conservar patrimonio

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Trata-se de um artigo realizado no âmbito do 1o Encontro Luso Brasileiro de Conservação e Restauro

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    o68 Conservar o patrimnio construdo.

    Critrios, metodologias e desafios profissionaisEduarda Vieira

    Resumo

    O sector da conservao do patrimnio arquitectnico registou uma expan-so aprecivel e constante, desde meados da dcada de 90 do sculo XX at actualidade. A conservao arquitectnica implica, na maioria dos casos, que se considerem tanto os aspectos estruturais como os programas decorativos aplica-dos a interiores e exteriores, envolvendo equipas interdisciplinares de profissio-nais. Pretendemos analisar os critrios e as metodologias de interveno, com base em alguns casos de estudo seleccionados, e apontar alguns dos problemas mais importantes que constituem desafios para os profissionais da conservao e restauro.

    Palavras-Chave: Conservao, Arquitectura, Decorao, Restauro, tica, GECORPA

    Abstract

    The architectural heritage conservation sector registered a constant and appre-ciable development in Portugal, since the nineties of the XXth century until the present moment. Preserving historic buildings envolves, frequently, the conser-vation of both aspects, structure and inner and exterior decorative programs, task that requires multidisciplinary teams. This paper aims to analyze criteria and methodologies of intervention based on several selected case studies and point the most important problems and profesional challenges to the future for conservators- restorers.

    Keywords: Conservation, Architecture, Decoration, Restauration, Ethics, GECORPA

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    o69 Introduo

    A conservao do patrimnio construdo e a reabilitao registaram um grande desenvolvimento em Portugal ao longo das ltimas duas dcadas, sobretudo desde 1986, ano em que o pas integrou a Comunidade Europeia. Essa integra-o proporcionou o acesso a financiamentos de fundos estruturais que marca-ram um segundo momento (o primeiro ocorreu durante o perodo de vigncia da DGMEN, entre 1929 -1960 assinalado pela busca da unidade de estilo e pela opo do restauro dos monumentos medievais), de interveno mais ou menos sistemtica no patrimnio construdo.Lentamente se foi construindo uma cultura de valorizao patrimonial na socie-dade portuguesa que teve como resultados prticos: a participao do pas em reunies internacionais atravs das quais se tornou membro signatrio das mais importantes convenes e cartas de salvaguarda e conservao em diversos dom-nios especficos; a criao de organismos da tutela exclusivamente dedicados misso de conservar o patrimnio cultural (IPPAR, IPM; IPA; IPCR; IGESPAR; IMC e direces regionais de cultura, entre outros);a elevao de vrios centros histricos categoria de Patrimnio da Humanidade bem como de conjuntos e stios arqueolgicos (Vale do Coa/Douro Paisagem Protegida); o alargamento do conceito de patrimnio (material/imaterial, mas ainda no traduzido nas tipologias de classificao);a expanso do sector da formao superior e profis-sional nos domnios da conservao, do restauro e da reabilitao; a criao de associaes profissionais destinadas a consolidar prticas e deontologias de que exemplo a A.R.P. (Associao dos Conservadores Restauradores de Portugal); a expanso da reabilitao urbana que se iniciou com a experincia pioneira dos Gabinetes Tcnicos Locais (GTLS) do Porto, Guimares e Lisboa (reabilitao do Bairro Alto); o crescimento do mercado e da rea empresarial, ao ponto de se ter justificado a criao de um grmio associativo do sector, o GECORPA. Paralelamente, procurou-se que a legislao fosse acompanhando esta evoluo do sector cultural, inicialmente com a Lei de Bases do Patrimnio Cultural n13/85,nunca regulamentada e posteriormente revogada pela Lei n107/2001, que viria a ser reforada pela publicao do Decreto- Lei n 309/2009, com o qual o Estado portugus assumiu com clareza a tarefa de proteco do patrim-nio arquitectnico, atravs do IGESPAR, estabelecendo-se o regime de classi-ficao dos bens imveis de interesse cultural, o regime das zonas de proteco e planos de pormenor de salvaguarda. J mais recentemente, o crescimento do mercado da conservao e restauro e do nmero de intervenes nesta rea,

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    o70 viria a justificar a publicao do Decreto- Lei n 140/2009, que veio instituir

    o regime jurdico dos estudos, projectos, relatrios, obras ou intervenes em patrimnio classificado, ou em vias de classificao de interesse nacional, pbli-co ou municipal.

    Teoria da Conservao. Enquadramento na realidade portuguesa

    Os finais da dcada de noventa do sculo passado registaram um conjunto de intervenes de conservao do patrimnio arquitectnico classificado, assentes em princpios e mtodos inovadores, fruto das preocupaes de um escol de profissionais que pretenderam, desse modo, lanar as bases de uma nova filosofia de actuao. 1Assim, so de salientar como modelares as intervenes na Torre de Belm (1994-1998) e nos claustros do mosteiro dos Jernimos (2000) que representam o momento de arranque para uma nova fase de actuao sobre o patrimnio cultural (DELGADO: 2011). Todas estas intervenes foram ante-cedidas por outras intervenes menores, embora no em qualidade, realizadas por conservadores-restauradores formados em Itlia e tendo por dono de obra a Cmara Municipal de Lisboa. Referimo-nos, evidentemente, s obras de con-servao do Chafariz do Rato e do conjunto escultrico do Marqus de Pombal, que se pautaram ambas por processos e metodologias nunca antes utilizados no pas, nos domnios do restauro de arte pblica em suporte de pedra e metal. No caso da Torre de Belm e dos Jernimos, o facto de se tratarem de monumentos nacionais classificados, em muito mau estado de conservao, mas com grande valor artstico, histrico e simblico determinou o recurso a ajudas financei-ras internacionais que funcionariam como parceiros do Estado portugus em to dispendiosa tarefa. A World Monuments Fund, associao privada sem fins

    1 Cite-se a este propsito a criao da Sociedade para a Preservao do Patrimnio Construdo- S.P.P.C., em 1195, inspirada no modelo da britnica S.P.A.B. e que reuniu alguns dos mais qualificados profissionais na rea da con-servao arquitectnica, oriundos do LNEC, do Instituto Superior Tcnico e Departamento de Planeamento Biofsico e Paisagstico- U.vora, entre outros e que a autora deste artigo integrou. Esta sociedade foi a pioneira na realizao de um conjunto de conferncias especializadas e na publicao de um conjunto de cadernos, o primeiro deles dedicado aos Textos Fundamentais (Cartas de Veneza, Florena, Washington, Lausanne, Villa Vigoni, Declarao de Segeste e princpios da SPPC), dando conta das convenes internacionais s quais aderramos. Apesar de j extinta, a S.P.P.C. reuniu muitos dos antigos alunos do Mestrado em Recuperao do Patrimnio Arquitectnico e Paisagstico, da Universidade de vora, e cujas diversas edies vieram formaram muitos dos profissionais que difundiram a prtica da conservao arquitectnica j nos primeiros anos do actual sculo. Da Universidade de vora saram ainda os primeiros doutorados do pas em conservao arquitectnica, alguns dos quais responsveis pela implementao da investigao e estudo das temticas especficas desta rea e que contam actualmente com grande representatividade internacional atravs de diversos grupos de investigao temtica, e de que citamos a ttulo de exemplo o dos revestimentos (argamassas e azulejaria).

