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Volume MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL DE CATAGUASES 4 Volume

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uma publicação de minha cidade

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Volume

M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L D E C ATA G U A S E S

4Volume

Apoio:

Patrocínio:

Execução:

Incentivo:

M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L

D E C ATA G U A S E S

Vo l u m e 4

1 ª E D I Ç Ã O – 2 0 1 2

Organização e Coordenação: Paulo Henrique Alonso

Equipe de pesquisadores - memória oral: Margareth Cordeiro Franklin (coordenação)

Angela de Fátima Faria Pimenta, Carlile Lanzieri Júnior, Cláudio Robert Faustino Pereira, Edyr Martins Lacerda Ravaglia,

Inácio Manoel Neves Frade da Cruz, José Otônio Sabino Silva, Luiz Fernando Gonçalves Leitão, Paulo Victor da Rocha Patrício, Roseli Gomes Cardoso,

Sabrina de Almeida Sousa, Tiago Barroso Souza

Coleta material iconográfico: Marcela Andrade da Silva

Design: Birte Paetrow, Gustavo Baldez, Holger Melzow

Infraestrutura e tecnologia: Américo Vicente Sobrinho

Plataforma de rede e internet: David Azevedo, Danilo Marinho

Comunicação: Beth Sanna

Produção: Bárbara Piva

Gestão administrativo-financeira: Djalma Dutra Jr, Geisiane Marinho de Lima

Memória e patrimônio cultural de Cataguases / Paulo Henrique Alonso (Coord.). – Cataguases / MG: ICC, 2012.

288 p.: il. pb. – (Memória e patrimônio cultural de Cataguases; IV)

ISBN: 978-85-65550-03-1

1. Memória Oral. 2. Patrimônio Cultural. 3. História. 4. Cataguases / MG. I. Alonso, Paulo Henrique. II. Instituto Cidade de Cataguases – ICC. III. Título.

M533

CDD: 981.5

Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias:Carla Viviane da Silva Angelo – CRB-6/2590.

Edna da Silva Angelo – CRB-6/2560.

M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L

D E C ATA G U A S E S

Vo l u m e 4

O 4º volume de Memória e Patrimônio Cultural de Cataguases vem dar continuidade à série iniciada nos livros anteriores.

Aqui, em 13 entrevistas feitas em 2011, priori-zamos depoimentos que esclarecem melhor os acon-tecimentos culturais dos anos 1960 em Cataguases, abordando o cinema, teatro, literatura, arquitetura e relacionando-os ao que acontecia na conjuntura política e cultural do país. Indagamos sobre o coti-diano dos operários têxteis, suas condições de vida, trabalho, e suas relações com os movimentos sociais e políticos do período. Buscamos identificar, valori-zar e divulgar a herança cultural africana presente na música e na sua influência sobre os festejos popula-res e práticas religiosas locais, incluindo diferentes religiões. Nos distritos de Cataguases, optamos por

A P R E S E N TA Ç Ã O

investigar o futebol, esporte mais popular do Brasil e importante meio de sociabilidade para as comunida-des urbanas e rurais.

Cabe lembrar que, seguindo a metodologia dos livros anteriores, o texto privilegia a fala própria dos entrevistados, regendo-se mais pelas regras da comunicação oral do que pelas normas da escrita. Na reprodução das fotos, as autorias e datas que não fo-ram identificadas estão citadas nas suas respectivas legendas como s/a e s/d.

Esta publicação também está disponível, em PDF, para download gratuito no sítio eletrônico www.fabricadofuturo.org.br.

11MARIA ALCINA

Cantora, 62 anos

35J O A Q U I M B R A N C O

Poeta e professor de literatura, 71 anos

57V I R G Í N I O R I O S

Escultor, intelectual autodidata, 73 anos

73E L I S A N U N E S

Cantora e sambista, 64 anos

95L Ú C I A H E L E N A

Liderança da Igreja Católica, 67 anos

105M A R L E N E T H O M É G R E G Ó R I O

Presidente do Centro Espírita Pai Antonio de Aruanda, 68 anos

143J O S É J Ú L I O

Líder de grupos de “Mineiro-pau” e “Folia de Reis”, 83 anos

Í N D I C E

177

I D M A R V I L E L A Operário aposentado, 77 anos

201

M A R I A M A G A L H Ã E S D E A L M E I D A( D O N A L I L I )

Operária têxtil aposentada, 76 anos

215

M A R G A T O ( M A N O E L V E N T U R E L I )Operário têxtil aposentado, ex-sindicalista, 85 anos

231

S R . Z I Z I T O ( B R Á S D E A L M E I D A L O P E S )

Pequeno proprietário rural, jogador de futebol, 81 anos

249

C H I Q U I N H O J E R E M I A S ( F R A N C I S C O L E O N A R D O N E T O )

Trabalhador rural, operário, jogador de futebol, 75 anos

267

S E U L O U R O ( J O S É D I R C E U A R C H E T E )Trabalhador rural, operário, jogador de futebol, 71 anos

11

M A R I A A L C I N A 1

C A N TO R A

6 2 a n o s

Meu nome é Maria Alcina Leite, eu tenho 62 anos de idade e minha a profissão é cantora. Eu morei na rua do Pomba, na rua Major Vieira e eu tive uma infância muito feliz, que eu brincava muito. Eu brinquei na infância, a minha casa é com quintal até a beira do rio, então, eu lembro de uma goiabeira que tinha no meio do quintal que eu observava quan-do as flores, não é? Ia até a goiaba e subia, gostava de, sabe? De observar o movimento das flores, das

1) Nascida em Cataguases, Maria Alcina participou com sucesso dos festi-vais dos anos 1960/70, firmou-se como artista de vanguarda e é uma das

grandes intérpretes da música brasileira.

Foto: Maria Alcina no Programa do Chacrinha, s/a, década de 1980, acer-vo Maria Alcina

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árvores, tinha pé de abil, mangueira então, observava quando dava as flores, você sabia que ia dar o fruto.

Eu sempre fui uma pessoa muito assim, uma menina muito assim, contemplativa, não é? Na ver-dade, eu ainda sou e não sei se às vezes a luta que a gente tem no dia a dia da sobrevivência, às vezes eu esqueço um pouco disso assim, não é? Parece que eu sou mais falante, não, mas eu sou mais contemplati-va. Então, brinquei muito. Cleominha minha amiga, Lucinda minha amiga, Maria do Carmo, que vinha lá do Rio de Janeiro com a Maria Beatriz, a Maria Inês. Mas não eram as minhas amigas mais, assim, de folia mesmo era a Cleominha e a Lucinda.

Brincava de professora e fazia teatrinho e brincava de ser filha única e rica [Risos]. Brincava de ter carro, ligava o carro. E professora botava os me-ninos lá pra estudar e fazia teatrinho. Eu me lembro de fazer um teatrinho que já era propriamente uma coisa de...

Lá em casa não tinha rádio, a gente cresceu sem um rádio dentro de casa. O Cleomar, que é meu tio, de vez em quando ele passava uma temporada lá em casa. Aí ele levava rádio. Aí quando ele saía pa-ra trabalhar eu ia lá, “tum” e ligava o rádio, curtia a música. De vez em quando ele levava aquele baixo de pau, aquele baixo, não é? Deixava lá em casa, por-

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que ele tocava, não é? De noite, todo mundo dormin-do, eu ia lá botava o ouvido bem perto assim da cor-da: “tim”, apertava a corda assim e ficava ouvindo aquele som.

Isso nasce. Isso é chamado dom. Acho que a família do meu pai é todo mundo muito musical. O meu pai era músico. Aí ele teve problema de surdez e quando eu nasci eu conheci meu pai já com problema de surdez. Ele jovem ficou surdo, entendeu? Mas a música dentro, não é? E a família do meu pai é toda musical, todo mundo. Ritmo, ar, não é? Que é a mi-nha característica primeira.

Eu acho que a nossa geração é a geração que via os festivais. A nossa geração é a dos festivais. Então a gente via os festivais, não é? Quem eu vi que me encantou, assim, todos festivais, lógico. Eu ouvia a Record no rádio, por exemplo, do meu tio, a Elis Regina cantando já era aquela coisa toda ali, não é?

Essas pessoas estão aqui dentro desse rádio, não é? A gente tem a ideia que a pessoas estão ali dentro do rádio. E na televisão, os festivais da Record, que a gente via nos vizinhos, não é? A televisão esta-va chegando naquela época. Então, assim, nossa ge-ração é a geração que viu os festivais.

Não é o estilo dos festivais. A gente tem a in-formação daquelas pessoas que estavam fazendo a

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música popular brasileira acontecer e essa música popular brasileira estava nos festivais. Você pega aquele livro do Zuza Homem de Mello, A era dos festivais, está toda a história, não é? Depois do rádio aquela coisa toda, na televisão está lá.

Ó, eu falei para você que eu sempre fui uma menina observadora, porque, na falta de alguma coisa, eu observava tudo à minha volta, não é? A gente viveu a era da Jovem Guarda, eu cantei com Moarcílio, não é? Ele também é Bossa Nova, Jovem Guarda. Eu fiz uma dupla com Moarcílio. A gente cantava as músicas de Leno e Lilian e a gente an-tecedeu o Ney Matogrosso porque ele tinha a voz de soprano e eu a voz de contralto. [Risos] Então, ele cantava a voz feminina e eu fazia a masculina. Cantava “pobre menina, existe um amor que eu não posso derrotar”. Coisa estúpida essa música de Leno e Lilian!

Aí um dia eu escuto alguém cantar assim, Gilberto Gil cantar assim: “Olha lá vai passando a procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão”, não é? Aí eu falei assim: Pô, Alcina, acorda. No meu histórico social e de vida, não é? Eu não tava para po-bre menina, nem para menina da Jovem Guarda. Eu tava para a porrada, mesmo! A porrada comia, não é? E com a voz grave que eu tenho, não é? Aí eu sinto

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que o Gilberto Gil me deu a régua e o compasso, as-sim, me norteou, entendeu?

Mas, eu acho difícil cantar, por exemplo, Bossa Nova. Então, a gente tava vendo toda aquela história da Bossa Nova chegando aos 60. Aí eu via Tiãozinho tocando violão ali, tocando Bossa Nova. Os meninos ali, os outros músicos: Ironil? Ironil, não é?, Afonsinho já estava na Itália. O menino casado com a Juliana, o Oli, maravilhoso baterista, mara-vilhoso, espetacular, não é? Então era, meu irmão Pedro também músico, amigo deles. Mas a Bossa Nova eu nunca ousei, acho que Bossa Nova precisa uma técnica. Então, eu estava ouvindo tudo aquilo quando chega a Jovem Guarda: Pá! Eu dançava com Cleominha no parque. A gente dançava a música de Rita Pavone.

Show, tinha show [promovido] pela igre-ja, não é? Então a gente apresentava dançando. E a Cleominha outro dia me lembrou que a gente tentou fazer uma dupla, mas ela não acertava. E eu ensinava a ela e ela não acertava, então, a gente foi para dança mesmo, não é?

E depois quando eu vi o Gilberto Gil ali, eu co-meço a me nortear e é quando vem a Tropicália. Então, são os festivais e a Tropicália, assim, que permeiam a nossa geração. Eu ouvia música no rádio da dona

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Madalena, do vizinho, ouvia o meu tio, sempre onde tinha música, eu ouvia, mas não dentro da minha casa. Tivesse um rádio para a gente ficar ligando toda hora.

A primeira vez que eu cantei em Cataguases foi na Igreja Santa Rita. Fui cantar no coro. Vai ser em 60. A dona Geralcina era professora de canto. Então eu cantava no coro da Igreja. Aí cantava para cantar. Nas festas, tinha também. Sem ser o parque Santa Rita, tinha o lá da Vila. Tinha um show também lá, que agora eu não vou lembrar, mas eu posso. Na Sede São Vicente de Paula. Mas eu me apresentava mais no Parque Santa Rita.

E nessas andanças de buscar música e tudo, tem uma pessoa muito importante na minha vida, é o Pedro Paulo, Pedro Paulo de Toledo da Silva, jor-nalista. Meu primo Pedro Paulo. Ele sempre foi uma pessoa muito minha amiga. Eu ia trabalhar na fábri-ca - porque eu era da fábrica de macarrão e depois da Industrial - e o Pedro Paulo era muito meu amigo. Ele me falava do cinema, da música, ele falava tudo para mim. Ele falava o que estava acontecendo nas artes em geral. E nessa coisa, talvez ele tenha enten-dido que eu já estava me manifestando e ele como é jornalista é uma pessoa muito bem informada, ti-nha muita cultura, ele me ajudava, entendeu? E fa-lava e brincava de eu ser vedete, não é? E ele, Carlos

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Machado. Lá na cozinha de casa tinha um degrauzi-nho e falava: Alcina você... Maria, Maria, você é girl! Aí, você bota a mão assim e você desce as escada - é um degrau só, mas eu descia.

E um dia, o Pedro Paulo me leva para ver, lá no Clube Social, o grupo do Carlos Moura fazendo teatro. Eu não lembro agora o nome da peça. Quando eu vi aquele grupo ali fazendo teatro na minha fren-te, eu falei: Pedro Paulo, é isso que eu quero fazer. [Risos]. Olha que eu sou tão, ô gente, eu era muito abusada [Risos].

Quem é que escreve para que eu possa falar, dançar e cantar? Aí ele falou: O Joaquim Branco, eu vou falar com ele, eu conheço ele. Aí me levou até o Joaquim Branco. O Joaquim Branco fez a peça Não há vagas. Escreveu uma peça, Não há vagas. O Simão dirigiu, entendeu?

Aí eu comecei a ter uma convivência com o Joaquim Branco, os poetas, o Antônio Jaime, o Ronaldo Werneck, todo aquele pessoal. Eu não en-tendia nada que eles escreviam, não é? Mas eu estava lá, estava junto. Tinha música, poesia e música. Então era um grupo que se formou e nesse grupo a gente viajou com essa peça.

E houve uma época que aquele programa A grande chance estava fazendo viagens pelos estados,

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não é? Pelos lugares, pelas cidades, não é? Então vie-ram até Além Paraíba para alguém, para os calouros. E o grupo do Joaquim Branco, eles me levaram até Além Paraíba para participar. Pedro Branco estava, Aquiles também estava, era toda a equipe, era equipe, todo o grupo, não é?

E eu fui até Além Paraíba me apresentar como caloura de A grande chance. Mas ele falava pelo grupo, era uma coisa que não se desmembrava, entendeu? Formamos aqui um grupo, poesia/música, eu estava no meio deles lá e cantei, passei e aí foi para o Rio de Janeiro. Passei de novo a primeira vez, na segunda vez eu já não passei.

Então, essa manifestação começa a acontecer e eu aqui, ali cantando aquilo ali. O Pedro Paulo é a pessoa central, é a pessoa que centraliza e me leva e quando eu conheço o grupo aí eu fico encantada e disse: É isso que eu quero fazer. Ah, ele é maravilho-so. Eu acho até que vocês precisavam falar com ele, porque ele é muito legal, se precisar. Porque às vezes a gente não pensa, mas, sabe?

Eu era muito jovem e eu trabalhava na fábri-ca. Às vezes ele ia até à fábrica. Eu trabalhava pouco e era mandada embora, gente. Eu cantava, eu fazia hora no banheiro, sabe essas coisas? Eu fui presa, me prenderam no banheiro. Eu descobri o negócio de fi-

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car fazendo hora no banheiro, as pessoas que já sa-biam trabalhavam muito tempo e eu cheguei toda saltitante e fui lá fazer hora. O cara sacou um dia. Como é que fala a pessoa que comanda? É gerente? Não. O contramestre. Bicho, ele me prendeu no ba-nheiro e chamou justa causa quando ele me pegou.

Todas as fábrica eu era mandada embora. Então eu trabalhei na Macarrão Salgado, trabalhei na Industrial, trabalhei na Irmãos Peixoto. Da Irmãos Peixoto eu já saí para cantar, já estava na folia da Grande chance, aquela coisa toda. Foi tudo eu acho que depois, que aí o Joaquim [Branco] fez o festival. Em Cataguases. É. Em Cataguases. Depois da peça, é depois da peça.

Depois dessa coisa toda, que fui na Grande chance, que eu ganhei a primeira vez, que eu não ga-nhei na segunda. Quer dizer, tecnicamente eu não saberia te dizer, mas ele pode mais te informar sim. A gente fez o 1º Festival Audiovisual de Cataguases depois de tudo isso, eu acho que já era 68, não é isso? O meu é 69, e daí eu já vou para Rio de Janeiro. Eu não fui embora de Cataguases. Eu saí de Cataguases para gravar a trilha sonora do filme do Paulo Bastos [O anunciador].

Com o pessoal do festival, o Carlos Condé, o Alfredo Condé, não é? Fizemos a trilha juntos ali. É.

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Provavelmente o filme é antes e o festival depois. É tudo ali, é tudo ali, o Joaquim vai te dar tecnicamente as datas. Teatro é antes, o filme é depois e o festival em seguida. É tudo na sequência.

Eu participei [do Festival de Audiovisual] can-tando a música do Alfredo Condé e Carlos Moura, Pesadelo Refrigerado. Eu faço o festival em Catagua-ses. Ganhei como melhor intérprete, com Pesadelo Refrigerado, acabou aí. Depois eu vou para o Rio de Janeiro com os meninos, o Alfredo, todo mundo ali, Antônio Jaime, eu acho, gravar a trilha sonora do fil-me do Paulo Bastos, porque eu toquei violão, falei uns poemas, participei da trilha musical.

Aí a gente vai gravar no estúdio e tinha uma pessoa gravando antes da gente. A gente precisou esperar essa pessoa que estava gravando acabar de gravar para dar o lugar para gente e essa pessoa era Antônio Adolfo, que esteve no Festival Audiovisual e me viu lá.

É mágico, tem coisas que não tem explicação, até na magia, assim, espetacular. Aí sai, sai ele do es-túdio e fala assim: Mas você não é aquela moça lá de Cataguases e tal? Eu sou. Ah, eu sou Antônio Adolfo. Ele: você tem a voz legal, por que você não fica aqui no Rio de Janeiro para tentar a sua carreira aqui e tal? E aí eu fui ficando. Eu voltava para Cataguases,

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voltava para o Rio de Janeiro para tentar ser aquela coisa toda, não é? Fizemos a trilha, voltei obviamente para Cataguases, mas fiquei voltando para o Rio de Janeiro.

Mas quando você, sendo duma família grande, precisando ajudar em casa, o famoso ajudar em casa essa coisa, não é? Ajudar em casa. Pai, meu pai um dia chegou e falou assim: O que você está fazendo no Rio de Janeiro? Eu falei: pai, estou cantando. Cadê o dinheiro, não é? Se está cantando mostra o dinheiro, não é? Eu falei das dificuldade. Ele falou: vai ter que escolher. Ou volta e não vai mais, ou fica, vai cantar e não volta aqui, não é? Então eu fui embora [Risos]. Então eu saí de casa [Risos]. “O dia em que eu saí de casa minha mãe me disse...” [Risos]

É porque você tem que ajudar em casa, não é? Família de operários, aquela coisa toda. Isso é uma realidade em qualquer situação, não é? E aí eu já es-tava estudando uns lugares para ficar, sabe? Já estava mais ou menos, sabe? Participando de outros festi-vais. De Juiz de Fora eu participei.

E uma pessoa que foi muito importante nessa época para mim, que eu estava no Rio de Janeiro, não conhecia o Rio de Janeiro nem nada, foi o Ronaldo Werneck. Eu fiquei morando na casa dele um tempo. Aí depois fui morar na casa da namorada dele, que

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foi a esposa dele, a Adriana. Aí ajudava lá a família para ter um lugar para dormir, entendeu? E à noite saía buscando lugar para cantar, porque a gente da nossa época, assim, precisava de ter a escola de croo-ner e eu não conseguia arrumar muito em..., é assim, trabalho de crooner, porque eu já botava a mão para cá, já me jogava no chão, sabe? Já dava a louca e cro-oner não tem esse perfil, entende? Já aí começa essa trajetória no Rio de Janeiro.

Então já estamos no Festival Internacional da Canção. Para chegar até aí eu espero três anos, eu gravo a trilha sonora e saio de casa, não é? Eu passo três anos batalhando, até conseguir um espaço. E é muito interessante, eu acho que seria legal contar isso, que nessa busca de lugar para cantar eu encontro um dia a peça Vem de ré que eu estou em primeira, que a Leila Diniz estrelava e foi escrita pelo Tarso de Castro.

Eu tentei entrar no elenco, mas eu não consegui. Mas eu ia lá, eu ficava lá perto deles e tal. Um dia a Leila Diniz teve um problema lá, machucou o pé, aí: Alcina vem cá, você vem cá toda noite cantar, aí hoje dá uma canja. E eu dei uma canja, falei: hoje é meu dia, não é? Cantei duas músicas, falei: É agora ou nunca.

Aí: pô, você é legal, você canta legal, vamos lá para o Number One, dá uma canja. Aquela coisa to-da. Aí fomos lá com o Tarso de Castro para o Number

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One. O dono do Number One ouve uma pessoa can-tando. Na peça Vem de ré que eu estou em primei-ra, existia um transformista. O dono da casa está só ouvindo, ele não está vendo a pessoa, ele acha que quem está cantado é o transformista. Quando cha-ma a atenção dele a voz e ele vê que era uma mulher que está cantando, que tinha uma voz grave, ele me contratou na hora. Realmente é outra situação, assim, bem peculiar.

O que me fazia cantar era minha voz, porque, assim, no caso do grupo, não é? A gente tinha aula de canto. A dona Margarida. E a gente ia cantar no pátio, aquela coisa toda, ou cantar na sala, cantar na coroação, junta todo mundo que canta. Aí a minha voz sobressaía. Então o que me ajudava a cantar era a minha voz. Então eu sempre convivi com ela assim. E onde eu estava? Eu estava no Number One agora. Number One. Então, seis meses eu fiquei como croo-ner, mas dando show. Aí o dono da casa colocou o Severino Filho, como arranjador me “coisando” pro-fissionalmente, assim, não é? Me produzindo musi-calmente. Dá seis meses depois, o Solano Ribeiro vai no Number One, Mauro Furtado é a pessoa do Number One, dono da casa; Solano Ribeiro vai no Number One, ele me assiste e me convida para participar do Festival Internacional da Canção, aonde eu canto

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“Fio Maravilha” e aí o Brasil toma conhecimento da Maria Alcina.

Isso é 1972, quando é 74, eu sou censurada. Eu fui tirada do ar vinte dias, não podia aparecer na te-levisão, não podia tocar minha música. Eu fui tirada do ar, no caso, censurada por comportamento. Tem a lei tem tudo. É porque eles estavam me acompanhan-do em vários shows que eu fazia.

Por que você canta dessa forma? Que gesto é esse? Tem um show que eu fiz lá no sul que eu pe-guei fiz aquela clássica do Macalé. Que ele pega a ro-sa, ele come, aquela clássica quando ele canta Gothan city. A encenação que ele fez bem antes do festival, também internacional, bem antes do meu. Peguei a rosa, passei debaixo do braço, fiz toda uma encena-ção com a rosa e comi a rosa, fazendo a encenação do Macalé. Então tudo isso para eles, para a censura, isso tinha um significado.

Gestos que eu fazia, eles queriam saber o sig-nificado. Eu não sabia responder, porque eu só fazia, não é? Então, eu respondi um processo, o Mauro Furtado, que era meu empresário na época, foi até Brasília. Era o comportamento. Quer dizer, tudo, tu-do que era provavelmente fora de um padrão estabe-lecido pra eles, lógico, para a censura, era possibili-dade de ser censurado.

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No site da Ana Paula Padrão, um repórter jo-vem [escreveu]. Eu cheguei lá toda produzida, não é? Cabelo todo colorido tal, assim. Isso é uma opinião dele, ele briga: “Lady Gaga que nada, Maria Alcina” [Risos]. Eu acho que ele pesquisou... É legal porque foi a opinião dele, assim. Ele é jovem eu acho que ele não me conhecia, então, ele foi buscar meu material, viu lá o visual e tudo. E isso no Brasil na década de 70, setenta não, bem antes a ditadura já começa. Isso era muito barra pesada. O comportamento também era uma coisa que...

A gente olhando isso hoje, assim, de fora, não é? A gente brinca e tudo, mas foi uma coisa que mar-cou muito na época. As pessoas, assim, amigos que conviviam comigo falavam: eu falei para você não fa-zer isso. Aí você começa a dar um peso: Nossa, o que eu fiz? E eu fui só fazendo, não é? E você fica marca-da como uma pessoa problema. Então, na televisão, já começam a te chamar menos e tudo. Você fica uma figura marcada. Isso que eu acho que não dura vinte dias, só. Dura muitos anos, entendeu?

Até passar tudo, a única pessoa que eu me lembro perfeitamente que um dia comentou comigo sobre esse assunto foi o Sargentelli. A gente fazia o programa do Ney Gonçalves Dias. A gente fez um ano o programa de jurados. Um dia ele falou assim:

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Nossa, como você está legal! Depois que ele me viu, assim, não é? Você passou por tudo aquilo que vo-cê passou e manteve. E que bacana, você conseguiu manter como se fosse uma identidade, assim, não é? Sem que a coisa degringolasse mais, não é? Ele não usou essas palavras, mas é mais ou menos resumido, foi a única pessoa.

Eu me lembro que o Gilberto Gil abriu o pro-grama dele para eu fazer o jurado, me acolhendo. Eu chegava nos lugares as pessoas falavam assim: aqui você pode fazer tudo. Eu não fazia nada. Chegava nas cidades para cantar, antes de cantar eu tinha que ir em uma delegacia para falar o que eu ia cantar. Então, foi barra pesada, olhando assim hoje, entendeu?

Olhando de fora, assim, porque o tempo ho-je é outro, mas era barra pesada. O negócio da Lady Gaga... É uma coisa que provocou bastante as pesso-as não é? Mas é a questão do tempo mesmo, não é? A questão de estar na ditadura.

Eu acho uma coisa, assim, que é muito bonita na minha carreira é ter começado toda a minha his-tória em Cataguases. Toda a minha história de vida artística eu comecei em Cataguases, aprendendo com as pessoas que ali estavam, convivendo no dia-a-dia mesmo de criação, não é? Com poesia, com músi-ca. Então, quando eu conto a minha história, eu falo

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também de Cataguases porque é ali que eu comecei. Eu não saí de lá para começar no Rio de Janeiro.

Quer dizer, quando eu cheguei no Rio de Janeiro, é porque eu já vinha daqui, não é? De Cataguases. O Festival de Cataguases, o encontro com Antônio Adolfo. Eu vou até o Maracanãzinho, mas eu já tinha feito o 1º Festival Audiovisual. Então, o povo de Cataguases tem muito carinho comigo. Muito mesmo, sempre tiveram, não é? Então, é tudo muito bonito. Agora, essas coisas que a gente conta é porque também me perguntam, assim, porque faz parte da trajetória e para mim não tem problema, sa-bia? Isso é a parte de caminhar, de andar mesmo.

Já em 84 eu sou convidada para fazer o carna-val em Nova Iorque. Aí eu vou, faço, e aí eu come-ço a ir, voltar, porque essa identidade brasileira nos Estados Unidos, a Carmen Miranda, todo esse tra-balho que eu faço. Então, eu estava sempre voltando aos Estados Unidos.

Porque assim, quando eu apareci no Festival internacional cantando “Fio Maravilha”, com as fan-tasias, porque eu já fui com fantasias, eu não fui com roupa comum. Eu tinha dois figurinistas que criavam roupas para mim, um maquiador que criava maquia-gem para mim. Eu os conheci e eles já começaram a criar essas roupas quando eu cantava no Number One

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e diziam para mim: Alcina, se você chegar lá com uma roupa igual a de todo mundo, não vai sobressair. Tanto que eu colocava as roupas que eles fizeram pa-ra mim e olhava no espelho e falava: Poxa, mas essa não sou eu. E chorava.

Aí um dia eu falei: Essa não sou eu, mas quem é essa? Vou investir nessa aí, não é? De repente é uma pessoa que eu não conheço, mas que pode ser legal. E eu investi naquela que eu não conhecia e me transformei naquela Maria Alcina lá, que che-ga no Maracanãzinho com aquelas roupas e tal, saltitante e tal.

E por que eu tô falando disso? Porque quan-do eu apareço com aquela figura e as fantasias e a maquiagem, parece que traz a memória da Carmen Miranda, a figura que cantava com a baiana, com aquela coisa toda.

Aí começou a vir essa informação para mim, entendeu? Aí eu comecei a pesquisar mais o mate-rial da Carmen Miranda, porque eu não tinha muita informação no rádio, aquela coisa toda. Aí eu come-cei a pesquisar o repertório dela. Eu comecei a can-tar músicas da Carmem Miranda no meu show no Number One.

Então eu gravei, no primeiro LP, eu gravei “Alô alô”, “Como vai você”, “Maria boa” e “Me dá lu-

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gar”. O “Alô alô” estourou que nem “Fio Maravilha”. Então é essa a relação que eu tenho com a Carmem Miranda. Impressionante, porque o povo brasileiro gosta muito da Carmem Miranda e como eu tenho essa figura alegórica também, então, juntou uma coi-sa com a outra, porque eu não canto igual a ela, eu não tenho a mesma voz, mas é a figura, é essa coisa, esse fogo, não é?

Tudo meu é muito simples. Isso aí era um ca-beleireiro que tinha esse material e que me empres-tou, porque eu gostei e botei na cabeça, sabe esse ti-po de coisa? Porque com os figurinistas eu aprendi e fui desenvolvendo. Por exemplo, não sei maquiar, a técnica, então eu faço do meu jeito. Eu não sei vestir roupa, assim, tecnicamente e tal, eu vou inventando, eu tenho muito isso de inventar.

A produção, às vezes, fica querendo fazer muita coisa, mas é tudo muito caro. Então a ladeira da (Rua) 25 de março é minha casa, não é? Então, eu vou lá já pego uma máscara já boto. Pronto, está bom e canto. Na verdade, com Lady Gaga, ela está obrigando agen-te a ser mais ousada, entendeu? Então às vezes aí, a gente está com idade [bate palmas], não, minha filha, bota carne no corpo. [Risos] Bota uns bifes. [Risos]

Na época da Grande chance, quando eu passei pela primeira vez, eu ouvi falar assim: todo mundo

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fez a maior festa para você e você não veio, não vol-tou. Eu falei: Não, mas eu tinha que fazer o programa da Bibi. Na verdade, quem passava na Grande chance tinha que fazer o programa da Bibi Ferreira no dia seguinte, porque ela tinha um programa de gala, não é? Então, eu estava lá na função, não é? Mas o pesso-al de Cataguases sempre fez festa, uma grande festa para mim.

O Festival Internacional da Canção foi surpre-endente. Minha mãe até hoje não acredita que era eu. [Risos] Eu acho maravilha, nem eu acredito que fui lá, até hoje eu falo: gente como é que eu cheguei lá? Eu surtei e estava lá cantando Fio Maravilha.

Eu fiz Carmem Miranda esses dias todos aí, não é? Aquarela mineira de Carmem Miranda. Vai che-gando do meio para o final o pessoal começa: “Fio maravilha, nós gostamos de você”, cantando em coro. Quando termina o show, já estava todo mundo can-tando, ontem e anteontem. Essa música é quase um grito de guerra, por causa do momento do Brasil e aquele jeito que cheguei. Porque tem uma magia nes-sa música que é inexplicável. Ela tem essa caracterís-tica, não é? Não é só uma música.

Tinha o jornal Cataguases, tinha uma revis-ta. Tinha uma coisa de revista, não tinha? Agora não lembro bem. Mas isso era uma coisa entre eles,

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entendeu? Eu participava porque eu namorava o Joaquim Branco na época. A gente foi namorado e eu era convidada para participar cantando sempre, que eu sempre brinco, a Poesia Concreta é, assim, uma informação para mim muito diferente. Eu estava ali, basicamente meu negócio era a música. Músicas que eles faziam, por exemplo, o Joaquim, o Aquiles, eu cantava, entendeu?

Nos festivais, cantei música do Aquiles tam-bém, não é? Minha parte era mais musical. Agora, is-so é uma coisa muito mais, assim, mas acho que eles faziam no Cataguases, não é? Tinham um jornal tam-bém que eles tinham. Tinha uma coisa muito de carta, não é? Era uma época de carta, de correio. Eu lembro que o Joaquim sempre colocava muita carta no cor-reio. Se eu não tiver com a memória muito ruim, eu acho que tem uma coisa de carta, entendeu? Ele se comunicava com o Afonso Romano de Sant’anna, o Moacir Cirne.

Nessa coisa de ir para os Estados Unidos, da última vez que eu fui agora a gente se apresentou in-clusive no Lincoln Center, duas vezes homenagean-do a Carmem Miranda. Depois de 84 que eu fui, eu sempre era chamada. Aí teve uma vez que eu passei mais de um ano, um ano ou quase um ano ou mais de um ano. E ia e voltava, ia e voltava dos Estados

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Unidos, por causa de show de Carmen Miranda, aquela coisa toda.

E a gente cantou duas vezes no Lincoln Center, produzido pelo Nélson Motta, que me encontrou e disse, porque ele também estava no festival em Cataguases: te conheci com dezessete anos, ele fa-lou para mim. Porque ele lançou um CD de Carmem Miranda nos Estados Unidos e o “Alô alô” estava lá. A música “Alô, alô” abre o CD que ele gravou no Estados Unidos, então, ele falou para mim. Ele me conheceu, então, eu tinha dezessete anos no Festival de Cataguases, não é?

As pessoas gritam no meio do show “Genésio, a mulher do vizinho”. Eu estava cantando “cora-ção...” “Genésio, a mulher do vizinho”. As coisas marcam não é? A música marca.

A lembrança boa é Cataguases, as amigas, da escola. Eu sou muito feliz, eu sou uma pessoa muito feliz e eu acho que essa base que eu tive, não é? De brincar, de ter amizades, de estar conseguindo de-senvolver um dom que Deus dá para você na cidade onde eu nasci, vendo tudo aquilo lá, não é? Vivendo tudo isso, não é? Então as pessoas que estavam jun-to comigo, que cresceram. Enfim, me desenvolvi no meu lugar, artisticamente e me formei. Então, eu só tenho lembranças maravilhosas e quero agradecer ao

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povo de Cataguases, porque, realmente, todas as ve-zes que eu vou fazer show em Cataguases todo mun-do vai, todo mundo, sabe? Está sempre praça cheia, o teatro agora que a gente fez o “samba Minas”, não é? O pessoal da Taquara Preta. Então eu só tenho me-mória boa, de felicidade. E essa felicidade a gente sai carregando por aí, meu filho, não é? Porque eu acho que se você tem uma boa formação, não é? Então eu só tenho a agradecer.

Entrevistada por Luiz Fernando Leitão, Edyr Lacerda Ravaglia, Inácio Frade e Paulo Victor em 10/10/2011.

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Meu nome completo é Joaquim Branco Ribeiro Filho. Sou de 1940, isso quer dizer tenho 71... mil quilômetros rodados. Sou professor universitário, entre outras coisas. [Risos].

A infância nos anos quarenta era uma coisa muito assim, como é que eu vou te dizer, provinciana demais. Muito provinciana, muito interiorana, por-que a viagem daqui ao Rio durava 12 horas de trem. Então, o Rio, a nossa maior influência. Para chegar ao Rio já viajei muitas vezes de trem quando eu era me-nino, muitas. Então o isolamento era muito grande.

A população de Cataguases era pequena, nós vivíamos no Largo do Rosário. O Pedro [Pedro

J O A Q U I M B R A N C OP O E TA E P R O F E S S O R D E

L I T E R AT U R A

7 1 a n o s

Foto: Editores de “Totem” em entrevista com Chico Peixoto em 3/3/1979, s/a, reprodução do jornal “Cataguases” de 12/1/1986

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Branco, poeta, irmão do entrevistado, está presente na entrevista] está escrevendo um livro sobre o largo do Rosário, tendo como fundo, que é muito interes-sante [...]. E é uma vida de pião, birosca, futebol, bola de meia, muito pouca piscina, muita brincadeira. Mas tudo assim, daquela maneira antiga ainda, não é?

E debaixo do assoalho de casa, brincava com aquelas coisas todas e animais, não é? Cabritos, essas coisas, galinhas, terreiro grande, com quintal grande. Era uma infância assim boa e ruim. Ruim para mim pela doença que eu tive. Aí deixou marca, deixou... deixou problemas de locomoção. Eu queria jogar bo-la, meu ideal era ser jogador de futebol. Eu não pude fazer, mas já joguei muita bola, mesmo sem poder, jo-guei muita bola.

O Pedro e o Aquiles [irmãos] detestavam fute-bol [Risos]. Eles podiam jogar e não gostavam. Você vê como a vida é paradoxa, não é? Quem gostava de futebol e gosta até hoje sou eu, vejo até Olaria e São Cristovão pela televisão. [Risos.]

Na escola sempre gostei de escrever. Quem tem mais facilidade para escrever não sou eu, é o Pedro. Ele tem muito mais. Eu sou mais aplicado do que ele no estudo, mas o talento dele é maior. Então isso vem da minha mãe que nos fazia horário para estudar. Nós tínhamos horário para estudar. Todo

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dia, depois do almoço, ela tirava a mesa do almoço e estudávamos até as quatro horas. De uma até as quatro, todos os dias, fazendo os deveres. Das qua-tro em diante ela fechava e não permitia mais. Era só brincadeira.

E a noite, cinema. Nós íamos ao cinema todas as noites. Já imaginou isso? Todas as noites na déca-da de 50, nas décadas de 50 e 60 nós passamos a ir ao cinema todas as noites porque era um prêmio aos estudos. Nós estudávamos todos os dias e no dia de prova, nós não podíamos estudar porque ela não dei-xava. Ela achava que era bobagem, já tinha estudado. Realmente, deu certo. Agora quando eu fazia redação, eu e o Pedro, eles achavam que a minha mãe fazia para nós. Bom! Não era isso. Quando eu cresci, me tornei escritor e tudo, eles aí falaram que eu escrevi pra minha mãe [Risos]. Essa foi ótima, ela ficou da-nada da vida, eu não liguei [Risos]. Ela ficou danada da vida. A fama minha era grande, mas ela que me ensinava tudo, então não era verdade isso.

Agora, o início da minha participação na lite-ratura foi assim, oficialmente, em [1961]61. Eu tinha 21 anos, nós fizemos um jornal chamado Muro, que era um jornal de influência política, de influência literária. O nome lembrou Jean Paul Sartre, que ele tem um livro com esse nome. Por isso nós fizemos.

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Agora, sempre desde o primeiro jornal - e nós fize-mos vários - parece que a gente combinava alguma coisa no sentido de ter uma frente, como eu disse pra vocês, histórica, assim no sentido de tradição da ci-dade, e uma frente vanguardista, de experimentação poética.

O grupo então levou sempre nesses dois itens que são, assim, aparentemente inconciliáveis, mas que na verdade até hoje nós conciliamos. Você po-de ver que todos os livros que eu edito, eu edito um de vanguarda e um de retaguarda, parece até de propósito. Eu edito um resguardando a história de Cataguases, a literatura e etc. E o outro experimen-tando novas linguagens.

O Muro era independente. Porque quando nós fizemos o Muro eu tinha 21 anos, já tinha saído da es-cola e estava fazendo Direito. Alguns ainda estavam no colégio, mas o Muro era mimeografado. Era uma dificuldade incrível para editar, para vender mais ainda. Mas eu me lembro que quando nós fomos vender provocou muito interesse assim, de o pessoal meter o pau no jornal. Uns elogiaram outros mete-ram o pau. Hoje jornal mimeografado não causaria nem cócegas. Você sabe disso.

Você vê, não havia nada em Cataguases em 61, nada. Verde estava num canto da história, Meia Pataca

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estava pro Rio e Brasília e o terreno estava totalmente, assim, capinado, não tinha nada.

O Chico Peixoto morava aqui quietinho, fa-zendo a obra dele sossegado e nós resolvemos fa-zer barulho, em 61. Resultado. Quando nós acor-damos, outros autores daqui começaram também a mexer de novo, entendeu? Houve uma alteração com a nossa participação. Isso que eu acho que foi a grande mudança social da nossa participação inicial. Acordar quem estava dormindo, entendeu? Isso foi importante.

Depois nós fizemos um jornal chamado SLD, na década de 70, que acompanha as vanguardas, mas que também mantém o lado tradicional, tem experi-ências, muitas experiências. Aí já foi jornal impresso e editado como suplemento do Cataguases. Nós tira-mos onze números. Do Muro também tiramos onze números. Parece coincidência. É coincidência.

Na década de 70 fizemos isso, quando fize-mos esse jornal, aí sim, nós pudemos mandar para o exterior, para o Brasil inteiro. Foi muito grande a participação, muito grande. Saía assim, variando de dois em dois meses, de mês em mês. Não tinha uma periodicidade, não.

SLD que era uma mexida com LSD. Nós troca-mos, não é? Porque o Lennon também fez uma mú-

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sica chamada, é... LSD- Lucy in the Sky with Diamonds. LSD, ele mexia com isso, eu não sabia disso, eu fiz, de-pois, mais tarde eu vim saber. [Pausa] Mais tarde eu vim saber. Então esse jornal teve um nível muito mais alto do que o anterior. Porque, ele era impresso, a es-pacialidade dele era muito maior, eram 3 mil exem-plares. Quer dizer, uma saída enorme. E eu ganhava muitos exemplares para poder mandar para o exterior e para o Brasil. Tivemos participação de muitos poe-tas de fora, do exterior, do Brasil, do Estado de Minas e foi um grande jornal que nós fizemos aqui.

A terceira etapa foi do Totem que muita gente já ouviu falar, não é? Aí, eu já estava na faculdade já, na FIC. O jornal era da FIC, eu criei quando era do centro acadêmico da FIC, nós tivemos um grupo: eu, o Pedro, a Márcia, nós chamamos o Ronaldo, au-mentamos o grupo e também partimos para novas experiências, aí já na área universitária também, na área literária, universitária. Equilibrando as duas e mantendo o mesmo tipo de frente: uma de tradição da cidade e outra de experimentação. Esse foi o últi-mo jornal, assim, literário, que nós fizemos. Depois cada um pra si, começamos a dividir individualmen-te o trabalho.

Terminei as três etapas dos jornais que era uma espécie de pauta sobre a qual a gente andava. Os jor-

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nais nos davam essa pauta e nos davam uma ligação com todos os grupos de vanguarda. Esses grupos de vanguarda que havia no interior e também nas cida-des grandes, eles estavam muito fortes por causa da ditadura. O nosso grande inimigo era a ditadura. A ditadura e o academicismo poético, mas a ditadura unia todos, acadêmicos e vanguardistas, para lu-tar contra e nós lutamos bastante contra a ditadura. Pode ver pelos poemas e pelos textos destes jornais que a briga foi feia.

Nas inovações, o primeiro foi a poesia Con-creta. Como a poesia Concreta foi em [19]56, eu tinha 16 anos. Eu fui pegá-la mais na frente, com a defa-sagem um pouco grande. Como a Verde na época de [19]22. O Rosário Fusco tinha 13 anos, não podia fa-zer, não é? Então quando chegou em [19]27. Isso ex-plica o porquê a Verde foi em 27 e não em 22. Por que? Eles eram novos demais. Quando o Fusco tinha 17 anos, o Oswald de Andrade tinha 37. Vinte anos de diferença. O que é um milagre hoje, o Fusco ter parti-cipado desse movimento aqui com 17 anos.

