sua sobrevivência e contra a pobreza extrema. Seu primeiro livro, que fez sucesso imediato e causou gran-de espanto nos meios literários, foi Quarto de Despejo: diá-rio de uma favelada. Escrito no final de 1950 e editado em 1960, o romance narra as dificuldades de uma mãe, mu-lher negra, moradora da favela, que enfrenta diariamente os demônios da sociedade: a inveja dos outros, o racismo estrutural, a fome que ronda, os vícios – como a embria-guez –, que constituem a realidade da classe trabalhadora brasileira. O romance é estruturado em forma de diário, con-tando as labutas cotidianas de uma mãe solteira, negra e moradora da favela em São Paulo. Carolina de Jesus nos conta das muitas vezes que pedia ossos nos Frigoríficos, usados para cozinhar batatas ou fazer sopa para os filhos. Durante o livro, essa é uma trajetória comum em sua con-dição de falta de dinheiro até para se alimentar. Ora, essa era a condição da classe trabalhadora entre 1950 e 60: po-breza extrema, fome e total precarização das condições de vida. Éramos largados às traças, explorados até a última gota de suor e sangue – principalmente o povo negro e os indígenas. Hoje, depois de setenta anos, pudemos novamente consta-tar a veracidade da sabedoria popular: o mundo dá voltas. A história se repete, como diria Marx. Infelizmente, para a classe trabalhadora brasileira se repetiu como tragédia outra vez. Agora, em outro contexto histórico, vivemos o ápice da política econômica neoliberal, agenciado pelo fascismo bolsonarista e pelo Partido Fardado, em resposta à crise econômica generalizada, aprofundada pela pande-mia. A fome reaparece no cenário brasileiro como um pro-blema social latente e alarmante. A notícia triste das famílias nas filas em Frigoríficos de Cuia-bá, na busca por ossos para matar a fome, nos remetem diretamente às narrativas de Carolina de Jesus. A escritora dizia que “quem passa fome tende a pensar no próximo, e nas crianças”. Ora, a burguesia brasileira nunca passou fome – são altamente individualistas e nem mesmo passa por suas cabeças as condições de nossas crianças. No país

que lucra bilhões com o agronegócio, o povo passa fome. Essa é uma contradição que o país ainda carrega. No Brasil, o povo é maltratado, superexplorado, extorqui-do de suas condições de vida plena e bem-estar. A nossa classe passa fome e sede, morre aos montes na pandemia, mas continua produtiva para o capital. Em tempos de crise, os problemas latentes do Brasil reaparecem em cena: são demônios do subdesenvolvimento e da dependência, às ve-zes colocados para dormir, mas que despertam outra vez. Hoje, a fome e a insegurança alimentar continuam a ser a dura realidade – ela foi contada pela voz de Carolina de Jesus e é vista hoje a olhos nus, para quem quiser ver.

Por Gabriel Galego

Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã

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À MEMÓRIA DE ARIOVALDO MATOS

Por Camila OliverAriovaldo Magalhães Matos nasceu no

dia 24 de agosto de 1926, na Rua da Poeira, bairro de Nazaré, na capital baiana, Salvador. Era jornalista, contista, novelista, romancista e dramaturgo.

Militante do Partido Comunista Brasi-leiro, foi editor do jornal O Momento, órgão do partido. Em novembro de 1957, após dois em-pastelamentos e prisão de militantes que atu-avam no jornal, O Momento encerrou os seus trabalhos. Na sequência, com a participação de José Gorender, Ariovaldo Matos atuou no lançamento de outro semanário do PCB: Folha da Bahia. Este semanário foi perseguido e em-pastelado durante o regime militar, além disso, Ariovaldo Matos teve a sua casa invadida e, em 1970, foi condenado e preso pela Justiça Mili-tar.

A obra de Ariovaldo Matos foi marcada por sua forte atuação política. Iniciou sua ati-vidade como escritor em 1955 com o romance Corta-Braço, obra que trata das ocupações ur-banas na cidade de Salvador, as quais já haviam sido pauta importante do jornal O Momento em seus primeiros anos de existência. As repor-tagens e editoriais do jornal analisavam a ques-tão da crise habitacional na cidade e buscavam influenciar a opinião pública, defendendo o di-reito de morar.

MEMÓRIA

Como as reportagens e editoriais do jornal, contudo, seguindo a linha do gênero ro-mance, Corta-Braço, a partir de personagens ficcionais, aborda o fenômeno das ocupações urbanas com forte densidade social. A obra que narra a ocupação que deu início ao bairro do Pero Vaz, em Salvador, remonta à década de 1940, e insere a ação do Partido Comunista Bra-sileiro nas lutas populares.

Ainda em 1955, Ariovaldo Matos publi-cou o livro de contos A dura lei dos homens, que recebeu o Prêmio Prefeitura Municipal de Sal-vador. Publicou também os romances: Os dias do Medo (1968), Anjos Caiados (1979), Colagem desvairada em manhã de Carnaval (1981); e a obra póstuma organizada por Guido Guerra: A Ostra Azul. Além do volume de contos Últimos sinos da Infância. O dramaturgo deixou inéditas as peças: Irani ou As Interrogações (1977), E to-dos foram heróis cada qual ao seu modo (1978), O Ringue (1975) e Bibi Telefona (1982).

Ariovaldo Matos, faleceu a 8 de julho de 1988, ficando o seu espólio aos cuidados dos fi-lhos e do amigo Guido Guerra, o qual, em 2009, foi doado para o Grupo de Grupo de Edição e Estudo de Textos Teatrais Censurados na Bahia, coordenado pela Prof. Dra. Rosa Borges, na Uni-versidade Federal da Bahia.