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    o71 lucrativos disponibilizou-se, iniciando assim uma colaborao que daria frutos

    proveitosos, tendo-se conseguido tambm a colaborao de diversos mecenas e empresas nacionais. A exigncia tcnica dos trabalhos a efectuar imps a necessi-dade de formao de equipas multidisciplinares e a implementao de modelos de gesto de obra, at a desconhecidos no panorama nacional.Inaugurava-se, deste modo, um novo modelo de interveno assente numa rigorosa investigao cientfica que se destinava a apoiar a fase preliminar do diagnstico de anomalias, a caracterizao de materiais, a preparao das inter-venes e estimativa de custos/prazos, bem como a ulterior fase de restauro propriamente dita. A nova metodologia (j em curso noutros pases europeus), valorizava todo o processo e no apenas o resultado final, e serviu de modelo a outros trabalhos de conservao implementados tambm em monumentos classificados, tais como as Ss de vora e Porto, a Porta Especiosa da S Velha de Coimbra, entre outros, tendo contribudo para modificar as prticas pro-fissionais tanto ao nvel da elaborao dos cadernos de encargos (por parte do IPPAR) que se tornaram mais exigentes, como ao nvel do sector empresarial da conservao que, paulatinamente, comeou a sentir a necessidade de especiali-zao e qualificao.Nesta conjuntura favorvel consolidao de boas prticas na rea da conserva-o do patrimnio, assimilavam-se lentamente os princpios ticos e tcnicos da carta de Cracvia (2000), que integrando todos os princpios da carta de Veneza (1964), visava directamente a conservao e restauro do patrimnio construdo. A carta de Cracvia para alm de alargar o conceito de patrimnio, ao realar a importncia dos patrimnios: arquitectnico, urbano e paisagstico como expresses materiais associadas histria e a contextos socioculturais concretos que lhe so inerentes, clarifica que a sua conservao pode ser efectuada luz de vrios tipos de operaes: de controlo ambiental, manuteno, reparao, renovao e reabilitao, definindo os nveis de interveno para cada uma delas (Carta de Cracvia, Objectivos e Mtodos Art. 1 a 4). Um dos aspectos de maior pertinncia deste documento reside, em nossa opinio, na definio do conceito de projecto de restauro, conceito ainda pouco apreendido e descodificado, data, pela grande maioria dos profissionais do ramo (arquitectos, tcnicos superiores do IPAAR, engenheiros e at conservadores-restauradores), caben-do ressalvar o pioneirismo de Jos Aguiar que, j em 19992 (AGUIAR,2002),

    2 AGUIAR, Jos Estudos cromticos nas Intervenes de Conservao em Centros Histricos. Bases para a sua aplicao realidade portuguesa, tese de doutoramento apresentada Universidade de vora, 1999 (texto policopiado).

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    o72 o abordara e debatera, apontando-o como mtodo a aplicar conservao do

    patrimnio construdo.Por seu lado, os conservadores-restauradores qualificados eram ainda poucos, na sua maior parte com formaes realizadas no exterior, destacando-se os tcnicos que haviam frequentado o curso do Instituto Jos de Figueiredo (in-cios da dcada de 80), e mais tarde, todos os formados pela Escola Superior de Conservao e Restauro de Lisboa (1989), posteriormente transferida para a Faculdade de Cincias e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa. Por esta mesma altura, iniciaram-se igualmente cursos regulares no IPT e s em 2003, a Universidade Catlica do Porto daria incio ao seu projecto formativo. A definio de metodologias, a consciencializao dos problemas da conserva-o e a modernizao e reciclagem de conhecimentos era, assim debatida, no seio de um grupo de profissionais reduzido, que se dedicava essencialmente interveno de patrimnio mvel, e mais raras vezes, de patrimnio integrado. O prprio conceito de patrimnio integrado s viria a ser realado por Vtor Serro (SERRO, 2001), anos mais tarde, j aps a viragem do sculo. Apesar do avano registado ao nvel da oferta formativa sistemtica de nvel superior no incio do sculo XXI, tal facto no se reflectiu com a rapidez necessria no incremento da qualidade das intervenes, na especializao e qualificao de empresas, e sobretudo no crescimento de uma massa crtica de conservadores--restauradores. Cabe recordar, que, tambm neste domnio, o Estado no desempenhou o papel a que se propusera com a criao do Instituto Portugus de Conservao e Restauro (IPCR) em Janeiro de 2000, e que teria a misso, entre outras, certificar cursos e empresas. O IPCR viria a ser extinto3 sem que a sua lei orgnica fosse alvo de regulamentao. Ressalva-se, no entanto, a publi-cao do Decreto-Lei 55/2001 de 15 de Fevereiro, diploma que teve o mrito de introduzir a definio das competncias funcionais das carreiras da conservao no mbito dos museus. Apesar de todas estas vicissitudes, ao longo da sua curta histria, a equipa directiva do IPCR dinamizou a conservao e restauro do patrimnio mvel e a investigao aplicada. Paralelamente, assumiu tambm a tarefa de defender a profisso de conservador-restaurador difundido as cartas e demais documentos normativos, participando em reunies internacionais estra-tgicas para o sector (Carta de Vantaa em 2000), propagando as directrizes da European Confederation of Conservators and Restorers (ECCO) e editando os

    3 O Decreto Lei n 215/2006 de 27 de Outubro estabeleceu uma nova lei orgnica para o Ministrio da Cultura, extinguindo o IPPAR, o IPCR, o IPM e a Rede Portuguesa de Museus, criando o IMC que fundiu as reas dos Museus e Conservao.