Conosco aconteceu mais ou menos a mesma coisa. A poesia concreta foi em 56, eu tinha 16 anos só e os outros menos ainda. O Pedro tinha 13, 14. O Aquiles tinha 13. O Ronaldo tinha 14. Então não tinha condição de fazer, não. Quando nós pegamos essa

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parte, nós estávamos já com a idade certa de fazer. Já estávamos com 20 anos, 18, 20 anos sim, e aí melhora. E a primeira influência que nós tivemos foi da poesia Concreta, que era a vanguarda da época.

Havia muita coisa contra a poesia Concreta e nós participávamos a favor. Depois, quando a poesia Concreta deu [um] pulo participante, aí foi melhor, porque nós fazíamos poemas sociais e eles não. Eles faziam só poemas geométricos, matemáticos. Quando houve essa mudança ajudou bastante, porque a gen-te sentia essa necessidade de criar poemas políticos, sociais, participante da época, das coisas que aconte-ciam e não apenas aquela poesia matemática.

Logo depois do poema Concreto veio o poe-ma Práxis, que era mais participante, menos auda-cioso. Mas apenas participamos muito pouco desse momento, para depois participar do Processo. O Poema Processo sim, nós participamos muito forte-mente, no final da década de 60 e logo a seguir veio a Arte Postal, foi o ultimo movimento do qual nós par-ticipamos. A Arte Postal foi uma abertura, foi a pré internet. Porque o contato com o exterior foi muito grande, os países que tinham, eram mais bem pos-tos, tinham governos mais independentes, apoiaram a nossa luta contra a ditadura e publicavam antolo-gias, muitas antologias com poemas nossos contra a

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ditadura. Começamos então a fazer um movimento de fora para dentro.

Eu não sei qual o milagre aqui municipal, porque havia por parte das autoridades municipais um respeito grande a nós. Não sei por quê. Não sei. Porque éramos bons alunos, talvez isso. Eles nunca mexeram conosco municipalmente, nunca. Foi preci-so o DOPS mexer com a gente. De fora. Porque nós começamos a incomodar, o grupo cresceu, fizemos os festivais e aí mexeu muito. Duas vezes me procura-ram. Foram na minha casa para me levar. E tal, con-versa vai, conversa vem. Adiaram para de tarde me pegar e foram saber opiniões na cidade sobre mim. As opiniões eram todas favoráveis a mim.

Eles achavam e tinham razão, claro, que nós incomodávamos o sistema. E era verdade. Quem po-deria incomodar mais o sistema do que os poetas? Ninguém. Mas esse incomodar não era uma coisa fí-sica, era uma coisa intelectual, como no Rio. E muita gente incomodando intelectualmente foi banida.

O nosso grupo? Aí é o Pedro e o Aquiles, os irmãos; o Ronaldo, o Carlos Sergio, Arabela Cunha, a Sandra Lacerda, Plínio Guilherme Filho, Sebastião Carvalho, Ivan Rocha, um grupo grande, que foi cres-cendo, reduzindo, crescendo. Havia um casamento, o grupo reduzia [Risos]. Havia uma mudança, o gru-

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po reduzia. Depois era acrescido de novos elementos. Ah! Adolfo Paulino. Tem muito mais, não estou me lembrando. Eu posso me esquecer. Mas o grupo era bem grande. A Lecy Delfim Vieira. Era grande.

Hoje eu vejo que... eu vejo mais hoje do que ontem. Por que? Criou se uma imagem, assim, eu te-nho uma imagem hoje. Queira ou não queira tenho uma imagem. Essa imagem foi construída, mas rece-bida silenciosamente. Quer dizer, a recepção local foi muito silenciosa.

Então, ao mesmo tempo em que nós fazíamos esse trabalho que não era muito assimilado, nós tí-nhamos outras vitórias no campo profissional, nos estudos e isso nos limpava terreno. Você ser bom alu-no também tem suas vantagens, essas vantagens. O Pedro, eu, o Ronaldo, todos passávamos em concur-sos, bem classificados. O Aquiles também, o Plínio. Todos nós conseguimos um sucesso profissional.

O banco [do Brasil] sempre me ajudou. Porque eu trabalhava seis horas, o resto eu dedicava a litera-tura. É uma coisa boa. Sempre fui bom funcionário. Sempre gostei de trabalhar. Mas eu nunca trabalhei na contabilidade, tem isso também. Sempre trabalhei escrevendo cartas, relatórios, memorandos, o tempo todo fazia isso. Porque ninguém queria fazer, tinha isso também.

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Aí eu procurava fazer, eu dava aulas, o Pedro também, dava aulas. Então, esse lado nosso, acho que apaziguou o lado vanguardista. A fermentação opositiva que pudesse ter foi apaziguada por esse la-do fazedor, não é? É um lado importante. Porque nós produzimos.

E o apoio dos prefeitos aqui foi grande, incri-velmente foi muito grande o apoio dos prefeitos, por-que nós fazíamos o Suplemento ligado ao Cataguases. Talvez hoje eu seja um dos mais antigos colaborado-res do Cataguases vivo. Porque eu comecei na década de 60, inicio de 60 no Cataguases. Hoje, vivo, só tem o Tarcisio. Eu e Tarcisio praticamente que escrevemos no Cataguases. Nós colocávamos o jornal debaixo do bra-ço e vendíamos na praça. Todo material era impresso.

Também nós temos o lado teatral. Nós fizemos várias peças. Várias apresentações. Nós fizemos uma em 67, uma homenagem a Verde, chamada ‘Carta aos Ases’, que marcou época. Depois nós fizemos várias no Colégio Cataguases, com público lotado. Fizemos sobre Jorge Luis Borges, fizemos muita coisa. Uma peça minha sobre a ditadura, ‘Não há vagas’, com mú-sica do Pedro, sempre com o grupo todo participan-do. Pedro e Ronaldo, principalmente, Carlos Sergio, também o Aquiles, Plínio foram os que mais parti-ciparam. O Adolfo também participou muito. Então,

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esse trabalho não é um trabalho rápido, nós trabalha-mos muitos anos, várias décadas, desde 60.

O festival da Globo era o mais famoso. Ele era um festival tradicionalista no fundo, porque ele ele-gia músicas mais, assim, melódicas, não é? E tinha um nome muito tradicionalista: Primeiro Festival da Música Popular Brasileira, Segundo Festival da Música Popular Brasileira e nós aqui fizemos o Primeiro Festival Áudio Visual de Cataguases.

Então, nós que influenciamos o poema Pro-cesso, no sentido de colocar dentro de um festival de música, uma área para eleger o melhor poema Processo, coisa que nunca houve. Foi a primeira vez e com prêmios grandes. Prêmios muito grandes. Eu consegui do comércio, aqui da prefeitura, um apoio muito grande. Coisa que hoje não conseguiria. Como as coisas mudam. Na época, não sei por quê.

O Primeiro Festival, em 69, foi mais tranquilo. E foi um sucesso local e regional muito grande. Porque não houve nenhum problema, apesar das músicas serem também assim. Elegemos músicas mais para frente, porque o júri... O júri era formado de poetas de vanguarda, músicas de vanguarda. Alguns outros não de vanguarda, mas a maioria era. Então as músi-cas escolhidas foram as músicas mais avançadas, não é? Isso seria natural.

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O primeiro só teve música, não teve poesia. No segundo que nós incrementamos com a poesia do Poema Processo. E trouxemos figuras nacionais. Nacionais. Afonso Romano de Sant’anna, Afonso Ávila, Marina Colassanti, todo mundo no júri. O júri era excelente. Então, e o prêmio era dez milhões. Não é isso? Dez milhões! Dez milhões significava hoje uns trinta mil reais.

Atraiu Capinam, Gilberto Gil, o Terço, todos os melhores músicos e conjuntos do Brasil. E Carlos Imperial. E o pessoal daqui competindo com essas fi-guras. O primeiro lugar ficou com Capinam, o segun-do ficou aqui com Aquiles. O terceiro, não sei quem foi, não estou me lembrando. Não. O segundo ficou com Carlos Moura e o terceiro com Aquiles. Quer di-zer, nós pegamos dois bons lugares. Só o Capinam ganhou o primeiro. E um grupo foi... e aí houve o incidente.

O Grupo Mercado foi impedido pelo DOPS de participar da última noite, porque eles deveriam ganhar. O grupo muito para frente demais. Então, aí que despertou a ira do sistema.

O Mercado é o seguinte. O Mercado queria ga-nhar o Festival. Então, um dos elementos do júri, a gente não sabia, deu zero em todos, olha isso foi uma sacanagem. Deu zero em todos os participantes. Isso

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é uma novidade que estou contando. E deu dez no Grupo Mercado.

Isso aí foi uma coisa errada. Eu não gostei dis-so. Um dos membros do júri, eu não sabia, ele era um dos chefes lá dos amigos do Grupo Mercado. Aí, eu não gostei daquilo, mas fiquei quieto. Não pude fazer nada. Isso prejudicou a nota na noite anterior, eles ficaram em primeiro lugar. Quando chegou a última noite, eu descobri essa malandragem, e tentei coibir, mas não sei se ia conseguir.

Antes da apresentação o DOPS apareceu e im-pediu a entrada deles. Mas não foi por isso, foi por causa da apresentação anterior, que eles jogaram carne na platéia. O texto deles era muito agressivo e muito bom. Muito agressivo, muito bom.

Mas eles não se contentaram com isso, então, o problema da fome eles representaram jogando carne nos esfomeados. Sujaram de sangue várias pessoas. Houve um conflito ali dentro, por causa desse pro-blema. Isso foi o que aconteceu. Independente disso apareceu o DOPS no palco, cara, no palco, para im-pedir a apresentação deles final. Que eles iam ganhar. Porque foi violento o negócio.

O público jovem adorou. Subiu, quase pulou lá na platéia para aplaudir e as pessoas mais idosas detestaram essa apresentação. Que no fundo foi um

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certo exagero, porque eles não fariam isso no Rio. Por que não fizeram isso no Rio? Não fizeram em São Paulo? Vieram fazer aqui. E se fizessem no Rio não conseguiriam chegar ao Palco. Não é?

Mas eles já tinham jogado a carne. O fato forte não foi mostrar a bunda, foi a carne. Carne sangran-do. As senhoras saindo todas com a carne. Na ver-dade eles queriam fazer uma metáfora. Jogar carne para os mendigos do terceiro mundo. Nós, mendigos do terceiro mundo receberíamos a carne na cara. Foi bem bolado? Melhor metáfora do que metáfora física, não existe. Mas aí, não pude fazer o terceiro.

O Ronaldo [Werneck] morava no Rio e eu aqui e a gente tinha um contato muito grande. Nelson Mota. Conseguimos, assim, dizendo que o festival não era igual o da Globo. Era um festival de vanguar-da. Aí, eles ficaram loucos. Capinam, Antonio Adolfo, Tibério Gaspar, todos vieram por causa disso.

Eles gostaram muito. Eles adoraram. Aqui na praça tinha carro da revista Manchete, Cruzeiro e todas as revistas famosas da época. Tinha televisão Globo.

Todos ali na praça. Foi uma coisa... O Jornal do Brasil, no caderno D deu uma capa. Coisa que não dá para coisa nenhuma. Tudo por causa do escân-dalo do Mercado e da abertura que havia no festival.

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Tanto que no ano seguinte a Globo acabou com o festival dela, e criou o festival chamado ABERTURA, imitando a nossa novidade. Entendeu? Só pode ser isso, porque os caras todos estiveram aqui.

[Maria Alcina] ficou em segundo lugar. Como melhor intérprete. Ela ficou conhecida com o festi-val daqui. Isso aí esta na cara. É inegável. Ela ganha de intérprete. Não sei se é no primeiro ou no segun-do. Foram os dois. No primeiro ela fez o ‘Pesadelo Refrigerado’. No segundo [festival] foi com a música do Aquiles. Aquiles participou do primeiro e ficou em terceiro lugar, mas do segundo ficou em segun-do lugar. Foi, tenho certeza. Com Jadir. Com Jadir. Vinicius ganhou o primeiro. No segundo festival, ela ganhou de melhor intérprete. Nos dois acho. Nos dois. Melhor intérprete. E no segundo festival eles fi-caram em segundo lugar.

Depois do festival vem o SLD. Ainda era a nossa segunda fase. A terceira fase foi na faculdade, logo depois veio o Totem. Em 73 que veio o Totem. Aí estava mais consolidado, o grupo estava mais forte. Tinha as experiências dos festivais. Nós não conse-guimos fazer o terceiro, porque também foi uma ma-neira, bom, ficamos por aqui. Porque melhor do que isso, impossível. Tradução: melhor impossível, não dá para fazer. Aí, várias pessoas tentaram fazer fes-

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tival aqui. Total insucesso. Não conseguem. Depois dessa fica difícil.

Só esse que marcou, porque, vários festivais foram feitos aqui depois. Tentando editar. Aí ficou no nível municipal. Muito ruim. Muito ruim mesmo. Às vezes achavam que era só fazer o festival que, era um sucesso. O Ronaldo [Werneck], lá no Rio, se matou. Eu aqui, o Pedro também, todo mundo ajudando. Não foi uma coisa... foi uma coisa da área intelectual que influenciou. O Ronaldo, por exemplo, estava nos bastidores da Globo, o Carlos Sérgio. Estavam todos eles nos bastidores de televisão, de cinema, eles ti-nham grande influência no Rio. Eu morei no Rio nes-sa época.

Eu me mudei para o Rio. Eu fui para o Rio em 71. Logo depois do festival. Eu me projetei bas-tante lá. Eu classifiquei uma música no ABERTURA, da Globo. Tanto que ABERTURA foi depois, que eu classifiquei uma letra minha no ABERTURA. Eu e o Jadir. Com a Maria Alcina cantando. Depois entra-mos na primeira seleção, quando foi na segunda nós perdemos. Na segunda. Era muito intelectualizado mesmo.

Nós partimos do mesmo grupo. Foi. No início foi do mesmo grupo. Porque o Paulo Martins era do Muro. Quando ele criou o cinema, ele fez uma dis-

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sidência. Mas originalmente ele era do Muro. Tem vários poemas dele. Não, o Antonio Jaime entrou depois. Antonio Jaime e Carlos Moura entraram de-pois, aí eles já entraram no CAC, que era o grupo do cinema, do teatro. Eles fizeram ótimas peças aqui de vanguarda.

O movimento aqui começou conosco em 60 e 61 e esse movimento acordou um pouco a cidade. Foi, acordou. O Chico Peixoto começou a relançar livros. Por exemplo, o Chico Peixoto sempre foi bom. Mas ele estava meio parado, esperando alguma coisa. Não sei. Ele se animou, talvez, não sei. Ele se animou mais ainda. Não sei se foi isso, mas que pode ter tido...

Porque a gente entrevistava ele sempre, pro-curava ele muito, insistia muito, fazíamos suplemen-to sobre ele. Quem sabe se foi isso? Aí, ele publicou a Janela, publicou outros livros. Começou a publicar de novo. Porque ele estava parado, lá atrás, na déca-da de 40.

Maiakovski diz que numa forma revolucio-nária, sempre forma revolucionária. Então, fundo e forma têm que ser revolucionários. Eu sempre achei isso. E nós tínhamos um gigante pela frente que era a ditadura. Uma coisa terrível. Eu com 24 anos, pego uma ditadura pela frente, o que você acha? Acabou com a minha juventude. Acabaria com minha juven-

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tude se eu não fizesse nada. Foi uma coisa terrível. O medo que a gente tinha era muito grande também. Medo mesmo, pânico. O Ronaldo foi preso no Rio, o Carlos Sergio. Eu aqui, quase preso, fui ameaçado muitas vezes. Foram atrás de mim no Banco. Isso aí, nós tínhamos esse dragão na nossa frente. E toda década de 60 e 70 é política, você pode ver, na lite-ratura política. É a literatura revolucionária, eu diria, melhor do que política. Porque o inimigo já era algo que estava aí comendo a gente: a ditadura. Não foi brincadeira.

[A ditadura ] Estimulou. É verdade. Estimu-lou. Você vê que depois da liberdade, o Chico Buarque parou, o Caetano está meio parado, esse pessoal está todo parado, está todo mundo meio pa-rado. Porque não tem contra quem lutar. O bom com-bate é esse.

Hoje é difícil definir. Hoje eu entrei na área acadêmica no sentido universitário da palavra e não no sentido literal da palavra. Então, sou obrigado a ter um lado, hoje tenho um lado universitário que é um lado também literário e um lado também literá-rio-histórico. E eu mantenho essas duas frentes.

Não tenho mais o grupo, porque não está na época mais de grupo. Hoje é cada um para si. Mas o tipo de pesquisa, o tipo de interesse é o mesmo, no

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sentido de avançar nas linguagens, resguardar o pas-sado. Sobre o que hoje algumas pessoas viram para mim e falam assim: por que você fica falando sobre a Verde? Não tem noção quem fala isso comigo. Não tem noção. Por que? Se não tiver o passado, você não tem nada. E depois se eu fizesse só o passado, tudo bem. Valia a crítica. Mas não é verdade. Estamos sempre experimentado novas ideias, novas coisas. Tem pessoas acadêmicas que só fazem coisas sobre o passado, coisa que comigo não é isso que acontece.

[Nos festivais as letras] eram mais ligadas a poesia de vanguarda, os que eram de vanguarda. Era ligado ao Poema Processo e Poema Concreto e os que não eram de vanguarda eram ridiculamente ruim, muito ruim mesmo. Outra coisa, o motivo do festi-val... Eu gostaria de ter tido esta pergunta. Por que vocês fizeram o festival?

Porque o poeta chega num momento que ele fica angustiado de não ser lido. Então ele parte para frente do palco. O quê que é a música? É a frente do palco. É uma hora que fazer, espera aí, será possível que ninguém me lê, mas vai me ouvir. Esse é o mo-tivo. Eu acredito que seja esse é o motivo. Você sai lá do fundo e chega na frente, para aí, cara para bater. E agora? Acho que foi isso. É uma vontade de sentir o público ali na tua frente. Só escrever é pouco.

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A primeira [música] que ganhou o segundo festival chamava ‘Gás Paralisante’. O pessoal entrou de máscara de gás na plateia e ahm ahm ahm [respi-ração ofegante] respirando... não podia respirar, a di-tadura não deixava respirar, a música era isso, só isso, tinha pouca letra, os caras ahm ahm ahm [respiração ofegante] poxa, arrebentou. O Capinam arrebentou com essa música. Porque num festival tradicionalis-ta igual o da Globo, isso aí não chegava a nem ser classificado. Mas aqui, ganhou o primeiro lugar. Foi sensacional. O festival daqui foi muito bom. Muito bom, mesmo. Os caras... já imaginou todo mundo de máscara contra gás, contra gás.

Eu posso falar uma frase sim. Tudo deve ser natural, sem preparação. Que aí vai ser legal. Nós não tínhamos a intenção de fazer isso, fomos fazendo. Aí deu nisso, não sei se deu uma coisa boa. Mas que deu alguma coisa, deu.

Entrevistado por Luiz Fernando Leitão, Edyr Lacerda Ravaglia e Paulo Victor no segundo semestre de 2011

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Meu nome é Virgílio da Costa Rios. Nasci dia 15 de julho de 1938, tenho, portanto, 73 anos aqui em Glória. Convivi nos grandes centros, mas sempre retornei às minhas origens, que é aqui, o povoado de Glória de Cataguases, que hoje passou a ser distrito. Mas sempre morando aqui, onde passei a dedicar a minha arte, que é a arte primitiva, a minha pequena floricultura, a dedicação aos livros. E consti-tuí minha família neste local.

V I R G Í N I O R I O S 2

E S C U LTO R ,

I N T E L E C T U A L A U TO D I D ATA

7 3 a n o s

2) Morador no distrito do Glória, luta pela preservação das manifestações da cultura popular em Cataguases.

Foto: Sr. Virgínio Rios, foto e acervo de Ricardo Quinteiro, 8/3/2012

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Na minha concepção, a cidade venceu o ser-tão devido o êxodo rural. Hoje, nos sertões quase não há população mais, porque no contexto migra-tório, a população rural foi para as grandes cidades. Surgiram, assim, os grandes conglomerados e os ser-tões estão desprovidos de população e a sua cultura vai perdendo tudinho nesse contexto, sendo elimina-da pela cultura urbana, que está aí por todo lado.

Digamos aqui do município de Cataguases, não só especificamente aqui em Glória de Cataguases. Em todo município de Cataguases, as nossas culturas de raiz, os nossos costumes estão completamente em desalinho, estão definhando. Por que? Porque a cul-tura urbana vem eliminando isso.

Nós tivemos aqui em Cataguases alguns fol-cloristas excelentes que divulgaram a cultura. [Um deles] foi o Sr. Fábio Rezende, que batia o mineiro-

-pau a questão de cinquenta anos atrás. Ele foi elimi-nado. A dona, aquela senhora, a esposa do doutor Manoel das Neves Peixoto, a Dona Ione Peixoto, foi uma das grandes precursoras aqui do levantamento do folclore da nossa região, inclusive ela deixou uma obra editada sobre esse sentido. E as demais manifes-tações, depois que a Mônica Botelho iniciou aí uma pesquisa sobre isso, houve um levantamento, mas mesmo assim está um tanto ainda meio apagado. É

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preciso que divulgue mais nesse sentido, senão nós estamos fadados a desaparecer por completo.

É, o mineiro-pau, tem aí um grupo de canta-dores de charolas, tem um grupo de rezadores de pé de cruzeiro, esse também está praticamente extinto, porque quase não se reza mais ao pé da cruz, essa parte foi eliminada. Portanto, Cataguases só tem dois grupos folclóricos ultimamente. Tem lá no CTM, com as manifestações folclóricas esporádicas, não é sem-pre que há apresentações.

Porque para manter as tradições folclóricas é preciso que divulgue, que tenha alguma concentra-ção maior e apresentação. Não é só fazer aquela ma-nifestação, aquele fogo de palha, ter uma apresenta-ção ou duas e depois desaparece, isso não resolve. E depois dizem que o santo tem memória curta. [Risos]. E nesse sentido está tendo mesmo.

Aqui chegou a ter na região, na época cafeei-ra, que é porque o país até 1960 foi essencialmente agrícola, depois ele passou a ser urbano. E na cidade de Miraí, que é ligada ao nosso município, existiam vários grupos de congado, mas como lá era muita lavoura cafeeira, os donos da fazenda proibiam os congados de sair para não poder deixar o café deles no meio do mato. Então era proibido sair os grupos de congado no mês de janeiro, que era a época pro-

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pícia para limpar os cafezais. E com isso os grupos de congado foram desaparecendo, foram sendo de-sativados.

Hoje, Miraí não tem manifestação folclórica de espécie alguma, nem [da] migração italiana. Tentei fazer uma festa do imigrante italiano. Não há in-teresse, é um dos municípios que perdeu tudinho. Inclusive, Miraí há setenta anos atrás, tinha uma banda de música totalmente de bambu [que] foi ex-tinta. E com isso nós vamos perdendo aí os nossos costumes. As culturas modernas vão eliminando a cultura popular. A nossa cultura oral é vastíssima, é rica, mas sem divulgação e apresentação está fadada a desaparecer.

Nós teríamos que fazer, em todas as escolas estaduais e municipais, palestras sobre folclore. Ter uma oficina para a fabricação de objeto folclórico. Eu já propus uma vez, eu ia e ensinava a fazer, e as professoras também dão estímulo, por ter muito ma-terial folclórico, por ter uma biblioteca temática em Cataguases que tem um vastíssimo material folclóri-co, tem tudo embutido lá, tudo sobre qualquer ori-gem folclórica. Está tudo embutido lá.

Cataguases é tida como a cidade moderna. Por aqui passaram homens ilustres que deixaram sua marca, não só na área cultural, como na área arqui-

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tetônica e tudo em geral. A família Peixoto, não só foram empreendedores industriais, como eles inves-tiram muito na cultura e continuam investindo.

Temos aí agora para frente desse empreendi-mento o empresário Marcelo Peixoto, que muito tem empenhado no resgate da nossa cultura, não só con-temporânea, como a tradicional. A Fundação Ormeo Junqueira também, através do seu CTM [Centro de Tradições Mineiras], também tem empenhado. Mas ainda está bastante aquém do desejado, porque pre-cisa de mais divulgação, como existiu no ano de 2004, 2005. A divulgação foi importante e realização, por-que não é só divulgar, é preciso realização também, apresentação, porque só na divulgação, fica só no vi-sual. É preciso incentivar, botar ação na coisa, botar a música no soneto, senão não vai.

Chegar, procurar os grupos folclóricos, fazer um levantamento da região. Manda lá um pesqui-sador pesquisar, fazer um levantamento, ver o que precisa, senão não adianta. Porque há grupos folcló-ricos por aqui que não tem nem vestimenta para se apresentar. O grupo congado aqui de Santa Maria está desaparecendo, não tem nem vestimenta, nem instrumento mais não tem, entendeu? Eles não fa-zem a reunião, eles têm que fazer uma reunião uma vez por mês, caso contrário é o que está acontecen-

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do aí, está desaparecendo, está desativando por completo.

A parte cultural de resgate das nossas tradi-ções eu comecei com Mônica Botelho, pela Fundação Ormeo Junqueira Botelho, no resgate dos nossos cru-zeiros. Lancei esse projeto pela Secretaria de Cultura do Estado, foi aprovado e nós conseguimos erguer dez cruzeiros na região e outros municípios, onde a empresa mandava e manda só energia elétrica.

O cruzeiro é importante porque é o símbolo do cristianismo. É o símbolo maior do cristianismo e sobre ele Cristo foi crucificado. Comumente os Bandeirantes, ao penetrar pelos nossos sertões, er-guiam o cruzeiro em sinal de gratidão à Santa Cruz, por estarem salvos e vivos. E daquele cruzeiro par-tia o pequeno povoado, que hoje tornaram os nossos grandes municípios. Aí, tudo originou de uma cruz, debaixo de uma cruz.

Em todos os municípios nossos, assim como todo lugarejos, era obrigado a ter o nome de um santo, como permanece aí até hoje: Santa Rita de Cataguases, Santo Antônio de Miraí. E por falar em Santo Antônio do Miraí, o Santo Antônio tem pos-se, terreno em Miraí até hoje. Tem terrenos baldios lá que a prefeitura dá a escritura em nome de Santo Antônio. É Santo Antônio do Miraí, hoje chama Miraí,

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antigamente Miraízinho, que é uma cidade bucólica, pacata, de gente muito boa, e tem muita cultura tam-bém em Miraí.

E sobre, agora, minha arte, eu até então, até os quarenta anos, eu não mexia com arte, não. Lê, eu sempre li desde pequeno. A minha vó, eu com dez anos, ela botou um Camões na minha mão e eu fi-quei impressionado. Eu digo: ah, eu não sei o que é Netuno, esses deuses da mitologia grego-romana, minha vó, eu não sei o que é que é isso. Mas você vai aprender o que é isso. Com dez anos, como é que eu ia assimilar uma cultura de Camões?

Eu já comecei a gostar da leitura desde os dez anos e fui adquirindo um acervo vastíssimo. E fui obrigado a chamar o Marcelo Peixoto para fun-darmos a biblioteca em Cataguases. A Biblioteca Temática do Folclore Virgínio Rios, que funciona lá no escritório da Companhia Industrial e o acervo está só aumentando. Eu vou mandar mais livro para lá agora esta semana, porque eu tenho só recebido li-vros e esta biblioteca é personalidade pública para pesquisa, para leitura, para quem quiser ir lá passar umas horas lá. E tem a biblioteca aqui do grupo esco-lar do Glória, que também sou patrono; sou patrono de duas bibliotecas a daqui e a de Cataguases e ten-tei criar uma outra lá em Guidoval, mas não houve

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apoio aí eu deixei, mas eu gosto de mexer com livro e consigo muito livro através da Biblioteca Nacional, que faz grandes doações.

A minha arte é arte primitiva, ou arte naif. É aquela arte que não tem escola nenhuma, é a arte que parte da espontaneidade do artista, sendo as-sim, eu faço uma arte decorativa e utilitária e de boa aceitação. Só que na nossa região [Risos] as exposi-ções aqui são esporadicamente, muito distanciadas umas das outras, aí fica difícil viver só de arte, mas quem gosta de fazer põe a arte acima de qualquer dificuldade.

Do congo e dos rezadores, “rezadeiros”. Eu não poderia deixar de mencionar o nosso grande fol-clorista da região, que por mim ficou cognominado como o “Patativa de Cataguarino”. É o senhor Zito Justino, que é um dos elementos ainda que tem um documentário muito vasto do nosso folclore, recita muito bem, tem uma boa dicção, é um elemento que cultiva o nosso folclore. Ele é o único que temos na região ainda, que está mantendo, os demais já vão desaparecendo. E precisamos que façam um docu-mentário com ele porque ele ainda cultiva muito o ritmo do calango, que é um ritmo que está desapare-cendo, que é um calango mineiro. Há pouco tempo, uma professora de Presidente Prudente me pergun-

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tou se calango, ela não sabia que calango era música não, que eles dão nome de calango.

O calango é um ritmo que veio de Angola, veio da África trazido pelos nossos escravos, e, a princípio se chamava de batuque. Mas a igreja católica consi-derou aquilo dança obscena, porque tinha que dar umbigada, então não podia. Aí eles fizeram uma va-riação e passaram para o calango e desse calango sur-giu o calango mineiro. O samba não tem vários tipos de samba? O calango mineiro também tem vários ritmos. Tem o calango tango, o calango mineiro, tem o calango sincopado, o calango ligeiro, assim como tem o samba, não é?

Mas esse ritmo está desaparecendo, porque ele é um ritmo essencialmente rural e o meio rural não tem. Antigamente no meio rural, nas vendas de beira de estrada, aos sábados, tinham dez, quinze cavaquinhos e oito, seis sanfonas oito baixos tocan-do e fazendo farra ali. Mas hoje não tem nenhum, porque o homem rural desapareceu, não há homem rural mais não, não existe isso mais não. E com isso, os costumes, as nossas tradições, as nossas culturas de raiz estão praticamente desaparecendo da nossa região.

Uma comunidade, ou um estado, ou um pa-ís que perde a sua identidade cultural está fadado a

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viver no anonimato. É o que está acontecendo aqui. Não há interesse, o interesse é muito vago. Se vai fa-zer uma festa aí que leva cultura de raiz, chama isso de coisa ultrapassada, de cafonice. Não há interesse, mas não é porque o jovem não gosta, não. É porque não tem incentivo, demonstração cultural para eles. E com isso, as outras culturas urbanas estão elimi-nando toda essa cultura nossa, do nativismo. Não é como no Rio Grande do Sul, no norte do país, porque lá ainda cultiva, lá tem patrocínio, tem quem ajuda. Aqui a ajuda é muito rara, muito esporádica.

Bom, eu gostaria de dar mais palestras em Cataguases sobre o Guido Tomás Marlière. Eu es-tou na cola da saga do Guido há mais de vinte anos. Tenho um vasto documentário sobre ele, está lá na nossa biblioteca temática. Há muitas controvérsias sobre a vinda do Guido para cá, sobre seu trajeto na região.

Eu estive recentemente na cidade de Marliéria, [nome] que foi dado em homenagem ao Guido Marlière. Dali ele foi até Espírito Santo, naquela re-gião todinha do Vale do Aço, onde tem um parque florestal, o maior bioma da Mata Atlântica ainda in-tacto está naquela região lá, são 35 mil hectares. É uma região linda. E o Guido [Marliére] andou por aquela região toda fazendo aldeamento. Tem até

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um lugar lá que chama Pokrane, em homenagem ao Guido, Guido Pokrane é um índio que o Guido civi-lizou e tanto.

Mas há historiadores, um lá teve quase que po-lêmica comigo, dizendo que o Guido foi extermina-dor de índio. Eu digo, o Guido não foi exterminador de índio. Como é que ele ia exterminar índio? Quem exterminava o índio era o colonizador, não o Guido, porque o Guido fazia o aldeamento. Eu sou contra o aldeamento, porque tirava a cultura indígena. O ín-dio está acostumado a viver livre no campo, a caçar, nadar, pescar e ele ficava ali, vamos dizer, naquele curral humano. Tinha lá, dizem que tinha lá as ativi-dades, mas não era o suficiente, o índio quer liberda-de, quer caçar, quer pescar.

Então esse camarada veio dizendo que ele foi exterminador de índio na região. Eu falei, que bestei-ra é essa, meu camarada? Que é isso? O Guido jamais fez isso. Quem exterminou foram os colonizado-res, porque eles tinham sede por terra para fazer os seus plantios, derrubar florestas, como aconteceu lá. Tem uma ponte lá que chama Ponte Queimada. Por que Ponte Queimada? Porque do lado de cá ficava o Guido com seus defensores e do outro lado ficavam os rebeldes com os colonizadores. Acabaram incen-diando a ponte. E Cataguases precisa conhecer me-

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lhor a biografia do Guido Marlière, porque a biogra-fia dele é muito vasta, mas há muitas controvérsias.

A minha escolaridade é baixa, porque no tem-po que eu estudava, tinha que fazer a quarta série, depois fazer admissão, um ano. Eu fiz admissão em Cataguases com a famosa professora Dona Maria Machado. E depois fazia admissão para o ginásio, en-trava, eram quatro anos no ginásio para depois você fazer o científico. Eu só fui até o terceiro ano porque eu era muito incompatível com meus mestres. Por quê? No terceiro mês, o professor de Inglês, eu encos-tei ele na parede. O de Geografia borrava de medo de mim, porque eu sabia mais do que ele. O de História então nem se falava. Então vinha a incompatibilida-de, eles perguntavam: quem é o professor, quem é o senhor? É o senhor, mas eu estou achando a incom-petência aqui meio generalizada. Aí eles me expulsa-ram. Então eu não pude dar continuidade, não pude. E, com isso eu parei (risos) no terceiro ano ginasial, que é o meu grau de escolaridade.

Mas sempre tive leitura. Depois fui ser repre-sentante comercial no Rio, viajei muito para o Oeste de Minas. Mas sempre lia, sempre acompanhei os jor-nais do Rio, as boas revistas, sempre leitura, porque o que desenvolve o intelecto do ser humano é a boa lei-tura. Você lendo você desenvolve o seu intelecto, mas

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não falo ler a leitura relâmpago, mas você analisando as coisas como é.

Eu leio tudo, sobre tudo. Agora, é preciso que a gente leia os bons cronistas, para desenvolver o in-telecto, não é? E escreva também, não é só ler tam-bém, não. Tem que escrever também, não é? Olhar a regência verbal, a concordância gramatical, que é muito difícil. A regência verbal e a concordância gra-matical não são para o “bico” de qualquer um não, porque não são mesmo. É preciso então isso, não é escrever um Português muito erudito, não. Um Português que qualquer cidadão assimila, até no va-so sanitário, não tem importância, mas um Português correto, não tem importância, não é? Nós temos bons autores que escreve em Português, o senhor Frei Beto mesmo é excelente. Escreve um Português correto e simples que qualquer um assimila.

Tem que haver essas mudanças, porque desde que o mundo é mundo as evoluções sempre existi-ram e continuaram existindo. A Internet está a todo vapor aí e eu não sou contra a Internet não, é preciso que haja. Agora, eu acho que a juventude não deve é ficar muito colado naquilo até as duas, três horas da manhã, porque ela tem seu lado negativo também. Ela ajuda muitas coisas, ela está aí para esses grandes serviços, o livro virtual está aí a todo vapor aí, mas só

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que tem que o livro virtual você não assimila quais as culturas dele, que é a leitura boa, que você pega o livro, você põe uma folha de papel ao lado, a caneta, aí o que você não entende você anota. Em uma leitu-ra virtual você não tem esse tempo, você quer aquilo ali rapidinho, não é? Você não faz anotação nenhuma.

Eu quando estou lendo um termo que não en-tendo, eu anoto ali, depois vou consultar o Aurélio ou outro dicionarista para ver o que é e nessa virtual aí o negócio está meio... Mas diz que o livro virtual vai suplantar o livro escrito. Eu acho que não, não vai não! Esse negócio de Internet envolve muita grana e quando envolve muita grana, o capitalismo divulga muita coisa a favor dele, não é? Isso chama sagaci-dade especulativa do mundo econômico, do mundo moderno.

Aos jovens de toda a nossa rede de ensino de Cataguases, o ano passado eu dei poucas palestras, mas esse ano eu espero que darei mais palestras so-bre o nosso folclore, nossas culturas de raiz, nossos costumes, nosso modo de ser e, principalmente, so-bre o Guido Marlière, que nós temos que fazer um trabalho importante nele esse ano. Nós temos em Cataguases o nosso amigo Washington Magalhães, que é um grande conhecedor da obra do Guido Marlière. Eu vou convidá-lo para empenhar jun-

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to comigo nessa empreitada, para nós divulgarmos junto aos grupos escolares de Cataguases e a rede de ensino em geral. Para nós fazermos esse resgate aqui e mostrar a Cataguases também quem foram os homens que construíram Cataguases, tanto na área cultural, como na área empresarial e na área de di-vulgação, está bom?

Entrevistado por Margareth Cordeiro Franklin em 1/12/2011

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Nasci em Cataguases, sou catagua-sense. Naquela rua que hoje considera rua do Pronto Cordis, porém, Rua Gama Cerqueira, na transversal que dá acesso hoje à Guido Marliére. Naquela rua que dá hoje acesso ao Chica [Instituto Francisca de Souza Peixoto]. Nasci ali.

A minha infância foi uma infância simples. A lembrança que eu tenho é que foi com dificuldade, muita dificuldade. Porém, ao lado dos meus pais, eu

E L I S A N U N E S 3

C A N TO R A E S A M B I S TA

6 4 a n o s

3) Elisa Nunes foi presença ilustre nos carnavais de Cataguases

Foto: Elisa Nunes, Foto Baião, s/d, acervo Elisa Nunes

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me sentia feliz, não é isso? Meus pais, meu irmão, que passou dessa para melhor, eu me sentia feliz.

Estudei até quarta série, no Guido Marlière. Não tinha, não dava chance, era difícil, o estudo era difícil. Você tinha que fazer o quarto ano primário, depois, trabalhar.

Eu trabalhei com quatorze anos, na fábrica velha. Minha função era penteadeirista. [Pausa] Ou fiandeira, não é? Nesta fábrica eu trabalhei um ano. Saí. Aos quinze eu fui para a Manufatora, de onde eu saí em mil novecentos e setenta e um, ou dois, por aí.

Depois, eu tive a felicidade, eu julgo felicidade, e fui para o Rio. Lá no Rio, eu trabalhei nas Casas da Banha. Primeiro trabalhei de doméstica, depois, fui para as Casas da Banha. Trabalhei ali naquele mor-ro São Carlos. Depois, voltei para Cataguases, sei lá, minha mãe começou a ficar muito pra baixo, veio a doença, eu tive que voltar, aí [emoção].

Eu peguei muito pouco o Mimosas Camélias em desfile. Porque era menina e não deixavam partici-par. Mas o pouco que eu conheci e vi - meu pai muito dinâmico, amava mesmo o carnaval como o futebol

- Operário doente e no Rio, Flamengo. [Risos]. E so-mos todos da família, Graças a Deus [erguendo às mãos aos céus]. E, depois, o que eu lembro é de que

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eu saí uma vez no carro alegórico, um carro muito bonito. Foi a primeira e última vez.

Depois aí veio a decadência do meu pai e em termos de clube não tinha como custear e as coisas foram mudando, não é? Foram mudando, chegando outras escolas. [Estava] com uns cinco anos, cinco anos de idade, porque com oito eu me lembro dele estar com um salão de baile, que antigamente dava esse nome. Clube eram os chiques, não é? É ali onde hoje é perto da Vila Tâmega, em frente à fábrica ve-lha. E dali ele parou. Aí acabou. Foi a falência mesmo.

Eu presenciava muitos movimentos dentro de casa, onde nós morávamos ali nessa tal rua que eu falei com vocês. A animação em fazer os bichos, preencher os bichos para colocar nos carros. As fan-tasias, que a minha mãe era de frente - minha mãe cantava muito, tinha uma ótima voz, então era de frente. Minha mãe, minha tia, minha tia Rita, mas não tenho assim muita lembrança dele. O papai era um homem muito fechado, em casa muito fechado. Foi um homem, um pai muito bom, mas muito fe-chado. Lá fora, não. Lá fora o Emílio, porém, também reservado, sempre foi. Então, não havia comentários assim, só naquilo que eu lembro ver, aquele entusias-mo. Entram pessoas, saem pessoas, saindo pessoas levando fantasias. Quem mais que o papai tinha ali

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na frente com ele? Eram muitas pessoas, fica difícil para mim [pequena pausa] lembrar agora.

As mulheres. As crianças só entravam, no caso, acompanhadas pelos [pais], por um responsável. E de repente, o Juizado de Menores era muito competente, ficava mesmo em cima. Ia para os clubes, entrava e a gente tinha que correr. As mães corriam com a gen-te pro banheiro, porque não podia, não era dada es-sa liberdade à criança. Para isso, tinha as matinês. A noite não podia. E as mulheres, sei lá, eram diferentes de hoje. As mulheres, muito bonitas, umas mulheres que viviam para aquilo de uma forma muito especial, muito especial mesmo. Eu tenho aí uma pessoa que poderia até falar se eu a encontrasse. É a Elaine - a Elaine, a tia Idê, sabe? Eu gostaria até que vocês pu-dessem – se pudessem – entrevistá-la. Eu posso dar o endereço. A tia Idê é logo em frente ao Pronto Cordis, naquela rua Gama Cerqueira. E a Elaine, ela é tia do

“Capacete”. São as pessoas que eu lembro que restam assim, que podem dar dados melhores. A respeito do papai eu fico meio assim, o tempo.

Papai morreu em 89. Isso mesmo, 1989. Eu me lembro que teve uma festa muito bonita na praça e onde veio até o Grupo Visor, que a Lurdinha trou-xe. As festas maravilhosas que eles faziam, a Cultura fazia. Ele morreu num sábado, em oitenta e oito foi

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uma festa muito bonita da escravatura, lembrando e homenageando. E logo no outro ano ele faleceu [emoção].

Quando menina eu comecei a cantar com oito anos de idade. Eu comecei ali na Rádio Cataguases, até onde nessa casa que o Juca, descendo ali perto do Boticário, do Juca, então a Rádio Cataguases era ali.

E tinha as brincadeiras domingueiras. A gente ia, ganhava bala, ganhava pó de café, aquelas coisas, não é? E era uma turma muito boa. Dessas meninas a que ficou mesmo cantando fui eu, sabe? Tinha os rapazes.

É, eu estava com oito anos. Vamos fazer uma continha aí. Mil novecentos e cinquenta e poucos. É, porque depois eu me lembro que em sessenta eu fui para a Sede São Vicente de Paula. Então, tinha aque-le programa que era um show, onde participava era eu, Sandra Iara, a Zilda, uma infinidade, a Laura, irmã da Carminha. A Carminha que cantava com o Floriano. E era um coisa muito bonita, a gente ia aos domingos.

Não era concurso. Ia para fazer a participação, para abrilhantar aquela manhã e acabou. Não tinha concurso, não tinha nada, não. Os prêmios eram só de participação. Participou ganhava. Muita coisa pa-ra criança mesmo. E ali eu fui fazendo, fui fazendo,

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fui fazendo, gostava. As músicas, a minha influência na época era Maysa, tinha [pausa] a Ângela Maria eu gostava, mas não cantava música de Ângela Maria. Era muito assim, Nora Ney, é o timbre de voz, não é? Tinha uma outra também que cantava grosso, aquela coisa bonita. Ai meu Deus, não estou lembrando, gos-tava muito do Miltinho e Altemar Dutra e assim vai.