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    o73 conhecidos Cadernos de Conservao e Restauro, veculos difusores da aplica-

    o dos princpios deontolgicos e ticos da conservao do patrimnio mvel nacional.Nos domnios da arquitectura e da engenharia civil a teoria da conservao e a sua aplicao recuperao do patrimnio edificado histrico e reabilitao foi divulgada, sobretudo graas aos esforos de alguns investigadores oriundos dos quadros do LNEC, destacando-se contributos como os de Fernando Henriques, Delgado Rodrigues, Jos Aguiar, Rosrio Veiga, Joo Manuel Mimoso, Joo Appleton4, o de Lus Aires de Barros, do I.S.T. Os trabalhos destes investigado-res deram a conhecer os problemas de conservao do patrimnio construdo portugus, em especial nos domnios da pedra, dos revestimentos tradicionais (argamassa e cermicos), tecnologias de construo tradicional, problemas da cor e sua funo na arquitectura (contribuindo para uma nova apreenso da arquitectura histrica, mas tambm da nova ou reabilitada), bem como das tcnicas aplicveis resoluo de problemas estruturais. De entre as questes que consideramos fundamentais, despoletadas pela actividade deste grupo de investigadores, destacamos: a defesa pelo aumento de quadros profissionais qualificados para a conservao e reabilitao, e que teve como consequncia o crescimento da oferta formativa a nvel de mestrados, ps-graduaes e cursos tcnicos e tecnolgicos; a defesa da reapropriao das tcnicas tradicionais como mtodo de suporte preparao das intervenes de conservao e restauro, e que foi responsvel pela orientao de muitos profissionais das reas do patri-mnio edificado para a investigao5, que originou a constituio de grupos de trabalho dedicados a temticas especficas.O interesse pela pesquisa das tcnicas tradicionais relaciona-se intimamente com os conceitos de teoria de projecto (AGUIAR, 2002) e projecto de restau-ro, e contribuiu para o crescimento exponencial da informao sobre o patri-mnio cultural portugus e a renovao de metodologias de interveno e de diagnstico.

    4 Fernando Henriques publicou um dos primeiros textos sobre teoria da conservao em portugus.HENRIQUES, Fernando M.A. A Conservao do patrimnio Histrico Edificado, Lisboa, LNEC, 1991.5 de salientar o razovel nmero de dissertaes de mestrado que foram realizadas entre finais da dcada de 90 e a actualidade, dedicadas s mais diversas reas das tecnologias tradicionais, quer construtivas, quer decorativas. Muitos investigadores avanaram j para o nvel de doutoramento, o que contribuiu para uma modificao substancial do panorama na rea das cincias do patrimnio e da sua conservao. No ser foroso reforar a que se criou, assim, uma dinmica que possibilitou a autonomizao do sector do patrimnio cultural no campo da investigao cientfica.

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    o74 A prtica da Conservao/Reabilitao do Edificado Histrico.

    Anlise de casos de estudo seleccionados

    hoje inquestionvel o crescimento da actividade econmica na rea da conser-vao e restauro, com desdobramentos em reas funcionais e especialidades por categorias de materiais e tcnicas de produo de bens culturais (ANTUNES, 2010:53). igualmente demonstrvel que a actualizao de conhecimentos mais rpida, tal como a partilha de experincias, o que facilita o acesso tanto s teorias mais tradicionais como s mais modernas tendncias na rea da con-servao. O mundo profissional da conservao e da reabilitao (inclumos os arquitectos, naturalmente) portugus, est actualmente mais familiarizado com os principais tericos da conservao, conhecendo autores como Boito, Giovannoni, Brandi, Choay, Vias e estando a par das resolues de Nara e dos ltimos gritos em matria de reabilitao, restauro ou polmicas relacionadas. A informao est ao alcance de um click dependendo apenas da destreza do utilizador para navegar na web. Contudo, em que medida isso se reflecte na praxis da conservao?Uma breve anlise sobre alguns trabalhos mais ou menos recentes nesta matria, permitir perceber o percurso realizado, o ritmo a que se deu a evoluo da praxis e equacionar problemas pendentes por forma apontar directrizes para o futuro.

    Palcio do Freixo (Porto)

    Edifcio barroco, imponente e de grande destaque no quadro do patrimnio local e regional, esteve votado ao abandono durante vrias dcadas (desde 1910, data da sua classificao como monumento nacional), tendo chegado a um avanado estado de runa. Destacam-se quatro fases de ocupao do imvel: a 1) edificao cerca de 1750 por D. Jernimo de Tvora e Noronha que a instalou residncia; a 2) aquisio pelo visconde Afonso Velado por volta de 1850, o famoso Baro do Freixo, brasileiro de torna viagem enriquecido e convertido em industrial de sabes (fase de grandes alteraes no imvel); a 3) nova aquisio pelo alemo Gustavo Petres que a instalou uma destilaria de cereais, destruda num incndio; a 4) em meados da dcada de 50 (sc. XIX) aquisio pela Companhia de Moagens Harmonia, responsvel pela construo da fbrica das Moagens Harmonia, ainda hoje existente, a escassos metros do palcio a e 5) venda ao Estado e cedncia Cmara Municipal do Porto (1986) para instalao sede da rea Metropolitana (A.A.V.V., 2006)

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    o75 Com projecto de restauro da autoria de Fernando Tvora e seu filho Bernardo,

    descendentes dos primeiros proprietrios, o imvel foi intervencionado (conso-lidao, drenagem e e restauro) ao abrigo do programa Metropolis, entre 2000 e 2003, no que constituiu um dos restauros da dcada, em nossa opinio, pela envergadura que data a obra representou, mas tambm pelas questes tericas que programa de restauro, partida colocaria. 6Trata-se de uma recuperao patrimonial que pelas polmicas associadas e pela dimenso do trabalho far parte da histria da conser vao do patrimnio nacional. Os trabalhos de recu-perao arrancaram sem que houvesse, por parte do dono de obra, uma ideia clara do fim a que o edifcio se destinava, o que, obviamente condicionou a equipa projectista. Fernando Tvora, optou ento, por considerar que do ponto de vista espacial o edifcio deveria ficar adaptado, para a instalao de servios administrativos, o que explica a compartimentao aplicada. De acordo com a memria descritiva, e citando Miguel Figueiredo (A.A.V.V., 2006) o projecto de restauro decorreu por diversas fases, sem que alguma delas colocasse em causa a autenticidade do conjunto, atacando-se primeiro os problemas estruturais, efectuando-se a drenagem e s por ltimo, se definissem as metodologias e se formassem as equipas de restauro. De acordo com os projectistas, a arquitectu-ra foi determinante no projecto de restauro, tendo-se encontrado solues de integrao dos elementos pr-existentes em situaes projectuais e estruturais novas, assumindo-se o completamento de lacunas, particularmente graves neste caso, dado o estado de runa atingido. A ideia era partida boa, pois visava evitar rudos na percepo do espectador ao captar o programa decorativo original.Uma anlise intrnseca dos espaos restaurados leva-nos a considerar que se poder ter perdido uma oportunidade de realizar, com este imvel, um trabalho de verdadeira teoria de projecto na acepo brandiana, pois no acreditamos que certas condicionantes possam ter sido ultrapassadas, ou trabalhadas em con-junto entre projectistas, empresa executora e equipas tcnicas. De entre alguns dos aspectos que consideramos menos positivos destacamos: uma excessiva