Ninguém me influenciou aqui, não. Só lá fora mesmo, sabe. Preferia um estilo muito romântico, de-pois a gente vai chegar o porquê que eu caí para o samba. [Risos] Porque eu fui fazer o samba. Só canto. Eu gosto muito de uma percussão, uma percussão le-ve. Eu sou apaixonada para aprender a tumbadora. Esse instrumento para mim é a percussão mais linda que tem. Mas aí, de vez em quando, eu pego um afo-xézinho, eu gosto de fazer um preenchimentozinho. Mas eu gosto mesmo é de cantar. Eu gosto de cantar e estou sentindo falta.

De Cataguases eu saí bem depois. Depois de Elisa Nunes e os Batuqueiros. Isso veio depois que eu voltei do Rio. Numa brincadeira lá em casa, eu não querendo voltar para a fábrica: eu não quero mais trabalhar em fábrica. O Tote numa noite parou em ca-sa, que não parava, o Tote pega um, como é que fala, não tinha surdo não, pegou uma lata, não sei, e co-meçou a fazer uma batucada. E, honra seja feita, não

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desmerecendo aos demais, não mesmo, mas eu tinha uma confiança muito grande no meu irmão na per-cussão. Um surdista muito bom, muito bom.

E dali, uma brincadeira, uma brincadeira, nós começamos. Uma bela tarde bate lá em casa o Tito Rodrigues, já sabendo que eu fazia essas músicas. Falavam que era seresta, mas não era bem seresta: era Música Popular Brasileira. Aí o Tito chegou, até acompanhado por uma outra pessoa, que eu não sei, convidando se eu não queria fazer uma participação, um trabalho lá no Esteirão. Na época eu não sei bem se era o Amauri. Era o Amauri. Então, nós fomos com a cara e a coragem. O Tote foi lá, vamos juntar, vamos ver se a gente organiza para a gente fazer, já que ele veio. Aí fomos correr atrás de músico.

Como Cataguases é muito difícil, músico aqui é uma coisa de doido para você encontrar, eu não sei o porquê. Aí nós fomos, pegamos pessoas humildes, co-mo o tio Namir - Namir Modesto no violão, hoje já fa-lecido; o José Osmar, no pandeiro; o Tote, no surdo; o Carlinhos Tiririca, no tamborim; o irmão do Carlinhos, no afoxé. Ali formamos, não é? Aí eu comecei. Clara Nunes. Clara, eu tive uma influência muito grande, sabe? E calhava com o meu timbre de voz. Aí, depois foram chegando Martinho da Vila, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, sambas muito bonitos.

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Eu valorizo muito a letra, a melodia. Sou mui-to enjoada, eu sei que eu sou enjoada para música, in-felizmente, ou felizmente eu sou enjoada. Não é que eu seja melhor, jamais, mas eu gosto, quando eu pego um trabalho é para fazer bem feito, sabe. E gosto de escolher meu repertório. E daí foi, foi, nós fizemos ótimas apresentações, foi o único conjunto aqui, den-tro de Cataguases.

Na época, por exemplo, o samba não era va-lorizado, tinha uma discriminação muito grande. Aquele negócio de [apontando] da pele, não é? E samba era de morro, como no Rio, aquelas coisas de antigamente. Então, nós íamos muito, fizemos uma temporada muito boa em Ubá, grande temporada. Participamos e antes disso, também, tem um outro aí, também do Spala, é história grande.

Então, o Elisa Nunes foi, foi, nós fomos, che-gando a ir também no Sírio Libanês. Fomos ao Sírio Libanês através da Niasi, o Juber, aquele cabeleireiro. Então Cataguases tinha que levar uma representação musical. Então, ele nos procurou, nós nos sentimos muito honrados, fomos muito recebidos, fizemos nosso trabalho muito bem feito.

E, antes do Elisa Nunes, eu participei aos meus dezesseis anos assim, quinze, quatorze, por aí, com o Spala. Foram quatro anos com o Spala, um grande

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conjunto dentro de Cataguases. Nós levamos o no-me de Cataguases nessas cidades, principalmente Barbacena, nos bailes de Cadetes, de debutantes, bailes ótimos, maravilhosos. Foi uma época de ouro, uma época que eu vivi com muita intensidade, com muito brilho na minha vida.

A formação do Spala, em relação à banda. Então, vamos pegar Ivan, no teclado, o Zi contra-baixo, na bateria diversificou muito, tinha o Olnei, não é? O Olnei participou, o Morel, teve o Gama, o Didi Dalforne era no sax, muito bom, o Reinaldo Cruz no pistom, era um show e eu no vocal, sozinha. Intercalava o instrumental com o vocal e aí nós fazía-mos acontecer.

E depois, o que tem depois mais em termos de música? Terminei, foi com a Elisa Nunes e os Batuqueiros mesmo, nós ficamos parados. O Tote foi embora para o Rio. Aí já não estou me lembrando muito não, eu não tenho nada arquivado. É a pre-ocupação e a facilidade que hoje tem em carregar uma máquina fotográfica. Não tinha isso. Às vezes alguém tirava e não procurava a gente para fazer o agrado dando as fotografias.

Era música no estilo assim, romântica. Vamos botar uma Gal, que foram aparecendo depois com muita força, uma Bethânia que eu gosto, de uma

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Nana Caymmi e uma Maysa, é uma Simone que pre-enche demais o meu repertório que eu gosto e depois, depois, passando o tempo eu tive o prazer de tocar com o Agenor.

Porque lá ficou, depois que o Elisa Nunes aca-bou. Não cantei mais, não teve a não ser assim free-lancer com o Nova Visão, uma coisinha muito rápi-da, não é? Não teve nada com uma frequência. Mas, depois, como eu vou lembrar aqui como eu comecei com o Agenor. Fizemos muita coisa boa, inclusive a última que nós fizemos... um período no Azulão. Fizemos um período muito bom, com uma musicali-dade muito boa. Hoje, parou.

O samba, para mim, tem que ter surdo, cava-co e repique, tudo do samba continua no samba, só acrescentaram. Houve um acréscimo ali, uma tum-badora, fico vendo o show desse menino aí, do Jorge Aragão, uma banda que é uma coisa de doido, mas não dispensando a cozinha, surdo, de jeito nenhum, uma bateria ela dá também um preenchimento muito bom. Então não teve alteração assim, vamos dizer de tirar e acrescentar. O que era, ficou e foi acrescentando.

Uma vez sim [sofreu com o preconceito racial] no Clube Social. Não vou dizer o nome da pessoa. Não foi falado para mim, mas foi vazado. A respeito

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da cor, mas como eu chegava ali, não para usufruir do clube, eu chegava para trabalhar, isso para mim não quis dizer nada. Em Leopoldina tinha o Cotubas ou ainda tem. O Cotubas não entrava branco, o outro lá não deixava negro. Essas coisas de cabeça muito pequena, sabe? Mas, graças a Deus foi só isto, não ti-ve mais. Sempre fui muito respeitada. Respeito mui-to o meu público, gosto demais, amo de paixão. E quando fala em Elisa Nunes vai apresentar, eu tenho o meu público, graças a Deus e isso é um louvor.

Depois, veio o Sambulante. Aí teve o Sambu-lante, a glória do carnaval dentro dessa década que eu nem sei qual foi. Foi de oitenta, porque quan-do o Sambulante estreou, eu não participei. Depois que vieram me convidar. Aí foi tudo lindo. E quan-tos anos foi o Sambulante? Uma puxada de tempo. Carnavais lindos, lindos, lindos. O público até hoje clama, pede, mas, eu não sei o que acontece na minha cidade, na nossa cidade. Não fazem mais acontecer. O Sambulante foi um marco, então, todos carnavais que eu fiz foram sucesso, glória, então não tem espe-cificamente aquele ano.

Cantar para escola de samba? Uma só vez me parece. Nesse ano me chamaram, eu fui convidada. Mas naquele tempo, foi só uma vez na Granjaria. Na Flor do Meu Bairro sim, me parece, está existindo uma

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dúvida aqui, porém, eu nunca gostei, porque eu sem-pre digo: - Música não se brinca! Você quando pega, quando chegam aqui: - Elisa, você pode cantar um samba enredo nosso, já chegam assim “pá”. E não é assim, nem o profissional...

Tem que ter o tempo, para você tentar trazê-la para dentro de si, familiarizar, vamos dizer assim, pegar intimidade. É letra, é melodia, a maneira de in-terpretação, tudo isso pega. Eu nunca gostei de can-tar dessa forma: toma aqui e você vai cantar. É difícil. Não sai certo e vem a preocupação. Mas deu certo lá, não foi aquilo. Mas quando eu chegava lá em cima do carro, não. Porque os sambas enredo eu já estava preparada para eles, ouvindo sempre, sempre, sem-pre e dava o recado, graças a Deus.

O Floriano participou também do Elisa Nunes e os Batuqueiros, o Floriano, irmão da Maria Alcina. Nunca [cantamos], apesar de sermos amigas. A Maria trabalhou na Fábrica Velha. Nossa idade bate.

Uma deslanchou pela coragem. A outra parou no tempo e ficou pelo medo. Ela enfrentou a família, no caso o pai dela, meteu a cara e foi embora. Agora eu não tive coragem.

Portanto quem me acompanhava até o ponto que ela chegou para partir foi a minha mãe. Eu can-tando e ela sentadinha nos palcos. Podia sim: você

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pode dançar, você pode cantar, mas a sua mãe tem que estar perto. Ordem do pai. E ela também gostava, muito vaidosa, mamãe gostava. Para ela era um pra-zer. Mamãe cantava. Nos carnavais era aquela coisa, nos cordões, no caso o Mimosas Camélias. Ela tinha uma voz muito bonita, voz muito bonita, ela já esta-va só ali, naquela linha de frente: Mimosas Camélias, do Rancho. Cantavam as marchinhas do Rio de Janeiro, Braguinha. Cantavam Estrela Dalva, Dalva de Oliveira, e assim muitas outras que não me lembro. E era dividido em alas. Eram três alas. De mulheres e o carro alegórico vinha atrás.

Quando tinha condição até três [carros], coisa muito bonita. Era o pandeiro na marcação, todas elas com um pandeiro, o ritmo na mão. Ele como maes-tro regente, o papai, vinha trazendo... Isso na ala das mulheres. Aí nos fundos ficavam sustentando os me-tais, surdo para fazer a marcação juntamente com o pandeiro. Não tinha grande coisa, não. Um tarolzi-nho, até era o Sudário, para dar apoio e a sustentação na firmeza do pandeiro e ficar bonito. E o carro ale-górico vinha no final.

Subia aquela rua, passava pela Fábrica Velha. Saía da antiga leiteria. Saía dali e vinha na Henrique Felipe, naquele largo ali, já estava formando para subir. Subia pelo calçadão e dava a volta na Praça

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Rui Barbosa e descia para ir para o Clube Mimosas Camélias. Hoje, Caruso. Na churrascaria do Abel Caruso. Ali era o Mimosas Camélias, era um salão.

Uma festa popular, não havia discriminação não, isso aí não. Inclusive o Ataulfo Alves veio, já par-ticipou. Ele veio uma vez. Tinha o baile da Primavera, das flores, então, era caracterizado. Tinha o baile da festa Junina, caracterizado, todos. A exigência era as-sim. Cada época, reveillon e carnaval. Ele veio numa festa da Primavera e cantou: Ataulfo Alves e suas Pastoras. Não tem registro, está na memória. Quem viu, viu, quem não viu não vê mais.

Mamãe chamava Doratildes, apelidada por Fia. [O pai] Emílio Souza. No Operário era paixão pura. Eu não freqüentava campo, nunca freqüentava. Eu não entendo nada de futebol, mas sou Flamengo. Futebol mesmo, só sei o que me contam. Que ele era muito severo, na parte ali. Era o técnico e fazia acontecer e sempre querido, sempre respeitado. E fazia também respeitar e dava muitas coisas boas às pessoas. O papai deu muitas coisas boas às pessoas. Humildade, muito humilde. Severo.

Eles não tinham religião. Papai, então, não ti-nha mesmo. Mamãe gostava do kardecismo, não é? Como eu gosto do kardecismo. Mas não freqüentá-vamos, não. Gostávamos, mamãe era um pouco re-

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servada nessa parte, sabe, esse detalhe aí eu não vou entrar muito não, porque é outra coisa.

Fiz o Baile do Havaí, no Meca. Inteirou o quar-to ano. Muito bom mesmo, isso aí dá até uma vai-dade na gente. Chegar lá onde os jovens... Aí chega uma mulher para cantar o samba, é difícil, com uma banda como a Salamandra. Fizemos a abertura, de-pois, o pessoal queria mais a gente.

Porque carnaval, para mim é carnaval. Não tem que entrar e fazer outros tipos musicais. E estão tentando resgatar, não é? Marchas, sambas enredo. Você vê o samba enredo caiu demais, o samba enredo caiu demais. Não se faz um samba enredo que você ouve e opa! Que delícia! E entra na cabeça, não é, no calor do público. É difícil. E nós superamos. Então a turma é Pingolim, é o Beto, tem o Antônio na bateria. O Antônio que é até professor, o Antônio Luquini e uma infinidade de gente boa. Eles montam essa ban-da, vamos ver, eu peço a Deus, se eu tiver com saú-de, esse ano, o ano que vem aliás, eu espero fechar. Aí eu vou para fechar o carnaval. Aí, não quero mais, não. Não quero mais. Carnaval, não, carnaval, não. Oh, gente eu vou fazer sessenta e cinco. Chega, chega, chega [Risos].

Eu não vivo para música, eu tenho outros afa-zeres. Então, estressa, estressa demais. Eu presto ser-

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viço aqui, presto serviço ali. A Elisa não vive para a música. Quem me dera. Aí ninguém ia me aguentar não. [Risos] Ter tempo para pesquisar, fazer bons re-pertórios, eu não tenho esse tempo. E o ano que vem se for convidada, eu vou, mas com aquele propósi-to: meu público, quem viu, viu. Quem não viu, não vê mais.

A época [que o samba enredo começou a apare-cer na cidade] eu não lembro, não. Mas só sei que ele chegou agradando muito. O Bum Bum Pati Bumbum4 foi nessa época. Antes já tocava músicas, não o enre-do. Mas tinha o Oswaldo Nunes, por exemplo, “Olha o bloco do sujo”, esse tipo de samba que denomina lá no Rio “samba de quadra”. E assim foi. Depois as escolas [...] foi a divulgação através da televisão, foi chegando, os sambas enredo com força. Sambas bo-nitos e a marcação de um samba é linda. Hoje, todo mundo samba, antigamente não sambava. Só se via o passista no Rio de Janeiro, hoje não, qualquer um samba. Através de uma escola, de uma aula de co-reografia, que eu não gosto. Coreografia para mim é outra coisa, no samba eu não gosto. Gosto de ver no pé, no pé.

4) Bum Bum Pati Bumbum Prurugundum é o samba enredo da Escola de Samba Império Serrano, 1982. Composição: Beto Sem Braço e Aluísio

Machado

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E com os sambas enredo hoje está difícil vo-cê ver uma pessoa sambar aquelas horas que é pre-ciso fazer o samba no pé. Ah, menino são tantos. [Cantarolando] “Hoje eu vou tomar um porre”5, “Estrela de luz que me conduz”6. Coisa linda a letra. Gosto da Mangueira. Flamengo e Mangueira, é interessante, não é? Mas, as outras são de grande valor, todas. Mas a Mangueira é aquele negócio do coração. A primeira vez que eu vi a Mangueira entrando na avenida foi um escândalo para mim, chorei, no Rio de Janeiro, eu era uma mocinha.

Eu vejo o carioca, o carioca tem um espíri-to muito bom, sabe, e tem muita cultura. Eu acho o carioca culto e ele passa para a gente uma vida de alegria. A carioca, o nato, o da gema. Então ali eu fui. Meu padrinho, muito vaidoso, me levava aos bailes. Que ele trabalhava no banco Credireal, então lá tinha muitos bailes maravilhosos e ali eu fui indo, me entusiasmei. E veio essa menina, a Clara, a Clara Nunes. E eu cheguei com essa influência daquilo que eu via. Daqueles sambas que eu ia, nas quadras. Fui

5) De Bar em Bar, Didi um poeta é samba enredo da Escola de Samba União da Ilha do Governador, 1991. Composição: não identificada.6) Sonhar não custa nada é samba enredo da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, 1992. Composição: Paulinho Mocidade,

Dico da Viola e Moleque Silveira.

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na Imperatriz, Canarinho das Laranjeiras, só não ti-ve nem no Cacique, nem no Bafo, que era uma área mais de subúrbio. Fui na quadra da Mangueira, fui no Salgueiro. Era um marco, antigamente, você ir nuns lugares desses, Nossa Senhora, marcou a sua vida. Você esteve lá, aí fazem a pergunta, você viu? E não tinha tantos artistas, era mais as pessoas da comunidade. Participava sim, do Salgueiro o Jorge Benjor – o Jorge Ben – o Wilson Simonal, salgueirense, aquele Jairzinho, o jogador.

Vi Jamelão, Beth Carvalho, inclusive aqui nós participamos com Beth Carvalho num ano aí, que eu não sei se foi em oitenta. Eu estava casada, morando em Astolfo Dutra. Saí de lá para vir participar Elisa Nunes e os Batuqueiros, Beth Carvalho e depois, lo-go, nós fizemos a abertura, no Meca. Participei com Martinho da Vila, em Ubá.

O que nós entramos com a cara e a coragem, no Rio de Janeiro, no Sírio Libanes, o paraíso do sam-ba. A participação com a Beth e o Martinho, em Ubá, que nós fechamos. Muito bom, graças a Deus, sem deslizes. Essa abertura, lá no Rio das participações de artistas, está entendendo? Então isso hoje, deu uma abertura enorme.

Não tinha conjunto de samba aqui em Cata-guases. Foi o primeiro Elisa Nunes e os Batuqueiros

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e nós abrimos, então, o caminho. Abrimos o cami-nho. E a influência já da televisão, então, as pessoas foram tendo noção do que são ótimos cantores, tra-zendo ótimas melodias, ótimas letras. E foi entrando e o povo foi aceitando a comunicação dos artistas, as pessoas de fora, trazendo. Aí faz um grupinho ali e faz uma batucadinha, o samba ele mexe, o samba é samba, não é?

O pagode, eu não sei falar sobre esse estilo musical, não. Eu não sou chegada a pagode, então, eu não sei falar a respeito. O que é o pagode? É uma mistura, mas eu não sei definir, eu não sei falar por-que aonde tem pagode, dificilmente eu estou. Então, eu não busquei para ter um entendimento. O pagode, por exemplo, lá no Rio, eles falam que tem o Fundo de Quintal, que Nossa Senhora, eu bato palmas, lan-ço aplausos mesmo. Esse Jorge Aragão faz um pa-gode diferente, é um pagode diferente e do Rio de Janeiro.

Eu não frequento as noites, eu não tenho con-tato. No momento em que eu parei de cantar, eu não busco. Tem uma menina, ela trabalha com o pesso-al do Siri Cascudo, ela é filha do falecido Cosminho. Eu tive a oportunidade... a Ana Quintão, ela faz um trabalho bonito, chorinhos, canta samba. Inclusive eles fizeram numa época aí, eu participei, acabou, ali

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na Forluz. Hoje tem aquele café [...] Então, tinha um anfiteatro.

O Pingolim fez um trabalho muito bonito ali, eu participei. A Ágda, participou. Essa menina, a fi-lha do Iliseu Rocha, a Maria Rita, um timbre de voz muito bonito, sabe dessa geração aí, mas ela não can-ta na noite. Aqui não tem espaço, não dão espaço, in-felizmente. Cataguases não adianta, não sei o porque. E mais quem? Uma menina também, ela faz aula de canto junto ali, com a Maria Rita. Tem muito boa voz. São pessoas assim que ficam no anonimato, porque não têm a oportunidade, não tem uma casa noturna que ofereça trabalho, não tem. Não valoriza.

Apesar de ter o público, porque o público é pú-blico. Se você bater uma caixinha de fósforos e abrir a boquinha, bate a curiosidade, chega um, chega outro, quando você vê, está cercado. Público não falta. Falta é o interesse de outros.

Eu tenho que agradecer a vocês pela lembran-ça da minha pessoa.

Entrevistada por José Otônio Sabino Silva e Inácio Manoel Neves Frade da Cruz em 21/10/2011

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Eu nasci aqui em Cataguases, no Bairro da Granjaria. A minha infância foi meio difícil porque eu venho de uma família grande, treze filhos. Não tive uma infância muito... vamos dizer assim com regalias, foi com luta. Aquela infância de criança que trabalha.

A partir de sete, oito anos, eu já carregava trou-xa de roupas para baixo e para cima. Minha mãe era lavadeira, meu pai pedreiro. Para ajudar em casa, a

L Ú C I A H E L E N A 7

L I D E R A N Ç A

D A I G R E J A C AT Ó L I C A

6 7 a n o s

7) Lucia Helena trabalha com agentes pastorais negros.

Foto: Lucia Helena, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 2011

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minha mãe era lavadeira e a gente para ajudar a mi-nha mãe, era quem buscava e levava a roupa para ela lavar. Na cabeça, cabide de roupa passada...

Estudei só o primário, quando criança. Parei, parei mesmo. Hoje a gente pertence à Paróquia São Cristovão e Imaculada Conceição. Eu coordeno um grupo de Círculo Bíblico e os Agentes Pastorais Negros da cidade de Cataguases. Faço parte também da Pastoral Operária.

Começou participando do setor social da Diocese de Leopoldina porque os líderes eclesiais, os encontros das CEBS e o material que as CEBS cedem para gente. Aí a gente faz uso deles. Porque eles fa-zem material para Encontro Mineiro de CEBS, mate-rial para os Intereclesiais das CEBS e aí eles partem pra gente e a gente faz isso.

[Inseriu nas missas] Atabaque, pandeiro, vio-lão, cavaquinho. Os ritmos vão do jeito do CD que a CEBS mandou para gente, aí a gente copia o ritmo que estiver no CD da CEBS. Nas escolas, nos espaços culturais que a gente faz apresentações todos os anos, tipo no Instituto Francisca de Souza Peixoto. Nas praças também.

O djambê que foi pedido pelo professor que veio dar percussão e música. Eu não conhecia esse instrumento, quando ele chegou e assumiu com-

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promisso com a gente de trabalhar com os meninos, ele pediu um djambê. Deixa eu explicar para vocês o djambê, ele é totalmente diferente do atabaque, dá um som diferente do atabaque... Menor que o ataba-que. Toca com a mão. O menino que mais se familia-rizou com ele foi o Rogerinho, que se dava melhor to-cando o djambê. No presente momento, ele está meio afastado do grupo. O grupo são crianças e adolescen-tes do Justino e São Vicente. De cinco a vinte anos são as participações que existem.

Para permanecer fazendo esse trabalho, a gen-te só não esmoreceu, não fraquejou, porque a gente teve formação. A formação que a gente busca indo lá fora em encontros. Então tem aquele fortalecimen-to para enfrentar a discriminação, a perseguição... Se a gente tivesse iniciado o trabalho sem ter recebido primeiro uma formação, não estaríamos hoje fazen-do o que estamos fazendo, porque não teria segu-rado a discriminação que veio. Mas, como a gente sabia o que estava fazendo, foi preparado pra fazer o que tá fazendo aí. Não nos deixamos levar pelas perseguições.

Inclusive que os meninos sempre... Eles par-ticiparam dessa discriminação, eles sempre estão ci-tando. É uma vizinha que era frequentadora da nossa Igreja, inclusive ela afastou da Igreja porque o padre

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não se rendeu aos pedidos dela para que o atabaque não tocasse dentro da Igreja. Então ela afastou, que-rendo a gente ou ela. Ela resolveu se afastar porque ela achava que o padre não podia apoiar o toque do atabaque dentro da Igreja. Inclusive ela chegou a di-zer que a gente ia acabar com a Capela. “Tá acabando com a nossa Capela”. A presença dos adolescentes e das crianças cantando e dançando naquele espaço es-tava acabando com a Capela. Ela está afastada espe-rando que o padre saia porque pensa que se vier um outro padre, ele afasta a gente e ela chega.

Quando a gente não usa os CDs da CEBS, faz pesquisa na Internet. Já usamos músicas de cantores da música popular brasileira através da pesquisa na Internet. A gente encontrou e viu que estava adequado de fato. Música Popular Brasileira, falando de Zumbi e da Igualdade Racial. O Jorge Benjor. Já tivemos can-tando uma música dele. Inclusive vamos apresentar no Fórum da Igualdade Racial, em Viçosa, agora em outubro, uma música dele falando de Zumbi.

Eu coordeno a Pastoral. Temos professor de canto, o Juninho que é o professor de canto e ele dá uma ajuda na percussão, para ver se está certo e se estão tocando adequadamente, de acordo com o que estão cantando. Já tivemos uma ajuda de um profes-sor de música evangélico que esteve conosco o ano

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passado lá no Instituto, na apresentação. O professor que estava com a gente constantemente não pode e teve um outro compromisso, e aí o Willian, que é um professor de música e é evangélico, foi quem tocou violão para gente no Instituto.

Eu sempre. nos momentos de formação dos meninos, eu cito o respeito a todas as religiões e inclusive que o nosso espaço não é só para católi-co, apesar de estarmos dentro de um espaço católi-co, mas qualquer que seja a religião a pessoa é bem vinda. Nós já tivemos uma companheira espírita que ajudou a gente a formar os Agentes Pastorais Negros de Cataguases. E há poucos dias, uma adolescente espírita, participou e conheceu o nosso trabalho e não continuou, parece que não continuou, diante dos compromissos que ela tem. Mas somos abertos ao di-álogo a qualquer religião. Não trabalhamos só com quem é católico.

Eu passo para os meninos que não se canta ale-atoriamente, tem um foco. Aí quando você está focado, toda letra tem uma mensagem para passar. A gente sempre está analisando a letra para que ela realmen-te passe essa mensagem da promoção e da igualdade, pois aí a gente consegue atingir o objetivo melhor do que fazer uma palestra. Não cantamos sem fazermos uma análise da música. O professor costuma até fazer

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uma leitura sem cantar para que esteja focada na men-te dos meninos a letra que será cantada depois.

A nossa porta está aberta para quem chegar, seja branco, seja negro – a nossa porta está aberta. Houve até uma menina branca que estava junto com a gente e fizeram pergunta: Você não é negra, por que você tá lá? Tipo assim, dar opressão. Eu falei pa-ra ela: Você deveria ter respondido o seguinte: a luta da igualdade não é só do negro. A luta é de quem é incomodado por existir a discriminação. Agora, bas-ta que a pessoa seja um defensor da nossa luta. Veio para somar, não importa a cor. A maioria é composta por negros.

Trabalhamos com as comunidades do Justino e São Vicente. Sendo que quando iniciamos tivemos a oportunidade de trabalhar com adolescentes do Leonardo e hoje temos também um ou outro de bair-ro da cidade, mas devido a dificuldade de atravessar a cidade, é minoria.

A gente é sempre apoiado pela Caritas Dio-cesana. É o organismo da Igreja Católica, criado pela CNBB, que é pautado na luta dos menos favorecidos. Está sempre lutando por quem está sempre em desi-gualdade. Ela dá um apoio. Não vamos dizer assim é um patrocínio. Patrocínio é se cobrisse todas as ne-cessidades. Ela dá um apoio financeiro.

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Geralmente quando saímos de Cataguases aí já não é mais âmbito religioso, ele é mais somente no Justino e São Vicente. Quando saímos levamos o cultural. Canto e danças também. Temos uma profes-sora de dança que monta as coreografias, inclusive foi muito interessante, quando iniciamos a parte da dança. Não tínhamos conseguido estruturar e quem coordenava a dança era uma menina de doze anos, integrante do grupo. Ela que fazia (criava) as coreo-grafias e coordenava a dança. Depois que recebemos esse apoio da Caritas e de outras entidades é que podemos ficar mais organizados e tem a professora de dança.

Por isso que é o grupo de canto e dança. Agora, a nossa religiosidade, a gente trabalha a religiosidade por ocupar o espaço da Igreja e o padre que nos cha-mou para que fôssemos responsáveis por uma missa todo mês. Então aí eu digo: somos católicos, então não podemos fugir disso. Todo primeiro domingo do mês é responsabilidade do Grupo de Canto e Música Afro Justino e São Vicente, a missa na Capela São Pedro, que é na comunidade do Justino.

No ano de 2010 fomos contemplados com a Lei Ascânio Lopes e não fomos fazer parte religiosa, dizer que fomos levar a religiosidade. Fomos levar o canto a dança, mas precisávamos ocupar um espaço

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nos bairros que escolhemos para apresentar, acha-mos que será mais prático usar as Capelas. Usamos a Capela Nossa Aparecida, no Ibraim; a Igreja Senhor do Fim, em Aracati; a Igreja lá de Cataguarino, que não recordo o nome. O espaço cultural que usamos na cidade foi o Instituto Francisca de Souza Peixoto. Fizemos um “Auto de Natal”. Também fomos res-ponsáveis pela última missa de São Cristovão, após a carreata. O nosso grupo que foi o animador da missa.

Por falar em São Cristovão, lembrei que quan-do iniciamos esse trabalho, hoje trabalhamos o cul-tural, mas começamos é pelo religioso, fazendo uma celebração afro na Capela de São Pedro. E quando foi no ano seguinte era nossa meta sair da nossa comu-nidade para visitar uma outra comunidade. Fizemos uma missa afro, no mês de novembro, lá na Capela São Cristovão. Foi uma missa afro. Isso para nós fi-cou marcante que conseguimos nosso objetivo. Mas, missa que fizemos agora do padroeiro, não foi uma missa bem dizer afro, foi uma missa de compromisso com a comunidade.

Uma missa afro, a princípio, a gente procura colorir o máximo possível a Igreja com toalhas e aces-sórios da Igreja, fazemos modificações para colorir. O nosso ofertório é um ofertório onde vai acontecer realmente uma partilha, porque é da nossa cultura.

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Confraternizamos e partilhamos. E os cantos são os cantos mais alegres, na minha opinião.

Ubá já está trabalhando também com os ado-lescentes. Já tivemos oportunidade de ver o resultado do trabalho. Estão trabalhando a dança. Mais ou me-nos uns seis ou sete meses que já estão trabalhando com os adolescentes. Temos um Encontro Regional dos Agentes Pastorais Negros. Então estamos sem-pre nos comunicando e todos os anos nos encontra-mos. Nesse ano, tivemos apresentação do grupo de Cataguases e do grupo de Ubá.

Geralmente colocamos a dança na missa afro no 20 de novembro. No decorrer do ano menos parti-cipação com dança e mais canto.

Entrevistada por José Otônio Sabino Silva e Inácio Manoel Neves Frade da Cruz em 2/10/2011

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Eu nasci em Itaperuna (RJ), mas fui registrada em São João do Sapucaia, divisa de Muriaé. Minha mãe e o meu pai se separaram e eu fui criada pelas casas dos outros. Com seis anos de idade já estava pela casa dos outros trabalhando. A minha vida de infância foi amarga porque eu não pude brincar, eu não pude passear porque era um trabalho escravo.

A gente ficava nas casas das patroas e a mãe da gente dava ordem para não deixar sair com nin-guém se não fosse com ela (a patroa). Aí eu cresci. Eu

M A R L E N E T H O M É G R E G Ó R I O

P R E S I D E N T E D O C E N T R O E S P Í R I TA

PA I A N TO N I O D E A R U A N D A 8

6 8 a n o s

8) O Centro Espírita Pai Antonio de Aruanda localiza-se no Bairro Taquara Preta em Cataguases.

Foto: Marlene Thomé Gregório, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 24/9/2011

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apanhava muito dela. Eu era muito sacrificada no serviço porque tinha de fazer de tudo sem eu saber. Se eu não fizesse, apanhava. Às vezes, quando eram duas horas da madrugada é que eu ia passar roupa. Passava roupa até três horas da manhã. Deitava e quando fosse três e meia, quatro horas o meu patrão me punha sentada na cama, porque eu não acordava, para eu fazer o café, que ele saía cinco horas. Aí eu trabalhava o dia todo.

O café da manhã, eu só tomava ele onze ho-ras. O açúcar, ela adoçava o meu café com açúcar pre-to, me dava o pão de ontem, com gordura de porco e falava que empregada não podia comer manteiga, porque manteiga era só para quem pudesse. E aí eles faziam o almoço e eu arrumava a mesa e eles almo-çavam. A comida que eu comia que saía da mesa só tinha que ser um bife que as meninas não comiam [...] um ovo que as meninas não comiam. Ela punha feijão pagão na panela de arroz e o fogão dela era de lenha. Aí ela me mandava arrumar a cozinha. Depois que eu arrumasse a cozinha todinha, ali para três e meia, quatro horas e aí eu almoçava e a janta, só ia jantar lá pelas dez horas da noite, em ponto. Enquanto eu não arrumasse todo o serviço não podia comer.

Quando eu tinha quatorze anos eu fui para ca-sa de Dona Aurora, uma outra pessoa que tinha e ali

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ela mandou o juizado de menor atrás de mim. Mas o juizado de menor não me tirou de lá porque eu con-tei toda verdade e eles acreditaram em mim.

Em 1958, a minha mãe me trouxe para Laranjal, aí eu saí e deixei de ser escrava, porque quando a patroa me obrigava fazer as coisas, eu falava que eu ia sair. Que fazia? Saía e arrumava outro emprego. A minha vida foi muito sacrificada, eu sofri muito nas mãos dos outros. Mas eu cresci, comecei a empregar por conta própria e aí as patroas pararam de me fazer de boba.

Eu dormia no fundo do quintal, em quarto no quintal. Eu tinha muito medo. Até que eu fui cres-cendo e com dezesseis anos eu conheci meu marido. Com ele eu namorei, noivei, casei e tive quatro filhos. Depois, ele judiava muito de mim também e me lar-gou e eu criei os meus filhos. Sozinha e Deus.

Arrumei serviço na Prefeitura, trabalhei. Já tra-balhei em restaurante, hotel. Já trabalhei em casa de família. Já fui lavadeira. E hoje os meus filhos estão grandes e graças a Deus estou sentindo melhor por-que eu hoje tenho liberdade. A escravidão acabou. Eu sou senhora de mim mesma.

E a minha vida espiritual, eu comecei a ver fantasmas, luz, pessoas. Eu tinha seis anos de idade. A minha vida foi muito doente, eu tive muita doença,

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fui crente, fui Testemunha de Jeová, mas lá eu não conseguia batizar. No dia de eu batizar parecia que acontecia alguma coisa e eu não podia realizar, até que eu comecei a ver fantasmas. Às vezes, eu estava andando, via aquela sombra e aquilo virava aquele monte de osso, via mulher, via homem, via criança e eu comecei a ficar doente da cabeça.

Fui internada no São Marcos, em Juiz de Fora, na Vila das Palmeiras, em São Paulo, Além Paraíba, Leopoldina. O Dr. José de Mello falou com a minha família que aquela doença minha não era da carne, mas era espiritual, que era para eles procurarem um raizeiro para mim. Mas, a minha mãe era crente e meu marido não acreditava em nada e eu fui sofren-do, me deu distúrbio cerebral.

E aí depois apareceu o meu pai de santo que falou que eu tinha que desenvolver, se eu não desen-volvesse ia morrer. Aí eu entrei no terreiro, desenvol-vi. Entrei no terreiro no dia seis de janeiro e dia doze de maio eu recebi todas as minhas entidades. E aí eu fui trabalhando com ele, trabalhando até que ele me mandou por o meu próprio terreiro porque eu já es-tava sabendo demais. E eu pus o meu terreiro.

Eu pondo o meu terreiro, os meus vizinhos todos assinaram que aceitavam. Mas depois de um ano eles começaram a brigar comigo, que era para eu

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fechar. Aí eu fui na Federação e arrumei a ata do meu terreiro. E hoje o meu terreiro está dentro da lei e a polícia sumiu porque o pessoal parou de dar parte.

Mas eu sofri muito também com o meu terrei-ro porque eles queriam que fechasse. Todo domingo a polícia estava aqui, até que eles mesmos manda-ram eu dar parte porque não estavam podendo me prender e nem fechar o meu terreiro, porque o meu terreiro tem fundamento. O meu terreiro é feito na Federação de Umbanda de Belo Horizonte, tenho o diploma, tenho a ata, tenho tudo direitinho. E aí, de-pois que eu fui na cadeia, eles pararam de implicar comigo.

Agora eu sou feliz porque eu levo o meu ter-reiro com harmonia, com amor, com crença, acredito muito nos orixás e muita gente que vem aqui tem si-do feliz porque tem conseguido o que eles quiseram conseguir. E eu vou tocar a minha vida espiritual até eu morrer e mesmo depois que eu morrer eu ainda vou tocar, porque o anjo da minha guarda vai ser dis-ciplinado e eu vou continuar. E se um dia for possível e Deus me der a minha coroa eu voltarei na Terra pa-ra fazer a caridade para quem precisar.

O terreiro para mim começou aqui em Cata-guases, no Paraíso, na casa do Zé Américo. E também a fundação do meu Terreiro também foi feito aqui:

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com promotor, advogado, juiz e a Federação de Belo Horizonte me deu diploma, o meu terreiro é dentro da lei.

A minha entidade, a minha linha de frente, eu sou do povo de Aruanda. A minha entidade de frente é Pai Antônio de Aruanda, é o mesmo nome do meu terreiro. Esse é o meu guia de frente.

A importância da música na prática da Um-banda é a seguinte: eu já não tenho mais cabeça para aprender música de rádio e de axé. As minhas mú-sicas são mesmo só para Umbanda. E as músicas cantadas dentro do meu terreiro de Umbanda são as minhas próprias entidades que trazem a origem. Eles chegam, me incorporam e eles mesmos cantam. É até difícil as pessoas aprenderem ponto dos meus guias, porque eles não deixam vestígio. Eles não gos-tam de ser filmados, não gostam de tirar retrato, não são guias que bebem porque sabem que eu sou velha, não posso mais fazer essas coisas. Eu tenho no meu terreiro cachaça, vinho, mas eu trato deles sem es-tarem incorporados. É muito difícil eles beberem na minha cabeça e se bebem também bebem uma meia colher só.

E as origens dos meus guias de Umbanda, a importância da Umbanda para mim, significa mui-to porque antes eu vivia doente, internada. Depois

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que eu desenvolvi, tem trinta e dois anos que eu não interno. Eu internei outro dia, mas foi por causa de pressão, fiquei até na UTI, mas depois disto comecei a tomar o remédio, nunca mais voltei no hospital. Eu sou muito feliz com as minhas entidades, porque eles são uns espíritos desencarnados, mas eles têm luz e têm poder. Eles fazem a caridade para mim e para quem me procura.

Os pontos cantados são da minha própria enti-dade. Então, às vezes, eles podem até cantar um pon-to que tem no livro, mas porque é deles mesmo, mas eu não sou daquelas mulheres que ficam estudando livro para aprender ponto. Eu canto o ponto que vier na minha cabeça.

Agora o ponto dos outros lá sei cantar, o ponto de outro terreiro. Como que às vezes uma pessoa que chega aqui canta e eu aprendo porque eu não apren-do música de artista, mas das entidades é uma vez só cantar para mim e os meus orixás muitas vez eu es-tou trabalhando, eu escuto aquele ponto, aquela mú-sica e aí eu canto. No dia que eles ficam eles cantam. Eu escuto, eu posso escutar, eu posso ver e então...

Se tiver de acontecer uma coisa para mim, ve-jo tudo assim. E se eles também têm um ponto novo para mim, eu escuto. Eles cantam e eu aprendo, mas ficar estudando livro de ponto, eu nunca estudei.

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Instrumentos na Umbanda tem diversos. Mas, lá no Pai de Santo que é o meu, usava o atabaque e no meu também eu uso o atabaque. Tinha a viola, ti-nha a cumbuca, ela é formada de conta de lágrima. A gente faz um cordão de conta de lágrima depois enrola na cumbuca e toca. Existe o pandeiro...

A cumbuca é feito o chocalho. Porque faz um cordão de conta de lágrimas, enrola ele na cumbuca e depois bate a cumbuca e ali faz o som. Tem também triângulo, aquele de ferro, igual a um triângulo mes-mo. Bate.

Mas aqui no meu terreiro só uso mesmo o ata-baque, mais nada, porque ficou falado lá no Promotor do Meio Ambiente que os vizinhos estavam recla-mando por causa do atabaque, mas não pode parar, porque não existe Umbanda sem o atabaque. Então eles falaram para tocar só o atabaque até sete horas da noite. Mas tem dia que vou até oito, nove horas porque tem muita gente. O que eu vou fazer? Se o meu terreiro está superlotado de gente, eu tenho que cuidar de todo mundo. Então no meu terreiro existe só o atabaque, mas existem outros instrumentos.

Antigamente os índios usavam também o ata-baque que a gente usa hoje, mas era feito na madeira. Eles pegavam a madeira, ocavam ela e depois pu-nham um couro em cima e batiam e era o triângulo.

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Ainda tem terreiro que tem dentro, o meu que não tem. E também eles pegavam o chifre punha pe-dra nele e depois eles tampavam com o couro e batia. Era um chocalho também de antigamente. Chifre de boi também eu conheço. E tem o gongá. O gongá são dois atabaques um pregado no outro assim e aí ficam dois ogans, um bate nesse e o outro nesse [simulando com a mão]. Agora, quem é do Candomblé toca com vareta. Então bate aqui e bate lá, mas nos meus aqui eu não tenho. Só tem mesmo os dois atabaques.

Tem também aquele outro que toca no pé, como é que ele chama? Aquele lá de São João Nepomuceno. Eu esqueci como é que ele chama. Agora aqui em Cataguases só vi o gongá. É gongo que chama. São dois atabaques, um colado no outro. Esse chama gongo. Gasta dois ogans na Umbanda e gasta um ogan no Candomblé, porque bate de vareta, toca aqui e toca cá. Eles cruzam.

Todas as pessoas que tiverem no terreiro, se-ja médium ou assistente, podem cantar [os pontos]. Agora o que eu exijo no meu terreiro é cada ponto na sua origem. Se eu estou trabalhando na linha de Ogum, que é São Jorge, então ponto para ele; se está na mata de Oxossi então ponto para ele; se eu bus-co o povo da Bahia ou Boiadeiro, ponto para eles; e na linha das Almas que são os Pretos Velhos, é ponto

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para eles; se estiver na linha de criança, então ponto paras as crianças; se estiver na linha de Exu, ponto para Exu. Eu não gosto que atravessem.

Se eu estou com Preto Velho e estão cantando para Exu, ou se eu estou com Ogum e estão cantando para Oxossi atrapalha. E então cada um na sua ori-gem. Mas, quantas pessoas estiverem aqui dentro:

- Eu posso cantar? - Pode, as ordens! Pode, até ajuda o terreiro que os médiuns ficam cansados de tocar, de tanto bater palma e cantar. Uma assistência dos que estão do lado de fora e que sabem o ponto e cantam é uma beleza, ajudam os de dentro.

Igual eu falei para o senhor. Depende da en-tidade que estiver. A entidade que estiver não gosta que atravesse ponto, só naquela origem, mas pode cantar para qualquer um. Que quando grita um pon-to no terreiro eu vejo os donos do lado de fora. Aí já sei o que é. Se eu estou cantando lá dentro prá Oxossi, se alguém atravessar na linha de Exu eles pensam: - Eu vou cantar um ponto de Exu, o Exu já está aqui, aí eu vejo. Se eu estiver incorporada o guia briga. - Esse ponto não! Quem está no terreiro é Ogum, não é Exu. Exu tem hora. Aí eles param de cantar.

Criança nunca participou de Umbanda e nem de Candomblé, e nem de Magia, de nada, só adul-to. A criança para entrar num terreiro, num barraco

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ou numa tenda, precisa-se de autorização dos pais, com dezesseis anos. A Jô já está entrando, mas os ou-tros netos não entram, porque são novos. Isso é coisa prá adulto, sabe por quê? Passa um Exu aí, ele chega violento, ele fala palavrão, xinga um nome ruim, ele fuma e gosta de beber, então usando isso no terreiro com criança perto, a criança está aprendendo essas coisas. Então eu num deixo.

Por exemplo, as mães que chegam aqui, que trazem crianças, ficam do lado de fora, por isso eu fiz esse muro, que a criança é pequena fica assentada aí, eles num vêem lá dentro. A criança, eu até isento de entrar lá dentro, só na hora de benzer. Por exemplo: a criança está doente a mãe vem trazer para benzer, en-tão não posso refugar eles, eu tenho que benzer, mas participar de corrente aqui não. Aqui é coisa só para adulto.

Meu nome aqui é bruxa, feiticeira, só trabalho com velas de cores e faço maldade para os outros. E um trabalho meu são mil reais - e eu não cobro nada. Às vezes, por exemplo, se precisa fazer um despa-cho, entregar uma oferenda, ou um engambelo pa-ra ele, a pessoa compra com dinheiro deles, porque eu ganho um salário e não posso tratar de serviço de ninguém. Eu tenho que comer, beber e cuidar do meu terreiro. Então a pessoa compra as coisas ne-

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cessárias que eles pediram e leva lá onde tem que levar.

E o meu trabalho aqui eu estou cobrando oi-tenta reais, seja lá que trabalho for. São oitenta reais, mas é um trabalho particular, não tem ninguém. Dia de domingo é livre. Ninguém paga nada, nem ben-zeção que muitos terreiros cobram dez reais uma fi-cha. O meu não tem ficha. O meu é livre. Vem, todo mundo é atendido, todo mundo é benzido, é descar-regado.

Agora se quer um trabalho particular, aí tem que pagar oitenta reais porque eu vou tirar do meu tempo dentro de casa, o meu serviço, ocupar o Edu e a Raquel e vir para o terreiro a troco de nada. Esses oitenta reais que eles me dão eu compro vela, com-pro um vinho, compro um charuto, um cigarro, compro um fósforo, uma pemba, compro as coisas para os orixás mesmo, para eles trabalharem para os outros.

Não faço nada fora da lei, não tiro um centa-vo do terreiro para comprar nada para mim. É tudo gasto aqui dentro. O senhor vê, oitenta reais não é di-nheiro, num instante acaba tudo. É só para comprar as coisas, porque aqui gasta muita vela, gasta muita cachaça, porque eu não bebo, mas eu trato dos pontos. Cada um deles tem o seu coité, tem os seus pontos,

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tem a sua garrafa. Então eu trato deles lá para eles não beberem na minha cabeça no meu terreiro, por-que eu não gosto de cachaça.

Cachaça nunca me fez mal, mas eu não gosto porque o meu pai bebia muito e isso nos fez sofrer pe-lo mundo e meu marido bebia muito por isso nós se-paramos e eu tive que criar meus filhos sozinha, sem amor de pai. Só eu não gosto dessas coisas, mas eu uso para eles lá, porque eles usam. Se eu quero o fa-vor deles, eu tenho que cuidar deles.

Primeiro os meus vizinhos todos assinaram que eu podia por terreiro e aí depois que eles viram que abriu e começou a vir muita gente, começaram a xingar. Chamavam-me de macaca, é bruxa, macum-beira, até hoje tomo o nome de macumbeira. E não pode chegar uma pessoa aqui que eles implicam. - A macumbeira. A macumba. Isso aí não vale nada. Vai caçar uma igreja. Essa mulher é uma bruxa cobra

“mil real” o trabalho e só trabalha com vela preta e vela vermelha. E não é. Tem todas as velas.

As pessoas procuram tudo. Às vezes, eles vêm porque foram no médico muitas vezes e tomaram o remédio e não melhoraram. Estão sentindo do mes-mo jeito. Fizeram os exames e o médico não achou nada. Aí, vem aqui. Aqui acha e também fica bom. Eles estão doentes espiritualmente.

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Outros vêm pedindo que o marido foi embo-ra, está com os filhos sozinha, sem comida, sem água, sem luz. Aí eu trabalho, o marido volta e vai tratar da família. Agora para caso amoroso, por enquanto, até hoje, é muito difícil. Mas se vier, eu trabalho também.

Aqui vem preto, vem branco, vem rico, vem pobre, vem tudo. Vem “Maria homem”, vem homem gay e eu atendo todo mundo e a porta do meu ter-reiro está aberta. Eu não posso desfeitear ninguém e nem discriminar ninguém. Chegou, pediu a caridade eu tenho que fazer, porque eu ganhei esse dom de Deus é para eu distribuir para aqueles que me pro-curam. Eu não posso negar. Então, qualquer tipo de gente que aparecer aqui é bem-vindo. Agora, se che-gar bêbado, aí eu não deixo entrar. E se chegar e não respeitar, começar a jogar piada para dentro terreiro, também é cortado. Mas veio, procedeu direito e res-peitou todo mundo... Eu estou até com um médium aí dentro meio veado, mas está desenvolvendo aí, tem força. Fazer o que? Se Deus deu a ele a força e o poder, tem que levar.

Aqui no terreiro eu já desenvolvi muitos e pou-cos, porque quando eles começam a trabalhar direi-tinho, eles vão embora. Eles vão caçar outro terreiro e eu não vou atrás. Às vezes ficam por lá dois anos, três anos, depois eles voltam. Isto aí. Agora, o que es-

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tá aqui no terreiro é [pequena pausa] o que está aqui no terreiro agora é a Ana, a Joana... Como é que cha-ma aquele rapaz (perguntando ao Eduardo)?

Porque agora tem quatro médiuns desse lado e ogan e aqui tem [pequena pausa] acho que eu tenho dez médiuns e a mulher. Comigo são onze. E homem só tem o Paulinho, Edu (Eduardo) e o Pedro. Duas cambones e dois ogans. Tem a Raquel, é cambone, e a filha dela é auxiliar. E tem a Rafaela é ogan e o Paulinho é ogan, mas a Jovina também toca.

Vem muito pai de santo. Eles trazem pontos novos, quando eu vou aos terreiros deles eu levo pontos novos. Aqui vem muito quimbandeiro do Candomblé. Vira e mexe tem algum deles. Chega aqui, eu grito um ponto para virar Umbanda para o Candomblé e eles entram firmes e cantam [Risos].

Eu não sou aquela mãe de santo racista, ig-norante e bruta, não. Desde que entrou dessa porta para dentro, todo mundo é meu irmão. Eu não jogo demanda para ninguém e se alguém jogar para mim, eu sei cortar. Então qualquer terreiro que chegar aqui entra para dentro e vai trabalhar. Eu até gosto que me ajuda. Um dia deste mesmo pedi ajuda a um ou-tro terreiro aí para fazer um descarrego para mim. E fizeram e eu estou bem graças a Deus. São todos meus amigos. Daqui a pouco eu vou sair e vou lá

para o Leonardo, para o terreiro. Hoje tem festa de Cosme e Damião.

O racismo elas não conseguem abater não, porque o racismo vem do princípio do mundo. O senhor pensa bem, antigamente no tempo da escra-vidão, tinha o rei. Tinha a duquesa e outras pesso-as mais. Os escravos que trabalhassem dentro de casa faziam comida e não podiam comer. E aqueles que trabalhavam no “terreirão”, na lavoura e no ca-navial, a comida deles era bem diferente da do rei e da rainha. Por que, se eles também eram seres humanos?

Quer dizer que isso aí vem do princípio do mundo. Então, hoje o racismo existe para nós que somos umbandistas. Tem gente que não gosta de co-mer minha comida, não gosta de beber o meu café, que tem medo de eu por “macumba”. E eles andam aí falando de “macumba”. Macumba não é o mal. Macumba é uma árvore que Deus fez. É dali da ár-vore que chama macumba que se faz o atabaque. E eles ficam chamando a gente de macumbeiro, mas o racismo existe ainda. Tem muita gente que não gosta do preto, não gosta do pobre, mas eu estou deixando a vida me levar. Se eu nasci assim, eu sou assim, eu vou assim até o fim. E depois que eu morrer ainda vou continuar assim na vida espiritual.

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Não pode cantar. Fala assim, cantar fora sem ser na hora da sessão? Não. Só um espírita fanático. Porque o espírita fanático é aquele que vê, quer, mas não sabe. Então, ele se exibe. Aí em qualquer lugar que estiver aí ele canta ponto, ele risca ponto no chão. Mas se chamar ele na verdade, ele não sabe nada por-que ele não tem guia.

Um dia desses chegou uma moça aqui de Itamarati, falando que trabalhava com o senhor Tranca Rua, Sete Encruzilhadas, aí o pessoal colocou ela para dentro e disse: - Então vem trabalhar. Aí ela chegou lá dentro e desceu o que nela? Nem vento. Ela se exibiu.

Porque eu, por exemplo, se eu for lá na Praça Rui Barbosa ver uma festa legal para sair com as crianças, eu jamais canto um ponto para as entidades lá. Ali eu estou livre, desocupada, eles estão passe-ando, eu tirei o dia para me divertir. Então não tem guia naquele dia. Agora, se alguém lá começar a bri-gar com o Edu, puxar uma faca, um revólver, aí eu chamo. Mas ninguém vê eu chamar. Eu chamo no co-ração e no pensamento. Se tiver um jeito de eu com-prar uma vela por ali e firmar debaixo de qualquer toco, para livrar o meu filho, eu faço. Mas, à toa, não. Aqui dentro do terreiro eu posso cantar. Agora, lá na rua, que eu não canto à toa. Tem que ter respeito dele,

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sim? Agora, aqui agora eu posso cantar. Eu vou can-tar do meu Preto Velho porque essa aí de tanto ouvir cantar já aprendi também [Risos].

“Oh minha Virgem Maria Minha Nossa SenhoraValei meu Santo AntônioQue me vale nessa horaTenho andado tão sozinhaCom meu terço a rezarVou pedir meu Santo AntônioPara vir me ajudarVou pedir meu Santo AntônioPara vir me ajudar”

Esse é o Pai Antonio de Aruanda. Aprendi tam-bém com os outros aí. Vou cantar Boiadeiro do Rio que eu já aprendi também.

“Seu Boiadeiro na beirada do rioEle trabalha sentado na areiaMas quando chega no terreiro de UmbandaEle firma o seu ponto e não bambeia.Auê, seu BoiadeiroAuê, seu Boiadeiro

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Auê, seu BoiadeiroQuando chega na UmbandaFirma ponto e não bambeia.”

Tem o atabaque e tem a palma da mão. Agora vou cantar um ponto de chamada para Caboclos das Matas.

“Como é bonito a pisada de CabocloQue pisa na mata no rastro do outroComo é bonito a pisada de CabocloQue pisa na mata no rastro do outroSalve a sereiaSalve IemanjáSalve os Caboclos que vêm trabalharSalve a sereiaSalve IemanjáSalve os Caboclos que vêm trabalhar”.

Quer dizer, eu estou salvando o povo das ár-vores e estou salvando esses porque nem vêm para o terreiro.

Nós temos que trabalhar sobre isso, porque no tempo de outros prefeitos as encruzas da cidade eram livres e a gente podia ir até mesmo no cemitério,

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à meia noite, para trabalhar. Mas depois que entrou a Maria Lúcia e entrou o Dr. Tarcísio e esse prefei-to agora, eles estão chamando muito a lei de crente. Então os crentes estão em todas as paradas sociais. Estão iguais ao Roberto Carlos. A gente que é espírita não está tendo espaço. Porque se a gente vai na en-cruza e põe uma oferenda, na mesma hora vai outro lá e chuta aquilo, quebra a garrafa, quebra copo, es-traga tudo. Então, eu estou indo muito é para a roça, e lá na roça até que amanheça o dia, eles já pegaram o que é para eles [se referindo aos orixás].

Na nossa eles não mexem, porque eu vou longe. Às vezes, eu costumo ir lá para Ubá, Além Paraíba, lá para os lados de Laranjal. Até que eles vão para mexer já amanheceu o dia e as entidades quan-do a gente põe para eles uma promessa ou engam-belo, na mesma hora que a gente levanta dali, eles já chegam e pegam o que é deles.

Porque as entidades nunca comem e nunca be-bem o que a gente põe lá. Tudo que a gente faz ali é simbólico. Porque os espíritos não comem, não be-bem e não vestem, mas eles com aquele engambelo que a gente dá, eles ganham força e ajudam a gente no que necessitamos. Então, se for para eu ir nessa encruza aqui por uma oferenda, eu não vou, porque sei que deram o nome nessa encruza aqui de Praça

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da Bíblia. Se a gente põe uma oferenda ali, eles vão jogar fora. Às vezes, costumo ir ali e por uma velinha, um copo duma cachaça ou um vinho. Isso aí eles não mexem, porque é só uma vela, queimou: acabou. Mas, se puser uma oferenda grande, pode ter certeza de que eles tiram. Pode passar ali que você vai ver que não existe.

Até naquela encruza lá embaixo eles estão mexendo. Aí é gente ignorante que não acredita que Deus foi espírito. Porque onde já se viu, se o senhor for entrar num banheiro e for tomar um banho e se o senhor virar a cara para cima e deixar a água cair no nariz do senhor, ela vai até na garganta e o senhor en-gasga. E aí, se não tiver quem acuda, o senhor morre. Um próprio chuveiro mata a gente.

E Deus vivia nas águas, porque não existia ter-ra. Então, ele disse para Jesus Cristo e o Diabo, que é o primeiro anjo que ele fez: - Façamos terra firme! Aí Jesus Cristo concordou e então começou a separar o mar das águas doces e firmar a terra. Aí brotou vege-tação e hoje é isso que está aqui. Então, Deus fez de tudo que ele quis fazer, a última criação dele foi o ho-mem e a mulher. Aí, chegou o sétimo dia e ele orde-nou que haja descanso: - Eu subo para o meu trono de descanso. E ele foi para o céu, porque ele já tinha feito a terra e o céu. Lá é a morada espiritual, ele subiu e

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até hoje ele não voltou, mas de lá ele olha tudo. Quem voltou aqui foi Jesus Cristo, porque o Adão pecou.

Aí Jesus Cristo veio para resgatar o pecado, mas ele veio no poder do Espírito Santo, encarnou na Virgem Maria, gerou e nasceu, cresceu, disputou até com os doutores, fez a obra na Terra. Aí o Herodes e Pôncio Pilatos prenderam e mataram Ele. Ele morreu e foi para o túmulo. Quando tinha três dias, Ele res-suscitou, pregou mais quarenta e cinco dias e falou com os discípulos: - Agora eu vou para junto do Pai, mas um dia eu voltarei. E subiu.

Agora, eu pergunto ao senhor: - Se Jesus Cristo veio no Espírito Santo, encarnou, nasceu, virou gente, depois Ele tornou a morrer e disse que ia para o Pai. Para Ele poder subir para o Pai teve que subir com um outro corpo. O que o senhor acha: Jesus Cristo não subiu para o céu com aquele corpo que Ele nas-ceu, mas aquele corpo ficou na Terra e Ele ficou inte-grado a um outro corpo e ascendeu ao céu e os discí-pulos o viram até subir nas urnas.

Então, eu acredito que o espiritismo existe, porque Jesus Cristo curou o coxo e o aleijado, deu ouvido ao surdo e olho ao cego. Ressuscitou lá on-de estava morto há sete dias. Existe a força espiritual e muita gente anda aí dizendo que vai para o céu e, eu, que sou espírita vou para o inferno. Mas, a Bíblia

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Sagrada diz que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros.

Não importa a religião que a gente frequente, desde que seja voluntário e agradável a Deus. Então, eu vou ficar do jeito que eu sou até morrer, porque eu nunca vi falar na bíblia nem em lugar algum que se fosse à Igreja iria para o céu. A Igreja somos nós. É uma quantidade de gente que se reúne todos os dias no propósito de Deus. O próprio Deus é espírito, por-que eu não sei nadar e se cair nesse rio vou morrer e mesmo se eu soubesse, se ficasse nesse rio um dia inteiro e uma noite inteira está na cara que eu iria dar câimbra e ficar resfriada, poderia até dar um ataque dentro d’água e morrer e Deus vivia lá. Saiu de lá pa-ra fazer o céu e a terra e depois subiu e descansou no sétimo dia, mandou Jesus Cristo para a terra porque ele também tinha subido aí, que Jesus Cristo foi res-gatar o pecado do homem.

E hoje, muita gente diz que Deus é a velha era, é só Jesus Cristo, Senhor da Glória. Não existe filho sem pai. Jesus Cristo é filho de Deus, Jesus Cristo não é nosso pai, é nosso irmão, porque nós também so-mos filhos de Deus. Quem fez Adão e Eva foi Deus e nós somos descendentes deles, então, nós somos de carne e osso. Agora, nós somos um espírito encarna-do, porque nós temos um corpo, mas se eu morrer

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daqui a pouco eu sou um espírito desencarnado, por-que o anjo da minha guarda retornou a Deus e o meu corpo foi para o cemitério. Deus é espírito.

Eu aprendi isso na espiritualidade, porque eu sei que Deus nunca foi gente viva igual a como eu es-tou encarnada. Ele sempre foi desencarnado. Agora, Jesus Cristo subiu desencarnado, tornou a descer, en-carnou, nasceu, tornou a desencarnar para subir. Eu acredito no espiritismo por causa disso.

Eu estudei depois que eu casei, que fiz o 4.º ano primário, na aula noturna. Antes, eu estudei só dois anos. Eu tinha quatorze anos quando fugi desse

“emprego”, que não era um emprego, era escravidão. Aí em Laranjal a minha mãe me colocou na escola. Lá eu estudei o primeiro ano e o segundo ano, que era primário e é até hoje, mas hoje tem outro nome. Aí, depois que eu casei fiz o terceiro ano e o quarto aqui na Granjaria, na Escola Dr. Norberto Custódio. A do-na Neivinha que foi minha professora

Eu ganhava um tostão por mês, minha mãe ia buscar ele todo o mês. Era um tostão só, que hoje é dez centavos, não é? Dez centavos era o meu salário naquele tempo. Ela dava roupa, dava sapato, mas quando a gente saía do emprego ela tomava tudo e queimava. Minha patroa queimou minhas roupas to-dinhas quando eu saí de lá. Eu tinha um cabelo enor-

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me, ela cortou meu cabelo e ficou igual ao seu: baixi-nho. Aí, eu fugi de lá.

Mas o meu salário até quando eu empreguei de empregada doméstica, mesmo depois de adulta, o último salário que eu tive foi na D. Alda, aqui no Paraíso, cento e oitenta reais por mês. Foi o maior sa-lário que eu tive como doméstica. Agora, quando eu fui para a prefeitura, ganhei o salário normal. Meu primeiro salário foi de cinco reais porque eu trabalho por dia. Eu entrei dia primeiro de março, aí quando foi dia cinco saiu o pagamento e eu recebi cinco reais. Depois, acho que o salário era de vinte e oito cruzei-ros. Aí, acabou o cruzeiro e passou para o outro di-nheiro que eu nem sei mais o que era. Acho que era o cruzado, aí veio vinte e oito cruzados.

Foi aumentando e hoje eu ganho quinhentos e trinta. E hoje eu ganho a pensão do meu marido, por-que ele morreu e eu recebi a pensão dele. Mas o meu salário é de quinhentos e trinta e agora vai aumentar outra vez, não é? Mas em muitas casas domésticas, em muitos lugares eu trabalhava em troca da comida e da bebida. As minhas patroas não tratavam a gente direi-to. Isso era um serviço escravo, o senhor não acha?

Hoje, se uma patroa fizer isso, pode ter certeza que ela vai para a cadeia, porque as empregadas dão parte. Vai para a justiça. Mas no meu tempo era as-

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sim. A minha roupa era lavada naquele tanque lá fo-ra. Lá naquele tanque lá fora que eu lavava a minha cara e escovava meus dentes. Agora, a roupa deles era lavada no tanque que ficava na porta da cozinha. O meu varal era um varal de arame farpado lá no fundo do quintal, lá embaixo. Tinha um quintal que ia lá em cima assim, então, descia a escada e lá em-baixo ficava o meu varal. E o deles era estendido aqui em cima na área, num varal de corda, era assim, tudo de empregada era separado.

Foi ali nesse emprego que eu vi o Zé Pilintra pela primeira vez. Ele apareceu um porco desse ta-manho [indicando a estatura com a mão] para mim, depois ele transformou e ficou aquele preto bonito, com aquele terno branquinho e o lenço aqui [apon-tando para o bolso]. O primeiro espírito que apare-ceu para mim foi ele e, depois, foi o Tranca Rua. O Tranca Rua puxou os meus pés e me destampou a noite inteira. Primeira entidade que eu vi no mun-do, aí, depois, eu fui vendo todos eles. Eu conheço todos os meus guias, e conheço também os guias dos outros.

Isso foi em Laranjal e Palma. Palma e Laranjal. Na cidade, na rua da ladeira. Lá eu era empregada do Sr. Bil Salomão, um turco. E a D. Violeta era mi-nha patroa. Ali é que eu conheci e vi as entidades que

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eu tinha. Na época, eu tinha medo. Elas apareciam para mim e eu desmaiava.

[O horto florestal] Lá é um lugar muito bom para se trabalhar, mas eles não deixam a gente en-trar. Não acende vela porque tem medo de queimar a mata. Há muito anos atrás o Sr. Antônio Augusto tinha um centro nas matas lá em baixo. O Sr. Antônio Augusto acabou, morreu, a mulher dele morreu tam-bém e acabou. Eu peguei o terreiro dele.

Se o chefe do terreiro mandar um médium ir lá na mata buscar uma folha, se ele for e trazer é porque ele estava com o guia. Se ele não trouxer a folha é porque ele não estava. E dentro do terreiro também se a gente puser um carvão quente na mão do mé-dium, se ele estiver incorporado ele não queima a mão, mas se ele não estiver certamente vai dar uma bolha que come até a carne. Esse é um outro teste.

Azeite fervendo, se não estiver incorporado o azeite quente come até o osso. E também no do caco de vidro. Eles pegam bastante caco de vidro, quebram e põem em cima do tapete e o guia chegou e o Pai de Santo manda o médium subir em cima e pisar, se ele não estiver incorporado, o sangue vai sair. Agora, se ele estiver incorporado pisa sapateia em cima e sai dali e não tem nada no pé. Eu tive esse teste, meu Pai de Santo mandou meu guia sapatear em cima de um

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tapete de vidro e ele sapateou e eu não fiquei com machucado nenhum no pé. Também já mandou sen-tar em cima de uma tábua com prego, a tábua chei-nha de prego. Prega os pregos, depois vira a tábua e manda sentar, se sentar é porque está incorporado, se não sentar, não está não. E mandou meu Exu também fazer isso: - Se você é Exu mesmo senta aqui que eu quero ver. E ele foi para sentar, aí ele olhou e falou: - Não precisa não, você está incorporado. Mas no caco de vidro eu pisei para lá e para cá.

Um pessoal lá falou: - Que horas que vai acabar que eu tenho que levar os meninos que estão morren-do de fome. Aí ele (o Tranca Rua) falou assim: - Mas por causa de que você não pediu o comer? - Meus meninos não comem comida na casa dos outros [...]. Aí ele pegou e falou assim: - Vai lá naquele pé de ba-nana e corta aquele cacho de banana que está lá! O Merquinho foi lá e cortou o cacho de banana verde e pôs assim [indicando para o chão] e ele foi cantando, cantando e as bananas ficaram todas maduras. E todo mundo comeu daquela banana. É, e a banana amadu-rou. O José Américo trabalha para caramba!

Há poucos dias falaram que viriam aqui e ti-rar duas crianças que tinham aqui, mas não veio não. Mas se vier também eu não deixo. Uma vez chegou no portão, falou que ia entrar aqui e quebrar tudo,

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mas do portão mesmo voltou. É porque as pessoas me vêem assim: cara de boba, uma velha boba. Mas quando eles chegam aqui [apontando para o centro do terreiro] vêem que o negócio é outro.

Porque eu estou conversando aqui, aqui eu es-tou sem guia na cabeça, sou só eu. Estou conversando, estou tratando vocês bem, trato bem todas as pessoas, mas depois que eu entro aqui [apontando para o cen-tro do terreiro] aí muda. Quem governa daqui para dentro são os meus santos. Aí as pessoas vêm para cá, igual há pouco tempo apareceu um Pai de Santo aqui lá da Granjaria e disse que eu não sei trabalhar, que ele no outro domingo ia voltar e ia chamar o Baiano para me ensinar a trabalhar. Aí o Baiano falou assim:

- Bebe um gole de vinho e pode começar agora. Ele saiu daqui bebadozinho, até caindo [Risos]. Eu esta-va trabalhando na linha de Baiano [...].

Os meus orixás aqui são assim: as pessoas che-gam, não adianta você ficar aí assim [fazendo a po-sição de “braços cruzados”], boca de santo, porque se você dever ele costuma gritar lá de baixo: - Você, moço, fez isso assim e assim! - Ah, não, eu não fiz. Aí ele diz: - Você lembra daquele dia assim e assim, vo-cê falou isso e isso. Você sai daqui e nunca mais que volta, você morre de ódio de mim, eu passo na rua e você não olha na minha cara.

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Mas não fui eu que falei, foram os orixás. Um dia desses, saiu um rapazinho daqui pedindo um certo trabalho, mas a gente ia na encruza fazer o que tinha que fazer e ele voltava lá para ver se a gente ti-nha feito direito. Se ele ia lá para ver se eu tinha feito direito, por que ele não foi fazer, se ele sabia fazer tão bem? Aí, ele continua vindo aqui assim mesmo.

Quando foi um dia desses, eu tinha colocado a faca do Tranca Rua ali para enxugar, porque tinha areado ela. Essa faca é dele trabalhar, eu quase não pego nela, é dele fazer as mirongas dele. Aí então, ele vai lá e rouba a faca e vai embora. Ninguém viu essa faca. Aí, eu entrei e vim trabalhar, fui a última que entrei. Chamei o povo de Ogun. Chegou com São Jorge. Aí, trabalha dali, canta daqui.

Aí virou para a Raquel e falou assim: - Cadê a faca do homem? A faca do homem sumiu, ninguém viu. Cadê? A Raquel achou que estava na casinha, foi lá e não estava, veio de dentro e não estava. Os mé-diuns tiveram que tirar as roupas todas e irem para as ruas caçar, porque poderia ter entrado alguém, e ele está quietinho ali onde você está [cruzando os braços] [pequena pausa].

Ninguém tinha tirado a faca e ninguém viu. Aí Ogun foi embora e falou assim: - Eu vou embora e vai descer quem executa. Aí, desceu o Exu da casa.

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Foi lá fora, chamou a Raquel, fez o que tinha que fa-zer e falou com a Raquel: - Pode ir para dentro por-que daqui a sete minutos a faca aparece. Veio embora. Subiu e eu fiquei sem guia. Não demorou nem cin-co minutos e ele me chamou ali: - Oh Dona Marlene vem cá, deixa eu falar um negócio com a senhora. E as pessoas: - Por que está todo mundo sem roupa? O que está acontecendo? Roubaram a faca do Tranca Rua e ninguém sabe aonde é que está. Mas aqui não tem ninguém estranho, todo mundo que está aqui é conhecido. Estranhos que estão aqui são só o Braz e o Pedro, mas eles não saíram daqui.

Aí ele falou: - Pode ver se está comigo [levan-tando a camisa]. - Eu não estou falando que está com você e nem estou falando que vou chamar a polícia [tossindo], é você que está falando, então, você sabe onde a faca está.

Ele saiu do lado de fora e me chamou: - Dona Marlene, vem cá [fazendo sinal com a mão]. Eu disse:

- Vem cá você que eu não vou aí, não! Eu vou procu-rar a faca senão eu não posso tocar o trabalho para a frente. Se a faca dele não aparecer eu vou trancar o portão e chamar a polícia. - Não, eu preciso falar com a senhora em particular, vem cá. Fui eu que roubei a faca. - Aonde está a faca? - Eu levei lá para a frente. Chamei o Edu e falei: - Vai lá, porque se ele pegar a

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faca, de lá ele vai. A faca ele levou e enfiou debaixo de um monte de pedras. Agora, como se eu não sabia se a faca tinha sumido e o guia falou que a faca tinha sumido. É porque eu estou trabalhando.

Ele trouxe a faca de volta. Ele queria roubar por roubar. Esse nunca mais reza aqui. Eu areei ela bem areadinha. É uma faca antiquíssima que ele ga-nhou, é só para fazer os trabalhos dele, não finca em ninguém. Ele chega, pega ela, vai lá para fora, outra hora vai lá para a casa de Exu, lá ele faz o que tem que fazer, larga a faca lá e vem embora. Eu areei ela bem areadinha porque o cabo dela é de prata. Eu pus para secar. O Senhor Exu da casa chegou e falou com a Raquel: - Daqui a sete minutos o ladrão da faca vai aparecer, ele mesmo vai falar, pode ficar sossegado.

Mas, não demorou sete minutos, nem cinco minutos e ele já falou de uma vez: - Fui eu que rou-bei a faca! E a faca está aí. E ele voltou aqui e eu dis-se: - Agora, nunca mais você entra no meu terreiro, se você não quiser ir embora, vou chamar a polícia para você. Você é um ladrão de faca! Não adianta você roubar a faca, porque se você matasse alguém ou fizesse qualquer coisa o dono dela não ia deixar e, mesmo, ela é registrada na cadeia.

Quando eu fiz a Ata, eu mostrei as ferramen-tas deles, porque sem essas ferramentas eles não tra-

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balham. Eles têm que ter. Agora, elas não ficam aqui, elas ficam presas debaixo do cadeado, lá na casinha deles. Está lá, o garfo deles, está tudo lá. Aqui den-tro não fica [apontando para o terreiro]. Fica preso lá, porque a gente não conhece as pessoas, não é? Não sa-be quem tem coração bom e quem tem coração ruim. Está tudo na casinha deles, trancado com cadeado.

O que eu tive mais grave foi o roubo da faca. E também teve um homem lá do Leonardo aqui, a mu-lher veio aqui para benzer e pedir umas certas coisas Aí, ele ficou sabendo que esteve aqui e veio com um revólver. Estava em pé aqui [apontando para o lugar] assistindo o trabalho com o revólver. Mas ele estava querendo atirar na mulher.

Lá de dentro o Baiano trabalhando viu. Veio perto dele e falou assim: - Escuta uma coisa, você está muito nervoso hoje? Não, por quê? - Por causa de que você está armado? Aqui nesse terreiro é livre e liberal, todo mundo pode entrar aqui. Por causa de que você está com arma aqui? Quem anda arma-do aqui, moço, sou eu, tem a minha faca aqui [mos-trando com a mão como se tivesse empunhando uma espada], passa essa arma para cá. Oh, senhor cambono pega essa arma desse rapaz. - Mas eu não estou com arma não. - Está sim, levanta a camisa dele. Aí a Raquel veio e... Aqui, toma. Aí a Raquel

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levou, pôs a arma lá, depois que acabou tudo en-tregou, e ele foi embora e nunca mais voltou aqui.

- Por que você trouxe essa arma aqui? - Porque se a minha mulher estivesse andando num lugar errado, eu iria matá-la.

Sabe, ele desapareceu da vida dela. Ele não tem mulher mais, ele sumiu. As entidades fizeram ele desaparecer, porque ele estava querendo matar a mulher. Sumiu, ninguém sabe para onde ele foi. Ele arrumou a roupinha dele, pôs na mochila e rachou fora. Agora, a mulher dele ouviu falar que ele está em São Paulo.

A mensagem que eu quero deixar... Quero falar com todas as pessoas que vão ouvir o que estou di-zendo neste momento: - Que Deus deixou a estrada pequena e estreita é para conduzir à vida eterna. E a larga e espaçosa, para a destruição. Mas, todo mundo pode tirar um galho de qualquer uma das duas e se-guir o caminho, e de Deus ser voluntário.

Eu era crente, católica e sou católica até hoje, porque eu acredito em Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, na Virgem Maria, em todos os santos e nos orixás. A mensagem que eu quero deixar para as pes-soas que não entendem nada do espiritismo e não querem acreditar nele é para eles procurarem fazer uma meditação de pensamento e coração e passarem

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a conhecer melhor a Deus. Porque Deus é espírito e saiu das águas. Então, quando eles não quiserem o espiritismo, ninguém é obrigado a aceitar, mas não prejudiquem e não ataquem as pessoas que são es-píritas, porque eles estão andando dentro da lei com uma religião. O espiritismo tem um código [pausa] eu queria dizer que nunca fiz macumba para prejudi-car e não vou fazer, a minha macumba é para o bem, é para fazer a caridade.

E se todos pensassem igual a mim, não existi-ria outra religião melhor do que o espiritismo. Que é para eles deixarem a hipocrisia, deixar o racismo e a discriminação e amar a Deus com o espírito de verdade, mesmo que eles não queiram ser espíritas. Mas que não falem mal. Porque eu tenho pena de quem fala mal, porque eles não sabem o que Deus está guardando para eles. Deus tem uma vara da dis-ciplina para todos nós.

Dêem a oportunidade de levar a minha re-ligião em frente. Isso aqui é só uma religião, aonde que se faz o bem e a caridade. Mas, eu raciocino como uma mulher que tem pensamento. Eu já sofri muito na vida, e hoje sou feliz por causa da crença que tenho. Aqueles que sofrem se quiserem me pro-curar, mesmo que eu não possa ajudar espiritual-mente, mas eu posso ser uma amiga, uma conselhei-

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ra e ajudar a conhecer mais a verdade do evangelho espiritual.

Eu espero que todo o mundo que tiver preci-sando de uma ajuda espiritual, tem minha rua e meu endereço. A minha casa está aqui na Taquara Preta, pode me procurar que eu vou fazer tudo para ajudar. O que estiver no meu alcance, se Deus me permitir, porque a lei é de Deus e se ele não permitir eu não posso fazer nada. Mas, com pouca fé que eu tenho e mesmo não sabendo nada, Deus me reveste de es-piritualidade e o que eu puder fazer para ajudar as pessoas, eu quero ajudar.

Entrevistada por Inácio Manoel Neves Frade da Cruz e José Otônio Sabi-no Silva em 24/9/2011

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“Eu tenho revirado o mundo e o mundo tem me revirado / você me conta sua vida e eu vou te contar meu passado”

Eu nasci em Abaíba, no município de Leopoldina. A infância minha foi uma infância assim, menino de trabalho. Eu nasci dia 7 de junho, meu pai morreu dia 11 de agosto. Quer dizer que fui criado com meus irmãos e cada qual mais ocupado. Então

J O S É J Ú L I O 9

L Í D E R D E G R U P O S D E “ M I N E I R O - PA U ”

E “ F O L I A D E R E I S ”

8 3 a n o s

9) José Júlio é descendente de escravos da região de Abaíba (Leopoldina) e não é somente líder, mas também participa de grupos de “Mineiro-pau”

e “Folia de Reis.

Foto: José Júlio, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 2011

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não estudei, por isso que no início eu falei que não estudei. Dali, mudei para Providência, em 1951 e eu casei lá. Lá eu tirei três anos e em 58 eu vim para Cataguases trabalhar na Usina Maurício e continuei sem estudar. Vivi esse tempo todo e hoje eu sou apo-sentado há 21 anos, graças a Deus.

Eu nasci em 1928 e meu pai, morrendo muito rápido, um mês e pouco, me deixou sem registrar. Eu fui registrado em trinta e dois. Já quatro anos de dife-rença. Vinte e oito para trinta e dois.

Eu fui, eu acho, que uns doze dias na aula, mas logo na frente. Criança lá na roça [...] e o que eu fazia, eu ficava no estábulo tratando de gado. Aí, meu ir-mão falou: se você não quer ir para o estudo, então você vai trabalhar. Aí ele me colocou a trabalhar. Não estudei.

Minha mãe era uma pessoa muito calma, ela só se preocupava com a gente, não é? Ensinando sempre o que a gente podia fazer e o que não podia fazer. E contava uma história para a gente que ela ainda pegou um bocado da escravidão. Quando a es-cravidão acabou ela tinha doze anos. Sempre trazen-do a gente num cabresto... Posso falar não é, vocês estão dando licença.

Eu arrumei uma namorada com dezessete anos e ela me proibia de ir na casa da namorada. Eu

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para ir, tinha que ir escondido. Aí, namorei acho que um ano e pouco e deixei também e passei a namorar essa aqui, minha esposa, eu namorei seis anos para casar e namorei um ano e tanto escondido. Quando foi um dia que meu irmão descobriu e falou com ela [...] mas aí foi mais aceito, graças a Deus e a vida foi mais ou menos isso.

Ela trabalhava numa Fazenda do São Pedro. Eu não conheci o moço, mas era um senhor de no-me Chiquinho, Chiquinho Reis que era o dono da Fazenda do São Pedro e dono dela. A minha avó, que eu conheci um pouco ainda, acho que era escra-va mesmo. Mas ela tinha uma natureza boa, muita saúde e ela alimentava os filhos desse senhor, desse Chiquinho Reis, que era o dono da fazenda do São Pedro. Era mãe de leite dos meninos dos donos da fa-zenda. Era presa ainda, minha avó ainda foi presa. A mãe também foi presa, ainda não podia ter liberdade de sair.

Lá tinha mais lá uma família de Lopes. Que era mais ou menos também mais considerada e tinha aquela senzala da família Lopes e a família Torres. Essas duas famílias ocupavam o mesmo lugar, a mes-ma casa.

Ficava no município de Leopoldina, em Aba-íba. Abaíba é um arraialzinho pequeno, então a gente

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morava numa fazenda, então quando acabou isso lá, primeiro a minha mãe me contava que eles vieram de uma fazenda de nome de Iracema. E da Fazenda da Iracema que nós viemos já para trabalhar para os Junqueira, para o Eurico Junqueira.

O Bate-pau, lá onde a gente morava tinha um senhor muito, daqueles bem de idade mesmo, chama-va Rafael. Já tava cambetando, mas tinha aquela pre-ocupação com criança, aquelas coisas, e ele inventou esse Bate-pau. Falou, vou trazer uma coisa para vocês, vou deixar para vocês aí. E eu vou fazer um Bate-pau. Aquilo ele começou a ensaiar. A gente ia para lá, para um curral de boi e fazíamos aquelas coisas todas.

Esse Sr. Eurico pra isso ele era, para o futebol, folia de reis e tem um tal caxambu, já ouviu falar? É o caxambu, então ele dava uma assistência muito grande na fazenda. Nós tínhamos isso e qualquer coi-sa que precisava ele ajudava. E ele fez esse Bate-pau, acho que uns cinco anos aquilo foi uma maravilha, menino, antes dele morrer.

O patrão ajudava, dava aquela consideração a ele. Tinha até rainha, acho que vocês nunca ouviram pronunciar esse nome. Escolhia lá uma menina da fa-zenda que a gente achava que era mais querida, mais simpática, comprava uma vestimenta luminosa para ela. Ela representava a Princesa Isabel, arrumava um

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animal, uma charrete, colocava ela em cima. E elas iam com aquele livro e a gente batendo e cantando.

Da Fazenda da Abaíba a Fazenda da Varginha. Tudo era de um dono só, todos os anos no dia 13 [de maio] fazia isso. Fazia do Caxambu, o Caxambu já era dia 16 de junho. Não fazia dia 13, fazia dia 16. Nós fazíamos sempre a festa lá. Dava três quilôme-tros. Não, a gente não batia em seguida. Batia aí, uns oitocentos metros e parava e tornava a continuar, da-va uma descansada até chegar. No ano que eu casei, casei em cinquenta e três, ainda teve. Nossa Senhora, parava todo o mundo naquelas três fazendas ali. Tem a fazenda do pai do Doutor Ivan, do dono da Força e Luz, do Dr. Ormeo Junqueira, a fazenda fazia divisa ali e aquilo ia todo mundo, parava todo mundo.

Naquele tempo eu não gravei aonde apren-deu a raiz do Bate-pau, se foi lá na escravidão que ele achou aquilo. Entendeu? Aí eu vou ficar devendo. Mas eu sei que foi esse senhor com nome Rafael, um homem que ensinava a gente a rezar. Eu falo com os meus meninos que a gente fazia um catecismo por esse moço. É. Por esse moço, o patrão dava a ele uma liberdade e ele levava a gente lá.

Menino, ele rezava benzeção, ele rezava terço. Esse Caxambu, eu até vi essas meninas aqui, elas es-tão com um Congado. Elas estão com um Congado

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e cantando Reis. Eu tive lá uns dias, mas não deu certo. Na terceira idade. E ele cantava até o Congado também. Não tem nada a ver, o Congado é Nossa Senhora do Rosário, você sabe disso? Congado é Nossa Senhora do Rosário, o Reis são os três Reis, o Caxambu é que eu não sei o significado do Caxambu. Mas esses dois aí eu sei.

O Bate-pau é trovado. Você entende o que é tro-vado? Eu tenho que trovar aquilo na hora. Eu não pos-so ter aquilo gravado, então eu vou cantar o Bate-pau:

“Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pauÉ Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pauEu tenho revirado o mundo, o mundo tem me reviradoChora, Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pau”

- O que eu vejo eles cantarem aí agora, eles can-tam trova de amor:

“Menina casa comigo, eu agora já trabalhode dia toco viola, de noite jogo baralhoChora, Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pau”

E nós lá não. Nós tínhamos aquilo pelo impro-viso, nós fazíamos aquilo mais ou menos no improvi-so, ninguém sabia.

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“Eu tenho revirado o mundo e o mundo tem me reviradovocê me conta sua vida e eu vou te contar meu passadoChora Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pauO que entrou por cima hoje, vai sair por baixoEu estou comendo do pão que o diabo amassou com o rabo”

– A gente sabia mais ou menos umas coisas assim.

“Eu vou contar uma história que é dura de acreditardum lugar de muito longe, ontem mesmo eu vim de láchora Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pauterra de Sansaruê, terra de Sansaruáque eu levo a minha família nunca mais eu volto cáchora Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pau”

Mas isso aqui eu não estou trovando agora, que eu tenho desde moço que casou há muito tem-po. E eu fui muito inclinado a cantar, menino, Nossa Senhora, eu era doente, é o que mais eu pensava. Até hoje, ainda tem hora que eu paro, mas minha voz não tá boa não. Eu estou falando com esse menino aqui,

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que não tem Reis, Bate-pau, Folia, eu não aprendi a tocar um instrumento, que o pessoal não deixava, eles queriam ver a gente cantando. É, todo o lugar que ia: vá chamar o José Júlio, mas para cantar.

Em 1964 nos fomos lá, eles vieram me chamar. Lá perto de Manhuaçu. O pessoal de lá fez uma Folia para ir lá e o senhor chamava José Viela, aí ele falou:

- Vai atrás do José Júlio lá em Cataguases, que vai pre-cisar duns cinco para ir lá cantar. Daqui fui eu e um tal de Nelson Antunes. Eles só queriam ver a gente cantando.

Tem várias batidas diferentes. Por exemplo, tem essa e tem uma outra:

“Tchau, tchau, tchauCadê meu boiTchau, tchau, tchauCadê meu boiO meu boi tá na invernadaVai buscar meu boiO meu boi tá na invernadaVai buscar meu boiMeu boi malhado vem pegando que nem fogoMeu boi malhado vem pegando que nem fogoE o meu boi desceu da serraPra dá alegria ao povo”.

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Semana passada eu chamei o Zezinho, mas ele está muito preocupado não sei com que, que nós íamos gravar aqui em casa. Eu, ele e o menino aqui embaixo, da Nadir, falando na escravidão. Tem uma menina aí que pediu para mim fazer para ela. Ah, Zé Júlio grava lá e traz para mim. A Joana. Mas o Zezinho está com moleza, não veio, mas eu falo bas-tante na escravidão.