    6 Cabe referir que o projecto que Fernando Tvora levou a cabo resultou j de uma alterao imposta pela Cmara Municipal do Porto, decorrente da polmica que o projecto inicial gerou e que previa a desmontagem do edifcio das Moagens e sua posterior remontagem. Face a isto, corria o ano de 1997, a Associao Portuguesa para o Patrimnio Industrial (APPI) organizou um debate pblico, em Janeiro de 1998, que envolveu diversas personalidades da cidade (desde historiadores a arquitectos), a FAUP, muitos estudantes de patrimnio, e o staff poltico que integrava o executivo camarrio poca, tendo da resultado a ideia de manuteno do edifcio das moagens, que data albergava algumas coleces do futuro museu da Indstria da cidade. O edifcio tinha projecto de reabilitao para alojar o futuro museu e a sua manuteno foi decidida com base no valor histrico e de autenticidade, face ao fim social em vista. Vicissitudes vrias determinaram que tal no se viesse a cumprir.

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    o76 redecorao dos espaos como resposta ao problema das lacunas, que s foram

    assumidas pontualmente (em tectos de compartimentos menores); a alterao da diviso espacial inicial que no se coadunou com as decoraes existentes, o que particularmente evidente nos tectos estucados e em certos conjuntos pictricos; a hipervalorizao da arquitectura em detrimento dos programas decorativos. Esta foi, sem dvida, uma das obras onde os restauradores no tiveram uma palavra a dizer nas opes de fundo, excepo da conservao das pinturas murais de Nasoni, descobertas no decorrer dos trabalhos.

    Se o projecto nasceu sem programa definido, num tempo em que tal j no se justificava, a experincia e conhecimento de Fernando Tvora - uns dos arqui-tectos portugueses mais informados sobre princpios tericos da conservao praticados na Europa deveriam ter sido soberanos, face incapacidade dos polticos em compreender a necessidade de se definir um programa de uso do

    Figura 1- Interior redecorado aps restauro. Figura 2- Tecto com pintura a leo e estuques dourados.

    Figura 3 Pinturas murais de Nasoni conservadas aps a descoberta.

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    o77 espao na fase ps restauro. Ramalho Ortigo j em 1896 defendia que no

    se deveriam empreender restauros sem que o fim social dos mesmos estivesse assegurado (ORTIGO, Ramalho 1896). A ausncia de programa ps restauro transformou-se num factor de degradao do prprio restauro, uma vez que o escasso uso do edifcio acarretou uma manuteno constante dos programas decorativos, j que a falta de ventilao provocaria humidades de condensao e de capilaridade, responsveis pela destruio de estuques, pinturas e outros revestimentos, com os consequentes desgastes para o imvel e desperdcio finan-ceiro. Alguns anos mais tarde, o imvel entraria noutra fase da sua histria. A Cmara Municipal cedeu-o ENATUR, que, por sua vez, viria a vender ao Grupo Pestana os direitos de explorao, que por seu turno ali instalou a maior pousada portuguesa a Pousada do Porto- investindo cerca de onze milhes de euros, que incluram a recuperao do antigo edifcio das Moagens Harmonia (2009), adaptado para albergar um restaurante de luxo e um centro de eventos. A falncia do projecto do Museu da Cincia e Indstria acabou, assim, por conduzir a esta soluo considerada como a derradeira, aps um doloroso arras-tamento da questo por parte dos diversos executivos camarrios e da Associao Promotora do Museu da Cincia e Indstria do Porto.Feito o balano deste processo, o Porto perdeu a possibilidade de ter um Museu da Cincia e Indstria num edifcio com autenticidade para o ser, baseado num projecto de reabilitao que respeitava a pr-existncia e fora pensado de acordo com uma tica de teoria de projecto, cumprindo o programa museolgico pre-viamente pensado (CORDEIRO, J.Lopes et alli, 1997). Por outro lado, a ins-talao da pousada no antigo Palcio, foi a soluo encontrada de acordo com a lgica de mercado, que resulta impositiva do ponto de vista da reabilitao, uma vez que no decorre de um projecto de raiz. O palcio acabou por ser alvo de duas campanhas de restauro/renovao, perfeitamente evitveis se todo o processo tivesse sido devidamente planificado desde o incio, equivalendo toda esta situao a um fracasso das polticas pblicas de preservao do patrim-nio, j que o municpio se desresponsabilizou quer da criao do museu, quer da manuteno do conjunto para usufruto como monumento nacional, com a agravante de ter sido necessrio o investimento privado para salvar o edifcio das Moagens, que resta como invlucro/contentor de novas actividades, sem articulao com a memria industrial que o poderia contextualizar.

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    Figura 4 - Pormenor de eflorescncias salinas aps o restauro por falta de ventilao do edifcio.

    Figura 5 Testes de argamassas com maior permeabi-lidade ao vapor de gua para resoluo de anomalias de revestimentos.

    Figura 6 - Um dos casos pontuais onde foram assumidas as lacunas.

    Figura 7 - Espao social da Pousada do Porto. (Fonte: Pousadas de Portugal).

    Figura 8 Restaurante instalado no edifcio das Moagens Harmonia. (Fonte: Pousadas de Portugal).

    Figura 9 - Espao das Moagens adaptado a Centro de Eventos. Fonte: Pousadas de Portugal).