Não vou lembrar, mas pelo que vocês fizeram por mim, que às vezes eu acho que eu até nem mere-ço. Menino, você não acredita, eu fico muito satisfeito quando vem uma pessoa aqui em casa, procurar por mim. Eu não sei por causa de que, é aquela vontade, é aquela coisa, eu fico satisfeito. Eu sinto que eu es-tou sendo procurado, sendo valorizado.

[A música] no Bate-pau é para o povo ali pe-gar o ritmo. Tem acho que uns cinco anos, eu levei um Bate-pau aí na praça, fui avacalhado lá, pior do que tudo. Porque eu levei um gaúcho, já ouviu falar nele? Ele veio lá de um lugarzinho, de Agaturama. Já ouviu falar, não é? Então eu entusiasmei muito, eu tive uma notícia que ele cantava muito e eu fui lá jus-tamente para ver se ele falava um bocadinho de es-cravidão. E chegou aqui, rapaz, era pior de que eu. Aí fiquei assim sem jeito de [...] Fiquei com a cara gran-de lá porque o Bate-pau, menino, você tem que ter:

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um para cantar, nós tinha oito meninos batendo, do-ze homens grandes batendo, eu cantando, o Zezinho tocando, dois violões e um cavaquinho e seis pessoas para responder.

Se for para mim cantar o Mineiro Pau, a le-tra e dar resposta “É, Mineiro-pau”, eu não aguento. Então essa parte tem que ter aí uns seis para cantar

“É, Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pau”. Então eu não tinha isso, e foi acabando cheguei lá para can-tar, tinha o menino de nome José Viela, lembra dele? É que marcava o Bate-pau, que tem duas, [...] Vou te explicar direitinho, ali no meio tem que estar muito atento, para dar um aceno, para ver o que vai bater de três, um apito pipipi pipipi, na hora do apito para repicar quase como um carnaval. – Vão repicar! E aí pipipi pipipi e aí acelera plaumplaumplaum plaum-plaumplaum. Assobiou mais lento, apitou lento. Você entendeu? Posso cantar. Aí eu vou cantar estressado:

“É, Mineiro-pau, Mineiro-pau, Mineiro-pau” [trovan-do num tempo mais rápido].

[Quando aprendi] só tinha dois surdos, um ca-vaquinho, um violão e uma sanfona. A sanfona era um homem chamado Pedro Carneiro que tocava a sanfona. Mas ele é verdadeiro mesmo, de um lugar-zinho aqui pra cima, para os lados de Além Paraíba e Angustura, não sei se você já ouviu falar? É. Ele é de

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Angustura. Era bom no Caxambu, menino, ele rezava Umbanda [Risos]. Era um senhor que eu não sei, às vezes, estou mentindo, mas ele fez muito casamento aí. Ainda lembro de um camarada, um dentista que existia na Granjaria. Ele foi até preso por causa disso. Tinha um senhor, o João Peixe, famoso na Granjaria. Ele fez um casamento de uma neta daquele moço a poder de reza. Às vezes não foi nem por causa de re-za, mas ele enfiou na cabeça da menina e do rapaz que só ia casar. Mas os pais não queriam, os parentes não queriam.

Ele insistiu muito lá no Horto, quando a gen-te entrava na mata do Horto, tinha uma esquerda era lá, eu mesmo cheguei a ir lá umas vezes. Era o terreiro dele. Aí quando acabou que ela casou, a menina, e correu aquela notícia e o João Peixe deu parte dele, que ele tinha um terreiro lá, batia uma Macumba toda quarta-feira. Quando é um dia, a polícia foi lá e prendeu ele por causa disso. Ele teve uns quinze dias preso lá. Não sei que interesse do Doutor Serafim, advogado, você chegou a conhecer? Serafim Lourenço, é na chegada ali da praça, que ti-rou ele.

Cheguei [a ir ao terreiro]. Muitos santos, muito Preto Velho, Santo Antônio, São Joaquim. Era grande o terreno dele. O terreiro dele lá era completo mesmo

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de santo. Eu fui lá acho que umas três vezes. O José Elias me levava, talvez vocês nem conheceram. Eu fui lá umas três vezes, mas depois eu parei também, pensei que era bobagem ficar insistindo num negócio desse.

Hoje tem o bumbo, hoje ninguém bate nem o surdo e nem o bumbo mais. Eu ainda fazia com um surdo e um bumbo. Essa menina aí agora só faz com duas caixinhas e o chocalho, a Joana. Ela não usa o bumbo, não usa o cavaquinho, não usa o violão, ela não usa mais nada disso. Ela só usa mesmo a sanfona, que é um senhor de nome Benedito que está tocando para ela. E um surdinho pequititinho, uma caixinha pequititinha e a sanfona e o chocalho. O chocalho é até um rapazinho aleijado, deficiente que toca para ela.

Nós tínhamos um berimbau que hoje é usado muito na capoeira, você sabe disso. Só que tem que o escurinho agora não tem, mas o Sr Rafael lá, puxava aquilo menino, que aquilo tinia. Não sei se era o ara-me fininho que ele colocava ali, mas dava para todo mundo ouvir aquilo. Ninguém mais usa hoje.

Lá onde nós morávamos era só mesmo ho-mem. Nem menino nós não tínhamos na ocasião. Aqui é que eu coloquei. Eu tinha um Bate-pau acho que há uns cinco anos, [...] Nós fomos em Juiz de Fora, fomos lá em São Geraldo, mas depois aquela

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força veio acabando. Eu perdi acho que cinco com-panheiros já e a gente não acha outro para colocar igual, muito difícil. Se você perdeu aquele vem outro, mas não vem igual de jeito nenhum, não pega aquela vontade. É desse jeito assim agora.

A mesma coisa a Folia, a gente já não acha mais aquele pessoal animado que vinha para a Folia, com vontade de fazer aquilo bem feito. Uma coisa que ho-je tem que eu saio com uma Folia, mas sou obriga-do a falar [baixinho]. Uns quatro ou cinco que não tiverem tomando uma pinguinha, não estão ali. São coisas que não cabem na Folia.

Ah, quando acabava, nós saíamos da Abaíba e íamos na Varginha. Quando chegávamos lá aquela bitela daquela fogueira e tinha pinga à vontade. Tinha uma cabaça, é uma cumbuca, vocês sabem, não é? Levava naquilo, naquelas cumbucas, enchia às vezes quatro, cinco cumbucas. Mas antes de bater era proi-bido. Não podia tomar de jeito nenhum. E quando acabava de bater, lá para as oito, nove horas, tinha um baile. Fazia um baile lá, o pessoal dançava a noite inteirinha.

Quando nós começamos lá, que esse moço co-meçou, eram três vezes por semana porque ninguém sabia aquilo. E o senhor Rafael veio de Espera Feliz para Abaíba, e chegou lá e deu essa ideia de fazer o

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Bate-pau. Ah, mas ninguém sabe como é que é, como é que vai ser. – Não, eu vou treinar os meninos. O senhor me dá um tempo que eu vou. Manda cortar madeira. Hoje, menino, nóis usa qualquer madei-ra aí, mas naquela ocasião tinha uma tal de Bainha de Espada. A Bainha de Espada ela dá aí, é a mesma coisa do eucalipto, certinha mesmo. Agora tem um menino de nome Jurandir que falou comigo que na mata da usina tem. Mas por lugar nenhum aqui, que eu saí e procurei não. Eu conheço só por Bainha de Espada. Ela não engrossa muito não, mas dá aquela arvrona certinha, retinha. Lá tinha uma mata, aquela mata da Santana, era muito grande mesmo, e a gente ia lá nessa mata, lá na Abaíba, cortar essa madeira lá.

Nós sempre cortava ela e colocava dentro do barro, para ela ficar amarelinha. Você corta a Bainha de Espada e não tira a casca não e entoca dentro dum barro seis meses e depois você vai lá e puxa e sai lim-pinha, a vara fica limpinha. Sai a casca e ela fica ama-relinha. Todo o ano nós cortava.

Hoje já não é assim mais, menino. Eu não te-nho mais, que a minha madeira eu fui emprestando, que de vez em quando um inventa. Aí a Joana aqui em baixo, a professora aqui em baixo, a Vilma, vivia pedindo emprestado. – Pode levar Vilma... e fui aca-bando, não tenho mais. O Custódio vinha também.

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Eu abandonei, ele vinha pedindo e eu sem jeito de não servir pra ele.

Mas todos os anos nós reformava e nós tinha uma roupa “Balangadã” e ela dava uma dobra as-sim [de pé, mostrando a dobra], isso aqui descia cá embaixo. Dava uma dobra vinha para cima e aqui caía cá embaixo. Era lamê que a gente falava naquela ocasião. Usava aquilo na ocasião. E todos os anos era um camarada de nome de Isaac, até morreu em Juiz de Fora, ele fazia questão de dar essa roupa para nós. Agora, a calça era mesmo comum, a gente comprava. Azul e a calça é branca. Antes era descalço. Hoje vai todo o mundo calçado.

O samba, a gente fazia o samba dia 13 de maio também. Fazia uma fogueira grande e aquilo ali, que eu vou contar é um caso de resposta. Você fazia um ponto para mim responder. Numa ocasião eles fize-ram um samba lá, eu não sei o significado, um rapaz com nome de Antônio Sérgio. Ele chegou e batia uma caixa que tinha um menino de nome de Lica, morreu agora esse ano passado, ainda batia ainda, menino. E a gente entrava cantando naquela toada ali e esse Antônio Sérgio chegou e cantou:

“Olha o tombo do cabeça, chaveia Boi barroso era dentista, chaveia”

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Ah, menino, eu não sei por causa de quê. O significado do que ele cantou. Só sei que aquele pes-soal de idade juntou nele, mas bateram muito nele. Ele era um menino novo ainda Ele tava fazendo uma afronta ali. Ele chegou e cantou, ah, mas juntaram nele. Tinha até um senhor também com nome de Guilherme, respondendo o ponto dele

“Oh, moleque malcriado o que que veio fazer aquiOh, moleque malcriado o que que veio fazer aqui”

E pau nele rapaz. Apanhou muito.Em Abaíba era quente, era bom, mas bom mes-

mo. Era um lugar animado que você precisava ver co-mo é que podia ser a fazenda. De vez em quando eu perco o sono assim, eu conto, me parece que tinha ses-senta e tantas casas. Esse moço tirava muito leite, o Sr. Eurico, era para ter alguma história dele. Foi o maior criador de cavalo aqui na redondeza, cavalo abaíba. Lá, hoje, ainda tem o filho dele. Chama Antônio. Mas, está bebendo, menino, bebendo que só você vendo, com o cabelo batendo cá no meio das costas.

Houve perseguição. Foi com um Bate-pau. Essa menina aí embaixo, a Vilma, que levou em Vista Alegre. Fomos mal recebidos que só vendo. Nós le-

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vamos um boi e uma mulinha e eles pegavam a mu-linha e saíam arrastando ela pelo rabo. E lá tem um senhor que já está velhinho. Se ele não estivesse lá, a gente nem ia apresentar. Aí ele chegou e falou “não vai, chama Totõe, ainda está vivo lá, vai representar o Bate-pau. Vocês vão fazer o favor, deixa bater o Bate-

-pau, depois eu vou conversar com vocês.” Acho que ele tem um certo respeito lá, não é? Aí aquele pessoal retirou tudo e nós batemos o Bate-pau. Isso foi em oitenta e dois, mil novecentos e oitenta e dois.

Eu, menino, tudo o que eu faço, eu tenho só que agradecer a Deus. Eu comecei a sair com uma fo-lia em oitenta e seis, nesse tempo, só tem um ano que eu fui mal recebido na vila Leonardo, por causa de dois garotinhos. Eu levei um. O moleque é até meu neto, rapaz, onze para doze anos.

Levei esse neto meu para bater numa caixa, que ele batia muito. Nós estávamos cantando numa casa e eu vendo, eles tão acenando para mim, acenan-do para mim. – Eu falei: será o que está acontecendo? Aí eu parei, vim ver e eles falaram: - Oh, tem uma tur-ma de garoto aí com pedra para jogar no seu neto. E eu falei: - O que nós vamos fazer agora? Ah, estão to-dos com pedra aí, acho que tinha uns oito meninos de lá prá juntar esse neto meu. Aí é que eu fui obrigado [...] quer dizer, num lugar do Leonardo, dar um tapa

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num menino daqueles é um inferno completo. A gen-te não tinha jeito. Aí eu falei: - Prefiro ligar para um táxi vir aqui apanhar ele e levar ele de que fazer con-fusão. Aí eu liguei e foi lá. Aí os moleque só ficavam falando comigo: - Nós vamos pegar ele lá ainda, nós vamos pegar ele lá ainda, questão de campo de fute-bol de criança, um moleque lá marcou ele. Mas é só.

O resto eu sou muito, Nossa Senhora, eu não tenho nem jeito agradecer. Eu saio daqui para ir em Itamarati, Nossa Senhora, é cada Folia! É das seis ho-ras da tarde às cinco da manhã lá. Fui com esse Bate-

-pau lá em Juiz de Fora, foi na ocasião desse prefeito que faleceu, o Paulo Schelb. Ele que fez tudo. Falou:

“eu vou levar o Bate-pau lá e vocês me representam lá direitinho mesmo”. Nós fomos. Fomos lá em São Geraldo. São Geraldo parece que o pessoal não sabia o que era, mas aquilo ferveu de gente para ver a gen-te cantando lá.

É na escravidão, menino, o que tinha muito era o negro, não é? O velho sempre falava conosco que até no Bate-pau tinha uma separação [...] Que aque-les que saíam bem, tinham mais um privilegiozinho. Ah, esse aqui é do Bate-pau, é a coisa assim. Aqueles que não batiam, eram mais castigados. Aquelas coi-sas que eles queriam aprender na escravidão, que a gente não conseguia aprender e também não dava

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muita oportunidade. Ah, esse aí sabe bater pau, dá uma folga de uns dias.

É. Os bambas do Bate-pau ganhavam um pri-vilegiozinho. É o que passava para nós. Ele está ve-lhinho mesmo. Ele e a dona dele. A dona dele chama-va “Lopa”. Ela batia um dente no outro. Os dentes dela estalavam assim, oh (bateu os dentes sugerindo um movimento de estalar a arcada dentária). É, de tão velhinha que ela estava.

Porque era uma função entre o claro e o escu-ro. Lá mesmo quando começou, não foi bem aceito o claro bater. Quando ia bater, falava assim: - Não, não pode entrar branco não, isso é festa só de preto. Mas, com o tempo, já foi unindo, já tinha gente branca no meio. Batia junto com a gente, a carcaça escura, já ti-nha gente que batia.

E nesses tempos, vou até te falar uma coisa, tinha um salão lá, uma festa lá de claro, por causa desse fato ele conseguiu entrar lá. Na ocasião, épo-ca de exposição em Leopoldina, quarenta e sete. Acho que foi em quarenta e oito. Em quarenta e se-te, eles fizeram uma festa lá no campo, no campo do Abaíba, levaram animal, quem quisesse montar, podia montar.

E ouvindo falar no Bate-pau aquelas pesso-as, claro que quiseram saber o que é e nós fomos re-

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presentar o Bate-pau no meio do pessoal branco, lá. Quer dizer que é uma coisa que deu para unir mais, não é? Deu uma oportunidade de a gente ir lá no meio deles. A gente não tinha a oportunidade de ir lá. Negro, nessa festa, não participava. Só para branco. Era festa de branco.

Bate-pau, que o pessoal queria ver. Para dizer a verdade lá em quarenta e oito ainda existia muito racismo, ainda. Mas muito mesmo, em quarenta e oi-to. Eu estou falando até demais, mas vou contar um caso que aconteceu com o pessoal de Lima. Eles eram todos claros. Tinham uma cooperativa muito grande lá. O pai dela era Cirino Lima, era o presidente da cooperativa. Tinha o filho do Cirino Lima. Tinha uma calçada lá, que é a estação, que nem a gente escura ele não gostava que passasse ali. Não, não gostava.

Tinha uma menina que era professora, Tere-sinha. Aquilo para a gente era uma coisa exagerada mesmo, era muito acima da gente. E quando deu a enchente lá em quarenta e oito - você nunca viu con-tar isso não? 1948, em Abaíba, deu uma enchente, ra-paz, que a gente tem uma história na enchente. Mas matou muita gente. Chegou num ponto que onde a gente achou, enterrou. Quando ela baixou uns dez dias depois a gente achava é muita gente que morreu e enterrava ali mesmo. Enterrava aonde achava.

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Tem um senhor com o nome de Levindo, ele tinha dado aquela catapora braba, tinha ficado todo manchado com aquilo e ele negou de salvar uma me-nina dessas porque eles não gostavam de preto. Ele vendo ela naquele sofrimento, numa grade, e ela gri-tando: - Oh. Levindo! Vocês não gostam de preto, que eu estou fazendo aí? Vocês não gostam de preto. Era branca. Era filha do Cirino Lima.

Ele quis vingar dela. O que eu vou fazer aí? Vocês não gostam de preto, não vou te salvar, não. Depois você vai falar que o preto te salvou. Mas, Deus ajudou que só morreu uma pessoa da famí-lia. Ela mesma. Deus ajudou que salvou. Mas nós éramos muito sem [ininteligível] mesmo. É um lu-garzinho pequititinho, mas orgulhoso que só você vendo.

Naquela sociedade, eu menino novo, muito curioso, eu era uma pessoa agitada, eu queria en-trar. Tudo que eu via, eu queria estar ali. Quer ver um carnaval gente, uma música: “Pra quem trabaia o ano inteiro como louco/ três dia só é muito pouco”. Eu não sei a data que foi. Eu fui passando assim perto do salão dos brancos e me entusiasmei com aquilo e vazei.

Do jeito que eu entrei, dois me pegaram lá dentro, até chamaram o velho Cirino, um pelo um

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braço, outro pelo outro e veio puxando pra fora: – Oh, rapaz você sabe que isso aqui é lugar de branco. Você é preto, rapaz, ainda sem vergonha, ainda.

Mas eu tinha um irmão muito grosso demais, chamava Joaquim, e um cunhado, chamava Carlinho. Aí me levaram lá no peito, não é? - Ele vai ficar aí a quantidade que ele quiser. Aí minha cara já tava grande. Quem ia querer ficar, não tinha jeito de fi-car. Mas eu acho que tava com quatorze anos na oca-sião. Eu achei que eu podia entrar. Que eu vinha de um [...] dava um quilômetro mais ou menos da on-de eu morava da fazenda ao arraial. Abaíba era um Aracatizinho, assim. Eu vim lá da roça, de um lugar mais ou menos e vazei pra dentro do salão. Meu ir-mão e meu cunhado queriam que eu ficasse lá dentro. E eu falei, não, eu não fico, não tem jeito, eu não te-nho cara mais.

O carnaval era separado. Lá era um lugar mui-to quente mesmo. Num carnaval lá veio um rapaz do Rio, com o nome de Pedro. Branco. E nós tínha-mos um salão, o salão dos pretos [...] Lá era numa máquina de arroz, tirava os sacos de arroz todos pra fora, fazia o desfile naquele pedacinho de terra que tinha ali. Voltava e ia dançar o resto da noite dentro daquela máquina de arroz. Era de um senhor de no-me Nadura. A viúva dele durou agora, uns cento e

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um anos. Ela morreu, deve ter, o ano passado que ela morreu. Chamava Mariana. Eu não sei se é verdade que eu vim embora, mas diz que diariamente ela le-vava uma banda de música lá pra tocar “Amélia”. No aniversário dela, ela levava lá, tinha que tocar Amélia e tinha dinheiro pra ela lá, mas, aí, eu já não sei se é verdade.

E nós estávamos no salão de preto, comendo mesmo, uma sanfona tocando e, esse Pedro, era bran-co, veio do Rio e entrou lá no meio de nós. Ninguém recusou o branco. Desculpa dizer, mas nossa casa sempre foi assim: aceitamos mais. Aquilo parece que a gente achava até bom ter um branco lá no meio e ele estava lá. Mas, depois, ele resolveu dar uma ras-teira lá, derrubando gente no chão. E eles pegaram ele de pancada, menino, mas deu uma briga que aí os brancos vieram também.

E o delegado chamava Zé Ferreira, tinha um de-legadozinho lá, aí gritou: - O baile dos pretos acabou! Todo mundo, o sanfoneiro não toca mais! Aí tinha um senhor lá que ficou pobre de tanto fazer coisa errada. Matava e pagava pra sair da cadeia, matava e pagava pra sair da cadeia, aí foi dando terreno dele até que ficou sem nada. E esse moço lançou dum revólver, um embornalzão comprido, cá embaixo e falou: - Não, sô Zé Ferreira. “Que os preto acabou, os branco acabou

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também”. Senão, nós vamos comer eles todos no tiro aqui. E o Zé Ferreira falou: - Não, então volta. Mas, ti-nha isso. Não, nem branco nem negro, era um camara-da russo, assim, na verdade a gente nem sabia como é que ele era. Eu pulo muito na história [...].

Ah, menino, eu tinha treze anos. Em 1941 eu comecei nisso. Tivemos o Bate-pau lá até cinquenta e três. Porque no ano que eu casei, desmanchou. Aí era eu e meu irmão quem tomava conta. Dois irmão meus, Joaquim e Antônio. E tinha um senhor, Bastião Sérgio, esse Bastião Sérgio veio a falecer e eu fazia muito inteiro o negócio, tinha muita colegada. A co-legada era rica demais. Era dona casada, era uma turma grande. Aquilo eu fazia e pedia a eles: - Não, não vamos deixar não. Mas, aí, eu vim embora e meu irmão também desacorçoou. O outro foi saindo tam-bém e acabou o Bate-pau. Mas ainda tivemos um ano ainda. Em cinquenta e cinco ainda tivemos o car-naval, que aí eu estava em Providência. Eles foram lá me convidar. E eu falei: - Agora já casei, não vou mais. Mas em cinquenta e cinco, cinquenta e seis, ain-da teve carnaval e Bate-pau em Abaíba.

Durante o carnaval era outra coisa. O carnaval em fevereiro e março e o Bate-pau em maio. As mú-sicas do carnaval eram umas e do Bate-pau eram ou-tras. Esses velhos cantavam:

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“No dia treze de maioque acabou a escravidãoNo dia treze de maioque acabou a escravidãoPobre canta de alegriao rico chora de paixãoChora mineiro-pau, mineiro-pau, mineiro-pau”

Se eu parar assim sozinho, eu vou lembrando muita coisa que ele deixou. Nada escrito, tudo na memória. Ele falava: “não tem rico, não tem pobre. Hoje todo mundo é doutor”. Ele caçoava.

O Bate-pau, até esse menino sabe. Tem um menino aqui embaixo, o Zé Bigode, ele está ensaian-do um Bate-pau de garoto lá embaixo no Antônio Justino. Mas ontem eu tive informação que eram dezoito, me parece que quinta-feira só teve seis. Porque para você lidar com criança, a primeira coisa que você tem [...] de vez em quando você tem que aceitar alguma coisa deles. Se você botar muito na dura, amanhã aí eles não vêm mais. Aí você deixa ele ir, volta com ele, conversa com ele, dá algumas ideia a ele, que às vezes, põe na cabeça que aquilo vai ser bom.

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Porque quando eu fiz esse Bate-pau de menino, mas foi curto mesmo. O Zé de Barros ali [apontando em direção da morada do citado] me deu uma auto-ridade para ensaiar lá dentro do terreno dele. Aí eu juntava esses meninos e levava prá lá. E o Bigode é um que me ajudou muito. Hoje em dia, não sei por causa de que, nós conversamos e tudo, mas não so-mos muito chegados um no outro [...] que as ideia não bateram bem. Minhas ideias com ele. Me ajudou muito, porque quando nós fizemos ele participou pra ajudar. Quer dizer, a pessoa que atura até formar. Ele ajudou muito. Mas, depois de lá, não deu certo nós dois lá dentro e ele saiu.

Mas ele com essas crianças lá, ele leva muito na dura e ele tirou muito menino de cabeça meu aqui. Ele fez também, ele quis fazer também: – “Não, eu vou parar. É o José Júlio que só é que fala e eu não fa-lo, eu quero também”. Aí ele veio fazer, mas não con-seguiu nem a metade do que eu fiz, mas aí desuniu os meninos um do outro. Nós tínhamos uma dança lá menino, como é que eu fico só pulando [Risos]. Hoje em dia custa muito, mas certa hora da madru-gada ainda pega aqui é “Ioiô deu o braço pra Iaiá”, [...] isso é novo agora, eles continuam nisso, você ain-da não conseguiu não? Nossa [ficou de pé e simulou uma coreografia]:

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Ioiô deu o braço pra IaiáIaiá, o braço pra IoiôTempo de criança já passouPirulito que bate batePirulito que já bateuQuem gosta de mim é elaQuem gosta dela sou eu”

Nós tínhamos isso tudo lá. Hoje eu já nem que-ro mexer mais, não. A gente já não acha umas pes-soas de acordo.

A minha mãe contava uma história de quando ela estava com doze para treze anos. Existia ladrão de cavalo. E ela estava com a mãe dela. Vinha assim no morro. Tinha ido, lá nós fazíamos quarto em de-funto, um velório. E ela vinha descendo uma serra, tinha nome lá de Ouro Preto, pegava lá em cima até embaixo. Vinha ela e a mãe dela só. Não tinha medo, deu certas horas da noite, quando ela vem descendo, vem duas pessoas num animal. Diz ela que tem cer-teza que ela não gritou. Mas os camaradas gritaram:

- Ah, vocês estão falando que é ladrão de cavalo? E partiram em cima. Elas entraram num taboal e eles chegaram e procuraram no meio do taboal.

Pra você ver que é uma história que aconteceu com ela ainda, que ainda tinha aquele [...]. Diz ela

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que não gritou. E eles acusaram: - Vocês estão gritan-do que é ladrão de cavalo, vocês vão morrer agora. E elas conseguiram escapulir dentro do taboal. Estava ela e a minha avó. Até o nome da minha avó é difí-cil Escolástia Maria da Conceição. Outro dia agora o menino olhou o meu documento e falou: - Que nome rapaz! Vocês são italianos, americanos ou o que vocês são? Eu falei: - Olha, eu nem sei o que nós somos.

Existe quilombo lá, aí já está chegando, lá per-to de Pirapetinga. Ela falava: vocês estão enganados, o quilombo lá da Santa Emiliana, você precisava de ver como era lá. Era alçapão e eu não sei o que sig-nifica “funil”. Lá no quilombo tinha funil. Ela falava tinha o funil, lá na Santa Emiliana tinha o funil, lá no quilombo.

Eu cantei Reis em Cataguases, na entrada da Saibreira, foi em sessenta e um. Aqui tem um moço, chama Antônio Amaro, mas era profissional mesmo em Reis. Quem falasse que ele não cantava o Reis, era mentira. Eu tirava o chapéu pra ele toda hora e eu morava logo ali. E um dia de sábado, era umas oi-to horas, chegou um menino lá com o nome de João de Deus e falou: - Seu Júlio eu vim aqui, porque eles prenderam a Folia do Miro. Porque, de primeiro, eles tinham um negócio de prender folia. Prenderam a Folia do Miro, lá na Saibreira. O Sr. Agenor, porque

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diz que o Antônio Amaro não canta Reis. Eu falei: - Ih, não vou de jeito nenhum, se o Antônio Amaro não canta, eu não canto também. Ele foi embora.

Meio-dia, mais ou menos, ele tornou a vol-tar. Eu falei: - Eu não vou, eu não sei cantar. Onde o Antônio Amaro não canta, eu não canto. Aí ele foi embora. De tardinha, eram umas seis horas, a minha esposa até me deu muito apoio nas coisas que eu faço, aí ele voltou outra vez e a minha esposa enfiou: - Vai lá, Zé Júlio, vai ver o que é que está acontecendo lá. Eu falei: - Menino, o Antônio Amaro é um cantador de Reis, mas canta mesmo e esse moço diz que ele não sabe cantar. Eu não vou lá, não. Ela falou: - Vai.

Ela me animou e eu fui lá. O rapaz, dono da Folia chamava Miro. Quando eu cheguei lá, o faleci-do Agenor olhou e falou assim: - O Miro, esse moço é que veio tirar a sua bandeira aqui dentro da minha casa? O Miro falou: É, me informaram ele, um senhor com o nome de Dunga que informou e eu fui lá e ele veio. Eu pedi ele a bandeira, não é?

Falei: - O senhor Agenor, o senhor não me em-prestava a bandeira, para eu cantar do lado de fora para depois eu entrar pra dentro de casa não? Ele fa-lou: - Não, eu vou te entregar a bandeira e você vai embora com ela, uai. E deu certo, a bandeira mes-mo você vai ter que cantar aqui dentro de casa. Aí

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eu pensei bem, ainda tem esse menino do José Atílio aqui que sabe disso, você conhece? Casado com a fi-lha do Sr. Celso aqui embaixo. Ele e o Custódio sa-bem disso, eles eram meninos novos lá na ocasião e estavam lá cantando.

Aí eu cheguei, entrei pra dentro de casa, pare-cia que eu estava assim, dentro de uma coisa de gelo, eu não sabia o que eu fazia, acreditando no Antônio Amaro eu comecei cantando, fui cantando, aí ele fa-lou: - Para! O falecido Agenor, falou: - Miro, você aqui com um moço que sabe cantar Reis, você vai lá em Aracati buscar um que não sabe. Mas, meni-no, para mim aquilo era como se eu tivesse ganha-do na loteria [Risos]. E daí eu comecei, cantei para o Dininho, cantei para o Coutinho, mas cantando para os outros. Quando foi em oitenta e seis eu criei es-sa folia e saio até hoje por minha conta. Esse ano eu quero parar também.

É muito pesado porque você não tem mais quem aprendeu a cantar o Reis. Aí sobra só para mim, porque sempre que o Zé Vielo [...] eu cantava em du-as casas, ele cantava numa. Ele cantava duas, eu can-tava uma. Aí um preservava o outro. Hoje, não tem.

Aqui na frente tem um moleque novinho que canta muito, canta muito mesmo. O neto do Bigode. Mas o moleque canta mesmo. Eles vieram aqui em

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casa esse ano e eu vou falar com você: - Eu bati pal-mas para eles. Mas o avô dele, não deixa ele cantar. Ele sempre está fazendo uma confusãozinha ali, acho que ele não quer que o mais novo aprenda. Porque, se fosse comigo ele já era na frente e eu já estava lá atrás deixando para ele. É, mas canta mesmo, todos os dois: Daniel e Roni.

Nenhum filho interessava. O que interessou um bocadinho foi embora para o Rio. É, mas, meus filhos nenhum. Todo mundo dá apoio assim: no tra-balho, no dia que nós vamos fazer uma entrega aí, eles estão todos juntos comigo, no que eu precisar. Mas apóiam mesmo, as meninas. Mas, se for pra sair comigo uma noite, eles não saem. Se for para cantar um verso aqui, eles não aprenderam a cantar. Então, eu pensei bem esse ano, se der tudo certo, eu vou fazer encerrar. E eu faço a entrega ali embaixo num terreno vazio ali e você vai ser convidado, viu Zezé, para me ver fazer a entrega.

A bandeira tem vinte e seis. E eu tenho uma filha, que eu consegui trazer ela. Ela está lá em Friburgo. O ano passado eles vieram aqui, para eu le-var essa Folia lá em Friburgo. Eu tenho uns meninos lá, uns sobrinhos, aí eles levaram essas fitas para lá e falaram que o pessoal lá ficou admirado de ver na casa deles. Mas eu falei: - Não tem condições de levar.

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– Não. Vê aí o que vai precisar e nós levamos vocês lá. Mas, o medo atrapalha muito a gente. O que você vai fazer com medo, não sai bem feito. E eu tive medo de chegar lá e ver aquela multidão, não é menino, e tremer.

Porque eu fui lá em Além Paraíba e lá tinha nove folias e eu fiquei pensando: - Como é que eu vou sair no meio desse pessoal aqui. Mas, graças a Deus, se eu não fui o primeiro, não fiquei também lá no último, não. Tem até um troféu esse ano que eu ganhei na Prefeitura, aí. Às vezes eu vou falan-do assim e parece que ele esta querendo crescer, mas para cantar, menino, vou falar pra você, de explicar a letra, eu sou formidável. Graças a Deus, se eu can-tar aqui quem está lá fora na rua sabe o que eu falei. Preparado mesmo. E aí eu vou ver se eu consigo essa fita e vou mandar ela para você passar que ela está completinha. Nós jantando. Mas é isso, José Otônio, eu fico muito satisfeito com você, mas satisfeito mes-mo, vocês me deram um presente nesses minutos aqui viu.

Entrevistado por José Otônio Sabino Silva e Inácio Manoel Neves Frade da Cruz em 1/10/2011

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Olha, trabalhar na Industrial era o seguinte: a fábrica era aberta dez para as cinco da manhã pelo proprietário José Inácio Peixoto. A porta em frente ao Clube do Remo. Chegava, entrava, mar-cava cartão. Às vezes não marcava o cartão, às vezes sim, depende de quem estava na portaria. A gente trabalhava das 5 horas até as 10. Almoçava, entrava às 11 horas, fazia o café, o horário do café era 2 ho-ras e pegava outra vez, ia até as 5. Se precisasse, o serviço tivesse atrasado, ficaria até as 10 horas, mas fazia horário de janta e trabalhava nesse horário di-reto e aos domingos porque... Muito, muita poeira, não existia ar condicionado, ar refrigerado, essas coi-sas, muita poeira do algodão, da própria poeira que,

I D M A R V I L E L AO P E R Á R I O A P O S E N TA D O

7 7 a n o s

Foto: Idmar Vilela na juventude, foto e acervo do Sr. Idmar Vilela, s/d

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não era calçado em volta da fábrica. Era muita terra, então, tinha que limpar a fábrica, as máquinas para-das, [ou] mesmo elas estando funcionando. Dia de domingo, a gente ficava das 5 horas da manhã até o meio-dia, então era um trabalho árduo, isso dava cin-co, seis domingos seguidos, porque era muita coisa. A gente fazia esse trabalho e como sempre ao meio-dia, chegava sempre um encarregado, uma pessoa lá da empresa com merenda pra gente ou almoço. A gente almoçava e ficava até de tarde, era comum. Até que foi chegando o progresso...

Não existia como hoje, bebedouro, água ge-lada, ar condicionado, ventiladores. Naquele tempo existia um bebedouro para 200 pessoas, era um qua-dro, existia assim um balcão e uma moça que dava água. Ficava lá dois meses conhecendo o pessoal, de-pois que ela passava pelo teste de oferecer água, ela ia tocar máquina, aprender tocar máquina. A maqui-ninha, por exemplo, era vinte e quatro fusos. A ma-quininha é parte da tecelagem, fiação é outra parte.

Eu trabalhei na maquininha, nos carretéis, bo-binadeira, engomadeira, remetedor e tecelagem. Na tecelagem foi muita produção, muito trabalho, por-que os teares velhos quebravam todos os dias, a gente tinha que dar manutenção, queira ou não, ti-nha que dar manutenção, embora tivesse soldado-

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res competentes, pessoas competentes. O trabalho era muito árduo, mas a gente fazia aquilo com amor mesmo, a gente precisava trabalhar. E quanto aos pa-trões, o senhor Jose Inácio Peixoto, pra mim, pra mi-nha família, foi o melhor patrão que eu vi na minha vida até hoje.

Naquele tempo, porque a hora extra, [repou-so] remunerado, vieram a partir de 1956, a hora extra vinha num envelope amarelo. No envelope comum era o pagamento, o envelope amarelo era a hora ex-tra, vinha separado. Dia 5 era a quinzena e dia 20 a segunda. Então dia 5 você recebia a hora trabalhada, então digamos assim 15 dias eram 180 horas, quando no outro dia, terceiro dia vinha o envelope amarelo com as horas extras separadas. Descontava o IAPI. O IAPI era sagrado, hoje é o INSS. Trabalhava, des-contava, tinha hora de almoço e de janta, a gente tra-balhava assim muito, mas só uma coisa, a gente era valorizado.

O salário era sessenta mil réis por quinzena, is-so, de menor. Quando passei de maior, em 1952, pas-sei a ganhar duzentos e vinte mil réis por quinzena. O salário era quatrocentos e quarenta [réis]. Quem trabalhava por produção, ganhava mais um pouco. Quem era tecelão, então, tinha posição. A gente era carregador de espula. Fazia todo o serviço. Era apto

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a qualquer trabalho. Agora, o tecelão tinha sua qua-lificação, tocava dois teares só. Quem tocasse dois teares era campeão, porque as máquinas não tinham nada de automático, era tudo no olho. Era lançadeira manual, de pau, entendeu? E o tear? Uma polia toca-va vinte teares. Se arrebentasse uma correia parava vinte teares de uma vez. Era essa a tecelagem. Mas o pagamento era puro mesmo. Vinha certinho, nunca faltou.

Eu entrei com 14 anos, mas já trabalhava antes também. Não existia carteira, menor não tinha cartei-ra. De maior tinha. A carteira tirava só aos 18 anos, com a assinatura do pai abonando a presença da gen-te. Então, quando eu completei 18 anos, tinha que fa-zer a carteira profissional e o alistamento militar, que era obrigatório. Aí fez o alistamento, fez a carteira, mas fizemos o retrato antes, porque o retrato levava trinta dias para chegar, revelar e depois da carteira. Antes fazia o alistamento militar, porque só fazia a carteira com o alistamento militar, fazia tudo isso de uma vez, o retrato vinha, fazia isso de uma vez. E após os 18 anos, continuei a trabalhar. Trabalhava mais ainda pra poder ganhar mais um pouco, ficava doido pra dobrar, pra ganhar mais um pouco, essa que é a verdade. Eu tenho satisfação em falar, porque a gente trabalhava muito, mas ganhava também, a

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verdade é essa. E as horas extras, sempre assim. Nós éramos sete irmãos, meu pai era lavrador, homem da roça, mão calejada e o dinheiro da hora extra ele dava pra gente. O nosso ganho era esse. Mas o pagamen-to fechado era na mão dele e da minha mãe, isso eu tenho que falar porque era verdade. E a hora extra era nossa, essa hora extra era sagrada e eu gostava de fazer porque recebia. Às vezes, dava por quinzena, dava assim, 12, 15 mil réis, que era um dinheiro mui-to bom, hoje é uma gratificação.

Eu ia ao cinema, eu gostava de filme brasileiro. Naquele tempo era escrito, não vinha falado, vinha escrito. Filme brasileiro era mais fácil, filme brasilei-ro quando passava, lotava. Às vezes passava a sema-na inteira e era um cruzeiro o ingresso. Só quando passava um filme importante que dobrava de preço. Mas o dinheiro eu comprava uma roupa, uma camisa, uma calça, dava pra comprar e ainda sobrava e esse dinheiro, ele era abençoado. O pagamento eu entre-gava a meu pai e minha mãe no envelope fechado. Nem conferir não conferia. Se faltasse não tinha pro-blema, mas nunca faltou. O pagamento da Industrial sempre foi um pagamento exato, em cima do dia, certinho, certinho.

Getúlio Vargas, ele deixou muitas leis, algu-mas com falha, que errar é humano, mas ele deu

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um golpe na política. Ele queria fazer, em 1937, o antigo IAPI que hoje é o INSS. Mas quem fez, aju-dou a fundar o IAPI, foi o José Ignácio Peixoto, da Industrial. Ele foi ao Rio, marcou audiência e fun-dou o IAPI, Instituto da Aposentadoria e Pensão dos Industriários. Porque o homem não tinha, ficava ve-lho, ficava jogado fora, então fundou. Vou narrar um fato pra você. Em 1952, a gente pagava 700 mil réis para fazer o tiro de guerra, tinha que pagar. Quem não pagasse ia pra Juiz de Fora, pra a 4º região militar. O sargento foi lá, conversou com o Sr. José Peixoto, pra alistar. Nós éramos nove, mas um era doente não passou. Nós fizemos exames, o médico era o saudoso Dr. Antônio e Dr. Djalma. Eu passei no exame, graças a Deus e ficou marcado que os oito iam fazer o tiro de guerra, já estava alistado. O alistamento custou 5 cruzeiros. Passamos no exame, quando foi dia 25, 27 de dezembro, o José Peixoto chamou a gente e falou assim: olha, vocês vão fazer o tiro de guerra. Eu que-ro saber quem pode pagar e quem não pode, porque a farda custa 700 mil réis. Quem não pagasse, ia para Juiz de Fora, ficava um ano e dois meses lá. Eu não queria ir, não queria largar meu pai, minha mãe, aí ele mandou que a gente procurasse o sargento. O sar-gento foi lá. Ele pagou a nossa farda, nós era oito, e falou assim: depois combina com o Sr. José Bráulio. E

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tinha também o Sr. Manoel da Silva Rama - tem uma rua com esse nome - para que fizesse o pagamento, para descontar 10 ou 20 mil réis por quinzena. Mas coincidiu que quando recebemos a farda dia 6 de janeiro, começamos o tiro de guerra, sargento mui-to ruim, mas caxias mesmo. Ele falou assim: - Agora, vocês vão trabalhar para pagar a farda. A gente fazia o tiro das 5 às 7, pegava na fábrica às 7:10. Aos do-mingos trabalhava para compensar as horas perdi-das porque tinha muito serviço, não pelas horas, mas pelo trabalho. Quando foi dia 19 de janeiro de 53, o Sr. José Peixoto morre no Rio de Janeiro, de repente. Nós ficamos naquela, quem ia pagar a farda? Passou o mês de janeiro, fevereiro, março, abril, seriam cinco meses, quatro meses, oito quinzenas, não desconta-ram nada. Nós fomos lá, fomos lá nós oito, depois do serviço. Na hora do serviço não podia conversar com ninguém não, só depois das 5 horas. Ele nos recebeu. Nós tava tudo sujo de graxa, óleo, querosene. O que está acontecendo? Não descontou? Espera aí. Mas ti-nha um senhor, o Sr. José Domiciano, muito humilde, daquelas pessoas que não sabem ler, mas sabia con-versar. O João Braga procurou, não achou nada, falou Sr. José. O senhor ajuda aqui. Tinha uma gaveta, uma mesa afastada, escura, suja de poeira. Tem um livro aqui. Achou um livro preto, eram anotações de José

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Peixoto. E achou uma anotação dizendo assim que a farda que ele pagou para os rapazes do tiro de guerra, não era para cobrar, era um brinde do José Peixoto. Aí morri de alegria, claro, mas tivemos que levar um documento para o nosso pai assinar, que recebeu a doação. Era assim, o João Braga deu e nós levamos. Tinha momentos de felicidade, tinha momentos de tristeza, claro que tem, sempre tem, infelizmente acontecem coisas que ninguém espera.

Teve um fato fora do trabalho, esse foi mui-to triste. Tinha as bandas da Industrial e da Irmãos Peixoto, os dois irmãos era maestro que é o Rogério Teixeira. Nesse dia, mês de setembro, ia ter uma fes-ta em Turiaçu, que a fábrica era da Industrial, e um bonde ia levar o pessoal da banda. Eu não estava na Industrial, mas a gente marca pelo jeito que foi a fa-mília. Essa família tinha um estudante no 4º ano que estudou comigo. O mais novo tava com 20 anos. Essa festa mexeu com todo mundo. A gente ia pra lá a pé, porque não tinha condução e o bonde que levou o pessoal da banda. Vinha um homem a cavalo, o ca-valo assustou, ele deu um tiro dentro do bonde, aí matou o rapaz, 20 anos, a bala pegou certinho. Ele chama-se Luiz Roberto.