    Figura 10 Antigo cais fluvial do palcio transforma-do. (Fonte:Pousadas de Portugal)

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    o79 Palcio de Esti (Faro)

    Edifcio considerado um pastiche rococ, cheio de revivalismos tpicos da poca, viu a sua construo iniciar-se em 1840, muito embora Francisco Lameira defen-da um recuo de datas para 1782-83 (FERNANDES, Jos M, et alli, 2005), por iniciativa de Fernando Carvalhal de Vasconcelos. A morte deste determinou o fim do projecto de edificao, que veio a ser retomado em 1909 por Jos Francisco da Silva, o segundo proprietrio considerado um empreendedor, facto que originou a atribuio do ttulo de visconde de Esti pelo rei D. Carlos, que assistiu inaugurao do imvel. Os trabalhos de decorao interior e exterior estiveram a cargo do conhecido estucador Domingos da Silva Meira, originrio de Afife e o profissional com maior projeco no mercado, data. O palcio evidencia um rico repositrio de artes decorativas aplicadas, exibindo complexos conjuntos de estuques e pinturas. A sua decorao foi pensada com vista explo-rao de efeitos cnicos em articulao com a envolvente. No exterior encon-tramos esttuas da autoria de Antnio Canova As Trs Graas, importadas de Itlia, bem como uma certa exuberncia decorativa materializada em mltiplos motivos decorativos em argamassas, pintura e azulejaria. A estaturia domina em todos os espaos. A unidade de estilo -lhe ainda conferida pelo jardim de palmeiras e laranjeiras, que reforam o eclectismo patente.

    O imvel, vizinho da estao arqueolgica romana de Milreu, manteve-se na famlia de Jos Francisco da Silva (falecido em 1926 sem herdeiros directos) at 1987, data em que foi vendido Cmara Municipal de Faro. Recebeu a classi-ficao de Imvel de Interesse Pblico em 1977.Passou por uma longa fase de

    Figura 11- Sala transformada em espao social da actual Pousada de Faro.

    Figura 12 Espao social da Pousada de Faro onde se vm as decoraes em estuque de Domingos Meira.

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    o80 abandono desde a morte do visconde de Esti at aquisio pelo municpio,

    tendo a primeira campanha de restauro decorrido em 1993, sob a alada da extinta D.G.M.E.N. Posteriormente passou para a propriedade da ENATUR, que decidiu adapt-lo (2007-2008) para a instalao da Pousada de Faro, assi-nando para tal um protocolo com o arquitecto Gonalo Byrne, autor do pro-jecto de recuperao. A adaptao do imvel a pousada com projecto de raiz, representa outro modelo de actuao distinto do aplicado ao Palcio do Freixo, possibilitando enquadrar a pr-existncia e o respeito dos valores estticos da arquitectura e artes decorativas.

    Figura 13 Lavabo pblico da pousada. Figura 14 Casa do Prespio aps restauro.Pavilho de ch da pousada.

    Figura 15 - Vista exterior de parte do jardim de modelo francs da Pousada de Faro aps a interveno.

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    o81 Pesem embora as alteraes a introduzir em edifcios histricos decorrentes das

    exigncias funcionais de uma pousada de cinco estrelas, o resultado final , partida, mais equilibrado no seu conjunto. Aps a recuperao, ainda possvel usufruir em Esti os valores de memria, artstico e social, permitindo-nos afir-mar que hspedes e visitantes (do restaurante que funciona aberto ao pblico em geral), sentem o ambiente de uma casa rica do sculo XIX, com a vantagem de funcionar quase como um museu de artes decorativas arquitectnicas.Da anlise destes dois casos decorrem, naturalmente outras, questes pertinen-tes, uma das quais de grande relevncia e que se relaciona com a transferncia de patrimnio histrico pblico para a esfera privada, por falta de capacidade financeira do Estado em manter essas estruturas, o que representa sempre uma alienao do direito colectivo sobre o privado e uma cedncia lgica de mer-cado, que assim se vai impondo como soluo de salvaguarda. Uma outra, no menos importante, reside nas solues tipolgicas encontradas para conferir novos usos ao edificado histrico. Temos hoje em Portugal um razovel nmero de pousadas histricas, sendo discutvel se esse seria o nico fim vivel para os edifcios? Se por um lado lcito equacionar at que ponto asseguraramos a sustentabilidade dos edifcios histricos, se apenas lhes conferssemos usos cul-turais, igualmente correcto questionar a sustentabilidade de tantas unidades hoteleiras de luxo? Veja-se mais um exemplo recente deste tipo de filosofia na transformao do Intercontinental Palcio das Cardosas no Porto, transformado em hotel de charme, quando podia ter tido outra finalidade social. Tratando-se de um antigo banco e estando bem conservado, mas no apresentando os valo-res artsticos dos dois anteriores casos, apenas a sua localizao privilegiada no centro da cidade explicar o interesse dos promotores imobilirios pela tipologia de recuperao aplicada, o restauro fachadista que travestizou o imvel, rede-corando-o e conferindo-lhe um certo cariz de pastiche contemporneo, recor-rendo em excesso a solues decorativas que desvirtuam a autenticidade dos programas originais, transformando o mais recente em mais ou menos antigo, alterando os valores de memria (artstica e tcnica) do imvel.

    Igreja de S. Vicente de Fora (Lisboa)

    Tambm conhecido por Mosteiro de S. Vicente de Fora, o imvel de traa maneirista e barroca contou com o trao de diversos arquitectos famosos como Filipe Terzio (sc. XVI), Francisco da Silva (sc. XVII), Joo Nunes Tinoco (1641) e Joo Francisco Ludovice (1720) albergando um rico patrimnio

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    o82 artstico (escultrico e pictrico) no seu interior. A trabalharam artistas como

    Claude Laprade e Vicenzo Baccarelli. Apesar da singeleza das suas linhas manei-ristas esto presentes a azulejaria, os embrechados de pedra e, de modo menos exuberante, os estuques pintados, cujo conjunto mais importante datava do sculo XIX. Tanto a capela-mor como as capelas laterais se encontravam reves-tidas a marmoreados do tipo stucco-lustro, que se vulgarizaram desde meados de Oitocentos at s primeiras dcadas do sculo XX. Foi classificado monumento nacional em 16 de Junho de 1910.O mau estado de conservao dos estuques da capela-mor determinou o encer-ramento do imvel entre Janeiro de 2008 e Agosto de 2011, registando-se fre-quentes destacamentos que colocavam em risco a segurana dos utentes. A obra de conservao do edifcio foi entregue responsabilidade do Patriarcado de Lisboa, por falta de capacidade financeira da Direco Regional de Cultura e Vale do Tejo (DRCVT) para a executar. O objectivo prioritrio do restauro, orado em cerca de um milho e meio de euros, era o de resolver os problemas de infiltrao factor de degradao dos revestimentos. Contudo, as anomalias dos estuques da capela-mor deram lugar a uma operao integral de remoo dos estuques marmoreados de todas as capelas, incluindo as laterais, tendo o pro-grama decorativo original sido destrudo pela picagem de rebocos e pinturas7. A igreja viria a reabrir com as abbadas j caiadas a branco. O restaurador Ricardo Lucas Branco, denunciou publicamente a situao, coadjuvado pela historiadora de arte Raquel Henriques da Silva. Gerada a polmica, a DRCVT, entidade que supervisionou os trabalhos, justificou a remoo dos estuques com base na falta de antiguidade dos mesmos, j que no eram coevos da edificao do imvel, ou seja do sculo XVII. Ricardo Lucas Branco comprovou a que os mesmos teriam pelo menos um sculo atravs de registos fotogrficos em suporte de gelatina e brometo de prata, situando-os entre 1880-1890 (BRANCO, Ricardo L., 2011). Perante as duras crticas que surgiram, tanto a DRCVT como o Patriarcado se desresponsabilizaram pelo sucedido. Para alm da argumentao anedtica e incompreensvel assumida pelos rgos da tutela (DRCVT), incongruente face aos princpios normativos emanados das cartas internacionais de conservao, o ocorrido levanta outras questes relacionadas com a competncia e tica pro-fissional dos tcnicos da DRCVT quanto fiscalizao e acompanhamento da obra. Os estuques haviam sofrido um restauro j no sculo XX, facto que no