As festas de 1º de maio eram lindas, tá. As fábricas todas elas tinham uniforme. A Industrial

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tinha um uniforme, saia azul pras moças, camisa branca, homem macacão. A Irmãos Peixoto tinha a saia marrom e camisa branca. A Manufatora tinha a saia marrom e a camisa duas cores, na frente uma cor, atrás outra, no centro - Companhia Manufatora, Companhia Industrial, Irmãos Peixoto. Então a festa era linda, o tiro de guerra ia à frente, a polícia militar, soldado e a banda tocando e os operários fardados cantando o hino a Cataguases, o Hino Nacional, o Hino a Bandeira. E após o encerramento, começava lá, lá em cima na avenida, na praça de esportes ho-je. E quando chegava à Praça Getúlio Vargas, quan-do todos chegavam ali, paravam, fazia um discurso, o prefeito fazia discurso, as professoras falavam, o diretor do Colégio Cataguases falava também, fa-lava um pouquinho sobre o desfile, soltava foguete, a gente comemorava aquilo. Só que depois, após o desfile, a gente tinha que ir embora pra casa, tirar a roupa. Porque não podia ficar na rua com o uni-forme da fábrica, não era permitido, só no trabalho. Era um regulamento, a gente obedecia, mas era bo-nito, muito lindo. A gente encontrava, conversava e nesse encontro, a gente encontrava pessoas de outra fábrica, tinha assim um pouquinho, um ciumezinho. Então a gente ficava muito feliz. Aquele encontro das pessoas mais jovem, mais velho que a gente. Naquela

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época de 1952/54, eu estava com aquela idade da flor da ilusão, mas era muito bom, muito gostoso, a gente conversar. Mas tinha também aquela pessoa para ordenar. Era o sargento do tiro de guerra. Ele ordenava a marcha direitinho, todo mundo marcha-va direitinho, ninguém saía da fila e aquela ordem os patrões assistiam: o saudoso João Pacheco, o próprio José Peixoto, o Sr. Rodrigo Lanna, da Manufatora. E Manoel Ignácio Peixoto, que era das Irmãos Peixoto, um dos fundadores que já estava bem idoso, mas es-tava bem, acompanhava todo o desfile e dava a volta. Às vezes dava a volta e terminava com o discurso, to-cava o Hino Nacional, o Hino a Cataguases, a gente cantava, terminava ali. Era lindo porque, tinha en-canto e poesia, mas hoje já não tem mais, hoje acabou, acabaram as coisas boas.

Quando Getúlio estava no poder, e ele voltou em 50, aconteceram três candidatos para a eleição e ele venceu. Ele ficou um ídolo. Getúlio Vargas era um ídolo, porque realmente era um ídolo. E ele não veio a Cataguases. Outros presidentes vieram, mas ele não, ele mandou representantes. E ele tornou-se um ídolo, porque ele falava e fazia. Só que existia uma coisa: não existia congresso para atrapalhar ele, não existia ministro para atrapalhar. Ele dava uma ordem e cumpria, então era um governo assim, tinha

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poucos assistentes. Pegou assim, na década de 50, o João Goulart pra ser o ministro do trabalho Foi o me-lhor ministro do trabalho. Mas acontece o seguinte, existia alguém para atrapalhar, uma pessoa que atra-palhou muito o Getúlio Vargas no seu governo foi o Carlos Lacerda. Ele foi um elemento ruim, perverso, infelizmente a verdade é essa. Mas o Getúlio Vargas para todos os lados foi bom. É claro que houve fa-lhas, alguma vez houve falhas. Mas hoje os outros presidentes que chegaram, completaram. Ele falava nos jornais, ele falava, só tinha a Rádio Nacional e tinha a do governo federal, A Hora do Brasil, era das 7 às 8 horas. Quarenta minutos só de falar de coisa federal, do governo federal, o que ele fez, o que ia fazer, o que aconteceu, o que ia acontecer. Ele falava tudo isso, ele falava ou um representante dele, cla-ro, que nem sempre ele podia, mas ele foi um ído-lo da pobreza. Então até 1950 fizeram a música pra ele, a volta dele, Retrato do velho. Foi um ídolo, mas teve uma morte muito trágica. Mas naquela morte dele então surgiram novos liderantes. Surgiram ou-tras pessoas, que aproveitaram a sombra do Getúlio Vargas. Getúlio Vargas era um ídolo, claro que as fa-lhas existem. Perfeito é só um. Mas ele foi um grande presidente, ele tinha uma visão muito grande, mas infelizmente, cortaram os sonhos dele. A gente não

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sabe, se ele cortou ou alguém que cortou. Está no ar. Mas foi um sábio presidente, pra mim foi um sábio. Agora teve outros presidentes que fizeram muita coi-sa, superando as coisas do momento.

A Manufatora, a Industrial foi a segunda, a Irmãos Peixoto, ela nasceu 26 de fevereiro de 1905. Então o Manoel Peixoto, pai do Manoel Peixoto, ele chegou a ser deputado federal, fundaram com difi-culdade. Claro naquele tempo não existia máquina, não existia caminhões, era tudo alugado, todo o de-saterro era feito com carroças, mas não tinha papel para anotar não. Sabe como que anotava? Era assim, tinha um barranco, riscava assim, quantas carroças, trinta carroças, 500 réis cada uma, final do dia 15 mil réis, final da semana 90 mil réis - o cavalo, a carroça e o homem. Era assim, uma dificuldade tremenda. A Irmãos Peixoto fez muita coisa porque tinha uma di-reção muito firme. Apesar das dificuldades, porque não existia conforto, nem material à vontade e com o decorrer do tempo, passava até a tingir os panos dela na Industrial. Os caminhões buscavam e tingia lá. Depois trazia pra cá, levava segunda-feira e bus-cava sábado, duzentos quilos cada fardo, não tinha máquina, era tudo na mão. Mas a Irmãos Peixoto foi um exemplo muito grande de trabalho, tinha muita união, era um trabalho igual às outras. Trabalhava

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muito. Trabalhava as horas todas, porque tinha que trabalhar, não existia aquelas coisas de lei obrigan-do. Existia o trabalho livre, o trabalho era livre e isso também marcou muito. Apesar de muitos ope-rários que hoje já passaram, isso é um fato interes-sante, muita gente se esqueceu da Irmãos Peixoto. Eu lembro porque isso passou pelos cartórios. Aquelas casas da Irmãos Peixoto, ali na rua Gama Cerqueira, aquela praça ali, perto do Pronto Cordis. Ali, tudo era da Irmãos Peixoto e com o tempo foi acaban-do, as pessoas vão deixando, filhos, netos, bisnetos e as casas estão lá. Então não tinha como tirar eles de lá, também não ia tirar, a verdade é essa. Então a Companhia reuniu todos e entregou as casas a eles. Essas casas foram entregues não tem muito tempo, não. Assim que a Peixoto deu baixa ali nem, pas-sou lá pra Saudade, a reta da Saudade. De lá para cá começou essa abertura de doar as casas. Foram vendendo. Ali no Pronto Cordis eles venderam, no Gilberto eles venderam, só que o SENAI ficou mui-to grande porque quem deu aquilo foi o José Peixoto, da Industrial, mas como membro da Irmãos Peixoto também. Mas da Irmãos Peixoto tenho muita sauda-de porque era um trabalho muito duro, muito pesa-do. Os operários também eram firmes. Então aconte-ceu que no final das contas sentiram que o povo não

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tinha mesmo condições de comprar aquelas casas no valor exato, também eram casa muito simples de te-lhado, mas tudo bem feitinho. Tinha banheiro, não tinha conforto, tinha o necessário. Foram feitas essas coisas todas pela família Peixoto.

No princípio veio assim uns técnicos para mos-trar como tocava a máquina, como que empurrava, como que fazia. Empurrar a máquina era um ditado, como vai funcionar. Vieram alguns sim, não muitos, brasileiros mesmo, na montagem de máquinas. Mais tarde vieram dois franceses, mais isso foi em 58 e es-ses vieram para montar as máquinas. As máquinas chamavam, o famoso GF, era uma máquina automá-tica, não precisava trocar espula, ela trocava automa-ticamente. Ela rolava vinte de uma vez. Agora, tinha os técnicos também. Tinha o Sr. Mário, era o técni-co da tecelagem. A Industrial tinha o Sr. Cunha e a Manufatora tinha o Eudaldo Lessa, que era o técnico, não era diplomado, ele tinha prática na tecelagem.

Essa é a historia da Irmãos Peixoto porque não passei por lá. Agora, a Manufatora passei um pou-quinho. A Manufatora, quando o Sr. Rodrigo veio para aqui, ele veio jovem ainda, novinho, novinho. Casou-se com a Dona Emília e formou-se um grupo, ele, o Manoel, a Dona Emília, mais uns três e funda-ram a Manufatora. Quando do lançamento da pedra

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fundamental foi em 1943, as outras empresas junta-ram para apoiar. Porque seria mais emprego para Cataguases, como foi. Começou 13 de janeiro de 1943, foi tocando a fábrica, tocando, quando foi em 1950, com 7 anos, já estava com 250 funcionários. Um bom número de empregados e continua a Manufatora. Aí o Sr. Rodrigo teve a ideia feliz de colocar o algodão hidrófilo, usa no Brasil inteiro, o algodão hidrófilo sustenta muitas cidades no Brasil e a Manufatora vende ele até hoje. Aquele algodão hidrófilo dava para sustentar muitas coisas que faltava em outras seções, ele inteirava. E também a Manufatora. Mais tarde com aquela ilusão do esporte, porque o Sr. Rodrigo era um homem culto, foi prefeito por dois mandatos, mas não misturava uma coisa com outra, trabalho, era trabalho, política era política, futebol era futebol.

Até fundaram [um time de futebol] na Manu-fatora. Chegou a ser campeão, bicampeão. Era uma coisa alegre para o povo nos desfiles, a taça da Manufatora bicampeão. Tudo isso foi muito bom. A Manufatora é mais nova, é claro, agora ela está um pouquinho caída, infelizmente. Mas deu muito tra-balho, muito emprego e tem muitas histórias porque todo lugar tem uma história para o futuro. Mas o Sr. Rodrigo foi o homem que dirigiu a Manufatora. O Sr.

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Eudaldo foi o braço direito, depois o filho dele e a Dona Emília, que está lá até hoje. Quando ele come-morou 50 anos de casado em 91, a festa foi no Rio, mas o filme veio para nós ver aqui.

Ele teve uma passagem muito importante em 1978. Uma operária aposentou por tempo de serviço, 32 anos. Ela aposentou em janeiro e ficou cega em fe-vereiro e ele ficou sabendo. Foi lá saber, falou com ela: vou te levar para São Paulo, você vai operar. E levou, ele não levou, mandou levar. Ela foi, operou, mas o médico falou assim, isso é um fato inédito, não tem jeito mesmo. Ela aposentada, ele fez esse ato de caridade. Me desculpe, mas eu tirei o chapéu pra ele, ele fez isso por caridade, sabia que ela não tinha con-dições e outras coisas mais que ele fazia para o povo, grande homem. A Manufatora hoje está com dificul-dade, mas o mundo inteiro está realmente. Hoje a Irmãos Peixoto vai ser uma loja. Mas a Manufatora, tenho muitas lembranças do desfile, por exemplo, desfilava o caneco - Manufatora campeão. Aquilo era uma delícia mesmo. Eu gostava daquilo, eu partici-pava como juiz de futebol, gostava bem.

Tinha times de futebol, era Manufatora Minei-ra, Manu Mineira, bicampeã. Ele foi fundado em 15 de novembro de 1949. O Operário foi [criado] 15 de novembro de 1917. Era um time que tinha um con-

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vênio com as fábricas: descontava 2 cruzeiros por mês para ajudar o Operário, para manter as despesas. Não era obrigado, mas todo mundo acabava dando, porque tinha jogo todo mês, bons jogos. Todo mun-do gostava de lá. Quem não gosta de ver o time da gente? O futebol foi uma glória, passado e tradição. Aqui nós tivemos vários craques na seleção brasileira. O Rui foi na seleção, camisa 4; Antonio Marcos, em 1930, foi goleiro, jogou contra o Uruguai, perdemos de 1 x 0. Antonio Marcos Carneiro ele foi homena-geado lá no Rio, já faleceu. Nós tivemos o Tuca, do Vasco, para a seleção em 1947.

No final da II Guerra Mundial eu estava no 3º ano, me lembro de tudo. Eu fugi pra rua, apanhei quando cheguei em casa. Os pracinhas, por exem-plo, eu estava no 3º ano, passei para o 4º direto. Dona Maria Mendes falou assim: quero todos vocês na Praça Rui Barbosa, pra ver os pracinhas chegar, can-tando e não falando com ninguém, não pode olhar para os lados, onde por o pé tem que ficar a marca. E aí nós fomos. Aí, quando chegou os pracinhas, a Dona Honorina Ventania - agora tem uma rua com o nome dela lá no Pampulha, uma rua depois da gráfi-ca Líder, uma rua que vai e volta. Honorina, ela can-tou o Hino Nacional, o Hino a Cataguases. E nós to-dos, alunos da escola Astolfo Dutra, Guido Marlière,

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Coronel Vieira, tudo cantando. Só tinha essas três es-colas. Professor Quaresma era à noite, só de pessoas humildes, que trabalhavam. Só gente que não tinha tempo de estudar.

Nós cantamos o Hino Nacional, nós cantamos aquele dobrado, Avante camaradas! E então o maestro, disse assim: quem cantar desafinado é melhor ficar calado porque esse dobrado mexe com o coração da gente. Aí nós cantamos muito bem e o Sr. Pedro, que está aí hoje, 94 anos, ele foi homenageado há pouco tempo e ele falou assim: eu quero beijar a minha ter-ra. Abaixou e beijou o chão. Foi aquela choradeira, todo mundo chorou de alegria. Se ele contar o que ele passou lá, você chora. Mas foi lindo, lindo, lindo!

O que eu me lembro muito mesmo é da Rádio Cataguases. Todo mundo tem um sonho de ter um canal de televisão na sua cidade, uma rádio. Então, aqui tinha uma briga entre PSD e UDN. Eu achava aquilo muito fora, Peixoto e Dutra, você não podia conversar. Gente, somos todos iguais, todos somos filhos de Deus. Então, quando tava procurando abrir o canal da rádio o Manoel [Peixoto] foi lá, mas não conseguiu. O Pedro Dutra foi na frente. Chegando lá, ele encontrou quem estava no poder. Era o Gaspar Dutra. O Getúlio era senador pelo Rio Grande do Sul e São Paulo. Ele foi ao Getúlio. O Getúlio, se-

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nador, queria ser eleito presidente. Ordenou a ele que fizesse o cadastro. Fez e foi aprovado. E a rádio Cataguases veio pela mão dele. Quando chegou aqui, veio de avião até Juiz de Fora. Demorava chegar aqui, Juiz de Fora aqui, gastava 8 horas, porque na ponte tinha que descer para o carro passar vazio para não quebrar. Aí, quando ele chegou aqui, foi aquele fo-guetório. Os adversários coçaram a canela. Quando foi dia 5 de maio, estava tudo prontinho, antena co-locada na Vila Reis, o estúdio pronto, tudo com di-ficuldade, microfone era um só, para todo mundo falar. Marcou o dia para inauguração da rádio - 20 de maio de 1947, às 9:00 horas da manhã. Convidou todo mundo, veio lotação. Itamarati não era cidade, Dona Euzébia não era, Astolfo Dutra era, Santana não era. Dona Euzébia era pequenininha, Itamarati tinha 310 moradores. Veio todo mundo ver o lança-mento da rádio. Sabe aquele prédio que tem ali per-to da Câmara Municipal, uma casa velha? Era ali a rádio, era o número 88. Foi instalada e veio a Aracy de Almeida, Ciro Monteiro para cantar e veio outro artista, mas esse não tinha nome, não. Mas veio pra ajudar, vamos respeitar. E aqui Pedro Dutra, muito esperto, político, mandou convidar os artistas da ter-ra. Aí convidou quem cantava, quem tocava e foi tu-do pra lá. Mas primeiro foi a abertura da rádio, Aracy

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de Almeida cantou, depois cantou o Ciro Monteiro. Aqui tinha uns cantores: Noel Rocha, Valinho, tinha a Bernadete, que era gordona, alegre mesmo. Então isso tudo marcou para nós. Aí quando acabou de to-car, o Pedro falou agradecendo: agora quero os can-tores de Cataguases. Tinha o Sr. Noel Rocha, vozeirão e tinha o Hamilton Valinho, magrinho, tinha uma voz igual ao Vicente Celestino, aí cantaram. Tinha um menino chamado Ivan do Nascimento, 15 anos. Quando acabou o show, agradeceu todo mundo. Foi embora para sua casa. Para cutucar os adversários ele mandou colocar um alto falante na ponte velha

- só tinha ela, um na Vila, um na praça, todo lugar ti-nha Rádio Cataguases. Querendo ouvir ou não, você tinha que ouvir, tinha que ouvir, querendo ou não. Se ele tivesse qualquer assunto, ele chegava e falava em qualquer horário. Quando foi em 1947, 15 de no-vembro, ela estava no ar. O pau quebrou. O delega-do chamado José Capa Preta, tinha 30 anos. Tinha 12 soldados aqui. A UDN mandou matar todo o pessoal da Rádio. Contratou o soldado, compraram as balas para pegar o Pedro Dutra. Mas o Pedro Dutra estava em Itamarati, fazendo campanha política. Aí deram os tiros todos. Quando acabou a bala, tinha gente lá dentro da rádio, o Laédio Gama correu, o Galba le-vou 9 tiros, aí ele fingiu de morto. Ficou mortinho lá,

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mas de mentira. [Risos]. O Pedro [Dutra] chegou de Itamarati, viu aquilo lá. O padre Solino chegou. Pelo amor de Deus, para. Desligaram a luz, ficou tudo es-curo para ficar mais fácil e bala andando. Eu lá no meio, escondido do meu pai. O cara da Rádio deu um tiro na cabeça dele, 23 anos, morreu o Gentio. Aquela confusão toda, quem foi, quem não foi, mas quem foi não podia aparecer. [Risos]. Aí puseram o Amauri como réu. Aí o Amauri foi responder proces-so. Ganhou de sete a zero no Fórum e a Rádio conti-nuou. Laédio Gama era alegre. O Galba era locutor de notícia. Quando foi no finalzinho de 1949, o audi-tório estava pegando fogo, tinha Cataguases contra Leopoldina e Miraí. Vinha cantor de lá disputar com os daqui. Enchia a Rádio.

Até que um dia nós chegamos à fábrica. Nós não sabíamos que estava sendo vigiado, não. Fomos chamados no escritório depois das duas. Fui eu, o Valinho, mais duas pessoas. Chegando lá, tava o Zé Peixoto assim, o homem que entregava a gente e a enfermeira. Aí ele falou. Pode assentar. Eu pensei. Vamos ser mandado embora agora. Ele falou assim: - Quero saber de vocês uma coisa, quando alguém me fala uma coisa, quero saber da verdade, cara a cara. Se vocês fizeram fala, se não fez, não assume, agora se fez, assume. Eu sei como resolver com jus-

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tiça. Qual de vocês que foi na Rádio Cataguases? Eu falei, eu. O que você foi fazer lá? Senhor Zé, eu vou à Rádio porque eu adoro música, eu gosto de mú-sica, gosto de instrumento. Gosto de música e can-toria. Gosto de coisa alegre. Valinho, e você? O que você ganha? Ganho nada! E a moça? Ganho nada! Ganhava dez balas sem embrulhar, tinha papel, não. [Risos] Aqui tem o nome de vocês, como vocês vão lá todo domingo pra cantar e ver auditório. E quem me entregou vocês está aqui. Mas a profissão de vocês em primeiro lugar. O Valinho, o melhor tecelão. Você, o melhor carregador de espula, número um que eu tenho - que era eu. Essa aí a melhor carregadora de espula também.

Vão continuar na Rádio? Vão lá, faz o que qui-ser, canta bastante. Porque eu quero aqui é funcioná-rio, não é artista, não. Vai pra Rádio. Encheu nossa bola! Continuamos. Ele ficou no nosso pé, mas nós não “faltava” não.

Quando foi em 54, nós ficamos naquela si-tuação. A UDN perde a eleição para o Pedro Dutra. Trinta e dois votos na frente. Quando foi em 56, o João Peixoto e Dr. Serafim Lourenço, que era advo-gado, chamou o José Esteves. Larga o Pedro Dutra e passa para o nosso lado, ele largou.

Quando foi em 58 - a Rádio Cataguases, tem

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muita história porque ela passou por vários donos- pra vender ela, o Pedro Dutra vendia, mas não ven-dia pra UDN, não. Aí venderam para Belo Horizonte. Ataíde vendeu pro Hélio Fazolato. O Hélio Fazolato entrou de sócio com o Manoel Peixoto. Quando foi em 83, a Força e Luz comprou a rádio Cataguases, fi-cou na mão do Dr. Ivan.

Tinha um auditório das nove ao meio-dia. Todo mundo cantava, só tinha um microfone. Laédio Gama todo animado E tinha um senhor que vinha de Vista Alegre para tocar no programa dele. Tinha umas árvores, ele amarrou o cavalo dele lá e foi tocar sanfona. O cavalo sujou a calçada. Quando acabou o programa, ele chegou, o cavalo não estava. Sabe o que aconteceu? O fiscal da prefeitura prendeu o cavalo lá no Conselho, onde é a escola da Granjaria. Teve que chamar o Pedro Dutra pra soltar o cavalo. Passou aquela fase, a Rádio Cataguases cresceu.

Entrevistado por Ângela F. Faria Pimenta, Cláudio Roberto Faustino Pereira, Roseli Gomes Cardoso em 5/10/2011

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Meu nome é Maria Magalhães de Almeida. Eu sou de 1935, 16 de maio de 1935. Estou completando 76 anos. Completei agora este ano e ti-ve assim uma luta muito, muito, muito sacrificada. Eu tenho orgulho de falar da minha vida e do meu sacrifício de ter trabalhado numa indústria maravi-lhosa, de falar da família Peixoto que foi maravilhosa, que deu empregos para muita gente. Então, amigos dentro da fábrica, amigos mesmo. Eu tenho amigos até hoje. Uns já partiram, outros estão aqui ainda,

M A R I A M A G A L H Ã E S D E A L M E I D A ( D O N A L I L I )O P E R Á R I A T Ê X T I L A P O S E N TA D A

7 6 a n o s

Foto: Maria Magalhães de Almeida, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 2012

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junto com a gente e outros estão lá na presença de Deus, pedindo por nós. Eu sempre falo assim: eu vou rezar pra fulano. Eu não rezo. Eu peço a eles pra pe-dir luz pra nós, que nós é que estamos precisando. Então, eu morei na Vila Leonardo, praticamente fui criada lá na Vila Leonardo. Um bairro que eu gosto muito, amo aquele bairro. Fui criada lá, minha mãe com muito sacrifício. Meu pai morreu com 47 anos, deixou dez filhos. Minha mãe criou todos, não deu para ninguém os filhos. Então, acho isso, a minha mãe foi uma guerreira, tá? Minha mãe chamava-se Canuta. Canuta era um nome bem diferente, Canuta Magalhães Valoes. Ela é descendente de franceses.

Eu nasci na Neblina, muito pra lá de Glória. No alto mesmo da Neblina. Aí eu vim pra Cataguases com cinco aninhos e aqui eu trabalhei a vida intei-ra na fábrica. Vinte e oito anos na fábrica, aqui na Irmãos Peixoto. Meus filhos foram nascidos pratica-mente dentro da fábrica, eu trabalhava até na últi-ma hora. Eu tive três filhos. Angélica, que é falecida, Carlos, que vai fazer 51 anos e minha caçula, que é a Patrícia, mãe dessa menina, da Tainá. Eu comecei com 14 anos exatos, com carteira assinada. Eu apo-sentei em 1978. Eu aposentei muito nova. Para você ter uma ideia, tem mais de 30 anos que eu aposentei. Naquela época já assinava carteira com 14 anos, até

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pouco tempo, aliás, devo ter ainda. Deve tá nos meus guardados, nos guardados da Patrícia. Porque eu não mexo nos guardados, porque eu não gosto de ver os retratos da minha filha. Se ela tivesse aqui talvez ela pudesse mostrar pra vocês minha carteira. Não lem-bro o ano que começei a trabalhar. Mil... Não sei, me-nina. Você sabe que eu não sei ao certo o ano que era? Sei que aposentei em 1978.

Eu era tecelã, desde que eu entrei na fábrica. Eu aprendi a trabalhar como tecelã e continuei tra-balhando como tecelã. Trabalhei, tocava máquina. Eu tocava seis máquinas. Só que antigamente não era igual agora. Agora é tudo mais moderno, a pessoa toca uma montueira de máquina, mas é tudo diferen-te. Hoje em dia um tecelão é responsável por trinta máquinas. Nós era assim, era quatro, seis. A gente ganhava prêmios de produção.

Eu lembro quando eu entrei, eu fiquei um pouco assustada. Então eu lembro que eu fiquei as-sim aquele negócio batendo, aquela lançadeira para lá e pra cá. Eu via, era assim muito barulho e além do barulho, não era tudo informatizado, igual é ago-ra. Então quando você pensava que não, tinha uma lançadeira voando. Se ela escapulia lá do martelo, lá daquele braço e passava voando, machucava. E ou-tro detalhe, logo que eu entrei, tinha uma máquina,

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era uma correia de mais de meio metro, não sei se alguém falou isso com você?

Pois então, era uma correia enorme, era um pe-rigo. Estou falando de uma que comandava todas as máquinas. Então era assim, enorme, da altura qua-se de um telhado. Ela ia lá em cima e voltava. Então aquilo ali era um perigo você passar perto. Porque se pegasse, pegasse o cabelo...

Mesmo essa outra do tear, às vezes a gente queria limpar quando tava rodando. Era muito pe-rigoso. A gente fazia assim, a gente limpava, mas era muito perigoso. Naquele tempo não tinha proteção. A gente não tinha noção do perigo. Aquelas correias tudo, às vezes a gente botava a escova, tinha uma es-cova própria para limpar, a máquina pegava aqueles dentes, quebrava, soltava, era muito perigoso. Eles chamavam a atenção da gente, mas a gente sempre facilitava. A zoeira. Tem hora que eu falo assim: gen-te, aquela zoeira parece que ficou na mente da gente. A sensação, muitos anos ouvindo aquele barulho.

Antigamente tinha um tal de chuveirinho para dar proteção no calor. Ficava aquele sereno na gen-te. Aquilo acabava com a gente. Muita gente adoecia. Muita gente com problema de pulmão, tuberculose. Era justamente isso, juntava o algodão com aquela friagem. Eu fui muito resistente.

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Eu tinha muita enxaqueca, mas eu não falta-va de serviço. Eu não falhava, trabalhava mesmo. Trabalhei vinte e oito anos direto. Depois adoeci por causa dessa enxaqueca. Ficava ruim três, quatro dias. O Dr. Jaiminho fez o tratamento. Aí depois eu apo-sentei por invalidez, não voltei porque não podia mesmo. A minha vontade era ter voltado a trabalhar.

Agora as pessoas vão trabalhar, falam mal. Eu trabalhei na fábrica, tinha muitos amigos, amigos mesmo. Tem mais de trinta anos que aposentei, quan-do a gente encontra, a gente lembra, a gente não es-quece. Está muito difícil hoje. Infelizmente você quer confiar nas pessoas, mas não dá pra confiar. Você vê casos bárbaros, não tem mais amor ao próximo.

A gente recebia por produção. Tinha um qua-dro, um quadro com a produção - primeiro, segun-do e terceiro lugar. Tinha até o quinto. Ganhava um prêmio. Eu ganhava prêmios todo mês. Ganhava prêmios em dinheiro, 5 cruzeiros a mais naquela época, eu nem sei falar o que era naquela época. Eu sei que era sempre assim. Era uma maravilha, às ve-zes dava pra gente comprar quase uma cesta básica. Estimulava. Então eu tenho amigas - de repente vo-cê até conhece a Alzira, do Newtinho. A Alzira era uma excelente tecelã também. Então era muito con-corrido, a gente tinha assim um grupinho de oito,

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dez, que eram as melhores das tecelãs. As que pro-duziam mais, produziam muito. Então o Francisco Rodrigues, que era o chefe geral, sempre ele falava. Você, se eu pegar sua ficha, eu posso falar que você é uma ótima tecelã.

Vinha registrado. Tudo registrado o que a gen-te fazia. Era uma coisa muito interessante, parece que não, mas é um valor muito grande. Quando eu passo na porta, aí eu sinto aquela sensação de saudade, de saudade. Agora ultimamente, ultimamente não, já tem 10 anos isso, a gente pode assim ter um, rece-ber uma gratificação muito grande porque o Marcelo Peixoto resolveu vender as casas para os operários. Então, isso foi maravilhoso. Eu falo sempre com ele, quando eu encontro, que eu tenho oportunidade, eu falo com ele. Nas minhas orações eu não esqueço de-le. Quando ele chegou, falou que isso era bobagem, que ia vender e botou pra vender. Nós todos com-pramos. Essa vila do operário aqui, isso aqui ele ven-deu tudo. Fazia parte da Irmãos Peixoto. Só que ela não era assim. Ela era uma casinha pequititinha. Aí eu reformei. Era pequena mesmo a minha casa. Era dali pra lá.

Essa parte que você vê aqui em cima des-sas casas, o SENAI é que comprou. O AEXAS é que comprou essa parte da fábrica. Isso aqui era da fá-

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brica também, até perto da escolinha. Eu não sei se o terreno da escolinha foi doado pela fábrica, mas eu acho que foi doado pela fábrica. Não tenho bem cer- teza não.

Eu calculo que tem 12, 13 anos que ele resolveu vender isso pra gente e por sinal assim, ele vendeu com ótimas condições. Eu falo com ele, Marcelo você foi uma pessoa maravilhosa. Pessoas assim que tra-balhou com a gente, pessoas maravilhosas, eles mes-mo, os Peixoto. Às vezes eu falo com a Tainá, bons patrões, nossa! Era muito bom, eu falo, eu sinto, sabe, sinto prazer em falar porque foram assim. Agora que vendeu, você sente assim muitas tristezas, porque eu estou com 76 anos. Mas eu sinceramente, se de-pendesse de voltar a trabalhar, eu começaria tudo de novo. Se eu tivesse, assim se pudesse, porque foi um período muito bom de fábrica. Agora, consegui não por meus filhos na fábrica. Eu tinha muita vontade que eles estudassem. Mas agora, hoje tem que ter es-tudo até para entrar pra fábrica.

Eu só tenho 4º ano de grupo, pra você ter uma ideia. Eu estou com 76, eu tinha diploma com 10 anos. Quer dizer então que tem 66 anos que eu tirei diploma. Eu só tenho 4º ano de grupo, mas eu tinha muita von-tade de estudar. Estudei no Guido [Marlière] e meus filhos estudaram ali também. Estudei no Guido, a mi-

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nha professora foi a Nadir Machado, já falecida não tem muito tempo. Ela foi minha professora 2º, 3º e 4º ano. Às vezes eu falo com minha neta: vocês agora, você tem aí, mordomia, vai de ônibus, vai de carro pra escola. Lógico, não todo mundo, eu quero dizer assim, não é geral. Tem pessoas que não têm dinhei-ro nem pra ônibus Então, às vezes eu falo com ela: olha, se dê por satisfeita, a sua mãe estudou em Juiz de Fora com muito sacrifício. Eu mandava para ela muito pouquinha coisa de dinheiro. Viveu em pen-são que não tinha nada. Então a Patrícia estudou em Juiz de Fora com muito sacrifício. Para você ter uma ideia, quando ela veio embora, ela jogou o colchonete fora, só trouxe as apostilas. Ela ficou em pensão que não tinha televisão, não tinha geladeira. Agora, hoje em dia, elas vão pra Juiz de Fora com o apartamento montado, com tudo. Então mudou muito a vida em geral, mudou.

Peguei o tempo da Rádio Cataguases. Eu pe-guei aquele tempo que era perto do INPS. A gente às vezes não podia, porque era partido diferente. Então, a gente não podia estar entrando muito na Rádio. Era partido diferente. Era do Pedro Dutra. Então a gente não podia entrar. Às vezes, a gente entrava escondi-da, porque não podia. Mas assim, época de Getúlio, Juscelino, então a gente tinha assim muita noção de

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política. Zé Rosa foi um grande sindicalista. Foi mui-to movimento. Foi muito triste. Eu acho que o mundo inteiro manifestou a tristeza da morte dele [Getúlio], mesmo o Juscelino também. Para o trabalhador foi muito bom!

Eu não lembro muito, não. Mas eu achava tão bonito quando ele [Juscelino] falava que ia construir uma cidade. Eu achava aquilo impossível. [Risos]. Aí depois, construiu. Começou aquilo do nada e tá aquela cidade maravilhosa. Muitas vezes, eu não te-nho assim, estudo, não. Mas, às vezes, fico pensan-do se eu fosse mais nova eu queria me aprofundar nessas coisas porque vale à pena. Então eu trabalhei assim, foi com muito sacrifício. Naquele tempo não tinha ônibus, não tinha luz, a gente andava, ia pe-los escuros mesmo por essas ruas, aqueles bairros, Leonardo tudo escuro, não tinha luz, não era calçado.

Era assim, por exemplo, a semana que eu ia pegar 6 horas da manhã, eu tinha que levantar 4 e meia, até me aprontar pra sair, pra vir a pé de lá até aqui. Aí pra pegar 6 horas. Saía às 10 horas, ia em casa e voltava pra pegar às 14 e saía às 6 da tarde. Agora, você imagina isso em solteira era fácil, porque quando a gente tava perdendo hora a gente tirava o tamanco e corria pra chegar a tempo. Mas depois que eu casei e que fiquei grávida, olha a dificuldade que

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era para eu vir com aquele barrigão lá do Leonardo, pra trabalhar.

A gente usava tamanco, minha filha, a gente usava tamanco. E era tamanco mesmo, aqueles brabo mesmo, pesado, sabe. A maioria usava, igual eu falei com a Patrícia. Eu tinha até pouco tempo um retrato que eu tirei dentro da fábrica, não sei onde ele está. Eu e uma amiga que mora na Vila Minalda, a Silvia, irmã da Gessy. Eu tinha esse retrato que foi tirado pertinho da engomadeira. Engomadeira é onde passa os fios, para dar consistência, para depois ir para o tear, para o remetedor, para depois ir para os teares. Então, assim, eu gostava muito, gostava muito de trabalhar.

Não, não tinha greve, não. Minha época tinha uns passeios bons, dia 1º de maio. A gente ia pra Vista Alegre. Ia de trem pra Vista Alegre, fazer piquenique. Quem fazia era a própria fábrica. Teve época de ter uniforme. Eu não lembro muito bem da época do uni-forme. Não. Mas tinha uniforme. Marchava dia 1º de maio, marchava sim. Era completamente diferente de agora, mas a gente tinha assim muita união.

Tinha a rainha. Por sinal ela faleceu não tem muito tempo, uma das rainhas, que é a Maria Magalhães, minha xará. Ela morreu aqui no asilo, deve ter uns 2 anos. A rainha, eles falavam a rainha

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Maria. Ela era muito bonita. Mas teve outras também. A Terezinha tem muito tempo que não a vejo, mas é viva. Tem outra também que esqueci o nome dela, que já foi rainha. Era uma votação que elegia a rai-nha. Até a Patrícia olhou na Internet, tinha até retrato. Votava.

Aqui para baixo, nessa rua mesmo, tem pes-soas que trabalharam na fábrica que ainda são vivas. Tereza Campos, ela foi operário padrão. Ela, a Haidê Marques que mora aqui logo aqui embaixo. A Haidê está com 93 anos, trabalhou na fábrica. Está lúcida. A filha dela falou que ela esquece alguma coisinha, mas isso é normal. A Tereza foi operária padrão. A Haidê foi operária padrão.

Nosso divertimento mesmo era assim, sabe, era mesmo no final, no sábado. No final do serão, nosso encarregado, nós tínhamos assim uns encarre-gados muito bons, então no final do serão, a gente fazia limpeza. Era a gente que fazia, das máquinas. Cada um limpava suas seis, quatro, cinco máquinas, a gente limpava. A gente mesmo reunia às vezes, a gente levava alguma coisinha pra gente fazer um lan-che, até dá 10 horas pra gente sair. Isso cada um ia individual mesmo, cada um ia.

E tinha também missa que era celebrada na fá-brica. Celebrava missa no final do ano ou no 1º de

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maio. Era celebrada a missa, era muito bonita. Era celebrada no meio mesmo, no meio das máquinas. Eles montavam o altar, às vezes lá no meio, lá no can-to, mas sempre celebrava a missa. Isso ficou gravado na minha memória, todas essas coisinhas que pas-saram na fábrica. No ambiente lá de dentro, mestre, contra-mestre, os que já foram, ainda tem uns vivos, eram todos muito amigos. Eu tenho quatro, cinco amigas, que são amigas desde a fábrica, igual irmã. Hoje em dia já é mais difícil. Difícil em geral, não es-tou falando em fábrica, não. Estou falando em geral. As pessoas não têm mais aquele carinho, igual era de primeiro.

O passado é mesmo do trabalho, daquela cor-reria. Chegar correndo, de querer dar produção, sa-be. Aquelas peças grandes de tecido. Quando eu vejo passar na televisão algum tear, eu chamo a Tainá. Ali, Tainá, aquilo é que a vovó trabalhava. Então, se eu entrar em uma fábrica, com certeza vou tocar uma máquina normal. Então eu sinto saudade, sim.

Cataguases mudou muito. Nossa Senhora! Como mudou! Mudou muito, muito mesmo. Mas eu sei assim todos os detalhes da mudança. Assim em geral, mudou muita coisa pra melhor. Mas vou dizer com sinceridade, jamais vai ter alguém, alguém que faça o que os Peixotos fizeram em relação ao empre-

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go. Começou com eles e eles tinham, a gente via que eles tinham prazer de dar emprego, então isso mu-dou muito.

Tinha que votar no candidato deles na eleição. Tinha isso sempre. Sempre teve e a gente não era bo-ba. Votava mesmo. Eles que mandavam. A gente vo-tava mesmo, queria nem saber, era meu patrão. Eu trabalhava na indústria deles, eu era boba de votar contra nada? Mandava embora mesmo. Mandava embora mesmo. Não podia ir à Rádio [Cataguases]. Passava escondido lá, é verdade mesmo. Mas que era gostoso, era.

Entrevistada por Ângela F. Faria Pimenta, Cláudio Roberto Faustino Pereira e Roseli Gomes Cardoso em 30/9/2011

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Trabalhava o pai, trabalhava o filho, trabalhava talvez até a mulher também, os filhos, as filhas principalmente. Tinha um cartório aqui, falsi-ficava, aumentava a idade. A moça tinha 13 anos e passava para 14. Só poderia entrar com 14 anos pra cima, pra poder ajudar a família. Porque antigamen-te, é uma coisa assim muito interessante, as pessoas antigamente não tinham vergonha de ser pobre. As pessoas hoje têm vergonha.

Apareceu o chinelo de dedo. Aí, chinelo não é uma coisa assim, tão coisa. Mas de primeiro a gente andava de treco, tamanco chamava treco. Aquele ne-gócio, mas a gente não tinha vergonha de ser pobre,

M A R G AT O ( M A N O E L V E N T U R E L I ) O P E R Á R I O T Ê X T I L A P O S E N TA D O

E X - S I N D I C A L I S TA

8 5 a n o s

Foto: Sr. Margato, s/a, década 2000, acervo Sr. Margato

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hoje tem. Não, eu não cheguei a usar treco porque eu andava descalço.

Morava o Davi Augusto Cunha que era o do-no do cinema e eu morava ali, na Gama Cerqueira, naquelas casas da fábrica ali. Nós mudamos pra ali. Eu não sei porque eles foram muito comigo. Eu era garoto e ele um dia chegou perto de mim e disse as-sim: você não quer trabalhar comigo, lá no cinema à noite? Eu trabalhava já no Queiroz Davi.

Eu conheci Cataguases com quatorze veículos. Hoje tá rodando trinta e cinco mil no mesmo lugar, porque o centro da cidade nunca cresceu. Cresceram os bairros, o único bairro que tinha na época era o Leonardo, depois veio o Vila Reis. Cresceram os bair-ros, mas o centro da cidade, desde que eu vim para Cataguases em 1937, nunca cresceu. Esse centro, en-tão onde rodava 14 veículos, estão rodando 35 mil. Então ele me convidou, eu trabalhava de dia e de noi-te ia com ele lá para o cinema. Todo dia, quando ter-minava a sessão, a gente tinha que andar dentro do cinema porque era um cinema assim, igual ao Central de Juiz de Fora. Tinha camarote, tinha cadeira, revis-tava para ver se não tinha nenhum cigarro acesso.

Então eu falei assim: eu gostaria, senhor Augusto, mas vai ficar muito ruim porque eu não te-nho sapato. Ir lá para a porta do cinema, ficar lá des-

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calço, não é fácil. Ele falou: por causa disso, não. Você pode ir escolher um sapato que eu compro e dou para você. Ele comprou e me deu o sapato. Foi o primeiro sapato que calcei. Eu tinha 15 anos de idade [emoção].

Trabalhei no Queiroz Davi com 14 anos. Fabri-cava macarrão, bala, biscoito, refinava açúcar. Lá ti-nha dois caminhões porque carregava para a estação. Eu trabalhava nas balas. Então todo sábado, a gente tirava pra trazer para a estação. Eu trabalhei até 1949, de 41 a 49, no Queiroz Davi. Depois eu saí, fui servir o Exército, em Juiz de Fora. Do Exército eu fui pa-ra o Rio. No Rio eu trabalhei na General Eletric. Não gostei não. A gente tava acostumado aqui no interior. Aí saí e vim embora. Vim e entrei na Manufatora em 1951 e aposentei em 77. Depois entrei na prefeitura e trabalhei mais 25 anos. Só podia tirar carteira de tra-balho depois dos 18 anos. Então eu trabalhei 4 anos sem carteira assinada. Quando eu fiz 18 anos que eu tirei a carteira. Aí sim, eles colocaram na carteira que eu entrei. Os quatro anos eles colocaram, mas não podia. Você podia trabalhar sem carteira.

O salário justo, não era. A gente recebia por se-mana, semanal. Quando entrei na Manufatora, a gen-te recebia quinzenal, depois que passou a ser mensal. No Queiroz Davi, nove anos, oito anos que eu traba-lhei lá, tudo era pago aos sábados.

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Tinha gente menor de idade. Tinha uma coi-sa interessante lá, porque na bala, fazia a bala, tinha umas meninas que contratavam, 12 anos, 13 anos, en-travam lá para embrulhar bala e trabalhava no quar-to, numa sala lá escondida por causa da fiscalização. Elas trabalhavam lá, embrulhando bala e recebiam também por semana.

Trabalhou muita gente lá, assim nessa época. A sobrinha do Dr. Walter trabalhou lá. Aquele diretor da faculdade lá em baixo, Alcino, casou com a filha de uma senhora que trabalhou comigo no Queiroz Davi, já morreu.

Na Manufatora eu fui trabalhar de tecelão. Na-quela época não se fazia, porque hoje não se entra sem fazer um teste. Porque a fábrica de antigamente, ela era mecânica, braçal. Tudo você tinha que fazer. Hoje ela não é mais braçal. Hoje eles contratam rapazes aqui do Cefet pagando menos, dando treinamento, porque eles tocam a fábrica com a maior facilidade. Porque é eletrônica hoje. Essa fábrica, que a gente fala fábrica velha, ela foi fundada em 1905, que foi o pioneiro da família Peixoto. Ali tinha uma transmissão em cima, uma correia que tocava os teares. Depois é que passou os motores para baixo, com a correia já pequena pa-ra tocar os teares, individualmente. Antigamente era uma transmissão que tocava vinte teares de uma vez.

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Tinha muitas mulheres na sessão de tecelagem. Sempre era mulher que tocava os teares, tinha ho-mem, mas a preferência era mulheres. Em 1941, en-trei no Queiroz Davi, eu entrei no dia 10 de janeiro de 1941, no Queiroz Davi, coincidência eu entrei no dia 10 de janeiro de 1951 na Manufatora.