    7 HENRIQUES, Ana Estuques pintados na Igreja de S. Vicente de Fora destrudos durante o restauro, In: Pblico, 15 de Fevereiro de 2011, p. 29

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    o83 lhes retirava valor. Durante a obra no se realizaram sondagens ou inspeces

    para avaliar o real estado de conservao dos mesmos, e tudo indica que se decidiu, de modo leviano, avanar para a picagem integral da totalidade dos revestimentos quer da capela-mor quer das laterais, o que constitui uma des-truio em nome de uma interveno mais econmica, argumento vlido para Patriarcado de Lisboa que pagou a obra, ou de uma repristinao, argumento evocado pelo rgo da tutela, mas repudiado j desde a carta de Veneza. Para alm da absoluta indiferena com que esta destruio foi tratada pelas partes envolvidas, no se conhece a documentao de suporte decorrente da interven-o, tudo levando a crer que se tratou de mais uma obra entregue execuo de pessoal no qualificado. Ora a crise econmica que afecta todos os sectores da sociedade portuguesa, no pode servir de desculpa para a incria por parte dos responsveis, neste caso a DRCTV, uma vez que por fora da desamortizao de 1834 o Estado o legal proprietrio do imvel, competindo-lhe a tarefa de superviso e aconselhamento na sua conservao. Cabe igualmente referir, que por parte do Patriarcado deveria ter havido mais cuidado na busca de apoio tcnico, tanto mais que Igreja Catlica o poderia ter obtido atravs da Escola das Artes do Plo Regional do Porto, onde, precisamente se lecciona uma disciplina de conservao e restauro de estuques8. Por fim, resta dizer que, mesmo aps os trabalhos pioneiros de Jos Aguiar e seus discpulos, muito ainda h a fazer pela valorizao dos revestimentos histricos.

    8 De que a signatria regente. data manifestamos a nossa solidariedade com esta denncia, que chegou a instncias superiores, sem qualquer resposta.

    Figura 16 - Abbadas rebocadas a branco aps a destruio dos estuques marmoreados do sc. XIX.

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    o84 Igreja da Misericrdia de Viana do Castelo

    A igreja da Misericrdia de Viana do Castelo constitui um exemplar barroco de grande valor artstico no quadro do patrimnio edificado nacional, e, em especial, no tocante s artes decorativas de aplicao arquitectnica. Projecto de Manuel Pinto de Vilalobos, foi concluda entre 1718 a 1721 e na sua decorao testemunhamos bons exemplares de talha dourada, pintura mural e azulejaria (FERNANDES, Francisco, 1990). Numa perspectiva de arte total, as enco-mendas surgiram logo aps o trminus do templo, tendo a trabalhado artistas como Ambrsio Coelho (talha), Manuel Gomes (pintura mural) e Policarpo de Oliveira Bernardes (azulejos). Se tanto a talha como a pintura mural de bru-tesco do tecto so de qualidade, a obra-prima deste imvel constituda pelo conjunto dos revestimentos azulejares historiados que reproduzem as Obras da Misericrdia num complexo esquema de distribuio espacial. A nave est totalmente forrada de azulejos em dois registos (BOTELHO, J.A., 2001). monumento nacional desde 1010.Denunciando h muito problemas estruturais de conservao ao nvel da cpula, que ameaava derrocada devido a fracturas vrias, foi encerrada em 2010 por questes de segurana. Em Junho de 2011 teve incio a empreitada de conser-vao do imvel que incluiu o reforo estrutural da cpula, o restauro do pro-grama decorativo interior, do claustro e capela da Senhora do Bom Despacho9. Os revestimentos azulejares contavam j com diversos restauros anteriores, em 1959 (substituio de azulejos inutilizados), em 1964 (obras de conservao e desmonte de painis para limpeza), entre 1973-1980 (assentamento de rplicas de azulejos fabricados pela Viva Lamego) e, por fim, em 1998 (intervenes pontuais de fixao de vidrados em destacamento), e encontravam-se proviso-riamente protegidos por facings.Pelo valor artstico do patrimnio a conservar, esta constituiu uma das interven-es de grande destaque ocorrida j em conjuntura de contraco econmica. Para a realizao deste objectivo a Misericrdia de Viana do Castelo assinou um protocolo com o municpio em Maro de 2011, que ter facilitado a apresentao de uma candidatura dos trabalhos a financiamento do QREN ON2 (Quadro de Referncia Estratgico Nacional). A empreitada foi anunciada a pblico atravs de edital colocado entrada do imvel onde se indicavam, apenas, os valores a adjudicar ao restauro (877,000,00), a compartio comunitria (613,900,00) e o prazo a cumprir (Maio de 2013). A obra foi adjudicada pelo regime do ajuste

    9 No pretendemos fazer uma leitura crtica da interveno uma vez que a igreja acaba de reabrir ao pblico.

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    o85 directo, aplicvel a obras de valor inferior a de cento e cinquenta mil euros ou ao

    fornecimento de bens e servios abaixo dos setenta e cinco mil euros. Neste caso, a adjudicao por ajuste directo foi feita ao abrigo da excepo que a lei permite quando se tratam de projectos relacionados com o desenvolvimento local10.No pretendemos por em causa a necessidade ou qualidade da interveno ou as empresas que a executaram, mas sim, debater o processo de adjudicao da obra, tratando-se, mais uma vez, de um imvel classificado recuperado com dinhei-ros pblicos (70%). Sabendo-se da impossibilidade do Estado para assumir a recuperao do imvel, dados os constrangimentos financeiros impostos pela Troika (no mbito da ajuda externa financeira a Portugal BCE/FMI e Comisso Europeia), a soluo de recurso a fundos comunitrios para recuperar um imvel com grande impacto no turismo regional louvvel. H muito que Viana e o pas mereciam usufruir este patrimnio. Contudo, e pesem embora os factos positivos, o modelo de concesso da obra levanta algumas questes que impor-ta analisar. Desde logo, questionvel o modo como as empresas tero sido seleccionadas para prestao de servios, desde a fase de inspeco e diagnstico fase de execuo do restauro. Obtivemos a informao de que a seleco foi efectuada com base num concurso por convite da responsabilidade do dono de obra, o que no se articula com financiamentos pblicos. Por outro lado, esta no foi uma obra de estaleiro aberto, semelhana de outras, no obstante algumas das empresas executoras11 serem associadas do GECORPA. Durante o decurso da obra, para alm de ser difcil a obteno de informao sobre a mesma, persistiu um clima de absoluto secretismo, mesmo para os profissionais do ramo, nada saudvel para a consolidao social do trabalho de conserva-o arquitectnica, tendo sido desperdiada uma excelente oportunidade para envolver a comunidade em geral numa pedagogia patrimonial, e a cientfica, mais interessada nos problemas relacionados com o restauro. A preocupao com os utentes surgiu tardiamente (aps a concluso do restauro da igreja) e residiu na colocao de uma tela que reproduz a fachada em pedra do edifcio principal12, actualmente em restauro, apenas por se se tratar de um dos pontos

    10 O ajuste directo aplicvel at aos cinco milhes de euros no caso de projectos que agilizem a economia loca ou que recorram a fundos comunitrios. Trata-se, no entanto, de um regime de excepo temporrio.11 Referimo-nos STAP Reparao e Consolidao de Estruturas e Monumenta-Conservao e Restauro do Patrimnio Arquitectnico , Lda.12 A fachada do antigo Hospital Velho constitui um ex-libris no contexto artstico nacional tratando do nico exemplar do gnero. O avanado estado de degradao que atingiu, transforma-a num caso de estudo na rea da conservao de pedra, a exigir um restauro modelar com recurso cincia da conservao e a uma equipa multidisciplinar e qualificada. Trata-se da fachada com maior implantao na imagem urbana de Viana do

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    o86 mais visitados da cidade. Porque no houve essa preocupao em relao ao

    restauro dos espaos interiores? Ainda hoje, se desconhecem as empresas que efectuaram os trabalhos, se foram cumpridos os requisitos previstos na lei sobre a coordenao e formao de equipas, se foram acompanhados ou fiscalizados pelo rgo competente da tutela e tudo o que se relaciona com relatrios da inter-veno. Em Portugal no existe, ainda, o hbito de participao pblica neste tipo de processos, e as entidades adjudicatrias e/ou gestoras tardam em aceitar uma mudana de hbitos. O impacto final de um restauro desta envergadura enorme, tanto no pblico em geral como na comunidade de profissionais. O secretismo apenas abre caminho especulao e polmica. lcito duvidarmos se foram escolhidas as empresas mais qualificadas, as melhores propostas ou as melhores metodologias (de execuo/gesto), para um trabalho em patrimnio que de todos, e que todos custeamos e desejamos fruir. Se algo correu mal, s o saberemos tardiamente, esperando poder responsabilizar os executantes. Em 2012, e chegados a este estdio de expanso do sector no podemos pactuar com a falta de transparncia ou demitir-nos de pugnar pelo cumprimento dos princpios deontolgicos da profisso, sob pena de no conseguirmos mudar mentalidades e consolidar a rea da reabilitao patrimonial.

    Concluso

    Da anlise apresentada, vemos que so de natureza diversa as questes relacio-nadas com a conservao e reabilitao arquitectnicas. Contudo, critrios e metodologias apesar de enquadrados por paradigmas cientficos e por linhas de conduta tica, no se dissociam dos contextos econmicos, sociais e polticos que lhes esto subjacentes, dos valores intrnsecos ou extrnsecos que atribumos ao patrimnio a conservar (e como Riegl se mantm actual!) e da comunicao que conseguimos, enquanto profissionais, estabelecer com a sociedade. A comunidade de especialistas dedicados Conservao, Reabilitao e ao Restauro cresceu exponencialmente e o pas conta hoje com recursos humanos que podem catapultar a conservao e a reabilitao arquitectnicas, a ponto de a transformar numa actividade econmica alternativa e com futuro. H, no entanto, questes de fundo a resolver e desafios a acautelar a curto e mdio prazo, que se interligam. Vivemos hoje um momento de profunda crise econmica,

    Castelo, e uma referncia para todos os vianenses e visitantes do Alto Minho. O restauro pode conserv-la ou desvirtu-la e esperamos que o dono de obra esteja consciente destes pressupostos, j que no mercado portugus, no momento, no so muitas as empresas verdadeiramente qualificadas para esta empreitada.

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    o87 com uma total desvalorizao da rea cultural em detrimento de outras con-

    sideradas mais lucrativas, notando-se uma completa demisso do Estado pela preservao do patrimnio comum, e basta ver as denncias pblicas do estado iminente de runa de alguns monumentos13, consultar a lista de Patrimnio em Perigo do ICOMOS ou ver os resultados da opo por determinadas polticas de desenvolvimento, que levam governos a desafiar a Unesco, e de que temos como mais recente e triste exemplo o da barragem do Tua.14 A polmica rees-truturao do sector cultural do Estado efectuada pelo governo de centro direita de Pedro Passos Coelho na sequncia do compromisso assumido com a Troika, no deixa lugar a dvidas quanto mudana de rumo implementada. A nova atitude perante o patrimnio ficou patente nas recentes declaraes de Elsio Summavielle, curiosamente secretrio de estado da cultura do anterior governo socialista de Jos Socrates, ao jornal Pblico15 e na qual, ostensivamente, decla-rou aberta uma espcie de poca de caa ao patrimnio classificado, ao afirmar que no devemos recear encarar o patrimnio como um negcio, sem contudo clarificar quais as linhas programticas de aco que sua tutela pretende assumir no sector da conservao do edificado histrico. Assistimos a extines e fuses de servios e criao de outros, justificadas pela necessidade absoluta de redu-o da despesa pblica. As mudanas em curso esto dominadas pelo primado da economia, so estruturais e foram implementadas sem a devida discusso pblica sobre a sua utilidade, ou uma avaliao de resultados das alteraes introduzidas pelo anterior executivo socialista. Por outro lado, a grave situao de falncias registada no sector da construo civil (entre o ltimo trimestre de 2011 e o primeiro semestre de 2012), a par do mau estado de conservao do edificado urbano corrente, que comea a merecer a devida ateno de arqui-tectos e engenheiros civis16, pode potenciar o mercado de trabalho da rea da