Na Manufatora, eu trabalhei 26 anos. Eu já ti-nha o tempo do Queiroz Davi, foi contado, eu podia aposentar. Aposentei. Foi na época do Milton Peixoto. Ele era prefeito, me chamou pra lá: Você tá aposen-tando muito novo. Realmente, eu aposentei com 50 anos. Hoje não se aposenta. Antes era tempo de ser-viço, hoje é tempo de serviço e de idade.

Bolsa família, eu sou contra isso. Eles tão ti-rando de um lugar, aonde a pessoa nunca contribuiu, então está prejudicando os aposentados, que traba-lharam a vida inteira. Não que a pessoa não mereça. Tinham que tirar do Tesouro Nacional. Não, eles ti-ram da Previdência Social.

Eu fui tecelão oito meses. [Depois] de 8 me-ses, teve uma vaga de ajudante de contramestre. Aí eles me passaram para ajudante de contramestre. Contramestre é aquele que toma conta da seção. Tinha assim quarenta teares, trinta teares, depende do tamanho da tecelagem. Então tinha o contrames-tre, o ajudante do contramestre e o chefe geral, que

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era dividido em duas turmas - turma A e turma B. Eu era da turma B. Era dividido em seções. Cada seção tinha um ajudante, um contramestre, esse ajudante trabalhava demais. Eu que tinha que arru-mar o defeito do tear, amarrava rolo no tear manual. Contramestre também fazia, mas geralmente contra-mestre ficava mais na sala dele. O ajudante trabalha-va mais. E depois eu passei para a parte elétrica. E no final eu fui eleito presidente do Sindicato dos Mestres e Contramestres em 1972, de 73 a 77. Contava o tem-po, ficava por conta do sindicato.

O patrão era contra o sindicato, Era contra, muito contra. Eles custaram me liberar. Eu tive quase renunciando. Eu cheguei a conversar com o Rodrigo Lanna, que era o dono. Para mim, trabalhar e tomar conta do sindicato não dá, se a fábrica não puder me liberar, eu vou renunciar. Ele concordou. Chegou mi-nha folha.

Greve teve muita no tempo do Zé Rosa. Tinha um cara aqui em Cataguases que era danado, sindi-calista naquela época. Mas o sindicato naquela época era muita coisa. Essa estrada de ferro, a Leopoldina, foi pioneira de coisa. Eles paravam, tinha criança dentro do trem. Eles paravam e enquanto não vinha o aumento pra eles, não saia de lá. Era a Leopoldina e o negócio de navio no Rio de Janeiro. Eram as du-

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as classes que faziam muita greve e tinham poder. Se não viesse, eles não trabalhavam.

Foi quando houve aquela pressão da revolução que entrou Castelo Branco e acabou com isso tudo. Então sindicato tomou uma raquetada muito grande e foi acabando. Depois teve uma força aí com Lula, mas não era mais aquele sindicato da época, não.

Estudante também tinha muita força. A UNE tinha muita força. Mas o Castelo Branco, ele deu força ao sindicato normal. Para fazer greve, não. Mas pre-cisava, realmente precisava. Eu presenciei uma vez. Tinha um bar ali perto de casa, sujeito tirou um mon-te de nota de 5, naquela época a nota maior era de 5. Falou, vamos gastar isso aqui, eu não sei mais onde por dinheiro. Aquilo tudo era assim, dinheiro de...

Teve greve. Tinha um sindicalista aí. Ele cha-mava Zé Rosa. Naquele tempo ia muita coisa para justiça e aquele camarada do sindicato, ele ganhava, sabe. Então ele fez muita coisa, muita greve. Pessoas que faziam isso aí no sindicato, na época da revolu-ção, foram tudo preso. Apanharam demais. Foi todo mundo preso.

Eu fazia 10 horas de trabalho. Mas era espon-tâneo, a gente tinha direito de fazer. Eu passei pra ajudante de contramestre. Eu fazia 10 horas. Recebia normal, recebia com 20% a mais. A Manufatora não

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pagava muito bem, mas pagava em dia. Não tinha o que tem hoje. Hoje você vê no trem, até o maquinis-ta usando proteção. Na fábrica usa também. Naquela época não se usava. Eu tenho perda nesse ouvido de quarenta e cinco por cento. Eu escuto falar, mas não entendo direito, porque trabalhar vinte e seis anos dentro de uma zoeira de uma tecelagem não é brin-cadeira. Muito calor, depois é que puseram...

A gente ia trabalhar, ia pegar 6 horas da tar-de. A gente tinha que jantar 5 horas, dezembro, ja-neiro, dia grande, 5 e meia da tarde, o sol tava alto. Chegava lá, tomava água. A água era dentro de uma talha que tinha lá dentro, água morna, você tomava. Até que chegou um dia, foi mudando. Toda semana fazia uma reunião. Toda semana não, todo mês. O Sr. Rodrigo Lanna, ele dava condições. Qualquer um que quisesse falar podia falar se tinha alguma coisa que podia melhorar. Em uma dessas reuniões, eu le-vantei e falei com ele sobre a água, se poderia colocar água gelada. Ele colocou.

Sr. Rodrigo era um homem muito sensato, sa-be. Ele falava com você na hora. Já o Manoel era sim e não. Mas era uma pessoa maravilhosa. A família Peixoto realmente, ela que progrediu Cataguases. Os homens mais velhos Peixoto. Cataguases caiu de-mais. O homem deixou o dinheiro, deixou a fazenda

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lá para o hospital, lá perto de Santana, deixou um di-nheiro no banco. O Manoel [Peixoto] pegou o dinhei-ro e fez outro hospital. A casa de saúde hoje, ali foi o Zé Peixoto que fez e doou para o hospital. O coro-nel João Duarte deixou o dinheiro no Banco do Brasil, mas o Manoel tirou o dinheiro e levantou o hospital.

Getúlio Vargas fez as leis. Em 50 ele entrou com o povo votando nele. De 30 até 47 ele era dita-dor.. Eu votei nele. Ele que fez toda a lei. A pessoa trabalhava, se ficava doente lá, 3 ou 4 dias, a firma colocava outro, quando ele voltava. Não tinha nada, não tinha indenização. Ele que passou toda lei tra-balhista. Vargas foi o presidente que mais ajudou na lei. Na época que morreu, houve muita coisa. O povo sentiu muito a falta dele, eles falam que ele suicidou, mas eu tenho pra mim que não. Pra mim eles o obri-garam a escrever a carta e depois deram um tiro nele e matou ele. Isso é pra mim, porque eles não estavam gostando dele mais.

Para o trabalhador hoje você tá doente, tem médico para te dar atestado, quinze dias. Depois você vai para o INPS. Não existia nada disso. Você traba-lhava, precisava de outro. Quando você voltava, tinha outro no lugar. Você ia embora, sem direito a nada.

O 1º de maio era muito comemorado. Tinha até parada no 1º de maio, igual tem 7 de setembro.

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Tinha festa. Eles alugavam classe do trem e faziam piquenique no dia 1º de maio. Ia para uma cidade, fi-cava o dia todo, voltava à noite.

Eu me lembro do Fenelon Barbosa, ele era advogado. O Schettini, da fábrica de calçado. É um nome italiano, não sei, se ele era italiano. Existia na-quele tempo, Carcacena. Hoje fizeram aquilo ali, um prédio bonito. E a casa Felipe, naquele mesmo lugar ali. Agora estão acabando com tudo. Naquela ponta, onde tem um ponto de táxi, na entrada do calçadão, ali foi a primeira Nacional. Dali é que passou lá pra cima e depois o bazar Renê, naquele lugar mesmo que está. Então essa casa de primeiro, casa Felipe Carcacena. As duas casas que eram chamadas de se-cos e molhados, sabe por quê? Vendia de tudo, desde material de construção até o tecido. Tudo que você precisasse tinha na casa, então eles apelidaram de se-cos e molhados, vendia de tudo. A Nacional era mais tecido.

Nasci em Santana, na fazenda do Monte Re-dondo, lá em cima. Fui registrado em Santana.

Foi feito uma festa, não sei se você sabe, aqui no estado. Então o meu avô veio pra ali, inclusive a minha mãe nasceu ali e o meu pai em Camargo. Lá em Camargo tem uma igrejinha também, mais ou menos da mesma época. Então meu pai morava em

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Camargo e minha mãe no estado, então ali começou o namoro. Casaram, nasceram 3 ou 4 filhos, irmãos meus, ali. Meus avós vieram da Itália direto pra ali, tinha três lote lá. Papai casou, foram lá para Santana.

Eu nasci em Santana. Depois nós viemos pa-ra cá. De três anos para cá eu me lembro de tudo na minha vida que passou. O meu avô chamou que os filhos tudo fosse lá para fazenda, como de fato foram. Cada um tinha uma casa. Dava um pedaço de terre-no para gente plantar e a gente ficou lá. Plantava de tudo, cana, feijão, arroz e café, tudo, tudo. Hoje não tem mais nada, acabou tudo. Mas a plantação de café forte mesmo, era aqui para o lado de Miraí. Ali em-baixo, hoje arrumou, é loja, tinha um prédio grande. O trem parava, vinha o café.

O trem vinha de Ubá e ia para o Rio de Janeiro. Então ficava uma máquina aqui esperando o trem do Rio de Janeiro. O de Santana vinha até Sereno. E a máquina ficava em Sereno. O de Mirai é que pegava a classe de Santana e vinha para Cataguases. Quando o Expresso chegava, Expresso Rio de Janeiro, era a única condução que tinha para o Rio.

Getúlio em 1937 fez uma coisa. Mandou ar-rancar o cafezal todinho e mandou queimar o café. Porque o café estava muito barato. Punha um monte de areia e punha o café, muncadinho de areia, punha

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o café e punha fogo. Aquilo tudo ali onde é a facul-dade, queimava o café para poder aumentar o preço. Isso foi em 1937.

Tinha outros italianos, lá. O avô do Chiquito aqui, da casa de couro. Tinha os Milane, tudo italia-no. Mas foi contado a história só dos italianos que vieram pra Colônia Major Vieira. Não eram só portu-gueses, não. Ali onde fizeram a igrejinha, aquele lote pertencia ao meu avô. Ele teve três lotes lá, o livro conta direitinho.

Diversão era cinema quando tinha. Era uma festa na cidade porque só tinha aquilo. A Praça Santa Rita e a Praça Rui Barbosa, iam todo mundo para lá. Andava os homens para um lado e as mulheres para o outro, um andava para lá, o outro andava para cá. Não tinha divertimento igual agora.

Dentro da cidade tinha luz elétrica. Mas era tudo. Menezes, aqui era uma fazenda, foi se abrin-do. Quando Juscelino foi eleito, abriu mão daquilo tudo. Então todo mundo começou a construir, não tinha que pagar, você punha a pedra lá, já tinha fis-cal. Então era uma fazenda aqui, chamava Romualdo Menezes, que é o nome dessa rua, que vai até na fa-culdade. A fazenda era lá, dos Menezes, aqui no bair-ro Haidê, só tinha o Altamiro Peixoto, umas casinhas. O resto tudo era canavial, tudo cafezal.

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Cataguases começou ali no Leonardo. A pri-meira fábrica que aconteceu em Cataguases, assim pequena, foi ali na rua, onde é o sindicato de Fiação e Tecelagem, Alferes Henriques de Azevedo. Primeira fábrica, antes da coisa, começou ali, uma fabricazinha lá, não era tecelagem, acho que era fiação só. Depois é que passou para aqui, eles apelidaram de fábrica velha. A Irmãos Peixoto ali foi inaugurada em 1905.

Eu não participei da guerra. Meu cunhado par-ticipou, o Didi. Morreu já. Era casado com a minha irmã, ele foi expedicionário. Eu tenho um retrato do dia que foi inaugurado o busto do Manoel Peixoto. Dia 1º de maio de 1946, tinha terminado a guerra.

Porque antigamente todo mundo podia ser po-bre, mas tinha que ter um paletozinho branco. Todo mundo usava o branco, você vai ver o retrato, todo mundo de branco. Usava-se chapéu. Eu nunca usei chapéu, não. Não dava certo em mim. Mas os mais velhos usavam. Os mais novos não. Mas de branco, era muito respeitado. Você não podia. Não se usa-va colorido como se usa hoje. Antigamente era mais uma cor branca, um cinza claro, um cáqui amarelado. Hoje tem tecido de toda cor, muito bonito também.

O trem trazia o leite da fazenda, pegava e trazia nas latas. Ali tinha uma cooperativa, onde tem um açougue hoje. Tinha uma carroça de leite lá.

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Tinha uma mula que trabalhava na carroça. Ela traba-lhava sozinha. Batia nela, colocava a lata de leite den-tro, batia nela. Ela vinha atravessava a rua, entrava lá dentro da leiteria. Chegava lá virava, tirava a lata de leite, batia nela, ela virava e ia lá sozinha Não tinha trânsito. Tinha quatorze veículos em Cataguases.

O Queiroz Davi tinha dois caminhões que era pra fazer entrega no sábado. Já te falei, trazia para a estação e dois carros importados que era dos donos lá. Era do Augusto Davi, um português. Ele cons-truiu aquela casa lá na esquina em 1942, que mora o Fernando Quirino. Foi ele que construiu aquela ca-sa, linda, linda. Desmancharam as coisas bonitas em Cataguases. A Igreja, o cinema, as coisas bonitas.

O cinema eu trabalhei nele 4 anos, já falei, de 1940 a 44. Era uma beleza, o Teatro Recreio. É, Cineteatro Recreio, eles desmancharam para poder fazer aquele ali e fizeram aquele prédio todo ali. Mas tinha aquelas colunas romanas, aquelas coisas.

E desmancharam a igreja e fizeram aquela. Não quero dizer que ela seja feia, mas a igreja era uma igreja trabalhada. Você não acha pedreiro pra fa-zer isso hoje. Lá na prefeitura, você olha assim em ci-ma. Aquilo foi feito a mão, um camarada quebrou lá, eu estava na prefeitura na época. O pedreiro pelejou para fazer. Não precisava desmanchar, fazia em outro

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lugar. Acabaram com as coisas bonitas. Não é igual Juiz de Fora, conservou aquele cinema central lá.

Um dia eu estava lá assistindo o festival. Todo ano tem festival lá em junho, eu participei. Tem bas-tante encontro de coral lá e veio coral dos Estados Unidos, coisa linda. Meu coral uma vez, tinha um co-ral só de negro, você sabe que o negro tem a voz mais potente que o branco, o volume de voz.

É difícil a gente falar da época. Aquela foi uma, hoje é outra. Então era assim, a amizade. Acho que a amizade era muito maior do que hoje, companheiris-mo era muito melhor do que hoje, o respeito era mui-to maior, a juventude não tem respeito mais. Aquela praça rodava um para o lado, outro para o outro. Era daquela época, deixa muita saudade na gente. Eu en-trei em 1950 para a igreja. Eu servi o Exército, depois fui para o Rio e voltei pra cá. Foi naquela época que eu entrei pra igreja. Naquela época quem comandava o coro da igreja era a Lupe Siqueira. Na Congregação eu cantava e ela me chamou: Margato, você não quer participar do coral? Sei cantar não, posso fazer um teste. Entrei no coro e estou até hoje.

Entrevistado por Ângela F. Faria Pimenta, Cláudio Roberto Faustino Pereira, Roseli Gomes Cardoso em 3/10/2011

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Desde criança interessava por fute-bol. Criança, já jogava no time de menino. Então ti-nha o time de menino que a gente jogava, né? Lá em Aracati. Jogava naqueles campos de fazenda, Vista Alegre, pra ali a fora tudo a gente jogava. Parei eu devia estar mais ou menos com quase quarenta anos. Parei mesmo. Parei porque meu serviço, sabe, era um serviço pesado. E então sentia muito da coluna, das

S R . Z I Z I T O 1 0 ( B R Á S D E A L M E I D A L O P E S )

P E Q U E N O P R O P R I E T Á R I O R U R A L

8 1 a n o s

10) Morador do distrito de Aracati, ex- vereador, foi jogador e treinador de futebol.

Foto: Sr. Zizito no momento da entrevista na Fábrica do Futuro, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 2011

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cadeiras. Então fui obrigado a parar mesmo porque doía muito.

Primeiramente, eu trabalhei, fui negociante. Uma venda na Aracati. Aí, depois eu tive um proble-ma, uma febre, febre malária em 54. Então naquele meio tempo que eu tava doente eu não pude pagar o INPS. Aí o INPS depois quis me cobrar na justiça. Eu escrevi lá pro presidente, lá em Juiz de Fora, que eu não paguei, não tava pagando porque eu tava do-ente. Aí expliquei a minha situação tudo, puseram uma pedra em cima. Também não interessaram a me ajudar nem nada. Também não sabia, eu poderia ter sido ajudado, não é? Podiam ter me dado um bene-fício e qualquer coisa, mas eles ficaram quietinhos e eu também não sabia de nada. Aquilo passou e eu melhorei, graças a Deus. Eu tava com 24 anos. Aí foi que eu entrei no serviço pesado, mais pesado ainda dali pra frente.

Sempre morei em Aracati e trabalhando lá mesmo. Já trabalhei em roça, plantando arroz, servi-ço de roça todo e depois eu trabalhava com madei-ra, não é? Lenha. Fornecia lenha pra estrada de ferro, madeira aqui pra serraria Peixoto [trecho incompre-ensível] e outras serrarias aqui em Cataguases tam-bém. Depois eu, meu pai e meu irmão montamos uma serraria em Aracati.

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Não tinha nome, não. Não tinha nota fiscal, essas coisas, não tinha não. Depois, aí trabalhamos muitos anos na serraria. Depois, aí em 82, eu ganhei pra vereador. Aí me afastei da serraria e meu irmão tocou mais uns tempo, mas também já não tava bem da idade não é, aí parou, tava muito difícil também pra o negócio de madeira, negócio de IEF ficava em cima ali, ó. Aí nós paramos.

Fui vereador na época do prefeito Tarcísio, em 83. Até final de 88. 6 anos.Tive 484 votos. Ih, rapaz vou te falar... Eu tinha um carro, tinha noite que qua-se que eu não dormia, trazia gente para o hospital.Ajudava os times de futebol também.: A gente con-tribuía, não é? Com dinheiro. Fui presidente do time duas vezes. Time de lá mesmo. Cruzeiro. Cruzeiro Futebol Clube de Aracati. Contribuo com eles até hoje.

Meu pai é família daqui mesmo, de Aracati. A minha mãe, os pais dela, vieram da Espanha. Eles vieram novos da Espanha e aqui casaram. Quer di-zer, minha mãe, o sangue dela, era tudo espanhol. Pai e mãe vieram da Espanha. Meu avô era Blás Lopes Letorneau. Mas o nome dele era com “l”: Blás. Blás Lopes Letorneau, a gente fala Letorneau, não é? É francês. Minha avó Maria do Patrocínio Lopes Guedes. Meus pais eram daqui de Aracati mes-

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mo. Camilo de Almeida Gama. E a mamãe era Rosa Lopes de Almeida.

Ah, naquela época era falando que marcava jogo, né? Porque na roça, por exemplo, não tinha telefone, não tinha nada. Os pessoal vinham da rua, em Aracati, então marcava. O time lá do Tiago, dos Nunes, Santa Rita, vários time. Aí depois já passou a telefonar. O telefone... Mas mais mesmo era tratado assim, pessoalmente.

Os jogos eram só aos domingos. Domingo e dia santo, porque naquela época guardava muito dia santo, não é? Hoje já não tem mais, não. Agora, feria-do, ninguém guardava não. Naquela época não. Sete de setembro, quinze de novembro, trabalhava direto.

[Risos] Muitos lugar a gente ia a pé. Nós íamos jogar a pé na Santa Rita, em Vista Alegre, lá no Tiago. Santa Rita pra baixo de Vista Alegre. É beira-rio, lá naquela ladeira lá em baixo. E depois passou a ir de caminhão. Já fizemos muitas viagens de caminhão. Aqui pra Cataguases vinha de caminhão. Mas muitos no inicio iam a pé.

A torcida era o pessoal. Juntava lá em volta do campo, não é? Era uma festa, naquela época quando tinha futebol parecia uma festa. Juntava muita gente. Eu vinha aqui em Cataguases. Eu vinha muito assis-tir o futebol aqui. No Operário, no Flamengo, mas foi

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mais depois que já tava parando de jogar. Mas antes não. Ficava lá mesmo.

A gente naquela época tratava assim, ia em Vista Alegre, recebia lá uns vinte cruzeiro pra ir lá, vinham cá pelo mesmo dinheiro e vinha aqui em Cataguases também da mesma forma. Se viesse aqui por trinta reais e eles fossem lá também, recebia os mesmos trinta. Era assim, era um dinheiro trocado, não é? O dinheiro ficava com o presidente pra com-prar bola, comprar camisa. Tinha diretoria, não é?

Cada jogador tinha sua chuteira, seu calção, seu par de meia. Só as camisas que eram do time. Aí o presidente que tomava conta do time levava aquele saco de roupa e pagava uma pessoa pra lavar.

A chuteira era diferente dessas de hoje. Anti-gamente ela tinha três travas assim, ó, uma na frente e duas atrás no calcanhar, era lisa assim. Aí depois passou a ser a tal que eles [chamam] pião, não é? Um piãozinho pregado naquela talisca, assim ó, pra es-corregar menos, não é? Igual a de hoje. Ficou sendo no fim igual as que tá usando hoje, a de pião.

As primeiras bolas que a gente jogava tinha uma abertura no couro, assim, com uns buraqui-nho aqui, ó. Aí tinha uma cordinha de couro, assim. Enfiava ali, aí você tirava a câmara de ar dela. Mas quando a bola as vezes acabava a capota, comprava

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uma câmara de ar nova. A câmara de ar tinha um bi-co comprido, assim ó. Aí você colocava ela dentro da bola e enchia e depois de bem cheia, você dobrava ela assim, que ela era de borracha e amarrava aqui bem amarrado e enfiava pra dentro da bola, assim no peito e aí ia costurando, com um “atacador”. Puxava a cordinha depois, ia pra lá igual você amarra um cadarço de sapato, entendeu? Mesma coisa, você vai passando assim ó, e depois apertava.

Aquela parte dura que eu te falei que costura-va aquilo pegava no rosto da gente assim, doía mes-mo. Ela era muito dura, não é igual as de hoje não, as de hoje é redondinha, umas bola macia, não é? Aquela época não, uns couro bruto.

Os melhores jogadores eram de duas famílias lá. Até tem dois deles aqui nesse retrato [mostra a foto]. Tinha época que jogava cinco, seis rapazes, num time. Eles eram todos bons de bola. Lembro: Eudato, Jairo, Jair, Jadsmar, [pausa], Zé Renato, um tal de Natinho e Josias. Esse é de uma família só.Tudo irmão. Esse aqui tá vivo ó, esse Jairo tá vivo. Esse que tá aqui na ponta direita também é vivo, o Tato, mora lá no Paraná. O Natinho morreu. O Jair morreu, Jadsmar mora no estado do Rio, Josias mora em São Paulo. Mas tinha outros jogadores lá muito bons. Tinha um tal de Jeferson, que era muito bom

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goleiro. Tinha o Léo que era o nosso centro-avante, muito bom.

Conforme o lugar tinha uma barraquinha pra vender as coisas, não é? Vendia um pão com carne, essas coisas. Vendia uma cachaça. Aqueles que gos-tavam, tomavam cachaça. Jogador podia até tomar, mas depois do jogo. Ah aquilo era uma festa que a gente fazia não é? Pulando no campo, gritando... Depois juntava todo mundo e ia embora. [Risos] Carregava aqueles sacos de [equipamentos]. Em dia de chuva aquilo [tinha] um peso danado. Aí, cada um carregava um “mucadinho”. [Risos]

Briga costumava dar. Mas briga assim, troca-va uns tapas. Quem não tava na briga entrava e se-parava. E acabava aquilo e continuava o jogo. Mas graças a Deus morte, pra machucar ninguém, nunca deu. Foi um dia lá, tinha rapaz lá até esse que tá aqui, ó [mostra foto]. Eu num lembro se ele não tava jo-gando, não Ele, não sei, um jogo lá e ele desentendeu com um rapaz e arrancou duma garrucha. O rapaz correu e deu dois tiros pro lado dele, mas pegou não. O cara correu e foi embora.

Aqui, rapaz, eu vou te falar com sinceridade, eu joguei em quase todas as posições. Mas a última posição minha era de lateral direito. Mas antes, va-mos supor, às vezes faltava um jogador, faltava um

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ponta esquerda. Aí não tinha um que queria jogar lá. Aí falava: cê joga no meu lugar? E eu jogava lá. Jogava de centro avante, jogava de meio de campo, até de goleiro umas duas vezes eu joguei.

No primeiro tempo nos estávamos perdendo de um a zero [Risos]. Inclusive eu fui pegar uma bola, a bola ia fora, rapaz, do gol. Eu pulei nela. Na hora que eu pulava nela, eu pulei com essa mão mais pra cima... Entrou pra dentro do gol e foi gol. Ih, rapaz dois a zero. Aí nesse meio tempo o goleiro chegou. O goleiro chegou, entrou no gol. Aí tiraram um lá. Eu fui pra linha. Aí eu marquei um gol. Sofri um pênalti, foi gol, e depois foi lá mais um gol. Aí nós ganhamos de três a dois. Viramos. Tava perdendo de dois a zero. Quem bateu o pênalti foi um tal de Luis, que tinha lá na época.

Eu tenho a lembrança de muitos jogos, mas um jogo que nós demos aqui no campo do Operário, um jogo muito bom. O Operário tava no campeo-nato e tinha muito jogador de fora, não é? Então os jogadores do Operário mesmo que eram os titulares daqui jogaram contra nós. Veio jogador de fora pra jogar aqui e era quase que um escrete. O campeo-nato que tinha aqui, muito bom. Então nós viemos pra jogar, fazer a preliminar e, rapaz, nós lavamos, ganhando de três a zero. Mas um jogador nosso ma-

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chucou. Nosso meio de campo machucou e então a gente teria que pôr um outro rapaz, um tal de João. Mas esse rapaz não tinha muita experiência e ficou bobo de ver aquela assistência. O campo do Operário estava assim, olha. Vou te falar, tomamos três gols de repente. Aí o jogo ficou três a três. Mas o time do Operário, naquela época, estava muito bom. Foi qua-se que o primeiro quadro que jogava aqui que jogou contra nós. Três a três. Foi um jogão rapaz. Estava lotado!

O time que veio aqui, que fez o jogo de fun-do daquela época, para o primeiro quadro, não es-tou lembrado do time. Mas enchia muito, tinha mui-tas partidas aqui no campo do Flamengo. O campo do Flamengo era ali, onde tem a Praça da Catarina. Nos fundos tinha um campo. O senhor não chegou a conhecer, não é? É. Ali era o campo do Flamengo. Joguei muito ali. Joguei muito no campo do ginásio, no campo lá onde está a Saco Têxtil. Tinha um a cam-po ali. É aqui, no Colégio Cataguases. Depois fizeram a Saco Têxtil lá, não é?

O pior jogo da minha vida, vou te falar, foi na Vila Reis e não esqueço desse jogo. Nós tomamos de dez a um. [Risos]. Apareceu uns dois camaradas lá de fora, lá na Vila Reis. Uns caras bons, rapaz. Vinha para cima de mim e não tinha jeito de cercar ele. Não

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sei, rapaz. Mas não tinha jeito, não. Quando eu pen-sava em ir nele, ele já estava com a bola lá dentro do gol. Aí o nosso gol, fizemos o gol de honra. Foi em uma falta do lado da área do time da Vila Reis. Um tal de Jair, irmão de dois que estão aqui, olha [Zizito mostra a foto do seu time], eu combinei com ele para eu rolar a bola para ele. Eles fizeram a barreira. Aí eu rolei a bola para ele assim. Ele chutava bem e muito forte. Aí marcou o nosso gol de honra. [Risos] Já esta-va sete, oito, já.

Quem fez carreira de jogador? Só dois. Um tal de Léo, esse jogou no Rio, mas em time de subúrbio, no Bom Sucesso, Olaria, essas coisas; aqueles times lá do subúrbio. Esse tal de Léo jogou lá, e esse Jefferson também, goleiro de lá, jogou no Operário aqui muito tempo e depois mudou para o Rio. Jogava lá também.

Os jogos eram só durante o dia. Não tinha ilu-minação não. Aos sábados tinha baile, não é? Tinha muito baile no sábado, na roça mesmo, nas fazendas, nos sítios. Vamos supor, eu morava lá em um sítio ou em uma fazenda, aí chamava o Sebastião, ou João, ou Antônio, ou Pedro. Então naquele dia fazia aquele baile. E baile de casamento. Ah! Tinha muitos, mui-tos bailes de casamento. Era sanfona. Sanfona oito baixos, vinte e quatro baixos, umas caixas batendo. É aquele forrozinho.

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O futebol mudou muito, até o modo de jogar. Porque naquela época eram onze jogadores, não é? Igual é hoje. Mas naquela época você falava assim, era o goleiro, dois beques (que a gente dizia na épo-ca), half direito, center-half, half esquerdo, ponta di-reita, meia direita, center for, meia esquerda, ponta esquerda. Hoje já mudou até o nome das posições, não é? Hoje é lateral direito, é lateral esquerdo, é ca-beça de área... Lateral direito é o beque direito.

Agora, acontece que naquela época as pessoas jogavam mais era na raça. Hoje não, hoje você joga é na classe, não é? Você mata uma bola aqui, você joga para o outro ali, que dali volta para lá, o de lá volta aqui e você tenta abrir uma brecha na defesa do ou-tro para você entrar. Naquela época, não. A bola saía aqui, daqui ela ia para ali, e aquele dali já corria lá para o gol. Hoje não, às vezes está quase na hora de chutar para o gol e eles voltam com a bola, está con-gestionada a área e eles voltam a bola. Naquela época não, eles tentavam passar um pelo outro de qualquer maneira.

A torcida ia de acordo com o jogo. Se Vista Alegre, por exemplo, que está ligada ali, fosse lá, é muita gente. Se for um time lá do Tiago, que é em uma roça lá, mesma coisa, enche muito. Agora, se for um time daqui (Cataguases) e um outro lugar

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qualquer, aí já é menos, por causa da rivalidade, não é?

Se não tiver futebol [pausa] o lugar está mor-to. Igual ontem que não teve jogo em Itamarati, você não via ninguém lá. Ou vai lá para o Tiago, ver o jogo do Tiago lá, mas fica por ali, gente de lá não... O lu-gar morre! Se não tiver futebol em lugar pequeno, o lugar fica morto.

A televisão atrapalhou. Chi! Demais! Você pensa bem, tem um jogo entre Vasco e Flamengo. Não vou dizer Vasco e Flamengo. Por exemplo, Flamengo e São Paulo; Flamengo e Corinthians; Fluminense e Cruzeiro. Então o pessoal vai ver o jo-go na televisão, aí vem menos gente. Mas se for um time de Vista Alegre e do Tiago, o pessoal deixa a televisão de lado e vai lá no campo. Por causa da ri-validade, não é? Por causa da rivalidade dali. Mas se for um time de fora assim, o pessoal vai mais para a televisão.

Depois que eu parei de jogar aí foi que eu com-prei rádio. Porque naquela época até o rádio lá era difícil. Os rádios de pilha que existiam antigamente não eram desses portáteis, essas coisas não. Era um rádio grandão, a pilha dele pesava uns cinco ou seis quilos. Era uma pilha de um material escuro. Aí da-va para um mês, dois meses. Era para você ter em

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casa, não é? A pessoa podia, então comprava. Como diz, eu tinha dois tios que tinham. Mas depois, não. Depois de uma certa época começou a vir os rádios portáteis. Aí eu também tive um.

Eu sou fluminense, desde a idade de sete anos, oitos anos. Meu jogador preferido que eu vi jogar? Eu vi o Altair, que era lateral do Fluminense. Eu vi o Garrincha, vi o Didi, o Evaldo, Milton Santos. O que eu gostava mais dele mesmo era do Garrincha, não é? Vavá... eram jogadores que partiam para cima e fa-ziam gols. Vi lá no Maracanã.

Agora o Garrincha, Milton Santos eu vi em Leopoldina. Em uma exposição aí, o Botafogo veio completo jogar em Leopoldina. Ele estava no auge. Novo, mais novo ainda. Vi. Vi o Garrincha jogar. Bom mesmo! Com as pernas cambotas...Era fantástico.

Foi um time daqui de Cataguases lá [Aracati] uma vez, o Primeiro de Maio. Eles tinham uns joga-dores que estavam danados para pisar. Aí eu pisei em um doutor, depois que eu meti o pé nele assim, olhei na cara dele e falei, “essa pegou? Esse cara ficou revoltado. No dia em que nós viemos jogar aqui no Primeiro de Maio, tinha um tal de Jairo lá, que é esse rapaz que está aqui olha [mostra a foto]. Era fenome-nal, jogava muita bola esse aqui. Aí nós estávamos jogando o segundo quadro. E no segundo quadro fe-

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chou uma briga, brigaram para danar! Aí fomos eu e esse Jairo para um vestiário lá na frente para trocar de roupa, aí no vestiário deles eu escutei um camara-da falando assim, “do time deles nós só queremos o Zizito e o Jairo”. Lá no Primeiro de Maio, pensa bem. Conhece lá?

Aqui no Dico Leite. Lá em cima, tinha um campo, não sei se ainda tem. No Dico Leite, lá em cima. Em uma grota lá, tinha um campo lá, Primeiro de Maio. Aí, menina, nós já estávamos de calção. Eu tirei o calção, vesti minha roupa, tirei a meia e fa-lei, vim até falando com o Tatão, que era o dono do time. Tatão, ó, se você quiser por o time em campo você põe, mas nós não vamos jogar, não. Ele falou, por que? Eles falaram que agora só querem eu e o Jairo. Quer dizer que eles vão é machucar nós aqui. Aí não deu para jogar lá e o Tatão também falou. Já deu briga no segundo. Nós não vamos jogar. Se vo-cês quiserem pagar um time, paguem. Se não quise-rem pagar não paguem, mas jogar, nós não vamos jogar não. Aí quando nós viemos embora, tinha um rapaz lá, um escuro de bicicleta, ele veio de bicicleta na frente do caminhão. Meu irmão que era o moto-rista. Ele vinha fazendo assim [Zizito faz um movi-mento de “zig zag” com as mãos] na frente do ca-minhão. Meu irmão buzinando e ele não deixava a

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gente passar não. Meu irmão jogou o caminhão pra cima dele, menina! Quando ele viu que o caminhão ia bater nele, ele desceu assim a bicicleta e desequi-librou, caiu por buraco abaixo. Bateu com bicicleta e tudo bem em cima de uma cerca de arame. Mas nós demos uma vaia nele! [Risos] O time de Aracati que veio jogar aqui. Ah, mas não tinha polícia, tinha nada lá, não, uê...

O juiz marcava falta e expulsava também. Mas naquela época se você falasse que não saía, não saía não, uê. Há muitos anos atrás, não saía, não. Tinha que parar o jogo: ele não sai? Então vamos parar o jogo. Se ele não sair, nós não jogamos. Aí acabava o jogo. Isso era muito difícil. Mas sempre tinha algum que ficava revoltado, não é? Exaltava mais, mas não queria sair. Aqui [mostra uma foto] esse rapaz aqui, olha. Esse rapaz era terrível em campo. Tião Teixeira. Seu pai o conheceu muito.

Esse rapaz até matou um lá em Aracati uma vez, no primeiro sábado de carnaval. Eles estavam jogando uma purrinha lá no bar do Zé do Vanto e não sei se o que ganhou ou o que perdeu. Esse que morreu foi em casa, quando ele veio voltando, esse Tião cercou ele, levou a mão no guidão da bicicleta e meteu-lhe uma facada, pegou aqui. Mas diz o Dr. Silvério que a faca não entrou pouco mais de um

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centímetro. A faca não entrou nele, só arranhou aqui e pegou na artéria. Pusemos no carro rapidamente, quando ele chegou aqui já chegou morto. Isso deve ter mais de uns vinte anos.

Toda a vida a torcida exigiu, não é? “Tira fu-lano! Ele não está fazendo nada aí olha! Põe outro!” Muitas vezes escutava. Porque o negócio é o seguinte, você não é o mesmo todo o dia. Tem dia que você joga, você faz barbaridade dentro de campo, você faz coisa impossível. Mas tem dia que você entra lá, rapaz e nada dá certo. Aí é substituído. Mas tinha pessoa que às vezes, na hora de substituir, não queria sair. Tinha alguns, mas eu nunca fiz questão, não. Se eu não esta-va bem, podia me tirar, não tinha problema não.

Já treinei time. Treinava. Fazia os treinos nos domingos que não tinham jogos. Fazia um treino, primeiro contra segundo. Ou senão, treinava a linha contra a defesa. Você pegava a linha do primeiro qua-dro para jogar contra a defesa do primeiro, e a linha do segundo quadro contra a defesa do segundo. O melhor modo de treinar era este, você treinava a de-fesa com os jogadores melhores que você tinha, da linha, não é? Agora você põe uma linha de segundo time para jogar contra a defesa do segundo time...

Quando eu nasci? Dia 2 de novembro de 1930. Vou fazer oitenta e um agora dia 2. Sou pai de cin-

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co filhos. Sou viúvo agora, mas eu fiquei casado cin-quenta e três anos e meio com Noemia de Almeida Lopez. Morreu em 2004. Meu nome todo é Brás de Almeida Lopes.

Entrevistado por Carlile Lanziere Junior, Sabrina de Almeida Sousa e Tiago Barroso Souza em 17/10/2011

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Eu só nasci lá em Cataguases e vim pra cá com meus avôs, que tinham terra aqui. E meu pai morava aqui. Meu pai era Jeremias Leonardo. A família Leonardo, de Cataguases. Tudo quanto é Leonardo ali foi do meu avô. O bairro Haidé, lá, no Leonardo, tudo era dele. Fora as fazendas, os terre-nos que ele tinha pra fora, na roça.

C H I Q U I N H O J E R E M I A S ( F R A N C I S C O

L E O N A R D O N E T O 1 1 )T R A B A L H A D O R R U R A L , O P E R Á R I O ,

J O G A D O R D E F U T E B O L

7 5 a n o s

11) Morador do distrito de Cataguarino.

Foto: Sr. Chiquinho Jeremias em sua residência no distrito de Cataguarino, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 2011

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Lá em Cataguases eu andei jogando. Você não alembrou, mas tive no Palmeiras. Já ouviu falar, não é? Ele é de Cataguases, não é? Eu, quando trabalhei lá na fábrica de papel, entrei no Palmeiras e fui até titular. Fui titular também no Manu. Era o time do Manu, que formou da fabrica. Das duas fábricas. A fábrica de papel com a Manu e fez um time. Juntou as duas e fez um time.

Não, não ta teno time de futebol. Antigamente eles botavam despesa ali, como um INPS. Essas coi-sas assim, pra sempre, fica mais barato. Sempre eles jogavam as despesas deles. De futebol. Como tá pa-gano INPS. Essas coisas assim e eu sei que eles deve, é tinha um, eles ganhava uma gruja naquilo.

Aqueles que podiam, não trabalhavam o dia inteiro, que tinham folga de tarde, ia pra treinar. Senão, treinavam sempre à tarde. Esses times maio-res que tinha, não é? Flamenguinho... Ia pra fora também, mas sempre o Manu jogava mais em casa. É perto da Manufatora, ali.

E aqui em Cataguarino os jogos são aqui, no campo mais velho do São José, perto da escola, E depois que formaram esse aí, inventaram que tinha muitos times aqui. Não é só aqui, não. Aqui no “pião” tinha um time, no Retiro tinha outro, na Serra da Onça ainda tem até hoje, viu... No Sinimbu tinha ti-

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me. Agora cê pensa bem quantos times tinha, ah, na Areia Branca, aqui em baixo, tinha time. No Glória, mais perto aqui do município.

O pessoal trabalhava na roça, como eu traba-lhava na roça, jogava e daqui eu fui trabalhar na fá-brica de papel. Lá é que comecei a... Sempre jogava no Flamenguinho. Os treinadores lá sempre era meu conhecido. Então, toda noite você me encontrava no Flamenguinho, se eu não tivesse trabalhando a noi-te, porque na fábrica de papel as vezes dava um... Qualquer coisa que estragava tinha que trabalhar à noite pra no outro dia tá rodando. Lá não tinha muita forga, não.

Domingo fervia os campo, assim ó. Era raro um domingo sem jogo. Só quando tava chovendo muito. O pessoal da roça vinha ver. O time do Retiro vai jogar lá no São José. O pessoal de lá vinha tu-do pra ver e juntava os daqui que era muita gente. O campo ficava lotado. O comentário corria, não é? [Risos]. Quais tudo a pé e a cavalo. Eu mesmo ia a cavalo quando ia jogar fora. Ia a cavalo, levava um na garupa, levava o material. Quais todo mundo ia a cavalo.

Pra futebol aqui tinha um onibuzim véi. E sem-pre que nós ia nele. Era um onibuzim menor do que os outro, não é? Eles tratava de perua. Era um oni-

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buzim pequininim. Tinha vez que ía até uma outra condução, porque num cabia. Era um senhor que ti-nha aqui que era dono dele. Comprou esse onibuzim pra por na linha, que era a linha aqui. Antigamente era caminhão que barreava os pessoal pra lá e prá cá. Todo dia era um caminhão. Levava de manhã e trazia de tarde.

Cada um sempre pagava. Eu levo por tanto, e aí o pessoal reunia, o presidente do time reunia, ca-tava o dinheiro e pagava. Mas no carnaval, nóis ía a cavalo, sempre a cavalo em Cataguases, pra assistir carnaval.

Tinha uma casa Henrique, chamava Henrique Filipe, cê alembra dela? Então, a gente podia guar-dar os cavalos lá, que tinha os ronda. A gente saía a hora que quisesse. É. No carnaval, durante o tempo, tinha os ronda lá e ele deixava guardar os animais. Quem fosse em Cataguases, podia guardar os animal lá. Isso era a ordem dos donos da loja.

Chuteira, camisa, botava num saco e amarrava e punha em cima do cavalo. Não eram essas chutei-ras comum de hoje, não. Era um couro que só cê ven-do! E a bola também não é igual a essas bolinhas de hoje, não. Eram uns bolão assim, costurado por fora. Se você desse uma cabeçada e pegasse em cima da-quela costura doía. [Risos] Viu? Não é essas bolinhas

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de hoje não... [Risos] Ocê pra pegar um, se chutasse bem, cê chutava bem, mas se ocê não chutava, mais o menos, daqui ali só [Risos]. É por isso que a gen-te chutava bem porque a bola era pesada e a gente acostumava com aquela bola pesada, viu? O Zico, por exemplo, o meu xará, tinha um chutinho fraco, a bolinha dele ia daqui ali, só.

Eu chutava bem, chutava bem. Eu só não con-segui porque eu distronquei o pé uma vez que uma vaca correu atrás de mim. Eu chutava dos dois pés, perfeitamente. Chutava bem, e outra coisa não tinha esse negócio de dominar a bola pra chutar, não. Do jeito que vinha, mandava e eu acertava bem.

O campo era arrumadinho. O pessoal juntava o domingo e arrumava o campo. Arrumava o seguinte, se tivesse um buraco num lugar, aterrava, viu? Aqui mesmo nesse campo São José nós botamos cento e vinte caminhão de terra numa, na metade dele. Que ele era a metade só, então pusemos mais cento e vinte caminhões. O prefeito deu, naquele tempo acho que foi o João Peixoto, deu caminhão. Sempre o pessoal cuidava mais de que hoje. Se amanhã não tem jogo, nós vamos arrumar o campo. E aparecia todo mundo.