    13 Este assunto foi particularmente debatido no Simpsio Patrimnio em Construo. Contextos para a sua Preservao, realizado no LNEC em Novembro de 2011, para comemorar os cem anos da Lei da Reorganizao dos Servios Artsticos e Arqueolgicos da 1 Repblica e durante o qual foram apresentados alguns casos conjuntos monsticos em risco de derrocada. Consultar actas do evento.14 O impacto da construo da barragem do Tua, contestada pelos ambientalistas da Quercus, levou o Comit de Patrimnio Mundial da Unesco a aconselhar um forte abrandamento da obra, estando em causa a manuten-o da categoria de Patrimnio da Humanidade zona do Alto Douro Vinhateiro. No havendo ainda decises da Unesco no momento em que redigimos este artigo, sabe-se, no entanto que a posio do actual Executivo pende para a continuidade do projecto da barragem, tendo mantido uma posio ambgua, j por um lado se comprometeu com abrandamento das obras, mas na realidade deu luz verde sua continuidade a todo o vapor, como se comprova pelas denncias veiculadas atravs da imprensa durante este Vero.15 CANELAS, Lucinda No podemos ter medo de encarar o patrimnio como um negcio In Pblico, 8 de Agosto de 2012.16 A realizao do Seminrio Cuidar das Casas: a manuteno do patrimnio corrente, em Fevereiro de 2011,

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    o88 conservao e reabilitao, mas tambm aqui h que acautelar a instalao dos

    patos bravos no qualificados, que vero certamente nesta via, uma sada para a viabilizao das suas antigas empresas de construo civil. Se a necessidade de qualificao profissional17 premente, defendemos que a de requalificao para a reconverso deve ser encarada seriamente, partilhada e participada por todos quantos temos responsabilidades formativas e de opinio. Todos estes desafios interessam igualmente aos conservadores-restauradores, cujo estatuto profissional carece ainda de reconhecimento pleno e de consolidao18, embora o percurso para a maturidade seja inevitvel.

    Referncias

    A.A.V.V. - Torre de Belm. Interveno de Conservao Exterior, Coord. Elena Charola, Col. Cadernos, 1 ed., Lisboa, IPPAR, 2000.

    A.A.V.V A Renovao do palcio do Freixo 1750-2003, Porto, APOR, 2006.

    AGUIAR, Jos - Cor e Cidade Histrica. Estudos cromticos e conservao do patrimnio, Porto, FAUP, 2002.

    ANTUNES, Fernando dos Santos - Conservao e Restauro: sector de activi-dade econmica versus domnio cientfico tecnolgico- Uma realidade, uma fico ou uma utopia?, IN: Ge-Conservacin , n 1, 2010, pp.37-57

    BOTELHO, J. dAlpuim As representaes das Obras da Misericrdia nos azulejos da Santa Casa da Misericrdia de Viana do Castelo, I congresso das Misericrdias do Alto Minho, Viana do Castelo, 2001, pp.178-203.

    BRANCO, Ricardo Lucas Destruio e deturpao patrimonial em So Vicente de Fora, IN: Pedra & Cal, Ano XIII, n 49, 2011, pp. 30-31.

    Carta de Cracvia, 26 de Outubro de 2000, Trad. (da verso espanhola) Elsio Summavielle e Jos Silva Passos.

    CORDEIRO, Jos M. Lopes; Fernandes, Csar et alli Museu da Cincia e

    no Porto organizado pela FEUP, ICOMOS Portugal, Ordem dos Engenheiros e apoiado pela CMP chamou ateno para o problema e apontou algumas directrizes a seguir no curto prazo.17 H algum tempo que o Vtor Cias defende a necessidade de certificao de empresas e profissionais. Consultar artigos de opinio em www.gecorpa.pt18 No objectivo deste artigo debater os problemas e desafios intrnsecos dos conservadores-restauradores, que so vrios. Voltaremos ao tema oportunamente noutro trabalho onde analisaremos o posicionamento destes profissionais no mbito do mundo do restauro e reabilitao arquitectnicas.

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    o89 Indstria: Programa Museolgico, IN Arqueologia Industrial, Terceira Srie, Vol

    I, Nmero 1-2, 1997,pp.47-88.

    FERNANDES, Jos F. Carneiro Viana Monumental e Artstica. Espao urbano e patrimnio de Viana do Castelo, Viana do Castelo, Edio do GDCENVC, 1990.

    FERNANDES, Jos M.; JANEIRO, Ana Arquitectura no Algarve. Dos Primrdios actualidade. Uma leitura de sntese, Edio da CCDR Alg e Edies Afrontamento, 2005.

    ORTIGO, Ramalho O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, Esfera do Caos Editores Lda., 2006 (edio original de 1896 por Antnio Maria Pereira).

    RODRIGUES, J. Delgado - A Conservao do Patrimnio arquitectnico em Portugal no final do sculo XX. Ser legtimo invocar um efeito WMF? In: Actas do Simpsio Patrimnio em Construo. Contextos para a sua preservao, Lisboa, LNEC, 2011, pp.191-198

    SERRO, Vitor - Faltam tcnicos capazes de .encarar o Patrimnio como algo de vivo, integrado e interdisciplinar- Entrevista, IN: Pedra & Cal, Ano III, n 9, GECORPA,2001, pp. 14-16.

    Nota biogrfica

    Eduarda Vieira - [email protected] em Conservao e Restauro do Patrimnio Histrico-Artstico pela Universidade Politcnica de Valncia. Mestre em Recuperao do Patrimnio Arquitectnico e Paisagstico pela Universidade de vora. Docente do Departamento de Arte, Conservao e Restauro da Escola das Artes da Universidade Catlica Portuguesa- plo regional do Porto. Coordenadora cientfica da rea de Conservao de Bens Culturais do CITAR. Coordenadora do Mestrado em Conservao de Bens Culturais e da Ps Graduao em Conservao Preventiva da UCP. Tem dedicado a sua ateno publicao de temas relacionados com a Conservao Arquitectnica e Artes Decorativas Aplicadas Arquitectura.