Toda vida o campo do Operário foi um campo mais velho, mas respeitado, não é? Toda vida foi, é uma pena que ele enche d’água. Mas toda vida foi o

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campo mais respeitado e tá mantendo até hoje. Tem agora o do Flamenguinho, agora tem, não é? Mas an-tigamente, num tinha, que era cá embaixo. Cê alem-bra dele cá embaixo? Ali, indo pra, [Pensando] pro campo do Operário mesmo. Mas era cá embaixo atrás da, [pensando] como é que fala gente? Aquela pra-cinha que tem lá na, Santa Catarina. Santa Catarina, atrás da Caixa Econômica.

Depois que lá eles compraram o terreno no Leonardo, não é? E aí fez o campo lá e cá o terreno era pra fazer posse, não é? No campo velho já joguei. No novo, não, não cheguei a jogar, não. O campo do Operário sempre foi ali. O time do Cataguases tam-bém não era lá, onde que é hoje, era pro lado de bai-xo, onde que é a Fundição.

As traves, nós ía no mato, cortava pau de um e de outro, ninguém ligava naquele tempo, não. A rede vinha até hoje [do lugar] que o pessoal comprava as redes. Todo mundo dava uma vaquinha. Igual tô te falando com cê, vaquinha não passava [Risos]. O pes-soal fazia uma vaquinha. Cada um dava um cadin e comprava uma bola em Cataguases.

Jogar era de graça, a seco [Risos]. De graça e a seco. Naquele tempo não tinha isso, cerveja. Tinha nego que bebia uma cachacinha e olhe lá. Eu por exemplo, nunca bebi. Nenhuma das duas coisas, nem

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cachaça, nem cerveja, até hoje, viu? E nunca fumei. Machuquei jogando bola. Uma vez tomei um chute na barriga da perna, custou a sarar. Agora quebrar não, só “distronquei” o pé. A vaca correu atrás de mim, eu enfiei o pé no buraco, foi só. Também não chutei mais, tanto que ele é diferente aqui ó, pode olhar que a “junta” aqui é diferente da outra.

Dentro do campo não tinha posição. Tinha quando eu comecei e outra coisa. Eu quando eu co-mecei a jogar futebol, eu tinha oito anos, escoteiros, cê alembra dos escoteiros? Eu já jogava contra os time de escoteiro de Cataguases. Então tinha diversas classes. Tinha de maior, tinha de menor. E aqui tinha diversos times de meninos, assim, desse porte. Que aqui tinha um tal de Lalade que tomava conta do time, Lalade Abrita. Já morreu, faleceu já há muitos anos.

Não tinha nem chuteira! Descalço... O time da-qui da roça não tinha chuteira, era descalço. Os de lá tinha chuteirinha. Sempre algum tinha chuteirinha. O uniforme era um calção e uma camisinha, é sim... E esse Lalade dava um jeito e comprava uma camisi-nha. Ele tinha uma vendinha, não é? Então ele tirava da vendinha pra comprar. Que ele gostava demais.

Com oito anos já jogava. Tinha a classe de oito anos, vinha dos escoteiros de oito anos. E então joga-va ali com a idade. De acordo com a idade, um time

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com o outro. Era assim. Não era bitelão. Não botava bitelão no meio. Não tinha maior idade, não. Era só de acordo com a idade de um e outro também.

Aí pegava fogo [Risos]. Não, não dava briga, não dava nada. Os daqui, o pessoal daqui torcia pro time daqui. Os que vinha de Cataguases, do esco-teiro, torcia pro time de escoteiro. É, botava apelido, cê sabe como é que é, não é? [Risos] Até hoje. Não, não dava briga mesmo. Os mais velhos, todo mundo naquele tempo respeitava os mais velhos. O que os mais velhos falava, cabô. Então meu pai, era assim só, entregue a ocê, Laladi. Ocê que manda. E aqui nós respeitava o tal de Laladi.

O juiz que vinha. O time de Cataguases que vi-nha visitar aqui trazia o juiz, igual esse time de hoje.Respeitava o juiz. Naquele tempo não era igual hoje não, que o povo gosta de brigar. Essas coisas assim não, naquele tempo, não.

Fui expulso uma vez só na minha vida. O ca-marada, um juiz vagabundo daqui da roça, me en-trou o cartão na cara, ele meteu o cartão na cara e eu meti a mão na cara dele também [Risos]. Ele também foi expulso [Risos]. Era um pedaço de papel pra ser cartão mesmo. Era assim. [Risos] Eu fiz uma falta. Aí ele me expulsou, sem cartão. Aí ele me expulsou di-reto, aí ele meteu o cartão na cara.

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Tinha diversos jogadores. Que eu comecei a jo-gar já no primeiro quadro aqui com uma turma gran-de que subiu pro primeiro quadro. Tinha um senhor que jogava de saia. Era o Zé Abrita. De saia. Ele era aleijado. A urina dele pingava constantemente. Então, jogava de saia. Só jogava aqui, mas era bão de bola. É gente de Abrita. O irmão dele, falecido Lino, ele era o central que chegou. Disputamo lá no Palmeira. Ele jogou de central e nós fomos campeão no ano...

Eu entrei na fabrica com 19 anos. Eu trabalhei na fábrica dez anos, na fábrica de papel. Eu hoje tô com 75 anos. Ah, tinha muito jogador ruim.[Risos]Tinha muito. Esse Zico mesmo, meu xará, era dos piores. [Risos] Ele jogava sempre no primeiro quadro, assim lateral direita, único lugar que servia pra ele. Eu também, quando comecei, comecei lateral direita no segundo quadro. Depois passei pro primeiro qua-dro e tudo lateral direita. Depois eles começaram a me experimentar na linha, que eu chutava bem e dei certo. Num tinha lugar pra mim, de menos no gol.

Eu sempre ia melhor porque o time do pri-meiro quadro aqui era difícil um time ganhar dele, era difícil mesmo. Isso foi na época que nós tava disputando o campeonato em Cataguases. Que nós saia daqui, eles mandava buscar nós, viu. Pra sair, pra disputar lá, diz eles que nós era melhor que os

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de lá ainda. [Risos] Viu, eu acho que nós ainda era melhor que o que eles tinham lá, não é? Que nós chegamos e botamos nego na cerca. Eu fiz muito gol, fiz mesmo.

Veio um time de Juiz de Fora aqui, então eu fiz um gol de meio de campo que todo mundo ficou abismado. De meio de campo, mas pegou uma cace-tada que vou te falar com cê, que eu num esperei a bola picar nem nada, nada. Do jeito que ela veio mor-rendo eu enchi o pé, mas Nossa Senhora, foi lá no an-glo! Nossa Senhora, me carregaram no colo o campo todo... [Risos]. O pessoal entraram invadindo o cam-po e me carregaram... [Risos] Igual esse eu não fiz ne-nhum mais, não. A idade foi chegando, não é? Eu já tava berano os quarenta já quando eu fiz esse gol.

Joguei até 72 anos. É, eu tô com 75. Parei por-que eu adoeci e dei problema de coração, foi onde que, senão não tinha parado, não. Na última vez que eu joguei, ainda fiz dois gols. Aí eu comecei a sentir mal, falta de ar. Aí não joguei mais. Foi um jogo que teve aqui. Aí o segundo quadro tava, eu entrei no se-gundo quadro, tava perdendo de... Tava perdendo e eu entrei e virei o jogo.

Pra fora ninguém foi, não. Que eu me lembre não. Só se foi antes de eu começar. Ia até Cataguases. Só. Em Cataguases teve diversos times bem grandes.

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Tinha o Flamenguinho, tinha esse Palmeiras mesmo. Era um time lá, viu? Entendeu? Era época de disputa de campeonato, tinha o Flamenguinho, o Operário, o Granjaria e tinha o Cataguases lá embaixo, que ainda tem até hoje. Então tinha esses times todos, maior. E o Palmeiras era dos melhor, que se “nóis” saísse da-qui pra pegar o time do Palmeiras lá...

Não, nunca ganhei prêmio. Nem retrato eu não tenho do time. Eu nunca liguei pra isso. O pra-zer meu era tá jogando, era isso. Jogava no Palmeiras. Quando eu joguei no Palmeiras, aí deu uma porção de medalha pros jogador. Eu também, me deram essa também. Naquele tempo não havia assim, dá dinhei-ro, jogador não, naquele tempo era assim, uma lem-brança, viu? Jogar futebol. [Emoção] Eu vejo esses meninos jogando hoje, dá vontade de entrar lá.Vê es-se meninos aí hoje, aí rapaizim, nego forte, tem altura, tem físico, tem tudo e é uma muleta. É, uai! [Risos]

Vou aos jogos ainda. Só quando eu tô sentindo muita dor que eu não vou. Aqui fervia o campo de mulher, também. Então, tinha gente de Abritta, que aqui tinha muita gente de Abritta. Então a gente de Abritta era doente por esse time, do São José, que jo-gava esse de saia, jogava o Lino. O Laladi era gente de Abritta, que tomava conta do time dos meninos e ele foi goleiro do segundo quadro.

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Tem uma mulher que veio, chegou aqui e zom-bou dele, que nunca viu homem de saia e jogar. Ele falou com ela, você vai ver. E o filho dela nasceu alei-jado, igual ele. A saia é, o pessoal ficava admirado de ver ele jogar com a saia. Era um vestidão largo. Era sempre de pano grosso, então não aparecia a roupa, o corpo quase nenhum. Ficava pesado no corpo. Ele era bom, chutava bem também. Veio dos pés. E de-pois ele operou e ficou normal, igual a gente mesmo. Ele faleceu há muitos anos já.

Aqui dava muito baile dia de sábado e domin-go. Então era isso, o divertimento era esse. Aqui tinha um, esse de saia era músico, esse Laladi era. Então eles começaram a tocar na casa de um. Aí formava um baile. Aqui tinha um tal de senhor Raul, então todo sábado, o pessoal dançava. E dia de domingo, dançava na casa dele. Que tinha um cego que vivia na casa dele e esse cego tocava sanfona. Então aquilo era alegria pro povo. E outra coisa, não tinha conver-sa não tinha nada. Só se vendo. Só música e o pessoal dançando, gente, com todo respeito. Na pracinha ali tinha uma casa na esquina, onde tem construção no-va agora, ali que era a casa do tal senhor Raul, viu, então ali que era o baile.

O baile era até 10 horas só, até dia de semana. Nós vínha aqui pra rezar de noite e dançava mucado.

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Toda vida eu rezava, toda vida. Os mais antigos sem-pre ensinavam os mais novos a rezar.

O futebol, eu acho no meu ponto de vista que piorou. Hoje é muito é toquinho de futebol e antiga-mente não tinha toquinho, do jeito que ocê pegasse,

“ocê” mandava. E hoje não, tudo é toquinho. Porque esses meninos de hoje, dando toquinho, vai até perder a bola e antigamente, não. O nego chutava longe, não perdia a bola, só que hoje é conjunto, não é? Tem isso.

Time pra mim hoje, eu não sou seguidor de ti-me nenhum. Eu torcia pro time que eu jogava nele. O meu. [Risos] toda vida foi o São José. Fui jogar, igual eu tô te falando. Disputar o futebol no outro time, em Cataguases. Joguei lá no Palmeiras, enquanto eu tava lá, morando lá. Mas sempre jogava aqui, vinha de lá de bicicleta pra jogar aqui. Porque toda vida joguei nele, não é? Nunca sai pra outro time nenhum, saí assim, pra disputar lá em Cataguases. Mas não ia só eu. Ia eu e os outros companheiros que era escolhido aqui. O responsável pelo São José hoje tá sendo aqui o Maurinho, do Nésio. Mas aqui foi senhor Alberto Rama, muitos anos, ele com o filho dele.

Eu trabalhava na enxada, essas coisas assim. É só na roça. Final de semana jogava. Chegava final de semana, domingo, quem tirava leite, tirava o leite. Acabava a obrigação e vinha pro campo. Era assim.

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Naquele tempo nós num tinha esse negócio de tratar de vaca igual hoje. Naquele tempo nós num tratava de vaca, não. Chovia mais, os campos, os pastos fica-vam mais verdes. Então era mais e quase todo mun-do era proprietário. Então eram os donos mesmo que tiravam. Meu pai mesmo tirava leite e eu que tirava, viu? Aí dava meio dia, eu tava rapando fora. Já salta-va a vaca e deixava pra lá.

Aqui, por exemplo, tinha muito, dava muito verde e amarelo. Cê sabe que é, não é? Então, fulano cê vai jogar pra quem? Pro verde ou amarelo? Ah, eu vou pra tal assim, assim. Então aquele jogador assi-nava ali que ia jogar pro amarelo ou jogar pro verde. Mas era uma, era quente, heim? Era quente mesmo! Que tinha muito jogador, então um torcia pro time do outro. E quem perdia, brincava do mesmo jeito. Cabô, cabô. Aí no outro domingo, sempre tinha jogo. Fazia outro time do verde e amarelo. Era assim. E jo-gava e firvia de gente

O pessoal hoje perdeu muito a ilusão de cer-tas coisas. Não tinha televisão, não tinha nada e outra, hoje tem muita religião e a religião tirou o jogador de muita coisa. Porque vai pra uma religião que num gosta de futebol, né? Então aquele já não volta pro futebol. Eu acho, penso assim. Antigamente a gen-te ouvia pelo rádio. O jogo era no rádio à pilha. Ah,

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quando tinha um radinho num lugarzinho mais e falava mais alto, o pessoal embolava tudo ali perto, porque num tinha outro por ali, não é? Aí é, foi pra televisão, não é? Quando tinha televisão numa casa, não é? Não é todas casas que tinha televisão. Foi uma coisa de outro mundo quando apareceu uma tele-visão passando jogo. Ainda mais o pessoal da roça. Então quando apareceu a televisão aqueles que pode comprar, aquilo foi a coisa de outro mundo. É, pare-cia que ocê via a mesma coisa, não é? Mas no campo era mais gostoso. [Risos]

O jogador mesmo que apareceu no mundo foi o Pelé. Não é dizer que ele era bão, não. Se des-se oportunidade, ele fazia gol. Só via pela televisão, mesmo. Eu nunca fui de sair, pra lugar nenhum. Que eu era preso, que a gente tirava leite, então num po-dia quase sair pra lugar nenhum. Sempre aqui em Cataguases mesmo e pronto, Leopoldina. Quando o time do Manu ia lá no Ribeiro Junqueira, a gente ia. Lá tinha o Camarão, tinha o Cabeção que era casado com a minha prima, que era o central de lá, que ocê ouviu falar, num ouviu? Não? Era um altão e ele era cabeçudo mesmo, ah. E ele era o central e era o me-lhor central por aqui, da zona aqui.

Onde, gente, que eu ouvi falar que teve uma briga? Tinha instrumento, banda de música, quebra-

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ram tudo. Ah, foi Ribeiro Junqueira com Recreio. E eu fui lá na época com Ribeiro Junqueira. Mas Nossa Senhora, foi uma coisa horrorosa. Eu tava passe-ando na casa de uma tia e esse cabeção é genro da minha tia. Então ele me chamou pra ir lá com ele, Nossa Senhora, o pau quebrou mais quebrou mesmo. Raspamos fora. Esse Cabeção, então, deu uma deita-da assim que deitava um monte de homem, um bi-telão dum homem desgraçado de forte. No que ele passava a perna, deitava aquela...

O meu apelido era Manga Rosa. [Risos] Porque eu era muito vermelho. [Risos] Tem que levar o caso na brincadeira. Se levar sério é pior. Em diver-sos times que a gente ia jogar, a gente chegava lá, a gente trazia uma carroçada de gol [Risos]. É, mas o time daqui era difícil, mas sempre que não saía todo mundo. Cê sabe disso, que o futebol hoje é, toda vi-da foi, num saía todo mundo. Sempre ia pra metade, chegava lá quem ia jogar era o segundo quadro.

Ah, foi diversos lugar que a gente ia, né? Sempre tinha lugar que, como o Glória, ninguém gostava de ir no Glória, Santa Maria, ninguém gos-tava de ir. Por causa de briga. O pessoal é ignorante lá, demais. O Santa Maria, então! Lá brigava a toa. Lá cê tinha que deixar o pessoal ganhar. Eles botavam apelido, qualquer coisa metia o pé no outro. Lá no

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Retiro mesmo, eu defendi um colega com a bolsa de chuteira, que eu tava na minha mão. Quando o ca-marada meteu nele a faca assim, eu com a bolsa, puff na munheca dele. A faca caiu no chão. Aí, cabô. Não teve briga, também num teve. O cara correu e o pes-soal de lá mesmo zangou muito com cara e botou ele pra casa.

A gente tirava foto mais num ligava pra aqui-lo. A gente tirava foto lá com o jogador, mas eu nun-ca procurei uma foto pra mim. Única lembrança que eu tenho é essa aqui, de lá o quando joguei no Palmeiras, que repartiram uma medalha pra cada um. O Palmeiras acabou há muitos anos. O presidente era o Clodomiro e ele morreu, então acabou. Aí então o Manu no campo dele, que o Manu não tinha aquele campo de lá, não. Começou no campo de cá, o que era do Palmeiras. É ali nos fundos mesmo. De lá pra cá, lá de cá do rio, no Meia Pataca. Então começou ali, nos fundos ali. O time que eu assinei foi só pelo Palmeiras. É, é que nem uma ficha assim. Tinha o re-trato da gente e cê ia jogar, tinha que assinar o nome.. Ainda lembro ainda... [Risos]

Entrevistado por Carlile Lanziere Junior, Sabrina de Almeida Sousa e Tiago Barroso Souza em 30/9/2011

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Meu nome é José Dirceu Archete, de italiano. Meus avôs vieram da Itália no início do sé-culo passado. Eles vieram novos para cá. Casaram aqui. Vieram pra trabalhar com café. Em Santa Maria, aí, fazenda, né?

Eu comecei a jogar bola, eu morava na roça sa-be... E lá tinha um time muito bom, o Santa Maria. Era menino, mas os meus pais não gostavam que eu fosse a botequim, não. Em venda não, sabe. Só com-prar e sair. Mas tinha um campo muito bom lá. Então

S E U L O U R O 1 2 ( J O S É D I R C E U A R C H E T E )

T R A B A L H A D O R R U R A L ,

O P E R Á R I O T Ê X T I L

7 1 a n o s

12) Morador do distrito de Sereno, ex-jogador de futebol

Foto: Sr. Loro em seu sítio nas imediações do distrito de Sereno, foto e acervo do Projeto Memória e Patrimônio Cultural, 2011

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apareceu [um] tal de Renato, filho de tal de Saturnino, já faleceu. Então montou um time lá de meninos. Eu comecei a ir naquele time de meninos e jogamos com Cataguases, foi lá. No primeiro jogo, a gente em-patou. Depois ganhamos umas partidas aí. Aquilo acabou. Aí eu vim pra Cataguases com 15 anos e co-mecei a brincar no juvenil do Palmeiras, juvenil do Flamengo, juvenil do Operário, entendeu? E disputei uns campeonatos aí. Joguei no Sereno muitos anos. No Glória joguei, mas depois que eu estava aqui em Cataguases, que eu voltei a jogar, pessoal de Santa Maria, Glória... Joguei em vários times aí.

No futebol era chamado de Louro. Jorge Louro, ih!... Isso daí foi na cidade já. Na roça eu não tinha esse apelido, não. Na roça não dava apelido, não. Muito difícil. Isso já foi em Cataguases. Joguei até uns quarenta e... Quarenta e cinco anos.

Eu, como eu tava te dizendo, eu que traba-lhei no futebol, que eu brincava mais ou menos nes-sa época, sabe? Mas tive que operar os rins. Fiquei uma temporada com problema seríssimo de rins, sa-be? Operei, fiz laser, cortou de novo e... Aí veio outro problema, eu tive... Queimei em terceiro grau as mi-nhas pernas na Irmãos Peixoto. Fiquei um ano para-do. Voltei a jogar bola de novo! Queimei tudo, fiquei em terceiro grau.

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Até os quinze anos eu morei em Santa Maria, na roça. Depois eu mudei pra Cataguases, morei em Cataguases, no Pouso Alegre. Aí no Pouso Alegre eu joguei no Cataguases, joguei em Sereno, joguei no Vila Reis. Andei jogando nesses times aí. Vinha jo-gar em Sereno. Depois eu mudei pra Sereno, enten-deu? Morei em Sereno uma época boa. Tomei conta do Cruzeiro, aqui de Sereno. Fiz um time aqui no Zé Lobim, na roça, chamado Bom Sucesso. Tinha um ti-me meu aqui... Joaquim Vieira, sabe? Aquele campo do Joaquim Vieira que tem ali. A prefeitura não aju-dou com um pé de capim pra plantar aquilo ali. Nós rifamos um garrote e fizemos aquele campo pro povo jogar bola. Deu uma demanda lá e o time acabou. Tem meio campo só perto daquela igrejinha, pra baixo ali.

Trabalhava na roça candiando boi, arando terra, moendo cana, meu serviço da roça era esse. Plantava arroz...Saí pra procurar serviço na cidade, não é? Pra trabalhar na Irmãos Peixoto, entendeu? Aí fui pra lá, meus irmãos, minhas irmãs, entendeu? Eu sou o mais velho dos homens. Aí fui pra trabalhar na Irmãos Peixoto... Trabalhei na fábrica. Trabalhei na fábrica, lá na Irmãos Peixoto, uns quatro anos. Depois traba-lhei na Manufatora também um pouco. Trabalhei na Industrial, fui mandado embora da Industrial por nú-mero de cartão trocado, entendeu? Os operários têm

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números nos cartões. Ia pegar o 125 e peguei o 126, no caso, era o meu, não é? Aí pegou o número do car-tão trocado da pessoa e mandou ela embora.

Quando foi parar nos ouvidos dos homens, os homens ficaram bravos lá, porque eles queriam que eu fosse para a oficina mecânica e não deixaram. Eu trabalhava em acabamento, na estamparia. Aí man-daram eu embora. Aí foi um alvoroço danado, quan-do eu fui descobrir por que... Um tal de Carlinho lá, mandaram eu embora por causa de cartão trocado, ele mesmo me colocou na Manufatora. Mas arruma-ram um outro emprego porque eu era bom funcioná-rio, se eu não fosse não arrumavam, não é?

Ah, todo mundo saía daqui para trabalhar em fábrica. Antigamente quem era da roça. Todo mundo, não é? Porque o café foi acabando naquela época. Aí foram correr para arrumar emprego e foram para a cidade. A cidade dando emprego para mulher, para homem, aquele negócio, não é ? Foram todos pra a cidade procurar emprego.

Eu comecei lá, fichei lá. E fiquei mais na roça quando eu era pequeno com o João Peixoto, que era o dono da fábrica. Ele me levava para Santa Maria, ele comprou uma terra lá. Eu ficava para lá com ele, mexendo com boi. Para lá e para cá, entendeu? Depois que eu fiquei mais lá. Eu mais velho mexia

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com política com ele pra lá e pra cá, aí. Aí, fiquei só lá na fábrica.

O dia em que não tinha um domingo de bo-la pra mim não tinha nada, não tinha domingo, não. [O Seu João Peixoto] não participava de nada, não. Aquilo tudo era munheca de samambaia. Não ajuda-va em nada, nem nada [Risos].

E os jogos então aconteciam só no domingo, só domingo. Era de tarde, sempre era de tarde sabe? Mas é só na hora do jogo, a gente jogava lá. Ia na úl-tima hora pra jogar, trabalhava na parte da manhã também. Marcava por intermédio de contato lá um com outro conhecido, não é? Ou vinha pra cidade, marcava um jogo, ia lá. É time de lá do distrito.

Disputei campeonato suburbano aqui para o Sereno sabe?... E foi. Dava uns torneiozinhos, quatro times, entendeu? Disputava lá no torneio um troféu. Só em um dia. Ganhei um torneio desses, mas nun-ca tirei um retrato. Não gosto disso não. Nunca tirei um retrato. Fui coordenador da igreja lá. Eu nem tirei foto aparecendo lá nem nada. Graças a Deus cons-truímos a igreja lá. No Bandeirantes. Mas não, quero aparecer para Aquele lá em cima. Para Deus.

Miraí jogava em Cataguases. Fazia um torneio aqui na roça, Cataguases também ia, sabe? Fazia um torneio lá e às vezes aparecia alguém de fora. Tinha

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muita assistência naquela época. Nossa! Era muita gente mesmo! Na roça hoje não tem nada. Aqui tinha jogo de malha o dia inteiro. Esse tal de caipira, caipi-ra é caçarimba, não é? E tinha aquele jogo de malha que é botar atrás - que é para por um dinheiro no pé do pau. E aquela turma, jogava a malha, aquilo su-mia o dinheiro para o meio do mato, ia com isqueiro procurando o dinheiro. Quando já escurecendo eles riscando isqueiro, procurando dinheiro lá. O bolso da calça deles estava igual terra de tanto eles enfiarem a mão no bolso pra pegar dinheiro... Aquele negócio! E jogava marimbo também... Marimbo. E hoje não pode jogar, não é? É proibido o que fala marimbo. É a dinheiro, cartada, não é? É carteado. Mas eu não jogava isso não, era menino. Deus me livre! Não po-dia e meu pai não deixava de jeito nenhum, nem fi-car perto vendo. Meu pai era muito sistemático, não gostava de ficar em venda, porta de botequim, nem nada, não.

As pessoas iam aos jogos, a cavalo. A cava-lo ou então num caminhão velho. Os times iam de caminhão. Torcida ia de caminhão. Futebol, jogador, tudo caminhão. Tinha negócio de ônibus naquela época não. O dono do caminhão naquela época era o Ormeu, não é? Ormeu tinha em Cataguases. Aí, sa-be? Ele puxava muita gente aí. Pagava. Todo mun-

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do pagava, pagava passagem. Pagava até pra jogar. Vinha mulher, vinha senhoras, senhor. Todo mundo. Criança. Tudo no respeito, não é? Tudo com respeito. Aquele que aprontasse qualquer coisa, se bobeasse, a gente o largava pra trás, pra lá.

A bola juntava e comprava. A gente compra-va, entendeu? Fazia leilão, arrecadava um dinheiro e comprava a bola, comprava camisa, comprava aque-las bombas de encher a bola. Leilão de frango, tatu naquela época... Uma paca. Hoje não pode fazer mais não, não é? Naquela época fazia. Comprava bola em Cataguases. Comprava na... Me parece, não me recor-do mais hoje onde comprava, não. Não sei se era no Bazar René. Não sei. Não me recordo se era no Bazar René que se compravam essas bolas mais. Nessa épo-ca eu não transitava muito. Eu não comprava, eu era criança. Aí tinha as pessoas mais adultas, esse Renato, não é?

A bola era de couro, mas era muito costurada, um troço danado. Um troço muito horrível! Ela era bicuda, ela era... Como é que é?... Não era bola re-donda igual hoje não. Pareciam umas bolas de bexi-ga de boi, sei lá o que eram aqueles troços amassa-dos. Nossa Senhora! Aquilo virava um... Pesava pra desgraçar. Não é bexiga de boi porque bexiga de boi é leve não é, parece que é um couro de barriga de

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boi não sei o quê que era. Encharcava aquilo, Nossa Senhora!

Uniforme tinha. Rede não tinha. Nessa época não tinha, não. Uniforme era direitinho. Tinha uni-forme direito. Comprava as camisas, não é? Mandava pôr número nas camisas, entendeu? Umas mulheres lá, costureira que cortava e pregava. Costurava ele lá.

Nessa época, é mais velho, um tio meu era muito bom goleiro. E tinha o meu tio, casado com minha tia Nenê, que mora em Santa Maria. E tinha o falecido Neco Archete, irmão do meu pai, que era bom de bola, atacante. E tem lá o irmão dele, não é? Alberto Archete. Esse que era apaixonado por bola e tomava conta de bola até ultimamente. Até pouco tempo ele tomava conta de futebol lá.

Ah, era festivo, era muita farra. Soltava fogue-te... Era muita farra. Cada um para si, para lá, enten-deu? Dava festividade era... Ganhava jogo era aque-la foguetada, fazia farra. Mas para fazer festa, juntar, agrupar assim, não. Só em política, depois. Ih, rapaz, dava muita gente mesmo. Lá em Santa Maria devia dar umas quinhentas pessoas. Nessa época de meni-no é muita que tinha. Até telefone teve. Teve táxi. No Glória, aí.

Eles brigavam, mas separavam lá. Teve uma época que deu tiro, o cara deu tiro no outro. Ele esta-

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va com correão, a bala pegou na fivela do correão do cara e não matou.

Ah! Isso eu brigava, não é? Gritava, falava, esbravejava! Magrelo, seco, frango d’água, não sei o quê. Esses são os apelidos que a pessoa punha. A pessoa era magra e já punha o apelido no outro de magro também. Esquecia que ele tava... [Risos]. Tudo era farra!

Mas metia o pé pra caramba, Nossa Senhora! Um camarada mesmo no Glória meteu o pé no meu pai, na bola não. É. Aí ele machucou, amarrou um pano ali e voltou pra jogar futebol de novo. Era bem violento. O pessoal era atrasado na época, não é? Tinha, tinha o juiz. O pessoal respeitava o juiz sem-pre. Mas algumas vezes dava confusão. Que às vezes você ia apitar um jogo...

Comigo mesmo já aconteceu isso, mas foi de-pois. Então estou contando mais ou menos na épo-ca, não é? Então aconteceu em Cataguarino. Eu fui jogar lá. Esse tio meu que já é daqui debaixo, no Joaquim Vieira, eu estava com o time e fui jogar lá em Cataguarino. Eu estava apitando o jogo e tinha um ra-paz lá que fez umas faltas muito violentas e falou cer-tos palavrões. Aí eu expulsei o cara, chamei a atenção ele não obedeceu e eu expulsei ele. Ele não saiu de campo. Aí o dono do time não tirou. Eu disse que não

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tinha problema não, mas que o jogo ia parar. Eu falei: vou tolerar 15 minutos aqui dentro de campo. Se ele não sair, o time sai de campo. E vocês vão ter que pa-gar o tanto que combinou para ir lá. Aí ninguém tirou o cara de dentro de campo. O dono do time só ficou me ameaçando para lá e para cá. Eu fiquei sentado. Acabou os 15 minutos, terminei o jogo e pronto. Não, não teve confusão, não. Não teve mais jogo.

Pagava uma taxa de garantia, não é? Ia jogar um time, Santa Maria e Glória. Às vezes o Glória da-va uma taxazinha pra ir lá, porque se ele não fosse dia tal, perdia aquela taxa, a quantia. Era uma mixa-ria! Naquela época devia ser uns cinco reais ou dez reais. Dez reais naquela época era muito dinheiro, não é? Nem dez reais deveria ser. Uns cinco reais só.

Pra marcar um jogo, isso daí rapaz é em con-versa. Às vezes vinha um na cidade. Ô fulano, fala com fulano lá, se você ver ele lá pra mim. Procura ele lá que ele mora em tal lugar, vê se ele quer vir aqui domingo, o time dele... Era assim que era tratado o jogo. Não era só uma pessoa a vez que ia. Outro do time mesmo ia, companheiro da gente, sabe? E trata-va o jogo.

O pessoal já sabia que todo domingo tinha o jogo ali. Se nós jogássemos o jogo domingo aqui, aí já sabia com antecedência. Domingo que vem nós va-

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mos jogar fora, tantas horas tem que estar aqui. Nós vamos sair de caminhão ou a cavalo. Aguentava tra-balhar. [No dia seguinte] nós tava lá moendo cana de madrugada.

Aqui em Sereno - eu joguei aqui - tinha um rapaz que foi treinar no Vasco e passou. Mas a irmã dele pagava o estudo dele. E o cunhado dele era por-tuguês, comprou uniforme, tudo pra ele treinar no Vasco. Foi e passou. Aí a irmã dele disse: Olha, se vo-cê passar e ficar por lá você não vai estudar mais, vo-cê tem que estudar. Aí ele não ficou porque ele tinha que estudar. Aí ficou aqui. Hoje ele está muito bem, está lá no Mato Grosso.

Mas tem muita gente boa de bola aqui. Eu já joguei com gente que jogou até na Bahia, profissional. É, o Moisés. Era goleiro, mora perto da faculdade ali. Irmão do Israel. Israel tinha um botequim por aí na cidade. O Moisés jogou em Itabuna não sei, na Bahia.

Eu já joguei contra o Manu, sabe? Conse-guimos ganhar uma final lá, joguei. Foi um jogo muito bom! Com o Cataguases, eu já joguei muitos anos para o Cataguases. Decidir um jogo bom, eu não sei não. Joguei para o Vila Reis, esse daí foi um jogo muito bom, contra o Vista Alegre. Tinha uns ca-ras que jogavam titular no Botafogo. Um tal de João Capeta, que eles falavam na época, um ponta. E o

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Massaú, que jogava pelo Fluminense. E tinha o Índio, que era zagueiro aqui, no Flamenguinho. Mas era de lá e jogava também.

Nesse jogo eu joguei para o Vila Reis, contra eles. Chamaram-me para jogar e eu fui. O Brazito era o treinador do Vila Reis. Então eu fui jogar lá e eu es-tava ganhando o jogo de quatro a zero. Aí eu estava dando muita sorte nesse dia, eu subi para cabecear uma bola e logo apareceram essas chuteiras trava de pião de rosca: o tal de Massaú.

A bola veio pra eu cabecear, estava muito quente, eu estava suando muito. Ele subiu foi para lá e deu um coice na minha testa, aquele pião de ros-ca, não é? Bateu aqui (na cabeça) que eu desmaiei na hora. Caí e fiquei desacordado lá como morto. Eles acharam que tinham furado minha vista.

Aí correram lá, não tinha nem farmacêutico lá em Vista Alegre, não tinha ninguém. Aí me lavaram lá, me deram o banho. O Brazito, que era o treinador, ficou quase doido com aquilo, achando que tinha fu-rado a minha vista. Foi a mesma coisa do que eu ba-ter a minha cabeça em um muro, sabe, concreto ou coisa assim. Aí entrou um tal de Pinga no meu lugar, não pude continuar mais, faltava vinte minutos para terminar o jogo, eles fizeram três gols, quase que em-pataram o jogo ainda, mas ganhamos o jogo.

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Também teve um jogo que me marcou muito, foi contra o Nacional de Muriaé. O Nacional ia jogar contra o Vasco no domingo. Então, fomos jogar nu-ma quarta-feira para eles acabarem de acertar o time para jogarem contra o Vasco. Nós chegando lá, toda aquela festa de ônibus buzinando, chamando a aten-ção do público de lá. Esse jogo me marcou.

O Tainha - ele era goleiro do Vasco nessa época, ele estava aqui, um escuro. Eles estavam com o me-lhor goleiro da cidade na época que era o Luiz Careta. Mas não puseram nem o Tainha, nem o Luiz Careta para jogar. Um tal de Genir que pegou no gol. Era fraco, mas era o goleiro do time nessa época. Ficaram os dois na reserva lá.

Eu saí, estava zero a zero o jogo, entendeu? Zero a zero o jogo e o timaço do Nacional. Nós per-demos dois gols feitinhos. Aí eu saí. A primeira vez na minha vida em que tinha sido expulso. Um tal de Maurício, que jogou no Rodoviário Mineiro, expul-sou eu e um tal de Curisco que era um centroavante bom. Eu subi para cabecear a bola em córner contra a gente. Aí ele ia fazer o gol, ele estava na minha fren-te. Quando ele subiu para fazer o gol eu subi atrás dele e eu firmei o calção dele. O juiz não viu porque estava lá atrás, não é? Aí ele não cabeceou, quem ca-beceou foi eu. O Bazilto que era o lateral-esquerdo.

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Aí o Bazilto pega a bola e sai jogando, eu saí fora da área, estava jogando de cabeça de área. Quando eu vou correndo, o Bazilto lança a bola para mim, eu vou correndo para pegar a bola uns dois metros na minha frente assim, o Curisco vem por trás de mim e me dá uma rapa, pula em mim e me joga no chão. Bati com a boca no chão. O Maurício expulsou eu e ele. Expulsou os dois. Eu não fiz nada para ser expul-so, só que ele ficou com raiva porque ele não fez o gol porque eu... Mas o juiz não viu. Então eu não fiz na-da para o juiz me expulsar. Primeira vez que fui ex-pulso. Ele me expulsou, perdemos o jogo. Perdemos de quatro a zero. E tava uns zero a zero faltando uns trinta minutos para terminar o jogo.

Ô meu filho, eu nunca me arrependi. Eu sou um gozador até hoje, entendeu? Levo a vida na sa-canagem, brincando e pode brincar comigo. Porque têm muitas pessoas que brincam, mas não gostam que outra pessoa brinque, não é? Então, eu sou um cara muito encarnador. Então, pra mim, perdia e não estava nem aí, entendeu? Eu jogava para ganhar, mas se perdesse, você tem que ter a esportiva sabe? Saber perder e saber ganhar, esse que é o meu ideal. Eu te-nho um irmão que não aceita de jeito nenhum.

Jogava de central, zagueiro. Eu já fiz bastan-tes gols nessa minha vida. De falta, uma vez estava

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jogando Cataguases e o time do Origes, que era o Bairro Jardim. Às vezes você se lembra até, Bairro Jardim, Origes. Tinha um time na Industrial ali. Tinha um time chamado Bairro Jardim ali. Então estava jo-gando, o melhor atacante de Cataguases estava jo-gando para ele, que era o Jaques, ponta direita. Nesse dia eu fui jogar de lateral-esquerdo. Então, estava ze-ro a zero o jogo. Eu estava marcando ele. Primeiro tempo zero a zero. O Chico Dunga, falecido Chico Dunga, deu quatro gols de vantagem, foi Cataguases contra o Bairro Jardim, e nós ganhamos o jogo de cin-co. O primeiro gol quem fez foi eu. E o Jaques não fez nem um gol. Nesse jogo eu matei a pau. Eu fui pela esquerda, não é? O Sarapião saiu em mim, eu joguei por cima e fiz o gol. De cobertura, é.

Eu já fiz muito gol de falta. Batia bem na bola, a coisa melhor que eu fazia era saber colocar a bo-la ali. Aqui em Sereno, tem um cara aqui, o Roberto Riguete, que fazia gol de cabeça. Era eu bater o es-canteio e ele fazer o gol. Ah, já fiz uns. Fiz lá uns cin-quenta gols. Nessas peladas aí, futebol não é! Camisa! Nessas peladas, não. Brincando aí não é, fiz uns cin-quenta gols. Esse time daqui, o Joaquim Vieira mes-mo. Eu jogando aqui, sempre eu ganhava o jogo de um a zero, gol meu. Era uma falta, era um pênalti. Agora trancava, eu sabia armar o time para defender,

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o time daqui não era bom, ruim! Então eu trancava ali e ganhava o jogo sempre de um a zero.

Eu distribuí camisa bastante tempo aqui em Sereno. Fui treinador aqui do Sereno aqui bastante tempo. Uns dois anos eu fiquei como treinador aqui em Sereno, entendeu? Esse time, o Joaquim Vieira também. Eu que era o treinador dele também. É. Só aos domingos. Mas era só jogo, só escalar time, não é. Treinava só aos domingos. Do mais era... Tinha jogo direto, já tinha o time definido, não é?

Ah, mudou muito! Mudou demais, não é? Hoje ninguém tem compromisso quase com ninguém, pa-lavra acabou, não é? A gente também, fora tudo pa-rece que acabou a palavra, não é? Honestidade, isso quase que acabou. Antigamente valia muito a pala-vra. Tinha um time, mas era aquele time fixo ali, todo domingo aquele jogador estava ali. Tinha responsa-bilidade. Hoje não tem mais time, vai fazer um cam-peonato aí. Eles querem montar time na hora e pagar para jogar. Antigamente você tinha um time e o time ajudava você ainda, entendeu? Ajudava você a com-prar bola. Tudo isso. Uma taxa que tinha que pagar lá na Liga, pagava, todo mundo ajudava a pagar. A Liga de Cataguases, não é? Suburbano, não é?

Acontecia [um time não aparecer]. Aí jogava solteiro contra casado, ou então fazia uma brincadei-

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ra lá. Você tirava um time eu tirava outro. Ou então as madrinhas... Eram umas moças que tinha na época, não é? As moças do lugar que tinha na época.

Arrumava duas madrinhas e elas tiravam um time... Tinha uma fitinha que amarrava nessa época da roça, tinha uma fita vermelha ou verde. Escolhia lá três jogadores, a madrinha que escolhia o time e jogava um contra o outro. Essa fitinha era para marcar o jogador delas, não é. Ah, dava aquela far-ra! Aquela gozação, aquela brincadeira, não é? E passava.

Jogava-se, primeiro contra o segundo também, entendeu? Ou então fazia sorteio contra casados. Mas aquilo não era treino, não é? Era para brincar! Agora, existia o treino. Quando você queria treinar o time, você juntava mais era a defesa contra o ataque. Você punha o ataque bom em cima da defesa melhor, entendeu? O goleiro melhor ficava com a defesa boa e vinha um ataque. Esse que era o treino que se da-va antigamente. No final do treino, você estava mais ou menos certo, você acertou o time que você queria. Então você passava um, entendeu? Na metade, do meio do final pra frente. Aí você já colocava o time completo que você ia jogar no domingo. No dia em que não tinha jogo a gente treinava assim, para o ti-me completo que ia jogar domingo que vem.

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Por incrível que pareça, não penso muito no que passou, não. Para mim tanto faz, já tive muita fase boa, ruim. Então eu. Entendeu? Para mim foi tudo bom. Tudo bom, igual lá na roça. Sou apaixo-nado com a roça lá até hoje, não é? Já sofri muito na roça, mas gosto de conviver com o povo da roça, de conversar com o povo da roça. Parece que onde resta alguma coisa de honestidade ainda é no meio rural, entendeu?

Então sou aqui aposentado por invalidez. Não posso trabalhar mais, mas fico aqui. Gosto de convi-ver e dou a vida por isso aqui. Mexendo com a cria-ção, com o gado, com galinha, gosto disso. Então. Não tem muita coisa que me marcou muito em fu-tebol não, entendeu? Marcou sim, mas não gravei muito. Portanto, o retrato. Nunca me preocupei em fazer essas coisas. Disputei suburbano. Fui campeão suburbano aqui em Cataguases, mas não gosto muito mais disso, não. Desliguei muito.

O Glória tem campo, não é? É o mesmo que eu joguei nele. Eu joguei em outros antes, mas joguei nesse também. No Sereno tem. O Cruzeiro está para-do, o campo dele não está atuando, estão mexendo nele lá. Tem o União, lá em cima. Eu ajudei a fazer o campo e ajudei a colocar alambrado, entendeu? Alambrado fui eu, chegou na época da eleição, eu

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falei assim, estavam competindo políticos para de-putado. Falei: Nosso candidato se chama alambrado. O candidato que desse o alambrado para nós naque-la época, iríamos votar nele. Só serve antes da elei-ção, depois da eleição não quero. Consegui. Juarez Quintão, deputado de Carangola, deu o alambrado, através do Joaquim Juscinto.

Tem muitos anos, já acabou o alambrado, aca-bou tudo. Perderam aquilo tudo para lá. Então, fi-zemos o campo, entendeu? O alambrado, tudo ar-rumadinho, ficou um estádio ali no Quilombo dos Palmares, em cima ali do campo do União. Trabalhei muito naquilo ali. Tem as traves fincadas lá, mas não sei, parece que não estão jogando mais bola lá, não. Parou, está parado. Só o Glória é que existe.

Meu time é o Vasco da Gama. Ainda sou jo-vem, graças a Deus!

Entrevistado por Carlile Lanziere Junior, Sabrina de Almeida Sousa e Tiago Barroso Souza em 10/10/2011